O sol estava nascendo quando o dr. Robert entrou no quarto do hospital onde estava sua esposa.
As silhuetas das montanhas se recortavam sobre um fundo alaranjado e uma pequena foice incandescente começara a surgir entre dois picos. Essa pequena foice tornou-se um meio-círculo e os primeiros feixes de luz dourada, bem como as primeiras sombras alongadas, cruzaram o jardim que se via da janela. Olhando— se para cima, via-se o sol na plenitude de sua glória.
O dr. Robert sentou-se ao lado da cama, segurou a mão da esposa e beijou-a. Ela sorriu e virou-se novamente para a janela.
— Como a terra gira depressa — murmurou. Fez uma pausa e disse: — Uma dessas manhãs verei o meu último nascer do sol.
Através do confuso coro dos pássaros e dos insetos, ouvia— se o canto de um mainá:
— Karuna, Karuna…
— Karuna — repetiu Lakshmi. — Compaixão…
— Karuna, Karuna — insistia a voz de oboé do Buda do jardim.
— Não necessitarei dela por muito mais tempo — continuou.
— Meu pobre Robert! Que será de você?
— De um modo ou de outro acharei as forças necessárias
— disse ele.
— Mas que tipo de força irá desenvolver? A da couraça, a do isolamento, a da absorção pelo trabalho e pelos próprios pensamentos, a ponto de ignorar tudo que se passa à sua volta? Lembra-se de como eu costumava puxar seu cabelo, fazendo-o prestar atenção? Quem fará isso quando eu for embora?
Uma enfermeira trouxe um copo de água açucarada. O dr. Robert passou a mão por baixo dos ombros da esposa, erguendo-a até sentá-la.
A enfermeira levou o copo aos lábios de Lakshmi, que tomou um pequeno gole, engolindo com dificuldade. Tomou outro gole. Mais outro.
Afastando o copo, olhou para o marido e, em sua face devastada, surgiu um sorriso travesso.
— Sou a representação da Trindade, sorvendo o suco aguado da laranja. Após três goles, o frustrado Aryan… — citou com voz rouca, interrompendo-se. — Que coisa mais ridícula para estar recordando! Porém eu sempre fui bastante ridícula, você não acha?
O dr. Robert fez o possível para sorrir-lhe.
— Bastante — concordou.
— Você costumava dizer que eu me parecia com uma pulga. Um momento aqui e, de repente… a muitas milhas de distância. Não admira que você não tivesse conseguido me educar!
— Mas você conseguiu me educar! — assegurou-lhe. — Se não fosse você a puxar meus cabelos e me fazer olhar para o mundo, ajudando-me a compreendê-lo, como seria hoje? Apesar de toda a minha educação, não seria mais que um pedante de viseiras. Felizmente tive o bom senso de pedi-la em casamento e, apesar de ter sido uma tola ao dar-me o «sim», teve a inteligência e a sabedoria de me transformar para melhor. Depois de trinta e sete anos de educação adulta, sou um ser quase humano.
— Mas eu continuo sendo uma pulga. — Ela balançou a cabeça. — No entanto eu tentei muito. Tentei muito. Não sei, porém se você percebeu, Robert. Estava sempre na ponta dos pés, sempre me esforçando para me nivelar ao seu trabalho, aos seus pensamentos e à sua cultura. Na ponta dos pés, tentando alcançá-lo para estar à seu lado. Meu Deus, como era cansativo! Que série infindável de esforços! Mas fracassei em todos eles porque não era mais que uma pulga. Uma pulga sempre a pular entre as pessoas, as flores, os cães e os gatos. Seu tipo de mundo intelectual era um lugar que eu nunca pude atingir e nem ao menos consegui encontrar o caminho que a ele conduzia. Quando isto aconteceu (ela ergueu a mão em direção ao seio ausente), não tive de continuar tentando. Tinha uma desculpa permanente para não ir mais à escola. Estava livre dos deveres.
Houve um longo silêncio.
— Quer tomar outro gole? — perguntou a enfermeira.
— Sim, você deve beber um pouco mais — concordou o dr. Robert.
— E destruir a Trindade?
Lakshmi deu-lhe outro dos seus sorrisos.
Através da máscara da idade e da inexorável moléstia, o dr. Robert viu a jovem sorridente por quem se apaixonara. Parecia que tudo acontecera na véspera, e, no entanto, já havia decorrido mais da metade de uma existência…
Uma hora depois, o médico estava de volta ao bangalô.
— Você ficará completamente só esta manhã — anunciou a Will, após trocar-lhe o curativo do joelho. — Tenho que ir a Shivapuram para assistir a uma reunião do Conselho Privado. Uma das nossa estudantes de enfermagem virá por volta do meio— dia aplicar-lhe a injeção. Ela também lhe trará o que comer. À tarde, assim que terminar seu trabalho na escola, Susila virá aqui. Agora, devo ir. Levantando-se, pousou por instantes a mão no braço de Will e disse: — Até à noite. — A meio caminho da porta, parou e virou-se. — Quase me esqueci de lhe dar isto — disse, tirando um livrinho verde de um dos bolsos de seu casaco surrado. — É o livro do velho rajá: Notas sobre o que é quê e sobre o que seria razoável fazer a respeito disso.
— Que título admirável! — disse Will ao receber o livro.
— Você gostará do conteúdo — afirmou-lhe o dr. Robert. — É pequeno, mas, se quiser ficar informado sobre Pala, não há melhor introdução.
— E quem é o velho rajá? — perguntou Will.
— Ele faleceu em 38, após um reinado três anos mais longo que o da rainha Vitória. Seu filho mais velho faleceu antes dele e o neto, que era um asno, foi seu sucessor. Mas, para compensação de tanta burrice, teve vida curta. O atual rajá é o bisneto.
— O senhor permite que faça uma pergunta estritamente pessoal? Como foi que um MacPhail entrou em cena?
— O primeiro MacPhail surgiu em Pala a chamado do avô do velho rajá, cognominado «rajá da reforma». Ele e meu bisavô inventaram a moderna Pala. O velho rajá consolidou e desenvolveu o trabalho iniciado por eles, e, hoje, estamos fazendo o máximo para seguir-lhes as pegadas.
— E aqui é contada a história das reformas? — perguntou Will, levando o livro.
O médico balançou a cabeça.
— Ele se limita a estabelecer os princípios básicos. Inicialmente, leia sobre eles. À noite, quando voltar de Shivapuram, lhe darei um resumo da história. Se começar por tomar conhecimento do que já foi executado compreenderá melhor o que estamos fazendo. Entenderá também o que tem de ser continuamente feito em toda parte, por qualquer um que tenha idéias defini das acerca do que é quê. Leia e não se esqueça de tomar seu suco de frutas às onze horas.
Will o observou enquanto se retirava e, abrindo o livrinho verde, começou a ler:
I
Ninguém precisa ir a parte alguma. Como seria bom que todos soubessem disso!
Se apenas soubesse quem realmente sou, deixaria de proceder como penso que sou. E se parasse de me comportar como penso ser, saberia quem sou.
Se ao menos o MANIQUEÍSTA que penso ser me permitisse ser o que de fato sou, o «sim» e o «não» viveriam reconciliados na abençoada aceitação da experiência de Ser Único.
Em religião, todas as palavras são obscenas. Qualquer pessoa que se mostrasse eloqüente acerca de Buda, Deus ou Cristo deveria ter a boca lavada com sabão carbólico.
A aspiração de todas as religiões de eternizar somente o «sim» em cada par de opostos é irrealizável porque contraria a natureza das coisas. O MANIQUEÍSTA isolado, que penso ser, se auto-condena a uma repetição infindável de frustrações e está em conflito permanente com outros MANIQUEÍSTAS igualmente frustrados em suas aspirações.
Conflitos e frustrações — tema de toda história e de quase toda biografia.
«Eu lhes mostro o sofrimento», disse Buda, realisticamente. Porém ele também mostrou o fim do sofrimento — o autoconhecimento, da aceitação total e a abençoada experiência de Ser Único.
O perfeito autoconhecimento gera o Bom Ser, e os Bons Seres realizam uma melhor espécie de Bem. Mas as coisas bem-feitas não produzem automaticamente o Bom Ser. Podemos ser virtuosos sem que saibamos quem realmente somos. Os indivíduos apenas bons não são necessariamente Bons Seres; são simples pilares da sociedade.
A maioria desses pilares representa o papel de Sansão. Sustentam a sociedade, porém cedo ou tarde a derrubam. Ainda não existiu uma só sociedade que, sendo criada por Bons Seres, fosse constantemente atualizada.
Isso não quer dizer que tal sociedade jamais existirá e que nós sejamos idiotas por estarmos tentando pô-la em prática aqui em Pala.
II
O iogue e o estóico — dois egos que pretendem atingir seus fins fazendo-se passar por alguém que na realidade não são. Mas não é fingindo ser outro alguém, mesmo um alguém sábio e superlativamente bom, que deixamos de ser meros MANIQUEISTAS cegos e isolados para nos transformarmos em Bons Seres. O verdadeiro conhecimento de quem realmente somos é que nos faz Bons; para sabermos quem realmente somos devemos conhecer nos mínimos detalhes aquilo que pensamos ser. ‘Desse modo, descobrimos o que essa falsa idéia nos obriga a sentir e a fazer. Um simples momento de conhecimento claro e completo do que pensamos ser, mas que na realidade não somos, põe um fim momentâneo ao enigma MANIQUEÍSTA.
Se renovarmos esses momentos de autoconhecimento do que não somos, fazendo com que se tornem contínuos, poderemos vir a descobrir subitamente aquilo que realmente somos.
A concentração em pensamentos abstratos e exercícios espirituais eqüivale a exclusões sistemáticas no domínio do pensamento.
O Ascetismo e o Hedonismo são exclusões sistemáticas no domínio das sensações, dos sentimentos e das ações.
Mas o Bom Ser conhece sua verdadeira posição em relação a todas as experiências e, desse modo, está em permanente estado de alerta. Está alerta ao que se possa crer, não crer, às coisas agradáveis e às desagradáveis, e essa vigilância não deve cessar, mesmo quando está imerso nos trabalhos e nos sofrimentos.
Essa é a única ioga verdadeira; o único exercício espiritual digno de ser praticado. Quanto mais um homem conhece os propósitos dos indivíduos, mais sabe a respeito de Deus. Adaptando a linguagem de Spinoza, podemos dizer: Quanto mais um homem sabe o seu modo de sentir em relação a cada tipo de experiência, maiores serão as chances de que um dia venha a descobrir quem realmente é, ou melhor, Quem (com Q maiúsculo) Realmente (com R maiúsculo) É (com E maiúsculo).
São João estava certo. Num universo abençoadamente mudo, a Palavra se limitava a estar com Deus. Era o próprio Deus. Alguma coisa para ser acreditada. Um símbolo projetado, um nome para ser adorado. Deus = Deus.
A fé é uma coisa muito diferente da crença.
A crença resulta do fato de se levar a sério (sem a menor análise) as palavras proferidas… Palavras de Paulo, de Maomé, de Marx e de Hitler: palavras que o povo levou a sério…
Que resultou disso?
O resultado foi a ambivalência sem sentido da história — o sadismo apresentado como dever, a devoção contrabalançada pela paranóia, as despersonalizadas irmãs de caridade cuidando das vítimas dos inquisidores e dos cruzados da Igreja à qual pertencem.
A fé, ao contrário da crença, nunca pode ser levada muito a sério. Ela é a confiança empiricamente justificada na nossa capacidade de saber quem realmente somos. É ela que nos permite esquecer o crente MANIQUEÍSTA que existe no âmago do Bom Ser.
— Quem está aí? — perguntou Will, levantando os olhos do livro.
— Sou eu — respondeu uma voz fazendo reviver as lembranças desagradáveis do coronel Dipa e daquele verdadeiro pesadelo que fora o passeio no Mercedes branco.
Vestido apenas com calção branco, calçando sandálias da mesma cor e com um relógio de platina, Murugan caminhava em direção à sua cama.
— Veio visitar-me? Quanta amabilidade!
Outro visitante lhe perguntaria como estava se sentindo, porém Murugan estava demasiadamente preocupado com seus problemas e não conseguia simular o menor interesse por quem quer que fosse.
— Estive aqui há três quartos de hora — disse sem tom de queixa —, mas o velho ainda estava aqui e por isso voltei para casa. Encontrei minha mãe tomando o café da manhã em companhia de um homem que está hospedado conosco e tive de ficar com eles.
— Por que não entrou enquanto o dr. Robert estava aqui? — perguntou Will. — Você está proibido de falar comigo?
O jovem balançou a cabeça, impacientemente.
— Claro que não. Apenas não queria que soubesse por que vim vê-lo.
— Por que não? — sorriu Will. — Visitar os doentes não é um ato da mais elevada caridade?
A ironia foi desperdiçada, pois Murugan continuou com o pensamento inteiramente concentrado em seus próprios problemas.
— Obrigado por não ter dito que me conhecia — disse abruptamente e em tom quase zangado.
Parecia ressentido pelo fato de ter sido forçado a agradecer o gesto de Will.
— Percebi que você não desejava que falasse e por isso fiquei calado.
— Gostaria de agradecer-lhe — resmungou Murugan entre dentes e num tom que mais parecia querer dizer: «Seu porco sujo!»
— Nada tem que agradecer — respondeu Will com falsa cortesia. Que criatura fascinante! pensava Will, enquanto olhava para aquele tronco liso e dourado e para aquele rosto desconfiado, cujos traços eram tão regulares como os de uma estátua (não de uma estátua olímpica ou clássica e sim de uma face helênica, muito móvel e demasiadamente humana). Mas qual seria o conteúdo desse vaso de tão incomparável beleza? Era uma pena, refletia, que não tivesse feito essa pergunta com mais seriedade antes de se deixar envolver com sua indescritível Babs. Pelo simples fato de Babs ser mulher e sendo ele um heterossexual, o tipo de pergunta que neste momento estava fazendo era totalmente inadmissível. No entanto, poderia ser feita por homens que gostassem de rapazes semelhantes a esse semideus de sangue ruim que estava sentado aos pés de sua cama. — O dr. Robert não sabia de sua ida a Rendang? — perguntou.
— É claro que sabia. Todo mundo sabia que fui encontrar minha mãe que estava hospedada com uns parentes, a fim de trazê-la de volta a Pala. Tudo foi absolutamente oficial.
— Então por que você não queria que eu dissesse que o tinha encontrado lá?
Murugan hesitou por alguns segundos e depois olhou-o desafiadoramente.
— Não queria que soubessem que estive com o coronel Dipa.
— Por causa disso? Não vejo motivo, pois acho-o um homem notável — disse em voz alta, lançando a isca para obter confidências.
Para sua surpresa, o peixe mordeu inocentemente a isca. O rosto mal-humorado do jovem se iluminou de entusiasmo. Ali estava Antinous com toda a beleza da sua ambígua adolescência.
— Acho que ele é formidável — disse, dirigindo o mais amável dos sorrisos a Will e dando a impressão de que só naquele momento tomara conhecimento da sua existência. A magnificência do coronel lhe permitira esquecer o ressentimento. Naquele momento amava a todos, mesmo àquele homem com quem tinha uma grande dívida de gratidão. — Veja o que ele está fazendo por Rendang!
— Realmente, está fazendo muito por Rendang — concordou Will sem muito entusiasmo.
Uma nuvem toldou o rosto radiante de Murugan.
— Aqui não pensam assim — disse carrancudo. — Acham-no horrível.
— Quem pensa assim?
— Praticamente todo o mundo.
— Não queriam que você o visse?
Com a expressão travessa de um garoto que faz das suas enquanto a professora está de costas, Murugan sorriu triunfante.
— Eles pensaram que estive com minha mãe durante todo o tempo.
Will entendeu imediatamente a insinuação.
— Sua mãe tinha conhecimento de que você estava com o coronel?
— Claro.
— E não fez nenhuma objeção?
— Pelo contrário.
Apesar disso, Will tinha quase certeza de que não se enganara quando pensara em Hadrian e Antinous. A mulher estaria cega? Ou apenas não desejava ver o que estava acontecendo?
— Mas se ela não se importa, por que o dr. Robert e os outros fazem objeções? — perguntou. Murugan olhou-o desconfiado. Notando que avançara na zona perigosa, Will apressou-se em mudar de assunto. — Será que pensam que o coronel possa levá-lo a crer numa ditadura militar? — perguntou, sorrindo.
A mudança de assunto surtiu o efeito desejado, pois o rosto do jovem abriu-se num sorriso.
— Não é bem por isso — respondeu. — Mas é coisa parecida. É tudo tão estúpido — acrescentou com um encolher de ombros. — Apenas um protocolo idiota.
— Protocolo? — Will estava verdadeiramente confuso.
— Não lhe disseram nada a meu respeito?
— Apenas aquilo que o dr. Robert disse ontem.
— Que eu sou um estudante? — Lançando a cabeça para trás, Murugan riu alto.
— Que há de tão engraçado em ser um estudante?
— Nada. Absolutamente nada. — O jovem desviou os olhos. Houve um silêncio. Finalmente Murugan disse:
— A razão pela qual não devo estar com o coronel Dipa é que ele é o chefe de uma nação e eu de outra. Quando nos vemos, o encontro é um assunto de notícia na política internacional.
— Que quer dizer com isso?
— Acontece que eu sou o rajá de Pala.
— O rajá de Pala?
— Desde 1954, quando meu pai faleceu.
— A rani deve ser sua mãe, não é verdade?
— Sim, ela é minha mãe.
«Vá diretamente para o palácio.» Mas aconteceu que o palácio veio diretamente a ele. Aí estava ele! Não podia haver dúvida de que a Providência estava trabalhando intensamente em favor de Joe Aldehyde.
— Você é o filho mais velho? — perguntou Will.
— O único filho — replicou Murugan. E então, acentuando sua qualidade de filho único ainda mais enfaticamente, ajuntou: — O único descendente.
— Deus meu! — disse Will. — Não há dúvida! Eu o deveria tratar por Vossa Majestade ou pelo menos por sir.
As palavras foram ditas com um sorriso, porém com a mais perfeita seriedade e com uma súbita adoção de dignidade real que Murugan respondeu:
— Terá que me chamar assim a partir do fim da próxima semana, que é quando completarei dezoito anos. Somente então o rajá tem poder para governar. Até essa data continuo sendo Murugan Mailendra. Um estudante igual aos outros, aprendendo um pouquinho de cada coisa, inclusive sobre o crescimento das plantas — acrescentou desdenhosamente —, a fim de que, quando chegar a época, saiba o que estou fazendo.
— Você já tem algum plano para quando começar a governar? — Entre esse belo Antinous e a solenidade das funções que viria a exercer, havia um contraste que Will achava intensamente divertido. — Como pretende agir? — perguntou no mesmo tom de brincadeira. — «Fora com as cabeças»? L’État c’est moi?
Foi com ar sério e carregado de dignidade real que Murugan respondeu:
— Não seja estúpido!
Divertido, Will prosseguiu em tom de quem se desculpa:
— Eu só queria saber quão despótico você irá ser.
— Pala é uma monarquia constitucional — respondeu o jovem, com ar sério.
— Em outras palavras, você não passará de uma figura simbólica. Pode reinar como a rainha Elizabeth da Inglaterra, porém não governará.
Esquecendo sua dignidade real, Murugan estava quase aos gritos:
— Não! Não! Não como a rainha da Inglaterra. O rajá de Pala não se limita a reinar; ele também governa. — Agitado demais para permanecer sentado, Murugan levantou-se de um salto e começou a andar pelo quarto. — Governa constitucionalmente; porém, por Deus, ele governa, governa!
Murugan encaminhou-se para a janela e olhou para fora.
Após um curto silêncio, voltou a defrontar Will com a fisionomia inteiramente transfigurada. E nessa nova fisionomia estava estampada, como se fosse um emblema estranhamente trabalhado e multicolorido, a conhecida figura da baixeza psicológica.
— Eu lhes mostrarei quem manda aqui — disse ele num tom que fora sem dúvida alguma plagiado do herói de algum filme americano sobre gangsters. — Essa gente pensa que pode manobrar comigo como fizeram com meu pai — prosseguiu como se estivesse recitando o argumento do filme —, mas está cometendo um erro muito grave. — O jovem proferiu esta última frase com um riso sinistro e abafado. — Um erro muito grave — repetiu, meneando a cabeça odiosamente bela.
Essas palavras foram ditas de dentes cerrados, quase sem mover os lábios. O queixo fora arremetido para a frente e lhe dava a aparência de um desses criminosos das histórias em quadrinhos. Os olhos brilhavam friamente através das pálpebras semicerradas. Antinous havia se transformado na caricatura de todos os valentes lançados desde os tempos imemoriais pelos filmes da série B.
— Quem tem governado o país durante a sua menoridade? — perguntou Will.
— Três grupos de velhos retrógrados — respondeu com desdém. — O Gabinete, a Câmara dos Deputados e, finalmente, o Conselho Privado, que representa o rajá; ou seja, que me representa.
— Pobres velhos fósseis! Muito em breve levarão um grande susto — disse Will. Assumindo alegremente um ar de cumplicidade, ele riu alto. — Apenas espero estar por perto quando isso vier a acontecer.
Murugan associou-se ao riso, não com o aspecto do valentão sinistramente alegre, mas irradiando aquela jovialidade triunfante do menino que fez uma travessura e que tivera a oportunidade de ver havia alguns momentos. E, vendo essas súbitas mudanças de humor e de expressão fisionômica, Will pôde avaliar quão difícil devia ser para ele o desempenho do papel de «homem mau».
— Será o maior choque da vida deles — disse Murugan.
— Você já tem algum plano específico?
— Claro que sim — respondeu. Em seu rosto móvel, o menino triunfante cedeu lugar ao estadista sério e afavelmente condescendente, que falava como se estivesse dando uma entrevista à imprensa. — Prioridade absoluta: modernização deste lugar. Veja o que tem sido feito em Rendang, graças aos lucros provenientes das concessões para a exploração do petróleo.
— E Pala não aufere lucro das concessões petrolíferas? — perguntou Will com aquele ar de total ignorância desenvolvido em vários anos de experiência e que considerava o melhor meio de extrair informações dos simples e dos presunçosos.
— Nem um tostão. Na parte sul da ilha o petróleo está aflorando à terra, mas os velhos fósseis só permitem a exploração de alguns poços pequenos e a produção é toda destinada ao uso caseiro. — O estadista estava ficando zangado. Na voz e em sua fisionomia viam-se os primeiros indícios do homem mau. — Esses velhos estúpidos não deram atenção às várias propostas feitas por companhias como a Petróleo do Sudeste da Ásia, a Shell, a Royal Dutch e a Standard da Califórnia.
— Você não pode persuadi-los?
— Eu os forçarei a ouvir! — disse o valentão.
— E assim que eu gosto! — Depois continuou num tom indiferente: — Qual das ofertas você pensa em aceitar? — perguntou.
— O coronel Dipa está trabalhando com a Standard da Califórnia e acha que será melhor fazermos o mesmo.
— Eu não faria isso antes de obter pelo menos algumas ofertas.
— Também penso assim e minha mãe tem a mesma opinião.
— É a atitude mais prudente.
— Minha mãe tem preferência pela Petróleo do Sudeste da Ásia. Ela conhece lorde Aldehyde, que é o presidente do conselho dessa companhia.
— Conhece lorde Aldehyde? Isso é simplesmente formidável! — O tom de deslumbramento que Will demonstrava era inteiramente convincente. — Joe Aldehyde é meu amigo. Eu escrevo para seus jornais e sirvo mesmo como seu embaixador particular. Confidencialmente — acrescentou —, foi por esse motivo que fizemos aquela visita às minas de cobre. O cobre é um dos ramos de negócios secundários de Joe. O petróleo é que é sua paixão.
Murugan tentou parecer sagaz.
— Quanto acha que ele estaria disposto a nos oferecer?
Will entendeu a insinuação e respondeu no melhor estilo de
magnata cinematográfico:
— Aquilo que a Standard oferecer e um pouco mais.
— Muito bem — disse Murugan, concordando cautelosamente e como se estivesse seguindo o argumento do mesmo filme. Houve um longo silêncio e, quando ele falou novamente, foi no estilo do estadista concedendo entrevista à imprensa. — Os direitos do petróleo serão usados do seguinte modo: vinte e cinco por cento do total do dinheiro recebido irão para a Reconstrução do Mundo.
— Pode me dizer em detalhes como pretende reconstruir o mundo? — perguntou Will com respeito.
— Através da Cruzada do Espírito. Você já ouviu falar nela?
— Claro! Quem não a conhece?
— É um grande movimento que já está espalhado por todo o mundo — disse o estadista, com ar grave. — É como o Primitivo Cristianismo. Foi fundado por minha mãe. — Will se mostrou surpreso e admirado. — Sim, foi fundado por ela — repetiu Murugan, acrescentando comovidamente: — Creio ser a única esperança para o ser humano.
— Realmente — disse Will. — Realmente.
— Bem, essa é a maneira pela qual vinte e cinco por cento dos direitos serão utilizados. O restante será empregado num intenso programa de industrialização. — O tom de voz mudou novamente: — Esses velhos idiotas daqui apenas querem industrializar certos pontos e deixar o resto como estava há dois mil anos.
— Sei que você gostaria de resolver esse assunto, não é verdade? Industrialização pelo idealismo, não é?
— Não. Industrialização com a finalidade de beneficiar o país. Industrialização para tornar Pala forte e respeitada. Veja o que se passa em Rendang. Daqui a cinco anos estarão fabricando os rifles, os morteiros e a munição de que necessitam. Levará ainda bastante tempo para que possam fabricar tanques; porém, nesse intervalo, poderão adquiri-los da Skoda com os lucros obtidos do petróleo.
— Dentro de quanto tempo estarão trabalhando com a bomba H? — perguntou Will ironicamente.
— Nem mesmo tentarão — respondeu Murugan. — Afinal de contas, você há de convir que as bombas H não são as únicas armas decisivas. — Ele pronunciou a frase com deleite. Era evidente que achava um sabor todo especial nas «armas decisivas». — O coronel Dipa diz que as armas químicas e biológicas são as bombas H dos pobres. Uma das primeiras coisas que construirei será uma grande fábrica de inseticidas.
Farnaby riu, piscou um olho e disse:
— Se você puder fazer inseticidas, poderá fazer gases que afetam os nervos. — Lembrou-se da fábrica ainda inacabada que vira nos subúrbios de Rendang-Lobo.
— Que é isso? — perguntara ao coronel Dipa, enquanto passavam por ela num relâmpago, no Mercedes branco.
— Inseticidas — respondera o coronel, mostrando num amplo sorriso seus dentes alvos e brilhantes. — Dentro em breve estaremos exportando essas substâncias para todo o sudoeste da Ásia.
Naquela época não lhe ocorrera que na resposta do coronel pudesse haver segundas intenções. Mas agora… Will encolheu mentalmente os ombros. Coronéis sempre serão coronéis, e rapazes, mesmo os do tipo de Murugan, serão sempre apaixonados pelas armas. Sempre haverá bastante serviço para os correspondentes especiais.
— Com isso você quer dizer que pretende fortalecer Pala, não é? — perguntou em voz alta.
— Não poderei fortalecê-la porque Pala não tem exército. Terei de criá-lo.
— Pala não tem exército?
— Absolutamente nenhum. Todos aqui são pacifistas. — O «p» soou como uma explosão de desprezo e o «s» foi dito num sibilo desdenhoso. — Terei de começar do nada.
— Industrialização e militarismo se desenvolverão juntos, não é verdade?
— Exatamente.
Will sorriu.
— Os assírios fizeram o mesmo! Você ficará na História como um verdadeiro revolucionário.
— É isso o que espero — disse Murugan. — A continuação do meu programa é o Prosseguimento da Revolução.
— Excelente!
— Apenas prosseguirei com a revolução iniciada mais de cem anos atrás, pelo bisavô do dr. Robert, quando chegou a Pala e ajudou o meu tetravô a executar as primeiras reformas. Algumas das coisas que fizeram realmente foram maravilhosas. Porém, não todas — disse ele, balançando a encaracolada cabeça, num gesto de judiciosa censura. Will teve a impressão de estar vendo um colegial interpretando o Polonius de Hamlet, numa representação de fim de ano. — Pelo menos fizeram alguma coisa — continuou. — Enquantò hoje em dia estamos sendo governados por um grupo de conservadores retrógrados que não levantarão um dedo para introduzir qualquer dos aperfeiçoamentos da técnica moderna. Além disso, são radicais e se recusam a alterar qualquer das más idéias revolucionárias antigas, muitas das quais já deviam ter sido banidas. Têm-se negado a reformar conceitos que na sua maioria me repugnam.
— Será que têm alguma coisa que ver com assuntos referentes a sexo? — Murugan concordou e virou o rosto. E foi com surpresa que Will observou que corara. — Dê-me um exemplo — pediu.
Mas Murugan não conseguiu dar qualquer explicação.
— Pergunte ao dr. Robert ou a Vijaya — disse. — Eles acham que essa espécie de coisa é simplesmente formidável. Devo dizer que essa é a opinião de todos daqui e que esta é uma das razões pelas quais ninguém quer que as coisas mudem. Gostariam que elas se perpetuassem neste mesmo modo antiquado e repugnante para todo o sempre.
— Para todo o sempre — uma rica voz de contralto repetiu em tom de brincadeira.
— Mamãe! — exclamou Murugan, pondo-se de pé.
Will virou-se e viu, à soleira da porta, uma mulher grande e corada, envolta em nuvens de musselina branca. Enquanto a olhava, pensou que as cores malva, carmesim ou azul-elétrico combinariam muito melhor com seu tipo físico.
Parada com um sorriso enigmático nos lábios, ergueu um braço gordo e moreno e apoiou a mão recoberta de jóias no umbral da porta. Parecia uma prima-dona fazendo uma pausa antes de sua primeira aparição em cena, para receber os aplausos dos adoradores. Um pouco atrás, esperando pacientemente por uma «deixa», estava um homem alto com um terno de dacron cinza-chumbo. Após espreitá-lo através de uma nesga existente entre o vão da porta e o corpo maciço de sua mãe, Murugan cumprimentou-o, chamando-o Mr. Bahu.
Sem sair dos bastidores, Mr. Bahu curvou-se sem dizer palavra.
Murugan voltou-se novamente para a mãe e perguntou:
— Você veio a pé até aqui? — No seu tom havia um misto de incredulidade e de solícita admiração. Vir a pé até aqui! Não podia conceber que tivesse vindo a pé, mas se o tivesse feito teria realizado um verdadeiro ato de heroísmo! — Veio andando de tão longe?
— Sim, meu filhinho — respondeu ela num tom meigo e brincalhão. O corpo esbelto do rapaz foi envolvido pelo braço que estivera levantado e sua mãe apertou-o rapidamente de encontro ao volumoso peito, submergindo-o nas pregas flutuantes de musselina. — Tive um dos meus impulsos. — Will observou que tinha um modo de fazer com que as pessoas sentissem as letras maiúsculas no princípio das palavras que desejava acentuar.
— Minha Pequena Voz disse: «Vá ver esse estranho na casa do dr. Robert… Vá!» «Agora?», perguntei. «Malgré la chaleur?» Essa minha observação fez com que a Pequena Voz perdesse a paciência. «Mulher», disse, «cale a boca e obedeça!» Por isso, eis-me aqui, Mr. Farnaby.
Com a mão estendida e envolta numa forte emanação de óleo de sândalo, ela encaminhou-se, resoluta, em sua direção.
Will curvou-se sobre aqueles dedos grossos, recobertos de jóias, e murmurou alguma coisa que terminava em «Vossa Majestade»…
— Bahu! — chamou, usando da prerrogativa real de desprezar os títulos que normalmente precedem os sobrenomes.
Aproveitando sua tão esperada «deixa», o coadjuvante fez sua entrada em cena e foi apresentado como «Sua Excelência Abdul Bahu, o embaixador de Rendang».
— Abdul Pierre Bahu, car sa mère est parisienne. No entanto aprendeu inglês em Nova Iorque. — Lembrava Savonarola, pensou Will, enquanto apertava a mão do embaixador. Um Savonarola de monóculo, vestido por um alfaiate da Savile Row.
— Bahu — disse a rani — é o Cérebro da Organização do coronel Dipa.
— Vossa Alteza, se me é permitido dizer, é demasiado bondosa para mim, mas não para o coronel — comentou o embaixdor. Suas palavras e seus gestos eram tão palacianos que chegavam a parecer irônicos. Davam a impressão de uma paródia de deferência e de servilismo. — Os cérebros estão na cabeça, que é o lugar feito para eles — prosseguiu. — Não passo de mera fração do sistema nervoso simpático de Rendang.
— Et combien sympathique! — disse a rani. — Entre outras coisas, Mr. Farnaby, Bahu é o último dos aristocratas. Você deveria ver seu país! Basta você bater palmas para que surjam instantaneamente seis criados prontos a lhe satisfazer os desejos. Se é aniversário de alguém, dá-se uma fête nocturne nos jardins. Música, bebidas e dançarinas. Duzentos dependentes ali estão a iluminar tudo com suas tochas. Você se sente como se estivesse vivendo um sonho das Mil e uma noites. É a vida de Harun al Raschid… com água encanada.
— A descrição é muito sedutora — disse Will, recordando as cidades que atravessara no Mercedes branco do coronel Dipa: os casebres de palha, o lixo, as crianças com oftalmia, os cães esqueléticos, as mulheres vergadas sob cargas enormes.
— E que gosto apurado! Que idéias independentes e, acima de tudo — ela baixou o tom de voz —, que profundo e infalível Senso do Divino.
Mr. Bahu abaixou a cabeça. O silêncio envolveu o ambiente.
Enquanto isso, Murugan puxara uma cadeira. Sem ao menos olhar para trás — imbuída da convicção de que sempre deve existir alguém à disposição, a fim de impedir que uma majestade perca sua dignidade —, a rani sentou-se com todo o peso dos seus cem quilos.
— Espero que não considere minha visita como uma intrusão — disse ela para Will. Ele assegurou-lhe que não, porém ela continuou a desculpar-se. — Devia ter lhe avisado, ter lhe pedido permissão. Porém minha Pequena Voz disse: «Não. Você deve ir agora». Por quê? Não sei, mas não tenho dúvidas de que acabaremos descobrindo a razão. — Ela fixou-o com seus grandes olhos protuberantes e sorriu misteriosamente. — Antes de qualquer coisa, como está se sentindo, meu caro Mr. Farnaby?
— Como pode ver, madame, estou muito bem.
— Está mesmo? — Os olhos protuberantes perscrutaram tão cuidadosamente seu rosto que ele ficou acanhado. — Vejo que você é do tipo de homem que, como um verdadeiro herói, continua tranqüilizando seus amigos, mesmo estando às portas da morte…
— A senhora muito me lisonjeia, mas acontece que estou realmente bem. Levando-se em conta as circunstâncias, tenho de admitir que foi um verdadeiro milagre.
— Foi exatamente o que disse quando soube como você se salvou. Um verdadeiro milagre! — disse a rani.
— No dizer da sorte, a Providência estava à meu lado — respondeu Will, citando novamente Erewhom.
Mr. Bahu começou a rir; porém, notando que a rani não percebera a malícia, transformou rapidamente o riso num pigarro.
— Quanta verdade! A Providência sempre está do nosso lado
— dizia a rani numa vibrante voz de contralto. E, quando Will ergueu uma sobrancelha inquisidora, ela continuou: — Quero dizer, Ela se esmerou diante dos olhos daqueles que Verdadeiramente Compreendem. (V maiúsculo e C maiúsculo.) Isso realmente acontece, mesmo quando tudo parece estar conspirando contra nós, même dans le désastre. Certamente você entende francês, não é, Mr. Farnaby?
Will fez que sim com a cabeça.
— Após ter vivido tantos anos na Suíça, primeiramente no colégio e mais tarde quando tivemos que ir viver nas montanhas para tratar da saúde do meu filhinho — e ela afagou o braço de Murugan —, freqüentemente me exprimo com mais facilidade em francês do que na minha própria língua, em inglês ou em polonês — explicou. — A doença do meu filho vem ilustrar o que dizia a respeito de a Providência estar sempre ao nosso lado. Quando soube que meu filhinho estava à beira da tuberculose pulmonar, esqueci tudo o que aprendera e fiquei desesperada. Cheia de medo e de angústia, indignei-me contra Deus, por ter permitido que tal coisa acontecesse. Que Cegueira Absoluta! O meu filhinho ficou bom e aqueles anos passados nas Neves Eternas foram os mais felizes de nossas vidas. Você não acha, meu querido?
— Sim. Foram os mais felizes — concordou o jovem, parecendo inteiramente sincero.
A rani sorriu triunfante, apertou os lábios carnudos e vermelhos e, com um leve estalo, separou-os novamente, num beijo a longa distância.
— Disso se deduz, meu caro Farnaby, que nada acontece por Acaso. Existe um Grande Plano e, dentro dele, um número incontável de pequenos planos. Um pequeno plano para cada um de nós. Todas as coisas que nos acontecem dispensam explicações.
— É mesmo…
— Houve um tempo — continuou a rani — em que eu apenas o sabia com a lógica. Agora eu o sei com meu coração. Eu realmente… — fez uma pausa por um instante para preparar a pronúncia da Maiúscula Mística — Compreendo!
«Ela tem uma mediunidade assombrosa», pensou Will, recordando-se do comentário daquele freqüentador assíduo de sessões espíritas que era Joe Aldehyde.
— Presumo que a senhora é dotada de uma mediunidade natural — disse.
— De nascença — admitiu ela. — Mas a desenvolvi graças especialmente a um treino continuado. Um treino visando a Alguma Coisa Mais.
— Que quer dizer com isso?
— Refiro-me à vida do Espírito. Enquanto se avança no Caminho, todos os sidhis, todos os dons mediúnicos e poderes miraculosos se desenvolvem espontaneamente.
— É verdade?
— Minha mãe faz as coisas mais fantásticas — disse Murugan com orgulho.
— N’exagérons pas, chéri.
— Mas não estou exagerando — insistiu Murugan.
— É um fato que posso confirmar e que realmente confirmo — acrescentou o embaixador, sorrindo contrafeito. — Como sou um perpétuo cético a respeito dessas coisas, não me agrada ver o impossível acontecer. Mas, infelizmente, tenho um «fraco» pela honestidade e, quando o impossível realmente acontece ante meus olhos, sinto-me compelido, malgré moi, a testemunhar o fato. Sua Majestade faz as coisas mais fantásticas.
— Está bem… Se assim lhe agrada… — disse a rani irradiando contentamento. — Porém nunca se esqueça, Bahu, nunca se esqueça de que os milagres não têm a menor importância. O que importa é a Outra Coisa, a Coisa que encontramos no fim do Caminho.
— Depois da Quarta Iniciação — especificou Murugan. — Minha mãe…
— Querido! Não se deve falar dessas coisas! — E a rani levou um dedo aos lábios, como que pedindo silêncio.
— Sinto muito — disse o jovem.
A rani fechou os olhos e Mr. Bahu, deixando cair o monóculo, respeitosamente acompanhou o séquito e era a própria imagem de Savonarola orando em silêncio.
Que se passava atrás daquela austera e quase descarnada máscara de reconhecimento? pensava Will.
— Poderia saber como a senhora veio a descobrir o Caminho?
Por um ou dois segundos a rani nada respondeu. Continuou sentada com os olhos fechados, sorrindo como um Buda misterioso e complacente.
— Foi a Providência quem me mostrou — disse afinal.
— Sim, sei disso. Mas deve ter havido uma ocasião, um lugar ou um instrumento humano.
— Vou lhe contar.
As pálpebras tremularam, abriram-se, e uma vez mais ele se encontrou sob o brilhante e firme olhar daqueles olhos protuberantes.
Acontecera em Lausanne, durante o primeiro ano em que estudava na Suíça. O instrumento fora a querida e pequena madame Buloz, que era a esposa do velho e querido professor Buloz. Este fora o homem a quem seu pai, o último sultão de Rendang, a confiara, após muitas conjeturas e investigações. O professor tinha sessenta e sete anos de idade, ensinava Geologia e era protestante. Pertencia a uma seita tão austera que, salvo por algumas exceções (tomava um copo de clarete ao jantar, fazia somente duas preces ao dia e era rigidamente monógamo), poderia ser considerado muçulmano.
Sob tal guarda a princesa de Rendang teria estímulo intelectual, conservando-se ao mesmo tempo moral e doutrinariamente intacta. Porém o sultão de Rendang não contava com a esposa do professor. Madame Buloz tinha apenas quarenta anos, era gorda, sentimental, esfuziante e oficialmente professava a mesma religião do marido. Na verdade, ela nada tinha de protestante e era uma ardente teosofista, recém-convertida, que num quarto do sótão da casa perto da Place de la Riponne tinha o seu oratório. Sempre que dispunha de tempo, ela secretamente se recolhia nesse oratório para fazer exercícios respiratórios e de concentração, a fim de elevar o kundalini. Embora se submetesse a uma disciplina exaustiva, a recompensa foi transcendentalmente grande.
Altas horas de uma quente noite de verão, ela sentira a Presença, enquanto o querido velho professor dormia, roncando ritmadamente, dois andares abaixo. O mestre Koot Hoomi ali estava!
A rani fez uma pausa de suspense.
— Extraordinário! — disse Mr. Bahu.
— Extraordinário! — repetiu Will, incrédulo.
A rani resumiu a história.
Imensamente feliz, madame Buloz fora incapaz de guardar seu segredo. A princípio se limitou a fazer misteriosas alusões que aos poucos se transformaram em confidências, as quais redundaram num convite para visitar o oratório e para assistir a um curso de Iniciação. Em pouco tempo Koot Hoomi estava concedendo maiores graças à noviça que à professora.
— E, desde então — concluiu a rani —, o Mestre tem me ajudado a ir Para a Frente.
«Ir para a frente? Ao encontro de quê?», Will se perguntou. Somente Koot Hoomi sabia a resposta. Aquela expressão de calma e arrogância, de serena egolatria que podia ver naquele rosto grande e rubicundo, desagradava-o profundamente. Ela o fazia lembrar-se de Joe Aldehyde. Joe era um desses felizes magnatas sem escrúpulos que usam seu dinheiro para comprar tudo aquilo que possa representar influência e poder. Ali estava, envolta em samito branco e maravilhosamente mística, uma representante da «espécie» de Joe Aldehyde: uma mulher magnata que tinha o monopólio, não da soja ou do cobre, mas do Espiritualismo puro dos Mestres Ascendentes e que esfregava as mãos com sua façanha.
— Eis um exemplo do que Ele fez por mim — continuou a rani. — Oito anos atrás, para ser precisa, em 23 de novembro de 1953, o Mestre veio a mim, durante a minha Meditação matinal. Veio em pessoa e veio com Glória.
— Uma grande Cruzada deverá ser iniciada — disse Ele. — Um movimento mundial para salvar a Humanidade da autodestruição; e você, minha filha, é o instrumento indicado.
— Eu? Um movimento mundial? Mas isso é absurdo — respondi. — Nunca fiz sequer uma palestra em toda a minha vida ou escrevi uma só palavra que pudesse ser publicada! Nunca fui uma líder ou tive espírito organizador!
— Todavia — e Ele me deu um de seus sorrisos de beleza indescritível —, será você quem iniciará esta Cruzada: a Cruzada Mundial do Espírito. As pessoas se rirão e você será chamada de tola, excêntrica e fanática. Os cães latem, porém a caravana prossegue. Desse pequeno e ridículo começo, a Cruzada do Espírito está destinada a se transformar em Força Poderosa. Uma força para o Bem, uma força que finalmente salvará o mundo. —
Após dizer isso, Ele se foi. Fiquei petrificada, confusa e apavorada. Porém não havia outra saída. Eu teria de obedecer. E obedeci. Que aconteceu? Fiz discursos e Ele me deu eloqüência. Aceitei o fardo da liderança e, porque Ele caminhava invisível a meu lado, as pessoas me seguiram. Pedi ajuda e o dinheiro jorrou. Agora… aqui estou. — Fazendo com as mãos gordas um gesto de auto-depreciação, sorriu de modo místico. — «Sou uma pobre coisa que não se pertence», parecia estar dizendo. «Pertenço a meu mestre Koot Hoomi.» — Aqui estou — repetiu.
— Deus seja louvado pelo fato de a senhora estar aqui! — disse Mr. Bahu devotamente.
Depois de uma pausa conveniente, Will perguntou à rani se ela continuou fazendo os exercícios tão providencialmente aprendidos no oratório de madame Buloz.
— Evidentemente. A Meditação me é tão indispensável quanto o Alimento.
— A senhora deve ter tido dificuldades para continuá-los depois do casamento, não é verdade? Calculo que antes de ter regressado à Suíça deve ter sido envolvida por obrigações oficiais bastante cansativas!
— Sem mencionar as não-oficiais — respondeu a rani num tom que deixava entrever uma série enorme de comentários desfavoráveis a respeito do caráter weltanschauung e hábitos sexuais do seu finado marido. Ela abriu a boca para entrar em detalhes sobre o assunto, mas, tendo olhado para Murugan, fechou-a novamente. — Querido — chamou.
Murugan, absorvido em lustrar as unhas da mão esquerda na palma aberta da mão direita, olhou para a mãe com ar culpado.
— Que é mamãe?
Ignorando as unhas e a evidente falta de atenção para o que ela estivera dizendo, a rani sorriu-lhe sedutoramente.
— Seja bonzinho — disse ela — e vá buscar o carro. Minha Pequena Voz não me diz nada a respeito de voltar a pé para o bangalô. — E virando-se para Will: — São apenas algumas centenas de metros — explicou —, porém neste calor e com a minha idade…
Suas palavras exigiam algum comentário galante. Porém, se estava demasiado quente para andar, também o estava para despender a grande quantidade de energia requerida para ser convincente numa demonstração de falsa sinceridade, pensou Will.
Felizmente um diplomata profissional, um cortesão treinado, estava à mão para suprir as deficiências do jornalista. Mr. Bahu deu uma estrepitosa gargalhada e depois desculpou-se por sua alegria.
— Mas foi realmente engraçado! «Na minha idade!» — repetiu, continuando a rir. — Murugan ainda não tem dezoito anos e acontece que eu sei a idade que tinha a princesa de Rendang, e como era jovem! quando se casou com o rajá de Pala.
Enquanto isso, Murugan levantara-se obedientemente e beijava a mão de sua mãe.
— Agora poderemos falar com a maior franqueza — disse a rani quando o filho saiu do quarto. — E com maior liberdade — desabafou. Dizendo isso, seu rosto, o tom de sua voz e o brilho de seus olhos protuberantes se entregaram à mais intensa revolta. De mortuis… Ela não diria nada acerca do seu finado marido, senão que, de maneira geral, ele era um palanês típico, um verdadeiro representante do seu país. Porém, a triste verdade era que sob a suave e brilhante aparência de Pala se escondia a mais horrível podridão. — Quando penso no que eles tentaram fazer ao meu filhinho, dois anos atrás, quando viajava pelo mundo a serviço da Cruzada do Espírito! — E ergueu as mãos numa expressão horrorizada, fazendo tinir os braceletes. — Foi uma verdadeira agonia para mim estar separada dele por tanto tempo. Mas o Mestre havia me enviado em Missão e minha Pequena Voz dissera que não seria direito levar meu filhinho comigo. Ele vivera muito tempo fora do país. Já era mais que tempo para ele travar conhecimento com o lugar que deveria governar. Então, me decidi a deixá-lo. O Conselho Privado nomeou um comitê de guardiães: duas mulheres, que tinham dois filhos crescidos, e dois homens, um dos quais, digo com pesar e com mais pena do que ódio, era o dr. Robert MacPhail. Resumindo a história, assim que deixei o país, esses estimados guardiães a quem confiara o meu filhinho, o meu Filho Único, começaram a trabalhar sistematicamente, SISTEMATICAMENTE, Mr. Farnaby, para enfraquecer minha influência. Tentaram destruir o edifício inteiro de valores Morais e Espirituais que eu havia construído tão laboriosamente no decurso de vários anos.
Com malícia (pois sabia do que ela estava falando), Will demonstrou surpresa.
— Todo o edifício de valores morais e espirituais? — perguntou. — E, no entanto, ninguém poderia ter sido mais bondoso que o dr. MacPhail e os outros. Nenhum dos Bons Samaritanos poderia ter demonstrado a caridade mais simples e eficaz.
— Não nego a bondade deles — disse a rani —, mas afinal de contas a bondade não é a única virtude!
— Claro que não — concordou Will, enumerando todas as qualidades que evidentemente faltavam à rani: — Existe também a sinceridade. Sem mencionar a lealdade, a humildade, o desprendimento…
— Você se esquece da Pureza — disse a rani severamente. — A Pureza é fundamental! A Pureza é o sine qua non.
— Penso que, aqui em Pala, essa não seja a opinião geral.
— Certamente. — E ela continuou a contar como seu pobre filhinho fora deliberadamente exposto à impureza e mesmo ativamente encorajado a se viciar com uma dessas moças precoces e promíscuas que em Pala existem em tão grande número. Quando descobriram que ele não era o tipo de rapaz que quisesse seduzir uma moça (pois ela o criara na crença de que a Mulher era Sagrada), eles a encorajaram a seduzi-lo.
Teria sido bem-sucedida? pensou Will. Ou será que as práticas sexuais iniciadas com amiguinhos da mesma idade e continuadas com pederastas mais velhos e experientes (algum percursor suíço do coronel Dipa) já tinham imunizado aquele Antinous ao poder de sedução das moças?
— Porém, isso não foi o pior. — A rani dera ao tom de sua voz uma inflexão teatral de horror. — Uma das mães do Comitê de Guardiães, uma das mães, veja você, aconselhou-o a tomar uma série de aulas.
— Que espécie de aulas?
— Naquilo que elas eufemisticamente chamam de Amor. — Ao dizer isso, franzia o nariz, como se tivesse sentido o cheiro de algum esgoto. — Aulas — e a repugnância transformou-se em indignação — ministradas por Mulheres Mais Velhas!!!
— Céus! — exclamou o embaixador.
— Céus! — ecoou Will, obedientemente.
No conceito da rani, as mulheres mais velhas eram muito mais perigosas do que aquelas moças precoces e promíscuas. Uma mulher madura, sendo instrutora de amor, seria uma espécie de mãe rival, gozando a monstruosa vantagem de ser livre até os limites do incesto, pensava Will.
— Elas ensinam… — a rani hesitou. — Elas ensinam Técnicas Especiais.
— Que espécie de técnicas?
Ela não conseguiu entrar em detalhes repulsivos. E, de qualquer modo, não era necessário, pois Murugan (Deus o abençoe) havia se recusado a ouvi-las. Lições de imoralidade ministradas por alguém com idade bastante para ser sua mãe — a simples idéia o nauseara. Essa atitude não constituiu surpresa, pois ele crescera aprendendo a respeitar o Ideal de Pureza.
— Brahmachaya. Você sabe o que isso significa?
— Sei — disse Will.
— Essa é outra razão pela qual considero sua enfermidade como uma bênção disfarçada, uma verdadeira dádiva de Deus. Penso que não poderia tê-lo educado dessa forma aqui em Pala, onde as influências nocivas são tão numerosas. Forças trabalhando contra a Pureza, contra a Família e mesmo contra o Amor Materno.
Will ficou atento.
— Chegaram mesmo a reformar as mães?
Ela assentiu.
— Você não imagina a que ponto as coisas chegaram. Mas Koot Hoomi sabia que espécie de perigos correríamos. Que aconteceu? Meu filhinho ficou doente e os médicos nos enviaram à Suíça, onde ficamos fora do alcance da Maldade.
— Como foi que Koot Hoomi permitiu que saísse em Cruzada? — perguntou Will. — Será que não previu o que aconteceria a Murugan assim que a senhora virasse as costas?
— Ele anteviu tudo — disse a rani. — As tentações, a resistência e o assalto conjunto de todas as Forças do Mal. Sabia também que a Salvação viria no último instante!… Por longo tempo — explicou ela —, Murugan não me disse o que estava acontecendo. Após três meses, os assaltos da Força do Mal foram demasiados e então ele começou a fazer alusões veladas. Mas eu estava demasiadamente absorvida no trabalho do meu Mestre e não dei a devida atenção. Finalmente ele me escreveu uma carta onde me explicava tudo em detalhes. Cancelei minhas quatro últimas palestras no Brasil e fui para casa nas asas do mais rápido dos jatos. Uma semana depois, estávamos de volta à Suíça. Apenas o meu filhinho e eu, sós com o Mestre.
Ela cerrou os olhos e uma expressão de êxtase maligno apareceu em seu rosto. Will desviou os olhos enojado. Essa salvadora do mundo que se auto-canonizava, essa mãe arrebatada e dominadora se teria visto, por um instante, com os olhos dos outros? Teria consciência do que já havia feito e continuava fazendo àquele filhinho tolo?
Para a primeira pergunta a resposta era certamente negativa. A respeito da segunda, podia-se conjeturar. Talvez ela realmente não soubesse o que fizera ao jovem. Por outro lado, talvez soubesse. Talvez preferisse o que estava acontecendo com o coronel Dipa ao que poderia vir a acontecer, caso a educação do filho fosse empreendida por uma outra mulher. A mulher poderia suplantá-la, mas não havia esse risco com o coronel.
— Murugan me disse que pretende modificar essas chamadas «reformas», ora em vigor.
— A única coisa que posso fazer é rezar para que lhe sejam dadas a Força e a Sabedoria de que necessitará para realizá-la — disse a rani num tom que fez com que Will se lembrasse do seu avô arquidiácono.
— E o que pensa de seus outros projetos? Sobre o petróleo, as indústrias e a criação de um exército?
— Economia e política não são o meu forte — respondeu com uma risadinha cuja intenção era lembrá-lo de que estava falando com alguém que havia recebido a «Quarta Iniciação». — Pergunte a Bahu o que ele acha.
— Não tenho o direito de emitir opinião — disse o embaixador. — Sou um estranho que representa uma potência estrangeira.
— Não tão estrangeira — disse a rani.
— Não, perante seus olhos, minha senhora. E não, como a senhora o sabe muito bem, perante os meus. Mas, aos olhos do governo palanês, sou considerado como um estrangeiro.
— Mas isso não o impede de ter opiniões próprias — disse Will. — Apenas evita que tenha de seguir as opiniões ortodoxas locais. Quero lembrá-lo — acrescentou — de que não estou aqui como um profissional. O senhor não está sendo entrevistado, senhor embaixador. O que me disser não constituirá assunto de reportagem.
— Minha opinião estritamente pessoal (não como um representante oficial) e confidencial é de que o nosso jovem amigo está inteiramente certo.
— Deduzo daí que o senhor acha que a política do governo palanês é inteiramente errada.
— Exatamente — disse Mr. Bahu. E a máscara ossuda e vigorosa de Savonarola se retorceu num sorriso voltairiano. — Está inteiramente errada por ser inteiramente certa.
— Certa? — protestou a rani. — Certa?
— Inteiramente certa porque visava a dar o máximo de liberdade e de felicidade concebíveis a cada homem, mulher e criança desta encantadora ilha.
— Porém com uma falsa felicidade e uma liberdade apenas para o Eu Inferior! — gritou a rani.
— Eu me curvo — disse o embaixador, curvando-se devidamente — diante do alto discernimento de Vossa Majestade. No entanto, superior, inferior, verdadeira ou falsa, a felicidade é sempre a felicidade e a liberdade é bastante agradável. Não pode haver dúvidas de que a política iniciada pelos reformadores e desenvolvida através dos anos foi admiravelmente bem adaptada na obtenção desses dois objetivos.
— O senhor pensa que esses objetivos sejam indesejáveis? — indagou Will.
— Pelo contrário, todos os desejam. Infelizmente, porém, devido a presente situação do mundo em geral, e de Pala em particular, eles foram completamente ultrapassados.
— Serão menos importantes agora do que o foram quando os reformadores iniciaram o trabalho em prol da felicidade e da liberdade?
O embaixador assentiu.
— Naquela época Pala não constava dos mapas. A idéia de transformá-la num oásis de liberdade e felicidade tinha razão de ser. Enquanto permanecer sem contato com o resto do mundo, uma sociedade ideal pode subsistir. Eu diria que Pala era completamente viável até cerca de 1905. Mas em menos de uma geração o mundo se transformou completamente. Os cinemas, os automóveis, os aeroplanos e o rádio apareceram. E, com eles, a produção em massa, a matança em massa, a comunicação em massa e, dominando tudo, a massa: gente, cada vez mais gente, acomodada em cortiços e subúrbios cada vez maiores. Por volta de 1930 qualquer observador esclarecido teria notado que, para três quartos da raça humana, a liberdade e a felicidade eram assuntos quase fora de discussão. Hoje, após trinta anos, estão completamente fora de questão. Enquanto isso, essa pequena ilha de liberdade e felicidade vem sendo envolvida pelo mundo. O cerco vem se fechando vagarosa e inexoravelmente em torno dela. Aquilo que antes era um ideal viável, agora não o é mais.
— Na sua opinião, Pala terá de se transformar?
Mr. Bahu concordou.
— Radicalmente — respondeu.
— Dos pés à cabeça — disse a rani, com o prazer sádico de um profeta.
— E por duas irrefutáveis razões — continuou Mr. Bahu. — Primeiro, porque é simplesmente impossível que Pala continue sendo diferente do resto do mundo. Segundo, porque não é justo que seja diferente.
— Não é justo que as pessoas sejam livres e felizes?
Uma vez mais a rani disse algo inspirado a respeito do conceito errôneo de felicidade e de liberdade.
Mr. Bahu, após tomar um conhecimento respeitoso da interrupção, dirigiu-se novamente a Will:
— Não é justo que ostentem felicidade frente a tanta miséria. É hubris total, é uma afronta deliberada ao resto da humanidade. Chega mesmo a ser uma espécie de desafio a Deus.
— Deus, Deus… — murmurou a rani fechando os olhos voluptuosamente. Reabrindo-os, continuou: — Esse povo de Pala não acredita em Deus. Crê apenas em Hipnotismo, Panteísmo e Amor Livre.
Essas palavras, ditas de modo enfático, traduziam uma indignada repugnância.
— E a senhora se propõe a torná-los infelizes, na esperança de que isto lhes devolva a fé em Deus? Bem, este é um modo de conseguir conversões! Talvez funcione e o fim venha a justificar os meios — disse Will com um encolher de ombros. — Vejo, porém que todo esse plano, não importa que seja bom ou mau, será bem-sucedido. Também não importa saber como os palaneses o encaram. Não é necessário ser um profeta para predizer o sucesso de Murugan. Ele está cavalgando a onda do futuro, e essa onda é, sem dúvida, uma onda de petróleo bruto. Por falar em petróleo — acrescentou —, tenho a impressão de que a senhora conhece meu velho amigo Joe Aldehyde…
— Você o conhece?
— Muito bem.
— Então era por isso que minha Pequena Voz estava tão insistente! — Fechando novamente os olhos, ela sorriu para si mesma e meneou a cabeça devagar.
— Agora compreendo! — E, mudando de tom: — Como vai aquele homem a quem tanto estimo? — perguntou.
— Continua o mesmo de sempre.
— Que personalidade rara! L’homme au cerf-volant é como eu o classifico.
— O empinador de papagaios? — Will estava intrigado.
— Enquanto trabalha, ele não deixa de segurar uma das extremidades de um cordel que sustém um papagaio. Um papagaio que está sempre tentando subir mais alto, mais alto, mais ALTO. Mesmo quando envolvido pelos negócios, não deixa de sentir o Puxar do Alto, sentir o Espírito arrastando insistentemente a carne. Pense! Um homem de negócios, um grande Capitão da Indústria, para quem a única coisa que Realmente Importa é a Imortalidade da Alma! Você já imaginou a significação disso?
As coisas tornaram-se claras. A mulher estivera falando sobre o ingresso de Joe Aldehyde no Espiritualismo. Lembrou-se daquelas sessões espíritas semanais com Mrs. Harbotle (a autômata) e com Mrs. Pym (que era «dirigida» por um índio kiowa chamado Bawbo). Lembrou-se de Miss Tuke e de sua trombeta flutuante, pela qual, num chiado susssurrado, ela proferia palavras oraculares, que eram taquigrafadas pela secretária particular de Joe: «Compre cimento australiano. Não se alarme pela queda nas Breakfast Foods. Livre-se de quarenta por cento das suas ações de borracha e empregue o dinheiro em IBM e Westinghouse…»
— Alguma vez ele lhe falou a respeito daquele falecido corretor que sempre sabia como seria o movimento do mercado na semana seguinte? — perguntou Will.
— Sidhis — disse a rani, indulgente. — Apenas sidhis. O que se pode esperar deles? Quanto a Joe, é apenas um Principiante e, neste momento de sua vida, o negócio é o seu «carma». Ele foi predestinado a fazer o que fez, o que faz e o que fará. E o que fará — continuou ela, dramaticamente, ficando imóvel numa atitude de expectativa, com o dedo erguido e a cabeça levantada —, e entre o muito que fará (isso é o que minha Pequena Voz está dizendo) estão incluídas coisas grandes e maravilhosas aqui em Pala.
Que maneira espiritual de dizer: «É isso que eu quero que aconteça! Não como eu quero, mas sim como Deus o quer — e, por uma coincidência feliz, a Vontade de Deus e a minha sempre são idênticas!»
Ao pensar nisso, Will sorria interiormente, conservando porém a fisionomia impassível.
— Sua Pequena Voz diz alguma coisa a respeito da Petróleo do Sudeste da Ásia?
A rani voltou a «escutar» e depois balançou a cabeça, afirmativamente.
— Com toda a clareza.
— Presumo que o coronel Dipa não fale em outra coisa senão na Standard da Califórnia. Tenho curiosidade em saber — continuou Will — por que Pala tem de se preocupar com a preferência do coronel a respeito de companhias de petróleo.
— Meu governo — replicou Mr. Bahu sonoramente — está pensando em termos de um Plano Qüinqüenal para Coordenação e Cooperação entre as ilhas.
— Nesse plano está implícito que a Standard deverá ter o monopólio?
— Somente se as condições oferecidas forem mais vantajosas do que as dos outros competidores.
— Em outras palavras — disse a rani —, apenas se não houver alguém que nos pague mais.
— Antes de sua vinda, estava discutindo esse assunto com Murugan — informou Will. — A Companhia de Petróleo do Sudeste da Ásia dará a Pala aquilo que a Standard der e mais um pouco, eu disse a ele.
— Quinze por cento a mais?
— Digamos dez.
— Doze e meio.
Will olhou-a com admiração. Para alguém que tinha alcançado a Quarta Iniciação, ela estava indo bem.
— Joe Aldehyde dará urros, mas tenho certeza de que a senhora acabará conseguindo os doze e meio por cento.
— Não há dúvida de que é uma proposta bastante atraente — disse Mr. Bahu.
— O único problema é que o governo palanês não a aceitará.
— O governo palanês não tardará em mudar sua política — disse a rani.
— A senhora pensa assim?
— Eu o SEI — respondeu a rani, num tom que tornou bem claro que a informação tinha vindo diretamente do Mestre.
— Quando sobreviesse essa mudança, não seria bom que alguém dissesse ao coronel Dipa uma palavrinha em favor da Petróleo do Sudeste da Ásia?
— Sem a menor dúvida.
Will voltou-se para Mr. Bahu:
— Estaria o senhor preparado, senhor embaixador, a tratar do assunto com o coronel Dipa?
Com polissílabos, como se estivesse se dirigindo ao plenário de alguma organização internacional, Mr. Bahu se esgueirou diplomaticamente. Por um lado, sim, mas pelo outro, não. De um ponto de vista, branco; porém, de um ângulo diferente, distintamente negro.
Will escutou-o, mantendo um silêncio polido. Atrás da máscara de Savonarola, atrás do monóculo aristocrático e da verbosidade do embaixador, ele via e ouvia o corretor levantino em busca da sua comissão, o oficial insignificante mendigando uma gratificação. Quanto teria sido prometido àquela «real iniciada» para que patrocinasse com tanto entusiasmo a causa da Petróleo do Sudeste da Ásia? E claro que ela nada queria para si mesma! Evidentemente que não! Não é preciso dizer que tudo se destinaria à Cruzada do Espírito e à maior glória de Koot Hoomi.
Mr. Bahu alcançara a peroração do seu discurso no plenário da organização internacional:
— Conseqüentemente, deve ser compreendido — dizia ele — que qualquer atitude a ser tomada por mim ficará na dependência do momento oportuno. Estou sendo bastante claro?
— Perfeitamente — assegurou-lhe Will. — E agora deixe-me expor minha posição nesse assunto — continuou com chocante franqueza. — O que me interessa é o dinheiro. Receberei duas mil libras para não fazer absolutamente nada. Terei um ano de liberdade apenas para ajudar Joe Aldehyde a pôr as mãos em Pala.
— Lorde Aldehyde — disse a rani — é extraordinariamente generoso.
— Extraordinariamente — concordou Will —, considerando-se o pouco que posso fazer neste assunto. Não é necessário dizer que ele será ainda mais generoso com alguém que possa colaborar mais eficazmente.
Houve um longo silêncio. À distância, um pássaro mainá gritava monotonamente: «Atenção!» Atenção para a avareza, atenção para a hipocrisia, atenção para o cinismo vulgar…
Bateram à porta.
— Entre — disse Will. Virando-se para Mr. Bahu, sugeriu: — Continuemos essa conversa em outra ocasião. — Mr. Bahu concordou. — Entre — repetiu ele.
Uma jovem de cerca de vinte anos, vestindo uma saia azul e um casaco curto, sem botões, que deixava sua cintura descoberta e que somente às vezes escondia um par de seios redondos como maçãs, entrou alegremente no quarto. Em seu rosto moreno havia um sorriso de amigável saudação, salientado por duas covinhas laterais.
— Sou a enfermeira Appu — apresentou-se. — Radha Appu. — Notando as visitas de Will, interrompeu-se: — Oh, desculpe-me! Não sabia… — Fez uma reverência mecânica à rani.
Enquanto isso, Mr. Bahu levantara-se cortesmente.
— Enfermeira Appu — disse entusiasticamente. — Meu anjinho do hospital de Shivapuram. Que surpresa agradável.
Will percebeu logo que a surpresa estava bem longe de ser agradável.
— Como está o senhor, Mr. Bahu? — perguntou a enfermeira sem nenhum sorriso.
Virando-se rapidamente, começou a ocupar-se com as alças da bolsa de lona que trazia consigo.
— Vossa Majestade provavelmente se esqueceu, mas eu tive de ser submetido a uma intervenção cirúrgica no verão passado — disse Mr. Bahu. — Hérnia — especificou ele. — Bem, essa jovem costumava vir lavar-me todas as manhãs, às oito e quarenta e cinco, pontualmente. E agora, após ter desaparecido por todos esses meses, eis que a encontro de novo!
— Sincronização — disse a rani, oracularmente. — É tudo parte do Plano.
— Deveria aplicar uma injeção em Mr. Farnaby — disse a enfermeira, levantando os olhos de sua bolsa, ainda sem sorrir.
— As ordens do médico são ordens para ser cumpridas — disse a rani, exagerando o papel do personagem real que se permite uma benevolência brincalhona. — Ouvir é obedecer! Mas, onde está o meu chofer?
— O seu chofer está aqui — respondeu uma voz familiar.
Belo como uma aparição de Ganimedes, Murugan estava parado à porta. Um olhar de surpresa surgiu no rosto da pequena enfermeira.
— Alô, Murugan, quero dizer, Majestade. — Ela fez outra reverência que tanto poderia ser julgada como um sinal de respeito quanto de irônica zombaria.
— Oh! Alô, Radha — disse o jovem num tom intencionalmente cerimonioso. Passando por ela, foi até onde sua mãe estava sentada. — O carro, se aquilo pode ser chamado de carro, está à porta. — Com um riso sarcástico, explicou a Will: — É um pequeno Austin da série de 1954. É o que de melhor este país altamente civilizado pode fornecer à sua família real. Enquanto isso, Rendang dá ao seu embaixador um Bentley — comentou com amargura.
— O qual virá me buscar neste endereço em cerca de dez minutos — disse Mr. Bahu, olhando para seu relógio. — Vossa Majestade permite que eu me retire? — A rani estendeu a mão. Com a piedade de um bom católico que beija o anel do cardeal, curvou-se sobre ela. Porém, endireitando-se, virou-se para Will: — Presumo, talvez injustamente, que Mr. Farnaby possa acolher— me por um pouco mais. Poderia ficar? — Will assegurou-lhe que seria um prazer. — Espero que não haja objeção no terreno da medicina — disse Mr. Bahu, dirigindo-se à pequena enfermeira.
— Não no terreno médico — disse a jovem num tom que dava a impressão da existência das mais irrefutáveis objeções não— médicas.
Auxiliada por Murugan, a rani se levantou da cadeira.
— Au revoir, mon cher Farnaby — disse, enquanto lhe estendia a mão coberta de jóias.
Seu sorriso estava carregado de uma doçura que Will considerou positivamente ameaçadora.
— Adeus, madame.
Ela virou-se, deu um tapinha na face da enfermeira e saiu do quarto. Tal uma lancha que seguisse na esteira de um navio de linha, armado em galera, Murugan acompanhou-a.