O Estrela Distante decolou silenciosamente, deixando para trás a ilha escura. Os poucos pontos de luz que havia na terra foram ficando mais fracos até desaparecerem. Quando a altitude tornou a atmosfera mais rarefeita, a velocidade da nave aumentou e os pontos de luz que havia no céu ficaram mais fortes e mais numerosos.
Pouco depois, o planeta Alfa estava reduzido a um crescente iluminado, quase totalmente coberto por nuvens.
— Duvido que eles tenham naves espaciais — disse Pelorat. — Conseguimos escapar.
— Isso não me serve de consolo — disse Trevize, tristemente. — Estou contaminado.
— O vírus não está ativo — disse Bliss.
— Mas pode ser ativado. Eles tinham um método. Qual é o método?
Bliss deu de ombros.
— Hiroko disse que se o vírus não fosse ativado, morreria rapidamente.
— Foi? E como é que ela sabe? Pior ainda, como é que nós sabemos que estava dizendo a verdade? Mesmo que estivesse, será que o método de ativação não pode ser duplicado naturalmente? Um certo produto químico, um tipo de radiação, um... um sabe lá o quê? Posso ficar doente a qualquer momento e nesse caso vocês três também morrerão. Se isso acontecer depois que chegarmos a um planeta habitado, pode haver uma grande epidemia, que os viajantes se encarregarão de espalhar por toda a Galáxia! Olhou para Bliss.
— Há alguma coisa que você possa fazer? A moça balançou a cabeça.
— Não é fácil. Gaia tem muitos parasitas: micro-organismos, vermes. Eles estão perfeitamente integrados ao ecossistema. Vivem e contribuem para a consciência global, mas jamais se reproduzem em excesso. O problema, Trevize, é que o vírus que contaminou você não é parte de Gaia.
— Você disse que “não é fácil”. Dadas as circunstâncias, pode se dar ao trabalho de fazer alguma coisa, mesmo que seja difícil? Capaz de localizar o vírus dentro do meu organismo e destruí-lo? S não for, pode pelo menos reforçar minhas defesas imunológicas?
— Faz ideia do que está me pedindo, Trevize? Não estou familiarizada com a flora microscópica que habita o seu corpo. Não será fácil distinguir o material genético do vírus do seu material genético. Pode ser ainda mais difícil distinguir o vírus em que estamos interessado dos vírus inofensivos que vivem nas suas células. Vou tentar, Trevize mas levará tempo e não posso garantir nada.
— Leve o tempo que quiser — disse Trevize —, mas tente!
— Está bem — disse Bliss Pelorat interveio:
— Se Hiroko disse a verdade, Bliss, talvez você possa procura um vírus cuja vitalidade esteja diminuindo e acelerar esse declínio.
— Boa ideia — disse Bliss.
— Não vai fraquejar? — perguntou Trevize. — Quando mata os vírus, estará destruindo preciosos pedaços de vida, você sabe...
— Está sendo irônico, Trevize, mas o que disse não deixa de ser verdade. Acontece que você é mais importante que o vírus. Não se preocupe: se tiver uma oportunidade de matar o vírus, não hesitarei. Mesmo que não fosse por você — os lábios da moça se contraíram, com se ela estivesse reprimindo um sorriso —, teria que pensar em Pelorat e Fallom, que correm praticamente o mesmo risco. Eu mesma estou correndo perigo...
— Não confio muito no seu instinto de autopreservação — murmurou Trevize. — Você estaria perfeitamente disposta a dar a vi por alguma causa nobre. Entretanto, acredito na sua preocupação com o bem-estar de Pelorat e da criança... por falar nisso, não estou ouvindo a flauta de Fallom. Alguma coisa de errado com ela?
— Não — respondeu Bliss. — Está dormindo. Um sono perfeitamente normal. Sugiro que, depois que você calcular o Salto até a estrela que pensamos ser o sol da Terra, nós todos vamos para a cama. Estou muito cansada e suponho que você também esteja.
— Claro que estou, mas não sei se vou conseguir dormir. Bliss, você tinha razão.
— A respeito de quê?
— A respeito dos Isolados. Apesar das aparências, a Nova Terra não era um paraíso. Inicialmente, eles nos trataram bem apenas para nos deixar à vontade, para que pudessem contaminar um de nós sem que percebêssemos. Depois, toda aquela encenação, com festivais disso e daquilo, tinha por objetivo ganhar tempo até que os pescadores chegassem e o vírus pudesse ser ativado. E teria dado certo, se não fosse por causa de Fallom e sua música. Nesse ponto você também estava certa.
— Está falando de Fallom?
— Isso mesmo. Eu não queria trazê-la e sua presença a bordo sempre me desagradou. Foi exclusivamente graças a você, Bliss, que ela está aqui, e foi ela que involuntariamente nos salvou a todos. Mesmo assim...
— Mesmo assim o quê?
— Mesmo assim, ainda me sinto pouco à vontade na presença de Fallom. Não sei por quê.
— Se isso o faz sentir-se melhor, Trevize, acho que o mérito não foi apenas de Fallom. Hiroko usou a música de Fallom como desculpa para cometer o que os alfanos devem considerar como ato de traição. Talvez acreditasse nisso, mas havia outra coisa no seu subconsciente, algo que percebi mas não pude identificar com clareza, algo que talvez tivesse vergonha de encarar de frente. Tenho a impressão de que Hiroko se sentia atraída por você e não teve coragem de sentir-se responsável pela sua morte.
— Acha mesmo? — perguntou Trevize, sorrindo pela primeira vez desde que haviam partido de Alfa.
— Acho. Deve ser alguma coisa na maneira como trata as mulheres. Conseguiu convencer a ministro Lizalor a nos deixar partir e agora, graças a você, Hiroko decide poupar nossas vidas. Está de parabéns.
O sorriso de Trevize aumentou.
— Obrigado... bom, vamos para a Terra!
Dirigiu-se para a sala de comando em um passo quase saltitante.
— Você acabou encontrando um jeito de acalmá-lo, não é, Bliss?
— Não, Pelorat, não mexi na mente de Trevize.
— Claro que mexeu, quando gratificou a sua vaidade masculina de forma tão escandalosa.
— Se mexi, foi apenas de forma indireta — disse Bliss, sorrindo.
— Mesmo assim, obrigado, Bliss.
Depois Do Salto, a estrela que poderia ser o sol da Terra ainda estava a um décimo de parsec de distância. Era de longe o astro mais brilhante do céu, mas ainda não passava de uma estrela.
Trevize examinou-a na tela do telescópio. Ele disse:
— É muito parecida com Alfa, a estrela da Nova Terra. No entanto, Alfa consta do mapa do computador e esta estrela, não.
— Não é o que devíamos esperar se essa estrela fosse o sol da Terra? — perguntou Pelorat. — Não se esqueça de que, aparentemente, alguém está empenhado em eliminar todas as informações que existem a respeito da Terra.
— Sim, mas pode ser também que se trate de um planeta dos Espaciais que não conste da lista que encontramos naquele palácio de Melpomenia. Nada nos garante que aquela lista estivesse completa. Pode ser também que esta estrela não tenha nenhum planeta e por isso não apareça no mapa do computador, que é usado principalmente para fins comerciais e militares... Janov, existe alguma lenda a respeito de um estrela semelhante ao sol da Terra a pouco mais de um parsec de distância?
Pelorat balançou a cabeça.
— Sinto muito, Golan, mas não me lembro de nenhuma história desse tipo. Isso, porém, não quer dizer que não exista. Minha memória não é perfeita. Se quiser, posso dar uma busca na biblioteca de bordo.
— Não é importante. O sol da Terra tem um nome?
— O sol da Terra tem vários nomes. Acho que deve haver um nome para cada uma das antigas línguas da Terra.
— Esqueci-me de que a Terra tinha várias línguas.
— Deve ter tido. Muitas das lendas se referem diretamente a esse fato.
— O que faremos, então? — disse Trevize, irritado. — A essa distância, não podemos dizer nada sobre os planetas dessa estrela se é que existem. Vamos ter que chegar mais perto. Gostaria de ser cauteloso, mas não quero exagerar; a verdade é que não vejo nenhum sinal de perigo. Provavelmente, qualquer coisa suficientemente poderosa para apagar as informações existentes sobre a Terra em toda a Galáxia seria suficientemente poderosa para acabar conosco agora mesmo, se quisesse. Não é racional ficarmos aqui para sempre só porque estamos com medo de que algo aconteça se chegarmos mais perto.
— Presumo que o computador não detectou nada que possa ser interpretado como perigoso — disse Bliss.
— Quando disse que não via sinais de perigo, estava me referindo exatamente às observações do computador. É evidente que não estou vendo nada a olho nu. Seria impossível.
— Então o que você está fazendo é perguntar se concordamos com uma decisão que considera arriscada. Por mim, está bem. Não viemos até aqui para desistir sem uma boa razão, não é mesmo?
— É o que eu acho — disse Trevize. — E você, Pelorat?
— Também acho que devemos prosseguir, nem que seja por mera curiosidade. Seria insuportável voltar para casa sem termos certeza de que encontramos a Terra.
— Então estamos todos de acordo — disse Trevize.
— Não sei — disse Pelorat. — Você não perguntou a Fallom. Trevize parecia indignado.
— Está querendo que eu consulte a criança? De que vale a opinião dela, mesmo que tenha uma? Além disso, provavelmente tudo o que quer é voltar a Solaria!
— Pode culpá-la por isso? — perguntou Bliss.
Como haviam falado de Fallom, Trevize de repente se deu conta de que a criança estava tocando a flauta. Era uma marcha com um ritmo alegre e contagiante.
— Escutem só — disse ele. — Quem lhe ensinou a tocar marchas?
— Talvez tenha aprendido com Jemby. Trevize sacudiu a cabeça.
— Duvido. Provavelmente o robô só tocava cantigas de ninar, coisas assim... Escute, Fallom me dá arrepios. Ela aprende depressa demais!
— Eu ensinei muita coisa a ela, não se esqueça — disse Bliss. — Além disso, é uma criança muito inteligente e foi bastante estimulada desde que está conosco. Sua mente foi inundada por novos conhecimentos e sensações. Viajou pelo espaço, visitou um outro mundo, esteve pela primeira vez com muitas pessoas.
A marcha que Fallom estava tocando ficou mais frenética. Trevize suspirou e disse:
— Seja como for, ela está aqui, tocando uma música que irradia otimismo e entusiasmo. Vou tomar isso como um voto para prosseguirmos. Vamos em frente, então. Daqui a pouco estaremos em condições de examinar o sistema planetário.
— Se é que ele existe — disse Bliss. Trevize sorriu.
— Claro que existe. Aposto quanto quiser. Escolha a quantia.
— Você perdeu — disse Trevize, distraidamente. — Quanto foi mesmo que apostamos?
— Nada. Não concordei com a aposta — disse Bliss.
— Dá no mesmo. Eu não aceitaria o seu dinheiro. Estavam a dez bilhões de quilômetros do sol. Ainda parecia uma estrela; seu brilho era apenas 1/4.000 do que seria quando visto da superfície do planeta habitável.
— Estou vendo dois planetas no telescópio — disse Trevize. — Pelo diâmetro e pelo espectro da luz refletida, são dois gigantes gasosos.
A nave estava bem acima do plano da eclíptica e Bliss e Pelorat, olhando por cima do ombro de Trevize, viram na tela dois pequenos crescentes esverdeados. O menor estava em uma fase que tornava o! crescente menos estreito que o outro.
Trevize perguntou:
— Janov, não é verdade que o sistema da Terra tem quatro gigantes gasosos?
— É o que dizem as lendas.
— O maior é o que fica mais próximo do sol; o segundo mais próximo do sol é o que tem anéis. Estou certo?
— Anéis muito grandes, Golan. Sim. Acontece, meu velho amigo, que as lendas geralmente exageram muito. Mesmo que não encontremos um planeta com anéis gigantescos, isso não quer dizer que este não seja o sistema da Terra.
— De qualquer forma, os planetas que estamos vendo devem ser os dois mais afastados; os dois gigantes gasosos mais próximos podem muito bem estar do outro lado do sol, difíceis de distinguir das estrelas. Vamos ter que chegar ainda mais perto... e passar para o outro lado do sol.
— Podemos fazer isso tão perto da massa do sol?
— Podemos tentar. Se o computador achar que é muito arriscado, ele se recusará a obedecer-me e teremos que fazer a viagem em saltos menores.
Trevize transmitiu as instruções para o computador e a imagem na tela do telescópio mudou bruscamente. A estrela ficou muito mais brilhante e depois saiu da tela quando o telescópio começou a esquadrinhar o céu à procura de outro gigante gasoso. Afinal, teve sucesso.
Os três adultos ficaram olhando, atônitos, enquanto Trevize, quase paralisado de espanto, tentava ajustar o telescópio para aumentar a ampliação.
— É incrível... — murmurou Bliss.
O telescópio mostrava um gigante gasoso, visto de um ângulo tal que quase toda a superfície estava iluminada. Em volta do planeta havia um anel largo e muito brilhante, dividido em dois por uma fenda escura.
Trevize conseguiu afinal aumentar a ampliação e o anel se dividiu em centenas de pequenos anéis concêntricos. Apenas uma parte do sistema de anéis era visível na tela e o planeta havia ficado de fora. Uma nova instrução de Trevize e um canto da tela passou a mostrar a imagem do planeta e seus anéis, vistos com uma ampliação menor.
— Esse tipo de coisa é comum? — perguntou Bliss, admirada.
— Não — respondeu Trevize. — Quase todo gigante gasoso tem anéis, mas em geral eles são estreitos e pouco luminosos. Na verdade, nunca vi nada parecido com isso, nem imaginava que fosse possível.
— É sem dúvida o gigante com anéis de que falam as lendas — disse Pelorat. — Se anéis assim são tão raros como está dizendo...
— Nunca ouvi falar de um caso semelhante. Nem o computador.
— Então este tem que ser o sistema planetário da Terra. Ninguém poderia inventar um planeta como o que estamos vendo.
— Depois disso, estou preparado para acreditar em qualquer coisa que suas lendas afirmem — disse Trevize. — Este é o sexto planeta e a Terra seria o terceiro?
— Isso mesmo, Golan.
— Então eu diria que estamos a menos de um e meio bilhão de quilômetros da Terra e ninguém ainda fez nada para nos deter. Lembra-se do que Gaia fez quando nos aproximamos?
— Vocês estavam mais próximos de Gaia quando foram interceptados — disse Bliss.
— Acontece — disse Trevize — que na minha opinião a Terra é mais poderosa do que Gaia, de modo que considero isso um bom sinal. Se ainda não fomos detidos, deve ser porque a Terra não se importa de ser visitada.
— Ou porque a Terra não existe — disse Bliss.
— Vamos fazer uma aposta desta vez? — propôs Trevize, irritado.
— Acho que o que Bliss quis dizer — interveio Pelorat — é que pode ser que a Terra ainda esteja radioativa, como todo mundo parece pensar, e que ainda não fomos detidos porque não existe vida na Terra.
— Não! — protestou Trevize, com veemência. — Posso acreditar em tudo que disseram sobre a Terra menos nisso. Vamos chegar mais perto e logo saberemos a verdade.
Os gigantes gasosos tinham ficado para trás. Depois do gigante gasoso mais próximo do sol, haviam passado por um cinturão de asteroides. (Aquele gigante gasoso era o maior de todos, exatamente como diziam as lendas.). Depois do cinturão de esteroides havia quatro planetas.
Trevize examinou-os com cuidado.
— O maior é o terceiro. O tamanho e a distância do sol são apropriados. Pode ser habitável.
Pelorat captou o que parecia ser um traço de insegurança na voz de Trevize. Perguntou:
— O planeta tem atmosfera?
— Oh, sim! — respondeu Trevize. — O segundo, terceiro e quarto planetas têm atmosfera. Como naquela história infantil, a do segundo é densa demais, a do quarto não é suficientemente densa e a do terceiro tem a densidade certa.
— Então acha que pode ser a Terra?
— Se eu acho? — explodiu Trevize. — Não preciso achar! É a Terra. Com o satélite gigante e tudo!
— Verdade?
O rosto de Pelorat se abriu no sorriso mais largo que Trevize jamais havia visto.
— Tenho certeza! Olhe você mesmo.
Pelorat viu dois crescentes, um muito maior e mais brilhante que o outro.
— O menor é o satélite? — perguntou.
— É. Está mais longe do planeta do que se poderia imaginar, mas se trata indiscutivelmente de um satélite. Seu tamanho é o de um pequeno planeta; na verdade, é menor que qualquer dos quatro planetas interiores. Mesmo assim, é bem grande para um satélite. Tem pelo menos dois mil quilômetros de diâmetro, o que o torna tão grande quanto os maiores satélites dos gigantes gasosos.
— Só isso? — Pelorat parecia desapontado. — Então não é um satélite gigantesco?
— É, sim. Um satélite de dois ou três mil quilômetros de diâmetro girando em torno de um gigante gasoso é uma coisa. O mesmo satélite girando em torno de um pequeno planeta rochoso é outra completamente diferente. O diâmetro daquele satélite é um quarto do diâmetro da Terra. Acha isso normal?
— Não entendo dessas coisas — disse Pelorat, timidamente.
— Então acredite em mim, Janov. É uma coisa raríssima! O que estamos vendo é praticamente um planeta duplo, enquanto que os satélites dos planetas habitáveis em geral são muito pequenos... Janov, se você pensar naquele gigante gasoso com um sistema de anéis e neste planeta com um satélite gigantesco, ambos correspondendo exatamente ao que as lendas descreviam, e que nos parecia um despropósito, verá que não há engano possível: este planeta tem que ser a Terra. Nós a encontramos, Janov! Nós a encontramos!
Estavam viajando há dois dias em direção à Terra e Bliss bocejou enquanto jantavam. Ela disse:
— Parece que passamos mais tempo nos aproximando e nos afastando dos planetas do que fazendo qualquer outra coisa.
— Em geral isso acontece porque é perigoso executar o Salto quando estamos muito perto de uma estrela — disse Trevize. — Neste caso, porém, estamos indo ainda mais devagar porque não quero arriscar mais que o necessário.
— Você não disse que tinha o palpite de que não seremos interceptados?
— Disse, mas não quero ser imprudente por causa de um mero palpite.
Trevize olhou para o conteúdo da colher antes de levá-la à boca disse:
— Sinto falta do peixe de Alfa. Pensando bem, só comemos três refeições lá.
— Uma pena — concordou Pelorat.
— Até agora visitamos cinco planetas. Pois de todas as vezes tivemos que partir com tanta pressa que não houve tempo para abastecermos a nave com alimentos locais. Mesmo quando havia facilidade de obter comida, como em Comporellon, em Alfa e provavelmente em...
A jovem não completou a frase porque Fallom foi mais rápida.
— Em Solaria? Vocês não conseguiram comida em Solaria? Há muita comida lá. Melhor do que a de Alfa.
— Eu sei disso, Fallom — disse Bliss. — Só que não tivemos tempo.
Fallom olhou para a jovem, muito séria.
— Será que vou tornar a ver Jemby, Bliss? Diga-me a verdade.
— Pode ser, se voltarmos a Solaria — respondeu Bliss.
— Vamos voltar a Solaria? Bliss hesitou e depois disse:
— Isso eu não sei.
— Agora estamos indo para a Terra, não é? Para o planeta de onde todos nós viemos?
— De onde nossos antepassados vieram — disse Bliss.
— Eu já sei dizer “ancestrais” — disse Fallom.
— Sim, estamos indo para a Terra.
— Para quê?
— Não é interessante conhecer o mundo dos nosso ancestrais?
— Acho que não é só isso. Vocês três parecem tão preocupados...
— É porque nunca estivemos na Terra. Não sabemos o que esperar.
— Acho que não é só isso. Bliss sorriu.
— Você já acabou de comer, Fallom querida. Por que não vai até o seu quarto e toca um pouco de flauta para nós? Você está tocando cada vez melhor. Vá, vá.
Deu um tapinha no traseiro da criança e Fallom foi para o quarto, parando uma vez no caminho para olhar desconfiada para Trevize.
Trevize olhou de volta com manifesto desagrado.
— Será que essa coisa é capaz de ler pensamentos?
— Não a chame de “coisa”, Trevize! — protestou Bliss.
— Será que ela é capaz de ler pensamentos? Você deve saber.
— Não, ela não é capaz. Nem ela, nem Gaia, nem os membros da Segunda Fundação. Ler pensamentos, no sentido de ter uma ideia exata do que uma pessoa está pensando, é uma coisa que ninguém pode fazer atualmente, nem no futuro previsível. Podemos sentir, interpretar e, até certo ponto, manipular as emoções alheias, mas isso não é a mesma coisa.
— Como pode saber que ela não é capaz de fazer essa coisa que supostamente não pode ser feita?
— Como você mesmo disse, eu saberia.
— Talvez ela esteja manipulando você para que não perceba que está lendo pensamentos.
Bliss revirou os olhos.
— Seja razoável, Trevize. Mesmo que Fallom tivesse poderes extraordinários, não poderia fazer nada comigo, porque eu não sou Bliss, eu sou Gaia. Faz uma ideia do poder mental de um planeta inteiro? Pensa que um Isolado, por mais talentoso que fosse, seria capaz de me iludir?
— Você não sabe tudo, Bliss — insistiu Trevize. — Essa coi... Ela está conosco há pouco tempo. Nesse tempo, eu mal teria conseguido aprender os rudimentos de uma língua, e no entanto ela fala galáctico praticamente sem sotaque e com um extenso vocabulário. Sim, eu sei que você a tem ajudado, mas gostaria que parasse.
— Eu lhe disse que estava ajudando Fallom, mas também disse que ela é uma criança extraordinariamente inteligente. Tão inteligente que gostaria que fizesse parte de Gaia. Ela ainda é suficientemente imatura para adaptar-se a nós. Talvez um dia, com sua ajuda, possamos absorver todos os solarianos. Seria uma excelente aquisição para nós.
— Já lhe ocorreu que os solarianos são Isolados patológicos, mesmo de acordo com os meus padrões?
— Eles mudariam quando passassem a fazer parte de Gaia.
— Acho que você está errada, Bliss. Acho que a criança solariana é perigosa e que devemos nos livrar dela.
— Como? Vamos jogá-la no espaço? Vamos matá-la, parti-la em pedaços e comê-la no jantar?
— Oh, Bliss! — exclamou Pelorat.
— Você está sendo desagradável sem necessidade — disse Trevize. Escutou por um momento. A flauta estava tocando sem hesitação e a conversa toda era em voz baixa. — Quando tudo isso terminar, vamos levá-la de volta para Solaria e tomar providências para que Solaria deixe de ser uma ameaça para os viajantes incautos. Em minha opinião, talvez fosse melhor destruir o planeta de uma vez.
Bliss pensou um pouco e disse:
— Trevize, sei que você tem o dom de tomar as decisões corretas, mas também sei que implicou com Fallom desde o princípio. Acho que isso aconteceu porque foi humilhado em Solaria e por isso desenvolveu um ódio violento pelo planeta e seus habitantes. Como não quero intrometer-me em sua mente, não posso ter certeza. Não se esqueça, porém, de que se não tivéssemos trazido Fallom conosco, ainda estaríamos em Alfa... mortos e provavelmente enterrados.
— Sei disso, Bliss, mas mesmo assim...
— A inteligência da criança é para ser admirada e não invejada!
— Não invejo Fallom. Tenho medo dela!
— Da inteligência dela?
Trevize passou a língua nos lábios, pensativamente.
— Não, não da inteligência.
— De quê, então?
— Não sei. Bliss, se eu soubesse do que tenho medo, talvez o medo desaparecesse. É alguma coisa que não consigo compreender muito bem. — Passou a falar mais baixo, como se estivesse conversando consigo mesmo. — A Galáxia parece estar cheia de coisas que não compreendo. Por que optei por Gaia? Por que tenho que encontrar a Terra? A psico-história inclui uma suposição desconhecida? Nesse caso, qual é essa suposição. Além de tudo, por que Fallom me deixa nervoso?
— Infelizmente, não posso responder a essas perguntas — disse Bliss.
A moça se levantou e saiu da sala.
— Não precisa ficar tão preocupado, Golan — disse Pelorat. Estamos cada vez mais próximos da Terra; quando chegarmos lá, to dos os mistérios serão esclarecidos. E até agora, ninguém fez nada para nos deter.
Trevize olhou para Pelorat e disse em voz baixa: --- Preferia que alguém fizesse alguma coisa.
— É mesmo? Por quê?
— Pelo menos, seria um sinal de vida. Pelorat arregalou os olhos.
— Acha que a Terra está mesmo radioativa?
— Ainda é cedo para dizer. Descobri, porém, que ela está quente. Bem mais quente do que seria de esperar.
— Isso é mau?
— Não necessariamente. O fato de a superfície estar quente não a torna inabitável. A camada de nuvens é espessa e as nuvens são de vapor d’água, de modo que essas nuvens, juntamente com um oceano, poderiam manter a superfície em condições toleráveis, apesar do calor que detectamos através das emissões de microondas. Ainda não tenho certeza. Só que...
— Sim, Golan?
— Só que se a Terra estiver radioativa, a temperatura da superfície será maior que o esperado.
— Mas a recíproca não é necessariamente verdadeira, não é mesmo? Se a temperatura é maior que o esperado, isso não significa que a Terra está radioativa.
— Tem razão. Não adianta especularmos, Janov. Dentro de um dia ou dois, teremos certeza.
Quando Bliss entrou no quarto, Fallom estava sentada na cama, imersa em pensamentos. A criança olhou rapidamente para Bliss e tornou a baixar os olhos.
— Que foi que houve, Fallom? — perguntou a moça.
— Por que Trevize me detesta tanto, Bliss?
— O que é que faz você pensar que ele a detesta?
— Ele olha para mim com impaciência... é essa a palavra?
— Pode ser.
— Ele olha para mim com impaciência o tempo todo. Além disso, faz cara feia.
— Trevize está passando por momentos difíceis, Fallom.
— Porque está procurando a Terra?
— Sim.
Fallom pensou um pouco e disse:
— Ele fica mais impaciente ainda quando faço um objeto mover-se com a força do pensamento.
— Fallom, eu já não lhe disse para não fazer mais isso, principalmente na presença de Trevize?
— Pois aconteceu ontem, aqui mesmo neste quarto. Ele estava na porta e eu não reparei. Não sabia que estava me observando. Então, fiz um dos livros de Pel ficar de pé sem tocar nele. Que mal há nisso?
— Isso deixa Trevize nervoso, Fallom. Não quero que faça de novo, mesmo que ele não esteja olhando.
— Ele fica nervoso porque não é capaz de fazer a mesma coisa?
— Pode ser.
— Você é capaz?
Bliss balançou a cabeça devagar.
— Não, não sou.
— Mesmo assim, você não fica nervosa. Nem Pel.
— As pessoas são diferentes.
— Eu sei — disse Fallom, com uma amargura súbita que surpreendeu Bliss e a fez franzir a testa.
— Que é que você sabe, Fallom?
— Que eu sou diferente.
— Claro que sim. Foi o que eu disse. As pessoas são diferentes.
— Eu sou mais diferente. Eu posso fazer as coisas se moverem sem tocar nelas.
— É verdade.
Fallom disse, com um traço de rebeldia na voz:
— Eu preciso fazer as coisas se moverem. Trevize não deve ficar zangado com isso. Você não deve me impedir.
— Por que precisa fazer as coisas se moverem?
— Para praticar. Para me exercitar... é essa a palavra?
— Quase. Para se exercitar.
— Isso mesmo. Jemby sempre dizia que eu ia ter que treina meus... meus...
— Lobos transdutores?
— Isso. Só assim eles seriam fortes. Jemby me disse que quando eu crescesse poderia fornecer energia para todos os robôs. Até Jemby.
— Fallom, o que é que fornecia energia para os robôs da sua casa.
— Bander — disse a criança, sem se perturbar.
— Você conhecia Bander?
— É claro. Vi Bander muitas vezes. Eu era o seu sucessor. A propriedade de Bander um dia se tornaria a propriedade de Fallom. Foi Jemby que me contou.
— Quer dizer que Bander esteve no seu..
A boca de Fallom formou um O de espanto. Ela disse, em tom chocado:
— Bander nunca viria ao meu...
A criança pareceu ficar sem ar. Ofegou um pouco e depois explicou:
— Eu vi a imagem de Bander. Bliss perguntou:
— Como é que Bander tratava você? Fallom olhou para Bliss, surpresa.
— Bander sempre me perguntava se eu precisava de alguma coisa, se estava me sentindo bem. Acontece que Jemby estava sempre perto de mim, de modo que eu nunca precisava de nada e sempre me sentia bem.
A criança parou de falar e olhou para o chão. Depois, tapou os olhos com as mãos e disse:
— Mas Jemby parou de funcionar. Acho que foi porque Bander... Bander também parou de funcionar.
— Por que está dizendo isso? — perguntou Bliss.
— Estive pensando. Quem fornecia energia para todos os robôs era Bander. Se Jemby parou e todos os robôs também pararam, deve ter sido porque Bander parou. Não parece lógico?
Bliss ficou calada. Fallom disse:
— Mas quando vocês me levarem de volta para Solaria, vou fornecer energia para Jemby e o resto dos robôs e tudo estará bem de novo.
Começou a soluçar.
— Não se sente feliz conosco, Fallom? — perguntou Bliss. — Nem um pouquinho? Nem às vezes?
Fallom levantou o rosto coberto de lágrimas para Bliss, sacudiu a cabeça e disse, com voz trêmula:
— Eu quero Jemby!
Bliss abraçou a criança com força.
— Oh, Fallom, como eu gostaria de poder devolver você a Jemby. De repente, a moça percebeu que também estava chorando.
Pelorat entrou e encontrou as duas abraçadas. Perguntou, surpreso:
— Que foi que houve?
Bliss levantou-se e começou a procurar um lenço de papel para enxugar os olhos. Sacudiu a cabeça e Pelorat perguntou de novo, preocupado:
— Que foi que houve, afinal? Bliss disse:
— Fallom, descanse um pouco. Vou pensar em alguma coisa que a faça sentir-se melhor. Não se esqueça... eu amo você tanto quanto Jemby.
A jovem segurou Pelorat pelo braço e puxou-o para fora do quarto, dizendo:
— Não é nada, Pel. Nada.
— É Fallom, não é? Ela ainda sente falta de Jemby.
— Demais. E não há nada que eu possa fazer. Posso dizer que a amo... o que é verdade. Como posso deixar de amar uma criança tão sensível e inteligente? Muito inteligente. Inteligente demais, na opinião de Trevize. Sabia que conheceu Bander? Ou por outra, que viu a sua imagem holográfica? Entretanto, não fica nem um pouquinho comovida quando se lembra de Bander e posso compreender por quê. A propriedade pertencia a Bander e, quando ela morresse, passaria a pertencer a Fallom. Essa era a única relação entre as duas.
— Fallom sabe que Bander era seu pai?
— Sua mãe. Se combinamos que Fallom seria considerada como mulher, o mesmo se aplica a Bander.
— Está bem, Bliss querida. Fallom sabe que Bander era sua mãe?
— Não sei se ela compreende bem o que isso significa. Se compreende, não deixou transparecer. Acontece, Pel, que Fallom já se deu conta de que Bander está morta. Ela percebeu que a desativação de Jemby foi consequência de uma falta de energia; como toda a energia da propriedade era fornecida por Bander... isso me assusta.
— Por quê, Bliss? Afinal de contas, é uma conclusão lógica.
— Fallom pode tirar outra conclusão lógica. As mortes devem ser raras em Solaria, onde a população é pequena e vive muito tempo. Para uma criança da idade dela, a morte certamente parece um acontecimento extremamente improvável. Se continuar a pensar na morte de Bander, vai querer saber por que Bander morreu. Então vai se lembra de que isso aconteceu quando chegamos ao planeta e chegará à única conclusão possível.
— De que nós matamos Bander?
— Não fomos nós que matamos Bander, Pel. Fui eu.
— Isso ela não pode adivinhar.
— Não, mas talvez tenha que contar-lhe. Fallom já não gosta muito de Trevize e ele é claramente o líder da expedição. Provavelmente vai considerar Trevize como responsável pela morte de Bander e não posso permitir que cometa essa injustiça.
— Por que não, Bliss? A criança não sentiu a morte do pai... a morte da mãe. Ficou triste foi com a perda do robô, Jemby.
— Acontece, Pel, que a morte da mãe significou a morte do robô. Quase contei a ela que eu fui a responsável.
— Por quê?
— Porque assim teria uma oportunidade de explicar o que aconteceu. Porque assim poderia confortá-la, antecipando-me a uma descoberta que a fará pensar que Bander foi morta sem nenhuma razão.
— Acontece que houve uma razão. Se você não agisse, Bander teria matado todos nós.
— É isso o que eu pretendia dizer a Fallom, mas não tive coragem. Tive medo de que não acreditasse em mim.
Pelorat sacudiu a cabeça e disse:
— Acha que seria melhor se não tivéssemos trazido a criança? Você parece tão triste com a situação...
— Não diga isso! — protestou Bliss, com veemência. — Ficaria muito mais triste se uma criança tivesse sido executada friamente por causa de um ato que eu cometi.
— No mundo de Fallom, isso é normal.
— Não, Pel, não comece a falar como Trevize. Os Isolados conseguem aceitar essas coisas como naturais. O objetivo de Gaia, porém, é salvar vidas, e não destruí-las... nem ficar impassível enquanto vidas são destruídas. Sabemos muito bem que vidas de todos os tipos devem terminar para que outras vidas possam surgir, mas jamais gratuitamente, jamais sem um objetivo. A morte de Bander, embora inevitável, já foi penosa para mim; a de Fallom teria sido insuportável.
— Está bem — disse Pelorat. — Acho que você tem razão. De qualquer forma, não foi sobre Fallom que vim conversar com você, e sim sobre Trevize.
— Que é que há com Trevize?
— Bliss, estou preocupado com ele. Está cada vez mais obcecado com a Terra. Não sei se conseguirá resistir à tensão.
— Não tenha medo. Trevize é uma pessoa sensata e equilibrada.
— Todos nós temos os nossos limites. Bliss, a Terra é bem mais quente do que Trevize esperava. Ele mesmo me disse isso. Acho que está desconfiado de que é quente demais para ser habitável, embora esteja tentando convencer-se do contrário. Mesmo que a temperatura permita a existência de vida, Trevize admite que é possível que o calor seja causado pela radioatividade. Em um dia ou dois, estaremos suficientemente próximos para ter certeza. E se a Terra for inabitável?
— Então ele terá que aceitar o fato.
— Mas... não sei como dizer isso. E se Trevize..
Bliss esperou um pouco e depois completou, com uma careta:
— Entrar em parafuso?
— Isso mesmo. Entrar em parafuso. Não pode fazer alguma coisa para prevenir? Mantê-lo calmo e controlado?
— Não, Pel. Não posso acreditar que Trevize seja tão frágil e, de qualquer maneira, existe uma firme decisão por parte de Gaia de não interferir em sua mente.
— Mas é justamente isso o que me preocupa. Trevize tem esse dom de sempre tomar a decisão correta, esse “instinto”, se é que podemos chamá-lo assim. O choque de ver todo o projeto reduzir-se a nada no momento em que parecia próximo de uma conclusão feliz pode não abalar o seu juízo, mas acabar com o “instinto”. Você disse que Trevize não é uma pessoa frágil. Como pode ter certeza de que o mesmo se aplica ao seu dom?
Bliss pensou um pouco e depois deu de ombros:
— É, talvez seja melhor não perdê-lo de vista.
Durante as 36 horas que se seguiram, Trevize percebeu vagamente que Bliss e Pelorat, este em menor grau, pareciam segui-lo para onde quer que fosse. Entretanto, tinha mais coisas com que se preocupar No momento, enquanto trabalhava com o computador, sabia que os dois estavam de pé na porta da sala de comando. Levantou a cabeça e olhou para eles, com o rosto sem expressão.
— E então? — disse, sem levantar a voz.
— Como está se sentindo, Golan? — perguntou Pelorat, pouco à vontade.
— Pergunte a Bliss — disse Trevize. — Ela está me vigiando há horas. Aposto que andou lendo minhas emoções... não é verdade, Bliss?
— Não, não é verdade — declarou Bliss, com firmeza. — Mas se quiser minha ajuda, posso tentar. Você está precisando de ajuda?
— Não. Por que estaria? Deixem-me em paz. Vocês dois!
— Conte-nos o que está acontecendo, Golan — disse Pelorat.
— Adivinhe!
— A Terra está...
— Sim, está. Aquilo que todo mundo insistia em nos dizer é uma verdade irrefutável.
Trevize apontou para a tela, onde aparecia o lado escuro da Terra eclipsando o sol. Era um círculo negro contra o céu estrelado, a circunferência marcada por uma linha interrompida de cor alaranjada.
— Esse laranja é a radioatividade? — perguntou Pelorat.
— Não. É apenas a luz do sol refratada pela atmosfera. Seria uma linha contínua se não houvesse tantas nuvens na atmosfera. A radioatividade é invisível. Todas as radiações de alta energia, incluindo os raios gama, são absorvidas pela atmosfera. Entretanto, produzem radiações secundárias que podem ser detectadas pelo computador. Mesmo as radiações secundárias são invisíveis a olho nu, mas o computador pode produzir uma imagem da Terra em cores falsas mostrando a distribuição das ondas e partículas que está recebendo do planeta. Observem!
O círculo negro começou a brilhar com várias tonalidades de azul.
— Qual é o nível de radioatividade? — perguntou Bliss. — É suficiente para termos certeza de que não existe vida humana?
— O suficiente para termos certeza de que não existe nenhum tipo de vida — disse Trevize. — O planeta é inabitável. A última bactéria, o último vírus já morreu há muito tempo.
— Podemos explorar o planeta? — perguntou Pelorat. — Em trajes espaciais, quero dizer.
— Por algumas horas... se ficarmos mais tempo, começaremos a sofrer os efeitos da radiação.
— Então o que vamos fazer, Golan?
— Fazer? — Trevize olhou para Pelorat sem demonstrar qualquer emoção. — Sabe o que eu gostaria de fazer? Gostaria de levar você, Bliss e a criança de volta a Gaia e deixá-los lá para sempre. Então voltaria a Terminus para devolver a nave. Depois, renunciaria a minha posição no Conselho, para satisfação da prefeito Branno. Minha pensão de ex-conselheiro seria suficiente para viver confortavelmente o resto dos meus dias, sem me preocupar com a Galáxia. Não estou mais interessado no Plano de Seldon, na Fundação, na Segunda Fundação, nem em Gaia. A Galáxia que escolha seu próprio caminho. Que me importa o que vai acontecer depois que eu estiver morto e enterrado?
— Golan, você não pode estar falando sério! — exclamou Pelorat.
Trevize ficou olhando para o amigo por alguns, momentos e depois suspirou fundo.
— Não, não estou, mas como seria bom se pudesse fazer exatamente o que disse!
— Deixe para lá. Exatamente o que pretende fazer?
— Manter a nave em órbita em torno da Terra, descansar, recuperar-me do choque e pensar no que fazer em seguida. Só que...
— Sim? Trevize explodiu:
— Será que existe alguma coisa para fazer? Onde mais vou procurar? Que mais posso descobrir?
JÁ fazia quatro refeições que Pelorat e Bliss viam Trevize apenas durante as refeições. O resto do tempo ele passava sozinho no quarto ou na sala de controle. Enquanto estavam à mesa, não dizia nada e comia muito pouco.
Na quarta refeição, porém, Pelorat teve a impressão de que o semblante do amigo parecia menos anuviado. Pelorat pigarreou duas vezes, como se estivesse se preparando para dizer alguma coisa, mas continuou calado.
Por fim, Trevize olhou para ele e perguntou:
— O que é?
— Você já... você já decidiu o que fazer, Golan?
— Por que pergunta?
— Está parecendo menos desanimado.
— Ainda estou desanimado, mas andei pensando. Pensando muito.
— Podemos saber em quê? — perguntou Pelorat.
Trevize olhou rapidamente na direção de Bliss. A jovem não havia tirado os olhos do prato à sua frente e mantinha-se em silêncio, como se achasse que Pelorat teria mais sucesso que ela em arrancar alguma coisa de Trevize.
— Também está curiosa, Bliss? — perguntou Trevize.
Bliss levantou os olhos.
— Claro que sim.
Fallom chutou uma perna da mesa e perguntou:
— Nós achamos a Terra?
Bliss deu um beliscão na criança. Trevize ignorou o gesto. Ele disse:
— Temos que começar com um fato sabido: todas as informações que havia a respeito da Terra em vários planetas desapareceram. Isto nos leva à conclusão de que alguma coisa está sendo escondida na Terra. Acontece que, como sabemos agora com certeza, a Terra apresenta níveis muito elevados da radioatividade, de modo que tudo o que existe na Terra está automaticamente oculto. Ninguém pode pousar na superfície e desta distância, perto dos limites da magnetosfera... e acho que se chegássemos um pouco mais perto não faria a menor diferença... não há nada para ser descoberto.
— Tem certeza? — perguntou Bliss.
— Passei horas no computador, analisando a Terra de todas as formas possíveis. Não há nada. Além do mais, estou sentindo que não há nada. Por que, então, as informações sobre a Terra foram eliminadas? Não basta a radioatividade para impedir que qualquer ser humano tenha acesso aos segredos da Terra?
— Pode ser — disse Pelorat — que houvesse realmente alguma coisa escondida na Terra na época em que os índices de radioatividade não eram tão elevados e ainda era possível desembarcar no planeta. Nesse caso, os habitantes da Terra teriam motivo para temer que alguém descobrisse os seus segredos. Foi naquela época que a Terra tentou apagar todos os vestígios a respeito de sua existência. O que temos agora são os vestígios daquele tempo de insegurança.
— Não, não pode ser — disse Trevize. — As informações que haviam na Biblioteca Imperial de Trantor foram removidas há muito pouco tempo. Não é verdade, Bliss? — perguntou, voltando-se para a moça.
— Pelo menos, foi o que eu/nós/Gaia conseguimos detectar n mente de Guendibal, da Segunda Fundação, durante o encontro que eu, você e ele tivemos com a prefeito de Terminus.
— Nesse caso — disse Trevize —, o que quer que tenha sido escondido na Terra ainda está escondido e pode ser descoberto, apesar do fato de a Terra estar radioativa.
— Como é possível isso? — perguntou Pelorat.
— Pense bem. E se o que estava na Terra não está mais lá, ma foi retirado quando o perigo da radioatividade se tornou muito grande? Nesse caso, embora o segredo não esteja mais na Terra, o conhecimento da localização da Terra poderia ser usado para deduzir o local em que está escondido atualmente. Daí a necessidade de suprimir as informações sobre a Terra.
Fallom interveio novamente:
— Porque se encontrarmos a Terra, Bliss disse que me levará de volta para Jemby.
Trevize olhou zangado para Fallom, e Bliss disse para a criança, em voz baixa:
— Eu disse talvez, Fallom. Depois a gente conversa sobre isso. Agora vá para o seu quarto. Por que não lê um pouco, ou toca flauta, ou faz qualquer outra coisa que esteja com vontade de fazer? Vá... vá.
Fallom deixou a mesa de má vontade. Pelorat disse:
— Ainda não entendi muito bem, Golan. Nós estamos aqui. Localizamos a Terra. Estamos em condições de deduzir para onde foi levado o segredo?
Trevize precisou de alguns instantes para se recuperar do mau humor causado por Fallom. Depois, disse:
— Por que não? Imagine que a radioatividade na superfície da Terra tenha aumentado de forma gradual. A população estaria diminuindo rapidamente, tanto por causa das doenças quanto das fugas para outros planetas. O perigo para o segredo seria cada vez maior. Em pouco tempo, não restaria ninguém para protegê-lo. A única solução seria transferi-lo para outro mundo, antes que fosse tarde demais. Desconfio que houvesse uma grande relutância em fazê-lo, de modo que a transferência só deve ter sido executada no último minuto. Pois então, Janov, lembra-se do que aquele velho da Nova Terra lhe contou a respeito da Terra?
— Monolee?
— Ele mesmo. Monolee não disse que os últimos remanescentes da população da Terra foram levados para Alfa?
— Golan, está querendo dizer que o segredo que procuramos pode estar em Nova Terra, levado para lá pelos últimos sobreviventes da Terra?
— Não acha possível? Quase ninguém na Galáxia conhece a existência da Nova Terra, e, pelo que vimos, seus habitantes fazem tudo para que nenhum visitante saia de lá com vida.
— Estivemos lá e não encontramos nada — argumentou Bliss.
— Quando estivemos lá, só estávamos interessados em informações a respeito da Terra — disse Trevize.
Pelorat disse:
— Acontece, meu velho amigo, que estamos procurando algo ou alguém que disponha de uma tecnologia muito avançada; algo ou alguém capaz de apagar informações debaixo do nariz da Segunda Fundação e mesmo... desculpe, Bliss... e mesmo debaixo do nariz de Gaia. Os habitantes de Nova Terra podem controlar o tempo e talvez sejam desenvolvidos no campo da biotecnologia, mas acho que terá que admitir que sua tecnologia não é muito avançada. Bliss fez que sim com a cabeça.
— Concordo com Pel.
— Não temos elementos para julgar — argumentou Trevize. — Nem chegamos a ver aqueles pescadores. Conhecemos apenas uma pequena parte da ilha em que pousamos. Quem sabe o que teríamos encontrado se explorássemos melhor a superfície do planeta? Afinal, só reconhecemos as lâmpadas fluorescentes quando as vimos funcionar. Se tivemos a impressão de que os alfanos não dispõem de uma tecnologia avançada, se tivemos essa impressão, repito...
— Sim? — disse Bliss, ceticamente.
— Isso pode ser parte de uma tática para esconder a verdade.
— Impossível — disse Bliss.
— Impossível? Foi você que me disse, quando ainda estávamos em Gaia, que em Trantor os membros da Segunda Fundação se disfarçaram por trás da fachada de uma sociedade de camponeses. Por que a mesma estratégia não poderia ser usada na Nova Terra?
— Está propondo, então, que a gente volte a Nova Terra para correr o risco de uma nova infecção... desta vez com a certeza de que o vírus será ativado? As relações sexuais podem ser uma forma muito agradável de adquirir uma infecção... mas não são a única!
Trevize deu de ombros.
— Não estou ansioso para voltar a Nova Terra, mas pode ser que não haja alternativa.
— Pode ser?
— Pode ser! Estou pensando em outra possibilidade.
— Qual é?
— Nova Terra gira em torno de uma estrela que os locais chamam de Alfa. Acontece que Alfa faz parte de um sistema binário. Será que também não existe um planeta habitável girando em volta da companheira de Alfa?
— É pouco provável — disse Bliss, balançando a cabeça. — Afinal, a companheira tem apenas um quarto da luminosidade de Alfa.
— Isso não é tão sério. O planeta poderia estar muito mais próximo da estrela, para compensar.
— O que é que o computador tem a dizer? — perguntou Pelorat.
Trevize sorriu.
— Já verifiquei. A companheira tem cinco planetas de porte médio. Nenhum gigante gasoso.
— Algum dos cinco planetas é habitável?
— O computador não tem nenhuma informação a respeito dos planetas além do seu número e tamanho.
— Oh... — fez Pelorat, desanimado.
— Não fique desapontado — disse Trevize. — Afinal, os mundos dos Espaciais nem constavam do mapa do computador. As informações sobre Alfa são extremamente escassas. Essas coisas foram escondidas deliberadamente e se não encontramos quase nada a respeito da companheira de Alfa, isso quase pode ser considerado um bom sinal.
— Então o que você está planejando é isso — disse Bliss, sem emoção. — Visitar a companheira e, se não der certo, desembarcar de novo em Alfa.
— Exatamente. Desta vez, estaremos preparados. Pretendo sobrevoar a ilha de Nova Terra antes de pousarmos e você, Bliss, poderia usar sua capacidade mental para...
Nesse momento, o Estrela Distante estremeceu, como se tivesse dado um soluço gigantesco, e Trevize exclamou, com um misto de raiva e perplexidade:
— Quem está nos controles?
A pergunta era desnecessária; sabia muito bem quem era.
Fallom, sentada em frente ao computador, estava totalmente absorta. As mãozinhas de criança, com dedos longos e finos, repousavam sobre as marcas no tampo da escrivaninha. As mãos pareciam atravessar a superfície da mesa, embora Fallom pudesse sentir que ela era dura e escorregadia.
A criança tinha visto Trevize usar as mãos dessa forma em várias ocasiões e para ela era evidente que era assim que o rapaz controlava a nave.
Fallom também tinha visto Trevize fechar os olhos, e fechou os seus. Depois de alguns instantes, começou a ouvir uma voz distante... distante, mas que parecia vir de dentro de sua cabeça, mais precisamente (compreendeu, sem saber como) dos lobos transdutores. Eles eram ainda mais importantes que as mãos. Esforçou-se para compreender o que a voz dizia.
— Instruções — dizia a voz, em um tom quase queixoso. — Quais são as suas instruções?
Fallom não disse nada. Nunca tinha visto Trevize dizer nada para o computador... mas sabia o que queria com todas as forças do seu ser. Queria voltar para Solaria, para a segurança da mansão, para Jemby... Jemby... Jemby...
Queria voltar para casa e, quando pensou no planeta que amava, imaginou que o estava vendo na tela, como havia visto outros mundos que não queria. Abriu os olhos e olhou para a tela desejando ver outro mundo que não aquela detestável Terra, e então ficou olhando para o planeta que estava lá, imaginando que fosse Solaria. Odiava a Galáxia em que tinha sido introduzida contra a vontade. Seus olhos se encheram de lágrimas e a nave estremeceu. Fallom sentiu o tremor e ficou um pouco assustada..
Foi então que ouviu o ruído de passos no corredor e fechou os olhos. Quando tornou a abri-los, o rosto de Trevize, distorcido, enchia o seu campo de visão, ocultando a tela e o planeta amado. Estava gritando alguma coisa, mas a criança não prestou atenção. Tinha sido ele que havia matado Bander, causando assim a morte de Jemby. Tinha sido ele que a havia tirado do planeta contra a vontade. Agora, era ele que queria impedi-la de voltar. Mas não lhe daria ouvidos. Levaria a nave de volta para Solaria, custasse o que custasse. A emoção foi tão forte que fez a nave estremecer novamente.
Bliss agarrou Trevize pelo braço.
— Pare! Pare!
Puxou-o para trás, enquanto Pelorat observava a cena, sem saber o que fazer.
Trevize estava gritando:
— Tire as mãos do computador!... Bliss, não se meta. Não quero machucar você.
— Não ameace a criança — disse Bliss, em tom cansado. — Se insistir, vou ter que machucar você.
Os olhos de Trevize se fixaram em Bliss.
— Então tire-a daí, Bliss. Agora!
Bliss empurrou-o para o lado com uma força surpreendente (resultado, pensou Trevize mais tarde, de sua ligação com Gaia).
— Fallom — disse. — Levante as mãos.
— Não! — exclamou Fallom, com voz estridente. — Quero levar a nave de volta para Solaria. Quero ir para lá. Para lá!
Apontou com a cabeça para a tela do computador, sem tirar as mãos da escrivaninha.
Bliss estendeu os braços para Fallom e quando suas mãos tocaram o corpo da criança, ela começou a tremer.
— Agora, Fallom — disse Bliss, carinhosamente —, diga ao computador para fazer tudo voltar a ser como era antes e venha comigo. Venha comigo...
Acariciou a criança, que teve um acesso de choro.
As mãos de Fallom deixaram a escrivaninha e Bliss, segurando-a pelas axilas, colocou-a de pé. Virou-a de frente para si e apertou-a contra o peito.
Bliss disse para Trevize, que assistia passivamente à cena:
— Saia da frente, Trevize, e não toque em nós quando passarmos. Trevize deu um passo para o lado.
Bliss parou por um momento ao lado do rapaz e disse em voz baixa:
— Tive que entrar na mente de Fallom por um momento. Se causei algum dano, a culpa é toda sua.
Trevize teve vontade de dizer que estava pouco ligando para a mente de Fallom; que era o computador que o preocupava. Entretanto, percebendo que teria que enfrentar a ira de Gaia (aquela expressão no rosto de Bliss não podia refletir apenas os sentimentos da moça), preferiu ficar calado.
Depois que Bliss e Fallom saíram da sala de controle, Trevize ficou muito tempo onde estava. Permaneceu assim, na verdade, até Pelorat dirigir-lhe a palavra:
— Golan, você está se sentindo bem? Bliss não fez nada com você, não é?
Trevize sacudiu a cabeça vigorosamente, como que para afastar a paralisia que o havia assaltado.
— Estou bem. A questão é saber se ele está bem. Sentou-se em frente ao computador e colocou as mãos sobre as marcas que recentemente tinham sido cobertas pelas, mãos de Fallom.
— Como é? — perguntou Pelorat, ansioso. Trevize deu de ombros.
— Parece que está tudo normal. Pode ser que mais tarde eu descubra alguma coisa fora do lugar, mas no momento está tudo funcionando bem. — Prosseguiu, com certa irritação: — O computador foi programado para só responder às minhas mãos, mas essa hermafrodita conseguiu assumir o controle. Deve ter sido por causa dos lobos transdutores...
— Mas o que foi que fez a nave estremecer? Isso não devia acontecer, não é?
— Não. É uma nave gravítica e não devia ter esse tipo de efeito inercial. Acontece que essa monstrinha...
Fez uma pausa. Parecia cada vez mais irritado.
— Sim?
— Desconfio que ela forneceu ao computador duas instruções conflitantes, com tal intensidade que o computador não teve escolha a não ser tentar cumpri-las simultaneamente. Na tentativa de fazer o impossível, o computador deve ter perdido momentaneamente o controle do neutralizador de inércia. Pelo menos é isso que acho que aconteceu.
De repente, Trevize pareceu acalmar-se.
— E pode ter sido até bom, pois acaba de me ocorrer que toda essa minha conversa a respeito de Alfa e a companheira foi perda de tempo. Já sei para onde a Terra transferiu o seu segredo.
Pelorat olhou para o amigo, admirado, e depois resolveu ignorar a última observação e esclarecer um ponto que havia ficado pendente.
— Quais foram as instruções conflitantes que Fallom forneceu ao computador?
— Ela queria que a nave fosse para Solaria.
— Claro. É claro que sim.
— Sim, mas como a criança poderia transmitir essa ideia para o computador? Ela não pode reconhecer Solaria no telescópio. Na verdade, nunca viu Solaria de longe; estava dormindo quando deixamos o planeta às pressas. E apesar de todos os livros que leu em sua biblioteca, apesar de tudo o que Bliss lhe contou, duvido que consiga apreender o conceito de uma Galáxia com centenas de bilhões de estrelas e milhões de planetas habitados. Educada, como foi, debaixo da terra e em total solidão, tudo o que pode fazer é compreender que existe mais de um mundo... mas quantos? Dois? Três? Quatro? Para ela, qualquer planeta que veja na tela pode ser Solaria, ou melhor, dada a sua ansiedade para voltar ao planeta local, qualquer mundo que veja na tela é Solaria. E já que provavelmente Bliss tentou acalmá-la garantindo que se não encontrarmos a Terra voltaremos a Solaria, ela pode até ter ficado com a impressão de que Solaria e a Terra estão muito próximos no espaço.
— Como pode saber de tudo isso, Golan?
. — Pelo que a própria criança nos disse, Janov, logo que entramos nesta sala. Ela gritou que queria ir para Solaria e acrescentou: “Quero ir para lá! Para lá!”, apontando com a cabeça para a tela. Sabe o que estava na tela? O satélite da Terra. Não estava lá quando me levantei para ir jantar; quem estava era a Terra. Mas Fallom deve ter pensado no satélite quando pediu para ir para Solaria e o computador, em resposta, deve ter mostrado o satélite na tela. Acredite em mim, Janov, eu sei como esse computador funciona.
Pelorat olhou para o crescente que estava na tela e disse, pensativamente:
— Era chamado de “lua” em pelo menos uma das línguas da Terra; “moon”, em outra língua. Provavelmente tinha muitos outros nomes... Imagine a confusão, meu velho amigo, em um mundo em que eram faladas várias línguas... imagine os mal-entendidos, as complicações, os...
— Lua? — repetiu Trevize. — Pelo menos é um nome curto.. Pensando melhor, pode ser que a criança tenha tentado, instintivamente, mudar o curso da nave usando os lobos transdutores para agir diretamente sobre a fonte de energia, o que teria perturbado o funcionamento do neutralizador de inércia... Mas nada disso importa, Janov. O que importa é que essa confusão toda fez com que a lua (sim, eu gosto do nome) aparecesse na tela do computador. E continua lá. Quando olho para ela, fico imaginando...
— Imaginando o quê, Golan?
— Janov, para um satélite, a lua é enorme! Em geral, a gente não liga para os satélites. Afinal, são pouco mais que pedaços de pedra girando no espaço. A lua, porém, é diferente. A lua é um mundo. Tem um diâmetro de cerca de três mil e quinhentos quilômetros.
— Um mundo? Não pode chamá-la de mundo. A lua é inabitável. Mesmo com três mil e quinhentos quilômetros de diâmetro, é pequena demais para ter atmosfera. Posso dizer isso só de olhar para ela. Nenhuma nuvem; uma linha nítida separando a zona iluminada da escuridão do espaço e outra linha nítida separando a parte clara da parte que está na sombra.
Trevize assentiu.
— Você fala como um espaçonauta veterano, Janov. Tem razão.Nada de ar. Nada de água. Isso quer dizer que a superfície da lua é inabitável. E o subsolo?
— Subsolo? — repetiu Janov, intrigado.
— Isso mesmo. Por que não? As cidades da Terra eram subterrâneas, não eram? Quase toda a população de Trantor vivia abaixo da superfície. Lembra-se da capital de Comporellon? A mesma coisa. As mansões de Solaria ficam debaixo da terra. Um estado de coisas muito comum.
— Acontece, Golan, que em todos esses casos, as pessoas estavam vivendo em um planeta habitável. A superfície também era habitável, havia uma atmosfera, um oceano. É possível viver no subsolo quando a superfície é inabitável?
— Ora, Janov, pense! Onde estamos vivendo neste exato momento? O Estrela Distante é um pequeno mundo com uma superfície inabitável. Não existe ar nem água do lado de fora do casco. Mesmo assim, vivemos confortavelmente aqui dentro. A Galáxia está cheia de bases e estações espaciais dos tipos mais variados, para não falar das naves espaciais, e todas são inabitáveis a não ser do lado de dentro. Considere a lua como uma gigantesca espaçonave.
— Com uma tripulação no interior?
— Isso mesmo. Pelo que sabemos, podem ser milhões de pessoas, além de animais, plantas e uma tecnologia avançadíssima... Tudo isso faz muito sentido, Janov! Se a Terra, nos seus últimos dias, foi capaz de enviar um grupo de Colonizadores para um planeta em órbita da estrela Alfa; se, possivelmente com a ajuda do Império, pôde reformar o planeta, semear os oceanos com peixes, construir um pequeno continente; será que a Terra também não poderia mandar um grupo para a lua e reformar o interior do satélite?
— Suponho que sim — concordou Pelorat, com certa relutância.
— Seria a solução mais lógica. Se a Terra tinha alguma coisa para esconder, por que fazê-la viajar mais de um parsec, se podia ser escondida em um mundo situado a uma distância cem milhões de vezes menor? Além disso, a lua seria um esconderijo mais eficiente do ponto de vista psicológico. Os satélites não atraem a atenção. Veja o meu exemplo. Com a lua a um centímetro do meu nariz, todos os meus pensamentos estavam em Alfa. Se não fosse Fallom... — Trevize fez uma careta e balançou a cabeça. — Justiça seja feita. Se não fosse Fallom, eu jamais teria pensado na lua.
— Escute aqui, meu velho amigo — disse Pelorat —, se há alguma coisa escondida sob a superfície da lua, como vamos fazer para encontrá-la? A superfície da lua deve ter milhões de quilômetros quadrados...
— Quarenta milhões, aproximadamente.
— E teríamos que examinar toda essa imensa área à procura do quê? De uma passagem? De alguma espécie de comporta?
— Da forma como você fala, parece uma tarefa dificílima, mas não estamos apenas procurando objetos inanimados. Estamos atrás de seres vivos, ou melhor, de seres inteligentes. E Bliss é especialista em detectar vestígios de inteligência, não é?
Bliss disse para Trevize, em tom acusador:
— Afinal consegui fazê-la dormir. Não foi fácil. Fallom estava histérica!. Felizmente, parece que não causei nenhum dano.
— Você bem que podia tentar remover a fixação em Jemby, já que eu não tenho a mínima intenção de voltar a Solaria — disse Trevize, secamente.
— Remover a fixação, não é? O que é que você sabe a respeito dessas coisas, Trevize? Você nunca entrou na mente de outra pessoa. Não sabe como são complexas as mentes humanas. Se soubesse, não falaria em remover uma fixação como se fosse igual a arrancar um dente.
— Pelo menos atenue um pouco a fixação.
— Isso eu talvez pudesse fazer, depois de passar um mês desembaraçando...
— Desembaraçando? Como assim?
— É difícil de explicar para quem não sabe.
— Então o que é que você vai fazer com a criança?
— Ainda não sei. Vou ter que pensar.
— Nesse caso, vou lhe dizer o que vamos fazer com a nave.
— Sei muito bem o que vai fazer. Vai voltar a Nova Terra e à bela Hiroko, se ela prometer não contaminá-lo desta vez.
— Está enganada, Bliss — disse Trevize, sem se perturbar. — Mudei de ideia. Vamos para a lua... isto é, para o satélite da Terra.
— Para o satélite? Porque é o astro mais próximo da Terra? Não tinha pensado nisso!
— Nem eu. Ninguém teria pensado nisso. Nenhum outro satélite, na Galáxia inteira, merece ser lembrado... mas este satélite é diferente, graças ao seu tamanho. Além do mais, o segredo da sua localização está tão bem guardado quanto o da localização da Terra.
— É habitável?
— Não na superfície, mas como não é radioativo, o subsolo pode ser habitado. Quando chegarmos mais perto, vou precisar de você para saber se existem formas de vida no satélite.
Bliss deu de ombros.
— Está bem. Por que se lembrou de repente do satélite?
— Por causa de uma coisa que Fallom fez quando tentou controlar a nave — explicou Trevize.
Bliss ficou olhando para Trevize como se esperasse algum esclarecimento adicional. Depois, disse:
— Então, não teria tido a inspiração se obedecesse ao seu primeiro impulso e a matasse.
— Jamais tive intenção de matar a criança, Bliss.
— Está bem, está bem. Já estamos viajando na direção do satélite?
— Estamos. Prefiro não ir muito depressa, por uma questão de prudência, mas se tudo correr bem, chegaremos lá em trinta horas.
A lua era um astro desolado. Trevize ficou observando pela vigia enquanto a parte iluminada desfilava lá embaixo, um panorama monótono de crateras circulares e regiões montanhosas. De vez em quando, o cinza predominante dava lugar a sutis gradações de cor, em geral associadas a vastas planícies semeadas de pequenas crateras.
Quando se aproximaram do lado escuro, as sombras foram ficando mais longas e finalmente cobriram toda a superfície. Durante alguns instantes, atrás deles, os picos continuaram a brilhar ao sol, como estrelas de primeira grandeza. Então os picos desapareceram e só restou a Terra, um grande crescente azul e branco, iluminando o terreno com sua luz difusa. A nave ultrapassou a Terra, também, que desapareceu abaixo do horizonte, de modo que abaixo deles só havia a escuridão profunda e acima o cintilar de incontáveis estrelas, visão que para Trevize, um nativo de Terminus, onde o céu praticamente não tinha estrelas, era motivo de perpétuo deslumbramento.
Então, novas estrelas brilhantes apareceram à frente, primeiro apenas uma ou duas, depois outras, cada vez maiores e mais ofuscantes. De repente, cruzaram o terminador e entraram no lado iluminado. O sol surgiu no horizonte com esplendor infernal e a paisagem lá embaixo explodiu em um labirinto de luzes e sombras.
Trevize podia ver muito bem que seria inútil tentar encontrar uma entrada para o interior habitado (se é que esse interior existia) através de uma simples inspeção visual.
Olhou para Bliss, sentada ao seu lado. A jovem estava imóvel, com os olhos fechados. Trevize perguntou em voz baixa:
— Detectou mais alguma coisa? Bliss balançou a cabeça.
— Não — murmurou. — Foi só naquele lugar. É melhor voltarmos. Sabe onde foi?
— O computador sabe.
A região ficava no lado escuro e, exceto pelo fato de que a Terra estava perto do horizonte, iluminando a superfície com uma luz fantasmagórica, não havia nada de especial para ser visto, mesmo depois de apagarem as luzes da sala de comando para facilitar a observação.
Pelorat havia chegado e estava observando a cena com interesse.
— Encontramos alguma coisa? — perguntou.
Trevize silenciou-o com um gesto. Estava esperando a reação de Bliss. Sabia que levaria vários dias para que a. luz do sol voltasse àquela parte da lua, mas também sabia que, para aquilo que a jovem procurava, a luz era totalmente irrelevante.
Afinal, Bliss falou:
— Está lá embaixo.
— Tem certeza?
— Absoluta.
— É o único lugar?
— Até o momento, sim. Já cobrimos toda a superfície da lua?
— Uma boa parte.
— Pois nessa boa parte, este é o único lugar em que detectei alguma coisa. Agora o sinal está mais forte, como se ele tivesse detectado a nossa presença. Não parece perigoso. Estou captando uma atitude amistosa.
— Tem certeza?
— É o que estou captando. Pelorat interveio:
— Ele não poderia estar disfarçando?
— Pel, não é fácil me enganar — disse Bliss, orgulhosamente. Trevize murmurou qualquer coisa a respeito do excesso de confiança e depois disse:
— O que você está detectando é um ser inteligente, não é?
— Sim, é um ser inteligente. Acontece que.
— Acontece o quê?
— Psiu! Não me distraia. Preciso me concentrar. Momentos depois, Bliss anunciou, com um misto de surpresa e satisfação:
— Não é humano!
— Não é humano! — repetiu Trevize. — Estamos lidando de novo com robôs? Como em Solaria?
— Não — respondeu Bliss, sorrindo. — Também não é um robô.
— Tem que ser um ou outro. Bliss deu uma risada.
— Nenhum dos dois. Não é humano, mas também não se parece com nenhum dos robôs que conheci.
— Essa eu tenho que ver — disse Pelorat, excitado. — Uma coisa nova... diferente!
— Uma coisa nova — murmurou Trevize, com um entusiasmo que não sentia há muito tempo.
Nesse instante, uma inspiração súbita pareceu iluminar como um relâmpago o interior do seu crânio.
Desceram alegremente em direção à superfície da lua. Até mesmo Fallom tinha se juntado a eles e saltitava com despreocupação infantil, como se estivesse realmente voltando para Solaria.
Quanto a Trevize, sentia dentro de si um resto de sanidade a advertir-lhe que era estranho que a Terra (ou o que quer que fosse da Terra que se havia mudado para a lua), depois de tomar medidas tão extremas para evitar a presença de estranhos, agora estivesse fazendo o possível para atraí-los. Poderia tudo ser parte do mesmo plano? Seria um caso de “se é impossível mantê-los à distância, atraia-os e destrua-os”? Seria uma outra forma de proteger o segredo da Terra?
As preocupações do rapaz desapareceram na torrente de otimismo que se despejou sobre todos quando se aproximaram da superfície da lua. Mesmo assim, não esqueceu a inspiração que o havia assaltado no momento em que iniciavam o longo mergulho em direção à superfície do satélite da Terra.
Parecia não haver mais dúvida quanto ao destino final da nave. Já estavam na altura dos picos mais elevados e Trevize, em ligação com o computador, não sentia necessidade de fazer coisa alguma. Era como se tanto ele como o computador estivessem sendo guiados; sentiu uma enorme euforia ao perceber que o peso da responsabilidade tinha sido retirado de seus ombros.
Agora estavam se deslocando paralelamente ao solo, em direção a um penhasco que se erguia à distância como uma perigosa barreira; uma barreira que brilhava fracamente à luz da Terra e dos faróis do Estrela Distante. A colisão iminente parecia não significar coisa alguma para Trevize; não foi surpresa para ele quando uma parte do rochedo se abriu, revelando um corredor iluminado por luzes artificiais.
A nave diminuiu de velocidade, aparentemente por conta própria, e se enfiou na abertura... devagar... até parar. A passagem se fechou atrás dela e outra se abriu à sua frente. A nave passou pela segunda abertura e entrou em uma caverna gigantesca, que parecia ter sido cavada no interior de uma montanha.
A nave parou e todos a bordo correram para a câmara de descompressão. Nenhum deles, nem mesmo Trevize, pensou em verificar se o ar do lado de fora era respirável... ou se pelo menos havia ar.
Havia ar, sim. Era respirável e era gostoso. Olharam em torno, com o ar satisfeito de pessoas que estão chegando em casa. Levaram algum tempo para reparar em um homem que os observava de longe, esperando educadamente que se aproximassem.
O homem era alto e tinha expressão muito séria. O cabelo era cor de bronze, cortado rente. Tinha as maçãs do rosto salientes, os olhos muito vivos e vestia-se como em um livro de História antiga. Embora parecesse forte e saudável, tinha um certo ar de cansaço... não em algum traço concreto, mas de uma forma vaga, indefinível.
Fallom foi a primeira a reagir. Deu um grito de alegria e saiu correndo na direção do homem, gritando:
— Jemby! Jemby!
Os outros se aproximaram mais devagar e Trevize disse, destacando bem as palavras (será que esse sujeito sabe falar galáctico?):
— Desculpe, senhor. Esta criança perdeu o seu protetor e só pensa nele. Não sei por que se fixou no senhor, já que foi criada por um robô, uma máquina...
O homem falou pela primeira vez. Tinha uma voz impessoal e um sotaque arcaico, mas falava galáctico com fluência.
— Sejam bem-vindos — disse.
Apesar de não haver mudado de expressão, parecia amistoso.
— Quanto a esta criança — prosseguiu —, talvez seja mais perceptiva do que pensam, pois eu sou um robô. Meu nome é Daneel Olivaw.
Trevize se encontrava em um estado de total confusão, depois de passada a estranha euforia que sentira durante o pouso na lua... uma euforia provavelmente provocada por aquele pretenso robô que agora tinha diante de si.
O rapaz se sentia no perfeito controle das faculdades mentais, mas isso não o impedia de encarar com assombro uma réplica tão perfeita de um ser humano.
Não admira, pensou Trevize, que Bliss tivesse detectado algo que não era nem humano nem robô, “uma coisa nova”, nas palavras de Pelorat. Palavras que haviam despertado em Trevize uma súbita inspiração... que no momento estava relegada a um segundo plano.
Bliss e Fallom tinham se afastado para explorar a grande caverna. A ideia tinha sido de Bliss, mas Trevize observara que, momentos antes, ela e Daneel haviam trocado um rápido olhar. Quando Fallom se recusou a ir e pediu para ficar com o ser que insistia em chamar de Jemby, uma palavra e um gesto de Daneel convenceram a criança do contrário. Trevize e Pelorat haviam ficado.
— Senhores, elas não pertencem à Fundação — disse o robô, como se aquilo explicasse tudo. — Uma é Gaia e a outra é uma Espacial.
Trevize permaneceu calado enquanto o robô os conduzia a um conjunto de cadeiras debaixo de uma árvore. Os dois se sentaram, atendendo a um gesto do robô, e quando o robô se sentou também, com movimentos perfeitamente humanos, Trevize perguntou:
— Você é mesmo um robô?
— Sim senhor — disse Daneel.
O rosto de Pelorat parecia brilhar de contentamento. Ele disse:
— As velhas lendas falam de um robô chamado Daneel. Você foi batizado em homenagem a esse robô?
— Eu sou esse robô — disse Daneel. — Não são lendas.
— Não é possível! — exclamou Pelorat. — Se você é esse robô, deve ter milhares de anos de idade!
— Vinte mil anos — declarou Daneel, com naturalidade. Pelorat olhou para Trevize, que disse, com um traço de irritação na voz:
— Se é um robô, ordeno a você que fale a verdade.
— Essa ordem é desnecessária, senhor. Eu tenho que falar a verdade. Acontece, senhor, que existem três possibilidades. Posso ser um homem que está mentindo; posso ser um robô que foi programado para acreditar que tem vinte mil anos quando, na realidade, é muito mais recente; e posso ser realmente um robô com vinte mil anos de idade. O senhor precisa decidir qual dessas possibilidades é a verdadeira.
— Chegarei a uma conclusão conversando com você — disse Trevize secamente. — Mudando de assunto: é difícil acreditar que a gente esteja no interior da lua. Nem a luz — o rapaz olhou para cima enquanto falava e a luz era uma claridade difusa com a cor exata da luz do sol, embora o sol não estivesse visível no céu, ou por outra, nem o sol nem o céu estivessem visíveis — nem a gravidade correspondem ao que seria de se esperar. Este mundo deveria ter uma gravidade na superfície menor que 0, 2g.
— O valor exato da gravidade na superfície é de 0, 16g, senhor. Acontece que aqui onde estamos uma gravidade muito maior é mantida artificialmente pelas mesmas forças que dão aos senhores, na sua nave, a sensação de peso normal, mesmo quando estão em queda livre. Outras demandas de energia, inclusive a de iluminação, também são atendidas graviticamente, mas também usamos a energia solar quando ela é mais conveniente. Nossas necessidades de matérias-primas são todas supridas pelo solo lunar, com exceção dos elementos leves, hidrogênio, carbono e nitrogênio, que são extremamente escassos na lua. Obtemos esses elementos capturando um ou outro cometa. Uma captura por século é mais que suficiente para as nossas necessidades.
— Presumo que estejam impedidos de usar os recursos da Terra.
— Infelizmente, é verdade. Nossos cérebros positrônicos são tão sensíveis à radioatividade quanto as proteínas humanas.
— Você falou no plural e estou vendo uma mansão que me parece bonita, espaçosa e requintada... pelo menos, é a impressão que se tem do lado de fora. Então existem outros seres na lua? Homens? Robôs?
— Sim senhor. Temos um ecossistema da lua e uma enorme cavidade subterrânea que abriga esse ecossistema. Todos os seres inteligentes são robôs, mais ou menos como eu. Infelizmente, o senhor não verá nenhum deles. Quanto a essa mansão, foi construída para meu uso exclusivo. É uma réplica de uma casa onde eu morei há vinte mil anos atrás.
— E da qual você se lembra nos mínimos detalhes, não é mesmo?
— Exatamente. Fui fabricado e vivi durante algum tempo no planeta Aurora, um dos mundos dos Espaciais.
— Aquele dos... — Trevize não chegou a concluir.
— Sim senhor. Aquele dos cachorros.
— Então você sabe dos cachorros!
— Sim senhor.
— Que está fazendo aqui, se vivia em Aurora?
— Vim para cá há muitos anos atrás, para tentar impedir que a Terra se tornasse radioativa. Comigo veio um outro robô, chamado Giskard, que era capaz de detectar as emoções humanas e modificá-las.
— Como Bliss faz?
— Isso mesmo, senhor. Nosso sucesso foi apenas parcial e Giskard parou de funcionar. Antes disso, porém, transferiu para mim os seus poderes e me encarregou de zelar pela Galáxia e particularmente pela Terra.
— Por que a Terra?
— Em parte por causa de um homem chamado Elijah Baley, um terráqueo.
— É o herói mitológico de quem lhe falei outro dia, Golan — interrompeu Pelorat.
— Herói mitológico, senhor?
— O que o Dr. Pelorat quer dizer é que ele é uma pessoa à qual muitos feitos fantásticos são atribuídos, e que pode ser uma combinação de várias pessoas que realmente existiram ou um personagem totalmente fictício.
Daneel pensou um pouco e depois disse, com toda a calma:
— Isso não é verdade, senhores. Elijah Baley realmente existiu e foi um único homem. Não sei quais são as façanhas que as lenda atribuem a ele; o que sei é que, sem Baley, a Galáxia talvez nunca tivesse sido colonizada. Em sua memória, procurei salvar tudo o que foi possível da Terra depois que começou a ficar radioativa. Meus companheiros robôs se espalharam por toda a Galáxia em uma tentativa de influenciar as pessoas certas. Houve uma época em que, por nossa sugestão, chegaram a remover parte do solo radioativo da Terra, substituindo-o por solo não contaminado. Mais tarde, consegui que fosse iniciada a reforma de um planeta de uma estrela vizinha, chamada Alfa. Nenhum dos dois projetos, porém, chegou a ser concluído. Nunca senti inteira liberdade para agir sobre as mentes humanas, pois havia sempre o risco de que um ser humano sofresse algum tipo de dano no processo. Os senhores compreendem que das Leis da Robótica constituem um pesado fardo para nós robôs.
— Sim? Não era preciso um ser com os poderes mentais de Daneel para perceber, pelo tom com que Trevize havia pronunciado aquele monossílabo, que o rapaz jamais ouvira falar da Leis da Robótica.
— A Primeira Lei — explicou — é a seguinte: “Um robô não pode fazer mal a um ser humano ou, por omissão, permitir que um ser humano sofra algum mal.” A Segunda Lei: “Um robô deve obedecer às ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos em que essas ordens contrariem a Primeira Lei.” A Terceira Lei: “Um robô deve proteger a própria existência, desde que essa proteção não entre em conflito com a Primeira ou a Segunda Lei.” Naturalmente, tive que traduzir as leis para a linguagem humana; na verdade, elas representam complicadas configurações dos nossos circuitos positrônicos cerebrais.
— E você acha difícil obedecer a essas leis?
— Sim senhor. Por causa da Primeira Lei, fico quase totalmente impedido de usar meus poderes mentais. Quando se lida com uma Galáxia inteira, é impossível deixar de causar mal a seres humanos, qualquer que seja o curso de ação escolhido. O que procuro fazer é encontrar o caminho que minimize o sofrimento humano. Entretanto, o número de possibilidades é tão grande que às vezes o tempo gasto na análise se torna proibitivo...
— Compreendo — disse Trevize.
— Durante toda a história da Galáxia, fiz o que pude para evitar as guerras e injustiças que parecem assolar todas as civilizações humanas. Posso ter conseguido alguma coisa em casos isolados, mas se o senhor estudou História, sabe que meus sucessos não foram frequentes nem retumbantes.
— Acho que tem razão — concordou Trevize, com um sorriso irônico.
— Pouco antes de deixar de funcionar, Giskard imaginou uma lei ainda mais poderosa que a primeira. Por falta de um nome melhor, nós a chamamos de Lei Zero. A Lei Zero diz o seguinte: “Um robô não pode causar mal à Humanidade ou, por omissão, permitir que a Humanidade sofra algum mal.” Isto significa que a Primeira Lei deve ser modificada para: “Um robô não pode ferir um ser humano ou, por omissão, permitir que um ser humano sofra algum mal, exceto nos casos em que isso seja necessário para obedecer à Lei Zero”. “Modificações semelhantes devem ser feitas na Segunda e Terceira Leis.”.
Trevize franziu a testa.
— Como é que vocês vão saber o que é bom e o que não é bom para a Humanidade como um todo?
— Aí é que está o problema, senhor. Teoricamente, a Lei Zero era a solução para todos os nossos conflitos; na prática, jamais pôde ser aplicada. Um ser humano é um objeto concreto. O mal causado a uma pessoa pode ser estimado e medido. A Humanidade é uma abstração. Que fazer?
— Não sei — disse Trevize.
— Espere! — disse Pelorat. — Você podia... você podia converter toda a Humanidade em um único organismo: Gaia!
— Foi o que tentei fazer, senhor. Fui eu o responsável pela fundação de Gaia. Se a Humanidade se transformasse em um único organismo, passaria a ser um objeto concreto, fácil de analisar. Entretanto, não foi tão fácil criar um superorganismo quanto eu havia imaginado. Em primeiro lugar, isso não seria possível se os seres humanos não dessem maior valor ao superorganismo do que à própria individualidade, e eu tinha que encontrar um modelo mental que respeitasse essa premissa. Afinal, lembrei-me das Leis da Robótica.
— Ah, então os gaianos são robôs. Desconfiei desde o princípio!
— Nesse caso, suas suspeitas foram infundadas, senhor. Eles são seres humanos, mas nos seus circuitos neurônicos foram implantadas configurações equivalentes às Leis da Robótica. Mesmo depois que isso foi feito, porém, ainda restava um problema sério. Um superorganismo constituído unicamente por seres humanos é necessariamente instável. É preciso combinar os seres humanos com outros animais, com plantas, até com a matéria inorgânica. O menor superorganismo verdadeiramente estável é um planeta inteiro, um planeta suficientemente grande e complexo para possuir um ecossistema estável. Levamos muito tempo para compreender esse fato, de modo que foi apenas neste último século que demos como concluída a fundação de Gaia e iniciamos a fase seguinte do projeto, a fundação da Galáxia Viva.
— Mas precisavam de mim para tomar a decisão, não é?
— Sim senhor. As Leis da Robótica não permitiam que a decisão fosse tomada nem por mim nem por Gaia, pois havia o risco de causarmos algum tipo de mal à Humanidade. Enquanto isso, há cinco séculos atrás, quando parecia que eu jamais iria conseguir resolver os problemas ligados à fundação de Gaia, resolvi tentar outra coisa e ajudei a criar a ciência da psico-história.
— Eu devia ter adivinhado — murmurou Trevize. — você sabe, Daneel, estou começando a acreditar que você tem vinte mil anos de idade.
— Obrigado, senhor.
— Espere um momento — disse Pelorat — Acabei de pensar em uma coisa. Você também é parte de Gaia, Daneel? Foi assim que soube dos cachorros de Aurora? Através de Bliss?
— De certa forma, senhor, sua conclusão é acertada. Estou associado a Gaia, embora não seja propriamente parte de Gaia.
Trevize interveio:
— Essa sua explicação me faz lembrar Comporellon, o planeta que visitamos logo depois que partimos de Gaia. Os locais insistem em que não fazem parte da Fundação, mas são apenas um dos Planetas Associados.
Daneel fez que sim com a cabeça.
— A analogia é válida, senhor. Posso, como associado de Gaia, fazer uso de todos os conhecimentos de Gaia.. na pessoa daquela mulher, por exemplo. Gaia, porém, não pode fazer uso dos meus conhecimentos, de modo que conservo minha liberdade de ação. Essa liberdade de ação é necessária até que a Galáxia Viva seja uma realidade.
Trevize olhou fixamente para o robô por um momento e depois disse:
— Através de Bliss, você estava presente o tempo todo na nossa viagem, não estava? Usou seus poderes para trazer-nos para cá, não usou?
Daneel suspirou de forma curiosamente humana.
— Não pude fazer muita coisa, senhor. As Leis da Robótica não me permitem. Mesmo assim, ajudei Bliss a lidar com os cães de Aurora e com o Espacial de Solaria. Além disso, influenciei duas mulheres, uma em Comporellon e outra em Nova Terra, para que ajudassem o senhor.
— Devia ter adivinhado que não foi por minha causa — disse Trevize, com um sorriso amarelo.
— Pelo contrário — disse Daneel. — As duas mulheres simpatizaram com o senhor desde o princípio. Limitei-me a reforçar esse sentimento, dentro das limitações impostas pelas Leis da Robótica. Devido a essas limitações... e também por outros motivos... foi com grande dificuldade que consegui trazê-lo para cá. Em várias ocasiões estive a ponto de perdê-lo.
— Agora, que estou aqui, o que deseja? Que confirme minha decisão a favor da Galáxia Viva?
O rosto de Daneel, sempre inexpressivo, assumiu ar preocupado.
— Não senhor. A decisão já foi tomada e não precisa de confirmação. Trata-se de algo muito mais urgente. Estou morrendo.
Talvez tenha sido a naturalidade com que Daneel se referiu ao fato; ou talvez porque uma existência de vinte mil anos fez com que a morte não parecesse nenhuma tragédia para alguém condenado a viver menos que meio por cento desse período de tempo; a verdade é que Trevize não sentiu nenhuma pena do robô.
— Está morrendo? Uma máquina pode morrer?
— Posso deixar de existir, senhor. Use o nome que quiser. Estou velho. Em toda a Galáxia, nenhum ser inteligente que estava vivo quando fui construído ainda vive hoje em dia; nem homem nem robô. Eu mesmo mudei muito.
— Como assim?
— Não existe nenhuma parte do meu corpo que não tenha sido substituída, não uma, mas várias vezes. Até o meu cérebro positrônico foi substituído em cinco diferentes ocasiões. Cada vez que isso aconteceu, todo o conteúdo do cérebro antigo foi transferido para o cérebro novo. Cada cérebro novo era maior e mais complexo que o anterior, de modo que havia espaço para mais memórias e ao mesmo tempo eu me tornava capaz de decidir e agir com maior rapidez. Entretanto...
— O quê?
— Quanto mais avançado e complexo é um cérebro positrônico, maior a instabilidade e mais depressa ele se deteriora. Meu cérebro atual é cem mil vezes mais sensível que o primeiro e tem uma capacidade dez milhões de vezes maior; por outro lado, enquanto o meu primeiro cérebro durou mais de dez mil anos, a atual tem apenas seiscentos anos e já começa a dar sinais de senilidade. Minha capacidade de tomar decisões já não é a mesma; a capacidade de detectar e induzir emoções através do hiperespaço praticamente desapareceu. Não adianta tentar construir um sexto cérebro. As tentativas de conseguir uma miniaturização maior esbarrariam no princípio da incerteza; qualquer aumento adicional na complexidade tornaria o cérebro tão instável que ele se deterioraria em poucos minutos.
— Mas agora, Daneel, Gaia pode muito bem prosseguir sem você — disse Pelorat. — Agora que Trevize optou pela Galáxia Viva...
— Acontece que perdemos muito tempo, senhor — disse Daneel, como sempre sem revelar qualquer emoção. — Tive que esperar até que Gaia estivesse perfeitamente estabelecido. Quando consegui localizar um ser humano... o Sr. Trevize... que fosse capaz de tomar a decisão crucial, era tarde demais. Não pensem, porém, que não tomei medidas para prolongar minha vida. Pouco a pouco fui reduzindo minhas atividades. Quando não podia mais contar com medidas ativas para manter o isolamento do sistema Terra/Lua, adotei medidas passivas. Nos últimos anos, os robôs humaniformes que trabalham comigo também tiveram que ser reunidos aqui. Uma de suas últimas tarefas foi remover todas as referências à Terra dos arquivos planetários. Entretanto, sem a nossa ajuda, Gaia não conseguirá absorver toda a Galáxia.
— Você sabia de tudo isso quando tomei minha decisão? — perguntou Trevize.
— Um certo tempo antes, senhor — respondeu Daneel. — Gaia, naturalmente, não sabia.
— Então com que objetivo levou a trama até o fim? — perguntou Trevize, zangado. — De que adiantou? Desde que tomei a decisão, estou vasculhando a Galáxia à procura da Terra e do que considerava como o seu “segredo”... sem saber que o segredo era você... na esperança de confirmar a minha decisão. Pois ela está confirmada. Agora sei que a Galáxia Viva é absolutamente essencial... só que isso não serve para nada. Por que não deixou a Galáxia entregue a si própria... e eu aos meus afazeres?
— Porque, senhor, ainda tinha esperanças de encontrar uma saída. E acho que encontrei. Ao invés de substituir o meu cérebro por outro cérebro positrônico, o que seria impraticável, poderia fundi-lo com um cérebro humano, um cérebro humano que não esteja sujeito às Três Leis e que por isso me permita maior liberdade de ação. Foi para isso que os trouxe aqui.
Trevize parecia horrorizado.
— Quer dizer que você planeja fundir um cérebro humano com o seu? Fazer com que um homem perca a sua individualidade para que você não morra?
— Sim senhor. Isso não me tornaria imortal, mas me daria tempo suficiente para implantar a Galáxia Viva.
— E você me trouxe aqui para isso? Quer que minha independência em relação às Três Leis e o meu bom senso se tornem parte de você? Pois a resposta é não!
— O senhor mesmo acabou de dizer que a Galáxia Viva é essencial para o bem-estar da Humanidade...
— Sim, mas estava imaginando que a Galáxia Viva levaria muito tempo para se tornar realidade, que até lá eu estaria morto e enterrado como um indivíduo independente. Por outro lado, se a Galáxia Viva fosse estabelecida rapidamente, todos perderiam a individualidade e eu não teria muito que lamentar. O que me recuso terminantemente é a abrir mão da minha individualidade enquanto o resto da Galáxia conserva a sua.
— Então é exatamente como eu pensava — disse Daneel. — O senhor não concorda com a fusão e, de qualquer forma, seu cérebro pode ser mais bem aproveitado como unidade independente.
— Quando foi que mudou de ideia? Você disse que me trouxe aqui para fundir o seu cérebro com o meu!
— O senhor talvez não tenha notado, mas usei a frase no plural: “Foi para isso que os trouxe aqui.”
Pelorat se remexeu no assento.
— Diga-me, Daneel, um cérebro humano que se fundisse com o seu compartilharia todas as suas memórias... todas as memórias dos últimos vinte mil anos?
— Sim senhor.
Pelorat respirou fundo.
— Isso para mim seria a realização suprema da minha carreira de pesquisador. Para conseguir isso, abriria mão de minha individualidade de muito bom grado. Por favor, conceda-me o privilégio de compartilhar do seu cérebro.
— E Bliss? — lembrou Trevize. — O que será de Bliss? Pelorat hesitou apenas por um momento.
— Bliss vai entender. De qualquer forma, ela estará melhor sem mim...
Daneel sacudiu a cabeça.
— Sua oferta é generosa, Dr. Pelorat, mas não posso aceitá-la. Seu cérebro é antigo e não sobreviverá por mais que duas ou três décadas, mesmo depois de fundir-se com o meu. Preciso de um cérebro mais jovem... Vejam! Ela está de volta!
Bliss estava chegando do passeio, com passos saltitantes e uma expressão de felicidade no rosto. Pelorat levantou-se, alarmado.
— Bliss! Oh, não!
— Não se preocupe, Dr. Pelorat — disse Daneel. — Não posso usar Bliss. Bliss é Gaia e, como expliquei, não devo fundir-me com Gaia.
— Nesse caso — disse Pelorat — quem...
Trevize, olhando para a figurinha que acompanhava Bliss, explicou:
— Era Fallom que o robô queria o tempo todo, Janov.
Bliss chegou sorridente. Parecia estar de muito bom humor.
— Não pudemos sair da propriedade — disse —, mas achei isso aqui tão parecido com Solaria! Fallom, naturalmente, está convencida de que estamos em Solaria. Perguntei-lhe se não achava Daneel um pouco diferente de Jemby... afinal, Jemby era metálico... e Fallom respondeu “Não, no fundo, não”. Não faço ideia do que ela quis dizer com “no fundo”.
A moça olhou para Fallom, que estava a uma certa distância, tocando a flauta para Daneel, que balançava a cabeça no ritmo da música. Era uma linda melodia.
— Vocês sabiam que Fallom tinha trazido a flauta? — perguntou Bliss. — Acho que tão cedo não vamos conseguir tirá-la de perto de Daneel...
O comentário foi recebido com um silêncio pesado e Bliss olhou para os dois, assustada. ...
— Que foi que houve?
Trevize fez um gesto na direção de Pelorat. Era melhor que ele explicasse a Bliss, o gesto parecia dizer. Pelorat pigarreou e disse:
— Na verdade, Bliss, acho que Fallom vai ficar permanentemente com Daneel.
— É mesmo?
Bliss franziu a testa e fez menção de aproximar-se de Daneel, mas Pelorat segurou-a pelo braço.
— Bliss querida, é melhor não se meter. Esse robô é mais poderoso do que Gaia, e além disso, para que a Galáxia Viva se torne realidade, vai precisar da ajuda de Fallom. Deixe-me explicar... Golan, por favor, corrija-me se achar que estou distorcendo os fatos.
Bliss escutou o relato com uma expressão cada vez mais triste.
Trevize tentou consolá-la:
— Você pode ver que é a solução mais lógica, Bliss. A criança é uma Espacial e Daneel foi projetado e construído por Espaciais. A criança foi criada por um robô em uma propriedade não muito diferente desta aqui. Fallom tem poderes que poderão ser muito úteis para Daneel e viverá mais uns três ou quatro séculos, tempo que pode ser necessário para a consolidação da Galáxia Viva.
Bliss disse, com o rosto vermelho e os olhos úmidos:
— Acho que o robô nos fez passar em Solaria antes de virmos para cá porque precisava da criança.
Trevize deu de ombros.
— Ele pode estar simplesmente aproveitando a oportunidade. Não acho que tenha poderes suficientes no momento para controlar nossas ações através do hiperespaço.
— Não! Foi de propósito! Ele me fez sentir uma atração especial pela criança para que eu a trouxesse comigo, em vez de deixá-la em Solaria para ser morta; para que eu a protegesse de você, que sempre implicou com Fallom e teria se livrado dela na primeira oportunidade.
— Como sabe que isso é verdade? A afeição que você sente pela criança pode muito bem ser genuína, e permitir que os solarianos a matassem não estaria de acordo com o código de ética dos gaianos, mesmo sem a intervenção de Daneel. Pense, Bliss, você não tem nada a ganhar. Suponha que o robô a deixasse partir com Fallom; para onde a levaria? De volta para Solaria, onde seria certamente executada; para algum mundo cheio de gente, onde não teria um momento de paz; para Gaia, onde morreria de saudade de Jemby; ou em uma viagem sem fim pela Galáxia, na qual ela confundiria com Solaria todo planeta novo que encontrássemos? E onde você encontraria um cérebro para fundir-se com o de Daneel, o que é indispensável se queremos que a Galáxia Viva se torne uma realidade?
Bliss ficou calada.
Pelorat estendeu timidamente a mão para a moça.
— Bliss, ofereci meu cérebro a Daneel. Ele recusou, alegando que eu era muito velho. Gostaria que tivesse aceitado, pois assim estaria salvando Fallom para você.
Bliss segurou-lhe a mão e beijou-a.
— Obrigado, Pel, mas o preço teria sido alto demais, mesmo que fosse para que eu pudesse ficar com Fallom. — A moça respirou fundo e tentou sorrir. — Talvez, quando voltarmos a Gaia, eu possa ter um filho... e certamente colocarei Fallom entre as sílabas do seu nome.
Como se soubesse que a questão tinha sido resolvida, Daneel caminhou na direção deles, com Fallom trotando ao seu lado.
A criança começou a correr e chegou primeiro. Disse para Bliss:
— Obrigado, Bliss, por me trazer de volta para Jemby e por cuidar de mim enquanto estávamos viajando. Nunca me esquecerei de você.
Atirou-se nos braços de Bliss e as duas se abraçaram com força.
— Espero que você seja muito feliz — disse Bliss. — Eu também nunca vou me esquecer de você.
Fallom voltou-se para Pelorat e disse:
— Obrigado a você, também, Pel, por me emprestar os seus livros.
Em seguida, sem dizer mais nada, e depois de um momento de hesitação, estendeu a mão para Trevize. O rapaz apertou-a.
— Boa sorte, Fallom — murmurou. Daneel disse:
— Agradeço a todos pelo que fizeram, cada um a seu modo. Estão livres para partir, pois a busca terminou. Quanto ao meu trabalho, agora poderá prosseguir, com grande probabilidade de sucesso.
— Espere, ainda falta uma coisa — disse Bliss. — Não sabemos se Trevize ainda pensa que o melhor futuro para a humanidade é a Galáxia Viva e não um gigantesco aglomerado de Isolados.
— Ele já manifestou sua opinião há muito tempo — disse Daneel. — Trevize é a favor da Galáxia Viva.
— Preferia ouvir diretamente dos seus lábios — disse Bliss. — Como vai ser, Trevize?
— Como quer que seja, Bliss? — perguntou Trevize, calmamente. — Se eu decidir contra a Galáxia Viva, você terá Fallom de volta.
— Eu sou Gaia — disse Bliss. — Preciso conhecer a sua decisão e os motivos que o levaram a ela.
— Diga para ela, senhor — pediu o robô. — Sua mente, como Gaia bem sabe, está livre de qualquer influência externa.
— Escolho a Galáxia Viva — disse Trevize. — Já não resta mais nenhuma dúvida de que esta é a opção correta.
Bliss ficou calada durante o tempo que alguém levaria para contar sem pressa até cinquenta, como que para permitir que a informação chegasse a todas as partes de Gaia. Depois, perguntou:
— Por quê?
— Eu explico — disse Trevize. — Sabia desde o princípio que havia dois futuros possíveis para a humanidade: a Galáxia Viva, de um lado, e o Segundo Império do Plano de Seldon do outro. A mim me parecia que esses dois futuros eram mutuamente exclusivos. Não poderíamos ter a Galáxia Viva a menos que, por algum motivo, houvesse um erro fundamental no Plano de Seldon.
”Infelizmente, não conhecia nada a respeito do Plano de Seldon, a não ser os dois axiomas em que se baseia: primeiro, que o número de seres humanos envolvidos seja suficientemente grande para que a humanidade possa ser tratada estatisticamente como um grupo de indivíduos interagindo aleatoriamente; segundo, que a humanidade não conheça os resultados das análises psico-históricas antes que esses resultados sejam atingidos.”
”Como já havia optado pela Galáxia Viva, achei que devia conhecer inconscientemente alguma falha no Plano de Seldon e que essa falha só podia estar nos axiomas, que eram a única parte do plano que eu conhecia. Entretanto, não conseguia ver nada de errado nos axiomas. Decidi, então, partir à procura da Terra, sentindo que devia haver alguma razão para a Terra ter sido escondida com tanto cuidado. Tinha que descobrir qual era essa razão.
”Na verdade, não tinha nenhum motivo para acreditar que ao encontrar a Terra encontraria também a solução para as minhas dúvidas; acontece que a ideia se insinuou em minha mente, plantada talvez por Daneel, que precisava de uma criança de Solaria.
”De qualquer forma, conseguimos afinal chegar à Terra e depois à Lua. Bliss detectou a mente de Daneel, que, naturalmente, estava procurando comunicar-se com ela. Ela descreveu aquela mente como nem humana nem robótica. Sob certo aspecto estava certa, pois o cérebro de Daneel é muito mais avançado que o de qualquer outro robô e portanto não podia ser percebido como simplesmente robótico. Entretanto, também não podia ser percebido como humano. Pelorat referiu-se a ele como 'uma coisa nova' e isso serviu para despertar 'uma coisa nova' nas minhas ideias.
”Assim como, há muitos anos atrás, Daneel e seu amigo chegaram a uma quarta lei da robótica que era mais fundamental que as outras três, de repente me dei conta de que existia um terceiro axioma da psico-história que era mais fundamental que os outros dois; um terceiro axioma tão fundamental que ninguém se havia preocupado em torná-lo explícito.
”Aqui está ele. Os dois axiomas conhecidos se referem a seres humanos e se baseiam implicitamente no axioma de que os seres humanos são a única espécie inteligente da Galáxia e portanto os únicos organismos cujas ações são importantes para a evolução da sociedade. Este é o terceiro axioma: que existe uma única espécie de inteligência na Galáxia e que essa espécie é o Homo Sapiens. Se existisse 'uma coisa nova', se houvesse outra espécie inteligente além do Homem, então seu comportamento não seria descrito adequadamente pela matemática da psico-história e o Plano de Seldon seria um mero exercício acadêmico. Estão entendendo?
Trevize estava quase tremendo no seu esforço para fazer-se compreender. Repetiu:
— Estão entendendo?
— Sim, estamos, meu velho amigo — disse Pelorat. — Entretanto, como advogado do diabo...
— Sim? Prossiga.
— ... devo lembrar a você que os seres humanos são a única espécie inteligente da Galáxia.
— E os robôs? — perguntou Bliss. — E Gaia? Pelorat pensou um pouco e depois disse:
— Os robôs não desempenharam um papel significativo na história humana desde o desaparecimento dos Espaciais. Gaia não desempenhou papel significativo até recentemente. Os robôs foram criados por seres humanos e Gaia foi criado pelos robôs. Tanto os robôs quanto Gaia não podem deixar de obedecer aos seres humanos, já que estão sujeitos às Três Leis da Robótica. A despeito dos vinte mil anos de trabalho de Daneel, e do longo tempo que Gaia levou para se desenvolver, uma única palavra de Golan Trevize, um ser humano, tornaria inútil tudo que fizeram. Segue-se, portanto, que a Humanidade é a única espécie inteligente que conta e portanto a psico-história continua a ser válida.
— A única forma de inteligência da Galáxia — disse Trevize, devagar. — Eu concordo. Entretanto, falamos tanto da Galáxia que às vezes nos esquecemos de que ela não é tudo. A Galáxia não é o Universo. Existem outras galáxias.
Pelorat e Bliss se remexeram, inquietos. Daneel escutou gravemente, enquanto acariciava a cabeça de Fallom.
— Prestem atenção — disse Trevize. — Perto da nossa Galáxia ficam as Nuvens de Magalhães, que jamais foram visitadas por naves humanas. Um pouco mais longe existem outras pequenas galáxias, e logo depois está a gigantesca Galáxia de Andrômeda, maior que a nossa. No Universo conhecido, existem bilhões de galáxias.
”Na nossa Galáxia surgiu apenas um tipo de inteligência capaz de desenvolver uma sociedade tecnológica, mas o que sabemos a respeito das outras galáxias? A nossa pode ser atípica. Em algumas das outras, talvez na maioria, pode haver várias espécies inteligentes em competição, todas incompreensíveis para nós. Talvez essa competição as mantenha ocupadas, mas imaginem o que pode acontecer se, em alguma galáxia, uma das espécies conseguir dominar as outras e tiver tempo para pensar na possibilidade de explorar outras galáxias.
”Do ponto de vista do hiperespaço, a Galáxia não passa de um ponto... ou por outra, todo o Universo não passa de um ponto. Ainda não visitamos nenhuma outra galáxia e, pelo que sabemos, nenhuma espécie inteligente de outra galáxia jamais nos visitou. Entretanto, isso pode mudar de uma hora para outra. E se os invasores vierem, certamente encontrarão meios de voltar alguns seres humanos contra outros seres humanos. Estamos acostumados a lutar contra nós mesmos. Um invasor que nos encontre assim divididos não terá dificuldade para dominar-nos ou mesmo exterminar-nos. Nossa única defesa é criar a Galáxia Viva, que não pode ser voltada contra si mesma e que pode unir todos os seres humanos contra os invasores.
— O quadro que você pintou é assustador — disse Bliss. — Será que teremos tempo para criar a Galáxia Viva?
Trevize olhou para cima, como se sua visão pudesse penetrar na grossa camada de rochas lunares que o separava da superfície e do espaço; como se estivesse enxergando galáxias distantes, atravessando lentamente o espaço. Ele disse:
— Em toda a história humana, nenhuma outra inteligência tentou nos escravizar. Se essa situação continuar durante mais uns poucos séculos, talvez pouco mais que um décimo milésimo da idade da nossa civilização, estaremos seguros. Afinal de contas — e nesse instante Trevize sentiu uma leve desconfiança, que tentou ignorar —, não é como se o inimigo já estivesse aqui, no nosso meio.
Ele não teve coragem de olhar para baixo, de enfrentar os olhos de Fallom — hermafrodita, transdutor, diferente — que o observavam de forma enigmática.