CAPÍTULO XV

Um, dois, três… O relógio da cozinha bateu doze vezes. Como pareciam inúteis desde que o tempo deixara de existir! As inoportunas batidas soaram ridículas no âmago de um «acontecimento» eternamente presente no Agora, que muda incessantemente e que é medido não em segundos e minutos, mas pelo que contém em beleza, significação, intensidade e em mistérios cada vez mais profundos.

— Êxtase luminoso! — Da superfície de seu cérebro, as palavras vinham a seus lábios como se fossem bolhas. Vinham à superfície e desapareciam no espaço infinito da luz viva que pulsava e respirava por trás de seus olhos semicerrados.

— Êxtase luminoso! — Não era possível exprimir-se melhor, pois diante desse «acontecimento» que, apesar de eterno, estava sempre em mutação, as palavras não passavam de caricaturas e eram incapazes de exprimir seu verdadeiro sentido. O «acontecimento» não era apenas êxtase; também era compreensão. Uma compreensão total, inteiramente destituída de qualquer conhecimento. O saber implica a existência de alguém que conheça toda a infinita variedade de coisas conhecidas e conhecíveis. Mas, naquele momento, atrás de suas pálpebras cerradas não havia espetáculo nem espectador: somente a sensação de estar completamente identificado com o êxtase.

Numa sucessão de revelações, a luz ficou mais intensa, a compreensão se aprofundou e o êxtase atingiu tal intensidade que se tornou insuportável.

— Meu Deus! — disse para si mesmo. — Oh! Deus meu!

Nesse instante, como se tivesse vindo de outro mundo, ouviu a voz de Susila:

— Gostaria de me dizer o que está acontecendo?

Passou-se um longo tempo antes que Will respondesse. O ato de falar se tornara difícil. Não que houvesse qualquer impedimento orgânico, mas porque as palavras lhe pareciam vazias e completamente sem sentido.

— Luz! — murmurou finalmente.

— Você a está vendo?

— Não. Ela está em mim! Está em mim! — repetiu com ênfase.

Sua presença implicava sua ausência. Em essência, a pessoa de William Asquith não existia. Somente existia um êxtase luminoso, uma compreensão sem sabedoria e uma fusão com a unidade através dos limites imprecisos de sua consciência. Era óbvio que este devia ser o estado normal da mente. Mas não se podia negar a existência daquele espectador profissional de execuções, daquele desprezível que se viciara em Babs. Existiam também três bilhões de consciências isoladas, cada uma delas vivendo no centro de um mundo de pesadelo e no qual era totalmente impossível que qualquer pessoa, capaz de enxergar e dotada de um mínimo de honestidade, pudesse aceitar o «sim» como resposta. Qual o milagre sinistro que transformara o estado natural da mente nessas «ilhas demoníacas» de mesquinharia e de crimes?

No firmamento do êxtase e da compreensão, como se fossem morcegos no crepúsculo, conceitos e restos de sentimentos passados se entrecruzavam com violência. «Pensamentos— morcegos» de Plotinus, dos gnósticos. Emanações do único. Mergulhos cada vez mais profundos na espessa camada de horrores. «Sentimentos-morcegos» de ódio e de nojo, à medida que a camada de horrores se converteu em recordações específicas de tudo aquilo que o inexistente William Asquith Farnaby tinha visto, tinha infligido e tinha sofrido.

Mas, por trás desses pensamentos vacilantes, envolvendo-se e chegando mesmo a se integrar neles, estava o firmamento do êxtase, da paz e da compreensão. Não importava que houvesse alguns morcegos naquele céu de crepúsculo; o fato era que o terrível milagre da criação havia sido subvertido. O seu eu sobre-humanamente vil e criminoso foi desfeito e em seu lugar surgiu a mente em toda a sua pureza. A mente tal qual é, em seu estado natural: ilimitada, indistinta, radiosamente feliz e dotada de uma compreensão que não é fruto do saber.

A luz estava aqui, neste momento. E porque estava infinitamente próximo neste eterno Agora, nada existia além dela e por isso ninguém podia vê-la. Toda a realidade se resumia no conhecimento de sua presença e nesse conhecimento se resumia toda a realidade.

De alguma parte desse outro mundo que ficava além da luz, chegou o som da voz de Susila:

— Você está feliz? — perguntou.

Uma onda de radiação mais brilhante varreu para longe todos os pensamentos e lembranças vacilantes. Só restou a cristalina transparência do êxtase.

Sem ao menos falar ou descerrar as pálpebras, meneou a cabeça afirmativamente.

— Eckhart chamou-a «Deus» — continuou Susila. — É uma felicidade tão arrebatadora, de intensidade tão inconcebível, que se torna impossível descrevê-la. E, no meio dessa felicidade, Deus brilha e Se inflama sem cessar.

Deus brilha e Se inflama…

Will riu alto, pois a veracidade dessa afirmação lhe pareceu comicamente acertada.

— Deus, como se fosse uma casa se incendiando — disse ofegante. — Deus em quatorze de julho.

Mais uma vez explodiu numa risada cósmica.

Atrás de suas pálpebras cerradas, um oceano de felicidade radiosa jorrava de forma ascendente, parecendo uma catarata cujo curso tivesse se invertido. Jorrava de baixo para cima como se fosse uma união em busca de algo mais completo. Da impessoalidade para uma forma ainda mais absoluta de transcendência. Repetiu:

— Deus — em — quatorze — de — julho. — E no meio da catarata explodiu uma risada final de reconhecimento e de compreensão.

— E em quinze de julho? Que sucederá na manhã seguinte? — indagou Susila.

— Não haverá manhã seguinte.

Ela balançou a cabeça e disse:

— Isso se parece muito com o nirvana.

— E o que há de mal nisso?

— O Espírito Puro (o espírito a cem graus)’é uma bebida que somente os mais empedernidos beberrões-contemplativos se permitem. Os Bodhisattvas diluem seu nirvana em partes iguais de amor e de trabalho.

— Assim fica melhor — insistiu Will.

— Você quer dizer que é mais delicioso e por isso constitui uma tentação tão grande. A única tentação à qual Deus poderia sucumbir. O fruto da ignorância do que seja o bem e o mal. Que doçura celestial! Que «supermanga»! Deus vinha se alimentando dela havia milhões de anos. De repente surge o Homo sapiens, surge o conhecimento do bem e do mal. Deus teve de comer uma nova espécie de fruto menos saboroso. Você acaba de comer apenas uma fatia do «superfruto» e por isso pode compadecer-se d’Ele.

O ranger de uma cadeira. Um farfalhar de saias. Uma série de pequenos ruídos que ele não conseguia identificar. O que é que ela estaria fazendo? Poderia obter resposta para essa pergunta com o simples abrir de seus olhos. Mas, no final das contas, que importância tinha isso? Com exceção dessa abrasante torrente ascendente de êxtase e compreensão, nada era importante.

— O «superfruto» do saber. Eu o afastarei dele gradativamente — disse Susila.

Ouviu um chiado. Da superfície de seu cérebro, uma bolha de reconhecimento atingiu sua zona de consciência. Susila colocara um disco na vitrola.

— Johann Sebastian Bach — ouviu-a dizer. — É a música mais próxima do silêncio. Apesar de tão organizada, é a que está mais próxima do Espírito com cem graus de pureza.

O chiado deu lugar a sons musicais. Outra bolha de reconhecimento veio à tona. Estava ouvindo o Quarto concerto de Brandenburg.

O mesmo que ouvira tantas vezes no passado — o mesmo, no entanto tão completamente diferente. Esse allegro, ele o sabia de cor. Isso queria dizer que se encontrava numa posição excelente para perceber que nunca o ouvira realmente. Em primeiro lugar, não era mais William Asquith Farnaby quem o escutava. O allegro se revelava como um dos elementos desse «acontecimento» — uma forma de congraçamento remoto, emanado do êxtase luminoso. Talvez esse fosse um modo muito suave de explicar o que estava acontecendo. Por outro lado, o allegro era o próprio êxtase luminoso; era a compreensão instintiva de tudo o que fora apreendido graças a um tipo especial de conhecimen— to, era a sabedoria indiscriminada que, apesar de fracionada em notas e em frases, se conservava intacta. É claro que isso não pertencia a ninguém e que estava ao mesmo tempo aqui, ali, em parte alguma. A mesma música que já fora ouvida cem vezes por William Asquith Farnaby renascera sob a forma de uma sabedoria sem dono. Por esse motivo, ele a escutava pela primeira vez. Sem dono, o Quarto concerto de Brandenburg possuía uma beleza tão intensa e um significado intrínseco que excedia tudo o que nele havia encontrado quando ainda era sem dono.

Pobre idiota, foi o comentário irônico de uma bolha. O pobre idiota que não quisera aceitar o «sim» como resposta em qualquer terreno que não fosse o estético. E que, durante todo o tempo, tinha estado a se negar — pelo simples fato de ser ele mesmo — toda a beleza e todas as intenções às quais tão apaixonadamente ansiava dizer «sim». William Asquith Farnaby não era mais que um filtro lamacento atolado, do qual os seres humanos, a natureza e mesmo sua adorada arte emergiam obscuros, enlameados, menores, diferentes e mais feios do que eram. Hoje à noite, pela primeira vez, sentia uma peça musical sem a menor dificuldade. Entre a mente e o som, a mente e o desenho, a mente e o propósito, não existia mais nenhuma babel de impropriedades biográficas para afogar a música ou provocar uma dissonância sem sentido. Nessa noite, o Quarto concerto de Brandenburg representava uma coletânea de dados originais. Mais que isso, era um donum abençoado e não corrompido pela história pessoal, pela cultura de segunda mão e pela estupidez arraigada que revestiam as dádivas da experiência imediata de qualquer indivíduo e do pobre idiota que não quisera (e que na arte simplesmente não pudera) aceitar o «sim» como resposta.

O Quarto concerto de Brandenburg executado na noite de hoje não era em si mesmo uma «coisa» sem dono. De um certo modo era um «acontecimento atual» de duração infinita. Ou melhor (isso era ainda mais impossível, uma vez que possuía três movimentos e estava sendo tocado no seu andamento normal), não tinha duração. O metrônomo orientava cada uma de suas frases, porém a soma delas não possuía uma duração de segundos ou de minutos. Havia um tempo, mas não existia o tempo. Que havia, então?

— A eternidade — Will se viu forçado a responder. Essa era uma dessas imundas palavras metafísicas que nenhum homem intelectualmente honesto sonharia pronunciar para si mesmo, quanto mais em público.

— Eternidade, meus irmãos — disse em voz alta. — Eternidade! Ah, ah, ah!

Como se podia prever, o sarcasmo soou inteiramente falso. Hoje à noite, essas cinco sílabas tinham um significado tão concreto quanto as cinco letras de outra espécie de palavra proibida.

Ele começou a rir de novo.

— Qual é a graça? — perguntou ela.

— A eternidade. Acredite ou não, ela é tão real quanto a merda.

— Excelente! — disse Susila em tom de aprovação.

Will continuou sentado, imóvel e atento, seguindo com os olhos e ouvidos interiores as intrincadas torrentes de sons e de luzes que se harmonizavam e fluíam sem cessar de uma a outra seqüência. E cada frase dessa música tão familiar era uma revelação de beleza sem precedentes, que continuava a jorrar para o alto a fim de ir se derramar (como se fosse um labirinto de fontes) em outra revelação tão nova e surpreendente como ela mesma. O solo do violino e das duas flautas, a variedade de sons do cravo e da pequena orquestra de cordas variadas, tudo isso ele ouvia como se fossem torrentes que se interpenetram. Embora separadas, distintas, individuais, cada uma dessas torrentes dependia de todo o resto. E cada uma existia em virtude de sua relação com o todo do qual era um dos componentes.

— Meu Deus! — ele se surpreendeu dizendo.

Na seqüência eterna da variação, as flautas insistiam numa nota longa. Uma nota sem ascensões fracionárias, clara, transparente e divinamente vazia. Uma nota (a palavra borbulhou até ele) de contemplação pura. Eis aí outra inspiração obscena que adquirira um significado concreto e que podia ser pronunciada sem o menor sentimento de vergonha. Contemplação pura, sem ansiedade, muito além da incerteza e do contexto dos julgamentos morais. Através das luzes ascendentes, sua memória captou a expressão do rosto de Radha ao falar do amor contemplativo. Num outro momento a viu sentada, de pernas cruzadas, absolutamente imóvel e numa intensa concentração aos pés da cama onde Lakshmi agonizava. No som dessa nota pura estava o significado das palavras dela, a expressão audível de seu silêncio. Durante todo o tempo, acompanhando o fluxo contemplativo e o vazio celestial daquele flautear, havia o som rico, vibrante e apaixonado do violino. E aquele emaranhado de notas secas e bruscas, tiradas das cordas do cravo, envolvia os sons contemplativos e destacados da flauta e as notas cheias de enlevo e de paixão emitidas pelo violino. A teia do intelecto envolvendo o espírito, o instinto, a ação e a visão. Todos eles envolvidos pelo pensamento dedutivo. Mas, como era óbvio, esse envolvimento vinha somente do exterior e nos termos de uma ordem de experiências radicalmente diferentes daquelas que o pensamento lógico se propõe a explicar.

— É como o positivismo lógico — disse Will.

— Quê?

— Esse cravo.

Na superfície de seu cérebro pensava como um positivista lógico, enquanto em seu íntimo o grande «acontecimento» de luz e som continuava a se desdobrar, eternamente. Era como se um positivista lógico estivesse falando simultaneamente de Plotinus e de Julie de Lespinasse.

A música mudou de novo. Agora era o violino que sustentava (quão apaixonadamente) a nota prolongada da contemplação, enquanto as duas flautas se encarregavam do tema envolvente — a mesma forma, diferentemente consubstanciada — e o repetiam de modo destacado. Dançando entre uma e outra, o positivista lógico (de modo absurdo, porém indispensável) tentava explicar tudo aquilo, numa linguagem incompatível com os fatos.

Na eternidade que era tão real como a merda, continuou a ouvir e a ver essas torrentes entrelaçadas de sons e de luzes e continuou sendo (lá, aqui e em lugar nenhum) tudo aquilo que via e ouvia. Bruscamente, ocorreu uma mudança na qualidade da luz. Essas torrentes entrelaçadas, que foram as primeiras diferenciações fluidas de uma remota compreensão de qualquer conhecimento em particular, deixaram de fluir continuamente. Em seu lugar apareceu, de repente, uma interminável sucessão de formas distintas. Essas formas ainda estavam nitidamente carregadas com a felicidade luminosa do ser indistinto que agora estava limitado, isolado, individualizado. Uma interminável sucessão de esferas luminosas, prateadas, rosadas, amarelas, verde-pálidas e azul-genciana, vindas de alguma fonte secreta, ia aflorando e seguindo o compasso da música, formava caprichosas constelações de uma beleza e complexidade inacreditáveis. Era como se uma fonte inesgotável borrifasse intencionalmente maravilhosos entrelaçamentos de estrelas vivas. E, enquanto as olhava e vivia a vida delas e a vida dessa música que a elas equivalia, continuavam crescendo em novos entrelaçamentos que preenchiam as três dimensões de um espaço interior. Ao mesmo tempo, se transformavam incessantemente em outra dimensão ilimitada e plena de qualidade e significação.

— Que está escutando agora? — perguntou Susila.

— Ouço o que vejo e vejo o que ouço — respondeu ele.

— Como você descreveria isso?

— Tem a aparência e o som da criação — respondeu após um longo silêncio. — Mas não é um acontecimento que tenha ocorrido de uma só vez. É uma coisa que não pára: é a perpétua criação.

— Como se o nada absoluto perpetuasse alguma coisa, em algum lugar?

— Isso mesmo.

— Está progredindo.

Se as palavras lhe viessem com maior facilidade à boca, e quando proferidas deixassem de ser tão sem sentido, Will lhe explicaria que a sabedoria, a compreensão e o êxtase luminoso eram bem melhores que Johann Sebastian Bach.

— Está progredindo, porém ainda tem muito que aprender — repetiu Susila. — Que tal abrir os olhos?

Will balançou a cabeça negativamente.

— Está na hora de você descobrir a razão última das coisas.

— A razão das coisas é isto — murmurou ele.

— Não. Não é assim. Tudo o que você tem visto, ouvido e sentido constitui apenas a primeira razão. Agora é preciso que seja a segunda. Olhe-a e depois reúna as duas numa razão única que abranja todas elas. É por isso que você precisa abrir os olhos, Will. Abra-os completamente.

— Está bem. — Depois de muito relutar e com a sensação de desgraça iminente, abriu os olhos. A luminosidade interior foi absorvida por outra espécie de luz. A fonte de formas e os mundos coloridos com seus arranjos intencionais e seus entrelaçamentos propositadamente mutáveis cederam lugar a uma composição estática de perpendiculares e diagonais, de planos achatados e de cilindros encurvados. Todas essas figuras eram esculpidas num material semelhante à ágata viva e emergiam da matriz nacarada de uma pérola. Como um cego recentemente curado e que se defronta pela primeira vez com o mistério da luz e da cor, seus olhos se esgazearam numa surpresa atônita. Foi então que, após mais vinte compassos eternos do Quarto concerto de Brandenburg, uma bolha de explicação atingiu seu consciente e, de repente, Will percebeu que estava olhando para uma pequena mesa quadrada. Atrás dela havia uma cadeira de balanço e, mais além, uma parede de estuque inteiramente nua e caiada de branco. A explicação era tranqüilizadora: na eternidade que experimentara entre o abrir de seus olhos e o emergir do conhecimento daquilo que via, o mistério com que se defrontara tinha se aprofundado e aquela beleza inexplicável havia se transformado numa realização brilhante e estranha, e à medida que a olhava sentia— se invadido por uma espécie de terror metafísico. Esse mistério aterrador consistia em nada mais que duas peças de mobiliário e um pedaço de parede. O medo foi atenuado, porém a surpresa aumentou. Como era possível que objetos tão familiares e comuns pudessem ser isso? A evidência dizia não ser possível, no entanto ali estavam. Estavam ali!

Sua atenção deixou as construções geométricas em ágata marrom e foi se concentrar naquele fundo pérola cujo nome ele sabia ser «parede», mas que sentia como uma coisa viva, uma série contínua de transubstanciações de estuque e cal na contextura de um corpo sobrenatural — um deus-carne que continuamente se modulava de uma glória a outra. Escapando daquilo que as palavras-bolhas tentaram classificar como simples calcimina, algum espírito corporificado evocava uma sucessão interminável dos mais variados e delicados matizes — a um tempo vivos e suaves — que, emergindo de sua latência, continuassem a resplandecer na pele divina e radiante do deus-carne. Maravilhoso! Maravilhoso! Devem existir ainda outros milagres. Novos mundos a serem conquistados. Outros mundos a nos conquistarem. Voltou a cabeça para a esquerda e lá estava (as palavras adequadas borbulharam quase que imediatamente) a grande mesa de tampo de mármore onde haviam feito suas refeições. Nesse momento, novas bolhas começaram a vir à tona com maior rapidez. Esse apocalipse vivo chamado «mesa» poderia ter sido considerado como uma tela de algum cubista místico, algum inspirado Juan Gris, com alma de Traherne e o dom de representar cuidadosamente em seus quadros as mudanças de humores das pétalas de nenúfares.

Voltando a cabeça ainda um pouco mais para a esquerda, ficou surpreso diante do brilho das jóias. Que jóias estranhas! Estreitas incrustações de esmeralda, topázio, rubi, safira e lápis— lazúli, brilhando em filas superpostas como se fossem os tijolos de uma parede em Nova Jerusalém. Por fim — no fim e não no início —, a palavra lhe veio à mente. No princípio eram jóias, as janelas, de vidro colorido e o muro do paraíso. Somente agora as palavras «estante de livros» surgiram a fim de serem examinadas.

Will ergueu os olhos dos «livros-jóias» e se encontrou no centro de uma paisagem tropical. Por quê? Onde? Lembrou-se então de que, ao penetrar no aposento pela primeira vez (numa outra vida), vira sobre a estante de livros uma aquarela grande e mal pintada. Entre dunas de areia e grupos de palmeiras, um estuário se alargava em direção ao mar e, além, no horizonte, enormes montanhas de nuvens se amontoavam num pálido céu.

Uma bolha com a palavra «medíocre» veio à superfície. O trabalho pertencia a algum amador não muito talentoso. Mas no momento isso não tinha a menor importância. A paisagem deixara de ser uma pintura e se transformara em seu original — um rio verdadeiro, um mar autêntico, areia brilhando à luz do sol e árvores verdadeiras se elevando de encontro a um céu verdadeiro. Autêntico mar, representava seu próprio ser mergulhado em Deus.

«‘Deus’ entre aspas?», indagou uma bolha irônica. Ou Deus (!) num sentido pickwickiano moderno?

Will balançou a cabeça. A resposta era simplesmente: um Deus em quem alguém podia não acreditar mas que era evidentemente o fato com que estava se defrontando. Apesar disso, esse rio continuava sendo um rio e esse mar era o Oceano Índico e não o produto de qualquer fantasia. Não havia nenhuma possibilidade de equívoco; eram eles mesmos. Contudo, não havia também a menor dúvida de que eram inequivocamente Deus.

— Onde é que você está agora? — perguntou Susila.

— Penso que estou no céu — disse apontando para a paisagem.

— No céu? Ainda? Quando é que pretende aterrissar por aqui?

Outra bolha de recordação emergiu da superfície limosa.

— É algo muito mais intimamente fundido e cujo habitante é a luz de uma ou de outra coisa.

— Mas Wordsworth também falou sobre a música triste e calma da humanidade.

— Felizmente não há seres humanos nesta paisagem.

— Não há nem mesmo animais — concluiu ela com uma risadinha. — Somente os vegetais mais inocentes e desconcertantes. Por esse motivo é melhor que olhe para o que está no chão.

Will olhou para baixo. As nervuras nas tábuas do assoalho formavam um grande rio marrom e esse rio era um acontecimento turbilhonante da divina vida do mundo. No centro daquele diagrama estava seu pé direito nu sobre as tiras da sandália e surpreendentemente tridimensional, como o pé de mármore revelado pelo farol de alguma estátua grandiosa.

«Tábuas», «nervuras», «pé» — através do caudal de palavras, o mistério devolveu-lhe um olhar impenetrável e paradoxalmente compreensivo. Uma compreensão nascida daquela sabedoria sem conhecimento, à qual, a despeito de identificar os objetos e relembrar seus nomes, ele ainda estava acessível.

De repente, pelo rabo do olho, viu uma coisa se mover com a rapidez de uma seta. Descobrira que, tornando-se acessível ao êxtase e à compreensão, ficara também acessível ao terror e à completa incompreensão. Como uma criatura estranha que, alojada em seu peito, lutasse angustiosamente, seu coração começou a bater com uma violência que o fez tremer. Com a horrível certeza de que estava para encontrar o Horror Fundamental, Will virou a cabeça e olhou.

— É um dos camaleões domesticados de Tom Krishna — disse Susila para tranqüilizá-lo.

A luz tinha o mesmo brilho, mas este tinha mudado sua característica. Era agora um brilho diáfano e maligno que se irradiava de cada uma das escamas verdes do dorso daquele ser, de seus olhos obsidianos e do pulsar de sua garganta rubra, dos bordos reforçados de suas narinas e de sua boca em fenda. Virou o rosto, mas esse movimento foi em vão, pois o Horror Fundamental resplandecia de cada coisa para a qual olhava. Aquelas composições de cubista místico tinham se transformado em máquinas complicadas e inofensivas. Aquela paisagem tropical, na qual tinha experimentado a união de seu próprio ser com Deus, era agora simultaneamente a mais nauseante das oleografias da época vitoriana. Naquela escuridão manifesta, os «livros-jóias» enfileirados nas prateleiras irradiavam uma luminosidade de mil volts. E como essas gemas do caos tinham se tornado baratas! E como eram indescritivelmente vulgares! Onde tinham existido ouro, pérola e pedras preciosas, havia somente enfeites de árvores de Natal, somente o pálido brilho de plástico e de lata polida. Tudo ainda pulsava com vida, mas era a vida de uma sinistra venda de saldos no subsolo de uma grande loja. Era isso o que a música confirmava agora — era o que a onipotência estava perpetuamente criando — um «Wordsworth» cósmico, cujo estoque fosse constituído de horrores produzidos em massa. Horrores da vulgaridade, de dores, de crueldade, de falta de gosto, de imbecilidade e de malícia intencional.

— Não é um dos nossos pequenos e bonitos camaleões domésticos — ele ouviu Susila dizer. — É um desses hóspedes desconhecidos e desajeitados que vêm de fora, uma sanguessuga. É claro que sugam sangue. Têm apenas gargantas e faces vermelhas quando se excitam. Olhe! Lá vai ele!

Will olhou novamente para baixo. Extraordinariamente real, o horror escamoso, com seus inexpressivos olhos pretos, sua boca de assassino e a garganta vermelho-sangue que pulsava enquanto o resto do corpo jazia esticado no assoalho, tão imóvel como se estivesse morto, estava agora a dois metros de seu pé.

— Ele está vendo o que vai jantar — disse Susila. — Olhe para lá, à sua esquerda, na borda do tapete.

Will voltou a cabeça.

— Gongylus gongyloides — prosseguiu ela. — Você se lembra?

Ele se lembrava do louva-a-deus que tinha pousado em sua cama. Mas isso aconteceu em outra existência. O que vira naquela ocasião era simplesmente um inseto de aparência estranha. O que estava vendo agora era um par de monstros de três centímetros, horrivelmente requintado no ato da cópula. O azul-pálido dos seus corpos tinha barras e nervuras cor-de-rosa e as asas que se agitavam continuamente, como pétalas ao vento, tinham as bordas sombreadas de roxo. Mas as formas dos insetos eram indisfarçáveis. Aquelas asas trêmulas eram os apêndices de duas bugigangas brilhantemente esmaltadas, dessas que compramos na seção de quinquilharias no subsolo dos grandes magazines — dois pequenos modelos vivos de um pesadelo, duas miniaturas de máquinas para copular. Agora uma dessas máquinas de pesadelo, a fêmea, tinha virado a cabeça pequena e chata — toda boca e olhos esbugalhados no fim de seu longo pescoço — e (Deus meu!) tinha começado a devorar a cabeça da máquina masculina. Primeiro um olho purpúreo foi mastigado, depois uma das metades da face azulada. O que era a metade esquerda da cabeça caiu no chão. Livre do peso dos olhos e dos maxilares, o pescoço cortado voou impetuosamente. A máquina-fêmea abocanhou o coto gotejante e, enquanto o macho sem cabeça continuava a sua paródia de Ares nos braços de Afrodite, mastigava-o metodicamente.

Pelo canto do olho Will percebeu um novo movimento rápido e voltou a cabeça justamente a tempo de ver o camaleão se arrastar na direção de seu pé. Estava perto, cada vez mais perto. Desviou os olhos, amedrontado.

Alguma coisa tocou os dedos de seu pé e continuou fazendo cócegas em seu dorso. Cessaram as cócegas, mas ele pôde sentir um leve peso no pé, um contato áspero e seco. Queria gritar, mas sua voz tinha desaparecido, e quando tentou se mover os músculos se negaram a obedecer.

Aquela música eterna havia atingido o presto final. O Horror marchava animadamente! E a dança era dirigida pelo Horror, fantasiado de rococó.

Completamente imóvel, o Horror escamoso, pousado no dorso de seu pé, olhava fixa e inexpressivamente para sua vítima em perspectiva. E, entrelaçados, os dois pequenos modelos vivos de um pesadelo tremulavam como pétalas sopradas pelo vento e eram agitados espasmodicamente pelas agonias simultâneas da morte e da cópula. Um século infinito havia decorrido; a pequena e alegre dança da morte prosseguia compasso após compasso. De repente, sentiu que pequeninas garras arranhavam sua pele. A sanguessuga tinha se arrastado no dorso de seu pé, em direção do assoalho, e durante um longo período lá permaneceu, de todo imóvel. Inopinadamente e com incrível velocidade, atravessou as tábuas e subiu no tapete. Abriu e fechou a boca, que parecia uma fenda. Das maxilas que trituravam via-se a ponta de uma asa de tonalidade violeta, que ainda vibrava como uma pétala de orquídea ao vento. Um par de pés esperneou vivamente durante um momento e depois desapareceu.

Will estremeceu e fechou os olhos, mas através da fronteira que separava as coisas sentidas, lembradas e imaginadas, o Horror o perseguia. Na fluorescência brilhante de sua luz interior, uma coluna interminável de insetos que reluziam com o brilho de latas e répteis raiados, surgidos de alguma fonte escondida de pesadelo, marchava diagonalmente, da esquerda para a direita, em direção a um fim desconhecido e monstruoso. Milhões de gongylus gongyloides e, no meio deles, inúmeras sanguessugas. Perpetuamente comendo e sendo comidas.

E durante todo o tempo o violino, a flauta e o cravo continuavam seu trote infindável no presto final do Quarto concerto de Brandenburg. Que alegre e pequena marcha fúnebre rococó! Esquerda, direita, esquerda, direita. Contudo, qual fora a voz de comando para os hexápodes? Subitamente não eram hexápodes, eram bípedes. A coluna interminável de insetos se transformara numa coluna também interminável de soldados. E esses soldados marchavam como os «camisas-pardas» que vira desfilar em Berlim um ano antes da guerra. Eram milhares e milhares deles, com os estandartes esvoaçando e seus uniformes reluzindo intensamente à luz dos holofotes, parecendo excrementos iluminados. Incontáveis como os insetos, cada um deles se movia com a precisão de máquina e com a perfeita docilidade de um cachorro de circo. E as fisionomias, as fisionomias! Tinha visto alguns close-ups em noticiários cinematográficos alemães e lá estavam novamente: sobre-humanamente verdadeiros e em três dimensões, vivos. O rosto monstruoso de Hitler, gritando com a boca aberta. E os rostos daquela multidão heterogênea que o escutava: grandes idiotas, completamente receptíveis. Eram como as fisionomias de sonâmbulos com os olhos bem abertos. Rostos de jovens, anjos nórdicos, inteiramente absortos ante a «visão beatífica». Rostos de santos barrocos, em pré-êxtase. Rostos de amantes à beira do orgasmo. Um povo, um império, um líder. União com a unidade de um enxame de insetos. O entendimento sem análise das tolices e do diabólico. E, então, a câmara das atualidades tinha filmado novamente as fileiras cerradas, as suásticas, a banda de música e o rosto ululante do hipnotista. Aqui, uma vez mais, sob o brilho de sua luz interior, estava aquela formação parda que se assemelhava a uma coluna de insetos, marchando interminavelmente ao ritmo dessa música de horror em estilo rococó. Para diante, soldados nazistas, para diante, soldados cristãos, para diante, marxistas, para diante, muçulmanos, para diante, cada povo eleito, cada cruzada e cada fazedor de Guerra Santa. Para diante! Ao encontro da miséria, da maldade e da morte! Will se surpreendeu olhando o fim que esperava aquela coluna, quando ela atingisse seu destino — milhares de cadáveres na lama da Coréia, incontáveis pacotes de lixo no deserto africano. E aqui (porque as cenas continuavam a mudar com uma rapidez de desnortear) estavam os cinco corpos recobertos de moscas, deitados com os rostos voltados para cima e as gargantas seccionadas que vira havia alguns meses no pátio de uma fazenda na Argélia. Aqui (surgida de um passado de mais de vinte anos) estava aquela velha completamente despida que vira no meio dos escombros de uma casa de estuque na floresta de S. João. Sem que tivesse havido qualquer transição, aqui também estava seu próprio quarto de dormir cinza-amarelo e o espelho do guarda-roupa que refletia os dois corpos pálidos: o seu e o de Babs, numa cópula frenética, acompanhada pelas lembranças do funeral de Molly e pelos acordes de Parsifal, que estavam sendo transmitidos pelo rádio de Stuttgart, no programa de sexta-feira santa.

A cena sofreu nova mudança. Usando uma grinalda de estrelas de lata e lâmpadas de fantasia, tia Mary estava sorrindo alegremente para ele, quando se transformou ante seus olhos naquela figura chorosa, estranha e maligna que a substituíra naquelas últimas e horríveis semanas que precederam sua transformação em lixo. Um esplendor de amor e de bondade, uma veneziana que se fecha, uma chave que gira numa fechadura, e estavam — ela no cemitério e ele em sua prisão particular, condenado ao confinamento solitário e a morrer numa bela manhã de um dia ainda não marcado. A agonia da venda de saldos no subsolo de uma grande loja. O crucifixo entre os enfeites da árvore de Natal. Fora ou dentro, com os olhos abertos ou fechados, não havia saída.

— Não há saída — murmurou. E as palavras confirmaram o fato e se transformaram numa horrível certeza que continuou a se abrir, abrindo para as profundezas cada vez maiores de maligna vulgaridade, numa sucessão de infernos e de sofrimentos inteiramente destituídos de qualquer finalidade.

E esse sofrimento (isso ele sentiu com a força de uma revelação) não era apenas sem finalidade; era também cumulativo e se auto-perpetuava. Já estava bastante amedrontado com a certeza de que a morte que viera para Molly, para tia Mary e todos os outros também viria para ele. A morte viria para ele, mas nunca para esse medo, para a sensação de náusea, para essas dilacerações de remorso e de auto-repugnância. Imortal em sua falta de sentido, o sofrimento prosseguiria para sempre. Sob todos os outros pontos de vista, era grotesco e desprezivelmente finito. Só não o era no que dizia respeito ao sofrimento. Esse coágulo pequeno e espesso chamado «eu» era capaz de sofrer infinitamente e, a despeito da morte, o sofrimento prosseguiria sem fim. As dores de viver e de morrer, a rotina de agonias sucessivas na venda de saldos do subsolo da grande loja e a crucificação final com um brilho vulgar de lata e de plástico continuavam a reverberar, sempre ampliadas. Estariam sempre lá. E as dores não eram transmissíveis, o isolamento era completo. A sabedoria que um dia existira era a consciência de que sempre se estava só. E a solidão era a mesma, tanto na alcova almíscar de Babs como ao se ter uma dor de ouvido ou fraturar um braço. Seria a mesma quando chegasse a vez do câncer final e, quando se pensasse que tudo havia passado, continuaria estando só com a imortalidade do sentimento.

Notou de repente que alguma coisa estava acontecendo com a música. O «tempo» tinha mudado. Rallentando. Era o fim: o fim de tudo, para todos. A alegre melodia da morte tinha impelido os que marchavam para a borda de um penhasco. E, agora, aí estavam à beira do precipício. Rallentando, rallentando. A queda fatal, a queda para a morte. E de maneira pontual e inevitável aí estavam os dois acordes antecipados da consumação: a dominante esperada e depois a alta nota tônica que, de modo inequívoco, anunciava o fim. Depois disso, um som arranhado, um estalido e o silêncio. Através da janela aberta, podia ouvir o coaxar distante dos sapos e os ruídos monótonos e estridentes dos insetos. No entanto, de algum modo misterioso o silêncio continuava íntegro. Como moscas num bloco de âmbar, os sons estavam envoltos numa transparência silenciosa, a qual eram impotentes para destruir ou mesmo modificar, e para a qual elas eram completamente insignificantes. A intensidade do silêncio se aprofundava. Um silêncio emboscado, expectante e conspiracional incomparavelmente mais sinistro do que aquela terrível e pequena marcha rococó para a morte que o precedera. Esse era o abismo para cuja beira o havia impelido. Para a beira do abismo e, agora sobre ele, o silêncio eterno.

— Sofrimento infinito — murmurou Will. — E não se pode falar nem mesmo gritar.

Uma cadeira rangeu, sedas farfalharam e ele sentiu pelo deslocamento de ar contra seu rosto a proximidade de uma presença humana. Por trás das pálpebras cerradas tinha a noção de que Susila estava ajoelhada em sua frente e, momentos depois, sentiu que as mãos dela tocavam seu corpo — a palma das mãos contra suas faces, os dedos em suas têmporas.

O relógio na cozinha fez um pequeno ruído e depois começou a bater as horas. Uma, duas, três, quatro…

No jardim, um vento tempestuoso sussurrava intermitentemente entre as folhas. Um galo cantou e, um momento depois e de muito longe, um outro respondeu. Quase simultaneamente começaram a vir outras respostas e as respostas às respostas. Um contraponto de desafios: uma verdadeira competição de provocações. Nesse momento, uma voz diferente veio se juntar ao coro. Articulada, porém não humana.

— Atenção — pedia através do canto dos galos e dos ruídos dos insetos. — Atenção! Atenção! Atenção!

— Atenção! — repetiu Susila, e à medida que falava ele sentia que os dedos dela se moviam sobre sua fronte. De leve, muito de leve, dos supercílios até a altura de seus cabelos, de cada têmpora até a glabela. Para cima e para baixo, para diante e para trás, acalmando as contrações da mente, desfazendo os sulcos deixados pelas confusões e pelas dores.

— Atenção para isto — disse ela, aumentando a pressão das palmas sobre os ossos malares e da ponta dos dedos sobre suas orelhas. — Preste atenção a isto — repetiu. — Agora. Sua face está entre minhas mãos. — A pressão foi relaxada e os dedos começaram a se mover de novo sobre sua fronte.

«Atenção.» Sobre um contraponto de gritos dissonantes, a injunção era insistentemente repetida. «Atenção.» «Atenção.» «Aten…», a voz não-humana parou no meio da palavra.

Prestar atenção às mãos dela em sua face? Ou a esse terrível brilho da luz interior, a essa rápida ascensão de estrelas de lata e de matéria plástica e, transpondo a barreira da vulgaridade, a esse pacote de lixo que tinha sido Molly, àquele espelho de prostíbulo e a todos aqueles incontáveis cadáveres que jaziam na lama, no pó e nos escombros?

Ali estavam de novo os camaleões e milhões de gongylus gongyloides. Ali estavam as colunas em marcha, os rostos extasiados e devotamente atentos dos anjos nórdicos.

Atençãol — gritou de novo o mairiá do outro lado da casa. — Atenção!

Will balançou a cabeça. Atenção para quê?

— Para isto — disse Susila, cravando as unhas na pele de sua fronte. — Para isto, aqui e agora! Não se trata de nada de romântico, como o sofrimento ou mesmo a dor. É somente a percepção das unhas. E mesmo que fosse muito pior, provavelmente não duraria para sempre. Teria um fim. Nada existe para sempre. Nada é infinito. Pode ser que a natureza de Buda seja a única exceção.

Ela moveu as mãos e o contato passou a ser feito com a pele e não mais com as unhas. As pontas dos dedos deslizaram para baixo, sobre seus supercílios, e vieram repousar muito de leve sobre as pálpebras fechadas.

Will estremeceu ao primeiro contato; estava apavorado. Será que ela estava se preparando para arrancar-lhe os olhos? Ele se sentou, pronto para jogar a cabeça para trás e se levantar ao primeiro movimento que ela fizesse. Mas nada aconteceu. Pouco a pouco seus temores foram desaparecendo, mas persistiu a consciência desse contato íntimo, inesperado e potencialmente perigoso. Uma consciência tão desenvolvida e tão absorvente (em virtude de os olhos serem extremamente vulneráveis) que ele nada tinha para dar à luz interior ou às vulgaridades e horrores por ela revelados.

— Preste atenção — sussurrou ela.

Era impossível não prestar atenção. No entanto, suave e delicadamente, os dedos dela se aprofundaram na parte mais viva de sua consciência. E como estava alerta! Como podia sentir, neste momento, onde estavam aqueles dedos! Que estranho e quente formigamento fluía deles!

— Parece uma corrente elétrica — comentou deslumbrado.

— Mas felizmente esses fios não levam qualquer mensagem. No momento em que se tocam, no simples ato de tocar, se é tocado. Há uma comunicação completa, mas nada é transmitido. Somente uma troca de vida. — Fez uma pausa e continuou: — Você percebeu que durante todas estas horas que passamos sentados aqui (no seu caso, durante todos estes séculos… todas estas eternidades) não olhou para mim uma só vez? Nem uma só vez! Está com medo do que possa ver?

Will pensou sobre a pergunta e finalmente concordou com um sinal de cabeça.

— Sim. Pode ser que seja isso. Talvez porque esteja com medo de ver alguma coisa com a qual tenha que me envolver. Alguma coisa que me obrigue a tomar uma atitude…

— Foi por isso que ficou preso a Bach, às paisagens e à Grande Luz do Vazio!

— Para os quais você não me permitiu continuar olhando — reclamou ele.

— Simplesmente porque o Vazio não lhe seria benéfico, a não ser que você pudesse ver sua luz nos gongylus gongyloides. E nas pessoas, o que às vezes é bastante difícil.

— Difícil? — Will pensou nas colunas de homens em marcha, nos corpos refletidos no espelho, em todos aqueles outros com os rostos enterrados na lama, e balançou a cabeça. — É impossível.

— Não, não é impossível — insistiu Susila — Karuna está contido no sunyata. O Vazio é a luz, mas também é compaixão. Os contemplativos (gananciosos e ávidos) querem a luz sem se preocuparem com a compaixão. As pessoas que se contentam em ser simplesmente boas, tentam ser apenas compassivas e se recusam a se preocupar com a luz. Como sempre, tudo é questão de saber como fazer uso dos dois mundos… Mas está na hora de abrir os olhos e ver qual a aparência verdadeira de um ser humano.

As pontas dos dedos se moveram das pálpebras para as têmporas e depois se dirigiram para as faces e para os ângulos da mandíbula. Decorridos alguns instantes, Will sentiu que tocavam seus próprios dedos e que suas mãos estavam seguras entre as dela.

Will abriu os olhos e, pela primeira vez desde que tinha tomado o moksha, se surpreendeu a olhar atentamente o rosto de Susila.

— Deus meu! — sussurrou finalmente.

Susila sorriu.

— É tão mau como a sanguessuga? — perguntou.

Mas isso não era assunto para brincadeira. Will balançou a cabeça com impaciência e continuou a olhá-la. As órbitas, envoltas em sombras, pareciam misteriosas. Exceto por uma pequena meia-lua de luz na altura do malar, toda a face direita estava envolta em sombras. O lado esquerdo brilhava com uma radiância dourada — um brilho sobrenatural que não era nem o clarão vulgar e sinistro da escuridão visível, nem tampouco aquela abençoada incandescência revelada na distante alvorada da eternidade que existia por trás das pálpebras fechadas, quando ao abri-las deparou com os «livros-jóias», com as composições de cubistas místicos e com a paisagem transfigurada. O que estava vendo agora era o paradoxo de opostos indissoluvelmente ligados: de luz se irradiando da escuridão e de escuridão no âmago da luz.

— Não é o sol… não é Chartres — disse afinal. — Graças a Deus, também não é a venda de saldos do subsolo. É tudo isso junto e a identifico como você mesma e consigo reconhecer a mim mesmo. Este comentário parece supérfluo desde que somos tão completamente diferentes. Você e eu pintados por Rembrandt, mas por um Rembrandt que fosse cinco mil vezes mais ele mesmo. — Fez uma pausa rápida, depois balançou afirmativamente a cabeça e prosseguiu: — É isso mesmo. Sol em Chartres, janelas de vidros coloridos no subsolo onde estão fazendo uma venda de saldos e que é ao mesmo tempo a câmara de tortura, o campo de concentração, o cemitério com enfeites de árvores de Natal. E agora o subsolo dos saldos dá uma marcha à ré, capta Chartres e uma fatia de sol e chega até aqui; chega a você e a mim, pintados por Rembrandt. Será que entende o que quero dizer?

— Perfeitamente — disse ela.

Mas Will estava muito ocupado em olhá-la e não conseguia prestar atenção ao que ela estava dizendo.

— Você é tão incrivelmente bela! Mas se fosse incrivelmente feia não teria a menor importância; continuaria sendo o quadro de um Rembrandt cinco vezes mais autêntico. Bela, bela! — repetiu. — NO entanto, não quero dormir com você. Não, isto não é verdade. Gostaria de dormir com você. Gostaria muito. Contudo, se não dormir, isso não fará a menor diferença. Continuarei a amá-la, a amá-la do modo por que um Cristão deve amar seus semelhantes. Amor, repetiu, amor… É outra daquelas palavras sujas. «Apaixonado», «fazer amor», isso é uma obscenidade que não consigo pronunciar. Mas agora, agora… — Sorriu e balançou a cabeça. — Acredite ou não, agora posso entender o que quer dizer «Deus é amor». Que contra-senso! No entanto é a verdade. Enquanto isso, aí está esse seu rosto maravilhoso.

— Ele se inclinou para a frente a fim de olhá-la mais de perto.

— É como se estivesse olhando numa bola de cristal, onde sempre existe algo de novo — acrescentou incredulamente. — Você não pode imaginar…

Mas ela podia imaginar.

— Não se esqueça de que também estive lá — disse Susila.

— Olhou para o rosto das pessoas?

Ela fez que sim com a cabeça.

— Olhei meu rosto no espelho. Também olhei o de Dugald. Meu Deus, a última vez que tomamos juntos o moksha! Ele começou parecendo um herói de alguma mitologia impossível: de indianos na Islândia, de vikings no Tibete. E, sem qualquer aviso prévio, passou a ser Buda Maitreya. Buda Maitreya, sem a menor sombra de dúvida. Quanto esplendor! Eu ainda posso ver.

Susila interrompeu o que estava dizendo e Will se surpreendeu a olhar a Encarnação da Perda, com sete espadas no coração. Lendo os sinais de dor nos olhos escuros e nos cantos daquela boca de lábios cheios, ele descobriu que a ferida tinha sido quase mortal e que ainda estava aberta e sangrando. Ao fazer essa descoberta, sentiu um aperto no coração. Apertou as mãos dela. Não havia nada que se pudesse dizer, nenhuma palavra, nenhuma consolação filosófica — apenas essa misteriosa solidariedade táctil, essa comunicação de uma pele com outra através de um influxo interminável.

— As pessoas voltam ao passado com tanta facilidade… Com demasiada facilidade e com muita freqüência — disse ela. Dando um longo suspiro, endireitou os ombros.

Diante de seus olhos, o rosto etodo o corpo sofreram outra transformação. Sob aquela aparência frágil havia bastante força para enfrentar qualquer sofrimento. Uma vontade capaz de sobreviver a todos os golpes com que o destino a quisesse ferir. Quase ameaçadora em sua obstinada serenidade, uma deusa escura e sedutora tomara o lugar da Mater Dolorosa. Lembrou-se imediatamente daquela voz calma que falava de modo tão irresistível a respeito dos cisnes e da catedral, das nuvens e das águas plácidas. À medida que recordava, o rosto que tinha diante de si parecia brilhar com a consciência do triunfo. Viu a expressão do poder intrínseco. Sentiu sua presença grandiosa e se afastou dele.

— Quem é você?

Ela olhou-o em silêncio por um momento e depois sorriu alegremente.

— Não fique tão amedrontado. Não sou a fêmea do louva-a-deus.

Will retribuiu o sorriso alegre da menina que gostava de beijos e que tinha a coragem de pedi-los.

— Graças a Deus! — disse-lhe Will. E o amor, que tinha fugido amedrontado, começou a voltar nas ondas de um mar de felicidade.

— Por que está dando graças?

— Por ter lhe concedido a bênção da sensualidade.

Ela sorriu de novo.

— Quer dizer que esse gato saiu do saco!

— Todo aquele poder… Toda aquela admirável e terrível força de vontade… Você poderia ter sido Lúcifer, mas feliz e providencialmente… — Ele libertou sua mão direita e, com a ponta do indicador, tocou os lábios dela. — A dádiva abençoada da sensualidade tem sido sua salvação. Metade de sua salvação — acentuou ao se lembrar daqueles horríveis frenesis destituídos de amor que vivera na alcova cor-de-rosa. — Uma de suas salvações. Porque é certo que existe essa outra coisa que é o fato de você saber quem realmente é. — Ficou em silêncio por alguns instantes e continuou: — Mary com espadas trespassadas no coração, Circe e Ninon de Lenclos também com espadas no coração. Quem seria o próximo? Alguém como Juliana da Noruega ou Catarina de Gênova? Será que você é essa gente toda?

— Tudo isso e também uma idiota e uma mãe bastante preocupada e não muito eficiente. Acrescente a isso a criança pretensiosa e sonhadora, e provavelmente também aquela velha agonizante que ficou olhando para mim do espelho, na última vez que tomamos juntos o moksha. Foi naquela ocasião que Dugald olhou e viu como ele seria daqui a quarenta anos. Menos de um mês depois, estava morto.

As pessoas voltam ao passado com tanta facilidade e com tanta freqüência… Metade de seu rosto estava envolta em sombras e a outra irradiava uma luz dourada. Seu rosto se converteu, uma vez mais, numa máscara de sofrimento. Will pôde ver que, dentro das órbitas sombrias, seus olhos estavam fechados. Tinha retrocedido para outras épocas e estava só em algum lugar. Só com as espadas e a ferida aberta. Lá fora, os galos voltaram a cantar e um segundo mainá começou a pedir compaixão num semitom acima do primeiro.

— Karuna!

— Atenção! Atenção!

— Karuna!

Will levantou a mão e, mais uma vez, tocou os lábios de Susila.

— Está ouvindo o que eles estão dizendo?

Decorreu longo tempo antes que respondesse. Levantando a mão, segurou o dedo estendido de Will e com ele pressionou o próprio lábio inferior.

— Muito obrigada — disse ao abrir os olhos.

— Por que está me agradecendo? Foi você quem me ensinou o que fazer.

— Agora é sua vez de ensinar à professora.

Como um par de «gurus» rivais, cada um apregoando sua marca de espiritualidade, os mainás continuavam a gritar «Karunal» e «Atenção!» Depois, como se cada um deles quisesse afugentar a sabedoria do outro, através da vitória nessa competição, gritavam «Runattenshkarattunshon». Proclamando suas qualidades de senhor eternamente potente de todas as fêmeas e de adversário invencível de qualquer pretendente espúrio que desafiasse sua virilidade, um frango apregoava esganiçadamente seus poderes divinos.

Um sorriso quebrou a máscara do sofrimento; de seu mundo particular de espadas e recordações, Susila voltou ao presente.

— Cocorocó! Como gosto desse frango! Parece Tom Krishna quando sai pedindo às pessoas que sintam como seus músculos estão desenvolvidos. E esses ridículos mainás sempre a repetirem fielmente o bom conselho que não podem entender. São tão adoráveis como meu «galinho-valente».

— Que me diz da outra espécie de bípede? Daqueles da espécie menos adorável? — perguntou Will.

À guisa de resposta, ela se inclinou para diante, pegou-o pelos cabelos e, puxando sua cabeça para baixo, beijou-o na ponta do nariz.

— Já é hora de mover as pernas. — Levantando-se, estendeu-lhe a mão. Após segurá-lo, Susila ajudou-o a se levantar da cadeira.

— Cantiga contraproducente e anti-sabedoria papagaiada. Isso é o que alguns dessa outra espécie de bípede gostam de fazer.

— Qual a garantia que tenho de que não voltarei a vomitar?

— É provável que isso volte a acontecer — disse Susila alegremente. — Mas também é provável que volte ao estado de espírito que tem neste momento.

Algo moveu-se rapidamente, próximo aos pés de ambos.

Will deu uma gargalhada.

— Lá se vai a minha pobre e pequena encarnação rastejante do mal.

Ela segurou seu braço e ambos caminharam em direção à janela aberta. Anunciando a próxima aparição da aurora, um vento fraco e vacilante fazia rufiar as copas das palmeiras. Abaixo de onde estavam, enraizada invisivelmente na terra úmida e de cheiro acre via-se uma touceira de hibisco — uma profusão selvagem de folhas lustrosas e de cornetas rubras que um feixe de luz vindo da sala punha em destaque, no meio da dupla escuridão formada pela noite e pelas frondosas árvores.

— Não é possível — foi o comentário incrédulo de Will. — Estava novamente com Deus no dia quatorze de julho.

— Não é possível — concordou Susila. — Mas, como tudo na vida, isto é um fato. E agora que você finalmente reconheceu minha existência, lhe darei permissão para olhar o conteúdo de seu coração.

Ele parou imóvel a fitar uma interminável sucessão de intensidades crescentes e cheias de um significado cada vez mais profundo. Lágrimas encheram seus olhos e finalmente escorreram por seu rosto. Tirando um lenço do bolso, começou a enxugá-las.

— Não posso evitá-las — disse Will em tom de desculpa. Não podia evitá-las porque não havia outro meio como expressar sua gratidão. Gratidão pelo privilégio de estar vivo e de ser uma testemunha desse milagre de ser. Na verdade, mais do que uma simples testemunha, era uma parte desse milagre. Gratidão por essas dádivas de êxtases luminosos, de conhecimento e de compreensão. Gratidão por ter sido, ao mesmo tempo, essa união com a unidade divina e uma criatura finita entre outras também finitas. Por que choramos quando somos gratos? — perguntou enquanto guardava o lenço. — Só Deus sabe. Mas sempre choramos. — Uma «bolha» de recordação emergiu do depósito de coisas que lera. — A gratidão é o próprio céu — citou. — Simples algaravia! Mas agora vejo que Blake se limitou a registrar simples ocorrências. A gratidão é o próprio céu.

— E ainda mais celestial por ser o céu na terra e não o céu no céu.

Surpresos, ouviram o som distante de um tiroteio que dominava o canto dos galos, o coaxar dos sapos, o ruído dos insetos e o dueto dos «gurus» rivais.

— O que é isso? — perguntou Susila.

— São os garotos brincando com fogos de artifício — disse Will alegremente.

Susila balançou a cabeça.

— Nós não estimulamos essa espécie de fogos. Nem mesmo os possuímos.

Da rodovia além dos limites do acampamento, o rugir de veículos pesados subindo em primeira se tornava cada vez mais audível. Dominando o barulho, uma voz ao mesmo tempo estentórea e esganiçada vociferava de modo incompreensível através do alto-falante.

Em suas molduras de sombras de veludo, as folhas pareciam delgadas lâminas de jade e esmeralda, e do fundo desse fantástico luzir de pedras preciosas despontavam rubis esculpidos em forma de estrelas de cinco pontas. Gratidão, gratidão! Os olhos de Will tornaram a se encher de lágrimas.

Fragmentos do vociferar esganiçado se transformaram em palavras compreensíveis e, contra sua própria vontade, ele se surpreendeu a escutá-las.

— Povo de Pala… — E a voz ampliada explodiu em sons inarticulados. Guinchos, rugidos, novos guinchos, e então: — O seu rajá lhes fala… Permaneçam calmos… Dêem as boas-vindas a seus amigos da outra margem do estreito.

De repente, Will reconheceu aquela voz.

— É Murugan.

— Ele está com os soldados de Dipa.

— Progresso… — dizia a voz insegura e excitada. — Vida moderna… Indo da Sears Roebuck para a rani e Koot Hoomi, prosseguiu no tom de voz esganiçado: — Verdade, valores… Verdadeira espiritualidade… Petróleo.

— Olhe! — disse Susila. — Olhe! Estão se dirigindo para o acampamento.

Visíveis através de uma brecha existente entre duas moitas de bambus, os reflexos de uma procissão de faróis brilharam de repente na face esquerda do grande Buda de pedra, e ao passar pelo poço de lótus recomeçaram as alusões à abençoada possibilidade de libertação, tornando a desaparecer da vista.

— O trono de meu pai — uivava a voz esganiçada e tremendamente ampliada — se uniu ao trono dos antepassados de minha mãe… Duas nações irmãs que de mãos dadas marcham para a frente, para o futuro… E esta nação fará parte, de agora em diante, do Reino Unido de Rendang e Pala. O primeiro-ministro desse Reino Unido é o grande político e líder espiritual, coronel Dipa.

A procissão de faróis desapareceu por trás de uma longa fileira de edifícios e os guinchos vociferados se transformaram em sons incoerentes. As luzes surgiram de novo e a voz se tornou compreensível.

— Reacionários. Traidores dos princípios da revolução permanente…

Num tom aterrorizado, Susila sussurrou:

— Estão parando no bangalô do dr. Robert.

A voz tinha dito a última palavra. Os faróis e os motores foram desligados. Na escuridão que rodeava aquele silêncio expectante, os sapos e os insetos continuavam nos solilóquios despreocupados e os mainás reiteravam seus bons conselhos. «Atenção! Karuna!”

Will olhou para baixo, na direção da moita incandescida, e viu a Semelhança do mundo e o seu próprio ser ardendo com a Grande Luz que também era (como tudo estava claro agora!) compaixão. A Grande Luz que, como qualquer outra pessoa, ele sempre fora cego para ver. A Grande Luz que sempre desprezara em favor de suas preferências pelas torturas que sofrera ou infligira naquele subsolo onde havia uma venda de saldos. Suas solidões miseráveis com Babs ou com a falecida Molly no primeiro plano, com Joe Aldehyde a meia distância e bem atrás, o grande mundo das forças impessoais, dos números prolíficos, de paranóias coletivas e de maldade organizada. E sempre e em toda a parte existiriam — ruidosos ou tranqüilos — os hipnotizadores autoritários, e na esteira desses «sugestionadores reinantes» — sempre e em toda a parte — seguem as legiões de bufões, mercenários e os fornecedores de divertimentos sem propósito. Condicionados desde o berço, continuamente entretidos, sistematicamente mesmerizados, suas vítimas uniformizadas continuarão sempre nas marchas e contramarchas obedientes; por toda a parte matarão e morrerão com a docilidade de poodles. No entanto, a despeito da recusa plenamente justificada em aceitar o «sim» como resposta, a verdade seria sempre a mesma e sobreviveria em toda a parte — a verdade de que havia essa capacidade mesmo num paranóico em relação à inteligência, mesmo num adorador do diabo em relação ao amor; a verdade de que a essência de todo o ser poderia se manifestar inteiramente num arbusto em flor, num rosto humano; a verdade da existência de uma luz e de que essa luz também era compaixão.

Ouviu-se um tiro isolado. A seguir, o espocar de um rifle automático.

Susila cobriu o rosto com as mãos. Estava tremendo incontrolavelmente.

Will passou um braço em torno de seus ombros e estreitou-a contra o corpo.

Todo o trabalho de cem anos destruído em uma noite. No entanto, a verdade sobrevivia — a verdade do fim do sofrimento, bem como da existência do mesmo.

Os motores foram ligados e os veículos começaram a se movimentar. Os faróis foram acesos e, depois de um minuto de manobras, começaram a voltar pela mesma estrada por onde tinham vindo.

O alto-falante começou a berrar os compassos de uma música (simultaneamente marcial e lasciva) na qual Will reconheceu o hino nacional de Rendang. O Wurlitzer foi desligado e a voz de Murugan tornou a ser ouvida.

— Quem lhes fala é o seu rajá — proclamava a voz excitada. Depois, da capo, seguiu-se uma repetição do discurso acerca de Progresso, Valores, Petróleo e Verdadeira Espiritualidade. Tão repentinamente como surgira, a procissão deixou de ser vista e ouvida.

Após um minuto, estava novamente visível com seu contra— tenor a vociferar elogios ao primeiro-ministro do recém-criado Reino Unido.

A procissão se arrastava para diante e, agora, desta vez, vindos da direita, os faróis do primeiro carro blindado iluminaram por um instante a face serena e sorridente da Sabedoria. E aí estava o Tathagata, iluminado pela segunda, terceira, quarta e quinta vez pelos faróis dos carros.


O último carro acabou de passar e, embora esquecida na escuridão, a verdade da sabedoria permanecia. O rugir dos motores diminuiu. A retórica esganiçada se converteu num amontoado de sons sem sentido. Morreram os ruídos estranhos. Os sapos, os insetos incessantes e os mainás estavam de volta.

— Karuna! Karuna!

E num semitom abaixo:

— Atenção!

Загрузка...