— Golan — disse Pelorat. — Você se incomoda se eu ficar olhando?
— Claro que não, Janov — disse Trevize. — E se eu fizer perguntas? — Vá em frente.
— Que é que você está fazendo? Trevize levantou os olhos da tela.
— Tenho que medir a distância a que estamos de todas aquelas estrelas que você está vendo na tela. Preciso conhecer as massas e as posições das estrelas para calcular o campo gravitacional na região. Sem essa informação, seria arriscado executarmos o Salto.
— Como é que você calcula tudo isso?
— Cada estrela que estou vendo tem suas coordenadas nos bancos de memória do computador e elas podem ser transformadas em coordenadas no sistema de Comporellon. Essas, por sua vez, podem ser corrigidas de modo a levar em conta a posição atual do Estrela Distante em relação ao sol de Comporellon. Isso me dá a distância a que nos encontramos de cada uma das estrelas. As anãs vermelhas parecem próximas do Mundo Proibido quando vistas na tela do telescópio, mas algumas podem estar muito mais próximas do que outras. O telescópio nos dá apenas uma visão bidimensional, você compreende?
Pelorat assentiu e disse: — E você já tem as coordenadas do Mundo Proibido...
— Sim, mas não é suficiente. Tenho que conhecer as distâncias a que se encontram as outras estrelas com uma precisão de aproximadamente um por cento. O campo gravitacional dessas estrelas nas vizinhanças do Mundo Proibido é tão fraco que um pequeno erro não faria nenhuma diferença. Entretanto, o sol do Mundo Proibido produz um campo gravitacional tão intenso nas proximidades do Mundo Proibido que preciso conhecer sua distância com uma precisão mil vezes maior. Nesse caso, não basta conhecer as coordenadas.
— O que vai fazer, então?
— Estou medindo a distância aparente entre o sol do Mundo Proibido e três estrelas que aparecem na tela mas que são tão fracas que devem estar muito mais longe de nós que o Mundo Proibido. Vou manter uma dessas estrelas do centro da tela e dar um Salto de um décimo de parsec na direção perpendicular à reta que liga nossa nave à posição do Mundo Proibido.
”A estrela de referência continuará no centro da tela depois do Salto. Se as outras duas estrelas apagadas estiverem realmente muito distantes, sua posição não mudará apreciavelmente depois do Salto. Por outro lado, o sol do Mundo Proibido está muito mais próximo de nós, de modo que sua posição aparente deverá mudar, graças ao efeito de paralaxe. Medindo o deslocamento aparente do sol do Mundo Proibido, poderemos calcular a que distância se encontra de nós. Para ter certeza absoluta, pretendo escolher três outras estrelas e repetir tudo de novo.
— Quanto tempo vai levar? — perguntou Pelorat.
— Menos do que você pensa. O computador se encarrega do trabalho pesado; basta que eu lhe diga o que fazer. O que leva mais tempo é analisar os resultados, verificar se são razoáveis e se todas as instruções foram corretas. Se eu fosse um daqueles sujeitos que depositam fé ilimitada em si próprios e nos computadores, poderia executar toda a operação em poucos minutos.
— É fantástico — observou Pelorat. — Pense no que os computadores modernos são capazes de fazer!
— Penso nisso o tempo todo.
— O que faria sem o seu computador?
— O que faria sem uma nave gravítica? O que faria sem meus conhecimentos de astronáutica? Que faria sem vinte mil anos de tecnologia hiperespacial por trás de mim? O que importa é que sou eu mesmo... aqui... agora. Imagine que pudéssemos nos transportar para daqui a vinte mil anos. Que maravilhas tecnológicas encontraríamos? Ou será que daqui a vinte mil anos a humanidade estará extinta?
— Não diga isso — protestou Pelorat. — Mesmo que não nos tornemos parte de Gaia, ainda teremos a psico-história para nos guiar.
Trevize virou-se na cadeira, soltando a “mão” do computador.
— Vou deixá-lo calcular as distâncias e conferir os resultados à vontade... Não estamos com pressa.
Olhou de soslaio para Pelorat e exclamou:
— Psico-história! Você sabe, Janov, por duas vezes esse assunto surgiu em Comporellon, e por duas vezes foi chamado de superstição, primeiro por mim e depois por Deniador. Afinal de contas, como se pode definir a psico-história a não ser como a superstição favorita da Fundação? Não se trata de uma crença sem provas palpáveis? O que acha, Janov? Afinal, é mais do seu campo do que do meu.
— Por que está afirmando que não há provas? A imagem holo-gráfica de Hari Seldon já apareceu muitas vezes no Cofre do Tempo, referindo-se a fatos que realmente ocorreram. Seldon não poderia ter conhecimento desses fatos se não pudesse prevê-los com o auxílio da psico-história.
Trevize assentiu.
— Realmente, os resultados que Seldon conseguiu são impressionantes. Ele não foi capaz de prever o aparecimento do Mulo, mas mesmo assim os resultados são impressionantes. Entretanto, o que ele fez parece mágica. Todo ilusionista tem seus truques.
— Nenhum ilusionista é capaz de prever o futuro.
— Nenhum ilusionista é capaz de fazer o que o público pensa que ele está fazendo.
— Deixe disso, Golan. Não consigo pensar em nenhum truque que me permita prever o que vai acontecer daqui a cinco séculos.
— Nem consegue pensar em nenhum truque que permita a um mágico conhecer o conteúdo de um envelope colocado em um satélite não-tripulado. Mesmo assim, já vi um mágico fazer isso. Já lhe ocorreu que o Cofre do Tempo, juntamente com a imagem holográfica de Hari Seldon, pode ser uma farsa do governo?
Pelorat pareceu revoltado com a ideia.
— Eles não teriam coragem. Trevize fez um muxoxo.
— E seriam desmascarados se tentassem — acrescentou Pelorat.
— Não estou tão certo. A verdade, porém, é que não sabemos como a psico-história funciona.
— Não sabemos como esse computador aí funciona, mas sabemos que funciona. — Acontece, meu amigo, que outras pessoas sabem como funciona. E se ninguém soubesse como ele funciona? Então, se por alguma razão ele parasse de funcionar, ninguém saberia consertá-lo. Se as previsões da psico-história de repente deixarem de se concretizar...
— A Segunda Fundação conhece os fundamentos da psico-história.
— Como sabe isso, Janov?
— Ouvi dizer.
— Isso não quer dizer que seja verdade... Ah, o computador calculou a distância a que estamos do sol do Mundo Proibido. Vamos ver se os números são razoáveis...
Trevize ficou olhando para a tela por muito tempo, movendo os lábios de vez em quando, como se estivesse fazendo cálculos de cabeça. Afinal, disse, sem levantar os olhos: — O que é que Bliss está fazendo?
— Ela está dormindo, meu amigo — disse Pelorat. Acrescentou, em tom defensivo: — Ela precisa dormir, Golan. Manter-se como parte de Gaia através do hiperespaço é uma atividade muito cansativa.
— Suponho que sim — disse Trevize, voltando-se de novo para o computador. Colocou as mãos na escrivaninha e murmurou: — Vou executar vários pequenos Saltos e verificar a distância depois de cada um. — Retirou de novo as mãos e disse: — Estou falando sério, Janov. O que é que você sabe a respeito da psico-história?
Pelorat pareceu embaraçado.
— Nada. Ser um historiador como eu é muito diferente de ser um psico-historiador... Naturalmente, conheço os dois princípios fundamentais da psico-história, mas isso todos conhecem.
— Até eu. O primeiro princípio exige que o número de seres humanos envolvidos seja suficientemente grande para que as leis estatís-ticas tenham validade. Mas o que quer dizer “suficientemente grande”?
— De acordo com a última estimativa — disse Pelorat — a Galáxia tem uma população de pelo menos dez quatrilhões de habitantes. Este número certamente é suficientemente grande.
— Como é que você sabe?
— Porque a psico-história funciona, Golan. Diga você o que disser, ela funciona.
— O segundo princípio — prosseguiu Trevize — diz que os seres humanos não devem ter conhecimento da psico-história, para que esse conhecimento não afete o seu comportamento... mas acontece que eles têm esse conhecimento!
— Eles apenas sabem que a psico-história existe, meu amigo. Não é isso o que importa. O segundo princípio diz que os seres humanos não devem conhecer as previsões da psico-história, como realmente não conhecem... a não ser, talvez, os membros da Segunda Fundação... mas isso é um caso especial.
— E com base apenas nesses dois princípios foi desenvolvida toda a ciência da psico-história. Não acha difícil de acreditar?
— Não foi com base apenas nesses princípios — protestou Pelorat. — Foram usados métodos matemáticos e estatísticos bastante sofisticados. De acordo com a história... ou de acordo com a tradição, se você quiser... Hari Seldon chegou à psico-história tomando como modelo a teoria cinética dos gases. Os átomos ou moléculas de um gás se movem aleatoriamente e é impossível conhecer a posição ou velocidade de um deles. Mesmo assim, usando a estatística, podemos determinar com grande precisão as leis que governam o seu comportamento coletivo. Da mesma forma, Seldon pretendeu determinar o comportamento coletivo de sociedades inteiras, mesmo que as soluções não se apliquem ao comportamento individual dos seres humanos.
— Talvez, mas homens não são átomos.
— É verdade — concordou Pelorat. — Os homens têm consciência e seu comportamento é suficientemente complexo para dar a impressão de que possuem livre-arbítrio. Não sei como Seldon resolveu este problema e não sei se entenderia mesmo que alguém que soubesse tentasse me explicar... a verdade, porém, é que Seldon foi bem-sucedido!
— E tudo depende de lidar com pessoas que sejam ao mesmo tempo numerosas e desprevenidas — acrescentou Trevize. — Não lhe parece um fundamento muito pouco sólido para uma imensa estrutura matemática? Caso um desses requisitos não seja atendido, toda a estrutura desaba!
— Acontece que o Plano não desabou...
— Por outro lado, se os requisitos forem atendidos apenas parcialmente, pode ser que a psico-história funcione adequadamente durante vários séculos e depois, em consequência de uma determinada crise, as previsões deixem repentinamente de funcionar... como já aconteceu uma vez, no caso do Mulo. E você já pensou que pode ser que exista um terceiro princípio?
— Que terceiro princípio? — perguntou Pelorat, franzindo a testa.
— Não sei — disse Trevize. — Um teorema pode parecer totalmente lógico e elegante e mesmo assim conter suposições implícitas. Talvez o terceiro princípio seja um requisito tão óbvio que ninguém se lembre de mencioná-lo.
— Um requisito tão óbvio que chega a ser esquecido deve ser satisfeito na imensa maioria dos casos, do contrário não se esqueceriam dele.
Trevize fez uma careta.
— Se você conhecesse a história da ciência tão bem quando conhece a história tradicional, Janov, saberia que não há um pingo de verdade no que acabou de afirmar... Mas estou vendo que chegamos às proximidades do sol do Mundo Proibido.
E realmente, no centro da tela, havia uma estrela muito brilhante... tão brilhante que a tela reduziu automaticamente sua luminosidade a tal ponto que todas as outras estrelas desapareceram.
As instalações destinadas a lavagem e higiene pessoal a bordo do Estrela Distante eram compactas e o uso da água devia ser limitado ao mínimo indispensável, de forma a não sobrecarregar as máquinas de reciclagem. Por várias vezes, Trevize já havia sentido a necessidade de falar a respeito com Bliss e Pelorat. Mesmo assim, Bliss mantinha um ar permanente de frescor; os longos cabelos negros estavam sempre reluzentes, as unhas faiscantes.
A moça entrou na sala de comando e exclamou:
— Aí estão vocês!
Trevize levantou os olhos e disse:
— Não vejo razão para a surpresa. Dificilmente teríamos deixado a nave e bastaria uma busca de trinta segundos para você nos localizar dentro da nave, mesmo sem usar seus poderes mentais.
— A expressão foi apenas uma forma de cumprimento e não deve ser tomada literalmente, como você deve estar farto de saber — disse Bliss. — Onde é que estamos?... E não vá responder: “na sala de comando”!
— Bliss querida — disse Pelorat, estendendo o braço para a moça —, acabamos de penetrar no sistema planetário a que pertence o mais próximo dos três Mundos Proibidos.
Bliss se aproximou e apoiou o braço no ombro de Pelorat, que a abraçou pela cintura. A moça disse:
— Não deve ser muito proibido. Até agora, ninguém fez nada para nos deter.
Trevize explicou:
— Só é proibido porque Comporellon e os outros mundos da segunda onda de colonização decidiram voluntariamente manter-se afastados dos mundos colonizados pelos membros da primeira onda, os Espaciais. Se não nos sentimos obrigados a guardar distância, quem nos deterá?
— Pode ser que os Espaciais, se ainda existem, também não desejem manter contato com os mundos da segunda onda. Só porque não nos incomodamos de encontrar-nos com eles, não quer dizer que a recíproca seja verdadeira.
— É verdade — concordou Trevize. — Se eles ainda existirem. Até agora, porém, não sabemos nem ao menos se existe um planeta que eles possam habitar. Até agora, tudo o que encontramos foram os costumeiros gigantes gasosos. Dois deles, e não particularmente grandes.
— Isso não quer dizer que o mundo dos Espaciais não exista — interveio Pelorat. — Qualquer mundo habitável teria que ficar muito mais próximo do sol, seria muito menor e praticamente impossível de detectar a esta distância. Para podermos observar um planeta desse tipo, teremos que dar um pequeno Salto para mais perto do sol.
Parecia muito orgulhoso por estar falando como um astronauta experiente.
— Nesse caso — disse Bliss —, o que estamos esperando?
— Pedi ao computador para procurar qualquer vestígio de estru-turas artificiais. Vamos nos aproximar aos poucos, com muita cautela. Não quero cair em uma armadilha, como aconteceu quando nos aproximamos de Gaia. Lembra-se, Janov?
— Bendita armadilha! Graças a ela, conheci Bliss — observou Pelorat, olhando para a moça com carinho.
Trevize sorriu.
— Está esperando encontrar outra Bliss?
Pelorat fez uma expressão magoada e Bliss observou, com certa impaciência:
— Meu velho amigo... ou como quer que seja que Pelorat insiste em chamá-lo... não precisa perder mais tempo. Enquanto eu estiver com vocês, não cairão em nenhuma armadilha.
— O poder de Gaia?
— Para detectar a presença de outras mentes? Certamente.
— Tem certeza de que está suficientemente forte para isso, Bliss? Observei que você precisa dormir bastante para recuperar-se do esforço para manter-se em contato com Gaia através do hiperespaço. Posso confiar em sua capacidade, mesmo a uma distância tão grande da fonte?
Bliss enrubesceu.
— A ligação ainda está bem forte.
— Não fique ofendida. Estou apenas perguntando... Não acha que esta é uma desvantagem de você ser Gaia? Eu não sou Gaia. Sou um indivíduo completo e independente. Isso significa que posso me afastar o quanto quiser do meu mundo e do meu povo e continuar a ser Golan Trevize. Os poderes que eu tenho continuam a ser os mesmos, e no mesmo grau, onde quer que me encontre. Se estivesse sozinho no espaço, a milhares de anos-luz de qualquer ser humano, e impossibilitado, por alguma razão, de comunicar-me com outro ser vivente, ou mesmo de ver o brilho de uma única estrela no céu, seria e continuaria a ser Golan Trevize. Talvez não conseguisse sobreviver, mas morreria como Golan Trevize.
Bliss objetou:
— Sozinho no espaço, longe dos seus semelhantes, você não poderia recorrer aos talentos e à experiência de outros indivíduos da sua raça. Isolado de todos, você teria muito menos capacidade que como membro de uma sociedade integrada. É um fato inegável.
— No seu caso, Bliss, é muito pior. Existe uma ligação entre você e Gaia que é muitíssimo mais forte que a que existe entre mim e a minha sociedade. Para manter essa ligação através do hiperespaço, você consome uma quantidade tão grande de energia que chega a ficar exausta. Se essa ligação fosse rompida, você teria muito mais a perder do que eu ao me afastar dos meus semelhantes...
O rosto de Bliss assumiu uma expressão severa e por um momento pareceu mais Gaia do que Bliss. Ela disse:
— Mesmo que seja verdade tudo o que está dizendo, Golan Trevize, não acha que há um preço a pagar por tudo o que conquistamos? Não é melhor ser uma criatura de sangue quente como você do que um animal de sangue frio como um peixe ou sei lá o quê?
— As tartarugas são animais de sangue frio — interveio Pelorat. — Terminus não tem tartarugas, mas elas são comuns em outros planetas. Têm uma carapaça dura, movem-se devagar e vivem muito tempo.
— Pois não é melhor ser um homem do que uma tartaruga? Não é melhor ser rápido do que vagaroso? Não é melhor dispor de um organismo capaz de consumir energia rapidamente, de músculos que se contraiam depressa, de fibras nervosas que permitam pensamentos complexos, do que arrastar-se pela existência, com apenas uma pálida ideia das vizinhanças e sem a menor possibilidade de um planejamento a longo prazo? Hein?
— Claro que sim — concordou Trevize. — E daí?
— Daí que você não sabe o preço que precisa pagar para ser um animal de sangue quente. Para manter a temperatura do seu corpo acima da temperatura ambiente, você precisa gastar energia, mesmo quando não está fazendo absolutamente nada. Assim, tem que alimentar-se constantemente para repor a energia perdida. Uma tartaruga pode passar muito mais tempo que você sem comer. Além disso, as tartarugas vivem mais tempo. Você preferiria ser uma tartaruga, viver devagar e ter uma existência mais longa? Ou prefere pagar o preço e ser uma criatura de movimentos rápidos, sentidos aguçados e raciocínio ágil?
— Esta analogia é correta, Bliss?
— Não, Trevize, a situação de Gaia é ainda mais favorável. Quando estamos juntos, não precisamos gastar uma grande quantidade de energia. É apenas quando uma parte de Gaia se encontra a uma distância considerável do resto de Gaia que o consumo de energia aumenta. Não se esqueça também de que você não optou apenas por um Gaia maior, pela expansão de apenas um planeta. Você escolheu a Galáxia Viva, um vasto complexo de mundos. Em qualquer ponto da Galáxia, você será parte da Galáxia Viva, estará cercado de perto por partes de uma entidade que se estenderá desde os traços mais distantes de poeira cósmica até o buraco negro central. Não será necessária muita energia para manter a coesão do todo. Nenhuma parte estará muito afastada de todas as outras partes. Foi por isso que você optou, Trevize. Como pode ter dúvida de que fez a escolha certa?
Trevize baixou a cabeça, pensativo. Depois de alguns momentos, olhou para Bliss e disse:
— Posso ter tomado a decisão correta, mas quero ter certeza disso. A escolha que fiz é a mais importante da história da Humanidade. Não é suficiente que seja uma boa escolha. Preciso saber que foi uma boa escolha.
— O que mais é necessário além do que eu já lhe disse?
— Não sei, mas descobrirei quando encontrar a Terra — afirmou Trevize, com absoluta convicção.
Pelorat interrompeu:
— Golan, a estrela se transformou em um disco.
Era verdade. Enquanto os dois discutiam, o computador, obedecendo às instruções de Trevize, tinha levado a nave, através de pequenos saltos, até a posição determinada pelo rapaz.
Continuavam fora do plano da eclíptica e o computador dividiu a tela em três partes para mostrar simultaneamente os três planetas interiores. Desses planetas, o mais próximo do sol tinha uma atmosfera de oxigênio. Além disso, a temperatura da superfície estava dentro da faixa em que a água permaneceria líquida. Trevize esperou que o computador determinasse a órbita e a primeira estimativa grosseira pareceu razoável. O rapaz deixou que o computador continuasse o cálculo, pois quanto maior fosse o tempo de observação, mais precisos seriam os resultados.
— Temos um planeta habitável — afirmou Trevize, calmamente.
— Ah!
A expressão de felicidade no rosto de Pelorat era inconfundível.
— Infelizmente — disse Trevize —, não existe nenhum satélite gigantesco. Para dizer a verdade, o computador não detectou nenhum satélite natural, grande ou pequeno. Assim, não deve ser a Terra. Pelo menos, se as lendas estiverem corretas.
— Não se preocupe, Golan — disse Pelorat. — Suspeitei de que não se tratava da Terra desde o momento em que vi que nenhum dos gigantes gasosos possuía anéis.
— Muito bem, então — disse Trevize. — O próximo passo é verificar que tipo de vida existe no planeta. Como possui uma atmosfera de oxigênio, podemos ter certeza de que existe vida vegetal, mas...
— Vida animal, também — interrompeu Bliss. — E em grande quantidade.
— O quê? — exclamou Trevize, voltando-se para a moça.
— Posso senti-la. Apenas fracamente, a essa distância, mas asseguro-lhe que o planeta não só é habitável, mas também é habitado.
O Estrela Distante estava em órbita polar em torno do Mundo Proibido, a uma distância tão grande que levava quase seis dias para circundar o planeta. Trevize parecia não estar com pressa alguma para sair de órbita.
— Já que o planeta é habitado — explicou —, e já que, segundo Deniador, antigamente era habitado por seres humanos que eram muito adiantados do ponto de vista tecnológico e que representam a primeira leva de Colonizadores, os chamados Espaciais, pode ser que os habitantes ainda sejam tecnologicamente avançados e não morram de amores por nós, que pertencemos à segunda leva que os substituiu. Gostaria que se mostrassem, para que pudéssemos observá-los um pouco antes de pousar.
— Talvez não saibam que estamos aqui — aventurou Pelorat.
— Nós saberíamos, se estivéssemos no lugar deles. Temos que supor que, se ainda existem, tentarão entrar em contato conosco. Talvez até queiram vir nos pegar.
— Mas se eles vierem e se são tão adiantados assim, estaremos perdidos...
— Vamos com calma — disse Trevize. — O progresso tecnológico nem sempre ocorre simultaneamente em todos os setores. Pode ser que estejam muito à nossa frente sob alguns aspectos, mas é evidente que não estão acostumados às viagens interestelares. Fomos nós, e não eles, que colonizamos a Galáxia, e em toda a história do Império não sei de nenhuma ocasião em que tenham deixado seus mundos. E se não estão habituados às viagens interestelares, como espera que tenham progredido muito na ciência da astronáutica? E se não progrediram muito, é impossível que disponham de uma espaçonave gravítica como a nossa. Podemos estar desarmados, mas se vierem atrás de nós, mesmo que seja com um encouraçado, jamais nos alcançarão... Não, não estaremos perdidos...
— E se eles progrediram muito no campo das ciências mentais? E se o Mulo era um Espacial?
Trevize fez um muxoxo de irritação.
— O Mulo não podia ser tudo ao mesmo tempo. Os gaianos o descreveram como um gaiano renegado. Outros o consideram como um mutante...
— Também há quem diga que o Mulo era uma máquina — observou Pelorat. — Um robô, em outras palavras.
— Se houver algum perigo mental, estou contando com Bliss para neutralizá-lo. Afinal, ela mesma disse que... a propósito, ela está dormindo?
— Estava — respondeu Pelorat. — Mas quando saí de lá, tinha começado a se mexer.
— Começado a se mexer, hein? Pois vai ter que estar bem acordada se algo acontecer. Estou contando com você para isso, Janov.
— Está bem, Golan.
Trevize desviou sua atenção para o computador.
— Uma coisa que me preocupa são as estações espaciais. Em geral, constituem um sinal seguro de que os habitantes do planeta desenvolveram uma tecnologia avançada. Neste caso, porém...
— Há algo de errado com elas?
— Várias coisas. Em primeiro lugar, são muito antigas. Podem ter mais de mil anos de idade. Em segundo lugar, a única radiação que emitem é radiação térmica.
— O que é isso?
— Radiação térmica é aquela que é emitida por um objeto mais quente que as vizinhanças. Consiste em uma larga faixa de frequências e apresenta um espectro bastante característico, que é função da temperatura. É isso que as estações espaciais estão irradiando. Se houvesse instrumentos funcionando a bordo das estações, provavelmente captaríamos uma radiação com um espectro diferente, mais compacto. Existem duas possibilidades: ou as estações estão vazias, e podem ter estado vazias, ao que sabemos, nos últimos mil anos, ou estão sendo ocupadas por seres com uma tecnologia tão avançada que seus equipamentos não produzem nenhum tipo de radiação.
— Talvez — propôs Pelorat — o planeta continue a ser habitado por uma civilização avançada, mas as estações espaciais estejam vazias porque o planeta está isolado há tanto tempo que ninguém se preocupa mais em vigiar o espaço.
— Pode ser. Pode ser também que se trate de algum tipo de armadilha.
Bliss entrou no aposento e Trevize, observando-a com o canto do olho, resmungou:
— Aqui estamos nós.
— Estou vendo — disse Bliss. — E continuamos na mesma órbita. Pelorat apressou-se a explicar:
— Golan está sendo cauteloso, querida. As estações espaciais parecem desertas e ainda não sabemos o que isso significa.
— Não precisa se preocupar — disse Bliss, com indiferença. — Não há sinais detectáveis de vida inteligente no planeta.
Trevize olhou para ela, admirado.
— De que está falando? Você disse...
— Eu disse que havia vida animal no planeta, e é verdade, mas de onde tirou a ideia de que onde há vida animal tem que haver vida humana?
— Por que você não me disse isso assim que detectou vida animal no planeta?
— Porque daquela distância, não podia ter certeza. Era capaz de perceber os traços inconfundíveis da atividade de neurônios, mas com um sinal tão fraco, seria impossível distinguir um homem de uma borboleta.
— E agora?
— Agora estamos muito mais próximos e você pode achar que eu estava dormindo, mas não estava... pelo menos, não o tempo todo. Eu estava, para usar uma palavra pouco apropriada, escutando atentamente o planeta, à procura de uma atividade mental suficientemente complexa para indicar a presença de inteligência.
— E não encontrou nenhuma?
— Tenho a impressão — disse Bliss, com súbita cautela — de que se não consegui perceber nada a essa distância, não pode haver mais que alguns milhares de seres humanos no planeta. Se chegarmos mais perto, poderei fornecer-lhe uma informação mais precisa.
— Bem, isso muda tudo — observou Trevize, confuso.
— Acho que sim — concordou Bliss, que parecia estar sonolenta e, consequentemente, de mau humor. — Você pode parar com toda essa história de analisar radiações e tirar conclusões e tudo mais que possa ter estado fazendo. Meus sentidos gaianos podem fazer esse trabalho com muito maior eficiência e precisão. Talvez um dia você entenda o que quero dizer quando afirmo que é melhor ser um gaiano que um Isolado.
Trevize custou para responder. Era evidente que estava lutando para controlar-se. Quando falou, foi de forma polida, quase formal.
— Grato pela informação. Entretanto, espero que compreenda que, para usar uma analogia, a ideia de melhorar meu sentido de olfato não constitui incentivo suficiente para tornar-me um cão de caça.
Agora podiam ver claramente o Mundo Proibido, pois haviam ultrapassado a camada de nuvens. O planeta tinha um ar curiosamente decrépito.
As regiões polares eram geladas, como seria de se esperar, mas pouco extensas. As regiões montanhosas eram despidas de vegetação, com uma ou outra geleira, mas também não eram muito extensas. Havia pequenas áreas desérticas, bem espalhadas.
Deixando tudo isso de lado, o planeta era, potencialmente, muito bonito. As massas continentais eram grandes, mas sinuosas, de modo que havia longos litorais e ricas planícies costeiras. Havia vastas florestas tropicais e temperadas, entremeadas com prados e savanas. Mesmo assim, a impressão de decrepitude era geral. No meio das florestas havia grandes clareiras, e partes das savanas eram desprovidas de vegetação.
— Algum tipo de praga? — sugeriu Pelorat.
— Não — afirmou Bliss. — Alguma coisa muito pior e mais permanente.
— Conheço muitos planetas — disse Trevize —, mas nunca vi nada parecido.
— Conheço poucos planetas — declarou Bliss —, mas meus pensamentos são os pensamentos de Gaia e isto é o que se pode esperar de um mundo de onde a humanidade desapareceu.
— Por quê? — perguntou Trevize.
— Pense bem — disse Bliss, em tom mordaz. — Nenhum planeta habitado possui um equilíbrio ecológico real. A Terra deve ter tido um, pois foi o mundo em que a humanidade surgiu e muitos séculos se passaram antes que surgisse o ser humano, a única espécie capaz de modificar intencionalmente o equilíbrio natural. Nesse caso, o equilíbrio deve ter existido. Em todos os outros mundos habitados, porém, o homem transformou cuidadosamente os novos ambientes e introduziu a vida animal e vegetal, mas os sistemas ecológicos que introduziu eram necessariamente desequilibrados. Esses sistemas possuíam apenas um número limitado de espécies, apenas as que os seres humanos consideravam como desejáveis ou não podiam deixar de introduzir...
— Sabe o que isso me faz lembrar? — disse Pelorat. — Perdoe-me, Bliss, por interromper, mas é tão pertinente que gostaria de contar logo para você antes que eu me esqueça. Uma vez ouvi falar de uma lenda a respeito da criação. Nessa lenda, a vida tinha surgido em um planeta e consistia apenas em um pequeno número de espécies, aquelas que eram úteis ou agradáveis para a humanidade. Os primeiros seres humanos então cometeram um grande erro... não me pergunte qual, meu velho amigo, pois os velhos mitos geralmente contêm muitos elementos de simbolismo e não devem ser tomados ao pé da letra... e o solo do planeta foi amaldiçoado. “Maldita é a terra por tua causa: em fadigas obterás dela o sustento durante todos os dias de tua vida. Ela produzirá também cardos e abrolhos”... é isso que diz a passagem, embora soe muito melhor no galáctico arcaico em que estava escrita. A questão, porém, é a seguinte: seria realmente uma maldição? As coisas que os seres humanos não querem, como os cardos e os abrolhos, podem ser necessárias para equilibrar a ecologia. Bliss sorriu.
— É realmente espantoso, Pel, como tudo faz você se lembrar de uma antiga lenda, e como essas lendas às vezes podem ser interessante. Quando se instalam em um planeta, os seres humanos tendem a deixar de fora os cardos e abrolhos e depois têm que trabalhar muito para manter o mundo funcionando. Os ecossistemas criados pelo homem não são organismos autossuficientes como Gaia, mas sim conjuntos heterogêneos de Isolados, conjuntos esses que não são suficientemente heterogêneos para atingirem o equilíbrio. Se a humanidade desaparece, se o seu controle sobre as outras formas de vida deixa de existir, o planeta inteiro entra em colapso.
— Se é isso que está acontecendo aqui, está acontecendo muito devagar — observou Trevize ceticamente. — Este planeta pode estar abandonado há quase vinte mil anos e mostra muito poucos sinais de decadência.
— Isso depende muito da forma como o equilíbrio ecológico é estabelecido inicialmente — observou Bliss. — Se o equilíbrio inicial é razoável, o ecossistema pode durar muito tempo sem intervenção humana. Afinal, vinte mil anos não são nada em comparação com o tempo de vida de um planeta.
— Suponho — disse Pelorat, observando o planeta na tela do telescópio — que se o planeta está em decadência, é sinal de que os seres humanos se foram.
— Ainda não consegui detectar nenhum sinal de vida inteligente — disse Bliss. — Posso afirmar com razoável certeza que não há seres humanos lá embaixo. Por outro lado, estou captando sinais de consciências primitivas mas suficientemente complexas para representarem pássaros e mamíferos. Não estou certa, porém, de que a deterioração do ecossistema constitua uma indicação segura da inexistência de seres humanos. Um planeta habitado pode entrar em colapso se a população não compreender a importância da preservação do ambiente.
— Tenho certeza — disse Pelorat — de que uma sociedade assim seria rapidamente destruída. Não acredito que os seres humanos deixassem de compreender a importância de conservar os próprios meios que tornam possível a sua sobrevivência.
— Não compartilho da sua fé na racionalidade do homem — observou Bliss. — Para mim é bem possível que em uma sociedade planetária constituída apenas por Isolados, os interesses locais ou mesmo individuais tenham primazia sobre o bem coletivo.
— Sou forçado a concordar com Pelorat — disse Trevize. — Quando mais não seja, pelo fato de que milhões de planetas já foram colonizados e nunca ouvi falar de um caso como o que você descreveu. Bliss, acho que o medo que você tem das sociedades de Isolados não tem razão de ser. Nesse instante, a nave deixou o hemisfério iluminado. O efeito foi o de um rápido crepúsculo, logo seguido pela escuridão absoluta do lado de fora, quebrada apenas pelo brilho das estrelas no céu quase sem nuvens.
A nave conservava a altitude medindo com precisão a pressão atmosférica e a intensidade do campo gravitacional. Estavam a uma distância segura da superfície do planeta, que não possuía grandes elevações, já que o último ciclo de formação de montanhas havia ocorrido há muito tempo. Mesmo assim, o computador apalpava o caminho à frente com dedos de microondas, para ter certeza de que não havia perigo.
Trevize olhou para a escuridão aveludada e disse, pensativo:
— Na minha opinião, a prova mais convincente de que um planeta é desabitado é a ausência de luzes artificiais no lado escuro. Nenhuma civilização tecnológica suporta a escuridão... Assim que chegarmos ao lado iluminado, vamos baixar um pouco.
— Para quê? — perguntou Pelorat. — Não há nada lá embaixo!
— Quem foi que disse que não há nada lá embaixo?
— Bliss. E você, também.
— Não, Janov. O que eu disse foi que não havia conseguido captar nenhum tipo de radiação artificial. Bliss falou que não havia sinais de atividade mental de seres humanos. Isso, porém, não quer dizer que lá embaixo não exista nada que nos interesse. Mesmo que os seres humanos tenham abandonado o planeta, certamente deixaram algum tipo de ruínas. Estou atrás de informações, Janov, e os restos de uma tecnologia podem conter informações muito valiosas.
— Depois de vinte mil anos? — A voz de Pelorat tornou-se aguda. — Que material sobreviveria durante vinte mil anos? Não vamos encontrar filmes, nem livros, nem fitas. O metal estará enferrujado, a madeira, podre, o plástico, reduzido a pó. Até os artefatos de pedra terão sido atacados pela erosão a ponto de ficarem irreconhecíveis!
— Pode não ter sido vinte mil anos — explicou Trevize, pacientemente. — Falei em vinte mil anos porque, de acordo com as lendas comporelianas, naquela época havia uma civilização florescente habitando este planeta. Suponha, porém, que os últimos seres humanos tenham morrido ou deixado o planeta há apenas um milênio.
Chegaram de volta ao hemisfério iluminado e, depois de uma breve aurora, o sol tornou a brilhar do lado de fora.
O Estrela Distante reduziu a velocidade e diminuiu a altitude até que os detalhes da superfície do planeta se tornaram claramente visíveis. Naquela região, o litoral era semeado de pequenas ilhas, quase todas cobertas de vegetação.
— Acho que devemos concentrar nossa atenção nas áreas devastadas — disse Trevize. — No meu entender, os lugares em que havia maior densidade populacional foram aqueles em que o equilíbrio ecológico foi mais prejudicado. Esses foram provavelmente os núcleos iniciais da praga que está tomando conta do planeta. O que acha, Bliss?
— É possível. De qualquer forma, na falta de informações concretas, acho que devemos procurar onde for mais fácil. Os prados e florestas provavelmente engoliram todos os sinais de civilização, de modo que procurar ali poderia ser perda de tempo.
— Acaba de me ocorrer — observou Pelorat — que talvez este planeta possa um dia estabelecer um novo equilíbrio com o que lhe restou; que novas espécies se desenvolvam; que as regiões devastadas tornem a ser colonizadas em novas bases.
— É possível, Pel — concordou Bliss. — Depende, suponho, do grau de desequilíbrio que lhe foi imposto. Entretanto, para um mundo curar suas feridas e atingir um novo equilíbrio através da evolução, seria preciso muito mais que vinte mil anos. Estaríamos falando em milhões de anos!
O Estrela Distante não estava mais em órbita em torno do planeta; sobrevoava lentamente uma clareira de quinhentos metros de largura na qual só cresciam algumas plantinhas raquíticas.
— Que acham disso? — disse Trevize de repente, apontando para baixo.
A nave reduziu ainda mais a velocidade até ficar parada, suspensa no ar. Um zumbido fraco mas persistente mostrou que os motores gravíticos estavam funcionando a toda força, neutralizando o campo gravitacional do planeta.
Não havia muita coisa para ver no local que Trevize havia indicado. Um terreno levemente ondulado, onde havia tufos esparsos de capim.
— Não estou vendo nada — disse Pelorat.
— Aquelas marcas no chão não são naturais... são linhas paralelas, e existem outras linhas perpendiculares às primeiras. Não está vendo? Sinais de arquitetura humana, vestígios de alicerces e paredes, tão nítidos como se as construções ainda estivessem de pé!
— Mesmo que você esteja certo — disse Pelorat —, não passam de ruínas. Para fazer uma pesquisa arqueológica, vamos ter que cavar muito. Os profissionais levam anos para desenterrar um único edifício...
— Não somos profissionais e não temos anos para perder. Parece que encontramos os restos de uma antiga cidade e talvez uma parte dela ainda esteja de pé. Vamos seguir essas linhas no chão e ver o que encontramos.
Foi quase no final da clareira que chegaram a um edifício que ainda estava intacto... ou quase intacto.
— É um bom lugar para começarmos — disse Trevize. — Vamos descer.
O Estrela Distante pousou na base de uma pequena colina, uma das poucas que havia na grande planície. Quase sem pensar, Trevize tinha escolhido o lugar para que a nave ficasse em um local pouco visível. Ele disse para os companheiros:
— A temperatura lá fora é de 24 graus centígrados, está soprando um vento de oeste para leste de onze quilômetros por hora e o céu está parcialmente encoberto. O computador não conhece o suficiente a respeito do clima do planeta para fazer uma previsão do tempo; entretanto, como a umidade relativa do ar é de 40%, não é provável que esteja para chover. No conjunto, parece que o tempo lá fora está muito agradável, o que, comparado com Comporellon, certamente constitui um alívio.
— Suponho que se o planeta continuar entregue à própria sorte, as condições climáticas se tornarão mais extremas — observou Pelorat.
— Tenho certeza disso — afirmou Bliss.
— Para nós, é o que menos importa — disse Trevize. — Temos milhares de anos de vantagem. No momento, ainda é um planeta bem agradável e continuará assim durante muito tempo.
Enquanto falava, o rapaz estava afivelando um cinto largo na cintura. Bliss perguntou, curiosa:
— O que é isso, Trevize?
— Estou lembrando meu treinamento militar — disse Trevize. — Não vou desembarcar desarmado em um planeta desconhecido.
— Está falando seriamente em carregar armas?
— Isso mesmo. Aqui na minha direita — mostrou um coldre que continha uma arma pesada, com um cano grosso —, está meu desintegrador, e na minha esquerda — uma arma menor, com um cano fino e fechado na ponta —, está meu chicote neurônico.
— Dois tipos de armas mortais — observou Bliss, com ar de desdém.
— Está enganada. Apenas o desintegrador é capaz de matar. O que o chicote neurônico faz é estimular os nervos, produzindo uma dor tão intensa que a pobre vítima preferiria estar morta. Pelo menos, foi o que me contaram; nunca tive o desprazer de estar do lado errado de um chicote neurônico.
— Para quê as armas?
— Já lhe disse. É um mundo desconhecido.
— Trevize, é um mundo deserto!
— É mesmo? Tudo leva a crer que não exista nenhuma civilização adiantada, mas já pensou em raças primitivas? Paus e pedras também matam, você sabe!
Bliss parecia irritada, mas baixou a voz em um esforço para ser razoável.
— Não fui capaz de detectar nenhuma atividade neurônica humana, Trevize. Isso elimina também as raças primitivas.
— Então não vou ter que usar minhas armas — disse Trevize. — Qual o problema de carregá-las comigo? Só me tornarão um pouquinho mais pesado, e como a gravidade na superfície deste planeta é 9% menor que a de Terminus, acho que não sentirei a diferença. Escute, a nave pode estar desarmada como nave, mas transporta um suprimento considerável de armas portáteis. Por que vocês dois também não...
— Não — interrompeu Bliss. — Jamais seria capaz de matar alguém... ou mesmo de causar sofrimento.
— Não é uma questão de matar, mas de não ser morto.
— Posso proteger-me de outras formas.
— Janov? Pelorat hesitou.
— Não usamos armas em Comporellon.
— Ora, vamos, Janov, Comporellon era terreno conhecido, um planeta aliado da Fundação. Além disso, fomos detidos assim que chegamos. Se estivéssemos armados, teriam tomado nossas armas. Não quer levar um desintegrador?
Pelorat sacudiu a cabeça.
— Nunca tive treinamento militar, meu velho amigo. Não saberia como usar uma dessas coisas e, em uma emergência, não sangue-frio suficiente para usá-la. Tentaria correr e... e seria morto. — Ninguém vai ser morto, Pel — disse Bliss. — Gaia tem sob a minha/nossa/sua proteção, tanto quanto esse bravo soldado aqui ao lado.
— Ótimo — disse Trevize. — Não tenho nenhuma objeção a sair protegido. Vou levar as armas simplesmente como precaução adicional e, asseguro-lhe, não pretendo usá-las a não ser um último caso Mesmo assim, prefiro não desembarcar sem elas.
Trevize deu um tapinha afetuoso no coldre e acrescentou:
— Agora vamos desembarcar neste mundo que pode não ter sentido o peso de pés humanos nos últimos milhares de anos.
— Tenho a sensação de que está para anoitecer — disse Pelorat —, mas, a julgar pela altura do sol, ainda deve ser por volta do meio-dia.
— Isso é porque o sol aqui tem uma cor alaranjada — explicou Trevize —, o que dá à luz do dia a aparência de crepúsculo. Se ainda estivermos aqui ao entardecer, e se o tempo ajudar, você verá o céu ficar vermelho escuro. Não sei se vai ser um espetáculo bonito ou deprimente. A propósito: o pôr do sol em Comporellon também deve ser bem exótico, mas passamos o tempo todo em ambiente fechado.
Voltou-se devagar, examinando os arredores. Além da iluminação quase fantasmagórica, havia o odor característico do planeta... ou pelo menos daquela parte do planeta. Era um cheiro um pouco rançoso, mas estava longe de ser desagradável.
As árvores próximas eram de altura mediana e pareciam muito antigas, com a casca irregular e os troncos levemente inclinados em relação à vertical, embora fosse difícil dizer se por causa dos ventos dominantes na região ou devido às ondulações do solo. Seriam as árvores que emprestavam um aspecto algo ameaçador àquela paisagem ou seria alguma outra coisa... menos material?
Bliss perguntou:
— O que pretende fazer, Trevize? Certamente não veio até aqui para admirar a vista!
— Acho que no momento é a isso que vai se reduzir a minha participação. Minha sugestão é de que Janov vá explorar as ruínas. Está em melhores condições do que eu para julgar a importância de qualquer achado. Afinal, ele conhece galáctico arcaico e eu não. E suponho, Bliss, que você queira ir com ele para protegê-lo. Quanto a mim, ficarei aqui, do lado de fora das ruínas, montando guarda.
— Montando guarda contra quem? Um bando de nativos armados com paus e pedras?
— Talvez. — De repente, o sorriso desapareceu dos lábios de Trevize e ele acrescentou: — Não sei por que, Bliss, não me sinto à vontade neste lugar. Não sei por quê.
Pelorat disse:
— Vamos, Bliss. Tenho sido um colecionador de lendas durante toda a minha vida, mas nunca tive a oportunidade de descobrir um documento antigo. Imagine se encontrarmos...
Trevize ficou olhando enquanto os dois se afastavam, a voz de Pelorat desaparecendo ao longe enquanto ele se dirigia para as ruínas com passos ansiosos, acompanhado de perto por Bliss.
Trevize voltou a examinar as vizinhanças. Por que estava tão preocupado?
Nunca havia posto os pés em um mundo desabitado, mas tinha observado muitos desses mundos do espaço. Em geral, eram planetas pequenos, com gravidade insuficiente para reter a água e o ar, mas serviam como pontos de referência durante as manobras militares (não tinha havido nenhuma guerra nos últimos dois séculos, mas mesmo assim as manobras militares prosseguiam) ou os exercícios de reparos de emergência simulados. A nave em que se encontrava tinha entrado em órbita em torno desses planetas, ou mesmo pousado em alguns deles, mas nessas ocasiões Trevize não havia desembarcado.
Seria o fato de que agora estava pisando em um mundo deserto? Teria a mesma sensação se tivesse pisado num daqueles planetas pequenos, sem ar e sem vida, que tinha conhecido nos tempos de estudante?
Sacudiu a cabeça. Não era a mesma coisa. Em primeiro lugar, estaria usando um traje espacial, como nas inúmeras ocasiões em que havia trabalhado no espaço, fora da nave. Era uma situação familiar e o simples contato dos pés com o solo não teria mudado grande coisa. Naturalmente!
Naturalmente... no momento, não estava usando um traje espacial.
Estava na superfície de um mundo habitável, de clima tão agradável quanto o de Terminus... muito mais agradável, por exemplo, que o de Comporellon. Sentiu o vento no rosto, o calor do sol, o sussurro das árvores. Tudo era familiar, a não ser o fato de que naquele mundo não havia mais seres humanos.
Seria isso? Seria isso que tornava aquele mundo tão soturno? Seria o fato de se tratar não apenas de um mundo inabitado, mas de um mundo abandonado?
Trevize nunca havia estado antes num mundo abandonado; nunca havia ouvido falar de um mundo abandonado; nunca havia imaginado que um mundo pudesse ser abandonado. De todos os mundos que conhecia, os que tinham sido colonizados pelo homem continuavam habitados para sempre.
Olhou para o céu. Apenas os seres humanos haviam abandonado o planeta. Um pássaro cruzou sua linha de visão, parecendo mais natural, de alguma forma, do que o céu azul-acinzentado e as nuvens alaranjadas. (Trevize tinha certeza de que, se passasse alguns dias no planeta, acabaria por acostumar-se com as cores do céu e das nuvens.). Ouviu o canto de pássaros nas árvores e o ruído mais suave dos insetos. Bliss havia falado em borboletas e ali estavam elas... em grande número e muitas variedades coloridas.
Havia também ruídos ocasionais nos tufos de capim em volta das árvores, mas Trevize não conseguiu descobrir sua causa.
A presença de vida animal nas vizinhanças não lhe trazia desconforto. Como Bliss havia dito, os mundos colonizados pelo homem jamais haviam abrigado seres perigosos. Os contos de fadas da infância e as fantasias heroicas da juventude invariavelmente se passavam em um mundo fabuloso que sem dúvida tinha sido inspirado nos antigos mitos a respeito da Terra. Nos hiperdramas, a holotela estava sempre cheia de monstros: leões, unicórnios, dragões, baleias, brontossauros, ursos. Havia dezenas de animais, cujos nomes Trevize já havia esquecido, muitos certamente mitológicos, talvez todos. Havia animais menores que mordiam e picavam, até mesmo plantas venenosas... mas apenas nas histórias. Uma vez tinha ouvido falar que as abelhas primitivas eram capazes de picar, mas as abelhas que conhecia eram totalmente inofensivas.
Caminhou devagar para a direita, contornando a colina. O capim era alto e cerrado, mas esparso, crescendo em tufos. Passou por entre as árvores, que também formavam moitas.
A boca de Trevize se abriu em um bocejo. Tudo parecia tão calmo que teve vontade de voltar à nave para dormir um pouco. Não, não seria prudente. Era melhor continuar bancando a sentinela.
Talvez fosse melhor começar a portar-se como uma sentinela de verdade... começando a marchar, um, dois, um, dois, dando meia-volta e executando evoluções complicadas com um eletrobastão de parada. (Era uma arma que estava fora de uso há mais de três séculos, mas era considerada essencial nas paradas, por uma razão que ninguém saberia explicar.)
Trevize sorriu ao pensar no eletrobastão e imaginou se não seria melhor ir juntar-se a Pelorat e Bliss nas ruínas. Para quê? Em que poderia ajudá-los?
E se observasse alguma coisa que Pelorat havia deixado escapar? Ora, teria tempo para tentar depois que Pelorat voltasse. Se houvesse alguma coisa interessante a ser descoberta nas ruínas, preferia mil vezes que Pelorat a encontrasse primeiro.
E se os dois estivessem em dificuldades? Bobagem! Que tipo de dificuldades?
E se houvesse algum problema, bastaria que eles gritassem.
Parou para escutar. Não ouviu nada.
Foi então que sentiu uma vontade irresistível de marchar. Quando deu por si, estava batendo com os pés no chão, jogando para o alto um eletrobastão imaginário, agarrando-o de novo... jogando o bastão para o alto, agarrando-o de novo... Trevize fez meia-volta e se viu de frente para a nave, agora bem mais distante.
E assim que olhou naquela direção, Trevize ficou imóvel, não no papel de sentinela, mas de pura surpresa.
Não estava sozinho.
Até então, não tinha visto nenhuma criatura viva a não ser plantas, insetos e um ou outro passarinho. Não tinha visto nem ouvido ninguém se aproximar... mas agora havia um animal entre ele e a nave.
O inesperado da situação o privou, por um momento, da capacidade de interpretar o que via. Foi apenas depois de um intervalo perceptível que reconheceu o que tinha diante de si.
Era apenas um cachorro.
Trevize nunca havia possuído um cão e não sentia nenhuma simpatia especial pelos cachorros que encontrava. Daquela vez não foi diferente. Apenas pensou, com certa impaciência, que não havia nenhum mundo colonizado pelo homem em que o cachorro não o houvesse acompanhado. Existia um número incontável de raças e Trevize se lembrava de haver pensado que cada planeta provavelmente teria pelo menos uma raça própria. Mesmo assim, todas as raças tinham algo em comum: fossem criados para entretenimento, para trabalhar em espetáculos ou para realizar algum tipo de trabalho útil, todos os cães eram criados para amar os seres humanos e confiar neles.
Era um amor e uma confiança que Trevize não apreciava nem um pouco. Uma vez morou com uma mulher que tinha um cachorro. Aquele cachorro, que Trevize tolerava por causa da mulher, tinha uma adoração inexplicável por ele, seguia-o por toda parte, cobria-o de saliva e pelos nos momentos mais inesperados e encostava-se na porta e começava a uivar toda vez que ele e a mulher tentavam fazer amor.
Depois daquela experiência, Trevize ficara com a firme convicção de que por alguma razão, conhecida apenas pelas mentes caninas e a capacidade delas de analisar odores, ele, Trevize, constituía um dos objetos preferidos da devoção canina.
Assim, depois de passada a surpresa inicial, observou o cachorro sem muito receio. Era um cachorro grande, magro e esguio, com pernas compridas. Olhava para ele sem nenhum sinal de adoração. A boca estava aberta no que poderia ser interpretado como um sorriso de boas-vindas, mas os dentes que apareciam tinham um aspecto perigoso.
Ocorreu-lhe, então, que o cachorro nunca tinha visto um ser humano, nem ele nem seus antepassados mais recentes. O cachorro devia ter ficado tão surpreso ao ver um ser humano quanto Trevize havia ficado ao ver o cachorro. Trevize, pelo menos, havia reconhecido rapidamente o animal, mas o cão não tivera a mesma vantagem. Ainda estava espantado, talvez até receoso.
Não convinha deixar que um animal daquele tamanho, e com aqueles dentes, permanecesse assustado por muito tempo. Trevize percebeu que era melhor conquistar a amizade do animal, e quanto mais depressa melhor.
Aproximou-se do animal, muito devagar (nenhum movimento brusco, naturalmente). Estendeu a mão, pronto a permitir que o cachorro a cheirasse, enquanto emitia sons tranquilizadores, do tipo “cachorrinho bonito”, que o deixaram profundamente envergonhado.
O cachorro, com o olhar fixo em Trevize, recuou um passo ou dois, como se estivesse desconfiado. Depois, o lábio superior se contraiu e a boca emitiu um som gutural. Embora Trevize nunca tivesse visto um cão se comportar assim, não podia deixar de interpretar a atitude do animal como ameaçadora.
Trevize parou onde estava. Percebeu um movimento com o canto dos olhos e virou a cabeça devagar. Dois outros cachorros estavam e aproximando. Pareciam tão assassinos quanto o primeiro.
Assassinos? A palavra só lhe havia ocorrido agora, mas lhe parecia estranhamente apropriada.
O coração de Trevize começou a bater com força. O caminho para a nave estava bloqueado. Não podia sair correndo sem rumo, pois aquelas longas patas caninas o alcançariam em questão de metros. Se ficasse onde estava e usasse o desintegrador, só teria tempo para matar um deles; os outros dois o fariam em pedaços. À distância, podia ver outros cachorros se aproximando. Será que se comunicavam de alguma forma? Será que caçavam em grupos?
Começou a andar de lado, bem devagar, para a esquerda, uma direção onde não havia nenhum animal... ainda. Devagar. Devagar. Os cachorros o acompanharam. Trevize tinha certeza de que a única coisa que o havia salvo de um ataque imediato era o fato de que os cachorros jamais haviam encontrado alguém como ele. Por essa razão, não sabiam o que esperar dele.
Se saísse correndo, isso representaria um comportamento familiar para os animais. Eles saberiam o que fazer se alguma coisa do tamanho de Trevize demonstrasse medo e saísse correndo. Correriam atrás dele. E o alcançariam sem dificuldade.
Trevize continuou a andar de lado, aproximando-se de uma árvore. Sentiu uma vontade súbita de estar lá em cima, onde os cachorros não poderiam alcançá-lo. Os cães se aproximaram mais, rosnando baixinho. Todos os três tinham os olhos fixos nele. Havia mais dois chegando. Mais além, Trevize podia ver muitos outros cachorros. Em uma certa hora, quando estivesse suficientemente próximo, teria que tentar. Não poderia esperar demais, nem precipitar-se, caso contrário estaria perdido.
Agora!
Trevize provavelmente nunca havia corrido tão depressa na vida, e mesmo assim escapou por um triz. Sentiu um par de mandíbulas se cravar no calcanhar da bota e ficou imobilizado até os dentes do cachorro escorregarem no duro material ceramóide.
O rapaz não tinha prática de subir em árvores. Da última vez que havia tentado, e mesmo assim sem sucesso, tinha dez anos de idade. Felizmente para ele, o tronco era inclinado e a casca bastante rugosa, com muitos pontos de apoio. Além do mais, o medo o impelia, e é impressionante o que se pode fazer quando se está com medo.
Trevize se viu sentado em uma forquilha, a uns dez metros do solo. Por um momento, não se deu conta de que havia arranhado uma das mãos e que ela estava pingando sangue. Na base da árvore, cinco cachorros agora estavam sentados nas patas traseiras, olhando para cima, com a língua de fora, esperando pacientemente. E agora?
Trevize não estava em condições de pensar logicamente a respeito da situação. Em vez disso, experimentou lampejos de pensamento em uma sequência estranha e distorcida que, se fossem ordenados, resultariam no seguinte:
Bliss havia sustentado que, ao colonizarem um planeta, os seres humanos estabeleciam uma ecologia desequilibrada, que só eram capazes de manter através de constantes intervenções. Por exemplo: nenhum Colonizador havia jamais levado com ele os grandes predadores. Os pequenos animais nocivos, era impossível evitar: insetos, parasitas... até mesmo ratos.
E os animais dramáticos das lendas, alguns dos quais talvez tivessem realmente existido na Terra, os tigres, ursos, crocodilos? Quem os levaria para outros mundos, mesmo que houvesse alguma razão para isso? E qual seria a razão para isso?
O resultado era que o homem era o único predador de grande porte, e era sua responsabilidade cuidar das plantas e animais que, entregues à própria sorte, se reproduziriam de forma indiscriminada, sufocando-se no excesso de fertilidade.
E se os seres humanos desaparecessem, outros predadores teriam que tomar o seu lugar. Que predadores? Os maiores predadores tolerados pelo homem eram os cães e gatos, domesticados e vivendo da generosidade humana.
E se não houvesse mais seres humanos para alimentá-los? Então teriam que procurar alimento... tanto para a própria sobrevivência quanto, com toda a propriedade, para a sobrevivência das espécies das quais se alimentassem, cuja população, se não fosse mantida sob controle, aumentaria de forma explosiva, com um prejuízo cem vezes maior para a espécie do que as ações dos predadores.
Assim, os cães se multiplicariam, em todas as suas variedades, com as raças maiores atacando os grandes herbívoros e as raças menores se alimentando de pássaros e roedores. Os gatos caçariam à noite e os cachorros de dia; os primeiros, isoladamente, e os segundos, em matilhas.
Além disso, talvez a própria evolução se encarregasse de dar origem a novas raças para ocupar outros nichos ecológicos. Será que alguns cachorros chegariam a desenvolver hábitos aquáticos que afinal lhes permitissem alimentar-se de peixes, enquanto certos gatos aprenderiam a planar para poderem perseguir no próprio ar os pássaros mais desajeitados?
Tudo isso passou pela mente de Trevize, em curtos lampejos, enquanto ele tentava decidir o que fazer.
O número de cães continuava aumentando. Contou 23 em volta da árvore e havia mais nas vizinhanças. Qual seria o tamanho da matilha? Que importava? Já havia cachorros demais no momento.
Trevize sacou o desintegrador, mas o peso da arma na mão não lhe transmitiu nenhuma sensação de segurança. Qual a última vez em que havia substituído a unidade de energia? Quantos tiros poderia disparar? Muito menos de 23.
E que dizer de Pelorat e Bliss? Se os dois aparecessem, os cachorros sairiam correndo atrás deles? Estariam seguros, mesmo que não aparecessem? Se os cachorros farejassem os dois seres humanos nas ruínas, nada os impediria de atacá-los lá mesmo.
Será que Bliss era capaz de detê-los ou mesmo de afugentá-los? O poder de Gaia, transmitido através do hiperespaço, seria suficiente? Por quanto tempo Bliss conseguiria mantê-los à distância?
Não seria melhor então gritar por socorro? Se gritasse, os dois viriam correndo e os cachorros fugiriam diante do olhar zangado de Bliss? (Seria preciso um olhar ou a moça afugentaria os cães através de um processo mental invisível para os não-iniciados?) Ou, se os dois aparecessem, seriam reduzidos a pedaços diante dos olhos de Trevize, obrigado a observar, impotente, da segurança relativa do seu posto na árvore?
Não, teria que usar o desintegrador. Se pudesse matar um dos cães e assustar os outros por alguns momentos, haveria tempo para descer da árvore, chamar Pelorat e Bliss, matar um segundo cachorro se a matilha tentasse aproximar-se de novo e então os três poderiam correr para a nave.
Trevize ajustou a intensidade do raio de microondas para três quartos da intensidade máxima. Seria o suficiente para matar um cachorro com um grande estrondo. O estrondo serviria para assustar os outros cães, e ele estaria poupando energia.
Apontou cuidadosamente para um cachorro no meio da matilha, aquele que parecia (pelo menos na imaginação de Trevize) irradiar mais maldade do que os outros... talvez apenas porque estivesse mais quieto e portanto parecesse mais frio e calculista. O cachorro estava agora olhando diretamente para a arma, como que em um gesto de desafio. Ocorreu ao rapaz que ele jamais havia disparado um desintegrador contra um ser vivo, ou visto alguém fazer isso. Durante o serviço militar, tinha atirado em bonecos de plástico cheios d’água; a água se transformava quase que instantaneamente em vapor e o boneco explodia.
Mas quem, em tempo de paz, atiraria em um ser vivo? E que ser vivo desafiaria o poder de tiro de um desintegrador? Só ali, em um inundo que a ausência do homem havia tornado doente, era que...
Com aquela estranha capacidade do cérebro de observar detalhes totalmente irrelevantes, Trevize se deu conta de que uma nuvem havia escondido o sol... e então atirou.
Um feixe de luz trêmula ligou instantaneamente o cano da arma ao corpo do cachorro; uma luz tão tênue que poderia ter passado despercebida se o sol ainda estivesse iluminando diretamente a cena.
Ao sentir a onda inicial de calor, o cachorro fez um pequeno movimento, como se estivesse se preparando para pular; em seguida, explodiu, quando boa parte dos seus fluidos internos foi transformada em vapor.
A explosão fez um ruído decepcionante, pois o revestimento externo do animal era simplesmente muito menos rígido que o dos bonecos de treinamento. Entretanto, carne, pele, sangue e ossos voaram pelo ar e Trevize sentiu o estômago embrulhado.
Os cães, alguns dos quais tinham sido bombardeados pelos fragmentos ainda quentes da explosão, recuaram ligeiramente. Foi, porém, uma hesitação momentânea. No instante seguinte, estavam disputando os restos de carne que haviam caído do céu. O enjoo de Trevize piorou. Em vez de assustá-los, o que estava fazendo era alimentar os malditos animais! Desse jeito, nunca iriam embora. Na verdade, o cheiro de sangue fresco atrairia mais cachorros e talvez outros predadores.
Alguém chamou:
— Trevize! O que...
O rapaz olhou na direção da voz. Bliss e Pelorat tinham saído das ruínas. Bliss estava parada, com os braços abertos para impedir que Pelorat prosseguisse. Olhava para os cachorros. A situação era clara; não havia necessidade de nenhuma explicação.
Trevize gritou:
— Tentei afugentá-los antes que você e Janov voltassem. Pode mantê-los à distância?
— Vou tentar — disse Bliss, sem gritar, de modo que Trevize mal conseguiu ouvi-la, embora os cachorros tivessem parado de latir como que por encanto. Bliss falou:
— São muitos e não conheço direito os padrões de atividade neurônica desses animais. Em Gaia não existem animais ferozes.
— Nem em Terminus — gritou Trevize. — Nem em nenhum outro mundo civilizado. Vou matar quantos puder e você tenta cuidai dos restantes.
— Não, Trevize. Isso só servirá para atrair outros animais... Fique atrás de mim, Pel. Não há nada que você possa fazer... Trevize, sua outra arma!
— O chicote neurônico?
— Isso mesmo. A arma que produz dor. Use baixa potência. Baixa potência!
— Está com pena deles? — gritou Trevize, zangado. — Acha que isso é hora para pensar na santidade da vida?
— Estou pensando na vida de Pel. E também na minha. Faça o que eu digo. Baixa potência, e atire em um dos cachorros. Não posso agüentar muito tempo.
Os cachorros tinham se afastado da árvore e estavam em volta de Bliss e Pelorat, que haviam recuado até ficarem com as costas coladas a um muro em ruínas. Os cães mais próximos da dupla fizeram algumas tentativas frustradas de se aproximarem mais ainda, ganindo baixinho ao perceberem que alguma coisa os impedia de atacar. Outros tentaram, sem sucesso, subir o muro para atacá-los por trás.
A mão de Trevize tremia quando ele ajustou o chicote neurônico para baixa potência. A arma usava muito menos energia que o desintegrador e um único cartucho era suficiente para centenas de tiros, mas a verdade era que Trevize não se lembrava da última vez em que havia trocado o cartucho.
Não era importante apontar o chicote. Como não havia necessidade de poupar energia, Trevize poderia, se quisesse, disparar uma rajada de tiros contra a matilha. Era o método que os policiais usavam para manter as multidões sob controle.
Entretanto, o rapaz atendeu à sugestão de Bliss. Apontou para um dos cachorros e atirou. O cachorro caiu, contorcendo-se em dores. De sua boca saíam ganidos estridentes.
Os outros cães afastaram-se do companheiro ferido, as orelhas caídas, o rabo entre as pernas. Em seguida, começaram também a ganir, deram meia-volta e foram embora, primeiro devagar, depois mais depressa e, finalmente, a toda velocidade. O cachorro que tinha sido atingido levantou-se com esforço e saiu correndo atrás dos outros. O ruído desapareceu ao longe e Bliss falou:
— É melhor irmos para a nave. Eles vão voltar. E se não forem eles, serão outros.
Trevize teve a impressão de que nunca havia manipulado tão depressa o mecanismo de acesso ao interior da nave. E talvez tivesse razão.
Quando Trevize sentiu que estava voltando ao normal, já era noite. A pequena tira de plastopele na palma da mão havia acalmado a dor física, mas havia uma ferida psíquica que era muito mais difícil de curar.
Não era a simples exposição ao perigo; Trevize sentia-se capaz de reagir ao perigo como qualquer pessoa medianamente corajosa. Era a direção totalmente imprevista de onde tinha vindo o perigo. Era a sensação de ridículo. Como se sentiria se os amigos descobrissem que linha sido posto para correr por um bando de cachorros? Não teria sido muito pior se ele tivesse sido afugentado por um grupo de canários furiosos.
Durante várias horas, o rapaz ficou muito quieto, esperando ouvir a qualquer momento o som dos latidos, o barulho das garras arranhando o casco da nave.
Pelorat, por outro lado, parecia bastante calmo.
— Não tenho a menor dúvida, meu velho amigo, de que Bliss seria capaz de enfrentar a situação, mas tenho que reconhecer que você sabe atirar com aquela arma!
Trevize amarrou a cara. Não estava com vontade de discutir o assunto.
Pelorat estava com a biblioteca na mão... o pequeno disco no qual estava armazenada uma vida inteira de pesquisa... e com ela retirou-se para a quarto de dormir, onde conservava uma unidade de leitura.
Parecia muito satisfeito consigo mesmo. Trevize não o seguiu. Teriam tempo para conversar quando ele não estivesse com a cabeça tão cheia de cachorros.
Quando os dois ficaram sozinhos, Bliss observou:
— Suponho que você foi apanhado de surpresa.
— Isso mesmo — confirmou Trevize, em tom pesaroso. — Quem diria que um dia eu teria que fugir de um bando de cachorros!
— Mais alguns milhares de anos sem homens e eles não serão mais cachorros. Aqueles animais devem ser atualmente os maiores predadores do planeta...
Trevize assentiu.
— Pensei a mesma coisa quando estava empoleirado naquela árvore. Você tinha toda a razão quando falou a respeito do que pode acontecer em uma ecologia desequilibrada.
— Desequilibrada, sim, do ponto de vista humano... mas considerando a forma eficiente como os cachorros assumiram seu novo papel, estou começando a achar que Pel está certo quando diz que um ecossistema pode atingir um novo ponto de equilíbrio, com os vário; nichos ecológicos sendo gradualmente preenchidos por modificações das poucas espécies que inicialmente povoavam o planeta.
— Sabe que a mesma ideia me ocorreu?
— Contanto, naturalmente, que o desequilíbrio não seja excessivo, pois do contrário o planeta poderá se tornar totalmente inviável antes que as espécies tenham tempo de se adaptar.
Trevize resmungou alguma coisa.
Bliss olhou para ele, pensativa.
— Como foi que você teve aquela ideia de desembarcar armado?
— De pouco me adiantou — disse Trevize. — Se não fosse você...
— Espere aí. Eu precisei da sua arma. Assim de repente, apenas um contato hiperespacial com o resto de Gaia, tendo que enfrentar tantos inimigos pouco familiares, eu não poderia ter feito nada sem o seu chicote neurônico.
— Meu desintegrador não serviu para nada, não foi?
— Quando você usa um desintegrador, Trevize, um cachorro simplesmente desaparece. Os outros podem ficar surpresos, mas não assustados.
— Pior que isso. Eles comeram os restos! O efeito foi o contrário do que eu pretendia.
— Entendo. Pois com o chicote neurônico é diferente. Ele causa dor, e um cachorro em agonia emite gemidos que os outros cães compreendem muito bem, e que os deixam assustados. Como já estavam predispostos a sentir medo, não foi preciso muito esforço da minha parte para fazê-los fugir em pânico.
— Sim, mas foi você que percebeu que nesse caso o chicote era uma arma mais eficaz que o desintegrador.
— Estou acostumada a lidar com mentes. Você, não. Foi por isso que insisti em que usasse baixa potência e apontasse para um dos animais. Não queria que o cachorro sentisse tanta dor a ponto de morrer e calar-se. Não queria que a dor se dispersasse entre vários cachorros. Era preciso uma dor intensa, concentrada em um ponto.
— E foi o que você teve, Bliss. Funcionou perfeitamente. Fico-lhe imensamente grato.
— Você está de mau humor — disse Bliss, muito séria — porque pensa que fez um papel ridículo. No entanto, repito, não poderia ter feito nada sem suas armas. O que não entendi ainda é por que você insistiu em desembarcar armado, mesmo depois que lhe assegurei que não havia seres humanos no planeta. Esperava encontrar cachorros ferozes?
— Não, claro que não. Pelo menos conscientemente. E também não costumo andar armado. Quando desembarcamos em Comporellon, nem pensei em armas... Por outro lado, recuso-me em acreditar em poderes mágicos. Desconfio que quando conversamos sobre ecossistemas desequilibrados, tive uma visão inconsciente do que poderia acontecer com os outros animais na ausência de seres humanos. Nada mais que isso.
— Não seja tão modesto. Participei da mesma conversa a respeito de ecossistemas desequilibrados e não tive o mesmo palpite. É por causa desse dom que você tem de chegar a conclusões corretas que Gaia está interessado em você. Posso ver, também, que deve ser irritante para você ter impulsos sem causa aparente; saber como agir, mas não saber por quê.
— A expressão que usamos em Terminus é “agir com base num palpite”.
— Em Gaia, chamamos isso de “saber sem pensar”. Você não gosta de saber sem pensar, gosta?
— Claro que isso me incomoda. Não gosto de ser movido por palpites. Sei que em geral existe uma razão oculta, mas o fato de não conhecer a razão me faz sentir como não tendo controle sobre meus próprios pensamentos... como se estivesse sofrendo de uma espécie de loucura mansa.
— Quando você decidiu a favor de Gaia e da Galáxia Viva, agiu com base em um palpite e agora quer saber a razão.
— Já lhe disse isso mais de mil vezes.
— E até agora eu não estava totalmente convencida. Peço desculpas. Não duvidarei mais dos seus motivos. Espero, porém, que me permita continuar a apresentar argumentos a favor de Gaia.
— À vontade — disse Trevize. — Contanto que reconheça o meu direito de discordar deles.
— Já lhe ocorreu, então, que esse Mundo Desconhecido está revertendo a um estado de selvageria, e talvez de total desolação e inabilabilidade, porque a única espécie que era capaz de agir com inteligência não está mais presente? Se o planeta fosse Gaia, ou melhor ainda, se o planeta fosse uma parte da Galáxia Viva, isso não aconteceria. A inteligência estaria presente na Galáxia como um todo e qualquer ecossistema tenderia sempre para o equilíbrio, mesmo que perdesse quase todas as suas espécies.
— Isso significa que os cachorros deixariam de comer?...
— É claro que eles teriam que comer. Sua alimentação, porém, atenderia a um objetivo maior, o de manter o equilíbrio ecológico, em vez de depender apenas do acaso. - A perda da liberdade individual pode significar pouco para um cão, mas é muito importante para os homens — disse Trevize. — E se todos os seres humanos deixassem de existir, em toda parte, e não apenas em um ou vários mundos? E se não houvesse mais nenhum ser humano na Galáxia? Ainda haveria inteligência? As outras formas de vida e a matéria inanimada conseguiriam, juntas, desenvolver uma inteligência comum que fosse suficientemente sofisticada para controlar o funcionamento do todo? Bliss hesitou.
— Uma situação assim nunca ocorreu — disse, afinal. — E não é provável que venha a ocorrer no futuro.
— Mas não lhe parece óbvio que a mente humana é qualitativamente distinta de tudo o mais e que, se estivesse ausente, nada poderia substituí-la? Nesse caso, não reconhece que os seres humanos constituem um caso especial? Eles não devem ser fundidos nem mesmo uns com os outros, quanto mais com seres não-humanos!
— Mesmo assim, você decidiu a favor da Galáxia Viva.
— Por uma razão que desconheço.
— Talvez tenha pensado no perigo que representam os ecossistemas desequilibrados... Quem sabe não reconheceu, talvez inconscientemente, o fato de que todos os planetas da Galáxia estão na corda bamba, por assim dizer, e que apenas a Galáxia Viva poderá impedir uma sucessão de desastres, causados pela guerra, a corrupção e a incompetência!
— Não. No momento em que tomei a decisão, não estava pensando na instabilidade dos ecossistemas.
— Como pode estar tão certo?
— Mesmo que eu não saiba por que tomei uma decisão, se alguém me aponta um motivo, posso dizer se é razoável... como no caso em que talvez tenha previsto a existência de animais perigosos neste planeta.
— De qualquer maneira — disse Bliss —, poderíamos ter sido mortos por esses animais se não fosse uma combinação das nossas qualidades, a sua intuição e os meus poderes mentais. Então vamos ser amigos.
Trevize fez que sim com a cabeça.
— Se você quiser. Havia um gelo na voz do rapaz que fez Bliss franzir a testa, mas nesse instante Pelorat entrou, sacudindo a cabeça como se quisesse livrar-se dela.
— Descobri! — exclamou. — Acho que descobri!
Em geral, Trevize não acreditava em vitórias fáceis, mas naquele caso era perfeitamente compreensível que se deixasse iludir. Sentiu um nó na garganta, mas conseguiu dizer:
— A localização da Terra? Você descobriu onde fica a Terra, Janov?
Pelorat olhou para Trevize durante um momento e depois baixou os olhos.
— Não é bem isso — respondeu, visivelmente contrafeito. — Não, Golan, não é nada parecido. Para dizer a verdade, não estava nem pensando na Terra. Foi uma coisa que descobri nas ruínas. Nada de importante.
Trevize respirou fundo e conseguiu falar:
— Não diga isso, Janov. Qualquer descoberta é importante. O que é que você veio contar para nós?
— Acontece, meu velho amigo, que quase nada restou, depois de tanto tempo. Afinal, foram vinte mil anos de vento e chuva. Além do mais, as plantas e os animais também podem ser forças destrutivas. Mas não importa. O que interessa é que “quase nada” não é o mesmo que “nada”.
”Entre as ruínas devia haver um edifício público, pois encontramos um pedaço de pedra, ou de concreto, com inscrições, As letras estavam quase invisíveis, você entende, mas tirei fotografias com uma dessas câmaras que nós temos a bordo, em que a imagem é processada por um computador... não pedi permissão a você para levara câmara, mas era importante, de modo que...
Trevize fez um gesto impaciente.
— Prossiga!
— Consegui decifrar parte da escrita, que era muito antiga. Mesmo com a ajuda do computador e dos meus conhecimentos de galáctico arcaico, só foi possível recuperar duas palavras completas. Nessas duas palavras, as letras eram maiores e um pouco mais nítidas que no resto do texto. Talvez tenham sido gravadas com mais capricho porque representavam o nome do próprio planeta. Essas palavras são: “Planeta Aurora”, de modo que cheguei à conclusão de que este planeta se chama Aurora, ou pelo menos se chamava Aurora.
— Tinha que ter um nome — disse Trevize.
— Sim, mas os nomes raramente são escolhidos ao acaso. Acabo de realizar uma busca meticulosa em minha biblioteca e encontrei duas lendas, originárias, incidentalmente, de dois planetas muito afastados um do outro, de modo que podemos ter uma razoável certeza de que tiveram origem independente... Mas não importa. Na duas lendas, a palavra “aurora” é usada como sinônimo de “amanhecer”. Na verdade, tudo indica que “aurora” queria dizer amanhecer em alguma língua antiga.
“Por outro lado, sabemos que palavras como “amanhecer”, “nascer do dia”, etc, são freqüentemente usadas para designar estações espaciais ou outras estruturas que são as primeiras do seu tipo”. Se este planeta recebeu o nome de Amanhecer, pode ser que também seja o primeiro do seu tipo.
— Está querendo dizer que este planeta é a Terra e que foi chamado de Aurora porque representa o nascer do dia para a vida e para o homem? — perguntou Trevize.
— Eu não iria tão longe, Golan.
— Afinal, estão faltando a radioatividade, o satélite gigantesco, o gigante gasoso com imensos anéis — observou Trevize, com ironia na voz.
— Isso mesmo. Mas Deniador, aquele historiador lá de Comporellon, achava que este foi um dos mundos habitados pela primeira leva de Colonizadores... os Espaciais. Se isso for verdade, então o nome, Aurora, pode indicar que este foi o primeiro planeta a ser colonizado pelos Espaciais. Podemos, neste instante, estar pisando no mais antigo planeta humano da Galáxia, com exceção da própria Terra. Não é emocionante?
— Claro que sim, Janov, mas não acha que está tirando conclusões demais de apenas um nome?
— Não é só isso — prosseguiu Pelorat, entusiasmado. — De acordo com o que pude verificar em minhas anotações, hoje em dia não existe nenhum planeta na Galáxia com o nome de “Aurora”. Como já disse, existem muitos planetas e outros objetos chamados “Amanhecer” ou coisa parecida, mas ninguém usa a palavra “Aurora”.
— E daí? Como você mesmo reconhece, é um termo arcaico.
— Acontece que os nomes tendem a ficar, mesmo que as palavras caiam em desuso. Se este foi o primeiro mundo a ser colonizado, deve ter sido famoso; talvez até, durante algum tempo, tenha sido o planeta dominante da Galáxia. Certamente teria que haver outros mundos com os nomes de “Nova Aurora”, ou “Aurora Menor”, ou alguma coisa assim. E no entanto...
— Talvez este não tenha sido o primeiro planeta a ser colonizado — interrompeu Trevize. — Talvez este planeta jamais tenha sido importante.
— Meu velho amigo, acho que encontrei uma explicação melhor.
— Pode me dizer qual é, Janov?
— Se, como Deniador nos contou, a primeira onda de colonização foi seguida por uma segunda onda, à qual todos os planetas da Galáxia hoje pertencem, provavelmente houve um período de hostilidade entre as duas ondas de Colonizadores. Os Colonizadores da segunda onda evitariam usar os nomes escolhidos pelos Colonizadores da primeira. Assim, do fato de que o nome “Aurora” jamais foi repelido podemos deduzir que realmente houve duas ondas de colonização e que este planeta pertence à primeira onda.
Trevize sorriu.
— Estou percebendo agora como vocês, mitologistas, trabalham. Constroem lindos castelos, mas não se preocupam com os alicerces. Dizem as lendas que os Colonizadores da primeira onda não podiam passar sem os robôs, e que esta era sua fraqueza. Ora, se você pudesse me mostrar um robô que fosse neste planeta, eu ainda poderia aceitar sua teoria, mas acontece que não...
Pelorat afinal conseguiu recuperar a voz.
— Mas, Golan, eu não lhe disse? Não, claro que não disse. Estou tão nervoso que não consigo colocar os pensamentos em ordem. Eu achei um robô.
Trevize esfregou a testa, como se não estivesse acreditando no que ouvia.
— Um robô? Você viu um robô?
— Isso mesmo — confirmou Pelorat, movendo a cabeça para cima e para baixo.
— Como é que sabe?
— Ora, era um robô! Como poderia deixar de reconhecer um robô?
— Você já tinha visto um?
— Não, mas era um objeto de metal que se parecia com um ser humano. Cabeça, tronco, braços, pernas. Claro que estava muito enferrujado, e quando me aproximei, a vibração dos meus passos deve ter abalado sua estrutura, de modo que quando estendi a mão para tocá-lo...
— Para que iria tocá-lo?
— Acho que para ter certeza de que meus olhos não estavam me enganando. Foi uma reação involuntária. No momento em que o toquei, ele se desfez. Mas antes disso...
— Sim?
— Antes disso, os olhos do robô pareceram brilhar e ele fez um ruído, como se estivesse querendo dizer alguma coisa.
— Então ainda estava funcionando?
— Só funcionou um pouquinho, Golan. Trevize se voltou para Bliss.
— Você confirma tudo isso, Bliss?
— Era um robô, sim — disse Bliss.
— E ainda estava funcionando?
— Pouco antes de se desfazer, captei um fraco sinal de atividade neurônica...
— Como podia haver atividade neurônica? Um robô não tem um cérebro orgânico, feito de neurônios!
— Deve ter circuitos elétricos equivalentes a células nervosas — sugeriu Bliss. — Provavelmente, foi a atividade desses circuitos que eu captei.
— Você seria capaz de distinguir os pensamentos de um robô dos de um ser humano?
— Sim, mas não tive tempo suficiente.
Trevize olhou para Bliss, depois para Pelorat, e disse, em tom irritado:
— Isto muda tudo.