PARTE CINCO MELPOMENIA

Capítulo 13 Saindo de Solaria

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A partida foi rápida. Trevize apanhou as armas no chão, abriram a escotilha e entraram correndo na nave. Só depois da decolagem foi que Trevize percebeu que Fallom também estava a bordo.

Provavelmente não teriam escapado a tempo se as aeronaves de Solaria não fossem tão primitivas. A segunda nave tinha levado um tempo enorme para pousar. Por outro lado, o computador do Estrela Distante não precisara de mais que alguns segundos para fazer a nave gravítica deixar o planeta.

Embora o fato de a nave não estar sujeita à atração gravitacional (e portanto à inércia) eliminasse os efeitos da aceleração sobre os passageiros, que de outra forma teriam sido intoleráveis, tal a pressa com que haviam decolado, a resistência do ar era uma realidade que não podia ser ignorada. A temperatura externa do casco aumentou rapidamente, atingindo valores maiores que os recomendados nas especificações da nave.

Enquanto subiam, podiam ver várias outras naves se aproximarem da casa de Bander. Trevize imaginou quantos robôs Bliss conseguiria enfrentar ao mesmo tempo e chegou à conclusão de que se tivessem ficado mais quinze minutos em Solaria, estariam perdidos.

Uma vez no espaço (ou quase no espaço, cercados apenas pela tênue exosfera planetária), Trevize dirigiu a nave para o lado noturno do planeta. Era apenas um pulo, já que haviam decolado no final da tarde. No escuro, o Estrela Distante poderia esfriar mais depressa, em quanto continuava a se afastar do planeta em uma órbita em espiral Pelorat saiu do quarto que dividia com Bliss e disse:

— A criança está dormindo tranquila. Nós a ensinamos a usar o banheiro e ela aprendeu depressa.

— Isso não me surpreende. Em casa, devia dispor de instalações parecidas com as nossas.

— Não vi nenhuma lá, e olhe que estava procurando — disse Pelorat. — Voltamos para a nave bem a tempo.

— É mesmo. Mas por que trouxemos a criança conosco? Pelorat encolheu os ombros.

— Bliss não queria deixá-la. Era como salvar uma vida para compensar a que ela tirou. Bliss ainda não se conformou...

— Eu sei — disse Trevize.

— É uma criança bem estranha — disse Pelorat.

— Sendo hermafrodita, era de se esperar — disse Trevize.

— Tem um par de testículos...

— Eu já imaginava.

— E o que eu só posso descrever como uma vagina muito pequena. Trevize fez uma careta.

— Repugnante.

— Nem tanto, Golan — protestou Pelorat. — É adaptada às necessidades locais. Dela sai apenas um óvulo fertilizado, ou um embrião muito pequeno, que é então cultivado em laboratório por robôs especializados.

— O que aconteceria se o sistema de robôs deixasse de funcionar? Os solarianos não poderiam mais ter filhos.

— Qualquer mundo enfrentaria sérios problemas se sua estrutura social entrasse em colapso.

— Não que eu fosse morrer de pena dos habitantes de Solaria...

— Tenho que admitir que não é um mundo simpático — disse Pelorat. — Acontece que os solarianos são muito diferentes de nós, meu velho amigo. Se não fosse a população local e os robôs, você teria um mundo...

— ... que em pouco tempo estaria tão devastado quanto Aurora — disse Trevize. — Como está Bliss, Janov?

— Exausta. No momento, está dormindo. Ela passou por um mau pedaço, Golan.

— Todos nós passamos. Trevize fechou os olhos e descobriu que também estava precisando dormir um pouco. Antes, porém, precisava certificar-se de que os solarianos não dispunham de naves espaciais.

Pensou com irritação nos dois planetas dos Espaciais que haviam visitado: um, habitado por cães selvagens; o outro, por hermafroditas hostis; em nenhum dos dois, nenhuma pista, por pequena que fosse, para a localização da Terra. Fallom era tudo o que havia restado da dupla visita.

Abriu os olhos. Pelorat ainda estava sentado do outro lado do computador, observando-o.

Trevize disse bruscamente:

— Devíamos ter deixado a criança em Solaria.

— Pobrezinha... eles a teriam matado!

— Mesmo assim. O lugar dela era lá. Ela pertence àquela sociedade. Ser executado por ser considerado supérfluo faz parte do jogo.

— Meu velho amigo, que coisa cruel de se dizer!

— Estou sendo prático. Não sabemos direito como cuidar da criança... pode ser que acabe morrendo de qualquer maneira. O que é que ela come?

— O mesmo que nós, suponho. O problema é: o que é que nós vamos comer? Como estamos de suprimentos?

— Muito bem. Mesmo contando com o novo passageiro Pelorat não parecia entusiasmado com a resposta. Ele disse:

— Já estou farto da comida de bordo. Devíamos ter comprado alguns mantimentos em Comporellon... não que a cozinha deles fosse lá essas coisas, mas...

— Não pudemos, lembra-se? Tivemos que partir às pressas, como aliás aconteceu também em Aurora e em Solaria. Afinal, que há de errado com um pouco de monotonia? Pode estragar o prazer da gente, mas pelo menos nos mantém vivos.

— Seria possível reabastecer a nave em caso de necessidade?

— Claro, Janov. Com uma nave gravítica e motores hiperespaciais, a Galáxia passa a ser pequena. Em poucos dias, poderíamos atravessá-la de uma extremidade a outra. Acontece, porém, que metade dos planetas da Galáxia já deve saber que a Fundação quer sua nave de volta, de modo que prefiro manter-me afastado dos grandes centros.

— Faz muito bem... reparou que Bander não parecia interessado na nave?

— Até certo ponto, isso é compreensível. Há muito tempo que os solarianos devem ter renunciado às viagens espaciais. Seu desejo de isolamento é tão grande que seria uma contradição se saíssem do planeta para visitar outros mundos.

— Que vamos fazer agora, Golan?

— Temos um terceiro conjunto de coordenadas para verificar.

— A julgar pelo resultado das duas primeiras tentativas, nem sei se vale a pena...

— Nem eu, mas assim que eu puser o sono em dia, vou pedir ao computador para calcular o nosso curso para o terceiro planeta.

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Trevize dormiu muito mais do que pretendia, mas aquilo não fez a menor diferença. A bordo da nave não havia nem dia nem noite e o ritmo circadiano nem sempre era obedecido. Ninguém dava muita importância ao relógio; era relativamente comum que Trevize, Pelorat e Bliss (principalmente esta última) comessem e dormissem a intervalos extremamente irregulares.

Trevize estava até pensando, enquanto enxugava a espuma (para economizar água, os três se tinham acostumado a enxugar a espuma em vez de tirá-la com água), em voltar para a cama por uma hora ou duas, quando se voltou e deu de cara com Fallom, inteiramente despido. O rapaz deu um pulo, o que, no espaço restrito do banheiro, não poderia fazer sem esbarrar violentamente em alguma coisa dura. Praguejou.

Fallom estava olhando para ele com interesse e apontando para o pênis de Trevize. Suas palavras eram incompreensíveis, mas a criança parecia não acreditar no que via. Trevize instintivamente cobriu o pênis com as mãos.

Foi então que Fallom disse, com sua voz de soprano:

— Saudações.

Trevize teve um leve sobressalto quando percebeu que a criança estava falando em galáctico, mas a palavra parecia ter sido memorizada. Fallom prosseguiu com esforço, destacando as palavras:

— Bliss... dizer... você... me... lavar.

— É mesmo? — exclamou Trevize. Colocou as mãos nos ombros da criança.

— Você... fique... aqui. Apontou para o chão e Fallom, naturalmente, olhou para onde Trevize estava apontando. Não parecia ter compreendido a frase.

— Não saia daí — disse Trevize, segurando a criança com firmeza pelos dois braços e comprimindo-os contra o corpo, para indicar imobilidade. Enxugou-se rapidamente e vestiu-se mais depressa ainda. Saiu do banheiro e gritou, furioso:

— Bliss!

A moça apareceu imediatamente na porta do quarto e disse, sorrindo:

— Está me chamando, Trevize, ou o que ouvi foi o som da brisa suave acariciando as folhas das árvores?

— Não estou achando graça, Bliss. O que é isso? — perguntou Trevize, apontando para o banheiro.

A moça olhou na mesma direção e disse:

— Ora, parece a criança solariana que trouxemos ontem para bordo.

— A criança que você trouxe para bordo. Por que quer que eu dê banho nela?

— Pensei que você fosse gostar da ideia. É uma criatura muito inteligente. Está aprendendo a falar galáctico comigo. Nunca esquece nada que lhe ensino. Naturalmente, estou usando meus poderes mentais para facilitar as coisas.

— Naturalmente.

— Faço o que posso para mantê-la calma. Conservei-a em uma espécie de torpor enquanto estávamos no planeta. Depois que partimos, cuidei para que dormisse bastante e agora estou tentando fazê-la aceitar a perda de Jemby, de quem, aparentemente, gostava muito.

— De modo que ela vai acabar gostando daqui...

— Espero que sim. Tem a vantagem de ser muito jovem e portanto adaptável. Vou ensiná-la a falar galáctico.

— Então você fica encarregada de dar banho nela, está bem? Bliss deu de ombros.

— Está bem, se você insiste, mas gostaria de que ela se sentisse à vontade com todos nós. Para isso, achei que uma boa ideia seria nós nos revezarmos no papel de pais. Posso contar com a sua cooperação?

— Não a ponto de dar banho na criança. E quando terminar, livre-se dela. Quero falar com você em particular.

Bliss perguntou, em tom hostil:

— O que quer dizer com “livre-se dela”?

— Não estou dizendo para jogá-la para fora da nave. Deixe-a no seu quarto. Mande-a sentar-se num canto. Preciso falar com você.

— Estarei ao seu dispor — disse Bliss, friamente.

Trevize ficou onde estava por um momento, procurando acalmar-se; depois, foi até a sala de comando e ligou o telescópio.

Solaria era um disco escuro, com um crescente luminoso do lado esquerdo. Trevize colocou as mãos sobre a mesa e imediatamente a raiva passou. A ligação entre homem e computador era uma atividade absorvente; através de um reflexo condicionado, o rapaz associava o contato com o computador a uma serenidade absoluta.

Não havia nenhum objeto artificial entre a nave e o planeta. Os solarianos (ou seus robôs) não os estavam seguindo.

Muito bem. Podiam então sair da sombra. Mesmo que não mudasse o curso, a nave acabaria por entrar na zona iluminada, pois, ao afastar-se de Solaria, o tamanho aparente do planeta ficaria menor que o do sol do seu sistema.

Instruiu o computador para tirar a nave do plano da eclíptica, já que isso lhe permitiria acelerar a nave com maior segurança. Assim, chegariam mais depressa a uma região em que a curvatura do espaço fosse suficientemente pequena para permitir um Salto seguro.

Como freqüentemente acontecia nessas ocasiões, Trevize ficou apreciando as estrelas, quase hipnóticas em sua imobilidade. Toda a turbulência e instabilidade eram eliminadas pela distância, que as transformava em pontinhos luminosos.

Um desses pontinhos podia muito bem ser o sol em torno do qual a Terra girava... o Sol original, cuja radiação havia banhado as primeiras formas de vida, cujo calor havia aquecido os primeiros seres humanos da Galáxia.

Se os mundos dos Espaciais giravam em torno de estrelas que eram membros brilhantes e proeminentes da família estelar e que mesmo assim não figuravam no mapa da Galáxia que estava na memória do computador, o mesmo podia acontecer com o sol da Terra.

Ou seriam apenas os sóis dos planetas dos Espaciais que tinham sido omitidos, graças a algum tratado antigo que os havia deixado isolados do resto da Galáxia. Estaria o sol da Terra incluído no mapa da Galáxia, mas sem nada que o distinguisse dos milhares e milhares de estrelas da mesma classe?

Afinal, havia uns trinta bilhões de estrelas como o Sol na Galáxia, e dessas estrelas uma em cada mil, aproximadamente, possuía pelo menos um planeta habitável. Podia haver mais de mil planetas habitáveis em um raio de algumas centenas de parsecs da posição em que se encontravam no momento. Seria praticável investigar todas essas estrelas, uma por uma?

E se o Sol original nem estivesse naquele setor da Galáxia? Quantas outras regiões estavam convencidas de que o Sol estava nas vizinhanças, de que eles tinham sido os primeiros colonizadores?

Precisava de informações mais precisas que as que conseguira obter até o momento. Tinha quase certeza de que nem mesmo uma investigação minuciosa das ruínas milenares de Aurora revelaria alguma coisa a respeito localização da Terra. Duvidava também de que os solarianos pudessem contribuir para a solução do enigma.

Afinal, se todas as referências à Terra haviam desaparecida da grande Biblioteca de Trantor, se não restava nenhuma recordação da Terra na grande Memória Coletiva de Gaia, era pouco provável que restasse alguma informação útil a respeito da Terra nos mundos perdidos dos Espaciais.

O que aconteceria, se, por um golpe de sorte, conseguisse encontrar o sol da Terra e, consequentemente, a própria Terra? Alguma força estranha o obrigaria a esquecer-se do fato? As defesas da Terra seriam intransponíveis? Os atuais habitantes do planeta estariam decididos a permanecer ocultos do resto da Galáxia, custasse o que custasse?

Afinal de contas, o que é que estava procurando?

Seria a Terra? Ou uma falha no Plano de Seldon, que acreditava (por alguma razão obscura) poder encontrar na Terra?

O Plano de Seldon estava funcionando há mais de quinhentos anos e culminaria (assim se dizia) com o Segundo Império Galáctico, maior, mais justo e mais duradouro que o primeiro. Mesmo assim, ele, Trevize, havia votado contra o Segundo Império e a favor da Galáxia Viva.

A Galáxia Viva seria um organismo único, de tamanho descomunal, enquanto que o Segundo Império Galáctico, por mais organizado que fosse, não passaria de uma união de organismos independentes, cada um de dimensões microscópicas em comparação com o todo. O Império representaria mais um exemplo do tipo de associação de indivíduos livres que sempre havia caracterizado as aglomerações humanas. O Segundo Império Galáctico talvez fosse o maior e mais desenvolvido dos exemplares da espécie, mas mesmo assim seria apenas mais um membro dessa espécie.

Para que a Galáxia Viva, um membro de uma espécie totalmente diferente de organização, fosse preferível ao Segundo Império Galáctico, era preciso que houvesse uma falha no Plano, alguma coisa que nem o próprio Hari Seldon houvesse previsto.

Mas se havia mesmo uma falha no plano, o que é que ele, Trevize, poderia fazer? Não era matemático; não sabia nada, absolutamente nada, a respeito dos detalhes do Plano; nem seria capaz de compreender, se alguém tentasse explicar-lhe.

Tudo o que conhecia eram as duas hipótese básicas. Primeira: que houvesse um grande número de seres humanos envolvidos. Segunda que nenhum deles conhecesse as previsões do Plano. A primeira hipótese era certamente realista, dada a enorme população da Galáxia; a segunda tinha que ser verdadeira, já que os únicos que conheciam os detalhes a respeito do Plano eram os membros da Segunda Fundação, que guardavam ciosamente o segredo.

Tudo o que podia restar era alguma hipótese adicional, não explicitada por Seldon, alguma coisa tão natural, tão óbvia que jamais tivesse sido mencionada... e que no entanto pudesse ser falsa. Uma hipótese que, se fosse falsa, impediria a conclusão triunfal do Plano e tornaria a Galáxia Viva preferível ao Império.

Mas se a hipótese era tão óbvia e natural que ninguém se lembrava de mencioná-la, como poderia ser falsa? E se ninguém se referia a ela, ou a levava em conta, como poderia Trevize ter conhecimento de sua existência?

Seria ele um homem com uma intuição infalível, como Gaia parecia acreditar? Saberia sempre o que fazer, mesmo que não conhecesse as próprias razões?

Agora estava visitando os mundos dos Espaciais... seria a coisa certa a fazer? A resposta estaria nos mundos dos Espaciais... ou pelo menos o início da resposta?

O que havia em Aurora além de ruínas e cães selvagens? (E, provavelmente, outras criaturas ferozes. Touros furiosos? Ratos gigantes? Gatos assassinos?) Solaria era habitado por seres inteligentes, mas qual a relação entre ele, Trevize, e aqueles estranhos homens e robôs? O que é que esses dois mundos tinham a ver com o Plano de Seldon, a menos que contivessem alguma pista para a localização da Terra?

Mesmo que isso fosse verdade, o que é que a Terra tinha a ver com o Plano de Seldon? Tudo aquilo seria loucura? Será que ele se tinha deixado levar por uma fantasia infantil?

Uma sensação de vergonha se apossou de Trevize a ponto de quase impedi-lo de respirar. Olhou para as estrelas, remotas, impessoais, e pensou: devo ser O Grande Idiota da Galáxia.

58

A voz de Bliss interrompeu-lhe os devaneios.

— Então Trevize, o que é que você queria discutir... ei, aconteceu alguma coisa?

A moça parecia genuinamente preocupada. Trevize olhou para ela e, por um momento, não conseguiu sair da depressão em que se encontrava. Mesmo assim, respondeu:

— Não, não aconteceu nada... eu estava apenas pensando. Sabe, uma vez ou outra eu também penso.

A lembrança de que Bliss era capaz de detectar suas emoções o deixava inquieto. Tinha apenas a palavra da moça de que não tentaria examinar-lhe a mente.

Entretanto, Bliss pareceu aceitar a negativa sem pestanejar. Ela disse:

— Pelorat está com Fallom, ensinando-lhe algumas frases em galáctico. Parece que a criança pode comer o que nós comemos sem nenhum problema... mas afinal sobre que assunto você queria falar comigo?

— Aqui, não — disse Trevize. — No momento o computador não precisa de mim. Se quiser vir para o meu quarto, a cama está feita e você pode sentar-se nela enquanto eu me sento na cadeira. Ou o contrário, se preferir.

— Tanto faz.

Encaminharam-se para o quarto de Trevize. Bliss olhou para o rapaz, desconfiada.

— Você não parece mais furioso.

— Andou lendo meus pensamentos?

— Nada disso. Apenas reparei na sua expressão.

— Não estou furioso. Posso perder a paciência uma vez ou outra, mas isso é diferente de ficar furioso. Agora, se não se importa, gostaria de fazer-lhe algumas perguntas.

Bliss se sentou na cama de Trevize, com o corpo ereto e uma expressão solene nos olhos castanho-escuros. Os cabelos negros estavam penteados e o corpo exalava um leve odor de perfume.

Trevize sorriu.

— Você se enfeitou antes de vir para cá. Deve achar que eu não teria coragem de gritar com uma mocinha bonita.

— Pode gritar comigo quanto quiser, se isso o faz sentir-se melhor. O que não quero é que grite com Fallom.

— Não pretendo gritar com ele. Nem com você. Não resolvemos que íamos ser amigos?

— Gaia sempre foi seu amigo, Trevize.

— Não estou falando de Gaia. Sei que você é parte de Gaia e que você é Gaia. Mesmo assim, existe alguma coisa pessoal em você. Estou falando com alguém chamado Bliss. Não resolvemos que íamos ser amigos, Bliss?

— Resolvemos, Trevize.

— Então por que custou tanto para cuidar dos robôs em Solaria depois que saímos da casa de Bander? Eles me humilharam, me machucaram e você não fez nada. A cada momento nossa situação se tornava mais perigosa e você não fez nada.

Bliss olhou para ele, muito séria, e falou como se estivesse querendo explicar os seus atos e não justificá-los.

— Eu estava fazendo alguma coisa, Trevize. Estava estudando as mentes dos Robôs Guardiões, tentando descobrir como controlá-los.

— Eu sei que era isso que você estava fazendo. Pelo menos, foi o que me disse na ocasião. Acontece que não me parece razoável. Para que controlar os robôs quando você era perfeitamente capaz de desativá-los, como aliás acabou fazendo?

— Acha que é tão fácil destruir um ser inteligente?

Os lábios de Trevize se contraíram em uma expressão de desagrado.

— Ora, deixe disso, Bliss. Um ser inteligente? Era apenas um robô!

— Apenas um robô? — O tom de voz da moça perdeu um pouco da frieza. — É sempre o mesmo argumento. Apenas. Apenas! Por que o solariano hesitaria em matar-nos? Éramos apenas seres humanos sem transdutores. Por que deveríamos ter pena de Fallom? Era apenas uma criança de outra raça. Se começar a desprezar a tudo e a todos com um é apenas isso ou apenas aquilo, sentir-se-á livre para eliminar qualquer coisa que o esteja incomodando no momento. Sempre haverá uma desculpa.

— Não leve uma observação razoável a tornar-se ridícula. O robô era apenas um robô. Não há como negar isso. Ele não era humano. Não era inteligente. Era uma máquina projetada para imitar um comportamento inteligente.

— Com que segurança você fala de coisas que desconhece por completo! — exclamou Bliss. — Eu sou Gaia. Sim, sou Bliss, também, mas sou Gaia. Sou um mundo que considera cada átomo precioso e importante, e qualquer organização de átomos ainda mais preciosa e importante. Eu/nós/Gaia jamais desfazemos levianamente uma organização, mas temos o maior prazer em incorporá-la a uma organização mais complexa, contanto que isso não prejudique o conjunto.

“A mais alta forma de organização que conhecemos produz a inteligência; a destruição da inteligência nos traz profundo pesar”. O fato de se tratar de inteligência mecânica ou bioquímica é irrelevante. Na verdade, o Robô Guardião representava uma forma de inteligência que eu/nós/Gaia nunca havíamos encontrado. Estudá-la constituía uma experiência maravilhosa. Destruí-la seria inadmissível... a não ser como último recurso.

Trevize disse secamente:

— Havia três inteligências maiores em risco: a sua, a de Pelorat, o ser humano que você ama, e, se me permite, a minha.

— Quatro! Você se esqueceu de Fallom... Não, não estávamos correndo nenhum risco... pelo menos, foi o que pensei na ocasião. Escute... suponha que estivesse diante de uma pintura, uma obra-prima, cuja existência significasse a morte para você. Tudo o que teria a fazer seria dar uma pincelada ao acaso no meio da pintura e pronto, ela estaria mutilada para sempre e você estaria salvo. Suponha, porém, que se você examinasse a pintura com atenção e acrescentasse um retoque aqui, outro ali, removesse um pequeno trecho em um terceiro lugar c assim por diante, conseguiria modificar a pintura o suficiente para escapar à morte, mas ela continuaria a ser uma obra-prima. Naturalmente, as alterações teriam que ser feitas com extremo cuidado. Levaria tempo, mas se você dispusesse desse tempo, certamente seria preferível salvar tanto a sua vida como a pintura.

— Talvez — disse Trevize. — Mas no fim você mutilou a pintura. Deu uma pincelada ao acaso e acabou com todos os leves retoques, com todas as pequenas sutilezas de cor e de forma. E só fez isso quando achou que o pequeno hermafrodita estava em perigo. Enquanto as vidas em risco eram a minha, a de Pelorat e a sua própria, você não tez nada.

— Nós, forasteiros, não estávamos correndo um risco imediato. Com Fallom, porém, era diferente. Tive que escolher entre Fallom e os Robôs Guardiões, e tive que escolher depressa. Você já sabe que escolhi Fallom.

— Foi assim mesmo, Bliss? Uma avaliação instantânea, uma comparação entre duas inteligências, para decidir qual das duas valia mais a pena salvar?

— Isso mesmo.

— E se lhe disser que na hora só viu uma criança indefesa na sua frente? Uma pobre criança em perigo? O instinto maternal entrou em ação e você agiu rapidamente, ao passo que antes, quando as vidas de três adultos estavam em jogo, era toda lógica e moderação...

Bliss enrubesceu.

— Pode ser que eu tenha sentido pena da criança, mas não agi irracionalmente como você parece insinuar. Não, fiz o que me parecia mais lógico na ocasião.

— Não concordo. Se você estivesse pensando logicamente, perceberia que a criança estava sofrendo o mesmo tratamento que a maioria das crianças nascidas naquele planeta. Quem sabe quantos milhares de crianças foram mortas para manter a população de Solaria no nível considerado ideal pelos seus habitantes?

— Não é só isso, Trevize. A criança ia ser morta porque era jovem demais para ser um sucessor, e isso porque seu pai havia morrido prematuramente, e isso porque eu havia matado o seu pai.

— Em legítima defesa.

— Isso não importa. Eu matei o pai. Não podia ficar impassível e permitir que o filho sofresse as consequências do meu ato... Além disso, havia a oportunidade de estudarmos um cérebro que nunca foi estudado por Gaia.

— Um cérebro de criança.

— Não será um cérebro de criança por muito tempo. Em breve, os lobos transdutores começarão a se desenvolver. Esse lobos dão aos solarianos poderes maiores que os de Gaia. Tive que fazer um grande esforço apenas para manter umas poucas luzes acesas. Bander era capaz de fornecer energia para uma propriedade tão grande em tamanho e complexidade quanto a cidade que vimos em Comporellon... e fazer isso mesmo quando estava dormindo.

— Então você considera a criança como um interessante objeto de pesquisa neurológica.

— De certa forma, sim.

— Não é assim que eu a vejo. Para mim, ela é um passageiro perigoso. Muito perigoso.

— Perigoso por quê? A criança se adaptará perfeitamente... com a minha ajuda. É muito inteligente e parece que gosta de nós. Come o que comemos, irá para onde formos e eu/nós/Gaia aprenderemos muita coisa estudando o seu cérebro.

— E se tiver filhos? Ela não precisa de parceiros, você sabe.

— Ainda falta muito para que atinja a idade de procriar. Os Espaciais viviam vários séculos e os solarianos limitam estritamente a população do seu planeta. Provavelmente modificaram geneticamente os habitantes para que tivessem filhos o mais tarde possível. Não precisa se preocupar; Fallom não poderia se reproduzir mesmo que quisesse.

— Como sabe?

— Não sei. Estou apenas usando a lógica.

— E eu estou lhe dizendo que Fallom ainda vai nos trazer encrenca.

— Você também não sabe. Pior ainda, não está sendo lógico.

— É apenas um palpite, Bliss, sem base nos fatos... pelo menos, até o momento. E é você, e não eu, quem insiste que a minha intuição é infalível.

Bliss franziu a testa, mas não disse mais nada.

59

Pelorat parou na porta da sala de comando e olhou para dentro, pouco à vontade. Parecia estar verificando se Trevize estava muito ocupado ou não.

Trevize tinha colocado as mãos sobre a mesa, como sempre fazia quando estava em contato com o computador, e seus olhos estavam fixos na tela. Pelorat concluiu, portanto, que o amigo estava trabalhando e esperou pacientemente, procurando não fazer barulho ou, de outra forma qualquer, incomodar o outro.

Por fim, Trevize desviou os olhos da tela e deu com Pelorat. Não pareceu tomar consciência imediatamente da presença do amigo. Os olhos de Trevize sempre pareciam um pouco vidrados e fora de foco quando estava em contato com o computador; era como se não estivesse olhando, pensando, vivendo da mesma forma que uma pessoa comum.

Mesmo assim, balançou a cabeça devagar para Pelorat, como se a visão, penetrando com dificuldade, tivesse finalmente conseguido impressionar os lobos ópticos. Depois de alguns instantes, levantou as mãos, sorriu e voltou a ser o Trevize de sempre.

— Desculpe pela interrupção, Golan — disse Pelorat.

— Não tem importância, Janov. Estava apenas verificando se estamos prontos para o Salto. De acordo com o computador, poderíamos saltar agora mesmo, mas decidi esperar mais algumas horas, para não abusar da sorte.

— O que é que a sorte... ou o acaso... têm a ver com isso?

— Foi apenas uma maneira de falar — disse Trevize, sorrindo —, mas a verdade é que todo Salto está sujeito a fatores aleatórios... O que é que você quer?

— Posso sentar-me?

— Claro, mas vamos para o meu quarto. Como está Bliss?

— Muito bem. — Pelorat pigarreou. — Está dormindo de novo. Ela precisa do sono, você entende.

— Compreendo perfeitamente. É a ligação hiperespacial que a deixa exausta.

— Exatamente, meu velho amigo.

— E Fallom?

Trevize reclinou-se na cama, deixando a cadeira para Pelorat.

— Sabe aqueles livros da minha biblioteca que você mandou o computador imprimir para mim? Os livros de histórias? Fallom está lendo esses livros. Ainda não consegue compreender muita coisa, mas parece divertir-se com o som das palavras. Ele é... quando penso em Fallom, é sempre como alguém do sexo masculino. Por que será? Trevize deu de ombros.

— Talvez porque você seja homem.

— Talvez. Ele é uma criança muito inteligente.

— Já notei. Pelorat hesitou.

— Tenho a impressão de que você não gosta muito de Fallom.

— Não é nada pessoal, Janov. Nunca tive filhos e não me interesso especialmente por crianças. Você tem filhos, não tem?

— Um filho... ainda me lembro do prazer que sentia só de olhar para ele, quando era da idade de Fallom... talvez seja por isso que penso em Fallom como um menino. É como se estivesse voltando vinte anos no tempo.

— Não me incomodo de você gostar dele, Janov.

— Você gostaria também, se estivesse disposto a tentar.

— Tenho certeza que sim, Janov... um dia, quem sabe...

Pelorat hesitou novamente.

— Também deve estar cansado de discutir com Bliss.

— Acho que não vamos discutir mais, Janov. Na verdade, eu e Bliss estamos nos dando muito bem. Tivemos uma conversa bastante adulta outro dia... você sabe, sem gritos nem recriminações... a respeito do tempo que ela levou para desativar os Robôs Guardiões. Afinal, Bliss vive salvando nossas vidas, de modo que, pelo menos por gratidão, não devemos implicar com ela, não é mesmo?

— Está bem, entendo o que quer dizer, mas não estava falando em discutir no sentido de brigar. Estava me referindo à discussão a respeito do futuro da raça humana... a respeito das vantagens da Galáxia Viva em relação à individualidade.

— Ah, isso! Suponho que continuaremos a discutir o assunto... mas de forma educada.

— Você se importaria, Golan, se eu tentasse defender o ponto de vista de Bliss?

— Claro que não. Você está convencido de que a Galáxia Viva é uma boa ideia, ou simplesmente se sente mais feliz quando concorda com Bliss?

— Sinceramente, estou convencido. Acho que a Galáxia Viva é um passo natural na evolução humana. Você mesmo escolheu esse curso de ação e cada vez me convenço mais de que está certo.

— Só porque fui eu que escolhi? Isso não é motivo. Apesar do que pensa Gaia, eu posso perfeitamente me enganar. Não deixe Bliss convencê-lo com esse tipo de argumento.

— Não acho que você se tenha enganado. Quem me convenceu foi Solaria e não Bliss.

— Como?

— Para começar, somos Isolados, você e eu.

— Essa expressão é de Bliss, Janov. Prefiro pensar em nós como indivíduos.

— Uma questão de semântica, meu velho amigo. Chame você como quiser, estamos trancados dentro de nossa própria pele e pensando em primeiro lugar em nós mesmos. A autodefesa é a primeira lei da nossa natureza, mesmo que isso signifique fazer mal aos semelhantes.

— Muita gente deu a vida pelos semelhantes.

— Um fenômeno relativamente raro. Muito mais pessoas sacrificaram as necessidades e até mesmo as vidas dos semelhantes para satisfazer um mero capricho.

— O que é que isso tem a ver com Solaria?

— Em Solaria, tivemos oportunidade de observar os estágios finais de evolução dos Isolados... ou indivíduos, se preferir. Os solarianos aceitam a contragosto a ideia de compartilhar um planeta com os semelhantes. Para eles, a liberdade perfeita está em uma vida de total isolamento. Não têm pena nem mesmo das crianças, que eliminam friamente para evitar o excesso de população. Cercam-se de escravos mecânicos, que abastecem pessoalmente de energia, de modo que, quando morrem, toda a sua enorme propriedade morre também. Você considera isso um exemplo a ser seguido, Golan? Existe algum termo de comparação com a decência, bondade e respeito mútuo das partes de Gaia? Bliss não discutiu o assunto comigo. Estou dizendo exatamente o que penso.

— Sei disso, Janov. Eu concordo com você. Também achei horrível a sociedade dos solarianos, mas nem sempre foi assim. Eles descendem dos terráqueos e, mais recentemente, dos Espaciais, que levavam uma vida muito mais normal. Os solarianos escolheram um caminho, por alguma razão, que levou a uma situação extrema, mas não devemos julgar por extremos. Em toda a Galáxia, com seus milhões de mundos habitados, você já ouviu falar de algum planeta, no presente ou no passado, que tenha abrigado uma sociedade como a de Solaria, ou mesmo remotamente parecida com a de Solaria? Mesmo Solaria teria chegado ao ponto que chegou se não tivesse robôs? Pode imaginar uma sociedade como a de Solaria sem robôs?

Pelorat fez uma careta.

— Você parece muito à vontade defendendo o tipo de Galáxia contra o qual você mesmo votou, Golan.

— Não é bem assim. Deve haver alguma razão para eu haver optado pela Galáxia Viva. Quando encontrar essa razão, ficarei tranquilo. Isto é, se eu encontrar essa razão.

— Acha que talvez não a encontre? Trevize deu de ombros.

— Como vou saber? Sabe por que decidi esperar algumas horas para dar o Salto e por que estou quase convencido a esperar mais alguns dias?

— Você me disse que isso tornaria o Salto mais seguro.

— Sim, foi o que eu disse, mas não é só isso. O que eu realmente temo é que aquelas coordenadas dos mundos dos Espaciais não tenham nenhuma utilidade para nós, afinal de contas. Começamos com três conjuntos de coordenadas e já usamos dois. Nos dois casos, tivemos sorte de escapar com vida e não conseguimos nenhuma pista nova a respeito da localização da Terra ou mesmo a respeito da própria existência da Terra. Agora estamos prestes a iniciar a terceira viagem. E se o resultado também for negativo?

Pelorat suspirou.

— Meu velho amigo, existem lendas antigas... na verdade, uma delas aparece no livro de histórias que emprestei a Fallom... nas quais uma pessoa tem direito a três desejos, não mais que três. Três parece ser um número muito importante nas lendas, talvez por se tratar do primeiro número ímpar maior que um e portanto o menor número decisivo. Você sabe, dois pontos em três significam a vitória. Acontece que, de acordo com as lendas, os três desejos nunca servem para nada. Ninguém sabe usá-los corretamente, o que reflete, de acordo com a minha interpretação, uma lição de moral no sentido de que devemos trabalhar para conseguir o que desejamos e não...

Interrompeu o que estava dizendo e baixou a cabeça, envergonhado.

— Sinto muito, Golan, por estar tomando o seu tempo. Quando começo a falar de história, não sei a hora de parar.

— Tenho sempre muito prazer em ouvi-lo, Janov. Achei a analogia interessante. Temos direito a três desejos e já gastamos dois sem nenhum sucesso. Só nos resta um. Estou com o pressentimento de que vamos fracassar de novo e é por isso que estou adiando o Salto o máximo possível.

— O que vai fazer se não encontrarmos nenhuma pista no terceiro planeta? Voltar para Gaia? Para Terminus?

— Oh, não! — protestou Trevize, sacudindo a cabeça. — Vou continuar a busca... como, ainda não sei.

Capítulo 14 O Planeta Morto

60

Trevize estava deprimido. As poucas vitórias que conseguira desde o início da busca não tinham sido decisivas; serviam apenas para adiar um pouco a derrota final.

Agora, tinha adiado o Salto para o terceiro planeta dos Espaciais a ponto de deixar os outros nervosos. Quando finalmente se decidiu a dar a ordem ao computador, Pelorat estava de pé na entrada da sala de comando, com ar muito solene, e Bliss estava logo atrás. Até mesmo Fallom lá estava, olhando com curiosidade para Trevize, mas sem largar a mão de Bliss.

Trevize levantou os olhos da tela do computador e comentou, de forma um tanto grosseira: — Mas que família!

Era, porém, uma forma de disfarçar o próprio mal-estar. Instruiu o computador para voltar ao espaço normal mais longe da estrela em questão do que o absolutamente necessário. Repetiu para si mesmo que estava sendo cauteloso em vista do que acontecera nos outros planetas dos Espaciais, mas sabia que não era verdade. No fundo, esperava completar o Salto a uma distância tão grande da estrela que não saberia imediatamente se ela possuía ou não um planeta habitável. Isso lhe daria mais alguns dias de viagem até que fosse forçado a enfrentar (talvez) uma amarga decepção.

Assim, observado atentamente pela “família”, Trevize inspirou fundo, reteve o ar por alguns instantes e depois expulsou-o ruidosamente por entre os lábios semicerrados enquanto fornecia a instrução final para o computador.

A imagem vista pelo telescópio mudou bruscamente e a tela ficou mais vazia, pois haviam sido transportados para uma região em que as estrelas eram um pouco mais esparsas. Bem no meio da tela, havia um ponto luminoso.

Trevize deu um largo sorriso, pois aquilo era um bom sinal. Afinal de contas, o terceiro conjunto de coordenadas podia estar errado e podia não haver nenhuma estrela da classe G na posição indicada. Olhou para os outros três e disse:

— Aí está. A estrela número três. — Tem certeza? — perguntou Bliss.

— Observe! — disse Trevize. — Vou passar para o mapa da Galáxia, visto da mesma posição. Se a estrela desaparecer, é porque não consta do mapa e portanto é a que queremos.

O computador obedeceu ao comando e a estrela desapareceu instantaneamente, enquanto todas as outras permaneceram exatamente onde estavam, em sublime indiferença.

— É ela — disse Trevize.

Mesmo assim, fez com que o Estrela Distante se movesse à frente com metade da velocidade de cruzeiro. Ainda havia a questão da presença ou ausência de um planeta habitável e Trevize não estava com pressa de descobrir a verdade. Mesmo depois de três dias de viagem, ainda não era possível afirmar coisa alguma a respeito.

Será que não? Havia um gigante gasoso. Girava em torno da estrela em uma órbita muito distante e exibia um brilho amarelo-claro no lado iluminado, que, da posição em que estavam, parecia um grande crescente.

Trevize não gostou do que estava vendo, mas procurou não demonstrar e falou a respeito de uma forma tão impessoal quanto um guia turístico.

— Existe um gigante gasoso lá fora — disse. — Tem um par de anéis e dois satélites de bom tamanho.

— Muitos sistemas possuem gigantes gasosos, não é? — perguntou Bliss.

— Sim, mas este é maior do que a média. A julgar pelas distâncias dos satélites e seus períodos de revolução, o gigante gasoso é quase duas mil vezes maior do que qualquer planeta habitável que possa existir no sistema.

— Qual a diferença? — quis saber Bliss. — Gigantes gasosos são gigantes gasosos, independentemente do tamanho. Estão sempre a grandes distâncias da estrela que circundam. Para encontrarmos um planeta habitável, teremos que chegar muito mais perto da estrela.

Trevize hesitou e depois decidiu pôr as cartas na mesa.

— O problema é que os gigantes gasosos tendem a varrer o espaço planetário. O material que não absorvem em geral se condensarem corpos menores que acabam por se tornar satélites. Quanto maior um gigante gasoso, maior a probabilidade de que seja o único planeta do sistema.

— Está querendo dizer que não existe nenhum planeta habitável aqui?

— Quanto maior o gigante gasoso, menor a probabilidade de existir um planeta habitável. Acontece que este gigante gasoso é tão grande que pode ser considerado como estrela anã.

— Posso vê-lo? — perguntou Pelorat.

Os três olharam para a tela (Fallom estava no quarto de Bliss com os livros).

A vista foi ampliada até o crescente ocupar toda a tela. O crescente era cortado por uma linha fina e escura um pouco acima do centro, a sombra do sistema de anéis, que também era visível, pouco acima da superfície do planeta, como uma curva brilhante que penetrava um pouco no lado escuro antes de ser oculta pela sombra do planeta.

Trevize disse:

— O eixo de rotação do planeta tem uma inclinação de cerca de 35 graus em relação ao plano de revolução, e o anel, naturalmente, está no plano do equador, de modo que a luz da estrela, neste ponto da órbita, vem de baixo e projeta a sombra do anel acima do equador.

Pelorat olhou para a tela, embevecido.

— Esses anéis são estreitos...

— Na verdade, são um pouco mais largos que a média — disse Trevize.

— De acordo com a lenda, os anéis que existem em volta de um dos gigantes gasosos do sistema planetário a que a Terra pertence são muito mais largos e possuem uma estrutura muito mais complexa que os que estamos vendo. Na verdade, o gigante gasoso chega a parecer pequeno comparado com os anéis.

— Isso não é de admirar — disse Trevize. — Quando uma história é transmitida de geração a geração por milhares de anos, é natural que ocorram alguns exageros.

— É lindo! — exclamou Bliss. — Olhando para o crescente, a gente tem a impressão de que está pulsando sem parar.

— São turbulências atmosféricas — explicou Trevize. — Em geral, ficam mais visíveis quando se escolhe o comprimento de onda apropriado. Deixe-me tentar.

Colocou as mãos sobre a mesa e mandou o computador varrer o espectro até encontrar o comprimento de onda que permitisse o maior contraste.

O crescente começou a mudar de cor tão rapidamente que era impossível acompanhar as transformações sem ficar tonto. Finalmente, a imagem se fixou em um vermelho alaranjado e, dentro do crescente, apareceram gigantescas espirais, que se deslocavam pela face do planeta, enrolando-se e desenrolando-se enquanto se moviam.

— É incrível! — murmurou Pelorat.

— Maravilhoso! — exclamou Bliss.

Não tinha nada de incrível, pensou Trevize de mau humor, e muito menos de maravilhoso. Nem Pelorat nem Bliss, perdidos na beleza do espetáculo, se haviam detido para pensar que o planeta que admiravam diminuía consideravelmente a probabilidade de desvendarem o mistério da localização da Terra. Mas por que se preocupariam com isso? Os dois concordavam com a escolha de Trevize e o haviam acompanhado na busca sem nenhum envolvimento emocional. Não havia como culpá-los por isso. Ele disse:

— O lado escuro parece totalmente negro, mas se nossos olhos fossem sensíveis a comprimentos de onda um pouquinho maiores que o da luz visível, sua cor seria vermelho escuro. O planeta está despejando radiação infravermelha no espaço em imensas quantidades, porque é suficientemente grande para ficar quase incandescente. É mais que um gigante gasoso: é uma subestrela.

Ficou calado durante algum tempo e depois disse:

— Agora, vamos esquecer esse astro e procurar o planeta habitável, se é que ele existe.

— Existe, sim, meu velho amigo — disse Pelorat, sorrindo. — Não desista.

— Não desisti — afirmou Trevize, com convicção. — A formação de planetas é complicada demais para ser explicada por uma teoria simples. Falamos apenas em probabilidades. Com esse monstro nas proximidades, a probabilidade diminui bastante, mas não cai para zero.

Bliss disse:

— Por que está tão pessimista? Se os dois primeiros conjuntos de coordenadas correspondiam a dois planetas colonizados pelos Espaciais, este terceiro conjunto, do qual já resultou uma estrela da classe correta, deve também corresponder a um planeta habitável. Por que falar em probabilidades?

— Espero que você esteja certa — disse Trevize, que não tinha se deixado convencer pela argumentação de Bliss. — Agora vamos sair do plano da eclíptica e aproximar-nos da estrela.

Assim que o rapaz manifestou sua intenção, o computador começou a agir. Trevize recostou-se à cadeira do piloto e pensou consigo mesmo, mais uma vez, que a única desvantagem de pilotar uma nave gravítica com um computador tão avançado era que jamais... jamais conseguiria pilotar novamente outro tipo de nave.

Onde encontraria disposição para executar pessoalmente todos os cálculos? Lembrar-se-ia de levar em conta a aceleração e limitá-la a um valor razoável? Não... provavelmente se esqueceria e continuaria a fornecer energia para os motores até que os passageiros fossem esmagados contra as paredes.

Pois então teria que continuar a pilotar aquela nave, ou outra exatamente igual, para o resto da vida.

Como não queria pensar na questão do planeta habitável, sim ou não, Trevize começou a cismar a respeito do fato de haver posicionado a nave acima do plano da eclíptica e não abaixo. Sempre que tinham escolha, os pilotos preferiam subir em vez de descer. Por quê? A propósito, por que essa preocupação em considerar uma direção como sendo “para cima” e outra como sendo “para baixo”? Na simetria do espaço, isso não passava de convenção.

Mesmo assim, Trevize instintivamente procurava saber em que sentido girava o planeta em que estava interessado e em que sentido se movia em torno da sua estrela. Quando os dois movimentos eram no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio, o norte ficava na direção do braço levantado e o sul na direção dos pés. E em toda a Galáxia o norte era representado para cima e o sul para baixo.

Era uma convenção muito antiga, de origem desconhecida, mas que todos seguiam à risca. Quando alguém olhava um mapa com o sul para cima, ficava difícil reconhecê-lo. Em igualdade de condições, todos preferiam a direção norte ou “para cima”.

Trevize se lembrou de uma batalha travada por Bel Riose, o general do Império, há trezentos anos, na qual havia posicionado sua esquadra abaixo do plano da eclíptica em um momento crucial, apanhando a esquadra inimiga totalmente despreparada. A manobra fora considerada desleal... pelos adversários, naturalmente.

Uma convenção tão antiga e tão universal devia ter começado na Terra... e aquilo trouxe de volta à mente de Trevize, com um sobressalto, a questão do planeta habitável.

Pelorat e Bliss continuaram a observar o gigante gasoso enquanto girava lentamente na tela. A parte iluminada aumentou e, como Trevize manteve o espectro concentrado nos comprimentos de onda correspondentes ao vermelho alaranjado, as ondulações tempestuosas se tornaram ainda mais frenéticas.

Foi então que Fallom apareceu e Bliss declarou que estava precisando dormir e levaria a criança com ela.

Trevize disse para Pelorat, que havia ficado:

— Tenho que tirar da tela o gigante gasoso, Janov. Vamos procurar um pontinho do tamanho certo.

Entretanto, era mais complicado do que isso. Não era apenas um pontinho do tamanho certo que o computador tinha que procurar, mas um pontinho do tamanho certo e à distância correta da estrela. Vários dias se passariam antes que pudessem ter certeza.

61

Trevize entrou no quarto, sério, solene, triste... e levou um susto. Bliss estava à sua espera e a seu lado estava Fallom, o manto e a tanga muito bem lavados e passados. O jovem ficava melhor naqueles trajes do que usando uma das camisolas de Bliss.

— Não queria incomodá-lo quando estava operando o computador, mas agora tem que escutar... Vá em frente, Fallom.

Fallom disse, com voz de soprano:

— Saudações, protetor Trevize. É com prazer que estou ad... at... acompanhando o senhor nesta viagem. Sinto-me feliz também por estar com meus amigos Bliss e Pel.

Fallom sorriu timidamente e mais uma vez Trevize pensou consigo mesmo: Devo tratá-lo como menino, como menina ou como nenhum dos dois?

Balançou a cabeça em sinal de aprovação.

— Muito bem memorizado. A pronúncia está quase perfeita.

— Você está enganado — protestou Bliss, bem humorada. — Fallom escreveu sozinho este pequeno discurso e me perguntou se seria possível recitá-lo para você. Nem eu sabia o que ele iria dizer.

Trevize forçou-se a sorrir.

— Nesse caso, está realmente muito bom.

Bliss voltou-se para Fallom e disse:

— Eu tinha certeza de que Trevize iria gostar... Agora vá pegar outro livro com Pel, se quiser.

Depois que Fallom saiu, Bliss observou:

— É realmente incrível a rapidez com que Fallom está aprendendo a falar galáctico. Os solarianos devem ter um dom especial para línguas. Lembre-se de como Bander aprendeu galáctico apenas ouvindo as comunicações hiperespaciais. Aqueles cérebros devem ter outras qualidades especiais, além dos lobos transdutores.

Trevize deu um muxoxo.

— Não me diga que ainda não gosta de Fallom! — exclamou Bliss.

— Nem gosto nem desgosto. Simplesmente não me sinto à vontade em sua presença. Não estou acostumado a lidar com hermafroditas.

— Ora, Trevize, isso é ridículo! Fallom é um ser humano perfeitamente aceitável. Pense em como nós, homens e mulheres, devemos parecer estranhos para uma sociedade de hermafroditas. Cada um é apenas metade de um todo; para que a espécie sobreviva, tem que haver uma união, uma união temporária e artificial.

— A ideia não lhe agrada, Bliss?

— Não se faça de desentendido. Estou tentando imaginar o que somos do ponto de vista de um hermafrodita. Para eles, o ato sexual deve parecer repulsivo; para nós, é natural. Da mesma forma, Fallom pode parecer repulsivo para você, mas é apenas porque você tem uma visão muito estreita do problema.

— Francamente, até agora não sei que pronome usar quando me refiro à criatura, e isso me incomoda.

— A culpa é da língua e não de Fallom — argumentou Bliss. — Nenhuma língua humana foi desenvolvida por uma raça de hermafroditas. Mas foi bom você ter trazido este assunto à baila, porque é uma questão que também me preocupa. Por que não escolhemos arbitrariamente um dos pronomes? Costumo pensar em Fallom como menina. Afinal, ela tem voz fina e é capaz de gerar um bebê, o que na nossa raça constitui um dos principais atributos da feminilidade. Pelorat já concordou; por que você não concorda também? De agora em diante, Fallom passa a ser “ela”...

Trevize deu de ombros.

— Muito bem. Vai parecer estranho comentar que ela possui testículos, mas está bem.

Bliss suspirou.

— Você tem este hábito desagradável de fazer graça com tudo, mas sei que está sob tensão e o perdôo. Mas de agora em diante, o pronome feminino quando se referir a Fallom, por favor.

— Está bem.

Trevize hesitou e depois, não conseguindo se conter, disse:

— Fallom está parecendo cada vez mais sua filha adotiva. Será que você queria ter filhos e Janov não lhe pode dar um?

Bliss arregalou os olhos.

— Fallom não está aqui para me dar filhos! Acha que eu o usaria para isso? Ainda não chegou a minha hora de procriar, e quando chegar, o pai terá que ser um gaiano!

— Então terá que livrar-se de Janov?

— Não disse isso. Um afastamento temporário, talvez. Ou pode ser que eu recorra à inseminação artificial.

— Presumo que você só será autorizada a ter um filho quando Gaia considerar isso necessário; quando houver uma lacuna em consequência da morte de um fragmento humano de Gaia.

— É uma forma um pouco grosseira de colocar a questão, mal em essência você está certo. Gaia deve manter todas as suas partes em equilíbrio.

— Como fazem os solarianos.

Bliss apertou os lábios e empalideceu ligeiramente.

— Você está enganado. Os solarianos produzem mais do que precisam e destroem o excesso. Nós produzimos exatamente o que precisamos e não temos necessidade de destruir... da mesma forma como você substitui as camadas externas da sua pele produzindo o número de células necessário para substituir as que morreram e nem uma a mais.

— Estou entendendo. Espero, porém, que você tenha pensado nos sentimentos de Janov.

— Com relação aos meus possíveis filhos? Ainda não discutimos o assunto.

— Não, não estava me referindo a isso... Acaba de me ocorrer que se você se mostrar cada vez mais interessada em Fallom, talvez Janov se sinta posto de lado.

— Não acredito. Pel está tão interessado em Fallom quanto eu. Ao lado dela, nós nos sentimos mais unidos que nunca. Será que não é você que está se sentindo posto de lado?

Eu? — exclamou Trevize, genuinamente surpreso.

— Você, sim. Não compreendo os Isolados melhor do que você compreende Gaia, mas tenho a impressão de que gosta de ser o centro das atenções e está com ciúmes de Fallom.

— É absurdo!

— Não mais absurdo que a sua insinuação de que estou deixando Pel de lado.

— Então vamos fazer as pazes e encerrar a discussão. Tentarei pensar em Fallom como uma menina e não vou me preocupar demais com os sentimentos de Janov.

Bliss sorriu.

— Obrigada. Está tudo bem, então. Trevize ia despedir-se da moça, mas ela disse:

— Espere!

O rapaz olhou para ela e perguntou, com ar cansado:

— Que foi?

— É evidente, Trevize, que você está triste e deprimido. Não pretendo ler a sua mente, mas talvez queira contar-me o que aconteceu. Ontem, você disse que havia descoberto um planeta apropriado neste sistema e parecia bastante satisfeito... o planeta ainda está lá, suponho. O achado não foi um engano do computador, foi?

— Existe um planeta apropriado e ele ainda está lá — declarou Trevize.

— É do tamanho certo? Trevize assentiu.

— Se não fosse do tamanho certo, não seria apropriado. Também está à distância certa da estrela.

— Então qual é o problema?

— Já estamos suficientemente próximos para analisar a atmosfera. Acontece que não existe nenhuma atmosfera para ser analisada.

— Não?

— Praticamente nenhuma. É um planeta inabitável e não existem outros neste sistema que possam ser habitáveis. Nossa terceira tentativa fracassou.

62

Pelorat não queria interromper o silêncio quase hostil que Trevize vinha mantendo. Ficou parado na porta da sala de comando, esperando que o outro tomasse a iniciativa. Trevize, porém, continuava teimosamente calado. Por fim, Pelorat não agüentou mais e perguntou, timidamente:

— O que está fazendo?

Trevize levantou os olhos, fitou Pelorat por um momento, virou a cabeça e respondeu:

— Vamos pousar no planeta.

— Mas ele não tem atmosfera!

— O computador disse que não tem atmosfera. Até agora, o computador sempre me disse o que eu queria ouvir e acreditei. Desta vez, ele me disse algo que eu não queria ouvir e vou verificar. Se o computador é capaz de cometer erros, espero que esteja errado desta vez. Acha que ele está errado?

— Não, não acho.

— Pode pensar em alguma razão para ele estar errado? — Não, não posso.

— Então por que se dar ao trabalho de pousar no planeta, Golan? Trevize finalmente se virou no assento para olhar Pelorat de frente e disse, em tom quase desesperado:

— Não compreende, Janov, que não me resta mais nada para fazer? Nos dois primeiros mundos que visitamos não conseguimos nenhuma informação a respeito da Terra; este terceiro mundo nem é habitado. O que devo fazer? Vagar de planeta em planeta, perguntando a todos que encontrar: “Com licença, amigo. Sabe onde fica a Terra?” A Terra soube se esconder muito bem. Não deixou nenhuma pista para trás. Estou começando a pensar que mesmo que encontrássemos uma pista a Terra não nos deixaria segui-la.

Pelorat assentiu e disse:

— A ideia também me ocorreu. Que tal discutirmos o assunto? Sei que não está de muito bom humor, de modo que se preferir que eu vá embora, é só me dizer.

— Não, fique — disse Golan, com ar resignado. — Vamos discutir o assunto. Não tenho mesmo nada melhor para fazer...

— Seu entusiasmo é comovente. Mesmo assim, acho que a conversa lhe fará bem. Se achar que não agüenta mais, pode me interromper... A mim me parece, Golan, que a Terra não precisa tomar apenas medidas passivas e negativas para esconder-se. Não precisa limitar-se a eliminar todas as referências à sua localização. E se ela complementasse essas medidas com pistas falsas?

— O que quer dizer com isso?

Por exemplo: ouvimos falar em vários lugares que a Terra está radioativa, e este é o tipo de informação que dissuadiria muita gente de procurá-la. Se a Terra estivesse realmente radioativa, seria inacessível. Provavelmente, jamais conseguiríamos pousar na superfície do planeta. Talvez nem mesmo robôs exploradores, se dispuséssemos de robôs exploradores, conseguissem sobreviver à radiação. Nesse caso, para que procurar a Terra? Assim, se a Terra não estiver radioativa, o boato pode ajudar a mantê-la oculta, a não ser por algum contato acidental, pode ser que ela disponha de outros meios que ainda não conhecemos. Trevize conseguiu sorrir.

— É curioso, Janov, mas a ideia passou pela minha cabeça. Chegou a me ocorrer que o tal satélite gigantesco tenha sido incluído de propósito nas lendas a respeito da Terra, apenas para dificultar as buscas. O mesmo se aplicaria ao gigante gasoso com um sistema de anéis tão descomunal que provavelmente constitua uma impossibilidade física. Tudo isso pode ter sido forjado para nos fazer procurar por coisas que não existem. Nesse caso, poderíamos passar pelo sistema da Terra e não parar, poderíamos olhar para a Terra de perto e não reconhecê-la porque na verdade ela não tem um satélite gigantesco, um vizinho com anéis e uma crosta radioativa. Entretanto, também pensei coisa pior...

Pelorat parecia desanimado.

— O que é que pode ser pior?

— Quando você acorda no meio da noite e sua imaginação começa a trabalhar, surgem ideias muito estranhas. E se a Terra puder agir diretamente sobre nós? Se tiver o poder de nos tornar cegos à sua presença? Se pudermos passar ao lado da Terra, com seu satélite gigante, com seu vizinho cheio de anéis, e não enxergarmos nada porque os habitantes de Terra não querem ser vistos? E se isso já tiver acontecido?

— Se acredita nisso, por que ainda está...

— Não disse que acredito. Estou falando de fantasias desvairadas. Vamos continuar procurando a Terra.

Pelorat hesitou e depois disse:

— Por quanto tempo, Trevize? Vai chegar a hora, suponho, em que teremos que desistir.

— Nunca! — exclamou Trevize, com um brilho selvagem nos olhos. — Se tiver que passar o resto da vida vagando de planeta em planeta e perguntando aos passantes: “Desculpe, meu amigo, mas sabe onde fica a Terra?”, é isso o que farei. Se quiserem, posso levar você, Bliss e Fallom de volta para Gaia e continuar a busca sozinho.

— Oh, não! Sabe que eu não o abandonaria, Golan. Nem Bliss. Passaremos o resto da vida viajando com você, se for preciso, mas qual a razão para isso?

— A razão é simples: eu preciso encontrar a Terra e vou encontrá-la, mais cedo ou mais tarde... Escute, estou chegando a uma posição de onde posso observar a superfície iluminada do planeta sem que minha visão seja ofuscada pelo brilho da estrela. Espere um instante.

Pelorat parou de falar, mas não foi embora. Continuou a observar enquanto Trevize examinava a imagem do planeta na tela. Mais da metade da superfície estava iluminada. Para Pelorat, não era possível distinguir nenhum detalhe, mas ele sabia que para Trevize, em contato com o computador, a imagem aparecia com um contraste muito maior.

— Estou vendo uma névoa — sussurrou Trevize.

— Então existe atmosfera! — exclamou Pelorat.

— Sim, mas isso não quer dizer grande coisa. A atmosfera pode não ser suficientemente densa para sustentar formas de vida, mas suficiente para levantar a poeira do solo. As tempestades de poeira são comuns em planetas que possuem atmosferas rarefeitas. Podemos encontrar até mesmo pequenas calotas polares. Um pouquinho de gelo de água condensado nos pólos, você sabe. Este mundo é quente demais para que o dióxido de carbono se transforme em gelo seco... Acho melhor usar o radar. Se fizer isso, poderei examinar também o lado escuro. — Verdade?

— Verdade. Devia ter começado pelo radar, mas num planeta sem atmosfera e portanto sem nuvens, a ideia de usar a luz visível parecia tão natural...

Trevize permaneceu calado durante muito tempo, enquanto a tela mostrava os ecos do radar, produzindo uma imagem abstrata do planeta que poderia passar como a obra de um artista do período cleoniano. Finalmente, disse:

— Ora... Pelorat esperou um pouco e depois perguntou:

— O que quis dizer com esse “ora”? Trevize levantou os olhos.

— Não estou vendo nenhuma cratera.

— Nenhuma cratera? Isso é bom?

— Isso é totalmente inesperado — disse Trevize, com um largo sorriso. — E é muito bom. Na verdade, é maravilhoso!

63

Fallom estava com o nariz comprimido contra a vigia da nave, onde um pequeno segmento do Universo era visível exatamente como o olho o captava, sem nenhum auxílio do computador.

Bliss, que estava tentando explicar tudo à criança, suspirou e disse em voz baixa para Pelorat:

— Não sei até que ponto ela está entendendo, Pel querido. Para ela, o Universo era a casa do pai e uma pequena parte da propriedade em volta. Acho que ela nunca saía à noite, nunca havia visto uma estrela.

— Acha mesmo?

— Palavra de honra. Não tive coragem de mostrar-lhe as estrelas até que tivesse vocabulário suficiente para me entender pelo menos um pouquinho... ainda bem que você era capaz de conversar com ela em sua própria língua.

— Mais ou menos — disse Pelorat, modestamente. — E o Universo é mesmo difícil de compreender para quem o vê pela primeira vez. Ela me disse que se aqueles pontinhos luminosos eram mundos inteiros, como Solaria... naturalmente, são muito maiores que Solaria... então não podiam ficar suspensos no ar, mas tinham que cair.

— E está certa, a julgar pelo que conhece. Fallom faz perguntas lógicas e, pouco a pouco, começará a compreender o Universo. O importante é que é curiosa e não tem medo de nós.

— Acontece, Bliss, que eu também sou curioso. Veja como Golan mudou depois que descobriu que não existem crateras no mundo para onde estamos indo. Não tenho a mínima ideia da diferença que isso faz. E você?

— Também não. Acontece que Trevize entende muito mais de planetologia do que nós. Deve saber o que está fazendo.

— Pois eu gostaria de saber.

— Por que não pergunta a ele? Pelorat fez uma careta.

— Estou sempre com medo de incomodá-lo. Parece que ele acha que eu devia ficar sabendo dessas coisas sozinho.

— Isso é bobagem, Pel. Trevize não hesita em consultá-lo a respeito das lendas e mitos sobre a Terra, não é mesmo? E você responde com a maior boa vontade. Por que ele não pode fazer a mesma coisa? Vá perguntar a ele. Se isso o incomodar, terá uma oportunidade de praticar a arte da sociabilidade, o que só poderá lhe fazer bem.

— Você vem comigo?

— Não, claro que não. Quero ficar com Fallom e continuar a explicar-lhe o conceito de Universo. Depois você me conta o resultado da conversa.

64

Pelorat entrou timidamente na sala de comando. Ficou aliviado ao constatar que Trevize estava assobiando baixinho e parecia de muito bom humor.

— Golan — começou, da maneira mais descontraída que pôde. Trevize levantou os olhos.

— Janov! Você sempre entra na ponta dos pés, como se fosse contra a lei me perturbar. Feche a porta e sente-se. Sente-se! Olhe para isso.

Apontou para o planeta na tela e disse:

— Não encontrei mais que duas ou três crateras, e das pequenas.

— Isso faz alguma diferença, Golan?

— Se faz diferença? Claro que sim! Como pode perguntar uma coisa dessas?

Pelorat deu de ombros.

— Tudo isso é um mistério para mim. Na universidade, diplomei-me em História. Além de história, estudei sociologia e psicologia. Também fiz alguns cursos de linguagem e literatura, especialmente literatura antiga. No curso de pós-graduação, especializei-me em mitologia. Nunca cheguei nem perto de planetologia ou outras ciências naturais.

— Isso não é nenhum crime, Janov. Prefiro que você saiba o que sabe. Seu conhecimento de línguas antigas e de mitologia tem sido extremamente valioso para nós... Quanto à planetologia, deixe por minha conta.

Trevize prosseguiu:

— Você sabe, Janov, os planetas se formam a partir da colisão de objetos menores. Os últimos objetos a se chocarem com a massa principal produzem marcas que são chamadas de crateras. Ou melhor, podem produzir. Se um planeta é suficientemente grande para ser um gigante gasoso, não possui crosta sólida e portanto as colisões finais não deixam marcas.

“Os planetas menores, que têm uma crosta sólida, de gelo ou de pedra, possuem marcas de crateras”. Essas marcas duram indefinidamente, a não ser que sejam apagadas por algum agente natural. Existem três mecanismos capazes de apagar as marcas.

“Em primeiro lugar, um planeta pode ter uma superfície de gelo cobrindo um oceano líquido”. Nesse caso, a colisão de um objeto faz um buraco no gelo. Depois que o objeto passa, o líquido no lugar do furo torna a congelar e tapa o buraco. Um mundo assim teria que ser muito frio e não seria do tipo normalmente considerado como habitável.

“Em segundo lugar, se a atividade vulcânica no planeta é muito Intensa, a lava e as cinzas estão continuamente obliterando as crateras que se formam”. Um planeta desse tipo também provavelmente não seria habitável.

”O terceiro caso é o dos planetas habitáveis. Esses mundos podem possuir calotas polares, mas a maior parte da água está no estado liquido. Podem ter vulcões ativos, mas em pequeno número. As crateras são apagadas, não por congelamento ou por torrentes de lava, mas por processos de erosão. Lentamente, o vento e a água corrente destroem as crateras; se há vida, o processo é acelerado, pois os seres vivos constituem um poderoso agente erosivo. Está entendendo?”.

Pelorat pensou um pouco e depois disse:

— Ainda não entendi, Golan. O planeta que vamos visitar...

— Pousaremos nele amanhã — disse Trevize, alegremente.

— O planeta que vamos visitar não tem oceanos.

— Apenas finas calotas polares.

— Também não tem atmosfera.

— A densidade do ar é um centésimo da de Terminus.

— Nem vida.

— Nada que possamos detectar.

— Então qual foi o processo de erosão que destruiu as crateras?

— Oceanos, uma atmosfera e seres vivos — disse Trevize. — Escute, se este planeta não tivesse água nem ar desde o princípio, toda a superfície estaria coberta de crateras. A ausência de crateras é uma prova de que não foi assim. Além disso, existem grandes depressões, visíveis ao telescópio, que um dia devem ter sido mares e oceanos, sem falar das marcas de rios hoje secos. Assim, você pode ver que houve erosão e que ela cessou há relativamente pouco tempo, pois ainda não se acumularam as marcas de novas crateras.

Pelorat não parecia convencido.

— Posso não ser um planetologista, mas me parece que se um planeta é suficientemente grande para reter uma atmosfera densa por talvez bilhões de anos, não vai perdê-la de um momento para outro, vai?

— Acredito que não — disse Trevize. — Meu palpitei que este mundo abrigou seres humanos antes que a atmosfera se dissipasse. Nesse caso, certamente foi transformado de modo a atender às necessidades humanas, como aconteceu com todos os outros planetas colonizados. O problema é que não sabemos em que condições se encontrava antes de chegarem os primeiros colonos, quais as transformações que sofreu e em que circunstâncias se tornou inabitável. Pode ter havido uma catástrofe que acabou ao mesmo tempo com a atmosfera e com todas as formas de vida. Ou talvez o planeta apresentasse algum estranho desequilíbrio que os seres humanos mantinham sob controle e quanto estavam aqui, mas que resultou na perda da atmosfera depois que eles foram embora. Talvez encontremos a resposta quando pousarmos no planeta, talvez não. Não importa.

— Mas também não importa que tenha havido vida no planeta. se hoje ele é um planeta morto. Qual a diferença entre um planeta que sempre foi inabitável e um que se tornou inabitável?

— No planeta que se tornou inabitável deve haver ruínas deixadas pelos antigos habitantes.

— Havia ruínas em Aurora...

— Sim, mas em Aurora essas ruínas foram submetidas a vinte mil anos de chuva e de vento, de frio e de calor. E também havia seres vivos... não se esqueça dos seres vivos. Assim como as crateras, as ruínas também sofrem o processo de erosão. É até mais rápido. Depois de vinte mil anos, não restou nada de útil... Aqui neste planeta, porém, há muito tempo que não há chuva, nem vento, nem vida. Os ciclos de frio e de calor continuaram, admito, mas foi tudo. As ruínas n devem estar bem preservadas.

— A menos — murmurou Pelorat, ceticamente — que não existam ruínas. Não é possível que jamais tenha existido vida no planeta, ou pelo menos que ele nunca tenha sido habitado por seres humanos, e que a perda da atmosfera se deva a algum fenômeno puramente natural?

— Não, não — disse Trevize. — Seu pessimismo não tem razão de ser. Mesmo desta distância, consegui ver algumas marcas na superfície e estou certo de que se trata dos restos de uma cidade... É para lá que vamos amanhã.

65

Bliss disse, em tom preocupado:

— Fallom está convencida de que vamos devolvê-la a Jemby, o robô.

— Hummm... — fez Trevize, examinando a superfície do planeta que estavam sobrevoando. Então levantou os olhos, como se tivesse ouvido o comentário com certo retardo. — Afinal, foi o único pai que conheceu, não foi?

— Claro que sim, mas pensa que estamos de volta a Solaria.

— Este planeta não se parece com Solaria!

— Como ela poderia saber?

— Explique que não é Solaria. Olhe, vou lhe arranjar alguns manuais de bordo com ilustrações. Mostre a ela as fotografias de alguns planetas habitados e diga que existem milhões deles. Você terá tempo de sobra. Não sei quanto tempo eu e Janov vamos levar examinando as ruínas depois que pousarmos.

— Você e Janov?

— Isso mesmo. Fallom não pode vir conosco, mesmo que eu quisesse, e eu só quereria levá-la se fosse louco. Este mundo praticamente não tem ar, Bliss. Vamos ter que usar trajes espaciais. Não temos nenhum traje que sirva em Fallom. Assim, vocês duas vão ficar a bordo.

— Por que eu?

Os lábios de Trevize se contraíram em um sorriso amarelo.

— Admito que me sentiria mais seguro se você fosse conosco, mas não podemos deixar Fallom sozinha. Preciso levar Janov comigo porque é o único capaz de ler inscrições em galáctico arcaico. Achei que você não se importaria de ficar com Fallom...

Bliss parecia indecisa. Trevize disse:

— Bliss, foi você que quis trazer Fallom... eu sempre achei que ela seria um peso morto para nós. Agora, você vai ter que arcar com as consequências. Ela não pode ir conosco, de modo que você vai ter que ficar, também. Não há outro jeito.

Bliss suspirou.

— Acho que tem razão.

— Ótimo. Onde está Janov?

— Está com Fallom.

— Muito bem. Vá até lá e substitua-o. Preciso falar com ele.

Trevize ainda estava examinando a superfície do planeta quando Pelorat entrou, pigarreando para anunciar a sua presença.

— Alguma coisa errada, Golan? — perguntou.

— Não exatamente, Janov. Estou indeciso. É um mundo muito estranho... não sei o que aconteceu com ele. Os mares devem ter sido muito grandes, a julgar pelas depressões que deixaram, mas eram também extremamente rasos. Pelo que pude observar, este foi um mundo de dessalinização e de canais... ou talvez os oceanos não fossem muito salgados. Se não eram muito salgados, isso explica a ausência de depósitos de sal nas depressões. Ou então, quando os oceanos secaram, o sal foi removido... o que seria uma indicação segura de atividade humana.

— Desculpe minha ignorância, Golan, mas o que isso tem a vi com o que estamos procurando?

— Nada, talvez, mas não posso deixar de ficar curioso. Se eu soubesse como era este planeta antes de ser colonizado e quais as transformações a que foi submetido para se tornar mais habitável, talvez chegasse a compreender o que aconteceu com ele depois que foi abandonado... ou, talvez, pouco antes de ser abandonado. E se soubéssemos o que aconteceu com ele, poderíamos nos prevenir contra surpresas desagradáveis.

— Que tipo de surpresas? É um mundo morto, não é?

— Acho que sim. Muito pouca água; atmosfera tênue, irrespirável; e Bliss não detectou nenhum sinal de atividade mental.

— Então estamos seguros, não acha?

— A ausência de atividade mental não implica necessariamente a ausência de vida.

— Pode ser que não, mas qualquer forma de vida suficientemente desenvolvida para ser perigosa teria que apresentar algum tipo de atividade mental.

— Não sei... mas não era sobre isso que queria conversar com você. Existem duas cidades que parecem mais indicadas para nossa primeira expedição. Estão muito bem conservadas, como aliás todas as cidades do planeta; aparentemente, o fenômeno que destruiu a atmosfera e os oceanos não afetou as cidades. Seja como for, essas duas cidades são particularmente grandes. A maior, porém, não tem espaços vazios. Existem espaçoportos nos arredores, mas nenhum lugar dentro da cidade onde a gente possa pousar. A outra possui uma grande praça central. Não é um campo de pouso, mas eu não teria problema algum para pousar ali.

Pelorat fez uma careta.

— Você quer que eu decida, Golan?

— Não, a decisão fica por minha conta. Eu só queria ouvir sua opinião.

— Para mim, a cidade maior, sem espaços vazios, foi provavelmente um centro comercial ou industrial. A cidade menor, com uma grande praça central, pode ter sido um centro administrativo. É no centro administrativo que estamos interessados. Você observou algum edifício governamental?

— Como é um edifício governamental? Pelorat sorriu.

— Eu mesmo não sei. A moda varia de planeta para planeta e de época para época. Desconfio, porém, que eles sempre parecem grandes, luxuosos e pouco práticos... como aquele lugar em que estivemos em Comporellon.

Foi a vez de Trevize sorrir.

— É difícil dizer aqui de cima, e quando eu tiver uma visão lateral, na hora do pouso, será tarde demais. Por que prefere o centro administrativo?

— Porque é lá que encontraremos os museus, bibliotecas, arquivos, universidades e assim por diante.

— Excelente. É para lá que vamos, então: para a cidade menor. Talvez encontremos alguma coisa que preste. Tivemos dois insucessos, mas desta vez pode ser que a gente acerte no alvo.

Capítulo 15 Musgo

66

O traje espacial deixara Trevize com aspecto grotesco. No momento, estava ocupado ajeitando os coldres, não os que usava habitualmente na cintura, mas uma peça mais volumosa, que podia ser adaptada externamente ao traje espacial. Cuidadosamente, introduziu o desintegrador no coldre da direita e o chicote neurônico no da esquerda. As armas estavam com a carga completa e desta vez, pensou, aborrecido, nada o faria separar-se delas. Bliss sorriu.

— Vai levar as armas, mesmo sabendo que nesse mundo não existe ar nem... deixe para lá! Faça como quiser.

— Ótimo! — exclamou Trevize, voltando-se para ajustar o capacete de Pelorat antes de vestir o seu.

Pelorat, que nunca havia usado um traje espacial, disse, em tom queixoso:

— Será que eu vou mesmo conseguir respirar aqui dentro, Golan?

— Juro que sim — disse Trevize.

Bliss observou-os, com a mão no ombro de Fallom, enquanto testavam as juntas dos trajes. A jovem solariana estava visivelmente assustada com aquelas figuras estranhas. Começou a tremer e Bliss abraçou-a, dirigindo-lhe palavras tranquilizadoras.

A porta interna se abriu e os dois entraram na câmara de descompressão, depois de acenarem para Bliss. A porta interna se fechou. A porta externa se abriu e os dois pisaram desajeitadamente no solo de um mundo morto.

Estava amanhecendo. O céu estava claro, de cor avermelhada, mas o sol ainda não havia nascido. No horizonte, perto do local onde apareceria o sol, havia uma pequena nebulosidade.

— Que frio! — exclamou Pelorat.

— Está com frio? — perguntou Trevize, surpreso.

Os trajes eram bem isolados e se havia um problema, de vez em quando, era o da necessidade de dissipar o calor do corpo. Pelorat respondeu:

— Não, não estou, mas veja...

A voz, transmitida pelo rádio, soava bem nítida nos ouvidos de Trevize, que virou a cabeça para olhar para onde Pelorat estava apontando.

À luz avermelhada da manhã, podiam ver que a fachada de pedra do edifício mais próximo estava coberta por uma fina camada de gelo.

Trevize explicou:

— Quando a atmosfera é rarefeita, as noites são muito frias e os dias muito quentes. Agora deve ser a hora mais fria; mesmo depois que o sol nascer, vai levar várias horas para ficar quente de verdade.

Nesse momento, como se suas palavras fossem mágicas, a borda do sol apareceu acima do horizonte.

— Não olhe para o sol — recomendou Trevize. — O visor do capacete tem um filtro de ultravioleta, mas mesmo assim pode ser perigoso.

Deu as costas para o sol nascente e deixou que sua sombra se projetasse no edifício. Enquanto olhava, o sol fazia o gelo derreter. A parede ficou mais escura por alguns momentos, por causa da umidade, mas depois a água evaporou também.

Trevize disse:

— As construções não estão tão bem conservadas quando pareciam. Algumas desabaram parcialmente e outras racharam. Deve ser resultado das variações de temperatura e também da formação de gelo nas fendas toda noite durante possivelmente vinte mil anos.

— Há uma inscrição gravada na pedra logo acima da porta de entrada, mas está tão gasta que é difícil de ler, — disse Pelorat.

— Sabe que edifício é esse, Janov?

— Um tipo de instituição financeira. Pelo menos, acho que uma das palavras é “banco”.

— Que é isso?

— Um edifício onde o dinheiro era guardado, retirado, invés do, emprestado...

— Um edifício inteiro só para isso? Sem computadores?

— Sem computadores.

Trevize deu de ombros. Às vezes achava a História antiga muito sem graça.

Circularam pela cidade, com uma pressa crescente, cada vez passando menos tempo nos edifícios. O ar de abandono era deprimente. O lugar parecia um esqueleto sem vida.

Estavam na zona temperada, mas Trevize teve a impressão de que podia sentir o calor do sol nas costas.

Pelorat, que estava uns cem metros à direita, exclamou de repente: — Olhe para isso!

— Não grite — advertiu Trevize, com os ouvidos doendo. — Posso ouvi-lo pelo rádio como se você estivesse pertinho de mim. Que foi Pelorat baixou a voz imediatamente e explicou:

— Este edifício é o “Palácio dos Mundos”. Pelo menos, é o que está escrito na fachada.

Trevize aproximou-se. Diante deles estava uma construção de três andares. O teto era irregular, coberto por grandes fragmentos de pedra. como se tivesse sustentado uma escultura, agora desfeita em pedaços.

— Tem certeza? — perguntou Trevize.

— Vamos entrar para confirmar.

Subiram cinco degraus baixos e largos e atravessaram um vestíbulo espaçoso. Na atmosfera rarefeita, as botas produziam um som metálico que era mais uma vibração do que um ruído.

— Agora entendo o que você quis dizer com “grandes, luxuosos e pouco práticos” — murmurou Trevize.

Penetraram em um imenso saguão. Os raios de sol entravam pelas janelas, que ficavam muito acima do piso, e iluminavam o interior de forma desigual, produzindo um grande contraste entre luz e sombra. O ar rarefeito espalhava muito pouco a luz.

No centro do saguão havia uma estátua humana, em tamanho maior que o natural, feita do que parecia ser pedra sintética. Um dos braços tinha caído. O outro estava rachado na altura do ombro e Trevize teve a impressão de que se tocasse de leve naquele braço ele também cairia. Recuou um passo, como se temesse que, se chegasse mais perto, sentir-se-ia tentado a cometer um ato de vandalismo.

— Quem será? — disse Trevize. — Não vejo nenhuma inscrição. Talvez fosse tão famoso na época que não havia necessidade de identificá-lo, mas hoje...

Pelorat estava olhando para cima e Trevize inclinou a cabeça para olhar na mesma direção. Uma das paredes estava coberta de inscrições em baixo-relevo que eram incompreensíveis para o rapaz.

— É espantoso — observou Pelorat. — Talvez tenham mais de vinte mil anos de idade, mas aqui, protegidas do sol e da umidade, ainda são legíveis.

— Não para mim — disse Trevize.

— A caligrafia é antiga e muito estilizada. Vejamos... sete... uma... duas...

A voz de Pelorat morreu em um murmúrio. Após alguns momentos, ele falou de novo.

— A lista tem cinquenta nomes, a lenda diz que os Espaciais colonizaram cinquenta planetas e este edifício é chamado “Palácio dos Mundos”. A conclusão é inevitável: esses são os nomes dos cinquenta planetas dos Espaciais, provavelmente na ordem em que foram colonizados. Aurora é o primeiro e Solaria o último. Repare que existem sete colunas, com sete nomes nas primeiras seis colunas e oito nomes na última. É como se tivessem planejado um quadrado de sete por sete acrescentado o nome de Solaria à última hora. Meu palpite, Golan, é que Solaria foi colonizado depois da construção deste edifício!

— Como se chama o planeta em que estamos? Dá para saber?

— Repare, meu velho amigo, que o quinto nome da terceira coluna, o décimo nono da lista, está escrito com letras um pouco maiores. Ao que parece, quem gravou a lista quis dar pelo menos um pouco de destaque ao seu planeta natal. Além disso...

— Qual é o nome?

— Alguma coisa como Melpomenia. Para mim, é um nome totalmente desconhecido.

— Poderia ser a Terra?

Pelorat sacudiu a cabeça com veemência, mas o outro não pôde ver o gesto por causa do capacete. Ele disse:

— Nas lendas antigas, a Terra recebe vários nomes diferentes. Como você sabe, Gaia é um deles. Erda é outro. Todos são curtos. Não conheço nenhum nome comprido para a Terra, nem nenhum que se pareça com uma versão mais curta de Melpomenia.

— Então estamos em Melpomenia e não estamos na Terra.

— Isso mesmo. Além disso, como eu ia dizendo, uma indicação ainda mais direta do que as letras grandes é o fato de que as coordenadas de Melpomenia são 0, 0, 0. É de se esperar que a origem das coordenadas esteja neste planeta, já que aqui é que se encontra a lista.


— Coordenadas? — repetiu Trevize, interessado. — Então a lista também dá as coordenadas dos planetas?

— Existem três números ao lado de cada nome e eu presumo que sejam coordenadas. Que mais poderiam ser?

Trevize não respondeu. Abriu um pequeno compartimento na parte do traje espacial que cobria sua coxa direita e tirou um pequeno aparelho que era ligado por um fio ao interior do compartimento. Levantou-o à altura dos olhos e focalizou a inscrição na parede, as grossas luvas tornando difícil uma tarefa que normalmente não levaria mais que um momento.

— Uma câmara? — perguntou Pelorat sem necessidade.

— Vou transmitir a imagem diretamente para o computador da nave — disse Trevize.

Tirou várias fotografias de diferentes ângulos e depois disse:

— Espere! Preciso subir um pouco. Ajude-me, Pelorat. Pelorat juntou as mãos como se fossem um estribo, mas Trevize sacudiu a cabeça.

— Assim você não vai agüentar o meu peso. Fique de quatro. Pelorat obedeceu. Trevize guardou a câmara de volta no compartimento, subiu nas costas do amigo e daí passou para o pedestal. Empurrou a estátua para verificar se estava firme. Colocou o pé no joelho dobrado e usou-o como base para tomar impulso e alcançar o ombro do lado sem braço. Apoiando o bico da bota em uma protuberância do peito, conseguiu finalmente, depois de várias tentativas, sentar-se no ombro. Para aqueles indivíduos, mortos há muitos séculos, que haviam reverenciado a estátua e o que ela representava, a atitude de Trevize teria parecido uma blasfêmia; o rapaz tinha consciência disso, tanto que sentou-se na beirada do ombro, pouco à vontade.

— Você vai cair e se machucar! — gritou Pelorat, preocupado.

— Não vou cair e a única coisa que está doendo são os meus ouvidos.

Trevize ligou de novo a câmara e tirou várias fotografias. Depois, guardou a câmara e desceu com cuidado para o pedestal. Pulou para o chão e aparentemente a vibração produzida pelo salto foi demais para a velha estátua, pois o outro braço se desprendeu e caiu no chão, partindo-se em vários pedaços. A queda não produziu praticamente nenhum ruído.

Trevize levou um grande susto; seu primeiro impulso foi procurar um lugar para esconder-se antes que o vigia viesse ralhar com ele. Interessante, pensou, depois de acalmar-se, como as memórias da infância voltavam depressa em uma situação como aquela, em que havia quebrado acidentalmente uma coisa valiosa. A sensação durou apenas um momento, mas deixou-o abalado.

A voz de Pelorat era hesitante, como convinha a alguém que acabava de testemunhar e mesmo de participar de um ato de vandalismo, mas ele conseguiu encontrar palavras de conforto.

— Não... não tem importância, Golan. O braço já devia estar mesmo para cair...

Como que para demonstrar o que estava afirmando, apanhou um dos pedaços que estavam espalhados no chão. Olhou para ele e exclamou:

— Golan, venha cá!

Trevize aproximou-se e Pelorat, apontando para o pedaço de pedra, que havia pertencido à parte superior do braço, disse:

— Que é isso?

Trevize olhou. Havia uma mancha esverdeada na pedra. Esfregou-a com o dedo e ela saiu com facilidade.

— Parece musgo — disse.

— A vida sem pensamentos a que você se referiu?

— Não sei até que ponto é verdade. Bliss provavelmente diria que isto também tem um pouquinho de consciência... o que não é vantagem, pois para ela até as pedras têm consciência...

— Será que é esse musgo que está fazendo a pedra se esfarelar? — perguntou Pelorat.

— Eu não ficaria admirado se isso fosse verdade. O planeta tem muito sol e um pouco de água. Metade da atmosfera é constituída por vapor d’água; o resto é nitrogênio e gases inertes. Muito pouco dióxido de carbono, o que nos levaria a supor que não existe vida vegetal... mas pode ser que quase todo o carbono se tenha combinado com a crosta rochosa. Se a pedra da estátua possui carbonatos, talvez o musgo consiga decompô-la secretando ácido, o que liberaria o dióxido de carbono de que ele precisa para viver. Talvez estejamos diante da forma de vida dominante do planeta nos dias de hoje.

— Fascinante! — exclamou Pelorat.

— Pode ser que sim — concordou Trevize —, mas não responde às nossas perguntas. As coordenadas dos planetas dos Espaciais estão mais próximas do que estamos procurando, mas o que queremos na verdade são as coordenadas da Terra. Se não estão aqui, pode ser que estejam em outro lugar deste palácio... ou em outro edifício. Vamos, Janov.

— Você sabe... — começou Janov.

— Não, não — interrompeu Trevize, impaciente. — Deixe para depois. Temos que ver o que mais existe neste edifício. Está ficam cada vez mais quente.

Olhou para um pequeno termômetro que havia nas costas da luva esquerda.

— Vamos, Janov.

Exploraram os aposentos do palácio, pisando de leve, não para evitar fazer barulho, já que não havia ninguém para ouvi-los, mas para que as vibrações não voltassem a causar danos.

Os passos levantavam alguma poeira, que assentava rapidamente, graças à atmosfera rarefeita, e deixavam pegadas bastante nítida no chão.

Ocasionalmente, em algum canto escuro, um dos dois apontava em silêncio para mais uma colônia de musgo. A presença de vida, ainda que primitiva, parecia atenuar um pouco a sensação sufocante de caminhar em um mundo morto, especialmente um mundo que, como as ruínas atestavam, havia abrigado, no passado remoto, uma civilização extremamente sofisticada. De repente, Pelorat observou:

— Acho que aqui deve ter sido uma biblioteca. Trevize olhou em torno, curioso. Havia prateleiras e mais prateleiras, todas repletas de pequenas caixas. Estendeu a mão para uma delas e a abriu com cuidado. No interior havia vários discos. Eram bastante espessos e pareciam quebradiços.

— Incrivelmente primitivos — observou.

— Devem ter milhares de anos — replicou Pelorat, como que desculpando os antigos melpomenianos pelo atraso tecnológico.

Trevize apontou para a lombada da caixa, onde estavam alguns caracteres escritos na caligrafia elaborada dos antigos habitantes.

— É o título? Pode traduzir para mim? Pelorat examinou o texto.

— Não tenho bem certeza, meu velho amigo. Uma das palavras se refere à vida microscópica. Acho que quer dizer “micro-organismo”. O resto devem ser termos técnicos que eu não entenderia mesmo que estivessem escritos em galáctico padrão.

— Provavelmente — disse Trevize, de mau humor. — E não nos serviriam para nada mesmo que você conseguisse entendê-los. Não estamos interessados em germes... faça-me um favor, Janov. Dê uma olhada nos livros e veja se encontra algum com um título interessante. Enquanto isso, vou examinar esses aparelhos de leitura.

— É isso o que são? — perguntou Pelorat, admirado.

Eram móveis de forma cúbica, que serviam de suporte para telas inclinadas, ao lado das quais havia uma prancha que tanto podia servir para descansar o cotovelo como para apoiar um eletrobloco de notas... se é que havia eletroblocos em Melpomenia. Trevize disse:

— Se isto é uma biblioteca, tem que haver algum tipo de aparelho de leitura. Essas coisas aqui parecem promissoras...

Limpou com o dedo a poeira da tela e constatou, aliviado, que a tela, fosse qual fosse o material de que era feita, permanecia inteira mesmo depois de ter sido tocada. Experimentou os botões, um após outro. Nada aconteceu. Tentou outra leitora, e mais outra, com o mesmo resultado negativo.

Não era nenhuma surpresa. Mesmo que o aparelho ainda estivesse em condições de funcionar depois de vinte mil anos de exposição à umidade, havia a questão da fonte de energia. Qualquer forma de energia armazenada tinha uma tendência para vazar e esgotar-se, mais cedo ou mais tarde. Era um dos aspectos de uma lei universal, a segunda lei da termodinâmica.

Pelorat estava atrás dele.

— Golan?

— Sim?

— Achei um livro que deve ser interessante...

— Sobre que assunto?

— Acho que é sobre a história dos voos espaciais.

— Perfeito... mas não nos adiantará de nada se eu não conseguir fazer esta leitora funcionar.

— Podemos levar o livro para a nave.

— Certamente não serviria na leitora de bordo.

— Isso tudo é mesmo necessário, Golan? Se nós...

— Sim, é necessário, Janov. Não me interrompa. Estou tentando decidir o que fazer. Posso tentar alimentar esta leitora com eletricidade. Talvez seja tudo o que ela precisa para funcionar.

— Onde vai arranjar a eletricidade?

— Vejamos...

Trevize sacou as duas armas, examinou-as por um momento e depois guardou o desintegrador de volta no coldre. Abriu o compartilhamento de carga do chicote neurônico e estudou o marcador de nível. Estava no máximo.

Trevize deitou-se no chão, arrastou-se para trás da leitora (continuava achando que o aparelho só podia ser uma leitora) e tentou empurrá-la para a frente. O móvel se deslocou um pouco e Trevize procurou interpretar o que estava vendo. Um daqueles cabos tinha que ser o cabo de alimentação. Ah, só podia ser o que saía da parede. Não havia nenhuma tomada. (Como se faz para compreender os artefatos de uma cultura alienígena quando os componentes mais prosaicos não funcionam da forma esperada?) Puxou o cabo de leve e depois com mais força. Nada aconteceu. Apertou a parede nas proximidades do cabo e depois torceu o cabo perto da parede. Nada. Voltou a atenção para o lugar em que o cabo entrava na parte traseira da leitora, mas também não descobriu nada de útil.

Apoiou-se no chão com uma das mãos para levantar-se e quando se pôs de pé viu que o cabo estava frouxo. Não tinha ideia do que havia feito para soltá-lo.

O cabo não parecia partido. A extremidade era lisa e no lugar da parede de onde ele havia saído não tinha ficado nenhuma marca. Pelorat disse, em voz baixa:

— Golan; posso...

Trevize silenciou-o com um gesto.

— Agora não, Janov. Por favor!

De repente, percebeu que a luva da mão esquerda estava manchada de verde. Devia haver um pouco de musgo atrás da leitora. A luva parecia um pouco úmida, mas secou enquanto o rapaz olhava para ela e a mancha mudou de cor; tornou-se castanha.

Trevize examinou de perto a ponta do cabo e descobriu que havia dois orifícios.

Sentou-se no chão e abriu o compartimento de carga do chicote neurônico. Soltou um dos fios de ligação e introduziu-o em um dos furos. Quando tentou arrancá-lo de novo, viu que estava preso, como se houvesse algum tipo de retentor dentro do cabo. Soltou o outro fio e introduziu-o no outro furo. Era possível que o que havia feito fosse suficiente para alimentar o aparelho com energia elétrica.

— Janov — disse —, você está acostumado a lidar com todos os tipos de máquinas de leitura. Veja se descobre como se coloca esse livro na leitora.

— Você acha mesmo que é pre...

— Por favor, Janov, não faça perguntas desnecessárias. Temos que andar depressa. Se ficar quente demais lá fora, seremos obrigados a passar a noite aqui.

— O livro deve entrar aqui — disse Janov —, mas...

— Ótimo — disse Trevize. — Se é uma história dos voos espaciais, deve começar com a Terra, pois foi na Terra que os voos espaciais foram inventados. Vamos ver se essa coisa está funcionando.

Pelorat, um pouco de má vontade, introduziu o livro no receptáculo e começou a examinar as inscrições que havia ao lado dos controles, tentando descobrir como funcionavam.

Enquanto esperava, Trevize começou a falar, em parte para aliviar a tensão que estava sentindo.

— Acho que também deve haver robôs neste mundo... e muito bem conservados, graças à atmosfera rarefeita. O problema é que a fonte de alimentação deve ter se esgotado há muito tempo. Mesmo que conseguíssemos energizar de novo os robôs, em que estado estará o cérebro deles? Alavancas e engrenagens podem durar milhares de anos, mas os microcircuitos e outros componentes de um cérebro artificial devem ser muito mais delicados. Provavelmente estão totalmente estragados. Mesmo que alguns ainda funcionem, talvez não saibam muita coisa a respeito da Terra. Por que os fabricantes...

— A leitora está funcionando, Golan. Observe.

A tela da leitora começou a brilhar fracamente na semiobscuridade. Trevize aumentou um pouco a potência do chicote neurônico e o brilho ficou mais forte. Como não havia muito ar para espalhar a luz, os objetos que não estavam iluminados diretamente pelo sol ficavam no escuro, o que tornava mais fácil observar a tela. Mesmo assim, a imagem era indistinta.

— Está tudo fora de foco — queixou-se Trevize.

— Eu sei — disse Pelorat —, mas isso é o melhor que consegui. Acho que foi o livro que se deteriorou.

As sombras iam e vinham na tela. De vez em quando, era possível entrever algumas palavras escritas. A imagem ficou nítida por um momento e depois saiu novamente de foco.

— Volte um pouco, Janov — disse Trevize.

Pelorat já estava mexendo nos controles. Voltou um pouco atrás e conseguiu encontrar uma página legível.

Trevize tentou ler o que estava escrito mas teve que desistir, frustrado.

— E você, consegue entender, Janov? — perguntou.

— Mais ou menos — respondeu Janov, olhando para a tela com os olhos semicerrados. — É a respeito de Aurora. Disso eu tenho certeza. Acho que fala da primeira expedição hiperespacial... pelo menos, menciona “os pioneiros no espaço”...

Virou a página e a imagem ficou novamente fora de foco. Afinal disse:

— Todos os trechos que consegui ler tratavam dos planetas dos Espaciais, Golan. Nem uma palavra a respeito da Terra.

— Nem uma palavra — repetiu Trevize, em tom irritado. — Todas as informações a respeito da Terra devem ter sido apagadas. Como em Trantor. Desligue essa coisa.

— Golan, isso não tem importância, porque... — começou Pelorat, desligando a máquina.

— Porque podemos procurar em outras bibliotecas? Também não vamos encontrar nada. Eles fizeram um serviço bem feito. Você sabe que...

Enquanto falava, Trevize tinha olhado para Pelorat, e agora sua expressão era uma mistura de medo e repugnância.

— Que foi que houve com o visor do seu capacete? — perguntou.

67

Instintivamente, Pelorat passou a mão enluvada no visor e depois olhou para ela.

— O que é isso? — exclamou, intrigado. Quando levantou os olhos, acrescentou, em tom preocupado: — Também há alguma coisa estranha com o seu visor, Golan.

Trevize olhou em volta, à procura de um espelho. Não encontrou nenhum e mesmo que encontrasse teria precisado de mais luz. Murmurou:

— Venha para a luz, depressa, Pelorat.

Puxou o companheiro para um lugar iluminado pelos raios de sol que entravam pela janela mais próxima. Podia sentir o calor do sol nas costas, apesar do efeito isolante do traje espacial.

— Olhe para o sol, Janov, e feche os olhos.

Logo percebeu o que havia de errado com o visor. No ponto em que o vidro se encontrava com o tecido metalizado do traje, havia uma grossa camada de musgo, que formava uma espécie de moldura. Trevize sabia que o seu capacete devia estar com o mesmo aspecto.

Passou o dedo no capacete de Pelorat e o musgo se desprendeu, manchando de verde o dedo da luva. Diante dos olhos do rapaz, o musgo, banhado pelos raios do sol, pareceu tornar-se mais seco e mais duro, até mudar de cor, assumindo uma tonalidade castanha. Esfregou com força as bordas do visor de Pelorat, procurando arrancar todos os vestígios do musgo.

— Faça a mesma coisa comigo, Janov — pediu. Algum tempo depois, disse:

— Meu capacete está limpo? Ótimo. O seu também... Vamos embora. Acho que não há mais nada para fazer aqui.

Fazia um calor desagradável na cidade abandonada. O sol se refletia nas construções de pedra clara, fazendo doer a vista. Trevize caminhava com os olhos semicerrados, escolhendo, sempre que possível, o lado da sombra. Parou um instante para examinar uma fenda que havia na fachada de um dos edifícios, uma fenda da largura do seu dedo mínimo enluvado. Introduziu o dedo mínimo na fenda, murmurou “musgo” e saiu da sombra para examinar o dedo à luz do sol.

— O que limita o crescimento desse fungo é a quantidade de dióxido de carbono no ambiente — explicou. — Ele se desenvolve de preferência nas pedras calcárias em decomposição. Nós somos uma boa fonte de dióxido de carbono, talvez uma fonte mais rica que qualquer outra neste planeta quase morto. Provavelmente, um pouquinho de gás vaza pela junta do visor.

— Por isso é ali que o musgo se instala.

— Exatamente.

A caminhada de volta até a nave pareceu muito mais longa e, naturalmente, sentiram muito mais calor que na caminhada que haviam feito ao amanhecer. Quando chegaram à nave, porém, verificaram que ainda estava na sombra; pelo menos nisso os cálculos de Trevize tinham sido corretos.

— Veja! — exclamou Pelorat.

Trevize olhou. As bordas da escotilha estavam cobertas de musgo.

— Outro vazamento? — sugeriu Pelorat.

— Isso mesmo. Uma quantidade insignificante, tenho certeza, mas esse musgo parece ser melhor indicador de traços de dióxido de carbono do que qualquer outra coisa que eu conheço. Os esporos devem estar em toda parte e assim que encontram umas poucas moléculas de gás carbônico, começam a se dividir.

Ajustou o transmissor de rádio para o comprimento de onda da nave e chamou:

— Bliss! Está me ouvindo?

A moça respondeu imediatamente.

— Estou! Prontos para entrar? Alguma novidade?

— Estamos prontos para entrar — disse Trevize —, mas não abra a escotilha. Vamos abri-la daqui de fora. Repito: não abra a escotilha.

— Por que não?

— Bliss, faça o que estou pedindo, está bem? Depois eu explico. Trevize sacou o desintegrador, ajustou-o para intensidade mínima e depois ficou olhando para a arma, indeciso. Nunca tinha usado o desintegrador em intensidade mínima. Olhou em torno. Não havia nada suficientemente frágil para um teste adequado.

Afinal, na falta de ideia melhor, apontou-o para a encosta rochosa em cuja sombra estava o Estrela Distante. O alvo não ficou incandescente. Apalpou o lugar onde havia atirado. Estava quente? O isolamento térmico do traje espacial tornava impossível qualquer conclusão definitiva.

Hesitou de novo, mas pensou que o casco da nave teria que ser pelo menos tão resistente quanto a encosta. Voltou o desintegrador para a borda da escotilha e apertou o gatilho, prendendo a respiração.

Instantaneamente, uma faixa de musgo de alguns centímetros de comprimento mudou de cor, tornando-se castanha. O rapaz agitou a mão nas proximidades da escotilha e a leve brisa resultante foi suficiente para fazer com que os restos escurecidos do musgo se transformassem em uma nuvem de pó.

— Deu certo? — perguntou Pelorat, em tom ansioso.

— Deu certo — respondeu Trevize. — Transformei o desintegrador em um raio de limpeza.

Com um movimento circular, fez o calor percorrer toda a borda da escotilha. O efeito foi imediato. Todo o verde desapareceu. Trevize deu uma pancada na escotilha e uma poeira castanha se desprendeu, uma poeira tão fina que ficou flutuando no ar.

— Acho que agora podemos entrar — disse Trevize.

Usando o rádio de pulso, transmitiu o código que ligava o mecanismo de abertura da escotilha. Quando a escotilha ainda estava aberta pela metade, disse para o companheiro:

— Não fique aí parado, Janov. Entre logo. Não espere a escada descer. Suba!

Trevize subiu atrás e banhou novamente a borda da escotilha com o calor da arma. Fez o mesmo com a escada depois que ela desceu. Transmitiu então o sinal para fechar a escotilha e continuou usando o desintegrador até que ela se fechasse totalmente.

— Já entramos, Bliss — disse para a moça. — Vamos ficar aqui alguns minutos. Continue sem fazer nada!

— Você está bem? — perguntou Bliss. — E Pel?

— Estou aqui, Bliss — disse Pelorat. — Está tudo bem. Não se preocupe.

— Não vou me preocupar, Pel, mas vocês me devem uma explicação.

— Está prometido — disse Trevize, acendendo a luz da câmara de descompressão.

Os dois amigos olharam um para o outro. Trevize disse:

— Estamos bombeando para fora o máximo possível de ar do planeta, de modo que é melhor ter um pouco de paciência.

— E o ar da nave? Não vai deixá-lo entrar?

— Ainda não. Estou tão ansioso quanto você para me ver livre deste traje, Janov. Só quero ter certeza de que estamos livres de todos os esporos que entraram junto conosco na câmara.

Trevize apontou a arma para a junção entre a escotilha interna e o casco da nave e aplicou o calor metodicamente ao longo do chão, subindo pela parede, dando a volta pelo teto e descendo do outro lado.

— Agora você, Janov.

Pelorat agitou-se nervosamente e Trevize disse:

— Você pode sentir um pouco de calor, mas não deve passar disso. Se começar a incomodá-lo, é só dizer.

Fez o raio invisível banhar o visor, concentrando-se principalmente nas bordas. Depois, foi a vez do resto do traje.

— Levante os braços, Janov — murmurou. Depois: — Apóie-se no meu ombro e levante um pé. Preciso limpar as solas. Agora o outro. Está muito quente?

— O suficiente para me fazer suar, Golan.

— Então deixe-me provar meu próprio remédio. Segure a arma.

— Nunca usei um desintegrador na minha vida.

— Pois desta vez é preciso, Segure firme e, com o polegar, comprima esse pequeno botão. Depois, aperte o gatilho e mantenha-o apertado. Certo. Aponte para o meu visor. Mantenha o raio em movimento, Janov, não o deixe parado muito tempo no mesmo lugar. Agora limpe o resto do capacete, e depois o pescoço e o peito.

Continuou a orientar o amigo até que todo o seu corpo tivesse sido submetido ao raio de calor. A essa altura, estava transpirando abundantemente. Apanhou a arma de volta e examinou o marcador de energia.

— Já usamos mais da metade da carga — disse, apontando o desintegrador para uma das paredes da câmara de descompressão.

Apertou o gatilho e varreu a parede de ponta a ponta. Depois, fez o mesmo com as outras paredes, o teto e o piso. Repetiu a manobra até a que arma estivesse totalmente descarregada. Quando terminou, o próprio desintegrador tinha esquentado visivelmente, por passar tanto tempo ligado. Ele guardou a arma no coldre.

Só então foi que Trevize transmitiu o sinal de código que fazia abrir a escotilha interna. Ouviu com satisfação o ruído do ar entrando na câmara. As correntes de convecção esfriariam o traje espacial muito mais depressa que se ele tivesse que perder calor apenas por radiação. Podia ser impressão, mas imediatamente sentiu-se melhor.

— Tire o seu traje, Janov, e deixe-o aqui na câmara — disse para o amigo.

— Se não se importa, a primeira coisa que vou querer vai ser um banho — disse Pelorat.

— Não senhor. Antes disso, antes mesmo de esvaziar a bexiga, você vai ter que falar com Bliss.

Bliss estava à espera deles, naturalmente, com uma expressão preocupada no rosto. Ao lado dela, de olhos arregalados, segurando com força no seu braço esquerdo, estava Fallom.

— O que aconteceu? — perguntou Bliss, muito séria. — O que é que vocês estavam fazendo?

— Tentando evitar que a nave seja contaminada — explicou Trevize. — Vamos ter que ligar a luz ultravioleta. Traga os óculos escuros, por favor.

Depois que a iluminação ultravioleta foi ligada, Trevize começou a tirar as peças de roupa, uma por uma, e a sacudi-las diante da luz.

— É apenas precaução. Faça o mesmo, Janov. Bliss, vou ter que ficar totalmente despido. Se isso vai deixar você constrangida, pode esperar no seu quarto.

— Não vou ficar constrangida — disse Bliss. — Tenho uma boa ideia de como é a sua anatomia. Tenho certeza de que não vou ver nada de novo... Contaminada com o quê?

— Com uma espécie que, em determinadas condições, poderia ser extremamente perigosa para a humanidade — disse Trevize, com uma indiferença forçada.

68

Estava feito. A luz ultravioleta havia cumprido seu papel. Oficialmente, de acordo com o manual que Trevize havia encontrado a bordo do Estrela Distante quando embarcara em Terminus, as lâmpadas estavam ali justamente para fins de descontaminação. O rapaz suspeitava, entretanto, de que muitos se sentiam tentados a usá-la para conseguir um belo bronzeado antes de desembarcar nos planetas em que a pele morena estava na moda.

A nave decolou e Trevize a levou para perto do sol do sistema, manobrando-a de tal forma que todo o casco fosse exposto aos raios ultravioleta.

Depois, recolheram os dois trajes espaciais que haviam sido deixados na câmara de descompressão e Trevize os examinou até se convencer de que estavam livres de qualquer contaminação.

Por fim, Bliss observou:

— Todo esse trabalho por causa do musgo... foi isso o que você disse que era, não foi, Trevize? Musgo?

— Estou chamando de musgo porque é isso que parece — disse Trevize. — Mas pouco entendo de botânica. Tudo o que sei é que é verde e precisa de muito pouca luz para viver.

— Como sabe disso?

— O musgo é sensível ao ultravioleta e não sobrevive a uma iluminação direta. Os esporos estão em toda parte, mas o musgo só se desenvolve em cantos escuros, em fendas na pedra, na parte de baixo das lajes, alimentando-se de dióxido de carbono e aproveitando a energia de fótons de luz que chegam a ele por via indireta.

— Você disse que os considera perigosos — observou Bliss.

— E com muita razão. Se tivéssemos trazido alguns esporos presos na roupa, ou se eles entrassem com uma corrente de ar, encontrariam aqui dentro um suprimento inesgotável de luz, umidade e gás carbônico.

— O dióxido de carbono constitui apenas 0, 03% da nossa atmosfera — disse Bliss.

— Para eles, pode ser mais que suficiente. Além disso, a concentração de gás carbônico no ar que expiramos é muito maior, cerca de 4%. E se o musgo crescesse nas nossas narinas, na nossa pele? E se decompusesse e inutilizasse nossa comida? E se produzisse toxinas mortais? Mesmo que conseguíssemos matar o musgo, se restassem alguns esporos, poderiam contaminar outros mundos que visitássemos. Quem sabe o mal que poderiam causar?

Bliss sacudiu a cabeça.

— A vida não é necessariamente perigosa só porque é diferente. Em caso de dúvida, você não hesita em matar...

— É Gaia que está falando — disse Trevize.

— Claro que é, mas espero que mesmo assim você me escute. O musgo se adaptou às condições locais. É por isso que utiliza a luz em pequenas quantidades, mas não resiste à iluminação direta; é capaz de sobreviver com traços de dióxido de carbono, mas pode ser que uma quantidade maior do mesmo gás seja mortal para ele. Para mim, talvez Melpomenia seja o único planeta da Galáxia em que esse musgo é capaz de sobreviver.

— Você teria preferido que eu corresse o risco? — perguntou Trevize, em tom desafiador.

Bliss deu de ombros.

— Está bem. Não precisa ficar aborrecido. Entendo o que quer dizer. Como Isolado que é, provavelmente não tinha escolha a não ser fazer o que fez.

Trevize abriu a boca para responder, mas foi interrompido pela voz aguda de Fallom, falando sua própria língua.

— O que é que ela está dizendo? — perguntou Trevize para Pelorat.

Pelorat começou:

— Está dizendo que...

Nesse momento, porém, Fallom aparentemente se deu conta de que o único que entendia sua língua natal era Pelorat e começou de novo, desta vez em galáctico:

— Jemby estava no lugar onde vocês estiveram? Bliss sorriu e disse, em tom orgulhoso:

— Ela não está falando galáctico que é uma gracinha? E em tão pouco tempo...

Trevize falou em voz baixa:

— Tente explicar a ela, Bliss, que não encontramos nenhum robô no planeta.

— Deixe que eu explico — disse Pelorat. — Venha, Fallom. — Colocou o braço no ombro da criança. — Vamos até o quarto que eu arranjo outro livro para você ler.

— Um livro? Sobre Jemby?

— Não exatamente...

A porta se fechou atrás dos dois.

— Sabe de uma coisa? — disse Trevize, olhando de mau humor para a porta fechada. — Estamos perdendo tempo bancando as babás dessa criança.

— Perdendo tempo? De que forma isso interfere com a sua busca do planeta Terra, Trevize? De nenhuma forma. Por outro lado, essa criança precisa de amor, de carinho, de dedicação. Você não compreende?

— É Gaia que está falando de novo.

— Vamos ser práticos, então, Trevize. Visitamos três planetas dos Espaciais e não conseguimos nada de útil.

— É verdade.

— Na realidade, em cada um deles tivemos que enfrentar um perigo diferente, não é mesmo? Em Aurora, eram cachorros selvagens; em Solaria, homens estranhos e perigosos; em Melpomenia, um musgo ameaçador. Ao que parece, portanto, quando um mundo, habitado ou não por seres humanos, fica entregue à própria sorte, acaba por tornar-se perigoso para a comunidade interestelar.

— Você não deve generalizar.

— Por que não? Três em três me parece uma amostra bastante expressiva.

— E quais as consequências disso, Bliss?

— Vou lhe contar. Preste atenção. Se você tem milhões de mundos interagindo na Galáxia, como acontece na prática, e se cada um desses mundos é habitado exclusivamente por Isolados, como sabemos que é verdade, então, nesses mundos, os seres humanos são a espécie dominante e podem impor sua vontade às espécies vivas não-humanas, aos seres inanimados e até mesmo a outros seres humanos. A Galáxia é, portanto, um organismo bastante desorganizado e primitivo. Não funciona direito como unidade. Entende o que quero dizer?

— Entendo o que está tentando dizer... mas isso não significa que irei concordar com você quando terminar.

— Limite-se a escutar. Concorde ou não, como quiser, mas escute. A Galáxia na realidade não passa de uma proto Galáxia Viva, e quanto menos proto e mais Galáxia Viva, melhor. O Império Galáctico era um passo no sentido da unificação da Galáxia; quando ele caiu, seguiu-se um período de crise. A Confederação da Fundação foi uma nova tentativa. O mesmo se pode dizer do Império do Mulo. Assim também o Império que a Segunda Fundação está planejando. Entretanto, mesmo que não houvesse impérios nem confederações; mesmo que todos os mundos estivessem em permanente conflito, pelo menos estariam interagindo, ainda que de modo hostil. De alguma forma, ainda estariam unidos e portanto não seria o pior caso de todos.

— Qual é então o pior de todos os casos?

— Você sabe qual é, Trevize. Você viu o resultado. Se um mundo habitado por seres humanos rompe as ligações com o resto da Galáxia, se deixa de interagir com os outros mundos habitados, acaba por se tornar uma força... maligna.

— Um câncer, então?

Exatamente. Não é isso que é Solaria? Para os solarianos, todos os outros mundos são inimigos. No próprio planeta, os indivíduos não se toleram mutuamente. Você viu as consequências. Por outro lado, se os seres humanos abandonam um planeta, com eles desaparecem os últimos vestígios de disciplina. A disputa se torna irracional, como no caso dos cachorros, ou é substituída por uma força elementar, como aconteceu com o musgo. A conclusão só pode ser uma: quanto mais próxima está da Galáxia Viva, melhor é a sociedade. Então por que parar no meio do caminho?

Trevize ficou em silêncio por alguns momentos, olhando para Bliss. Depois, disse:

— Estou tentando ver as coisas do seu ponto de vista. O que não entendo é por que você parece pensar que se um pouquinho de uma coisa é bom, muito deve ser melhor ainda e uma grande quantidade deve ser maravilhoso... Não foi você mesma que observou que é possível que o musgo esteja acostumado a uma pequena concentração de dióxido de carbono e que uma concentração maior talvez possa até matá-lo? Um homem de dois metros de altura está mais bem equipado que um de metro, mas também leva vantagem em relação a um homem com três metros de altura. Se aumentarmos um rato até que ele fique do tamanho de um elefante, ele não sobreviverá muito tempo. O mesmo acontecerá se reduzirmos um elefante ao tamanho de um rato.

“Existe um tamanho natural, uma complexidade natural, uma medida ideal para tudo, desde um átomo até uma estrela; isto certamente se aplica a seres vivos e a sociedades humanas”. Não digo que o velho Império Galáctico tenha sido perfeito, e posso ver muitos defeitos na Confederação da Fundação, mas não estou preparado para afirmar que, se o Isolamento total é mau, a Unificação total tem que ser boa. Os dois extremos podem ser igualmente indesejáveis e um Império Galáctico no estilo antigo, ainda que imperfeito, pode constituir afinal a melhor solução.

Bliss sacudiu a cabeça.

— Está sofismando, Trevize. Daqui a pouco, vai dizer que um vírus e um ser humano são igualmente insatisfatórios e propor uma solução intermediária... como uma colônia de fungos.

— Isso não, mas posso dizer que um vírus e um super-homem são igualmente insatisfatórios e propor uma solução intermediária... como uma pessoa comum. A verdade, porém, é que essa discussão é inútil. Terei a resposta quando encontrar a Terra. Em Melpomenia, conseguimos as coordenadas de 47 outros planetas dos Espaciais.

— Pretende visitar todos?

— Se for necessário.

— Enfrentando os perigos de cada um?

— Se for preciso para encontrar a Terra.

Pelorat tinha entrado na sala e parecia prestes a dizer alguma coisa quando foi surpreendido pela rápida troca de palavras entre Bliss e Trevize. Ficou olhando de um para outro enquanto discutiam.

— Quanto tempo vai levar? — perguntou Bliss.

— O tempo que for necessário — respondeu Trevize. — Pode ser que eu encontre o que estou procurando no próximo planeta que visitarmos.

— Ou não encontre em nenhum.

— Isso não podemos saber de antemão. Finalmente, Pelorat conseguiu uma brecha para falar.

— Para que tanto trabalho, Golan? Já temos a resposta. Trevize levantou a mão para silenciar o amigo, interrompeu o gesto no meio, olhou para Pelorat e exclamou, com os olhos arregalados:

— O quê?

— Já temos a resposta, Golan. Tentei contar-lhe pelo menos uma dúzia de vezes, mas você estava tão ocupado que...

— De que resposta está falando? Quer explicar?

— A respeito da localização da Terra. Acho que já sei onde fica a Terra.

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