CAPÍTULO XIII

De banho tomado e cabelos penteados, os gêmeos já estavam em suas cadeiras altas. Mary Sarojini se debruçara sobre eles com se fosse uma pequena mãe ao mesmo tempo ansiosa e orgulhosa. No fogão, Vijaya, munido de uma concha, retirava arroz e verduras de uma panela de barro. Cuidadosamente e com a fisionomia denotando uma atenção concentrada, Tom Krishna levava para a mesa as tigelas cheias.

— Até que enfim! — disse Vijaya quando acabou de despachar a última tigela. Limpou as mãos e se dirigiu à mesa onde ocupou seu lugar.

— É melhor que explique ao nosso hóspede sobre a oração — falou, dirigindo-se a Shanta.

Ela virou-se para Will e explicou:

— Em Pala não damos graças antes das refeições e sim durante. Ou melhor, nós não dizemos orações, nós as mastigamos.

— Mastigam?

— Damos graças ao mastigarmos o primeiro bocado de cada prato. Mastigamos cuidadosamente, até que nada reste. Durante toda a mastigação prestamos atenção ao sabor do alimento, à sua consistência e temperatura, à pressão que exerce sobre os dentes e à tensão dos músculos maxilares.

— Enquanto isso, agradecem ao Iluminado, a Xiva ou a quem quer que seja, não é verdade?

Shanta balançou a cabeça vigorosamente.

— Isso distrairá a atenção, que é a alma de tudo. Atenção à experiência de alguma coisa que está sendo dada. Atenção para alguma coisa que você não inventou. Não se trata de repetir uma série de palavras decoradas, dirigidas a alguém que existe em sua própria imaginação. — Ela circunvagou o olhar pela mesa. — Vamos começar?

— Viva! — gritaram os gêmeos em uníssono, pegando imediatamente as colheres.

Durante um longo minuto reinou o silêncio, quebrado apenas pelos gêmeos que ainda não tinham aprendido a comer sem estalar os lábios.

— Podemos engolir? — perguntou um deles passado certo tempo.

Shanta acenou afirmativamente com a cabeça. Todos deglutiram. Houve um tinir de colheres e uma verdadeira explosão de conversas de boca cheia.

— Que gosto tinha a sua «graça»? — perguntou Shanta.

— Eu a senti como uma sucessão de várias coisas diferentes — disse Will. — Ou melhor, ela se assemelhou a uma sucessão de variações sobre o tema fundamental: arroz e açafrão. Havia também pimentão, zucchini e algo folhoso que não consegui identificar. É interessante como o sabor muda continuamente, coisa que nunca observara.

— Enquanto estava prestando atenção a essas coisas, se libertou momentaneamente das divagações, das lembranças, das antecipações, das idéias tolas, de todos os sintomas do seu próprio eu.

— Será que não estava me saboreando?

Shanta olhou para o outro lado da mesa e perguntou ao marido:

— Que é que diz a isso, Vijaya?

— Acho que é um meio-termo entre o eu e o não eu. Saborear é o meu não eu fazendo alguma coisa para a totalidade do organismo. Ao mesmo tempo, o ato de saborear representa o meu eu tomando conhecimento do que está acontecendo. É aí que reside a essência da nossa «ação de graças mastigada». Através dela, o eu adquire maior consciência do que o não eu está apto a realizar.

— Tudo isso é muito bonito — comentou Will. — Mas onde está a essência da «essência»?

Foi Shanta quem respondeu:

— A essência da «essência» é atingida quando tiver aprendido a prestar cada vez maior atenção ao não eu que existe no seu próprio organismo (suas sensações gástricas). Subitamente percebe que está prestando atenção ao não eu que existe nos recantos da sua consciência. Talvez seja melhor que inverta inteiramente a ordem do meu raciocínio. O não eu que existe nos recônditos da consciência de cada um achará mais fácil se fazer conhecido por um eu que tenha aprendido a ter maior consciência do seu não eu fisiológico.

Ela foi interrompida por uma queda seguida de um grito de um dos gêmeos.

— Além disso — continuou enquanto limpava o assoalho —, temos de considerar o problema do eu e do não eu em relação às pessoas que medem menos de um metro. Um prêmio de sessenta e quatro mil rupias será concedido a quem apresente uma solução que resista aos descuidos.

Após limpar os olhos da criança e fazê-la assoar o nariz, deu— lhe um beijo e dirigiu-se ao fogão para apanhar outra tigela de arroz.

— Que é que têm de fazer esta tarde? — perguntou Vijaya quando o almoço chegou ao fim.

— Estamos encarregados dos espantalhos — respondeu Tom Krishna com ares importantes.

— No campo, pouco abaixo da escola — acrescentou Mary Sarojini.

— Eu os levarei de jipe até lá — disse Vijaya. — Quer nos acompanhar? — perguntou, dirigindo-se a Will Farnaby.

Will concordou com um gesto de cabeça.

— Se me fosse permitido, gostaria de ver a escola. É possível que venha mesmo a sentir vontade de me sentar numa das salas de aula.

Da varanda, Shanta acenou-lhes um adeus, e em poucos minutos viram o local onde o jipe estava estacionado.

— A escola fica do outro lado da vila — explicou Vijaya enquanto punha o motor em movimento. — Temos de dirigir com cuidado. Após uma descida, teremos que subir novamente.

Desceram através das plantações de arroz, de milho e de batata-doce, dispostas em plataformas, e ao atingirem a planície entraram por um atalho limitado à esquerda por um pequeno viveiro lamacento e à direita por um pomar de fruta-pão. Começaram então a subida, atravessando campos ora verdes ora dourados, e finalmente divisaram o prédio branco e espaçoso da escola, imerso nas sombras de árvores majestosas.

— Os nossos espantalhos estão lá embaixo — disse Mary Sarojini.

Will olhou na direção para onde ela apontava. Na mais próxima das plantações, numa plataforma que se via abaixo do local onde estavam nesse momento, o arroz amarelo estava quase pronto para ser colhido. Dois meninos usando tangas cor-de-rosa e uma menina de saia azul se revezavam no trabalho de puxar os cordéis que punham em movimento duas marionetes de dimensões humanas, que estavam amarradas em estacas em cada um dos extremos da estreita plantação. As bonecas feitas de madeira eram bem esculpidas e vestiam, não os conhecidos trapos, mas roupas feitas de tecidos excelentes.

Will olhou-os surpreso.

— Salomão em toda a sua glória não usava roupas como estas! — exclamou.

Mas Salomão não era mais que um rei e esses maravilhosos espantalhos pertencem a uma classe mais elevada, conjeturou. Um deles representava um futuro Buda. O outro, numa versão encantadoramente alegre das índias Orientais, representava Deus, o Pai, tentando arrebatar o recém-criado Adão, tal como se vê na capela sistina. A cada puxão do cordel o futuro Buda balançava a cabeça, descruzava as pernas e, abandonando a posição de lótus, dançava um curto fandango no ar e finalmente tornava a cruzar as pernas, assumindo uma atitude imóvel, até que outro puxão do cordel viesse perturbar suas meditações. Enquanto isso, Deus Pai balançava o braço distendido e com o dedo indicador fazia um grande sinal aconselhando cautela. Sua boca franjada de crinas de cavalo se abria e fechava a todo instante e seus olhos de vidro rolavam nas órbitas, dardejando o fogo da condenação sobre Qualquer pássaro que ousasse aproximar-se do arroz. Durante todo esse tempo, um vento fresco agitava suas vestes amarelo-vivas, onde se desenhavam em marrom, branco e preto figuras de tigres e de macacos. As amplas roupas do futuro Buda, em deslumbrante rayon vermelho e alaranjado, se agitavam em seu redor e o vento fazia com que retinissem várias dúzias de sinos de prata.

— Todos os espantalhos são iguais a esses? — perguntou Will.

— Foi idéia do velho rajá — respondeu Vijaya. — Ele queria que as crianças compreendessem que todos os deuses são feitos em casa e que somos nós que acionamos os cordéis, proporcionando-lhes desse modo o poder de puxar os nossos.

— Faça-os dançar. Faça com que requebrem — disse Tom Krishna sorrindo alegremente.

Vijaya bateu delicadamente, com a grande mão estendida, nos cabelos escuros e cacheados do menino.

— Este é o espírito da coisa! — Voltando-se para Will, disse num tom que era evidentemente uma imitação do modo como se expressava o velho rajá: — O único grande mérito dos deuses, além de amedrontar os pássaros e os pecadores e às vezes consolar os miseráveis, consiste nisto: erguidos sobre estacas, temos de levantar a cabeça para vê-los. «Quando alguém olha para cima, mesmo que seja para procurar um deus, não pode deixar de ver o céu que está além. E o que é o céu? Simples dispersão de ar e de luz.» Contudo, é também o símbolo da vacuidade plena (perdoe a metáfora) e sem limites, fora da qual tudo (as coisas vivas e as inanimadas, os fabricantes de bonecas e suas divinas marionetes) emerge neste universo que conhecemos, ou melhor, que pensamos conhecer.

Mary Sarojini, que estava escutando atentamente, concordou com um meneio de cabeça e disse:

— Meu pai costumava dizer que olhar para os pássaros no céu é ainda melhor. «Pássaros não são palavras», dizia ele. «São tão reais quanto o céu.»

Vijaya parou o jipe.

— Divirtam-se — disse às crianças enquanto elas saltavam. — Faça-os dançar e requebrar.

Gritando alegremente, Tom Krishna e Mary Sarojini correram para se juntar ao pequeno grupo que estava numa plantação abaixo do nível da estrada.

— Agora vamos procurar os aspectos mais solenes da educação — disse Vijaya, conduzindo-o à estrada que levava à escola. — Deixarei o jipe aqui e voltarei a pé até o posto. Quando estiver farto, peça a alguém que o dirija para levá-lo para casa.

Desligando o motor, entregou as chaves a Will.

Na secretaria da escola, a diretora, Mrs. Narayan, estava conversando com um homem de cabelos brancos, cuja fisionomia tristonha fazia lembrar um sabugo enrugado.

— O sr. Chendra Menon é o nosso subsecretário de educação — explicou Vijaya, enquanto fazia as apresentações.

— Ele está nos fazendo uma de suas inspeções periódicas — disse a diretora.

— E aprovo inteiramente o que estou vendo — acrescentou o subsecretário, fazendo um gesto de cortesia a Mrs. Narayan.

Vijaya desculpou-se:

— Tenho que voltar para o trabalho — disse, dirigindo-se para a porta.

— O senhor se interessa por problemas de educação? — perguntou Mr. Menon.

— Seria melhor dizer que sou completamente ignorante no assunto — respondeu Will — e por este motivo gostaria de dar uma olhada em algo que seja verdadeiramente autêntico.

— Bem, o senhor veio ao lugar certo, pois o «novo Rothamsted» é uma de nossas melhores escolas — assegurou-lhe Mr. Menon.

— Qual é o seu critério de julgamento?

— O sucesso.

— Sucesso em quê? Na obtenção de bolsas de estudo? Em tornar seus estudantes aptos a arranjar empregos, após a graduação? Ou na obediência às categóricas imposições locais?

— Evidentemente que em tudo isso — disse o subsecretário —, mas a questão fundamental permanece insolúvel. A que se destinam os rapazes e as moças?

Encolhendo os ombros, Will começou a falar:

— A resposta depende do local onde residem. Por exemplo: para que servem os rapazes e as moças da América? Resposta: para consumirem maciçamente. E os corolários desse tipo de consumo são: comunicações em massa, publicidade em massa, narcóticos em massa, sob a forma de televisão, tranqüilizantes, pensamento positivo e cigarro. Agora que a Europa também ingressou na produção em massa, para que servirão seus rapazes e moças? Para consumirem maciçamente, exatamente como a juventude da América. Na Rússia, a resposta é diferente. A missão da juventude é fortalecer o Estado. Para isso existem todos aqueles engenheiros e professores de Ciência. Também não devemos nos esquecer das cinqüenta divisões modernamente equipadas, contando com tanques, bombas H e foguetes de longo alcance que estão sempre prontos para uma ação imediata. Na China o fenômeno é o mesmo, porém em forma ampliada. Para que servem as moças e os rapazes daquele país? Para alimento dos canhões, da indústria, da agricultura e da construção de estradas. Deste modo e neste momento, o Leste continua sendo Leste e o Oeste continua sendo Oeste. Mas ambos podem vir a se encontrar em qualquer dos dois caminhos. O Oeste pode vir a ficar tão apavorado com o Leste a ponto de desistir da idéia de que os rapazes e as moças servem exclusivamente para consumir em massa tudo o que é produzido. Pode vir a achar que devem servir para fortalecimento do Estado e para forragem dos canhões. Por seu turno, o Leste pode se sentir tão pressionado pelas massas ansiosas de tudo consumir e que sonham com a ida para o Oeste que pode modificar sua atitude, vindo a admitir que os rapazes e as moças se destinem realmente a consumir indiscriminadamente toda a produção industrial. Isso, no entanto, pertence ao futuro. No momento, as respostas usuais à sua pergunta se restringem a cada um dos grupos, separadamente.

— Ambas diferem das nossas — disse Mr. Menon. — Qual a finalidade da mocidade palanesa? Não se destina a tudo consumir em massa nem tampouco ao fortalecimento do Estado. É claro que o Estado tem de subsistir e que deve haver o suficiente para todos. Isso é preciso que seja dito. Somente nessas condições a nossa mocidade descobrirá qual a sua finalidade; somente nessas condições poderemos fazer alguma coisa por ela.

— Em outras palavras, qual é mesmo o destino dessa mocidade?

— Desejamos que se desenvolva harmoniosamente e que se transforme em adultos plenamente realizados.

Will concordou, dizendo:

— Notas sobre o que é quê: «Seja você mesmo».

— O velho rajá se preocupava primordialmente com as pessoas tais como são, porém num nível que ultrapassava os limites da individualidade. Nosso interesse pelo assunto é idêntico ao dele, mas nosso primeiro objetivo é a educação elementar. Para darmos essa educação, temos que lidar com indivíduos que diferem entre si em tamanho, forma e deficiências. A unidade transcendental dos indivíduos constitui o objetivo de uma educação de alto nível. Esse ensinamento é iniciado na adolescência, paralelamente com o curso elementar adiantado.

— Começa com a primeira experiência com o moksha!

— Então já ouviu falar do moksha!

— Sim. Cheguei até a vê-lo em ação.

— O dr. Robert levou-o para assistir à Iniciação de ontem

— explicou a diretora.

— Devo dizer que fiquei impressionado — acrescentou Will.

— Quando me lembro da minha educação religiosa… — Deixou a frase intencionalmente inacabada.

— Como ia dizendo, os adolescentes recebem simultaneamente os dois tipos de educação — continuou Mr. Menon. — Nós os auxiliamos a fim de que conheçam a unidade transcendental que existe entre eles e todos os outros seres dotados de sensibilidade. Ao mesmo tempo aprendem, nas aulas de Psicologia e de Fisiologia, que cada um de nós tem uma constituição singular e que todos diferimos uns dos outros.

— Quando freqüentei a escola, os pedagogos se esforçavam ao máximo para anular essas diferenças ou pelo menos moldá— las nos mesmos ideais dos últimos períodos da era vitoriana: o ideal do estudioso anglicano que se limitava a ser um gentleman na prática dos esportes. Gostaria muito de saber como vocês procedem em relação a essas diferenças individuais.

— Em primeiro lugar, nós as avaliamos — disse Mr. Menon. — Que é a criança sob o prisma anatômico, bioquímico e psicológico? Na sua hierarquia orgânica, que terá precedência: os instintos, os músculos ou o sistema nervoso? Até que ponto se aproxima dos três pólos extremos? Até onde se harmonizam e em que se chocam os elementos que compõem seu corpo e sua mente? Até onde vai seu desejo inato de mando? Qual a extensão da força que a faz sociável ou que a obriga a se voltar para seu mundo interior? Como sente, como pensa, como recorda? É um idealista? É destituído de ideal? Seu cérebro trabalha com idéias ou com palavras? Com ambas ao mesmo tempo ou com nenhuma delas? Em que plano se situa sua capacidade de narração? Será que vê o mundo do mesmo modo que Wordsworth e Traherne o viam quando crianças? Se assim for, o que pode ser feito para evitar que a glória e a inexperiência se desvaneçam à luz do sol? Em termos genéricos, como podemos educar as crianças no nível conceptual sem que destruamos a capacidade para que tenham uma intensa experiência não literal? Como conciliarmos a análise e a fantasia? Dezenas de perguntas devem ser feitas e respondidas. Por exemplo: essa criança está absorvendo todas as vitaminas existentes na sua alimentação? Ou sofrerá de alguma carência crônica que, se não for reconhecida e tratada, a transformará numa criatura de humor sombrio, dessas que só sabem ver a feiúra e que, imersas no tédio, só pensam em tolices ou em coisas maliciosas? Qual o nível da sua glicose? Sofre de alguma perturbação respiratória? Apresenta algum vício de postura? Como utiliza o corpo durante as horas de trabalho, de estudo e de divertimento? Além dessas, temos perguntas referentes a dons específicos: apresenta sinais que possam indicar talento para a música, para a Matemática, para a literatura? Será dotada de um poder acurado para a observação? Pensa com lógica e tira conclusões próprias a respeito dos fatos que observa? Finalmente, nos interessamos por saber qual o grau de sugestionabilidade que terá ao atingir a idade adulta. Todas as crianças são facilmente hipnotizáveis. Isso é de tal maneira verdadeiro que quatro em cada cinco podem ser induzidas ao sonambulismo. Nos adultos a proporção é inteiramente oposta. Em cada cinco, somente um pode ser induzido ao sonambulismo. Em cada grupo de cem crianças, quais são as vinte que, ao crescerem, serão suscetíveis aos assaltos do sonambulismo?

— É possível descobri-los com antecedência? — perguntou Will. — Caso seja, qual o objetivo dessa descoberta?

— Podemos descobri-los — respondeu Mr. Menon. — Aliás, é muito importante que sejam descobertos, principalmente no seu mundo. Falando politicamente, os vinte por cento que podem facilmente ser hipnotizados até o limite máximo constituem os elementos mais perigosos de sua sociedade.

— Por que perigosos?

— Porque são predestinados a ser vítimas dos propagandistas. Numa democracia pré-científica e antiquada, qualquer orador fascinante, possuindo uma boa organização que lhe sirva de apoio, pode transformar esses vinte por cento de sonâmbulos em potencial num exército de fanáticos arregimentados e inteiramente dedicados a tornar cada vez maior a glória e o poder do hipnotizador. Sob uma ditadura, esses mesmos sonâmbulos em potencial podem ser levados à fé implícita e passar a constituir o núcleo do partido onipotente. É essa a razão por que qualquer sociedade que dê valor à liberdade deve estar capacitada a descobrir, enquanto ainda são jovens, os futuros sonâmbulos. Depois de descobertos, podem ser hipnotizados e educados sistematicamente, a fim de não se deixarem hipnotizar pelos inimigos da liberdade. Ao mesmo tempo, seria bom que vocês reorganizassem suas organizações sociais de modo a tornar difícil, ou mesmo impossível, que os inimigos da liberdade tenham acesso ao poder e qualquer influência política.

— É nesse plano que podemos situar Pala?

— Exatamente — respondeu Mr. Menon. — E é por esse motivo que os nossos sonâmbulos em potencial não constituem perigo.

— Então, por que se dão ao trabalho de tentar descobri-los com antecedência?

— Porque esse «dom», quando bem usado, tem muito valor.

— Serve para controlar o destino? — perguntou Will, lembrando-se dos «cisnes terapêuticos» e de todas aquelas coisas ditas por Susila a respeito de as pessoas apertarem os próprios botões.

O subsecretário balançou a cabeça, negativamente.

— O Controle do Destino não exige nada além de um leve transe. Na prática, quase todos são capazes disso. Os sonâmbulos em potencial constituem os vinte por cento que podem chegar a um transe muito profundo. Somente quando uma pessoa está nessa espécie de transe é que se torna possível ensiná-la a alterar o tempo.

— O senhor pode alterar o tempo? — perguntou Will.

Mr. Menon tornou a balançar a cabeça negativamente.

— Infelizmente nunca pude me aprofundar bastante no assunto. Tudo aquilo que sei tive que aprendê-lo pelo modo mais longo e mais lento. Mrs. Narayan foi mais feliz do que eu. Fazendo parte dos privilegiados vinte por cento, pôde usar todos os atalhos educacionais que nos eram inteiramente interditos.

— Que espécie de atalhos? — indagou Will voltando-se para a diretora.

— São pequenos cursos de memorização de cálculos e de como pensar e resolver problemas. Começa-se aprendendo a sentir vinte segundos como se fossem dez minutos e um minuto como se fosse meia hora. Quando se está em transe profundo, isso é realmente muito fácil. Ouve-se a sugestão do professor e se fica lá, por longo tempo, sentado quietamente. Você é capaz de jurar que ficou sentado durante duas horas e, quando é trazido de volta, o relógio mostra que a experiência de duas horas foi «condensada» em quatro minutos.

— Como?

— Ninguém sabe — disse Mr. Menon. — Todavia, todas as histórias que se contam a respeito de pessoas que estão se afogando e que em poucos segundos vêem desenrolar diante de si, como numa projeção, tudo que viveram, são basicamente verdadeiras. O cérebro e o sistema nervoso, ou melhor, alguns intelectos e alguns sistemas nervosos são dotados dessa capacidade. Isso é tudo o que sabemos a respeito do assunto. Há cerca de sessenta anos tivemos a oportunidade de descobrir esse fenômeno e desde então temos continuado a explorá-lo. Entre outros motivos, nossos estudos têm objetivos educacionais.

— Para exemplificar — disse Mrs. Narayan —, resumirei o assunto: tomemos um problema matemático que no estado normal levaríamos cerca de meia hora para solucionar. Mas agora se tem a capacidade de distender o tempo de tal maneira que cada minuto equivale subjetivamente a trinta… Começando a trabalhar no problema, em trinta minutos subjetivos estará resolvido. Contudo, esses trinta minutos subjetivos se resumem a um minuto cronológico. Sem que se tenha consciência de qualquer esforço extraordinário e sem a noção de que se está fazendo as coisas apressadamente, trabalha-se com tanta rapidez como qualquer um desses meninos que vemos surgir de tempos em tempos e que são extraordinariamente dotados para os cálculos. Futuros gênios como Ampère e Gauss, ou futuros idiotas como Dase, todos eles tendo em comum, graças a algum arranjo interior, a capacidade de alterar o tempo. Esse dom lhes permite resolver um problema, que consumiria uma hora de trabalho concentrado, em poucos minutos e, em alguns casos, em frações de segundos. Sou uma estudante medíocre, mas através de um transe profundo puderam me ensinar a condensar o tempo, reduzindo-o a um trigésimo da sua duração normal. Disso resultou maior tempo para ampliar os meus conhecimentos, de um modo que seria dificílimo se seguisse os caminhos usuais. O senhor pode imaginar o que acontece quando alguém dotado do coeficiente intelectual (QI) de um gênio é também dotado do poder de alterar o tempo? Os resultados são fantásticos!

— Infelizmente — disse Mr. Menon — eles não são muito freqüentes. Nas duas últimas gerações, tivemos apenas dois «alteradores do tempo» dotados de verdadeira genialidade e cinco ou seis de segunda classe. Mas o que Pala deve a esse pequeno grupo é verdadeiramente inestimável. Por esse motivo, não é para admirar que estudemos com cuidado nossos sonâmbulos em potencial.

— Vocês realmente fazem uma série enorme de perguntas visando a devassar a alma dos seus alunos — comentou Will depois de curto silêncio. — Que farão quando souberem as respostas?

— Nós os educaremos de acordo com elas — disse Mr. Menon. — Indagamos o físico e o temperamento da criança e, após obtermos as respostas, separamos aquelas que são mais tímidas, mais tensas, mais sensíveis, bem como as introvertidas, e as reunimos num grupo único que, pouco a pouco, vai sendo ampliado. A princípio algumas crianças que têm tendência para a sociabilidade indiscriminada vão sendo introduzidas. Depois, uma ou duas crianças (miniaturas de homens e mulheres minúsculos) agressivas e com ambição de mando são colocadas no grupo. Chegamos à conclusão de que esse é o melhor método para fazer com que as crianças dotadas dos três temperamentos mais dessemelhantes aprendam a se entender, desenvolvendo ao mesmo tempo a tolerância mútua. Após alguns meses de convivência cuidadosamente controlada, estão capacitadas para admitir que pessoas de diferentes origens têm tanto direito à vida quanto elas mesmas.

— E os fundamentos são explicitamente ensinados à medida que vão sendo progressivamente aplicados — disse Mrs. Narayan. — Nos cursos elementares ensinamos em termos de analogia com os animais domésticos. Os gatos apreciam o isolamento, enquanto os carneiros gostam de se agrupar. As martas são ferozes e não podem ser domesticadas. Os porquinhos-da-índia são mansos e amigáveis. A qual grupo você pertence? Ao grupo dos homens-gatos, dos homens-cordeiros, dos homens-porquinhos-da-índia ou dos homens-martas? Quando falamos sobre o assunto usando fábulas de animais, qualquer criança entende a existência da diversidade dos seres humanos e, através dessa compreensão, admite a necessidade da indulgência e do perdão mútuos.

— Mais tarde, ao serem iniciados na leitura do Gita — disse Mr. Menon —, falamos a elas sobre a ligação entre a constituição individual e a religião. Os homens-cordeiros e os homens-porquinhos-da-índia gostam dos rituais, das cerimônias públicas e das emoções revivificadas. Suas preferências temperamentais podem ser orientadas no «caminho da devoção». Os homens-gatos gostam de estar sós e suas meditações solitárias podem levá-los ao «caminho do autoconhecimento». Os homens-martas querem fazer coisas, e o problema é desviar sua agressividade para o «caminho dos atos desinteressados».

— E a estrada que conduz ao caminho dos atos desinteressados foi o que tive ocasião de ver ontem? Será que, para atingi-lo, temos que cortar lenha e escalar montanhas?

— Somente em casos especiais utilizamos o método de cortar lenha e de escalar montanhas — disse Mr. Menon. — Generalizando, podemos dizer que a reorientação da força é o caminho que leva a todos os «caminhos».

— Que quer dizer com isso?

— O princípio em que se baseia é muito simples. Utilize a força produzida pelo medo, pela inveja, pela administração excessiva de nor-adrenalina ou por uma necessidade imperiosa e que no momento tenha que ser contida. Oriente-a de modo a que não seja nociva a ninguém. Não permita que seja reprimida e que venha a causar dano a si mesmo. Despenda seus empreendimentos que, se não forem úteis, tenham pelo menos o mérito de ser inócuos.

— Eis aqui um caso simples — disse a diretora. — Uma criança zangada ou frustrada é capaz de acumular força bastante que resulte numa explosão de choro, de palavrões ou mesmo numa briga. Se a força gerada é suficiente para provocar qualquer uma dessas coisas é também suficiente para fazê-la correr, dançar ou mesmo dar cinco suspiros profundos. Mais tarde lhe mostrarei uns números de dança. Por ora, limitemo-nos à respiração. Qualquer pessoa que estiver irritada e que respire profundamente cinco vezes, libera grande parte de sua tensão, tornando mais fácil para si mesma agir de modo racional. Por isso ensinamos às nossas crianças que toda a espécie de exercícios respiratórios deve ser usada todas as vezes que estiverem zangadas ou perturbadas. Qual dos dois antagonistas pode inspirar mais profundamente e levar maior tempo expirando e dizendo simultaneamente OM? É um duelo que termina, quase que invariavelmente, com uma reconciliação. Existem porém ocasiões em que os exercícios de respiração ficam inteiramente deslocados. Nesses casos, há um pequeno jogo baseado no folclore local e que pode ser usado por uma só criança, quando necessário. Toda criança palanesa aprende as lendas budistas que na maioria são como histórias de fadas, onde alguém sempre tem a visão de um ser celestial. É como se fosse um Bodhisattva numa explosão de luzes, jóias e arco-íris. Simultaneamente com a gloriosa visão, sempre há uma olfação igualmente deliciosa. Os fogos de artifício geralmente são acompanhados por perfume de inefável delicadeza. Pomos em ação todas essas fantasias tradicionais. Não é necessário que todas se baseiem em experiências utópicas como aquelas induzidas pelo jejum, pela privação dos sentidos e pelos cogumelos. Dizemos às crianças que os sentimentos violentos são como os terremotos. Estes nos sacodem com tal força que provocam rachaduras na parede que separa nosso íntimo da universal e multi-dividida natureza de Buda. Quando alguém fica zangado é como se algo dentro dele se rachasse, deixando escapar através da fenda um sopro do celestial perfume do Saber. Um perfume semelhante ao champak, ao ylang-ylang ou às gardênias, porém infinitamente melhor. Por essa razão, não se deve perder essa divindade que acidentalmente escapou. Ela estará presente todas as vezes que se zangar. Inale-a, respire-a, encha os pulmões com ela, uma, duas ou mais vezes.

— E as crianças conseguem fazer isso?

— Depois de algumas semanas de aprendizado a maioria delas o faz com absoluta naturalidade. Algumas chegam mesmo a sentir o perfume. O velho refrão repressivo «não faça isso» passou a ser expresso em termos de «faça isso». Este novo refrão está cheio de compensações. Forças potencialmente perigosas têm sido analisadas de modo a se tornarem inócuas, podendo mesmo, em certas ocasiões, ser usadas no bom sentido. Nesse intervalo desenvolvemos a percepção das crianças, mediante um ensino cuidadoso, que é progressivamente ministrado com o modo correto de usar a linguagem. Elas são ensinadas a prestar atenção a tudo o que vêem e ouvem. Pedimos que observem até que ponto seus sentimentos e desejos interferem na observação do mundo em que vivem. Fazemos com que sintam como determinados hábitos de linguagem afetam não só seus sentimentos, seus desejos, mas também suas sensações. O que meus olhos e ouvidos registram é uma coisa. Até que ponto meu estado de espírito, a palavra que uso e os objetos que estou perseguindo dão sentido a um ato é coisa completamente diferente. Por aí se vê que tudo se envolve em conjunto dentro de um processo educacional único. Damos um treino simultâneo em percepção e imaginação, que equivale à aplicação prática da fisiologia e da psicologia. É também um treino na prática da ética e da religião, um treino de autoconhecimento e de como se usar a linguagem. Resumindo, a unidade psicossomática é treinada sob todos os ângulos.

— Para que dar tanta importância a um treino tão complexo do cérebro e do corpo, na educação convencional? — perguntou Will. — Isso auxiliará as crianças a escrever gramaticalmente, a fazer cálculos ou a entender a física elementar?

— Ajuda bastante — disse Mr. Menon. — Um conjunto mente-corpo bem treinado aprende melhor e com muito maior rapidez do que outro que não foi treinado. Além disso, tem maior capacidade de relacionar os fatos às idéias e aos acontecimentos de sua própria vida.

Subitamente e para surpresa de todos (pois aquele rosto longo e melancólico dava a impressão de ser incompatível com qualquer expressão de alegria, além de um pálido sorriso), Mr. Menon soltou uma boa gargalhada.

— Qual é a graça? — perguntou Will.

— Estava me lembrando de duas pessoas que encontrei na última vez em que estive em Cambridge, na Inglaterra. Uma delas era um físico atômico e a outra um filósofo, ambos muito famosos. No entanto, a idade mental de um deles fora do laboratório era a de uma criança de onze anos. O outro era um comilão compulsório que se recusava a encarar um problema de excesso de peso. Esses dois personagens constituem um exemplo clássico do que acontece quando um menino inteligente recebe uma educação convencional e intensiva durante quinze anos, enquanto o conjunto mente-corpo, do qual dependem a vida e o saber, é completamente negligenciado.

— E seu sistema de ensino não produz essa espécie de «monstro acadêmico»?

O subsecretário balançou a cabeça.

— Até a minha ida à Europa, não tinha visto nada semelhante. São grotescamente divertidos — acrescentou. — E, pobres coitados, como são curiosamente repulsivos!

— Tornarmo-nos patética e curiosamente repulsivos, este é o preço que pagamos pela especialização.

— Pela especialização — concordou Mr. Menon —, mas não no sentido que é dado a esse termo no mundo em que você vive. Tal tipo de especialização, além de ser necessária, é também inevitável. Sem especialização não há civilização. Se você educar o todo mente-corpo, utilizando símbolos intelectuais, esse tipo de especialização é necessário e não causa um dano apreciável. Mas vocês não educam esse todo. Pretendem remediar o excesso de especialização científica ministrando alguns cursos suplementares de humanidades. Concordo em que tudo isso é excelente. Em todo processo educacional deviam ser incluídos os cursos de humanidades, contudo não devemos nos deixar iludir pelas aparências. Intrinsecamente, os cursos de humanidades não nos tornam mais humanos. Não passam de outra forma de especialização no nível simbólico. Lendo Platão ou ouvindo uma conferência de T. S. Eliot, nem todos conseguem se educar. Ocorre o mesmo num curso de Física ou de Química, onde, enquanto se ensina a manipulação dos símbolos, o resto do todo mente-corpo é deixado no seu estado de primitiva ignorância e de inépcia. Isso tudo vem gerar as criaturas patéticas e repulsivas que tanto me chocaram em minha primeira viagem ao exterior.

— Qual sua opinião a respeito da educação convencional? Que pensa da instrução básica do ensino, das matérias indispensáveis e das habilidades intelectuais? Seu método de ensino é o mesmo que o nosso?

— Nosso método apenas será utilizado por vocês daqui a uns dez ou quinze anos. Tomemos a Matemática como exemplo. Historicamente o seu início se deu com a elaboração de proveitosas mágicas que foram elevadas até o plano da metafísica e finalmente explicadas em termos de transformações lógicas e estruturais. Em nossas escolas, invertemos o processo histórico. Começamos com a estrutura e a lógica, excluímos a metafísica e passamos diretamente dos princípios gerais para a aplicação prática.

— E as crianças são capazes de compreender isso?

— Compreendem melhor do que se fossem iniciadas em trabalhos de utilidade imediata. A partir dos cinco anos de idade qualquer criança inteligente aprende praticamente tudo, desde que lhe seja apresentado sob a forma de jogos e de quebra-cabeças. Ao brincarem, compreendem o sentido das coisas com incrível rapidez. Isso feito, podemos passar às aplicações práticas. Com esse método de ensino a maioria das crianças pode aprender na metade do tempo um número de coisas três vezes maior e de um modo quatro vezes mais completo. Consideremos outro campo onde possam ser usados jogos para incutir a compreensão dos sistemas básicos. Todo pensamento científico é feito em termos de probabilidades. As velhas e eternas verdades não são mais que grandes verossimilhanças. As leis imutáveis da natureza apenas são valores estatísticos médios. Qual o modo de fazer com que as crianças aprendam as noções de coisas tão pouco evidentes? Ensinando-lhes a jogar roleta, girar moedas, fazer sorteios, jogar cartas, dados e jogos de tabuleiro.

— O jogo mais popular entre os menores é «cobras e escadas giratórias» — disse Mrs. Narayan. — Outro grande favorito é o das «felizes famílias de Mendel».

— Mais tarde aprendem um ainda mais complicado, jogado por quatro pessoas, com um baralho de sessenta cartas especialmente desenhadas e divididas em três naipes — acrescentou Mr. Menon. — É chamado «bridge psicológico». A sorte está nas mãos do jogador, mas o jogo requer habilidade e capacidade para o blefe.

— Psicologia, mendelismo, evolução… Seu sistema educacional parece ser profundamente biológico — disse Will.

— E o é, realmente — concordou Mr. Menon. — Insistimos principalmente nas ciências da vida e não na física ou química.

— Por questão de princípios?

— Não somente por isso, mas também devido às nossas conveniências e necessidades econômicas. Não dispomos dos grandes recursos financeiros indispensáveis à pesquisa em larga escala no campo da física ou da química. Além disso, não há nenhuma utilidade prática para nós no empreendimento dessas pesquisas. Não possuímos indústria pesada para motivar qualquer espécie de competição. Não temos armamentos e por isso não podemos nos ocupar em torná-los ainda mais diabólicos. Também não nos anima o menor desejo de aterrissar do outro lado da Lua. A nossa única e modesta ambição é de que, nesta ilha e nesta latitude deste planeta, possamos viver, como seres humanos «integrais», em perfeita harmonia com a vida que nos cerca. Quando quisermos ou quando nossos meios nos permitirem, aplicaremos os resultados de nossas experiências físicas e químicas em proveito próprio. Enquanto isso, concentraremos nossos esforços naquilo que nos promete maiores benefícios: na ciência da vida e da mente. Se os políticos dos países recém-independentes tivessem bom senso, também fariam o mesmo. Mas o poder é o que lhes interessa realmente. Querem exércitos, querem se emparelhar com os motorizados e viciados da televisão da América e da Europa. Vocês não têm outra escolha. Então irreparavelmente comprometidos com a física e a química aplicadas e com todas as suas funestas conseqüências militares, políticas e sociais. Mas os países subdesenvolvidos não estão comprometidos. Não têm que seguir esse exemplo, pois ainda dispõem de liberdade para escolher o nosso caminho: o caminho da biologia aplicada, da natalidade controlada, da produção limitada e da industrialização seletiva, que só é possível quando se controla a natalidade. É o caminho que leva à felicidade e que vem de dentro de nós, através da saúde, do conhecimento e da mudança de atitude em face do mundo. Não é aquela miragem da felicidade exterior e que é adquirida à custa dos brinquedos, das pílulas e das intermináveis distrações. Esses países poderiam escolher nosso caminho, porém não o fazem porque desejam ser exatamente iguais a vocês. Que Deus os ajude! Não há a menor possibilidade de que possam realizá-lo no curto espaço de tempo em que se propuseram, e por isso estão condenados à frustração e ao desapontamento. Seu destino será a miséria do colapso social, a anarquia e finalmente a desgraça de serem escravizados pelos tiranos. É uma tragédia perfeitamente previsível, mas continuam caminhando em direção a ela com os olhos bem abertos.

— E nada podemos fazer a respeito — ajuntou a diretora.

— Não podemos fazer nada, exceto continuar a fazer o mesmo que fizemos até agora, isto é, esperar que o exemplo de uma nação que achou o meio de ser humanamente feliz venha a ser imitado. Há muito poucas possibilidades de que isso venha a acontecer, mas pode ser que aconteça…

— A não ser que Rendang Maior aconteça primeiro.

— A não ser que uma Rendang Maior aconteça primeiro — concordou Mr. Menon gravemente. — Enquanto isso temos que continuar nosso trabalho, que consiste na educação. Há mais alguma coisa que o senhor gostaria de saber, Mr. Farnaby?

— Sim. Gostaria de saber muitas outras coisas. Por exemplo, quando começam a ensinar ciência?

— Damos as primeiras aulas de Ecologia quando começamos a ensinar a multiplicação e a divisão.

— Ecologia? Isso não é um pouco complicado?

— É exatamente por esse motivo que começamos logo a ensiná-la. Nunca se deve dar à criança a possibilidade de imaginar que as coisas possam existir isoladamente. Devemos mostrar-lhe logo de início as relações que existem entre as matas e os descampados, entre os poços e os cursos de água e entre as vilas e os campos que as rodeiam. Deve-se insistir muito nesse assunto.

— Deixe-me acrescentar — disse a diretora — que sempre ensinamos a ciência das relações juntamente com a ética das relações. A lei da natureza consiste num balanço perfeito entre o que se toma e aquilo que se dá. Em outras palavras, no equilíbrio. Se transportarmos este fato para o terreno da moralidade, essa deveria ser a lei entre as pessoas. Como já havia dito antes, as crianças têm facilidade em entender uma idéia que lhes é apresentada sob a forma de fábulas de animais e, por isso, contamos versões modernas das fábulas de Esopo, não usando os antigos mitos antropomórficos e sim verdadeiras fábulas ecológicas ricas em moral cósmica. Outra maravilhosa história para crianças é a história da erosão e por isso lhes mostramos fotografias do que aconteceu em Rendang, na Índia, na China, na Grécia, no Oriente, na África e na América, em todos os lugares onde as pessoas gananciosas e estúpidas tentaram tirar sem dar nada em troca, tentaram explorar sem amor ou compreensão. Se tratarmos bem a natureza, ela nos retribuirá do mesmo modo. Se, no entanto, tentarmos feri-la ou mesmo destruí-la, seremos inexoravelmente esmagados. Nesse «caldeirão de poeira», o «Faça aquilo que gostaria de receber» dispensa explicações. As crianças reconhecem e compreendem esse fenômeno com muito mais facilidade do que reconhecem uma família ou uma cidade corrupta. Os danos psicológicos não deixam cicatrizes e elas sabem tão pouco a respeito dos mais velhos… Não possuindo critérios para estabelecer comparações, sua tendência é tomar por certa mesmo a pior das situações e aceitá-la como se fosse parte da natureza das coisas. Enquanto isso, as diferenças entre quatro hectares de campos, quatro hectares de sarjetas e as tempestades de areia são bastante evidentes. A areia e a sarjeta são alegorias e, ao confrontá-las, torna-se fácil para a criança perceber a necessidade da conservação das coisas e daí vir a compreender a necessidade da preservação da moralidade. Torna-se fácil fazê-las entender os conceitos morais em relação às plantas, aos animais e à terra que os mantém. Depois disso, é fácil transpor esses conceitos para as relações entre os seres humanos. Aí está outro ponto importante: ao deixar os fatos da ecologia e as parábolas da erosão, a criança atinge uma ética universal. A Natureza não tem «povo eleito», «terras santas» ou «revelações raras de história». A moralidade e a conservação não justificam sentimentos de superioridade ou reivindicação de quaisquer privilégios especiais. O conceito «Faça aquilo que gostaria de receber» se aplica em nossas relações com todas as espécies de vida nas várias partes do mundo. Somente teremos permissão de viver neste planeta enquanto tratarmos a Natureza com inteligência e compaixão. A ecologia elementar nos leva diretamente ao Budismo elementar.

Após alguns momentos de silêncio, Will disse:

— Apenas há algumas semanas li o livro de Thorwald sobre o que aconteceu na Alemanha Oriental, entre os meses de janeiro e maio de 1945. Algum de vocês por acaso teve ocasião de lê-lo?

Ambos balançaram negativamente a cabeça.

— Então não o façam — aconselhou Will sorrindo irônica e ferozmente. — Estive em Dresden após o bombardeio de fevereiro. Numa só noite, cerca de cinqüenta a sessenta mil civis, na sua maioria refugiados que tentavam escapar aos russos, foram queimados vivos. Tudo isso porque nunca ensinaram ecologia e os primeiros preceitos da conservação ao “pequeno Adolf’’. O acontecimento foi tão bárbaro que é preferível fazer humorismo a discuti-lo seriamente.

Mr. Menon levantou-se e apanhou a pasta.

— Devo ir agora. — Apertando a mão de Will, disse do prazer que tivera em conhecê-lo e que fazia votos de que gostasse da estada em Pala. — Tudo que quiser saber a respeito da educação palanesa — acrescentou — basta que pergunte a Mrs. Narayan. Não encontrará um guia e instrutor que a possa exceder em atributos.

— O senhor gostaria de visitar alguma sala de aula? — perguntou Mrs. Narayan após a saída do subsecretário.

Will levantou-se e, saindo da sala, acompanhou-a através de um longo corredor.

Abrindo uma das portas a diretora disse:

— Matemática. Esta é a 5a série superior, dirigida por Mrs. Anand.

Ao ser apresentado, Will curvou-se respeitosamente. A professora de cabelos brancos deu-lhe um sorriso de boas-vindas e sussurrou:

— Como o senhor pode observar, estamos imersos num problema.

Will olhou em torno. Sentados em carteiras, rapazolas e mocinhas, com os cenhos franzidos, mordendo os lábios em profundo silêncio, estavam concentrados sobre os cadernos. As cabeças inclinadas eram escuras e lustrosas. Acima dos calções brancos ou cáqui e das saias de colorido alegre, os corpos dourados brilhavam no calor. Os rapazolas mostravam o gradeado costal abaixo da pele. Os corpos das mocinhas, mais cheios e delicados, mostravam a intumescência dos pequenos seios, rígidos, altos e elegantes, como se tivessem sido criados por um escultor de ninfas da época do rococó. Todos sentiam-se inteiramente à vontade. Que conforto, pensou Will, viver num lugar onde a «queda» não era mais do que uma doutrina desacreditada!

Enquanto isso, Mrs. Anand estava explicando, sotto voce, a fim de não distrair a atenção dos alunos. Ela sempre dividia as classes em dois grupos. Num ficavam os do tipo «visual», aqueles que, como os antigos gregos, pensavam em termos geométricos. Os «não-visuais», aqueles que preferiam a álgebra e as abstrações, constituíam o outro grupo. Com alguma relutância, Will deixou de prestar atenção à beleza de um mundo não-destruído e que ali estava representado por aquele grupo de corpos jovens e se resignou a demonstrar um interesse inteligente pela diversidade humana e pelo ensino da Matemática.

Finalmente saíram da sala. Na porta vizinha, numa sala azul— clara, decorada com quadros de animais dos trópicos, de Bodhisattva e dos seus peitudos shaktis, a 5a série inferior estava tendo uma das aulas bissemanais de Filosofia Elementar Aplicada. Os seios eram menores, os braços mais finos e menos musculosos; somente há um ano haviam emergido da infância.

— Os símbolos são públicos — estava dizendo um homem ainda jovem próximo ao quadro-negro, no momento em que Will e Mrs. Narayan entraram na sala. Desenhou uma série de pequenos círculos e escreveu os números 1, 2, 3, 4 e a letra n. — Estes números representam o povo — explicou. Depois, partindo de cada um dos pequenos círculos, desenhou uma linha que os ligava a um quadrado existente à esquerda do quadro-negro. Escreveu um S no centro do quadrado. — Se o sistema de símbolos que o povo usa quando quer conversar entre si. Todos falam a mesma língua: inglês, palanês, esquimó, dependendo do local onde vivem. As palavras são públicas. Pertencem a todos os que falam uma determinada língua. Estão catalogadas nos dicionários. Observemos agora o que está acontecendo lá fora — dizendo isso, apontou para uma janela aberta. Sobre o fundo branco de uma nuvem, meia dúzia de ruidosos papagaios voavam em nossa direção e, após passarem por trás de uma árvore, desapareceram no horizonte. O professor desenhou um segundo quadrado do lado oposto do quadro, marcou-o com a letra A (para designar «acontecimento») e ligou-o aos círculos por meio de linhas. O que acontece lá fora é público, ou pelo menos bastante público — disse ele. — Quando alguém fala ou escreve, isso também é público. Mas as coisas que ocorrem no interior destes pequenos círculos são individuais. Individuais.

Pondo a mão sobre o peito, repetiu:

— Individual. — Friccionou a testa e disse: — Individual.

— Tocou as pálpebras e a ponta do nariz com o indicador escuro. — Agora vamos fazer uma experiência simples: digam a palavra «beliscar».

— Beliscar — disse a classe em uníssono. — Beliscar…

— B-E-L–I-S-C-A-R, beliscar. Isso é uma palavra pública. Todos podem procurá-la no dicionário. Mas agora quero que vocês se belisquem. Com força! Com mais força!

Com um acompanhamento de risos, de «ais» e de «uis», as crianças cumpriram a ordem que lhes foi dada.

— Pode alguém sentir aquilo que seu vizinho está sentindo?

Seguiu-se um coro de «nãos».

— Parece que embora haja… Vamos ver quantos somos?

— disse o professor correndo os olhos pelas carteiras à sua frente. — Parece que houve vinte e três dores diferentes e independentes. Vinte e três somente nesta sala. Quase três bilhões em todo o mundo, sem acrescentarmos as dores de todos os animais. Cada uma delas é estritamente individual. Não há nenhum mo— do de transferir a experiência de um centro da dor para outro. Nenhuma comunicação a não ser indiretamente, através do S. — Dizendo isso, apontou para o quadrado à esquerda do quadro— negro e depois para os círculos do centro. — Dores individuais aqui em 1, 2, 3, 4 e n. Notícias a respeito de dores individuais em S, onde você pode dizer «beliscar», que é uma palavra pública, catalogada no dicionário. Prestem atenção a isso: exige somente uma palavra pública, «dor», para designar os três bilhões de experiências individuais, embora cada uma delas possa diferir tanto da outra quanto meu nariz difere do de vocês, e como o nariz de cada um de vocês difere do nariz do outro. Uma única palavra define coisas e acontecimentos que pela sua natureza se assemelham entre si. Esta é a razão pela qual a palavra é pública. E, sendo pública, é impossível que abranja todas as múltiplas variantes de um mesmo acontecimento.

Seguiu-se um silêncio, após o qual o professor levantou os olhos e perguntou:

— Alguém sabe alguma coisa sobre Mahakasyapa?

Muitas mãos se levantaram. Ele apontou com o dedo para uma menina de saia azul e de colar de conchas, que estava sentada na primeira fila.

— Conte-nos alguma coisa, Aniya.

Nervosa e com voz ciciada, Amiya começou:

— Mahakasyapa foi o único dos discípulos de Buda que compreendeu o que ele dizia — disse na sua pronúncia defeituosa.

— E a respeito de que ele falava?

— Ele não estava conversando e foi por isso que os discípulos não o entenderam.

— Todavia, Mahakasyapa compreendeu o que Buda dizia, embora ele não estivesse pregando, não é verdade?

A menina concordou com um aceno de cabeça.

— Foi exatamente assim. Todos pensavam que ele ia fazer um sermão, mas ele não o fez. Somente apanhou uma flor e levantou-a para que todos a vissem.

— Isso foi o sermão — gritou um menino de tanga amarela e que se mexera durante todo o tempo no banco, contendo a custo o desejo de mostrar o que sabia.

— Mas ninguém entendeu aquele tipo de sermão, somente Mahakasyapa — insistiu a menina.

— Que disse Mahakasyapa quando Buda levantou a flor?

— Nada — gritou em triunfo o menino de tanga amarela.

— Limitou-se a sorrir — disse Amiya. — E isso mostrou a Buda que havia entendido. Retribuiu o sorriso e ambos se sentaram sorrindo.

— Muito bem — disse o professor. — E agora vamos ouvir o que você pensa que Mahakasyapa entendeu — falou, dirigindo— se ao menino de tanga amarela.

Após um curto silêncio, a criança, de crista caída, balançou a cabeça.

— Não sei — murmurou.

— Alguém sabe?

Houve uma série de conjeturas: talvez tivesse entendido que o povo fica enfastiado com sermões, mesmo com os sermões de Buda; talvez gostasse tanto de flores quanto o Compassivo gostava; talvez fosse uma flor branca que o tivesse feito pensar na Grande Luz; ou talvez fosse azul, a cor de Xiva…

— Boas respostas — disse o professor. — Especialmente a primeira. Os sermões são terrivelmente maçantes, principalmente para o pregador. Contudo, uma pergunta ficou sem resposta. Se qualquer uma das respostas que vocês deram tivesse correspondido àquilo que Mahakasyapa entendeu quando Buda levantou a flor, por que será que ele não usou tantas palavras para explicá-lo?

— Talvez não fosse um bom orador — disse Amiya na sua pronúncia defeituosa.

— Era um excelente orador.

— Talvez estivesse com dor de garganta.

— Se estivesse com dor de garganta, não sorriria tão prazerosamente.

— Diga-nos — pediu uma voz trêmula vinda do fundo da sala.

— Diga-nos — repetiu uma dúzia de vozes.

O professor balançou a cabeça.

— Se Mahakasyapa e o Compassivo não conseguiram traduzir em palavras, como poderei fazê-lo? Vamos dar outra olhada nesses diagramas que estão no quadro-negro. Palavras públicas, acontecimentos maiores, menos públicos. Finalmente o povo. Centros inteiramente individuais de dor e de prazer. Completamente individuais? Talvez não seja de todo verdadeiro. É possível que, apesar de tudo, exista alguma espécie de comunicação entre os círculos, não através das palavras, como estou me comunicando com vocês neste momento. É possível que isso aconteça de um modo direto. Pode ser que tenha sido isso que Buda quis dizer naquele sermão sem palavras, no qual levantou a flor. «Possuo o tesouro dos ensinamentos sem erros», disse aos discípulos, «o maravilhoso espírito de nirvana, a ausência de forma da forma verdadeira, excedendo o poder das palavras, o ensinamento a ser ministrado e a ser recebido de uma fonte estranha a qualquer das doutrinas. Isto entreguei agora a Mahakasyapa».

Apanhando novamente o giz, traçou uma elipse rudimentar com que envolveu dentro dos seus limites todos os outros diagramas existentes no quadro-negro: os pequenos círculos representando os seres humanos, os quadrados identificando os acontecimentos e os outros que se destinavam às palavras e aos símbolos.

— Todos separados e, no entanto, únicos — disse. — Povo, acontecimentos, palavras: manifestações do Espírito, da Semelhança e do Vazio. O que Buda queria dizer e o que Mahaka— syapa entendeu foi que uma pessoa não pode transmitir esses ensinamentos. Uma pessoa pode somente senti-los. E isso, todos vocês terão oportunidade de descobrir quando chegar o momento da Iniciação.

— Está na hora de sairmos — sussurrou a diretora.

Quando a porta se fechou e se achavam no corredor, disse a Will:

— Usamos este mesmo tipo de introdução no ensino da ciência, começando com a botânica.

— Por que com a botânica?

— Porque pode ser facilmente relacionada ao assunto que estava sendo ensinado: a história de Mahakasyapa.

— É esse o ponto de partida?

— Não. Começamos muito prosaicamente com o manual. Todos os fatos óbvios e elementares são fornecidos às crianças em arquivos padronizados e cuidadosamente organizados. Botânica não diluída (este é o primeiro estágio) e ensinada em seis ou sete semanas. Depois disso, passam uma manhã no que chamamos «construção de ponte». Durante duas horas e meia tentamos fazer com que relacionem tudo o que aprenderam nas lições anteriores com a arte, com a linguagem, com a religião e com o autoconhecimento.

— Como conseguem estabelecer uma ponte entre a botânica e o autoconhecimento?

— É muito simples — assegurou-lhes Mrs. Narayan. — Cada criança recebe uma flor comum, o hibisco, por exempo. A gardênia é ainda melhor que o hibisco, porque este não tem perfume. Cientificamente falando, o que é uma gardênia? De que se compõe? Pétalas, estames, pistilo, ovário e todo o resto. Pede-se às crianças que façam por escrito uma descrição analítica da flor e que ilustrem o trabalho com um desenho cuidadoso. Quando o trabalho está terminado, há um pequeno período de repouso, ao fim do qual a história de Mahakasyapa é lida e se pede a todos que pensem sobre ela. Buda estava dando uma lição de botânica? Ou estava ensinando outra coisa aos discípulos? Neste caso, o que estaria ensinando?

— O que estaria ensinando?

— A história deixa bem claro que não há resposta que possa ser traduzida em palavras. Assim, dizemos aos jovens para deixarem de pensar e para se limitarem a olhar. Mas que não olhem tentando analisar, advertimos. Que não olhem como se fossem cientistas nem tampouco como simples jardineiros. Que se libertem de tudo o que sabem e olhem com a mais completa inocência para esta coisa infinitamente improvável que têm diante deles, como se nunca tivessem visto nada semelhante: uma coisa anônima e não pertencente a nenhuma classe conhecida. Que olhem com o espírito vivo. Que olhem passivamente, com receptividade, sem procurar dar um nome, sem julgar ou comparar. E que, enquanto olham, procurem aspirar seu mistério e inalar o espírito do bom senso, bem como o perfume da Sabedoria e da Outra Margem.

— Tudo isso se assemelha bastante àquilo que o dr. Robert dizia na cerimônia de Iniciação — comentou Will.

— É verdade — disse Mrs. Narayan. — Aprender a aceitar o ponto de vista de Mahakasyapa a respeito das coisas é a melhor preparação para a experiência com o moksha. Toda criança, antes de ser iniciada, recebe uma longa educação na arte de como se tornar receptiva. A princípio, a gardênia como espécime botânico. Depois, a mesma gardênia é vista em toda a sua singularidade. É a gardênia sob o ponto de vista do artista, a gardênia ainda mais miraculosa, aquela que foi vista por Buda e Mahakasyapa. Não é necessário acentuar que não nos restringimos ao mundo das flores — acrescentou Mrs. Narayan. — Cada curso é entremeado por sessões periódicas de «construção de pontes». Tudo, desde as rãs dissecadas às nebulosas espirais, é encarado de modo receptivo e conceptual, como um fenômeno de experiência estética ou espiritual, e também em termos de ciência, de história e de economia. O treinamento na receptividade é o complemento e o antídoto ao exercício da análise e da manipulação dos símbolos. Ambas as espécies de treinamento são absolutamente indispensáveis. Se algumas das partes forem negligenciadas, você nunca se tornará um ser humano completo.

Houve um silêncio.

— Como deve uma pessoa olhar as outras? — perguntou Will finalmente. — Sob o ponto de vista de Freud ou de Cézanne? Com olhos de Buda ou de Proust?

Mrs. Narayan sorriu.

— Como o senhor me vê? — perguntou.

— Primeiramente penso que a vejo com os olhos do sociólogo. Vejo-a como uma representante de uma cultura estranha. Além disso, eu a estou sentindo receptivamente. Penso, espero que não se zangue com o que vou dizer, que a senhora envelheceu de modo singularmente bom. Inteiramente bom sob o ponto de vista estético, intelectual, psicológico e espiritual. E o fato de ter me tornado receptivo tem muita significação para mim. Enquanto preferir imaginar em vez de incorporar, posso conceber tudo como se fosse uma tolice — dizendo isso, deu uma gargalhada semelhante à das hienas.

— Se uma pessoa quiser, pode substituir uma idéia previamente admitida por um melhor critério de receptividade. Eu me pergunto: o que leva uma pessoa a fazer tal escolha? Por que a pessoa não ouve as duas partes e harmoniza seus pontos de vista? Não há infalibilidade no conceito do analista apegado às tradições e fazedor de conceitos, nem tampouco na passividade alerta do introspectivo-receptivo. Mas, trabalhando em conjunto, podem executar um serviço razoavelmente bom.

— Qual a eficiência do seu treinamento na arte de fazer com que as pessoas se tornem receptivas?

— Existem vários graus de receptividade. Se tomarmos a ciência como exemplo, veremos que ela se inicia com a observação, que é sempre seletiva. Desse modo, a receptividade existente na ciência é muito pequena. O mundo tem que ser visto através de uma gelosia como um conjunto de conceitos projetados. Todavia, quando se toma o moksha, os conceitos deixam de existir quase instantaneamente. Essa experiência deve ser absorvida e não imediatamente colhida e classificada. É como aquele poema de Wordsworth: Traga consigo um coração que observa e recebe… Nas sessões de «construção de pontes» existe muita seleção e projeção, porém em proporções menores do que nas aulas de ciência que as precederam. As crianças não se transformam subitamente em miniaturas de Tathagata, tampouco adquirem aquela receptividade pura que vem com o moksha. Longe disso. Tudo que podemos afirmar é que aprendem a ter cuidado com os nomes e com os ensinamentos. Por um curto período de tempo, assimilam muito mais do que dão.

— O que é que as obrigam a fazer com aquilo que assimilaram?

— Nos limitamos a pedir que tentem fazer o impossível — respondeu Mrs. Narayan. — Pedimos que traduzam em palavras as suas experiências. Qual o significado desta flor, desta rã dissecada e deste planeta que vemos através do telescópio, se o encararmos como simples fragmento de dádivas ainda não concebidas? O que dizem aos seus sentidos e à sua imaginação? Que sentimentos e lembranças despertam? Tentem escrever tudo isso. É claro que não obterão o sucesso desejado, mais insistam, pois isso os ajudará a compreender a diferença entre as palavras e os acontecimentos, entre o que é ter conhecimento das coisas e estar familiarizado com elas. Nós lhes dizemos ainda: «Quando terminarem de escrever, olhem novamente a flor, fechem os olhos por um ou dois minutos e procurem desenhar o que lhes veio à mente enquanto estavam de olhos fechados». Dizemos que desenhem qualquer coisa que tenham visto: algo vago ou vívido, parecido com a flor ou completamente diferente. Que desenhem e pintem, com tintas ou com lápis de cor, tudo aquilo que viram e também o que não viram. Ao terminarem, dizemos que descansem novamente e que façam depois a comparação entre o primeiro e o segundo desenho. Comparem a descrição científica da flor com aquilo que escreveram a seu respeito enquanto ainda não haviam analisado o que viam e, por isso, procediam como se nada soubessem a respeito da flor e se limitavam a permitir que o mistério da sua existência vinda do nada chegasse até eles. Ao confrontarem as suas interpretações escritas e desenhos com os dos outros colegas de classe, notarão que as descrições analíticas, bem como as ilustrações, são muito parecidas entre si, enquanto na outra espécie de desenhos e descrições são muito diferentes. Como é que tudo isso se relaciona com as coisas que aprenderam na escola, em casa, na selva e no templo? Formulamos dezenas de questões nesse sentido, todas bastante insistentes. As «pontes» devem ser construídas em todas as direções. Se começarmos com a botânica ou qualquer outro assunto do currículo escolar, no término de uma sessão de «construção de pontes» estaremos pensando a respeito da natureza da linguagem, sobre diferentes tipos de experiências, sobre a metafísica e a conduta de vida, sobre o conhecimento analítico e sabedoria da Outra Margem.

— Como foi possível ensinar os professores dessas crianças a «construírem pontes»?

— Começamos a ensiná-los há cerca de cento e sete anos — respondeu Mrs. Narayan. — Foram criados cursos para homens e mulheres que já haviam sido educados nos moldes palaneses tradicionais. Isso significava que tinham aprendido boas maneiras, agricultura e artesanato industrial, misturados com a medicina caseira, a biologia e física das «velhas comadres», uma grande crença no poder mágico e na veracidade dos contos de fada. Não conheciam nada sobre ciência e história e ignoravam totalmente o que se passava no exterior. A única vantagem desses futuros professores residia no fato de serem budistas convictos. A maioria deles praticava a meditação e todos já haviam lido ou ouvido falar a respeito da filosofia do mahayana. Por conseguinte, nos campos da metafísica e da psicologia aplicadas, sua educação era muito mais completa do que a de qualquer grupo de futuros professores da sua parte do mundo. O dr. Andrew era um humanista antidogmático, educado cientificamente, que havia descoberto o valor do mahayana tanto na forma pura quanto na aplicada. Seu amigo, o rajá, era um budista tantrik que descobrira o valor da ciência pura e aplicada. Ambos viram com clareza que, para alguém ter a capacidade de ensinar as crianças a se tornarem seres humanos numa sociedade feita para permitir que seres humanos completos nela vivessem, o professor teria que aprender, antes de qualquer coisa, a aproveitar aquilo que os dois mundos tivessem de melhor.

— Qual foi a reação desses primeiros professores? Não houve nenhuma resistência aos novos métodos?

Mrs. Narayan meneou a cabeça negativamente:

— Não houve a menor resistência pelo simples fato de que nada realmente importante fora atacado. O budismo foi respeitado. Tudo o que se lhes pediu foi que deixassem de lado a ciência das «velhas comadres» e os «contos de fadas». Em troca receberam uma grande variedade de fatos do maior interesse, assim como as teorias mais úteis. De certo modo, as coisas excitantes da cultura, do poder e do processo do mundo ocidental tinham que ser associadas, e até certo ponto subordinadas, às teorias do budismo e aos fatos psicológicos da metafísica aplicada. Nesse programa do «melhor dos dois mundos» nada havia que ofendesse as suscetibilidades mesmo do mais sensível e ardente dos cultores religiosos.

— Tenho minhas dúvidas quanto aos nossos futuros professores — disse Will após um curto silêncio. — A esta altura dos acontecimentos, será que ainda têm capacidade de aprender a tirar o melhor dos «dois mundos»?

— Por que não? Não é necessário que abdiquem de qualquer coisa que seja realmente importante. Os nãos-cristãos poderiam continuar a pensar nos homens e os cristãos continuariam adorando a Deus. A única diferença é que Deus deve ser imaginado como Ser Imanente e o homem, um ser potencialmente auto-transcendente.

— E a senhora acha que eles fariam essas mudanças sem qualquer reclamação? — perguntou Will sorrindo. — É muito otimismo!

— Meu otimismo se baseia no fato de que, se alguém tentar resolver um problema com inteligência e realismo, os resultados têm todas as possibilidades, de serem bons — disse Mrs. Narayan. — O exemplo desta ilha justifica uma certa dose de otimismo. E agora vamos assistir a uma aula de dança.

Atravessaram um pátio sombreado por árvores e, passando por uma porta de vaivém, penetraram num recinto onde as batidas ritmadas de um tambor e os sons dos pífanos repetiam uma curta melodia pentatônica que Will achou vagamente parecida com uma cantiga escocesa.

— Trata-se de música mesmo ou é uma simples gravação — indagou Will.

— É uma gravação japonesa em fita — respondeu laconicamente Mrs. Narayan.

Abrindo uma segunda porta, penetraram numa grande sala de esportes onde dois jovens barbudos e uma senhora idosa, pequenina e extremamente ágil, usando longas calças de cetim preto, ensinavam os passos de uma dança alegre a um grupo de vinte ou trinta crianças.

— É alguma brincadeira ou faz parte do ensino?

— É uma mistura de ambos e também de ética aplicada. É semelhante aos exercícios de respiração de que falamos há pouco, porém muito mais eficazes porque são bem mais violentos.

— Esmaguemo-lo — cantavam as crianças em uníssono, enquanto pisoteavam com toda a força dos seus pequenos pés calçados de sandálias. — Esmaguemo-lo. — Após um furioso pisoteio final, deram início aos meneios e evoluções de um outro movimento da dança.

— Esta é chamada «dança rakshasi» — explicou Mrs. Narayan.

— Dança rakshasi? O que é isso? — indagou Will.

— Um rakshasi é uma espécie de demônio muito grande e desagradável. Ele personifica as paixões mais pavorosas. A dança rakshasi é um artifício usado para descarregar a energia acumulada pela ira e pelas frustrações naquelas cabecinhas perigosas.

«Esmaguemo-lo»… A música chegara novamente à parte do refrão: «esmaguemo-lo»…

— Batam novamente com os pés — gritou a professora de dança, dando o exemplo. — Com mais força! Mais!…

— O que foi que deu maior contribuição para a moralidade e para o comportamento racional? As orgias de Baco ou a República? As Éticas de Nicomaqueanas ou as danças coribânticas? — conjeturou Will.

— Os gregos — disse Mrs. Narayan — eram demasiadamente sensatos para pensar em termos de alternativas. Pensavam em termos de não, somente, mas e também. Não me refiro somente a Platão e Aristóteles, mas também às bacantes. Sem as danças vivas destinadas a aliviar as tensões, a moral filosófica teria sido impotente. Por outro lado, sem a moral filosófica, as danças vivas perderiam a significação. Nós nos limitamos a arrancar uma página do velho livro grego.

— Ótimo — disse Will, que como sempre (mesmo no auge do prazer e do entusiasmo) não conseguia esquecer que era um homem que nunca aceitava o «sim» com resposta. Lembrando-se disso, deu uma gargalhada. — Afinal de contas — disse —, isso não faz nenhuma diferença. O coribantismo não impediu que os gregos cortassem os pescoços uns dos outros. Se o coronel Dipa se decidir a entrar em ação, em que essa dança rakshasi poderá ajudá-los? Talvez somente sirva para auxiliá-los a se reconciliarem com o próprio destino.

— Concordo — disse Mrs. Narayan. — Todavia, para mim, o fato de possibilitar a reconciliação com o nosso próprio destino constitui uma realização heróica!

— Parece que a senhora admite o fato com muita calma.

— Qual seria a vantagem de uma atitude histérica? Nossa situação pessoal seria agravada e a situação política não melhoraria.

Esmaguemo-lo — tornaram a gritar as crianças em uníssono. E as tábuas tremiam com o bater dos pés. — Esmaguemo-lo.

— Não vá pensar que esta seja a única espécie de dança que ensinamos — prosseguiu Mrs. Narayan. — Dar nova direção às forças másculas de maus sentimentos é tarefa séria. Mas não menos importante é a missão de expressar a cultura e os bons sentimentos. Para esse fim, nos utilizamos de movimentos enérgicos e de gesticulação expressiva. Se o senhor tivesse vindo ontem, quando nosso mestre-visitador esteve aqui, eu poderia ter-lhe mostrado como ensinamos esse tipo de dança. Infelizmente hoje é impossível e ele não voltará antes de terça-feira.

— Que espécie de dança ele ensina?

Mrs. Narayan tentou descrever:

— Nada de saltos, nada de piruetas, nada de corridas. Os pés estão sempre firmes no solo. Os quadris e os joelhos executam movimentos de flexão e de lateralidade. Toda expressão é limitada aos braços, punhos, mãos, pescoço, cabeça, face e, sobretudo, aos olhos. Movimentos dos ombros para cima e para fora. Movimentos intrinsecamente belos e cheios de significação simbólica. É o pensamento adquirindo forma através de um ritual de gestos estilizados. É o corpo transformado num hieróglifo, numa sucessão de hieróglifos. E, do mesmo modo que na música e na poesia, essas atitudes dão formas às várias nuanças do nosso espírito. Movimentos dos músculos expressando o que se passa no consciente, traduzindo a penetração da Semelhança na multidão e levando essa mesma multidão até o Imanente, o Único e o Onipotente. É a meditação em ação. É a metafísica do mahayana, expressa não em palavras, mas através dos movimentos e gestos simbólicos — concluiu.

Saíram do ginásio por uma porta diferente daquela por onde haviam entrado e se dirigiram para a esquerda de um pequeno corredor.

— Quem vem a seguir?

— A 4a série elementar — respondeu Mrs. Narayan. — Eles estão às voltas com a Psicologia Elementar Aplicada. — Concluindo isso, abriu uma porta verde.

— Agora vocês já sabem — dizia uma voz que Will reconheceu. — Ninguém tem que sentir dor. Vocês já disseram a vocês mesmos que a alfinetada não doerá. E não doerá!

Entraram na sala. Muito alta, no meio de um grupo de pequenos corpos, alguns gordos, outros magros, porém todos de pele escura, lá estava Susila MacPhail. Após sorrir, apontou para duas cadeiras existentes num dos cantos da sala. — Ninguém tem que sentir dor. Mas não esqueçam: a dor sempre indica que alguma coisa está errada. Vocês aprenderam como eliminar a dor, mas não o façam sem antes se perguntarem: «Qual a razão desta dor?» E se for intensa e sem razão aparente, falem com suas mães, com seus professores ou com qualquer dos membros adultos do Clube de Adoção Mútua. Depois disso, eliminem a dor. Eliminem a dor, na certeza de que, se alguma coisa precisar ser feita, será feita. Compreenderam?

Depois de ter respondido a todas as perguntas, Susila continuou:

— Vamos brincar de faz-de-conta. Fechem os olhos e façam de conta que estão olhando aquele velho mainá de uma perna só que vem aqui diariamente em busca de alimento. Podem vê-lo?

Certamente que podiam. O mainá de uma só perna era indiscutivelmente um velho amigo.

— Vejam-no com a mesma nitidez com que o viram hoje na hora do almoço. Não fixem o olhar. Não façam nenhum esforço. Vejam somente o que chegar a vocês. Deixem o olhar passear do bico à cauda do pássaro, de seu olho redondo, pequeno e brilhante até sua única perna cor-de-laranja.

— Posso ouvi-lo — disse espontaneamente uma menina. — Ele está dizendo: «karuna, karuna».

— É mentira — disse outra criança com indignação. — Está dizendo: «Atenção!»

— Ele está dizendo as duas coisas — afiançou-lhes Susila.

— É possível que esteja dizendo muitas outras palavras. Mas agora iremos fazer alguns exercícios práticos. Imaginem que existem dois mainás de uma só perna. Três mainás de uma só perna. Quatro mainás de uma só perna. Vocês podem vê-los?

As crianças disseram que sim.

— Quatro mainás de uma só perna. Um em cada canto de um quadrado e um quinto no meio. Agora mudemos as cores deles. No momento todos são brancos. Cinco mainás brancos com cabeças amarelas e uma perna cor-de-laranja. Agora as cabeças são de um azul vivo e o resto é cor-de-rosa. Cinco pássaros cor-de-rosa com as cabeças azuis. Eles continuam mudando de cor. Agora todos são vermelhos. Cinco pássaros vermelhos com as cabeças brancas. Cada um deles com uma perna verde-clara. Que está acontecendo, meu Deus? Não são cinco mainás! São dez. São vinte, cinqüenta, cem. Centenas e centenas. Vocês podem vê-los?

— Alguns conseguiam vê-los sem maiores dificuldades, e para aqueles que não podiam Susila fazia proposições mais modestas.

— Imaginem doze deles — disse. — Se acharem que doze é muito, pensem em dez ou em oito, que é uma quantidade apreciável de mainás. — Quando todas as crianças acabaram de invocar a quantidade de mainás que tinham capacidade de imaginar, ela bateu palmas e disse: — Todos desapareceram. Todos, sem nenhuma exceção. Não há mais nada aqui. Agora vocês vão deixar de ver mainás. Vocês vão me ver. Eu, representada em amarelo. Duas figuras minhas em verde. Três em azul com manchas cor-de-rosa. Quatro no vermelho mais brilhante que já viram. — Bateu palmas novamente. — Desapareceu tudo. Desta vez pensem em Mrs. Narayan e nesse homem de aparência engraçada que entrou na sala com uma perna dura. Pensem em quatro de cada um deles. Imaginem que estão no grande pátio do ginásio. Imaginem que estão dançando a dança rakshasi. Esmaguemo-los! Esmaguemo-los!

Houve risos abafados. Os «Wills» e as «diretoras» deviam lhes ter parecido muito cômicos no papel de dançarinos.

— Livremo-nos deles! Desapareceram! Agora, cada um de vocês verá as próprias mães e pais. Três de cada um deles correndo no playground. Cada vez mais depressa. Mais depressa. Desapareceram… De repente, vocês voltam a vê-los. Estão, não estão. Estão, não estão…

As risadinhas se transformaram em fortes gargalhadas e, no meio dos risos, soou uma campainha. A aula de Psicologia Elementar Aplicada estava encerrada.

— Qual é o objetivo de tudo isto? — perguntou Will a Susila, depois que as crianças foram brincar e de Mrs. Narayan ter voltado para seu gabinete.

— O objetivo é fazer as pessoas compreenderem que não estão completamente à mercê da memória e das fantasias — respondeu Susila. — Se o que pensamos nos perturba, podemos tomar algumas providências. Tudo é uma questão de aprender como fazer e se exercitar; o processo é o mesmo de quando se aprende a escrever ou a tocar flauta. As crianças que estavam aqui há pouco aprendiam uma técnica muito simples e que mais tarde é desenvolvida a fim de se tornar um método de liberação. Não uma liberação completa, é claro, porém «meio pão é bem melhor do que nenhum». Essa técnica não conduz à descoberta da natureza de Buda, mas pode ajudá-lo a se preparar para essa descoberta. E esse auxílio talvez consista na liberação de cada uma das lembranças dolorosas que o perseguem, dos remorsos e das apreensões infundadas quanto ao futuro.

— Perseguição é a palavra certa — concordou Will.

— Mas não é necessário que sejamos perseguidos. Alguns dos «fantasmas» podem ser destruídos com a maior facilidade. Se os tratarmos do mesmo modo como tratamos os mainás, a você e a Mrs. Narayan. Troque suas roupas, dê-lhes outro nariz. Multiplique-os. Diga-lhes que se vão. Chame-os de volta e obrigue-os a fazer algo ridículo. Somente então destrua-os. Pense no que poderia ter feito a respeito do que sentia por seu pai se alguém lhe tivesse ensinado, na infância, alguns truques simples! Você o pintava como o mais terrível dos papões! Isso, porém não era necessário. Usando sua imaginação poderia ter transformado o papão num ser ridículo e mesmo num conjunto de seres ridículos. Vinte deles, sapateando e cantando Sonhei que morava em salões de mármore. Com apenas um pequeno curso de Psicologia Elementar Aplicada, toda a sua vida poderia ter sido diferente.

Enquanto se dirigiam para o local onde o jipe estava estacionado, Will pensava na maneira pela qual se conduzira quando da morte de Molly. Que espécies de exorcismos imaginários poderia ter praticado naquele alvo súcubo que cheirava a almíscar e encarnava os seus frenéticos e repugnantes desejos?

Nesse momento chegaram perto do jipe. Will deu as chaves a Susila e procurou ajeitar-se no banco. Como se uma compulsão neurótica o obrigasse a ser ruidoso a fim de compensar a sua diminuta estatura, um carro pequeno e antigo, vindo da aldeia, enveredou pela estrada e estacionou ao lado do jipe.

Voltando-se para olhá-lo, viram Murugan debruçado à janela do «baby Austin» real. A seu lado, grande e ondeada como se fosse uma nuvem de musselina branca, estava a rani.

Will cumprimentou-a com um gesto de cabeça, recebendo em troca o mais gracioso dos sorrisos, que logo se desvaneceu ao responder secamente o cumprimento de Susila.

— Vão passear? — indagou Will de modo cortês.

— Vamos até Shivapuram — respondeu a rani.

— Se essa «lata velha» não se desmanchar pelo caminho — ajuntou Murugan com amargura, ligando a chave de ignição. O motor deu um último soluço obsceno e parou de funcionar.

— Vamos visitar alguém — continuou a rani. — Alguém — acrescentou, num tom altamente conspirador.

Sorrindo para Will, quase chegou a piscar-lhe o olho.

Fingindo não entender que ela se referia a Mr. Bahu, Will pronunciou um «Muito bem» não muito comprometedor e, mudando de assunto, passou a compadecer-se com os trabalhos e preocupações que ela teria que suportar com os preparativos da festa de maioridade de Murugan, que ocorreria na semana seguinte.

Murugan interrompeu-o com uma pergunta:

— Que está fazendo por aqui?

— Passei a tarde observando de perto o sistema educacional palanês.

— A educação palanesa — ecoou a rani. Repetiu as palavras balançando tristemente a cabeça. — Educação… palanesa…

— Gostei imensamente de tudo o que me foi dito ou mostrado por Mr. Menon, pela diretora, e do modo como Mrs. MacPhail ensina a Psicologia Elementar Aplicada — disse ele, tentando fazer com que Susila participasse da conversa.

Continuando propositadamente a ignorá-la, a rani apontou um dedo grosso e acusador em direção aos espantalhos que eram vistos no campo que ficava pouco abaixo de onde estavam.

— O senhor já viu isto, Mr. Farnaby?

Sim, ele os vira. E onde, a não ser em Pala, existem espantalhos que são ao mesmo tempo belos, eficientes e cheios de significação metafísica?

— E que, além de afastarem os pássaros das plantações de arroz, também afastam as crianças de Deus e de Suas Manifestações — disse a rani numa voz que vibrava com uma espécie de indignação soturna. — Escute — falou erguendo a mão.

Tom Krishna e Mary Sarojini haviam se reunido a um grupo de cinco ou seis companheiros e se divertiam em dar puxões nos cordéis que movimentavam as marionetes sobrenaturais. Do pequeno grupo vinha o som agudo de vozes que cantavam em uníssono. Ao repetirem a cantiga pela segunda vez, Will conseguiu distinguir as palavras:

Puxe, Puxe com força

Os deuses sacodem e balançam

Porém o céu continua imóvel…

— Bravo — disse Will sorrindo.

— Infelizmente isto não me diverte — disse severamente a rani. — Não é engraçado. É Trágico!

— Ouvi dizer que esses encantadores espantalhos foram invenção do bisavô de Murugan.

— O bisavô de Murugan foi um homem notável — disse a rani. — Notável pela inteligência, porém nem por isso menos perverso. Possuía dons preciosos, contudo os empregou mal! O que tornou as coisas ainda piores é que ele estava completamente impregnado de Falsa Espiritualidade.

— Falsa espiritualidade?

Will olhou para o enorme exemplar da «verdadeira espiritualidade» e conseguiu inalar, através do cheiro ainda quente dos derivados do petróleo, o perfume de sândalo tão semelhante ao do incenso e, como ele, tão extraterreno. Subitamente se surpreendeu em divagações e foi tomado por um arrepio ao imaginar a aparência que teria a rani se fosse inteiramente despida das suas vestes místicas e surgisse à luz do dia exibindo toda a sua exuberante obesidade. Usando a Psicologia Aplicada como vingança, ele a multiplicou em uma, duas, dez tríades de obesidades nuas.

— Sim, Falsa Espiritualidade — repetiu a rani. — Falava continuamente acerca de Libertação, mas por causa da sua obstinada recusa em seguir o Caminho Verdadeiro batalhou sempre em prol da Servidão. Fingindo humildade, seu coração era tão cheio de orgulho que recusava a admitir que existisse qualquer Autoridade Espiritual mais alta que a sua. Os Mestres, a Encarnação e a Grande Tradição nada significavam para ele. Nada! Por essa razão, existem agora estes horríveis espantalhos. Quando penso nessas Pobres e Inocentes Crianças que estão sendo deliberadamente pervertidas, a custo me contenho, Mr. Farnaby. A custo…

— Escute, mãe, se quisermos estar de volta até a hora do jantar é melhor que partamos agora — disse finalmente Murugan, após ter olhado várias vezes e com crescente impaciência seu relógio de pulso.

Seu tom era rude e autoritário. Era evidente que, pelo fato de se encontrar dirigindo um carro (mesmo um «baby Austin» senil) se considerava maior que a própria vida.

Sem esperar resposta da rani, ligou o motor, engrenou o carro e partiu após um ligeiro acenar de mão.

— Que bom que tenhamos nos livrado dela — disse Susila.

— Você não ama sua querida rainha?

— Não. Ela tem o condão de fazer meu sangue ferver.

— Então, esmaguemo-la! — cantou Will em tom de brincadeira.

— Você tem toda a razão! — concordou ela com uma gargalhada. — Infelizmente a ocasião não era própria para a dança rakshasi.

De repente seu rosto se iluminou com uma expressão travessa e, sem o menor aviso, ela deu um soco nas costelas de Will.

— Pronto! — disse. — Agora estou me sentindo bem melhor!

Загрузка...