Movendo com cuidado a perna imobilizada, Will desceu do carro e olhou em redor. Ao sul se erguiam elevados penhascos vermelhos e nas outras direções viam-se declives escarpados. A crista da cordilheira tinha sido nivelada e no centro desse estreito terraço se erguia o templo — uma grande torre vermelha maciça, quadrangular e dotada de suportes verticais. As montanhas haviam fornecido a matéria-prima para a construção e suas formas simétricas contrastavam com as rochas. Possuía a regularidade pragmática das coisas vivas e não a das abstrações euclidianas. Suas paredes ricamente trabalhadas e seus contornos arredondados se entrelaçavam e se estreitavam para formar uma espiral que terminava num anel de mármore. Sobre a cúpula achatada e multiarqueada, uma protuberância da mesma pedra vermelha — semelhante a um grande folheto — coroava o conjunto.
— Foi construída cinqüenta anos antes da conquista normanda — disse o dr. Robert.
— Parece que não foi construída pelo homem e sim que surgiu das rochas — comentou Will. — Assemelha-se a um botão de agave, cujo caule, ao atingir três metros de altura, tivesse explodido em flores.
— Olhe — disse Vijaya tocando seu braço. — Um grupo de alunos do curso básico está descendo.
Will olhou na direção das montanhas e viu que um jovem, calçando botas ferradas e usando trajes de alpinismo, tentava descer por uma garganta existente na encosta do precipício. Apoiando-se num ponto em que pôde repousar, o jovem atirou a cabeça para trás e emitiu o grito dos alpinistas. Quinze metros acima, outro rapaz surgira de trás de um contraforte de rochas e, deixando a saliência onde se apoiara, iniciou a descida.
— Não se sente tentado? — perguntou Vijaya dirigindo-se a Murugan.
Agindo como um adulto entediado e sofisticado, que tem coisas mais importantes com que se ocupar e que não se interessa por brincadeiras de criança, Murugan respondeu com um levantar de ombros:
— Nem um pouco.
Saindo de onde estava, sentou-se sobre um leão entalhado em madeira e gasto pelo tempo e, tirando do bolso uma revista americana ricamente encadernada, começou a ler.
— Que é que está lendo? — perguntou Vijaya.
— Ficção científica — respondeu Murugan, em tom de desafio.
— Tudo o que lhe permita fugir à realidade — comentou sorrindo o dr. Robert.
Fingindo não ter ouvido, Murugan virou uma página e continuou a ler.
— Ele é muito bom — disse Vijaya, que estava observando os progressos do jovem alpinista. — Na extremidade de cada corda há um homem experimentado — esclareceu. — Você não pode vê-lo porque está atrás daquele contraforte, dez a doze metros acima. Existe um espigão de ferro fixado na rocha, onde a corda é amarrada. Todo o grupo pode cair sem que nada de grave aconteça.
Com as pernas abertas e os pés apoiados nas encostas da estreita garganta, o chefe do grupo os encorajava e dava instruções em altas vozes. À medida que o rapaz se aproximava, ele cedia seu lugar, descia uns sessenta metros, parava e emitia o grito dos alpinistas. Usando botas e calças compridas, uma mocinha alta e de tranças surgiu de trás do contraforte e começou a descer.
— Excelente — disse Vijaya, observando-a.
Enquanto isso, de uma construção baixa, existente no sopé do rochedo — uma versão tropical de uma cabana dos Alpes —, um grupo de jovens saíra para observar o que estava acontecendo.
Will foi informado de que pertenciam aos outros três grupos de alpinistas que tinham se submetido, algumas horas antes, ao Exame Pós-elementar.
— O melhor grupo recebe algum prêmio? — perguntou Will.
— Ninguém ganha nada — respondeu Vijaya. — Isto não é uma competição; se você quer saber, se assemelha muito mais a uma provação.
— Uma provação que marca o fim da infância e o ingresso na adolescência — explicou o dr. Robert. — Uma provação que os ajudará a compreender o mundo onde têm de viver e que os fará sentir a onipresença da morte e a precariedade fundamental de toda a existência. À provação segue-se a revelação. Dentro de alguns minutos esses rapazes e essas mocinhas terão sua primeira experiência com o moksha. Assistirão em conjunto a uma cerimônia religiosa no templo.
— Algo semelhante à confirmação?
— Difere da confirmação por ser mais do que uma simples peça do palavrório teológico. Graças ao moksha, foi incluída uma experiência da «coisa» real.
— A «coisa» real? — perguntou Will meneando a cabeça. — Gostaria de acreditar que isso existe.
— Ninguém está lhe pedindo para acreditar — disse o dr. Robert. — A «coisa» real não é uma proposição. É um modo de ser. Não ensinamos nenhum credo às nossas crianças. Também não as perturbamos emocionalmente com cargas simbólicas. Quando chega o tempo em que devem aprender as verdades mais profundas da religião, mandamos que escalem um precipício e depois disso lhes damos quatrocentos miligramas de revelação. Duas experiências de primeira mão sobre o que é a realidade, através das quais qualquer rapaz ou moça dotado de inteligência mediana pode tirar boas conclusões sobre a razão de ser das coisas.
— Convém que o velho e querido problema do poder não seja esquecido — disse Vijaya. — O alpinismo é um preventivo à tirania.
— Na sua opinião, meu pai deveria ter sido um alpinista, além de lenhador?
— Isso pode lhe parecer engraçado — respondeu Vijaya, rindo. — Mas o fato é que funciona. Funciona realmente! Posso dar-lhe o meu caso como exemplo. Até agora, consegui resistir a todas as tentações de impor meus desejos. Garanto-lhe que as tentações foram tão fortes quanto esses desejos…
— Parece existir somente um problema — disse Will. — Nesse processo de se livrar das tentações, você pode cair… —
Lembrando-se do que acontecera a Dugald MacPhail, deixou a frase inacabada.
Foi o dr. Robert quem a terminou:
— Poderia cair e morrer. Dugald estava escalando sozinho — disse após uma pausa. — Ninguém sabe o que aconteceu. Seu corpo só foi encontrado no dia seguinte.
— Mesmo assim, continua achando que o alpinismo seja uma boa idéia? — perguntou Will, apontando com seu bordão de bambu para as minúsculas figuras que se arrastavam com dificuldade nas ermas escarpas de rocha nua.
— Ainda assim acho que é uma boa idéia — respondeu o dr. Robert.
— Mas a pobre Susila…
— É verdade. Pobre Susila. Pobre Lakshmi. Pobre de mim. Mas se Dugald não tivesse o hábito de arriscar a vida, muitos outros poderiam ser infelizes por razões inteiramente diferentes. É melhor que uma pessoa seja atraída por perigos que podem matá-la do que ser tentada a matar os outros ou fazê-los infelizes. Ferir a outrem simplesmente porque um excesso de prudência ou de ignorância não permitiu que, na escalada de um abismo, a agressividade natural fosse extravasada. E, agora, quero lhe mostrar o panorama — disse em outro tom.
— Enquanto isso, irei conversar com as mocinhas e os rapazes. — Assim dizendo, Vijaya dirigiu-se para o grupo que estava no sopé dos penhascos vermelhos.
Deixando Murugan entregue à leitura da sua revista de ficção científica, Will acompanhou o dr. Robert através de uma porteira sustentada por pilares e cruzou a ampla plataforma de pedra que circundava o templo. Num dos ângulos dessa plataforma se erguia um pequeno pavilhão abobadado. Após entrarem, pararam junto a uma larga janela e olharam para fora. Na linha do horizonte, erguendo-se como uma sólida parede de jade e de lápis-lazúli, estava o mar. A uma íngreme escarpa de trezentos metros de profundidade, seguia-se o verde da selva. Além da selva, contrafortes e vales se desdobravam verticalmente. Campos incontáveis, dispostos como se fossem uma ampla escada construída por mãos humanas, cortavam-nos em sentido horizontal e as rampas inferiores se precipitavam num vasto planalto. À distância, parecendo inclinar-se entre as hortas e a praia franjada de palmeiras, surgia uma grande cidade que, do ponto privilegiado em que se encontravam, podia ser vista na plenitude de sua beleza. Parecia uma dessas cidades que se vêem nas minúsculas e delicadas pinturas dos livros de horas da Idade Média.
— Ali está Shivapuram — disse o dr. Robert. — Aquele conjunto de edifícios que se vê na montanha do outro lado do rio é o grande templo budista. É anterior a Borobudur e a escultura é tão delicada quanto a dos períodos mais recentes da índia.
Após um pequeno silêncio, continuou:
— Esta pequena casa de veraneio é o local onde costumávamos fazer os nossos piqueniques nos dias de chuva. Nunca me esquecerei do tempo em que Dugald (que devia ter dez anos) se divertia subindo na borda da janela, se equilibrava numa perna só, imitando uma atitude de Xiva dançarino. A coitada da Lakshmi ficava apavorada. Mas Dugald era um acrobata nato, o que torna seu acidente ainda mais incompreensível.
Balançou a cabeça e, depois de outro silêncio, prosseguiu:
— A última vez em que viemos até aqui foi há oito ou nove meses. Dugald estava vivo e Lakshmi ainda podia sair com os netos. Ele repetiu as acrobacias tipo Xiva para divertir Tom Krish— na e Mary Sarojini, e os seus braços se moviam com tanta rapidez que você juraria serem quatro.
O dr. Robert interrompeu a narrativa e, apanhando do chão um punhado de argila, atirou-o pela janela, dizendo:
— Queda, queda no espaço vazio… Pascal avait son gouffre. Como é estranho que o mais poderoso símbolo da morte seja ao mesmo tempo tão pleno de vida! — De repente o seu rosto se iluminou. — Viu aquele gavião? — perguntou.
— Um gavião?
O dr. Robert apontou para um ponto a meia distância entre o local em que estavam e as escuras copas das árvores, onde uma pequena encarnação de rapidez e rapinagem voava preguiçosamente em círculos, sem mover as asas.
— Faz-me recordar um poema que o velho rajá escreveu a respeito deste lugar — disse.
Você quer saber
O que penso estar
Fazendo nas alturas
Onde Xiva dança
Acima do mundo?
O gavião que sobre nós
Dardeja como uma seta negra
E que deixa atrás de si
Um grito agudo e um rastro cor de prata
É á única resposta para a pergunta
Sobre o que faço neste lugar.
Estamos muito longe das quentes planícies
Reprovadoramente distantes da nossa gente.
Apesar disso, sinto-me muito perto,
Pois daqui, entre o céu enevoado
E o mar que avistamos, de repente
Descubro os seus e os meus segredos.
E o segredo, eu o concebo
Como esse espaço vazio.
Em outras palavras, esse espaço vazio
É o símbolo da natureza de Buda,
Sempre em perigo.
Isso me faz lembrar…
Parou de declamar e olhou o relógio.
— Qual a próxima parte do programa? — perguntou Will quando saíram para a luz.
— O serviço do templo — respondeu o dr, Robert. — Os jovens alpinistas oferecerão a conclusão dos estudos a Xiva. Em outras palavras, às suas próprias imagens, que eles vêem como se fossem Deus. Após a cerimônia, começará a segunda parte da Iniciação: a experiência da auto-liberação.
— Com o auxílio do moksha!
O dr. Robert balançou a cabeça em sinal de afirmação.
— Seus chefes lhes dão o remédio antes que deixem a cabana da Associação de Alpinismo. De lá eles se dirigem para o templo e a droga começa a agir durante a cerimônia. Devo lhe dizer que a cerimônia é em sânscrito e, sendo assim, você não entenderá uma só palavra. Na qualidade de presidente da Associação de Alpinismo, Vijaya fará uma alocução em inglês. Eu também farei uma e na conversação dos jovens predominará o inglês.
O interior do templo era frio e escuro como uma caverna. Toda a iluminação provinha de um pouco da esmaecida luz solar que se filtrava através de pequenas janelas de rótula e das sete velas do altar que pendiam como trêmulos halos amarelos sobre a cabeça da imagem. Era uma estátua em cobre, pouco maior que uma criança, e representava Xiva. Circundada por uma auréola fulgurante de glória, com os quatro braços em expressivas posições, os cabelos trançados voando em desordem, o pé direito esmagando o mais horrível e maligno dos pigmeus e o pé esquerdo graciosamente erguido, lá estava o deus como que congelado em êxtase. Sem os trajes de alpinismo, de sandálias, com o peito nu, usando calções ou saias de cores vivas, um grupo de moças e rapazes, juntamente com seis jovens que haviam sido seus chefes e instrutores, estava sentado no chão com as pernas cruzadas. Acima deles, no último degrau do altar, um velho sacerdote, barbeado e usando um manto cerimonial amarelo, recitava algo sonoro e incompreensível.
Deixando Will instalado num bom lugar, o dr. Robert, andando na ponta dos pés, dirigiu-se para onde Vijaya e Murugan estavam sentados e se acocorou atrás deles.
Ao esplêndido ribombar do sânscrito seguiu-se um canto alto e nasalado, que foi por sua vez substituído por uma ladainha na qual as alocuções do sacerdote se alternavam com as respostas dos fiéis.
O incenso começara a ser queimado num turíbulo de bronze. O velho sacerdote ergueu as mãos. Durante longos minutos do mais absoluto silêncio, fios de fumaça do incenso se elevaram em linha reta e sem ondeações, ante o deus. Aí, como se tivesse encontrado uma corrente de ar, se desfez numa nuvem invisível que encheu o espaço penumbroso com a fragrância de um outro mundo.
Abrindo os olhos, Will pôde observar que, ao contrário dos demais, Murugan estava inquieto e preocupado. Na sua fisionomia podia-se também perceber impaciência e desaprovação. Nunca havia feito escaladas e por isso considerava o alpinismo coisa sem importância. Sempre se recusara a tomar o moksha, achando que aqueles que o usavam ultrapassavam os limites do admissível. Sua mãe acreditava nos Mestres Ascendentes e conversava regularmente com Koot Hoomi. Por isso a imagem de Xiva lhe parecia um ídolo vulgar.
«Que pantomima eloqüente», pensava Will enquanto observava o rapaz. Mas, para felicidade do pobre Murugan, ninguém estava prestando a menor atenção aos seus gestos.
— Shivanayama — disse o velho sacerdote quebrando o longo silêncio. — Shivanayama — repetiu, e fez um aceno.
Levantando-se do lugar onde estava, a mocinha alta que Will vira descer o precipício subiu os degraus do altar. Apoiada na ponta dos pés, seu.corpo untado brilhando sob as lâmpadas como uma segunda estátua de cobre, pendurou uma grinalda de flores amarelo-claras no mais alto dos braços esquerdos de Xiva. Feito isso, de mãos postas, olhando para a face serena e sorridente do deus, começou a falar numa voz insegura, mas que progressivamente foi se tornando mais firme:
Oh! criador e destruidor,
Vós que manteis e dais fim,
Que à luz do sol acompanhais os pássaros e os folguedos das crianças
E que à meia-noite dançais com os cadáveres nos crematórios,
Vós, Xiva, escuro e terrível Bhairava,
Vós, Semelhança e Ilusão, Tudo e Nada,
Sois o Senhor da Vida e por isso vos trouxe flores,
Sois o Senhor da Morte e por isso vos trouxe o meu coração,
Esse coração que é agora a Vossa Pira
E onde a minha ignorância e o meu ego serão consumidos pelas chamas,
Para que Vós, Bhairava, possais dançar sobre as cinzas.
Para que possais dançar, Senhor Xiva, num canteiro de flores E para que eu possa
Vos acompanhar nessa dança.
Levantando os braços, a mocinha fez um gesto que traduzia o êxtase devocional de uma centena de gerações de adoradores dançarinos e, depois, fazendo meia-volta, se dirigiu na penumbra para seu lugar. Alguém gritou: Shivanayama. Murugan resmungava com desprezo à medida que o refrão ia sendo repetido pelos jovens. Shivanayama, Shivanayama… O velho sacerdote começou a entoar outra passagem das Escrituras. No meio da declamação, um pequeno pássaro cinzento de cabeça vermelha voou através de uma das rótulas, agitou nervosamente as asas em torno das lâmpadas do altar, chilreou alto, indignadamente, e depois saiu como uma flecha.
Os cânticos prosseguiram e, após atingirem um clímax, terminaram com uma oração sussurrada, na qual se pedia a paz: Shanti, Shanti, Shanti.
O sacerdote voltou-se novamente para o altar, apanhou uma longa vela, que acendeu numa das velas colocadas acima da cabeça de Xiva, e começou a acender as outras sete que pendiam de um profundo nicho situado abaixo da laje onde estava o dançarino.
A chama das velas, refletindo-se em convexidades de metal polido, revelou outra estátua — a de Xiva e Parvati, onde o Arqui-ioguim aparece sentado, elevando com dois dos seus braços o tambor e o fogo simbólicos, enquanto com os outros dois acaricia a deusa Amorosa. Esta, com seus pares de braços e pernas, o abraça e cavalga nessa eterna representação em bronze. O velho acenou com a mão. Dessa vez foi um rapazinho musculoso e de pele escura que se encaminhou para a zona iluminada. Curvando-se, pendurou uma grinalda em torno do pescoço de Parvati. Feito isso, deu mais uma volta no longo colar de flores e colocou uma segunda grinalda (dessa vez de orquídeas brancas) sobre a cabeça de Xiva.
— Cada um representando os dois — disse o rapazinho.
— Cada um representando os dois — repetiram os outros em coro.
Prosseguiu então:
— Oh, Tu que partiste, que partiste para outra terra e lá ficaste! Oh, Tu, luz e Tu outra luz, Tu libertação nascida de libertação, compaixão nos braços da infinita compaixão!
— Shivanayama.
Sob profundo silêncio, o rapazinho voltou para seu lugar.
Vijaya levantou-se e começou a falar:
— Perigo — disse ele. — Perigo — repetiu. — Perigo que, mesmo sendo deliberado, foi aceito com alegria. Perigo compartilhado com um amigo, com um grupo de amigos. Compartilhado íntegra e conscientemente. Essa co-participação no perigo passou a ser uma ioga. Dois amigos amarrados por uma corda na encosta de uma rocha. Outra vezes, três e mesmo quatro. Cada um tendo consciência da força dos seus músculos, da sua habilidade, do seu medo e da sua capacidade para vencê-lo. Cada um tendo consciência da existência dos outros, preocupado com eles, fazendo as coisas corretamente para que nada venha a comprometer a segurança dos mesmos. A vida no seu mais alto tom de tensão física e mental. Vida que a ameaça constante da morte torna ainda mais rica, mais inestimavelmente preciosa. Mas à ioga do perigo segue-se a ioga da chegada ao cume, a ioga do repouso e da lassidão, a ioga da receptividade total, a ioga que consiste em aceitar as coisas como nos são dadas, sem as censuras de uma mente moralista e ocupada, sem que nenhuma idéia de segunda mão nem tampouco nenhum desejo fantasioso sejam adicionados. Sentado, com os músculos relaxados e a mente aberta à luz do sol, às nuvens, à distância e ao horizonte, se chega a entender aquela coisa informe, sem palavras. Não-pensada. No silêncio do cume, longe da excitação da vida diária, consegue-se pressenti-la, aprofundá-la, tolerá-la.
Chegou a hora da descida, da segunda parte da ioga do perigo. A tensão e a consciência da vida serão plenamente renovadas, enquanto, suspenso por uma corda, você se mantiver num equilíbrio instável, à beira da destruição. Ao atingir o sopé do abismo, você se liberta da corda e se dirige a passos largos através dos caminhos rochosos, em direção às primeiras árvores. De repente, você está na floresta, onde se iniciará uma outra espécie de ioga, a ioga da selva, na qual, todos os sentidos têm que estar em permanente estado de alerta. A vida da selva em toda a sua plenitude de beleza e de podridão sórdida e rastejante. E onde se observam, em toda a ambivalência dramática, orquídeas e centopéias, sanguessugas e pássaros, sugadores de néctar e sugadores de sangue. A vida impondo ordem ao caos e à feiúra. A vida parecendo repetir os milagres do nascimento e do crescimento. A autodestruição parecendo ser seu único objetivo! Beleza e horror. Beleza e horror — repetiu, continuando em seguida:
— E, de repente, como se tivesse chegado de uma expedição às montanhas, você tem consciência de que há uma reconciliação. Mais do que uma simples reconciliação: fusão e identidade. Beleza nascida do horror na ioga da selva. A vida reconciliada com a permanente ameaça da morte, na ioga do perigo. A identificação do vazio e da auto-proteção, no sabá da ioga do cume.
Fez-se o silêncio e Murugan bocejou ostensivamente. O velho sacerdote acendeu outro bastão de incenso e, murmurando, agitou-o em frente ao dançarino e depois em torno da imagem do namoro cósmico entre Xiva e a deusa.
— Respirem profundamente e, enquanto respirarem, procurem sentir o cheiro do incenso — disse Vijaya. — Concentrem-se inteiramente nisso. Sintam-no como a um fato inefável e indescritível que ultrapassa a razão e por isso não pode ser explicado.
Conheçam-no como a um mistério. Perfume, mulheres e oração: eram as coisas que Maomé amava acima de tudo. As inexplicáveis sensações trazidas pelo cheiro do incenso, por uma pele que se toca, pelo sentimento amoroso e, dominando tudo, mistério dos mistérios, a plenitude do ser único. O Vazio que é tudo, a Semelhança presente em todos os instantes e em seus mínimos detalhes. Respirem! Respirem! — disse num murmúrio final, enquanto se sentava. — Respirem!
— Shivanayama — murmurou o velho sacerdote em êxtase.
O dr. Robert levantou-se e caminhou em direção ao altar.
Parando a meio caminho, voltou-se e acenou para Will Farnaby.
— Venha sentar-se a meu lado — disse em voz baixa, quando Will estava próximo a ele. — Gostaria que observasse as fisionomias.
— Não irei atrapalhar?
O dr. Robert balançou a cabeça e, juntos, começaram a subir as escadas que davam acesso ao altar, sentando-se lado a lado antes de atingirem o último degrau, num local onde a escuridão, quebrada pela luz das velas, formava uma zona de penumbra. O dr. Robert começou a falar calmamente a respeito de Xiva-Nataraja, o Senhor da Dança.
— Olhem esta imagem. Observem-na com os olhos que o moksha lhes deu. Vejam como respira e pulsa. Vejam como seu fulgor se torna cada vez mais intenso! Dançando sem parar, dançando perpetuamente e eternizando o momento presente. Dançando sem repouso e ao mesmo tempo em todos os mundos.
Perscrutando aquelas fisionomias que olhavam para o alto, Will observou em muitas delas as alvoradas iluminadas de deleite, reconhecimento, compreensão, os sinais de curiosa adoração que as fazia tremer como se estivessem nos limites do êxtase e do terror.
— Observem cuidadosamente — insistiu o dr. Robert. — Muito cuidadosamente.
Após um longo silêncio, repetiu:
— Dançando sem repouso e ao mesmo tempo em todos os mundos. Em todos os mundos! Principalmente no mundo da matéria. Olhem o grande halo, cercado pelos símbolos do fogo, dentro do qual o deus está dançando. Aí está para defender a natureza, para defender o mundo da massa e da energia. Dentro dele, Xiva Nataraja dança a dança infinita, a dança apropriada à morte. É o seu lila, sua diversão cósmica. Como se fosse uma criança que brinca pelo simples prazer de brincar. Mas essa criança é a ordem das coisas. Seus brinquedos são as galáxias, o espaço infinito é o seu pátio de recreio, e entre cada um dos seus dedos há um intervalo de milhares de milhões de anos-luz. Observem— no lá no altar. A imagem foi feita pelo homem e não passa de uma figura de cobre, de um metro cvinte de altura. Mas Xiva-Nataraja preenche o Universo, é o próprio Universo. Fechem os olhos e vejam-no altaneiro dentro da noite, vejam como distende seus braços infinitos e o modo como seus cabelos desordenados esvoaçam sem cessar. Nataraja brincando entre as estrelas e os átomos. Ele também está brincando no interior de cada ser vivo, de cada criatura dotada de sensibilidade, de cada criança, de cada homem e de cada mulher. Brinca peló prazer de brincar. Mas nesse momento o pátio o sente e a pista de danças está capacitada a suportar o sofrimento. Para nós, essa dança sem objetivo parece uma espécie de insulto. O que realmente gostaríamos de ter era um deus que nunca destruísse o que tivesse criado. E, se o sofrimento e a morte tivessem de existir, deveriam ser distribuídos por um deus pleno de eqüidade, que punisse os maus e premiasse os bons com a felicidade eterna. Na realidade, o bom é atingido e o inocente sofre. Deveria existir um deus que nos compreendesse e nos trouxesse conforto. Mas Nataraja se limita a dançar. Brinca imparcialmente com a morte e com a vida, com todas as coisas más e com todas as coisas boas. Na mais alta das suas mãos direitas, ele segura o tambor que põe em movimento o ser que existe no Nada. E o tambor rufia o toque cósmico da alvorada. Olhem agora para a mais alta das suas mãos esquerdas. Brande o fogo com o qual tudo que foi criado é imediatamente destruído. Dançando de um modo, cria a felicidade! De outro, cria a dor, o terrível medo, a desolação. Decide-se a saltar e a pular. Num pulo, a saúde perfeita. Num salto um pouco mais largo, eis o câncer e a senilidade. Com outro salto, afasta-se da plenitude da vida e cai no Nada. Do Nada, salta novamente em direção à Vida. Para Nataraja tudo é brincadeira. A brincadeira é seu eterno e inútil objetivo. Ele dança e a dança é seu maha— sukha, sua infinita e eterna bênção. Eterna bênção!
O dr. Robert repetiu, em tom de dúvida:
— Eterna bênção? — Balançou a cabeça e prosseguiu: — Para nós a bênção não existe. O que existe é a oscilação entre a felicidade e o terror. A essa oscilação vem se acrescentar um sentimento de ultraje, toda vez que pensamos que nossas dores e nossos prazeres, nossa vida e nossa morte nada mais são que uma parte da dança de Nataraja. Pensemos com calma no que acabei de dizer.
À medida que os segundos passavam, o silêncio se tornava mais profundo. De repente, uma das mocinhas começou a soluçar. Saindo de onde estava, Vijaya ajoelhou-se a seu lado e colocou uma das mãos sobre seu ombro. Os soluços cessaram.
— Sofrimento e doença, velhice, decrepitude e morte — continuou o dr. Robert. — Eu lhes mostro o sofrimento. Mas isso não foi a única coisa que Buda nos mostrou. Ele também nos mostrou o fim do sofrimento.
— Shivanayama — gritou o sacerdote em triunfo.
— Abram bem os olhos e olhem para o Nataraja que está no altar. Observem-no detalhadamente. Em sua mão superior direita, como vocês já viram, ele segura o tambor que chama o mundo para a vida, e em sua mão superior esquerda segura o fogo da destruição. Vida e morte, ordem e desintegração, imparcialmente distribuídas. Agora, olhem para o outro par de mãos de Xiva. A mão inferior direita está erguida e com a palma voltada para fora. Qual a significação desse gesto? Ele quer dizer: «Não tenha medo, tudo está bem». Mas como pode alguém se impedir de ter medo? Como fingir que o mal e o sofrimento sejam coisas certas, quando a evidência de que são erradas é tão óbvia? Nataraja tem a resposta. Agora, observem sua mão inferior esquerda e vejam que com ela está apontando para os pés. E os pés, que estão fazendo? Olhem com cuidado e verão que com o pé direito ele pisa numa pequena e repelente figura subumana: o demônio Muyalaka, que, embora sendo um anão, é dotado de um imenso poder de malignidade. Muyalaka corporifica a ignorância, representa a ganância e o egoísmo exagerado. Esmaguem-no, quebrem-lhe as costas! É exatamente isso que Nataraja está fazendo. Esmagando o pequeno monstro sob seu pé direito. Convém que observem que não é para o pé direito que ele está apontando com o dedo, e sim para o esquerdo. O pé que, no ato de dançar, ele está levantando do chão. E por que aponta para ele? Por quê? Aquele pé erguido, aquele desafio dançante à força da gravidade é o símbolo da sublimação, do moksha, da libertação. Nataraja dança ao mesmo tempo em todos os mundos: no mundo da física e da química, no mundo da rotina, do demasiadamente humano e, finalmente, no mundo da Semelhança, da Inteligência, da Luminosidade. E agora — prosseguiu o dr. Robert, após um momento de silêncio — quero que vocês observem a outra estátua, a representação de Xiva e a deusa. Olhem para aquela pequena gruta iluminada onde elas estão. Agora, fechem os olhos e tornem a abri-los para vê-las resplandecentes, vivas, glorificadas! Quanta beleza! Que profunda significação está contida na ternura que se vê em ambas! É a sabedoria daquela experiência de reconciliação e de fusão espiritual que transcende a tudo que de sábio se possa dizer! Eternidade no amor com o tempo. A unidade contraindo núpcias com a pluralidade. É o relativo tornado absoluto graças à sua fusão com a Unidade. É a identificação de nirvana com samsara; é a manifestação temporal, corporal e sentimental da natureza de Buda!
— Shivanayama! — O velho sacerdote acendeu outro bastão de incenso e, suavemente, uma sucessão de cadências prolongadas, começou a cantar alguma coisa em sânscrito.
Nas faces jovens que tinha à sua frente, Will pôde Observar que os traços revelavam a serenidade com que escutavam, o sorriso quase imperceptível com que saudavam uma súbita visão interior, uma revelação de verdade e beleza.
Nesse momento, Murugan, protegido pela obscuridade, descuidadosamente sentado e encostado numa pilastra, enfiava o dedo em seu belo nariz grego.
— Libertação — começou novamente o dr. Robert. — O fim do sofrimento. Deixem de ser o que ignorantemente pensam ser e se transformem no que realmente são. Por um pequeno período, graças ao moksha, saberão o que é realmente ser. Saberão também o que têm sido até agora. Que bênção eterna! Mas esse eterno é transiente como tudo o mais. Passará como todas as coisas. E quando isso ocorrer, que é que farão dessa experiência? Que farão com todas as experiências idênticas que o moksha lhes trará nos anos que estão por vir? Será que se limitarão a desfrutá-las, do mesmo modo como apreciam um espetáculo de fantoches, voltando depois às suas ocupações como se nada tivesse acontecido? Será que voltarão a se comportar como os tolos delinqüentes que imaginam ser? Ou será que, após vislumbrarem, se dedicarão ao trabalho radicalmente diferentes do que eram, passando a ser o que realmente são? Tudo aquilo que nós, os mais velhos, lhes podemos ensinar, tudo aquilo que o sistema social de Pala pode fazer por vocês se resume em ensinamentos técnicos e oportunidades. Tudo aquilo que o moksha pode lhes proporcionar ocasionalmente é uma sucessão de vislumbres de clarividência e de graça libertadora. Cabe a vocês decidir se vão colaborar e se vão aproveitar essas oportunidades. Porém tudo isso pertence ao futuro. No momento, tudo o que têm a fazer é seguir o conselho do pássaro mainá: «Atenção». Fiquem atentos, e gradual ou subitamente terão consciência dos grandes fatos primordiais que se escondem atrás desses símbolos que vêem no altar.
— Shivanayama — repetiu o velho sacerdote, movendo seu bastão de incenso. Junto dos degraus do altar, os rapazolas e as mocinhas permaneciam sentados numa imobilidade de estátuas.
Ouviu-se o ranger de uma porta e som de passos. Voltando a cabeça, Will notou que um homem corpulento abria caminho entre os jovens contemplativos. Subindo a escada e curvando-se junto ao dr. Robert, disse-lhe qualquer coisa ao ouvido e dirigiu— se novamente para a porta.
Pondo a mão sobre o joelho de Will, o dr. Robert, com um encolher de ombros e um sorriso nos lábios, disse-lhe:
— É uma ordem real. Aquele homem é o encarregado da cabana alpina. A rani acaba de telefonar para dizer que precisa ver Murugan o mais breve possível. É urgente.
Rindo baixinho, levantou-se e ajudou Will a erguer-se.