Bliss entrou no quarto e perguntou:
— Trevize lhe contou que vamos dar o Salto no hiperespaço a qualquer momento?
Pelorat, que estava lendo, levantou a cabeça e disse:
— Há poucos momentos ele chegou aí na porta e anunciou: “Falta menos de meia hora!”
— A ideia não me agrada, Pel. Não gosto do Salto. Acho a sensação muito desagradável.
Pelorat pareceu levemente surpreso.
— Nunca havia pensado em você como astronauta, Bliss querida.
— Não tenho muita prática, e não estou falando apenas como Bliss. A experiência de Gaia em relação a viagens espaciais é bastante limitada. Por minha/nossa própria natureza, eu/nós/Gaia não mantemos relações comerciais ou diplomáticas com outros planetas. Mesmo assim, precisamos de alguém para guarnecer as estações espaciais...
— Como aquela em que tivemos a felicidade de nos conhecer.
— Isso mesmo, Pel — disse Bliss, em tom afetuoso. — Ou para visitar Sayshell e outros setores do espaço, por várias razões... e geralmente incógnitos. Incógnitos ou não, o fato é que temos que executar o Salto, e, naturalmente, quando uma parte de Gaia executa o Salto, Gaia inteiro sente.
— Sinto muito — disse Pel.
— Podia ser pior. Como a maior parte de Gaia não está executando o Salto, o efeito é bastante diluído. Entretanto, tenho a impressão de que sinto mais o Salto do que o resto de Gaia. Como vivo dizendo para Trevize, embora tudo o que existe em Gaia seja Gaia, as diferentes partes não são idênticas. Temos nossas diferenças e meu organismo, por alguma razão, é particularmente sensível ao Salto.
— Espere! — exclamou Pelorat, lembrando-se subitamente. — Trevize me explicou uma vez. A sensação é muito pior nas naves comuns. Nessas naves, o campo gravitacional da Galáxia desaparece quando a nave entra no hiperespaço e torna a aparecer quando ela volta ao espaço normal. É a variação súbita do campo gravitacional que produz uma sensação desagradável. Por outro lado, o Estrela Distante é uma nave gravítica. Está isolado do campo gravitacional. Assim, você não vai sentir nada, nem no início nem no final do Salto. Posso assegurar-lhe, Bliss, por experiência própria.
— É uma ótima notícia, Pel. Gostaria de ter discutido o assunto há mais tempo. Dessa forma, teria poupado a mim mesma muitas horas de preocupação.
— Existem outras vantagens — disse Pelorat, sentindo-se muito orgulhoso em seu novo papel de astronauta experiente. — As naves comuns têm que se afastar das massas grandes, como as estrelas, antes de poderem executar um Salto. Em parte, isto se deve ao fato de que quanto mais próxima estiver uma estrela, mais intenso será o campo gravitacional e mais pronunciadas as sensações do Salto. Além disso, quanto mais intenso o campo gravitacional, mais complicadas as equações que devem ser resolvidas para executar o Salto com precisão.
”Nas naves gravíticas, por outro lado, praticamente não existe a sensação do Salto. A nave dispõe de um computador muito mais avançado que o das naves comuns, que é capaz de determinar os parâmetros do Salto com extrema rapidez, por mais complexas que sejam as equações envolvidas. O resultado é que, ao invés de ter que viajar durante várias semanas no espaço comum para chegar a uma distância segura para o Salto, o Estrela Distante precisa viajar apenas dois ou três dias. Além disso, como a nave não está sujeita ao campo gravitacional, não sofre os efeitos da inércia... Confesso que esta parte eu não entendo, mas foi o que Trevize me contou... e portanto pode acelerar muito mais depressa que uma nave comum.
— Tudo isso é muito bom, Pel — disse Bliss. — Trev deve ser muito inteligente, para saber pilotar uma nave tão sofisticada.
Pelorat fez uma careta.
— Por favor, Bliss. Diga “Trevize”.
— Eu digo, eu digo. Quando ele não está, às vezes eu me distraio.
— Procure prestar mais atenção. Sabe que ele detesta ser chamado pela primeira sílaba do nome.
— Não é só isso o que ele detesta. Pel, Trevize não gosta de mim nem um pouquinho.
— Está enganada — disse Pelorat, ansioso. — Já conversei com ele a respeito. Não, não faça essa cara. Usei de toda a minha diplomacia, Bliss. Ele me garantiu que não tem nada contra você. O que acontece é que Golan não confia em Gaia e tem medo de se arrepender da decisão que tomou, escolhendo Gaia como o futuro da humanidade. Temos que dar tempo ao tempo. Aos poucos, ele aprenderá a conhecer as virtudes de Gaia.
— Espero que sim, mas não é só isso. Diga ele o que disser, Pel... e não se esqueça de que é seu amigo e fará tudo para não magoá-lo..., a verdade é que Trevize me detesta.
— Não, Bliss, não acredito.
— Só porque você me ama, não quer dizer que todos tenham que gostar de mim. Deixe-me explicar. Trev, isto é, Trevize acha que eu sou um robô.
O rosto habitualmente impassível de Pelorat assumiu uma expressão de profundo espanto. Ele exclamou:
— É inconcebível que Golan confunda você com um ser humano artificial!
— Por quê? Gaia foi colonizado com a ajuda de robôs. É um fato histórico.
— Os robôs talvez tenham ajudado, mas foram pessoas que colonizaram Gaia; gente da Terra. É essa a opinião de Golan. Já discutimos várias vezes o assunto.
— Como eu já disse a vocês dois, não há nada na memória de Gaia a respeito da Terra. Por outro lado, existe uma recordação vaga dos robôs, mesmo após três mil anos, trabalhando para completar a transformação de Gaia em um mundo habitável. Naquela época, também estávamos começando a formar a consciência planetária de Gaia. Isso levou muito tempo, Pel, e talvez seja a razão pela qual muita coisa desapareceu da nossa memória. Não é preciso que nossa história tenha sido deliberadamente mutilada, como Trevize parece pensar...
— Sim, Bliss — disse Pelorat, com impaciência —, e os robôs?
— Quando terminamos a construção de Gaia, os robôs foram embora. Não queríamos que os robôs fossem absorvidos por Gaia, pois estávamos convencidos, e ainda estamos, de que a presença de robôs é prejudicial às sociedades humanas, quer seus membros sejam Isolados, quer façam parte de um único organismo, como em Gaia. Não sei como chegamos a essa conclusão, mas é possível que ela tenha se baseado em acontecimentos tão antigos que escapam à memória de Gaia.
— Se você mesma está dizendo que os robôs foram embora...
— E se alguns ficaram? E se eu for um deles... nesse caso, poderia ter quinze mil anos de idade! É disso que Trevize suspeita.
Pelorat sacudiu a cabeça devagar.
— Trevize está errado.
— Como pode ter certeza?
— Bliss, você não é um robô!
— Como é que você sabe?
— Eu sei! Você não tem nada de artificial!
— Imagine que eu seja uma máquina tão bem-feita, sob todos os | aspectos, que seja impossível distinguir-me de um ser humano. Nesse caso, você não poderia enganar-se?
— Não acho que seja possível construir uma máquina tão perfeita.
— E se fosse possível, apesar de tudo?
— Não consigo acreditar.
— Vamos então considerar apenas uma situação hipotética. Se eu fosse um robô, como você se sentiria?
— Ora, eu... eu...
— Para ir direto ao ponto: como você se sentiria se soubesse que estava fazendo amor com um robô?
Pelorat estalou os dedos.
— Você sabe, existem muitas lendas a respeito de mulheres que se apaixonam por homens artificiais e vice-versa. Sempre achei que se tratava de mero simbolismo; nunca imaginei que pudessem ser tomadas ao pé da letra. Naturalmente, Golan e eu nunca tínhamos ouvido a palavra “robô” até pousarmos em Sayshell, mas agora, pensando no assunto, ocorreu-me que esses homens e mulheres artificiais devem ter sido robôs. Aparentemente, esses robôs realmente existiram no passado remoto. As lendas terão que ser reavaliadas...
Pelorat parou de falar e ficou com uma expressão pensativa. Bliss esperou um instante e depois bateu palmas com força. Pelorat deu um pulo.
— Pel, querido! Você está sendo evasivo. O que perguntei foi: como se sentiria se soubesse que estava fazendo amor com um robô?
Pelorat olhou para ela, pouco à vontade.
— Um robô realmente perfeito? Um robô que fosse impossível de distinguir de um ser humano?
― Isso mesmo. Na minha opinião, um robô que não pode ser distinguido de um ser humano é um ser humano. Se você fosse um robô assim, não deixaria de considerá-la como humana.
― É o que eu queria que você dissesse, Pel. Pelorat esperou um pouco e depois disse:
― Já que você ouviu o que queria, Bliss, não vai me assegurar que é um ser humano comum e que não precisamos mais lidar com atuações hipotéticas?
― Não. Não vou fazer isso. Você definiu o ser humano como um ser que tem todas as propriedades de um ser humano. Se reconhece que eu tenho todas essas propriedades, não temos mais o que discutir. Temos uma definição prática, e isso é o que importa. Afinal de con-tas, como vou saber que você não é um robô tão perfeito que não pode ser distinguido de um ser humano?
— Eu posso lhe dizer que não sou.
— Ah, mas se você fosse um robô fabricado para imitar um ser humano, poderia ser programado para me dizer que era humano, programado até mesmo para acreditar que era humano. Não, Pel, a única definição possível é a definição prática!
Bliss colocou os braços em volta do pescoço de Pelorat e beijou-o na boca. O beijo foi ficando mais apaixonado e prolongou-se até que Pelorat conseguiu dizer, com voz abafada:
— Prometemos a Trevize que não iríamos transformar esta nave em um hotel de lua de mel.
— Pel querido, não é hora de pensar em promessas!
— Sinto muito, amor. Sei que isso deve irritar você, mas nunca me deixo levar pela emoção. É um hábito arraigado e que deve incomodar bastante as outras pessoas. Nunca vivi com uma mulher que não se queixasse, vez por outra, dessa minha maneira de ser. Minha primeira esposa... não, não seria de bom gosto falar no assunto...
— Talvez não seja, mas não me incomodo. Eu também já vivi com outros homens.
— Oh! — exclamou Pelorat, chocado. Depois, vendo o sorriso nos lábios de Bliss, emendou: — Quero dizer, claro que já viveu. Nunca tive pretensões de ser o primeiro... seja como for, minha primeira mulher não gostava...
— Pois eu gosto. Acho o seu jeito de ser muito atraente.
— Você diz isso só para me agradar, mas acaba de me ocorrer outra coisa. Robô ou humana, isso não importa. Estamos de acordo. Entretanto, eu sou um Isolado. Não sou parte de Gaia. Quando fazemos amor, você está experimentando emoções fora de Gaia, que não podem ser tão intensas quanto as que você experimentaria se fosse Gaia amando Gaia.
— Seu amor me dá prazer, Pel. É tudo o que me importa.
— Mas não é só você que decide. Você é parte de um todo. E se Gaia considerar seu amor por mim uma perversão?
— Se fosse esse o caso, eu saberia, porque sou Gaia. Se sinto prazer quando estou com você, Gaia também sente. Quando fazemos amor, Gaia inteiro participa do nosso ato, em maior ou menor grau. Quando eu digo que amo você, isso quer dizer que Gaia inteiro ama você. Você parece confuso...
— Para um Isolado, Bliss, é difícil entender essas coisas.
— Talvez uma analogia o ajude a compreender. Quando você assobia uma música, o seu corpo inteiro, você como um organismo único, sente vontade de assobiar, mas a tarefa específica de assobiar é executada pelos lábios, língua e pulmões. O dedão do seu pé direito não faz nada.
— Pode bater no chão, acompanhando o ritmo.
— Isso não está ligado diretamente ao ato de assobiar. Bater com o pé no chão não é a ação em si, mas uma resposta à ação. Da mesma forma, as outras partes de Gaia podem reagir às minhas emoções e eu posso reagir às emoções de outras partes de Gaia.
— Acho que seria bobagem eu me sentir envergonhado.
— Bobagem completa.
— Mas não posso evitar um estranho senso de responsabilidade. Quanto tento fazer você feliz, na verdade estou tentando fazer felizes todos os seres de Gaia.
— Até o último átomo, Pel querido. E com muito sucesso. Você contribui para aquela sensação geral de prazer que eu deixei você sentir por alguns instantes. Suponho que sua contribuição seja pequena demais para ser medida com facilidade, mas o simples fato de saber que ela está lá deveria aumentar o seu prazer.
— Gostaria de ter certeza de que Golan está suficientemente ocupado com as manobras no hiperespaço para permanecer por um bom tempo na sala do piloto.
— Quer ir para a cama comigo?
— Quero, sim.
— Então pegue uma folha de papel, escreva “Favor não perturbar”, pendure do lado de fora da porta, e se ele quiser entrar, problema dele.
Pelorat seguiu o conselho, e foi durante os momentos agradáveis que se seguiram que o Estrela Distante executou o Salto. Nenhum dos dois teve noção do momento exato em que o Salto ocorreu; isso seria difícil, mesmo que estivessem prestando atenção.
Fazia apenas alguns meses que Pelorat havia conhecido Trevize e deixado Terminus pela primeira vez. Até então, por mais de meio século, ele havia permanecido na superfície do seu planeta natal.
Em poucos meses, pensou Pelorat, havia se transformado em um veterano do espaço. Já tinha visto três planetas do espaço: Terminus, Sayshell e Gaia. Agora, na tela do computador, estava vendo um quarto: Comporellon.
Pela quarta vez, estava um pouco desapontado. Sempre havia tido a impressão de que observar do espaço um planeta habitável significaria observar continentes cercados por oceanos; ou, no caso de mundos mais secos, lagos cercados por massas de terra.
Puro engano.
Se um mundo era habitável, além de uma hidrosfera tinha que ter uma atmosfera. Ora, havendo ar e água, tinha que haver nuvens; havendo nuvens, a superfície não podia ser totalmente visível. Assim, mais uma vez, Pelorat via diante de si um círculo esbranquiçado com ocasionais manchas azuis e castanhas.
Pensou consigo mesmo se seria possível reconhecer um planeta se uma vista de uma distância de, digamos, trezentos mil quilômetros, fosse projetada em uma tela. Como distinguir uma nuvem de outra?
Bliss olhou para Pelorat com ar preocupado.
— Que foi, Pel? Você parece triste.
— Descobri que, vistos do espaço, todos os planetas são iguais. Trevize interveio:
— E daí, Janov? Poderia dizer o mesmo de qualquer litoral de Terminus, quando visto no horizonte, a menos que você saiba o que está procurando: um certo pico de montanha ou uma ilhota com uma forma característica.
— Não é a mesma coisa — protestou Janov, aborrecido: — O que há para procurar em uma massa de nuvens?
— Observe com atenção, Janov. Se acompanhar a forma das nuvens, verá que tendem a formar desenhos simétricos em torno de um centro, localizado perto de um dos pólos.
― Qual deles? — perguntou Bliss, interessada. — Como, em relação a nós, o planeta está girando no sentido dos ponteiros do relógio, estamos olhando, por definição, para o pólo sul, Como o centro das nuvens parece estar a uns quinze graus do terminal, ou círculo de iluminação do planeta, e o eixo do planeta tem uma inclinação de 21 graus em relação à perpendicular ao plano de revolução, estamos no meio da primavera ou no meio do verão, dependendo de se o pólo está se afastando ou se aproximando do terminador. O computador poderia calcular a órbita em questão de segundos. A capital fica no hemisfério Norte, de modo que lá deve ser outono ou inverno.
Pelorat fez uma careta.
— Você é capaz de concluir tudo isso só de olhar para as nuvens?
— Não apenas isso — prosseguiu Trevize —, mas se você observar a região polar, não verá nenhuma abertura nas nuvens, como em outras partes do planeta. Na verdade, as aberturas estão lá, mas debaixo delas há gelo. É uma questão de falta de contraste.
— Ah! Já devia imaginar que os pólos estivessem cobertos de gelo — observou Pelorat.
— Nos planetas habitáveis, pelo menos, isso é a regra — explicou Trevize. — Nos planetas estéreis pode não haver água, ou podemos encontrar certos sinais indicando que as nuvens não são nuvens de água, ou que o gelo não é gelo de água. No planeta que estamos observando, esses sinais estão ausentes; o que vemos são nuvens comuns e gelo comum.
”Outra coisa que se pode notar é o tamanho da região sem aberturas aparentes nas nuvens, que é maior que a média para planetas do mesmo porte. Além disso, a luz refletida pelas nuvens é levemente alaranjada, o que significa que o sol de Comporellon é bem mais frio que o sol de Terminus. Embora Comporellon fique mais perto do sol que Terminus, isso não é suficiente para compensar a menor temperatura do seu sol. Em consequência, Comporellon é um planeta bastante frio para um mundo habitável.
— Você lê um planeta como quem lê um livro! — exclamou Pelorat, com admiração.
— Não se deixe impressionar — disse Trevize, com um sorriso. — O computador me forneceu todos os dados relevantes a respeito de Comporellon, incluindo o fato de que a temperatura na superfície é relativamente baixa. É fácil deduzir o que já se sabe. Na verdade, o planeta está à beira de uma era glacial e estaria passando por uma, se a configuração dos continentes fosse mais favorável para essa situação.
Bliss fez um muxoxo.
— Não gosto de planetas frios.
― Trouxemos agasalhos suficientes — disse Trevize.
— Não faz diferença. Os seres humanos não nasceram para viver em climas frios. Não temos grossas camadas de pelos ou penas, nem uma camada subcutânea de gordura. Se um mundo é frio, isso revela certa falta de consideração para com suas partes humanas.
— O clima de Gaia é ameno? — perguntou Trevize.
— Em sua maior parte, sim. Existem algumas regiões frias para plantas e animais adaptados ao frio, e algumas regiões quentes para plantas e animais adaptados ao calor, mas quase todo o planeta possui um clima nem muito frio nem muito quente, o que constitui o ambiente mais agradável para muitas espécies, inclusive o homem, naturalmente.
— O homem, naturalmente. Todas as partes de Gaia são iguais, mas algumas, como os seres humanos, são mais iguais que outras...
— Não seja sarcástico — disse Bliss, com um traço de irritação na voz. — O nível e intensidade da consciência são importantes. Um ser humano é uma parte mais útil de Gaia que uma pedra com o mesmo peso, e as propriedades e funções de Gaia como um todo são necessariamente programadas de modo a atender às necessidades dos seres humanos... não tanto, porém, quanto nos mundos dos Isolados. Além disso, existem ocasiões em que as atenções de Gaia se voltam para outros seres. Assim, por exemplo, de tempos em tempos Gaia precisa se preocupar com o seu interior. Não podemos nos dar ao luxo de permitir uma erupção vulcânica desnecessária, não é mesmo?
— Não — concordou Trevize. — Uma erupção desnecessária seria uma lástima.
— Você não aprova os nossos métodos, não é mesmo?
— Escute — disse Trevize. — Temos mundos que são mais frios que a média e mundos que são mais quentes; mundos cobertos de florestas e mundos que não passam de vastas savanas. Não existem dois mundos iguais, e cada um deles é capaz de sustentar milhares de espécies vivas. Estou acostumado ao clima relativamente ameno de Terminus... na verdade, já interferimos muito com o clima do planeta, quase tanto como em Gaia... mas gosto, pelo menos de vez em quando, de experimentar algo diferente. O que nós temos, Bliss, que Gaia não tem, é variedade. Se Gaia ocupar a Galáxia, será que todos os mundos da Galáxia terão o mesmo clima? A monotonia seria insuportável.
— Se a variedade for desejável, a variedade será mantida — declarou Bliss, muito séria.
— Como cortesia do comitê central? — retrucou Trevize. — Apenas o indispensável para que ninguém morra de tédio? Prefiro deixar por conta da natureza!
— Mas vocês não deixaram por conta da natureza! Todos os planetas habitáveis da Galáxia foram modificados. Cada um deles foi descoberto em um estado natural que não era o mais confortável para os seres humanos e cada um deles foi alterado para se tornar o mais próximo possível do planeta ideal. Se este mundo aqui é frio, estou certa de que é porque os habitantes não conseguiram aquecê-lo mais sem incorrerem em despesas excessivas. Mesmo assim, as regiões habitadas certamente dispõem de aquecimento. Assim, pense um pouco antes de falar a respeito das virtudes da natureza!
— Suponho que esteja falando em nome de Gaia — disse Trevize.
— Sempre falo em nome de Gaia. Eu sou Gaia.
— Se Gaia está tão certo da sua superioridade, porque pediu que eu decidisse? Por que não resolveu tudo sem mim?
Bliss fez uma pausa, como que para colocar os pensamentos em ordem. Depois, explicou:
— Porque não é prudente confiar demais em nós mesmos. É mais fácil enxergar nossas virtudes que nossos defeitos. Estamos ansiosos para fazer o que é certo; não o que nos parece certo, mas o que é certo, objetivamente, se é que existe uma certeza objetiva. Você parece ser o mais próximo da certeza objetiva que conseguimos encontrar; por isso, deixamo-nos guiar por você.
— Tão objetivamente certo — disse Trevize tristemente — que não consigo compreender minha própria decisão e saio à procura de uma justificativa para ela.
— Você vai encontrá-la — disse Bliss.
— Espero que sim.
— Na verdade, meu amigo — interveio Pelorat —, parece-me que a discussão foi vencida brilhantemente por Bliss. Por que não reconhece o fato de que os argumentos dela justificam sua decisão de entregar a Gaia o futuro da humanidade?
— Porque eu não conhecia esses argumentos quando tomei a decisão! — exclamou Trevize asperamente. — Não sabia quase nada a respeito de Gaia. Alguma coisa mais me influenciou, pelo menos inconscientemente, alguma coisa que não depende dos detalhes a respeito de Gaia, mas deve ser algo mais fundamental. É isso que preciso descobrir.
— Não fique zangado, Golan — disse Pelorat.
— Não estou zangado, estou apenas tenso. Não é fácil ser o responsável pelo destino da Galáxia.
— Compreendo o que sente, Trevize — disse Bliss —, e sinto que tenhamos sido obrigados a colocá-lo nesta situação. Quando é que vamos pousar em Comporellon?
— Daqui a três dias — disse Trevize — e só depois que pararmos em uma das estações espaciais que orbitam o planeta.
— É apenas uma formalidade, não é? — perguntou Pelorat.
— Nem tanto. Vamos ter que pedir permissão para pousar em Comporellon. A permissão pode ser concedida ou negada...
— Como pode ser negada ? — exclamou Pelorat, com indignação. — Com que direito recusariam um visto de entrada a cidadãos da Fundação? Comporellon não faz parte da Fundação?
— Sim e não. A situação é um pouco confusa e não sei exatamente qual a interpretação atual dos governantes do planeta. É possível que nos neguem permissão para pousar, mas não é provável.
— Sim, mas se isso acontecer, o que faremos?
— Ainda não sei — disse Trevize. — Vamos esperar e ver o que acontece antes de pensarmos em planos alternativos.
JÁ estavam tão perto de Comporellon que o planeta podia ser visto como um disco, mesmo sem a ajuda do telescópio. Era preciso o telescópio, porém, para enxergar as estações espaciais. Ficavam mais distantes do planeta do que quase todos os outros objetos em órbita e eram muito bem iluminadas.
Como o Estrela Distante estava viajando na direção do pólo Sul do planeta, metade do globo estava iluminado. As estações espaciais do lado da sombra eram visíveis como pontos luminosos. Formavam um arco em torno do planeta. Havia seis estações (certamente haveria mais seis na parte iluminada), igualmente espaçadas e girando em torno do planeta com a mesma velocidade.
Pelorat parecia impressionado com o espetáculo. Perguntou a Trevize:
— Existem outras luzes mais próximas do planeta. Sabe o que são?
— Não conheço muita coisa a respeito de Comporellon, de modo que é difícil de dizer. Algumas podem ser fábricas orbitais, outras laboratórios, observatórios ou mesmo cidades. Alguns planetas preferem manter todos os objetos em órbita, com exceção das estações espaciais, sem iluminação externa. É o que acontece em Terminus, por exemplo. Pode ver que Comporellon é mais liberal, pelo menos sob esse aspecto.
— Em que estação vamos parar, Golan?
— Depende deles. Mandei uma mensagem pedindo permissão para pousar em Comporellon e estou aguardando instruções. Tudo depende do número de naves que estão na fila. Se houver várias naves esperando em cada estação, teremos que ser muito pacientes!
— Até hoje, eu só havia viajado duas vezes pelo hiperespaço — observou Bliss. — Das duas vezes, não fui mais longe que Sayshell. É a primeira vez que me afasto tanto de Gaia!
Trevize olhou para ela.
— O que quer dizer com isso? Você não é Gaia?
O rosto de Bliss revelou uma leve irritação, mas logo a moça deu um risinho quase envergonhado.
— Tenho que admitir que desta vez você me pegou, Trevize. A palavra “Gaia” tem dois significados diferentes. Pode ser usada para designar um certo planeta, um ser inanimado de forma quase esférica que gira no espaço. Pode também se referir a um ser vivo do qual esse planeta é parte. Na verdade, deveríamos usar palavras diferentes para essas duas entidades, mas nós, gaianos, sempre sabemos a qual dos dois “Gaias” estamos nos referindo. Por outro lado, para vocês, Isolados, essa ambiguidade pode ser motivo de confusão.
— Pois então — disse Trevize —, admitindo que você está a milhares de anos-luz do planeta Gaia, você ainda é parte do organismo Gaia?
— Sim, ainda sou parte do organismo Gaia.
— Sem nenhuma atenuação devido à distância?
— Sem nenhuma atenuação. Já lhe disse que minha ligação com o planeta através do hiperespaço constitui uma complicação adicional, mas continuo a ser Gaia.
— Já lhe ocorreu que Gaia possa vir a tornar-se uma espécie de kraken, o monstro marinho das lendas escandinavas, com tentáculos estendendo-se por toda a Galáxia? Basta colocarem uns poucos gaianos em cada um dos mundos habitados e terão a Galáxia nas mãos. Ei, aposto que é exatamente isso que estão fazendo! Claro, deve haver alguns gaianos em Terminus... e outros em Trantor! Onde mais?
Bliss parecia pouco à vontade.
— Já disse que não vou mentir para você, Trevize, mas também não sou obrigada a revelar toda a verdade. Existem algumas coisas que você não precisa saber, entre elas a localização e identidade de todas as partes de Gaia.
— Não tenho o direito de saber o motivo para a existência desses tentáculos, Bliss, mesmo que não saiba onde estão?
— Não, Gaia acha que não.
— Entretanto, nada me impede de especular. Em minha opinião, vocês trabalham como guardiães da Galáxia.
— Estamos ansiosos para termos uma Galáxia estável e segura; uma Galáxia próspera e pacífica. O Plano de Seldon, pelo menos na forma como foi proposto originalmente por Hari Seldon, tinha por objetivo final o surgimento do Segundo Império Galáctico, um império mais justo e estável que o primeiro. O Plano, que tem sido constantemente modificado e aperfeiçoado pela Segunda Fundação, parece estar funcionando bem até agora.
— Acontece que Gaia não deseja um Segundo Império Galáctico, não é mesmo? Vocês querem uma Galáxia viva!
— Não foi essa a sua decisão? Se tivesse optado pela Primeira ou pela Segunda Fundação, estaríamos trabalhando pela formação do Segundo Império Galáctico!
— Que mal haveria em...
O alarma do computador começou a tocar.
— Agora tenho que ir — disse Trevize. — O computador está me chamando. Deve estar recebendo instruções de Comporellon. Mais tarde continuamos a conversa.
Entrou na sala de comando, colocou as mãos no tampo da escrivaninha e descobriu que o computador já havia recebido as coordenadas da estação espacial onde deveriam atracar.
Trevize confirmou o recebimento da mensagem e sentou-se para pensar.
O Plano de Seldon! Há muito tempo que não pensava nele. O Primeiro Império Galáctico havia entrado em decadência e durante quinhentos anos a Fundação tinha crescido, primeiro em competição com o próprio Império, depois sobre as suas ruínas... tudo de acordo com o Plano.
Tinha havido a interrupção da Mula, que, por algum tempo, ameaçara reduzir o plano a farelo, mas a Fundação conseguira derrotá-lo, provavelmente com o auxílio da misteriosa Segunda Fundação e possivelmente com a ajuda do ainda mais misterioso Gaia.
Agora, o plano estava ameaçado por algo ainda mais sério que a Mula. Em vez de um novo Império, estava para surgir uma entidade nunca vista... uma Galáxia Viva. Ele próprio havia concordado com essa guinada. Por quê? Haveria alguma falha no Plano? Algum erro básico?
Por um momento, pareceu a Trevize que existia mesmo uma falha, que ele sabia qual era, que havia levado esse fato em conta ao tomar sua decisão; entretanto, a impressão desapareceu como havia surgido, deixando-o mais confuso que nunca.
Talvez não passasse de ilusão. Afinal, não conhecia nada a respeito do Plano, a não ser as premissas básicas, que se baseavam na ciência da psico-história. Ignorava tanto os pormenores quanto as equações matemáticas que Seldon havia empregado.
Fechou os olhos e tentou pensar...
Não surgiu nenhuma ideia nova.
Quem sabe com o auxílio do computador? Colocou as mãos sobre a mesa e sentiu as mãos do computador apertando as suas. Fechou os olhos e pensou de novo... . Nada.
O COMPORELIANO que subiu a bordo tinha nas mãos uma carteira holográfica que exibia com notável fidelidade a face gorducha, coberta por uma barba rala, e o identificava como A. Kendray.
Era um homem baixinho, de corpo tão roliço quanto o rosto. Tinha um jeito amável e descontraído, e olhou em torno com visível admiração.
— Como conseguiram chegar tão depressa? Só os esperávamos daqui a duas horas!
— Esta nave é um modelo novo — explicou Trevize, em tom polido mas impessoal.
Kendray não devia ser tão inocente quanto aparentava. Entrou na sala de comando e foi logo perguntando:
— Gravítica?
Trevize viu que não adiantava negar o óbvio. Respondeu simplesmente:
— Isso mesmo.
— Muito interessante. Já tinha ouvido falar, mas é a primeira vez que vejo pessoalmente. Motores no casco?
— Motores no casco.
Os olhos de Kendray se voltaram para o computador.
— Os circuitos do computador também?
— Também. Pelo menos, foi o que me disseram.
— Está bem. Vou precisar da documentação da nave: número do motor, local de fabricação, código de registro, etc, etc. Deve estar tudo no computador. Aposto que ele pode me fornecer todos os dados em meio segundo.
Na verdade, o computador levou pouco mais que isso. Kendray olhou em torno.
— Vocês três são as únicas pessoas a bordo?
— Isso mesmo — respondeu Trevize.
— Animais vivos? Plantas? Alguém doente?
— Não, não e não — respondeu Trevize, secamente.
— Hum! — fez Kendray, tomando notas. — Poderia colocar sua mão aqui? Simples rotina. A mão direita, por favor.
Trevize olhou para o aparelho sem nenhuma simpatia. Seu uso estava ficando cada vez mais difundido, e ao mesmo tempo o instrumento estava ficando cada vez mais sofisticado. Era quase possível avaliar o grau de desenvolvimento de um planeta pelo modelo de microdetector utilizado nas estações espaciais. No momento, havia poucos planetas, mesmo entre os mais atrasados, que não estivessem usando algum tipo de microdetector. Tudo havia começado nos últimos anos do Império, quando os diferentes mundos, ao se libertarem do governo central, começaram a se preocupar com as doenças e microorganismos oriundos de outros planetas.
— O que é isso? — perguntou Bliss, em voz baixa, esticando o pescoço para examinar o aparelho, primeiro de um lado, depois do outro.
— Acho que é chamado de microdetector — respondeu Pelorat.
— Não tem nada de especial — acrescentou Trevize. — É apenas um instrumento que verifica automaticamente se você está abrigando em seu corpo algum micro-organismo capaz de transmitir doenças.
— Ele também classifica os micro-organismos que encontra — disse Kendray, com orgulho. — Foi fabricado aqui mesmo em Comporellon... Se não se importa, ainda preciso da sua mão direita.
Trevize introduziu a mão direita no aparelho e uma série de pequenas marcas vermelhas se deslocou no mostrador. Kendray apertou um botão e obteve uma cópia colorida das indicações do instrumento.
— Assine aqui, por favor — disse para Trevize. Trevize assinou.
— Como está minha saúde? — perguntou. — Acha que vou escapar?
— Não sou médico — respondeu Kendray —, de modo que não posso entrar em pormenores. O que sei é que o aparelho não mostrou nenhuma das marcas que fariam com que seu visto de entrada fosse recusado ou você fosse colocado de quarentena. Isso é tudo o que me interessa.
— Sorte a minha — disse Trevize, secamente, sacudindo a mão para livrar-se da leve comichão que a máquina havia deixado.
— Agora o senhor — disse Kendray para Pelorat.
Pelorat introduziu a mão com ar desconfiado e depois assinou o papel.
— E a senhora?
Momentos depois, Kendray estava olhando do aparelho para Bliss e de Bliss para o aparelho.
— Nunca vi nada parecido! Nenhum germe!
— Que bom! — exclamou Bliss, com um sorriso insinuante.
— Uma saúde invejável... — Kendray olhou para o primeiro registro e disse: — Sua identificação, Sr. Trevize.
Trevize mostrou a carteira de identidade. Kendray examinou-a e pareceu surpreso.
— Conselheiro de Terminus?
— Isso mesmo.
— Alto funcionário da Fundação?
— Exatamente. Escute, estamos com um pouco de pressa...
— É o comandante da nave?
— Sou.
— Finalidade da visita?
— Estou aqui em missão confidencial e isso é tudo o que posso lhe revelar. Compreende?
— Sim senhor. Quanto tempo pretende ficar em Comporellon?
— Não sei. Mais ou menos uma semana.
— Muito bem. E o outro cavalheiro?
— Ele é o dr. Janov Pelorat. Respondo por ele. É um famoso cientista em Terminus e veio para cá na qualidade de meu assistente.
— Entendo, senhor, mas preciso ver a carteira de identidade dele. Regulamentos são regulamentos. Espero que compreenda, senhor.
Pelorat mostrou a carteira. Kendray voltou-se para Bliss.
— E a senhora? Trevize interveio:
— Não precisa incomodá-la. Respondo por ela, também.
— Sim senhor. Basta que me mostre a carteira de identidade.
— Sinto muito, mas não tenho nenhum documento — disse Bliss.
— O que foi que a senhora disse?
— Minha amiga esqueceu os documentos em casa — disse Trevize. — Essas coisas acontecem, o senhor sabe. Mas não tem importância. Assumo total responsabilidade.
— Infelizmente, não posso permitir isso — afirmou Kendray. — A responsabilidade é minha. Não se preocupe; não deve ser difícil conseguir cópias dos documentos da jovem. Ela é de Terminus, não é?
— Não, ela não é de Terminus.
— De algum outro planeta da Fundação?
— Também não.
Kendray olhou desconfiado para Bliss e depois para Trevize.
— Nesse caso, a coisa fica mais complicada, senhor conselheiro. Pode levar mais tempo do que eu imaginava. Senhorita Bliss, vou precisar do nome do seu planeta natal e do planeta do qual é cidadã. Só vai poder desembarcar em Comporellon depois que as cópias dos documentos chegarem.
— Um momento, sr. Kendray — disse Trevize. — Não vejo nenhuma razão para a demora. Sou um alto funcionário da Fundação I estou aqui em uma missão de extrema importância. Não posso ser retido por uma questão burocrática insignificante.
— Não tenho escolha, conselheiro. Se dependesse de mim, já estariam lá embaixo, mas existe um regulamento e sou obrigado a cumpri-lo. Naturalmente, algum membro do governo de Comporellon deve es-lar à sua espera. Diga-me quem é e entrarei em contato com ele. Se ele autorizar, a moça será liberada imediatamente.
Trevize hesitou por um momento.
— Isso não seria político, Sr. Kendray. Posso falar com o seu superior imediato?
— Claro que sim, mas no momento ele está muito ocupado.
— Tenho certeza de que me receberá assim que souber que trabalho para a Fundação...
— Aqui entre nós, conselheiro, isso só servirá para piorar as coisas. Como o senhor deve saber, não fazemos parte diretamente da Fundação; Comporellon é um dos Planetas Associados. Os dirigentes fazem questão de mostrar que não somos títeres da Fundação, mas um mundo livre e independente. Meu superior será elogiado se ele negar um favor a um representante da Fundação.
Trevize fez uma careta.
— E você?
Kendray sacudiu a cabeça.
— Não tenho ambições políticas. Para mim, um elogio não significa nada. Por outro lado, detestaria perder o emprego por causa de uma bobagem.
— Sabe que, na minha posição, posso fazer muita coisa por você.
― Desculpe o atrevimento, senhor, mas acho que não pode. Não sei como dizer isso, senhor... mas é melhor que não me ofereça nada de valor. As autoridades não veem com bons olhos os funcionários que aceitam ofertas desse tipo...
— Não estava pensando em suborná-lo. Estava pensando em interceder por você, porque quando o prefeito de Terminus souber que prejudicou minha missão com sua teimosia...
— Conselheiro, estarei perfeitamente seguro enquanto cumprir o regulamento à risca. Se os membros do presidium de Comporellon ficarem em má situação com o seu prefeito, problema deles. Por outro lado, o senhor e seu amigo estão liberados. Se deixarem a srta. Bliss na estação espacial, nós nos encarregaremos de mandá-la para a superfície assim que os papéis chegarem. Se, por alguma razão, for impossível conseguir os documentos, nós a enviaremos para o planeta de origem em uma nave comercial. Nesse caso, porém, algum dos senhores terá que pagar a passagem.
Trevize observou como Pelorat havia reagido às palavras do funcionário e disse:
— Sr. Kendray, podemos conversar em particular na sala de comando?
— Está bem, mas não posso ficar muito mais tempo a bordo.
— Não vai demorar — disse Trevize.
Na sala de comando, Trevize fechou a porta de forma teatral e disse, em voz baixa:
— Já estive em muitos planetas, sr. Kendray, mas nunca vi nenhum lugar que aplicasse as leis de imigração de maneira mais obstinada, especialmente em se tratando de membros da Fundação em missão oficial...
— Mas a mocinha não é da Fundação!
— Mesmo assim.
— Conselheiro, essas coisas passam por fases. Tivemos alguns escândalos e no momento as coisas estão apertadas. Se voltar no ano que vem, talvez não haja nenhum problema, mas no momento não posso fazer nada.
— Tente, sr. Kendray — disse Trevize, em tom melífluo. — Vou apelar para os seus sentimentos, de homem para homem. Pelorat e eu estamos nesta missão há muito tempo. Eu e ele. Só nós dois. Somos bons amigos, mas falta alguma coisa, se é que me entende. Pois Pelorat conheceu aquela moça. Não preciso explicar o que aconteceu, mas resolvemos trazê-la conosco. Ela se tornou importante para nossa sanidade mental.
”O problema é que Pelorat tem uma esposa em Terminus. Eu sou livre, você entende, mas Pelorat, não. E ele chegou a uma idade em que os homens ficam... como direi?... em que os homens ficam obcecados por mulheres mais jovens. Não quer largar Bliss de jeito nenhum. Ao mesmo tempo, se a presença de Bliss for conhecida oficialmente, o velho Pelorat vai comer o pão que o diabo amassou quando voltar a Terminus.
”Ninguém será prejudicado, entende? Bliss não tem nada a ver com a nossa missão. Qual a necessidade de mencioná-la? Não pode registrar apenas o meu nome e o do dr. Pelorat? Éramos os únicos a bordo quando nossa nave partiu de Terminus. Para que mencionar a moça? Afinal de contas, ela está absolutamente livre de doenças. Você pôde constatar isso pessoalmente!
Kendray franziu a testa.
— Conselheiro, compreendo sua situação e, acredite, gostaria de ajudá-lo. Se pensa que é divertido ficar de serviço nesta estação meses a fio, está muito enganado. E aqui em cima só trabalham homens... — Sacudiu a cabeça. — Além disso, sou casado, de modo que entendo a enrascada em que o seu amigo se meteu... mas escute, mesmo que eu deixe vocês passarem, assim que descobrirem que a... que a amiguinha de vocês não tem documentos, ela vai para a cadeia, eu perco o emprego e o senhor e seu amigo vão ter muito o que explicar para as autoridades de Comporellon e de Terminus!
— Sr. Kendray, tem que confiar em mim. Assim que pousarmos em Comporellon, tudo estará bem. As pessoas que estão à minha espera são muito influentes. Se for necessário, o que acho muito pouco provável, assumirei total responsabilidade pelo que aconteceu aqui. Além do mais, recomendarei a sua promoção...
Kendray hesitou por um momento e depois disse:
— Está bem. Vou deixar a moça passar, mas fique sabendo de uma coisa: a partir deste momento, estarei planejando uma forma de livrar a cara se alguma coisa der errado. E não moverei um dedo para ajudar vocês. Acontece que eu sei como as coisas funcionam em Comporellon, vocês não sabem e este não é um lugar fácil para as pessoas que saem da linha.
— Muito obrigado, sr. Kendray — disse Trevize. — Não haverá nenhum problema. Pode ficar tranquilo.
Começaram a descida. A estação espacial havia ficado para trás, reduzida a um ponto luminoso. Em poucas horas, estariam atravessando a camada de nuvens.
Uma nave gravítica não precisava descer em espiral para frear, mas também não podia mergulhar depressa demais em direção à superfície. O fato de poder neutralizar a força gravitacional não a tornava imune à resistência do ar. A nave podia descer em linha reta, mas se não tomasse cuidado com a velocidade, arderia em chamas.
— Para onde estamos indo? — perguntou Pelorat, parecendo confuso. — Daqui de cima, tudo parece igual, meu amigo.
— Para mim também — disse Trevize. — Acontece que dispomos de um mapa holográfico oficial de Comporellon, com todos os continentes e oceanos... e também com as divisões políticas. O mapa está na memória do computador, que se encarregará de todo o trabalho. Depois de determinar a nossa posição no mapa, nos guiará direta-mente para a capital.
— Não acha arriscado irmos para a capital? Se o ambiente aqui é hostil à Federação, como aquele sujeito insinuou, na capital será ainda pior...
— Por outro lado, a capital deve ser o centro intelectual do planeta e portanto o melhor lugar para conseguirmos a informação que buscamos. Mesmo que eles não gostem da Fundação, duvido que telham coragem de expressar este sentimento abertamente. Bliss saiu do lavatório ajeitando a roupa e disse:
— Estava pensando... nesta nave todos os excrementos são reciclados?
— Não temos escolha — disse Trevize. — Quanto tempo você acha que duraria nosso suprimento de água se não reciclássemos a urina? Como acha que conseguimos nutrientes para as plantas que cultivamos a bordo? Espero que isso não estrague o seu apetite, minha eficiente Bliss.
— Por que estragaria? De onde você supõe que vem a água e a comida em Gaia, neste planeta em que estamos ou em Terminus?
— Em Gaia, os excrementos estão vivos, não estão?
— Vivos, não. Conscientes. Naturalmente, seu nível de consciência é extremamente baixo quando comparado com o nosso.
Trevize fez uma careta de desagrado, mas não insistiu no assunto. Disse:
— Vou para a sala de comando fazer companhia ao computador. Não que ele precise de mim...
— Podemos ir juntos? — perguntou Pelorat. — Ainda não me acostumei à ideia de que ele é capaz de cuidar da nave sem a nossa ajuda; de reconhecer outras naves, de evitar tempestades, de... de?
— Pois é bom ir se acostumando — disse Trevize, com um largo sorriso. — Estamos muito mais seguros com o computador nos controles do que se eu assumisse o comando... mas claro, claro, venham. Vão achar interessante.
Estavam sobrevoando o lado iluminado do planeta porque, explicou Trevize, naquele lado o computador podia identificar mais facilmente os acidentes geográficos, comparando-os com os do mapa que estava armazenado na sua memória.
— Isso é evidente — disse Pelorat.
— Nem tanto. O computador também “enxerga” no infravermelho, e portanto poderia também reconhecer os acidentes da face escura. Ocorre, porém, que as ondas infravermelhas têm comprimento maior que as de luz visível e por isso não permitem uma resolução tão boa. Em outras palavras, o computador “vê” um pouco melhor no lado claro. E sempre que posso, gosto de tornar as coisas fáceis para ele...
— E se a capital estiver no lado escuro?
— Depois que o computador descobrir nossa localização no lado iluminado, poderá levar-nos direto para a capital, mesmo que ela este ja do outro lado do planeta. Além disso, muito antes de chegarn ao nosso destino, estaremos recebendo transmissões de microondas q| nos guiarão para o espaçoporto mais conveniente. Assim, não há razão para nos preocuparmos.
— Tem certeza? — perguntou Bliss. — Estou chegando sem ne-nhuma identificação e impedida, por razões óbvias, de revelar mini origem. Que vou fazer, se pedirem meus documentos?
— Isso não vai acontecer — disse Trevize. — Todos vão pensar que seus documentos já foram examinados na estação espacial.
— Mas e se pedirem?
— Nesse caso, enfrentaremos o problema quando ele surgir. Não vamos nos preocupar com hipóteses remotas.
— Se deixarmos para resolver o problema quando ele surgir, po-dera ser tarde demais.
— Estou contando com a minha presença de espírito.
— Por falar em presença de espírito, como fez para convencer aquele homem da estação espacial?
Trevize olhou para Bliss e deixou os lábios se expandirem devagar em um sorriso que o deixou parecido com um moleque levado.
— Usei a cabeça, ora! Pelorat insistiu:
— Conte para nós, vamos!
— Custei para achar uma forma de sensibilizar o cara. Tentei intimidá-lo e nada. Suborno, nem pensar. Apelei para a lógica, para lealdade à Fundação. Nada estava dando certo, de modo que use um recurso extremo. Disse para ele você estava traindo sua esposa Pelorat.
— Minha esposa! Meu amigo, no momento eu nem estou casado.
— Eu sei disso, mas ele, não. Bliss interrompeu:
— “Esposa” deve ser o nome que vocês dão à companheira legal habitual de um homem.
— É um pouco mais que isso, Bliss — disse Trevize. — Esposa é a companheira legal, aquela que tem direitos jurídicos reconhecidos.
— Bliss, eu não tenho uma esposa — disse Pelorat, nervoso. — Já tive no passado, mas faz muito tempo... se você quisesse passar pe-las formalidades...
— Pel, Pel — disse Bliss, com um gesto de desdém —, por que eu faria uma coisa dessas? Tenho muitos companheiros que estão mais próximos de mim do que o seu braço direito do braço esquerdo. Só os Isolados se sentem alienados a ponto de terem que usar convenções artificiais como um pálido substituto para o verdadeiro companheirismo!
— Mas eu sou um Isolado, Bliss querida.
— Com o tempo, você será menos Isolado, Pel. Nunca chegará a fazer parte de Gaia, provavelmente, mas pelo menos terá muitos companheiros.
— Só quero você, Bliss.
— Isso é porque ainda não sabe de nada. Você vai ver! Durante toda a conversa, Trevize estava tentando se concentrar na tela, com uma expressão de tolerância no rosto. Tinham chegado à camada de nuvens e por um momento a tela ficou toda branca.
Hora de mudar para os detectores de microondas, pensou, ao mesmo tempo em que o computador começava a mostrar na tela os ecos de radar. As nuvens desapareceram e a superfície de Comporellon apareceu em cores falsas, os limites entre terrenos de diferente composição, um pouco difusos e trêmulos.
— É assim que vai ficar daqui para a frente? — perguntou Bliss, surpresa.
— Só até atravessarmos as nuvens. Depois, tudo volta à ser como antes.
Enquanto Trevize falava, a nave saiu das nuvens e a visibilidade voltou ao normal.
— Entendo — disse Bliss. — O que não entendo é que diferença pode fazer para o funcionário da estação espacial o fato de Pel estar (ruindo a esposa.
— O que eu disse para aquele tal de Kendray foi que se não deixasse você passar, a notícia a respeito da sua presença a bordo poderia chegar a Terminus e consequentemente à esposa de Pelorat. Isso, por sua vez, colocaria Pelorat em sérias dificuldades. Não expliquei que tipo de dificuldades, mas procurei dar a impressão de que seria algo bem desagradável. Existe uma espécie de solidariedade masculina — prosseguiu Trevize, com um sorriso — que faz com que um homem jamais revele as aventuras sexuais de outro homem. Talvez o raciocínio por trás disso seja de que quem ajuda hoje pode precisar de ajuda amanhã. Suponho que exista uma solidariedade semelhante entre as mulheres — prosseguiu, em tom um pouco mais sério —, embora, não sendo mulher, nunca tenha tido a oportunidade de observá-la de perto.
Bliss parecia horrorizada.
— Está brincando comigo? — perguntou.
— Não, estou falando sério — disse Trevize. — Não digo que o tal do Kendray tenha deixado você passar só para evitar que a esposa de Janov ficasse zangada com ele. Não, a solidariedade masculina deve ter sido apenas o pequeno reforço que faltava aos meus outros argumentos.
— Mas isso é incrível! São os regulamentos que mantêm a sociedade coesa e funcionando. Acha correto desrespeitar os regulamentos por razões fúteis?
— Ora, os próprios regulamentos às vezes são ridículos! — exclamou Trevize, tomando a defensiva. — Poucos mundos dão muita importância à passagem de estrangeiros por seu território, especialmente em períodos de paz e prosperidade, como o que estamos atravessando agora, graças à Fundação. Comporellon, por algum motivo, não segue a regra... provavelmente por causa de uma questão obscura de política interna. Por que devemos ser nós os prejudicados?
— Isso não vem ao caso. Se obedecermos apenas às leis que consideramos justas e razoáveis, nenhuma lei sobreviverá muito tempo, porque não existe nenhuma lei que alguém não considere injusta e pouco razoável. Assim, o que começa como uma pequena esperteza acaba sempre em anarquia e desastre, até mesmo para o esperto, já que ele também não consegue sobreviver ao colapso da sociedade.
— As sociedades não são tão frágeis assim. Você está falando como Gaia, e Gaia não pode compreender o que é uma associação de indivíduos livres. Muitas leis que eram justas e razoáveis quando foram criadas deixam de acompanhar a evolução da sociedade e continuam em vigor apenas por causa de inércia. Nesse caso, não é apenas desculpável, é eticamente correto desrespeitar essas leis como forma de anunciar o fato de que se tornaram inúteis, ou pior ainda, nocivas à sociedade.
— Nesse caso, até o ladrão e o assassino poderiam argumentar que estão sendo úteis à humanidade!
— Você está exagerando. No superorganismo de Gaia, existe um consenso automático quanto às regras a serem seguidas, de modo que não ocorre a ninguém a ideia de violá-las. É como se Gaia estivesse fossilizado. É claro que existe um elemento de desordem na associação livre, mas é o preço que temos que pagar pela capacidade de introduzir novidades e mudanças. No conjunto, não acho que seja um preço muito alto.
O tom de voz de Bliss ficou ligeiramente mais agudo.
— Você está muito enganado se pensa que Gaia estagnou. Nossos planos, nossos costumes, nossas leis estão sendo constantemente reexaminados. Não persistem por pura inércia. Gaia aprende através da experiência e da lógica e muda sempre que considera isso necessário.
— Ainda que seja verdade, o aprendizado deve ser lento e as mu-ilnças raras, porque em Gaia não existe nada além de Gaia. Aqui, como em todos os planetas livres, mesmo quando quase todos concordam, existem sempre uns poucos que discordam. Em alguns casos, esses poucos podem estar certos, e se eles forem muito espertos, muito persis-lentes e estiverem muito certos, conseguirão vencer a maioria e serão considerados como heróis pelas gerações futuras... como Hari Seldon, que aperfeiçoou a psico-história, desafiou com suas ideias o gigantesco Império Galáctico... e ganhou!
— Não sei como pode dizer que ele ganhou, Trevize. O Segundo Império planejado por Seldon jamais se tornará uma realidade. Em seu lugar, surgirá a Galáxia Viva.
— Tem certeza? — perguntou Trevize, de cara feia.
— A decisão foi sua, e por mais que discuta comigo a favor dos Isolados e da liberdade de que dispõem para cometer crimes e fazer tolices, existe alguma coisa nos recônditos da sua mente que o obrigou I concordar comigo/conosco/com Gaia quando tomou a sua decisão.
— O que está presente nos recônditos de minha mente — disse Trevize, num tom ainda mais desanimado — é exatamente o que estou procurando. A começar por aqui — acrescentou, apontando para a tela, onde uma grande cidade se esparramava até o horizonte, um aglomerado de construções baixas com um ou outro edifício mais alto, cercado por campos de cor castanha cobertos por uma fina camada de gelo.
Pelorat sacudiu a cabeça.
— Que pena! Pretendia apreciar a descida, mas fiquei distraído ouvindo a discussão de vocês...
— Não tem importância, Janov — disse Trevize. — A vista será a mesma quando partirmos. Se você fizer Bliss ficar quieta, prometo que não direi uma palavra.
Pouco depois, o Estrela Distante se aproximava do espaçoporto da cidade, guiado por uma transmissão de microondas.
Kendray estava de cara amarrada quando voltou à estação espacial e observou o Estrela Distante desaparecer ao longe. Seu humor não melhorou até o final do expediente.
Estava se preparando para começar a última refeição do dia quando um dos colegas, um sujeito grandalhão, de olhos vivos, cabelos claros e lisos e sobrancelhas tão louras que eram quase invisíveis, sentou-se na cadeira ao lado.
— Que foi que houve, Ken? — perguntou o outro. Kendray fez uma careta e respondeu:
— Aquela última nave era gravítica, Gatis.
— Aquela nave esquisita, com radioatividade zero?
— Era por isso que não tinha radioatividade. Não precisa de combustível. É gravítica.
Gatis assentiu.
— Aquela que nos pediram para ficar de olho, certo?
— Certo.
— E foi cair nas suas mãos. Sortudo!
— Nem tanto. Havia uma mulher a bordo. Sem documentos. E; eu a deixei passar.
— O quê? Escute, não me diga mais nada. Não quero saber. Nem mais uma palavra. Você pode ser meu amigo, mas não vai me fazer de cúmplice!
— Não estou preocupado com isso. Não muito. Afinal, eu tinha que mandar a nave lá para baixo. Eles querem aquela nave... eles querem qualquer nave gravítica que aparecer. Você sabe disso.
— Claro, mas pelo menos podia ter detido a mulher.
— Não me deu vontade. Ela não é casada. Eles a trouxeram apenas para... para usá-la.
— Quantos homens a bordo?
— Dois.
— E eles a apanharam só para... para isso? Devem ser de Terminus.
— Isso mesmo.
— Esse pessoal de Terminus é fogo!
— Nem me diga.
— O pior é que sempre se dão bem!
— Um deles era casado e não queria que a mulher soubesse. Se eu prendesse a moça aqui, a mulher dele ia ficar sabendo.
— Ela não está em Terminus?
— Mesmo assim.
— Bem feito para o cara se a mulher dele descobrisse.
— Pode ser... mas eu não quis ser o responsável.
— Vai pegar muito mal para você quando descobrirem. Querer livrar a cara de um desconhecido não é desculpa.
— Você teria detido a moça? — Acho que sim.
— Não, acho que não. O governo quer aquela nave. Se eu não deixasse a moça passar, os homens poderiam mudar de ideia e ir para outro planeta.
— Será que vão acreditar em você?
— Acho que sim. Sabe, a mulher é de fechar o comércio. Imagine uma mulher daquelas disposta a viajar com dois homens. São uns felizardos!
— Acho que a sua patroa não ia gostar de saber que você pensa assim.
— Quem vai contar para ela? Você? — perguntou Kendray, em tom desafiador.
— Calma, calma! Você sabe que não! — O ar de indignação de Gatis desapareceu rapidamente e ele disse: — O que você fez não vai adiantar nada para aqueles sujeitos...
— Eu sei.
— O pessoal lá de baixo logo vai descobrir a respeito da moça e mesmo que não pegue nada para você, com eles vai ser diferente!
— Eu sei, e tenho pena deles. Mesmo a presença da mulher não vai ser nada em comparação com os problemas que a nave vaii trazer para eles. O capitão fez alguns comentários...
Kendray interrompeu o que estava dizendo e Gatis perguntou, curioso:
— Que comentários?
— Deixe para lá. É assunto confidencial.
— Não vou repetir para ninguém.
— Nem eu. Mas estou com pena desses dois sujeitos de Terminus!
Quem Já experimentou a monotonia do espaço sabe que o único momento emocionante nas viagens espaciais é a hora de pousar em um planeta desconhecido. A superfície se desloca velozmente para trás enquanto você observa manchas de água e de terra, figuras e linhas geométricas que podem representar campos e estradas. De repente, você reconhece o verde das plantas, o cinzento do concreto, o castanho do solo nu, o branco da neve. O mais interessante, porém, são as regiões habitadas; cidades que em cada planeta têm uma geometria característica, uma arquitetura própria.
Em uma nave comum, haveria ainda a sensação de pousar e taxiar na pista. Com o Estrela Distante era diferente. Ele começou a frear, o computador mantendo um equilíbrio delicado entre a força da gravidade e a resistência da atmosfera, até ficar parado acima do espaço-porto. O vento, que soprava em rajadas, havia introduzido uma complicação adicional. Quando o sistema gravítico do Estrela Distante era ajustado para neutralizar parcialmente a força da gravidade, a nave não só perdia peso mas também perdia massa, tornando-se portanto muito mais vulnerável ao vento. Assim, tinha sido necessário aumentar a gravidade e usar jatos auxiliares não só para frear a nave como também para compensar a cada instante a força do vento. Sem um computador extremamente rápido, esse tipo de manobra seria impraticável.
A nave foi descendo lentamente, com pequenos movimentos laterais inevitáveis para lá e para cá, até imobilizar-se no centro do quadrado que marcava a posição que o pessoal de terra lhe havia destinado no espaçoporto.
Quando o Estrela Distante pousou, o céu azul-claro estava coalhado de nuvens brancas. Mesmo na superfície, o vento continuava forte e, embora não constituísse mais um perigo, provocou um arrepio em Trevize. Ele percebeu imediatamente que as roupas de que dispunham eram totalmente inadequadas para o clima de Comporellon.
Pelorat, por outro lado, olhou em torno com admiração e respirou profundamente, saboreando o ar gelado nos pulmões. Chegou a desabotoar o casaco para expor o peito ao vento. Sabia que em pouco tempo tornaria a abotoar o casaco, mas no momento queria sentir a existência de uma atmosfera, o que era impossível a bordo do Estrela Distante.
Bliss apertou o casaco contra o corpo e, com as mãos enluvadas, puxou o gorro para cobrir as orelhas. Seu rosto tinha uma expressão aflita; parecia a ponto de chorar. Murmurou:
— Este mundo é mau. Ele nos odeia!
— Não diga isso, Bliss querida — protestou Pelorat. — Tenho certeza de que os nativos gostam deste mundo e de que o mundo... o mundo gosta deles, como você diria. Assim que entrarmos em algum lugar aquecido você vai se sentir melhor.
Abriu uma aba do casaco e ofereceu-a a Bliss, que se aninhou contra o seu peito.
Trevize fez o possível para ignorar o frio. Recebeu um cartão magnetizado de um funcionário do espaçoporto e verificou, com o auxílio do computador de bolso, se continha todos os dados necessários: número da vaga, nome da nave, número de série do motor e assim por diante. Examinou mais uma vez a nave para ter certeza de que estava bem trancada e depois fez o maior seguro contra roubo que a legislação do planeta permitia (uma providência inútil, na verdade, pois o Estrela Distante deveria ser invulnerável à tecnologia dos comporelianos e, se não fosse, sua perda seria irreparável).
Trevize encontrou o ponto de táxi no lugar esperado. (Muitas instalações nos espaçoportos eram padronizadas quanto à localização, aparência e modo de usar. Tinham que ser, dada a natureza multiplanetária da clientela.). Chamou um táxi, digitando o destino simplesmente como cidade”.
Um táxi deslizou em direção a eles apoiado em esquis diamagnéticos, tremendo com a vibração do motor nada silencioso. Era pintado de cinza escuro e tinha o símbolo de táxi pintado em branco nas portas traseiras. O motorista usava um paletó preto e um gorro branco de pele.
— Parece que as cores nacionais são preto e branco — observou Pelorat.
— Talvez na cidade seja menos monótono — disse Trevize.
O motorista falou através de um pequeno microfone, talvez para evitar abrir a janela:
— Vão para a cidade?
Falava o dialeto galáctico com um sotaque cantado relativamente fácil de entender... o que era sempre um alívio num mundo desconhecido.
— Vamos — respondeu Trevize.
A porta traseira se abriu. Bliss entrou, seguida por Pelorat e depois por Trevize. A porta se fechou e sentiram um bafo de ar quente. Bliss esfregou as mãos e deixou escapar um suspiro de alívio. O táxi começou a andar e o motorista perguntou:
— A nave em que vocês chegaram é gravítica, não é?
— Considerando a forma como pousamos, você ainda tem dúvidas? — disse Trevize, secamente.
— Então é de Terminus? — quis saber o motorista.
— Conhece outro planeta capaz de fabricar uma nave gravítica? O motorista pareceu pensar um pouco enquanto o táxi ganhava velocidade. Então disse:
— Você sempre responde a uma pergunta com outra pergunta? Trevize não pôde resistir.
— Por que não?
— Nesse caso, que diria se eu perguntasse se o seu nome é Golan Trevize?
— Eu diria: Por que está perguntando?
O táxi parou bruscamente e o motorista disse:
— Pura curiosidade! Vou perguntar de novo: Seu nome é Golan Trevize?
— O que é que você tem com isso?
— Meu amigo — disse o motorista —, não vamos sair daqui enquanto não me responder. E se não responder logo, vou desligar o aquecimento do compartimento de passageiros e continuar esperando. Seu nome é Golan Trevize, conselheiro de Terminus? Se disser que não, terá que me mostrar sua carteira de identidade.
— Sim, sou Golan Trevize, e como conselheiro da Fundação, espero ser tratado com todo o respeito que minha posição exige. Se se esquecer disso, poderá se ver em maus lençóis, camarada. E agora?
— Agora posso continuar um pouco mais tranquilo. — O táxi começou a se mover novamente. — Escolho meus passageiros com cuidado — prosseguiu o motorista — e só estava esperando dois homens. A mulher foi uma surpresa e fiquei com medo de ter cometido um engano. Agora que sei que estava certo, posso deixar por sua conta explicar a mulher quando chegar ao seu destino.
— Não sei qual é o meu destino.
— Pois eu sei. Você vai para o Ministério dos Transportes.
— Não é para lá que eu quero ir!
— Isso não faz a mínima diferença, conselheiro. Se eu fosse um motorista de táxi, levaria você para onde me mandasse ir. Como não sou, levo você para onde eu quero ir.
— Espere aí — disse Pelorat, inclinando-se para a frente. — Você parece um motorista de táxi. Está até dirigindo um táxi!
— Qualquer um pode dirigir um táxi. Além disso, nem todo carro que parece um táxi tem que ser um táxi.
— Deixe de brincadeiras! — exclamou Trevize. — Quem é você e o que está fazendo? Lembre-se de que terá que prestar contas à Fundação por seus atos!
— Eu, não — disse o motorista. — Meu superiores, talvez. Sou agente da Polícia de Segurança de Comporellon. Tenho ordens para tratá-lo com cortesia, mas terá que ir para onde eu o levar. E não vá tentar nenhuma gracinha, porque estou armado e minhas ordens são para defender-me se for atacado.
Depois que o veículo atingiu a velocidade de cruzeiro, passou a mover-se com absoluta suavidade. Trevize ficou muito quieto, tentando pensar. Mesmo sem olhar para Pelorat, tinha certeza de que o outro tinha uma expressão interrogativa no rosto, como quem diz “O que vamos lazer agora?”.
Uma rápida olhadela assegurou-o de que Bliss estava tranquila, aparentemente despreocupada. E por que não? Afinal, tinha um mundo inteiro dentro de si. Gaia inteiro, apesar da distância que a separava do planeta. No caso de uma emergência real, a jovem podia contar com recursos quase ilimitados. O que havia acontecido?
Era evidente que o funcionário da estação espacial, obedecendo ao regulamento, havia enviado uma comunicação a respeito da nave (omitindo Bliss) e essa comunicação havia atraído a atenção das autoridades, especialmente do Ministério dos Transportes. Por quê?
As relações entre Comporellon e a Fundação eram amistosas e ele próprio era um representante graduado da Fundação...
Acontece que tinha dito ao funcionário da estação espacial... Ken-dray, o funcionário se chamava Kendray... que tinha negócios importantes a tratar com o governo de Comporellon. Naturalmente, era apenas uma tentativa de intimidar o homem. Entretanto, Kendray devia ter comunicado o fato aos superiores, o que certamente despertaria um interesse incomum.
Como não havia previsto isso? Onde estava sua famosa intuição? Gaia dizia que ele era uma espécie de caixa preta, sempre pronto a fornecer a resposta correta. Seria essa realmente a opinião de Gaia? Estaria sendo traído por um excesso de confiança causado por uma superstição estúpida?
O homem que não podia errar... como pudera acreditar em tamanha tolice? Quantos erros já não havia cometido na vida? Por acaso era capaz de prever ao menos o tempo que iria fazer no dia seguinte? Claro que não!
Então era apenas nas grandes decisões que não podia errar? Como ter certeza?
Esqueça! Afinal, o simples fato de haver afirmado que estava no planeta em missão importante... não, as palavras exatas tinham sido “missão confidencial”...
Pois então, o simples fato de haver afirmado que estava ali a ser-viço da Fundação, em missão confidencial, bastava para atrair a aten-ção do governo local. Sim, mas até saberem exatamente do que se tratava, teriam que agir com muito tato. Seriam cerimoniosos e o tra-tariam como alto dignitário de um planeta aliado. Jamais pensariam em raptá-lo ou recorrer a ameaças. No entanto, era exatamente isso que haviam feito. Por quê?
O que os fazia se sentirem tão fortes e seguros para tratarem uni conselheiro de Terminus de forma tão humilhante?
Poderia ser a Terra? A mesma força que mantinha escondido com tanta eficácia o planeta de origem do Homem, a ponto de desafiar os grandes mentalistas da Segunda Fundação, estaria agora trabalhando para evitar que ele, Trevize, continuasse a procurar a Terra? Seria a Terra onisciente? Onipotente?
Trevize sacudiu a cabeça. Estava ficando paranoico. Começaria a culpar a Terra por tudo o que acontecesse? Passaria a considerar ca- j da contratempo, cada volta do caminho, cada imprevisto como o resultado de maquinações secretas da Terra? No momento em que pensasse assim, estaria derrotado.
Nesse instante, a desaceleração do veículo o trouxe de volta à realidade.
Deu-se conta de que não havia observado, nem mesmo por um instante, a cidade que estavam atravessando. Olhou em torno. Os edifícios eram baixos, mas se tratava de um planeta muito frio... boa parte das construções devia ser subterrânea.
Como no espaçoporto, não viu nenhuma cor além do preto e do branco.
De raro em raro, passava um pedestre vestido com roupas grossas e caminhando a passos rápidos. Como os edifícios, quase todas as pessoas deviam estar debaixo da terra.
O táxi tinha parado diante de um edifício baixo que ocupava uma área considerável e ficava no meio de uma depressão. De onde estavam, Trevize não podia ver o andar térreo. Passaram-se alguns momentos e nada aconteceu. O motorista também estava imóvel, o gorro branco quase encostando no teto do veículo.
Trevize imaginou por um instante como o motorista conseguia entrar e sair do táxi sem tirar o chapéu e depois disse, no tom de irritação controlada que se esperaria de uma alta autoridade que não está sendo tratada com a devida atenção:
— Então, motorista, o que vai acontecer agora?
A versão comporeliana de campo de força que separava o motorista dos passageiros era relativamente sofisticada. As ondas sonoras podiam atravessá-la com facilidade... embora Trevize pudesse apostar que seria invulnerável a objetos sólidos.
— Alguém vem buscá-lo. Não deve demorar.
Nesse exato momento, três cabeças apareceram, surgindo lenta-mente da depressão onde estava o edifício. Atrás delas vieram os cor-pos. Era evidente que os recém-chegados estavam usando algum tipo de escada rolante, que a depressão escondia de Trevize.
Quando os três se aproximaram, a porta traseira do táxi se abriu e uma lufada de ar frio invadiu o veículo.
Trevize saltou, depois de abotoar o casaco até em cima. Os outros dois o seguiram, Bliss com visível relutância.
Os três comporelianos não passavam de vultos informes. Usavam roupas muito folgadas, provavelmente com aquecimento elétrico. Trevize olhou-os com desdém. Em Terminus não havia necessidade de roupas aquecidas. A única vez em que pedira emprestado um casaco elétrico havia sido quando estava passando o inverno em Anacreon, um plane-in vizinho. Não tinha gostado da experiência. O traje se aquecia devagar e quando percebia que estava ficando quente demais, já estava munido em bicas.
Quando os comporelianos chegaram mais perto, Trevize observou, com indignação, que estavam armados. Não pareciam preocupados em esconder o fato. Pelo contrário; os três usavam coldres do lado de fora do casaco.
Um dos comporelianos se dirigiu para Trevize.
— Com licença, conselheiro — disse, rispidamente, ao mesmo tempo em que desabotoava o casaco do outro.
Apalpou o corpo de Trevize com movimentos rápidos e precisos. Examinou os bolsos do casaco. Quando Trevize se recobrou da surpresa, já tinha sido totalmente revistado.
Pelorat, de cara amarrada, estava passando por uma humilhação semelhante nas mãos de um segundo comporeliano.
O terceiro aproximou-se de Bliss, que não esperou até ser tocada. Ela, pelo menos, parecia conhecer as intenções dos desconhecidos, pois tirou o casaco e ficou ali parada, no vento gélido, usando apenas uma roupa leve.
— Pode ver que não estou armada — disse para o comporeliano, em um tom mais gelado que a temperatura que estava fazendo.
Realmente não tinha onde esconder uma arma. O comporeliano sacudiu o casaco, como se apenas pelo peso pudesse saber se continha uma arma (talvez pudesse) e recuou.
Bliss tornou a vestir o casaco e Trevize não pôde deixar de senti certa admiração pelo que a moça havia feito. Sabia que ela detestava o frio e no entanto havia ficado ali, vestida apenas com uma blusa fina e calças compridas, sem demonstrar o menor desconforto. (Então pen sou que talvez, em uma emergência, Bliss pudesse receber calor do res to de Gaia.)
Um dos comporelianos fez um gesto para que Trevize, Pelorat e Bliss o seguissem. Os outros dois comporelianos ficaram mais para trás. Os dois ou três pedestres que estavam na rua não demonstraram nenhum interesse pelo que estava acontecendo. Ou já estavam acostu-mados ou, o que era mais provável, tudo o que tinham em mente era chegar o mais depressa possível a um lugar abrigado do vento e do frio.
Trevize percebeu que os comporelianos tinham subido por uma rampa móvel. Agora estavam descendo, todos os seis, e passaram por um sistema de portas duplas quase tão complicado quanto o de uma espaçonave. O objetivo, sem dúvida, era não deixar o calor escapar.
De repente, estavam no interior de um grande edifício.
A primeira impressão de Trevize foi a de que estava participando de um hiperdrama... mais especificamente, de uma novela histórica passada no tempo do Império. Havia um cenário em particular, com poucas variações (talvez só existisse mesmo um cenário, usado por todos os produtores de hiperdramas), que representava a gigantesca cidade-planeta de Trantor no seu apogeu.
Ali estavam as praças espaçosas, o formigueiro de pedestres, os pequenos veículos correndo nas pistas reservadas para eles.
Trevize olhou para cima, quase esperando ver os aerotáxis entrando em túneis bem iluminados, mas pelo menos aquilo estava ausente. Na verdade, quando a surpresa inicial passou, Trevize se deu conta de que a escala da cena que estava presenciando era muito menor do que se estivesse na antiga Trantor. Afinal, era apenas um edifício e não parte de um complexo que se estendia por milhares de quilômetros em qualquer direção.
As cores também eram diferentes. Nos hiperdramas, Trantor era sempre representado em cores incrivelmente berrantes, e os trajes, de tão espalhafatosos, chegavam a ser ridículos. Todas essas cores e babados tinham um significado simbólico, pois serviam para mostrar a decadência do Império e particularmente de Trantor.
Nesse caso, porém, Comporellon não devia ter nada de decadente, pois o uso das cores só servia para confirmar as suspeitas de Pelorat.
As paredes eram todas pintadas em tons de cinza; os tetos eram brancos; as roupas da população, uma mistura de preto, cinzento e branco. De vez em quando aparecia uma roupa toda preta; ainda mais raramente, uma roupa toda cinzenta. Trevize não conseguiu ver ne-nhuma roupa toda branca. Os padrões, entretanto, eram todos diferentes, como se as pessoas, impedidas de variar nas cores, procurassem outras formas de manifestar sua individualidade.
O rosto dos transeuntes era impassível. As mulheres usavam o cabelo bem curto; o cabelo dos homens era mais comprido, mas puxado para trás para formar um coque. Quando se cruzavam, ninguém olhava para ninguém. Todo mundo parecia ocupado, como se tivesse um objetivo estreito em mente e não sobrasse tempo para mais nada. Homens e mulheres se vestiam da mesma forma; a diferença estava apenas no comprimento do cabelo, no volume dos seios e na largura dos quadris.
Os três foram conduzidos para um elevador que desceu cinco andares. Saíram do elevador e foram levados até uma porta onde estava escrito, com pequenas letras brancas em fundo cinza: “Mitza Lizalor, MinTrans”.
O comporeliano que ia à frente encostou o dedo no letreiro, que, depois de um momento, começou a brilhar. A porta se abriu e eles entraram.
Era uma sala grande e estava quase vazia. A falta de mobília talvez servisse para demonstrar, através do uso imoderado de espaço, a importância do ocupante.
Havia dois guardas do outro lado da sala, imóveis, os olhos fixos naqueles que entravam. O centro do aposento era ocupado por uma grande escrivaninha. Sentada atrás da escrivaninha estava uma mulher corpulenta, de olhos escuros e feições regulares. Duas mãos fortes e capazes, com dedos longos e quadrados, repousavam sobre a mesa.
O MinTrans (Ministro dos Transportes, concluiu Trevize) usava um traje cinza-escuro no qual se destacavam duas grandes faixas brancas, que se cruzavam no peito. Trevize notou que embora o corte do vestido disfarçasse a saliência dos seios, as faixas atraíam a atenção para eles.
O ministro era indubitavelmente uma mulher. Mesmo ignorando os seios, bastava observar os cabelos curtos e as feições delicadas, embora sem nenhuma maquilagem. A voz também era feminina, um rico contralto. Ela disse:
— Boa tarde. Não é todo dia que temos a honra de receber dois homens de Terminus... e uma mulher de origem desconhecida. — Os olhos passearam de um para outro e afinal se detiveram em Trevize, que estava de pé, muito sério, em rígida posição de sentido. — Além de tudo, um dos homens é membro do Conselho.
― Do Conselho da Fundação — completou Trevize, tentando parecer o mais arrogante possível. — Conselheiro Golan Trevize, em missão especial.
— Em missão especial? — repetiu a ministro, interessada.
— Em missão especial — reafirmou Trevize. — Por que, então, estamos sendo tratados como bandidos? Por que fomos sequestrados por guardas armados e trazidos para cá como prisioneiros? O Conselho da Fundação não vai ficar nada satisfeito quando souber disso.
— A propósito — interveio Bliss, sua voz parecendo um pouquinho esganiçada em comparação com a da mulher mais velha —, por quanto tempo vamos ter que continuar de pé?
A ministro olhou friamente para Bliss por alguns instantes e depois levantou o braço, dizendo:
— Três cadeiras! Já!
Uma porta se abriu e três homens, vestidos de acordo com a moda sombria de Comporellon, entraram carregando três cadeiras. Os vigilantes se sentaram.
— Pronto — disse a ministro. — Estão bem, agora? — acrescentou, com um sorriso gelado.
Trevize teve vontade de responder que não. As cadeiras não tinham estofamento e o assento e o espaldar eram retos, sem fazer concessões à forma do corpo.
— Por que estamos aqui? — perguntou.
A ministro consultou alguns papéis que estavam sobre a mesa.
— Pretendo explicar assim que estiver bem certa dos fatos. Sua nave é o Estrela Distante, de Terminus. Esta informação está correta, conselheiro?
— Sim.
A ministro levantou os olhos.
— Usei o seu título, conselheiro. Poderia daqui em diante, por cortesia, usar o meu?
— Senhora Ministro será suficiente? Ou existe um título honorífico associado ao cargo?
— Não há título honorífico algum, nem precisa ser tão prolixo. “Ministro” será suficiente, ou “Senhora”, se preferir.
— Então minha resposta é: Sim, ministro.
— O capitão da nave é Golan Trevize, cidadão da Fundação e membro do Conselho de Terminus... na verdade, um dos conselheiros mais jovens. E o senhor é Trevize. Estas informações estão corretas, conselheiro?
— Sim, ministro. E como cidadão da Fundação, eu...
— Ainda não terminei, conselheiro. Mais tarde terá oportunidade de apresentar suas objeções. Em sua companhia está Janov Pelorat, cientista, historiador e cidadão da Fundação. É o senhor, não é, dr. Pelorat?
Pelorat não conseguiu evitar um sobressalto quando a ministro voltou para ele os olhos penetrantes. Ele disse:
― Sim, sou eu, minha queri... — Interrompeu o que estava dizendo e começou de novo: — Sim, sou eu, ministro.
A ministro trançou os dedos.
— No relatório que me foi enviado não há qualquer menção de uma mulher. Essa mulher faz parte da tripulação da nave?
— Sim, ministro — respondeu Trevize.
— Então interrogarei a mulher pessoalmente. Como se chama?
— Todos me chamam de Bliss — disse Bliss, sentada muito ereta e pronunciando as palavras com cuidado —, embora meu nome completo seja bem maior, senhora. Quer saber o nome completo?
— Bliss será suficiente, por enquanto. Bliss, você é cidadã da Fundação?
— Não senhora.
―- De que planeta você é cidadã, Bliss?
— Não tenho nenhum documento de cidadania, senhora.
— Nenhum documento, Bliss? — A ministro fez uma rápida anotação e prosseguiu: — O que estava fazendo a bordo da nave?
— Sou uma passageira, senhora.
— O conselheiro Trevize ou o dr. Pelorat pediram para ver sua identidade antes de você embarcar, Bliss?
— Não senhora.
— Avisou a eles que não tinha documentos, Bliss?
— Não senhora.
— Qual era a sua função a bordo, Bliss?
— Era apenas uma passageira — respondeu Bliss.
— Por que está pressionando a moça? — interrompeu Trevize. — Qual foi o crime que ela cometeu?
Os olhos da ministro Lizalor se voltaram para Trevize.
— O senhor é um estrangeiro, conselheiro, e não conhece nossas leis. Mesmo assim, está sujeito a elas assim que desembarca em nosso planeta. O senhor não traz as leis do seu mundo com o senhor. Esta é uma regra universal do Direito Galáctico.
— De acordo, ministro. Mesmo assim, continuo sem saber qual foi a lei que ela infringiu.
— É uma regra geral na Galáxia, conselheiro, que um visitante de um mundo fora dos domínios do planeta que está visitando deve ter em seu poder um documento de identidade. Muitos planetas fazem vista grossa ao regulamento, seja porque estão interessados em atrair mais turistas, seja porque não dão muita importância à lei e à ordem. Aqui em Comporellon é diferente. Fazemos questão de cumprir a lei. A moça desembarcou aqui sem documentos e portanto infringiu a nossa lei.
— Ela não tinha escolha — disse Trevize. — Eu estava pilotando a nave e decidi pousar em Comporellon. Ela teve que acompanhar-nos. Que mais poderia fazer, ministro? Pedir para ser ejetada no espaço?
— Isso significa que o senhor também infringiu a lei.
— Sou forçado a discordar, ministro. Não sou um estrangeiro aqui; sou um cidadão da Fundação, um dos Planetas Associados, como Comporellon. De acordo com os tratados em vigor, posso me locomover livremente neste planeta.
— Certamente, conselheiro, contanto que disponha de papéis que provem que realmente é um cidadão da Fundação.
— Trago esses papéis comigo, ministro.
— Entretanto, mesmo como cidadão da Fundação, infringiu a lei trazendo com o senhor uma pessoa sem documentos.
Trevize hesitou. O guarda da fronteira, Kendray, tinha dado com a língua nos dentes; não havia sentido em protegê-lo.
— Não fomos detidos na estação espacial e considerei o fato como permissão implícita para trazer a moça comigo, ministro.
— É verdade que não foram detidos, conselheiro. É verdade que a presença da mulher foi ignorada pelas autoridades de imigração. Desconfio, no entanto, de que os funcionários da estação espacial acharam, e com muita razão, que era mais importante assegurar que a nave pousasse no planeta do que se preocuparem com uma jovem sem documentos. Não vou negar que eles tenham quebrado o regulamento, e o assunto terá que ser examinado oportunamente, mas estou certa de que a conclusão será de que a infração foi justificada. Aplicamos a lei com rigor, conselheiro, mas também sabemos usar a lógica.
— Então vou apelar para a sua lógica, ministro — disse Trevize, aproveitando a deixa. — Se na verdade não recebeu nenhuma informação das autoridades de imigração a respeito de Bliss, não tinha meios de saber que estávamos infringindo alguma lei no momento em que pousamos no planeta. No entanto, é evidente que deu ordens para que fôssemos presos assim que desembarcássemos, o que realmente aconteceu. Por que agiu assim, já que não tinha razões para pensar que havíamos cometido algum crime? A ministro sorriu.
— Compreendo sua perplexidade, conselheiro. Gostaria de assegurar-lhe de que o fato de ter em sua companhia uma jovem sem documentos não tem nada a ver com a sua detenção. Estamos agindo em nome da Fundação, como um dos Planetas Associados.
Trevize olhou para ela, atônito.
— Isso é impossível, ministro! É ainda pior. É ridículo! A ministro riu.
— Acho curioso que considere pior uma coisa ser ridícula do que ser impossível, conselheiro. Talvez tenha razão. Infelizmente para o senhor, porém, o que acabei de dizer não é nem impossível nem ridículo. Por que seria?
— Porque sou um representante do governo da Fundação, em missão especial, e é inconcebível que a Fundação tenha motivos para mandar me prender, ou mesmo que tenha autoridade para isso, já que gozo de imunidade parlamentar.
— Conselheiro, o senhor omitiu meu título, mas parece estar muito nervoso, de modo que vou perdoá-lo. Não, a Fundação não me mandou prendê-lo. Entretanto, fui obrigada a detê-lo para poder cumprir a tarefa que a Fundação me confiou, conselheiro.
— Que tarefa, ministro?
— Apossar-me da sua nave, conselheiro, e devolvê-la à Fundação!
— O quê?
— O senhor omitiu meu título pela segunda vez, conselheiro. Gostaria que esta falta não se repetisse. Por acaso a nave lhe pertence? Foi projetada pelo senhor, construída pelo senhor, paga pelo senhor?
— Claro que não, ministro. Foi cedida a mim pelo governo da Fundação.
— Então, o governo da Fundação tem todo o direito de pedi-la de volta, conselheiro. Trata-se de uma nave muito valiosa, não?
Trevize não respondeu. A ministro prosseguiu:
— É uma nave gravítica, conselheiro. A Fundação tem poucas naves desse tipo. Provavelmente se arrependeram de haver confiado uma dessas naves ao senhor. Talvez os convença a deixá-lo continuar a missão em uma outra nave, mais modesta. De qualquer forma, vamos ter que apreender a nave em que o senhor chegou.
— Não, ministro, não posso entregar minha nave. Não acredito que a Fundação tenha pedido isso à senhora.
A ministro sorriu.
— Não apenas a mim, conselheiro. Não apenas a Comporellon. Temos razões para acreditar que o pedido foi enviado a todos os planetas com os quais a Fundação mantém relações diplomáticas. O que me leva à conclusão de que a Fundação não conhece o seu itinerário e está vivamente empenhada em localizar o senhor. O que me leva a concluir ainda que o senhor não pode ter vindo a Comporellon em missão oficial, caso em que as medidas tomadas pela Fundação não teriam razão de ser. Em outras palavras, conselheiro, o senhor está mentindo.
Trevize disse, com certa dificuldade:
— Ministro, gostaria de ver uma cópia da carta que recebeu do governo da Fundação. Acho que, como acusado, tenho direito a isso.
— Sim, tem todo o direito, se chegar a ser processado. Aqui em Comporellon, procuramos sempre agir de acordo com o regulamento e posso lhe assegurar que os seus direitos legais serão respeitados. Por outro lado, seria muito melhor e mais simples se pudéssemos chegar a um acordo sem a publicidade e a demora de um processo penal. Estou certa de que não interessa à Fundação que toda a Galáxia fique sabendo que está atrás de um conselheiro fujão! Isso colocaria a Fundação no ridículo, o que, em suas próprias palavras, é pior que o impossível.
Trevize ficou calado.
A ministro fez uma pausa e depois prosseguiu, imperturbável:
— Conselheiro, vamos acabar ficando com a sua nave, seja por um acordo informal, seja através da justiça. A penalidade por trazer para cá um passageiro sem documentos vai depender do caminho que o senhor escolher. Se exigir que o caso seja levado aos tribunais, tanto o senhor quanto a passageira serão certamente condenados a longas penas de prisão. Caso, porém, decida entrar em acordo, estamos dispostos a mandar a sua passageira, em nave comercial, para o planeta que ela escolher. O senhor e seu amigo terão liberdade para acompanhá-la. Se a Fundação concordar, poderemos também emprestar-lhe uma nave das nossas, contanto, naturalmente, que a Fundação se comprometa a devolvê-la. Por outro lado, se, por algum motivo, o senhor não quiser retornar à Fundação, estou autorizada a oferecer-lhe asilo político e, eventualmente, cidadania comporeliana. Como pode ver, tem tudo a ganhar se entrar em acordo conosco e tudo a perder se insistir em seus direitos legais.
— Ministro, agora a senhora exagerou — disse Trevize. — Prometeu-me o que não pode cumprir. Não pode me manter aqui se a Fundação exige que eu seja devolvido.
— Conselheiro, jamais prometo o que não posso cumprir. A Fundação requisitou apenas a nave; no pedido não há nenhuma referência aos ocupantes.
Trevize olhou rapidamente para Bliss e disse:
— Ministro, gostaria de consultar o dr. Pelorat e a srta. Bliss a respeito do assunto.
— Não há problema, conselheiro. Tem quinze minutos.
— Em particular, ministro.
— Serão levados para uma sala e, quinze minutos depois, trazidos de volta para cá. Não haverá nenhuma tentativa de monitorar a conversa; dou-lhe minha palavra. Entretanto, serão vigiados o tempo todo, de modo que seria tolice tentarem escapar.
— Compreendemos, ministro.
— Quando voltarem, estou certa de que concordarão em me entregar voluntariamente a nave. Se deixarem que a justiça siga o seu cur-so, será pior para todos os interessados. Até mais tarde, conselheiro — Até mais tarde, ministro — disse Trevize, procurando esconder a raiva que sentia, já que expressá-la não lhe traria benefício algum.
Era uma sala pequena, mas bem iluminada. No interior havia um sofá e duas cadeiras. O silêncio era quebrado pelo ruído macio do equipamento de ventilação. No conjunto, um aposento muito mais acolhedor que o escritório enorme e impessoal do ministro dos Transportes.
Um guarda os havia levado até lá, um homem alto e sisudo, com uma pistola na cintura. Quando entraram na sala, permaneceu do lado de fora e disse com voz grave:
— Vocês têm quinze minutos.
Um instante depois, a porta se fechou com um ruído surdo.
— Espero que não haja nenhum microfone oculto — disse Trevize.
— Ela nos deu sua palavra, Golan! — protestou Pelorat.
— Você julga os outros por você, Janov. A “palavra” da ministro não é suficiente. Ela não hesitaria em faltar com a palavra se isso lhe trouxesse alguma vantagem.
— Não importa — interrompeu Bliss. — Posso isolar totalmente esta sala.
— Você tem um aparelho antiescuta? — perguntou Pelorat. Bliss sorriu, mostrando os dentes muito brancos.
— A mente de Gaia é o melhor aparelho antiescuta que existe, Pel. Ela é enorme.
— Estamos aqui graças às limitações dessa mente enorme — lamentou-se Trevize.
— Que quer dizer com isso? — quis saber Bliss.
— Quando chegou a hora do confronto tríplice, você me tirou das mentes da prefeito Branno e daquele sujeito da Segunda Fundação, Guendibal. Os dois jamais voltariam a pensar em mim, a não ser de forma vaga e indiferente. Ficaria entregue a mim mesmo.
— Tivemos que fazer isso — disse Bliss. — Você é muito importante para nós.
— Sim. Golan Trevize, aquele que nunca está errado. Acontece que vocês não tiraram a nave da mente de Branno, tiraram? A prefeito não perguntou por mim; nem quer saber se eu existo. Entretanto, requisitou a nave! Foi a nave que ela não esqueceu!
Bliss franziu a testa.
— Pense nisso — prosseguiu Trevize. — Gaia supôs que eu e minha nave éramos uma coisa só; que se Branno não pensasse em mim, não pensaria na nave. O problema é que Gaia não compreende a individualidade. Cometeu um erro ao pensar em mim e na nave como um único organismo.
— É possível — concordou Bliss, com um suspiro.
— Pois então está na hora de consertar o erro. Preciso da minha nave gravítica e do meu computador; são insubstituíveis. Dê um jeito para que eu não perca a nave! Afinal, Bliss, você é capaz de controlar as mentes humanas!
— Sim, Trevize, mas não usamos esse poder de forma inconsequente. Sabe por quanto tempo o tríplice confronto foi planejado? Calculado? Pesado? Levamos, literalmente, vários anos! Não posso simplesmente chegar agora e mudar os pensamentos de uma mulher só porque você está pedindo!
— É uma emergência!
— Se começássemos a agir assim, onde iríamos parar? — insistiu Bliss; com veemência. — Eu poderia ter agido sobre a mente do funcionário da estação espacial e ele nos deixaria passar sem problemas. Poderia ter influenciado o falso motorista de táxi e ele nos levaria para onde quiséssemos.
— Já que tocou no assunto, por que não fez isso?
― Porque não sabemos quais seriam as consequências. Não conhecemos os efeitos colaterais, que poderiam muito bem tornar a situação ainda pior. Se eu mudar a mente da ministro, isso afetará sua personalidade como um todo. Ora, como se trata de uma alta autoridade do planeta, os efeitos sobre as relações interestelares poderão ser profundos. Até que todas as repercussões tenham sido devidamente ana-lisadas, não me sinto livre para interferir.
— Então por que veio conosco?
— Porque você está empenhado em uma missão perigosa. Devo proteger a sua vida a todo custo, mesmo que precise sacrificar minha própria vida ou a de Pel. Acontece que sua vida não corre perigo neste momento. Assim, procure encontrar uma saída para a situação, sem a ajuda de Gaia.
Trevize ficou pensativo por alguns momentos e depois disse:
— Nesse caso, vou ter que tentar alguma coisa. Pode ser que dê certo.
A porta se abriu com um rangido e o guarda falou:
— Está na hora.
Enquanto saíam, Pelorat sussurrou:
— Que vai fazer, Golan?
Trevize sacudiu a cabeça e respondeu baixinho:
— Ainda não sei bem. Vou ter que improvisar.
Quando entraram de volta no escritório, a ministro Lizalor continuava sentada atrás da escrivaninha. Ao vê-los, a ministro mostrou os dentes em um sorriso forçado.
— Conselheiro Trevize, tenho certeza de que voltou para dizer que concorda com a minha proposta.
— Voltei para discutir as condições, ministro — disse Trevize, com toda a calma.
— Não há condições para serem discutidas, conselheiro. Se insistir em um julgamento, poderemos providenciar um julgamento rápido, no qual será certamente condenado, já que o crime que cometeu ao trazer para este planeta uma pessoa sem documentos não está sujeito a contestação. Findo o julgamento, poderemos confiscar legalmente a nave e vocês três terão que cumprir longas penas na prisão. É isso que o senhor quer, conselheiro?
— Claro que não, ministro. Entretanto, mesmo que eu seja condenado à prisão, ninguém poderá entrar na nave sem o meu consentimento. Qualquer tentativa de arrombá-la resultará em uma explosão capaz de destruir, não só a nave, mas todo o espaçoporto. Duvido que a legislação local permita a tortura ou outra forma de tratamento cruel como meio de me obrigar a abrir a nave. E se a senhora estiver pensando em infringir a lei, espero que se lembre de que eu sou um cidadão da Fundação; por mais que deseje a nave, a Fundação não pode aprovar que um cidadão seu seja maltratado; seria um precedente muito perigoso. Então, vamos discutir as condições?
— Isso tudo é bobagem! — exclamou a ministro, de mau humor. Se for preciso, pediremos o auxílio da própria Fundação! Eles saberão como abrir a nave ou pelo menos como obrigá-lo a abrir a nave!
— Não usou o meu título, ministro, mas parece estar muito nervosa, de modo que vou perdoá-la. A senhora sabe muito bem que a última coisa que faria seria chamar a Fundação, já que jamais pretendeu entregar-lhes minha nave!
Os olhos da ministro se arregalaram.
— Que absurdo é esse que está dizendo, conselheiro?
— O tipo de absurdo, ministro, que talvez não deva chegar aos ouvidos de outras pessoas. Deixe meu amigo e a moça repousarem em um quarto de hotel; eles estão exaustos. Dispense os guardas, também. Podem ficar do lado de fora da porta e deixar uma pistola com a senhora. Estará segura comigo; estou desarmado.
A ministro inclinou-se para a frente.
— Não tenho medo do senhor.
Sem virar a cabeça, fez um gesto para um dos guardas, que se aproximou e parou ao lado da mesa, batendo os calcanhares. A ministro disse:
— Guarda, leve esses dois para o Apartamento 5. Devem permanecer lá, sob vigilância, até segunda ordem. Será pessoalmente responsável pelo conforto e segurança dos nossos hóspedes.
A ministro se pôs de pé e Trevize recuou um passo, apesar de sua determinação de mostrar firmeza. Era uma mulher alta; media pelo menos um metro e oitenta e cinco, a altura de Trevize, se não fosse um pouquinho maior. Tinha uma cintura fina, com as duas faixas brancas circundando-a e fazendo-a parecer ainda mais estreita. Seus movimentos tinham uma combinação de agilidade e vigor físico que fez Trevize estremecer. Não era de admirar que a ministro não tivesse medo dele! Em um combate corpo a corpo, certamente levaria a melhor.
— Venha comigo, conselheiro — disse a ministro. — Se está mesmo disposto a falar bobagens, é melhor conversarmos em particular.
Encaminhou-se para a porta com passos rápidos e Trevize a se guiu, sentindo-se pequeno a seu lado, algo que nunca havia sentida antes com uma mulher.
Entraram no elevador. Quando a porta se fechou, ela disse:
— Conselheiro, agora estamos sozinhos, mas se tem a ilusão de que pode usar a força para conseguir alguma coisa de mim, esqueça.O senhor parece ser uma pessoa razoavelmente forte, mas asseguro-lhe que não teria a menor dificuldade para quebrar-lhe um braço... ou o pescoço, se fosse preciso. Estou armada, mas não haveria necessidade de usar a arma.
Trevize coçou a cabeça enquanto seus olhos examinavam a ministro de alto a baixo.
— Ministro, acho que sou páreo para qualquer homem do meu tamanho, mas não me arriscaria a uma luta corporal com a senhora. Sei quando estou em desvantagem.
— Ótimo — disse a ministro, parecendo satisfeita.
— Para onde estamos indo, ministro? — perguntou Trevize.
— Para baixo! Lá para baixo! Mas não precisa ficar assustado. Se isto fosse um hiperdrama, eu estaria levando você para um calabouço, suponho, mas não temos calabouços em Comporellon... apenas prisões comuns. Estamos indo para os meus aposentos particulares; não é tão romântico quanto os calabouços do tempo do Império, mas é muito mais confortável.
Trevize calculou que estavam a mais de cinquenta metros abaixo da superfície do planeta quando a porta do elevador se abriu e eles saltaram.
Trevize olhou em torno e não conseguiu esconder a surpresa que sentiu.
— Não gosta do meu apartamento, conselheiro? — perguntou a ministro.
— Pelo contrário, ministro. Estou agradavelmente surpreso. A impressão que tive do seu planeta desde que cheguei foi a de um mundo austero, glacial, ascético, que abominava o luxo e a ostentação.
— É verdade, conselheiro. Não dispomos de muitos recursos e nossa vida deve ser tão severa quanto nosso clima.
— Então como a senhora explica isto? — perguntou Trevize. Abriu os braços em um gesto amplo, como que para envolver todo o aposento, onde, pela primeira vez naquele mundo, ele via cores, onde os móveis eram estofados, onde a luz indireta que vinha das paredes era suave, onde o chão era forrado com um campo de força que tornava os passos macios e silenciosos. — Para mim, isto é luxo!
— Conselheiro, como o senhor mesmo disse, abominamos o luxo pelo luxo, a ostentação barata, o desperdício de recursos. Aqui, porém, estamos falando do luxo particular, que tem a sua utilidade. Meu tra-ImIIio é árduo, as responsabilidades, imensas. Preciso de um lugar on-de possa esquecer, de vez em quando, as dificuldades de minha posição.
— Todos os comporelianos vivem assim quando estão longe dos olhos da multidão, ministro?
— Depende do posto que ocupam. Poucos têm dinheiro suficiente, mérito suficiente e, graças ao nosso código de ética, desejo sufi-ciente para viver assim.
— A senhora, ministro, tem dinheiro, mérito e vontade suficiente?
— Na vida pública nem tudo são espinhos — disse a ministro. Agora sente-se, conselheiro, e fale-me a respeito das suas fantasias.
A ministro sentou-se no sofá, que cedeu ligeiramente sob seu peso, e apontou para uma cadeira igualmente macia na qual Trevize ficaria voltado para ela a uma distância não muito grande.
Trevize sentou-se.
— Fantasias, ministro?
A ministro ajeitou-se no sofá e apoiou o cotovelo direito em uma almofada.
— Nas conversas particulares não é preciso ser tão formal. Pode me chamar de Lizalor. Vou chamar você de Trevize. Diga-me exatamente quais são os seus planos, Trevize.
Trevize cruzou as pernas e apoiou as costas no espaldar da cadeira.
— Escute aqui, Lizalor, você me disse para escolher entre entregar a nave espontaneamente e submeter-me a um julgamento formal. Nos dois casos, você ficaria com a nave. Mesmo assim, fez tudo o que pôde para me convencer a optar pela primeira alternativa. Chegou a me oferecer outra nave em substituição à minha, na qual eu e meus amigos poderíamos ir para onde quiséssemos. Acenou-me com a possibilidade de conseguir asilo político em Comporellon, caso eu não estivesse em boas relações com a Fundação. Falando de coisas mais triviais, permitiu-me quinze minutos a sós com os meus amigos. Trouxe-me para os seus aposentos particulares e mandou meus amigos para um hotel. Para resumir, Lizalor, o que você quer realmente é que eu lhe entregue a nave sem necessidade de um julgamento.
― Ora, Trevize, não acredita que eu esteja pensando no seu bem?
— Não.
— Nem que eu esteja tentando poupar ao meu governo o tempo e a despesa de um julgamento?
— Não! Minha explicação é outra.
— Qual?
— Um julgamento apresenta uma grande desvantagem: o fato de ser público. Você já se referiu várias vezes ao rigor com que os comporelianos encaram as questões legais; tenho certeza de que seria impossível julgar-me em segredo. Ora, se eu fosse julgado publicamente, a Fundação ficaria sabendo e você teria que entregar-lhe a nave assim que o julgamento terminasse.
— Claro que sim — concordou Lizalor, impassível. — Afinal, a nave pertence à Fundação.
— Por outro lado — prosseguiu Trevize —, no caso de um acordo informal, a questão não viria a público. Você ficaria com a nave, e como a Fundação não seria informada (eles nem mesmo sabem que pousei neste planeta), Comporellon poderia conservá-la indefinidamente. Tenho certeza de que é exatamente isso o que pretende fazer.
— Por que faríamos isso? — perguntou Lizalor, ainda impassível. — Não fazemos parte da Confederação da Fundação?
— Não senhora. Comporellon é um dos Planetas Associados. Nos mapas da Galáxia em que os planetas que pertencem à Confederação são mostrados em vermelho, Comporellon e os mundos que controla aparecem como uma mancha cor-de-rosa.
— Mesmo assim, como um dos Planetas Associados, temos o compromisso de cooperar com a Fundação.
— Verdade? E se o sonho de Comporellon for tornar-se independente, ou mesmo conquistar a liderança? Vocês são um mundo antigo. Quase todos os mundos afirmam ser mais antigos do que realmente são, mas Comporellon é um planeta muito antigo.
A ministro Lizalor se permitiu um sorriso triste.
— O mais antigo de todos, se formos acreditar nos mais entusiastas.
— Será que não houve um tempo em que Comporellon comandava um grupo relativamente grande de planetas? Será que não existem muitos entre vocês que sonham em recuperar a glória perdida?
— Como poderíamos perseguir um sonho tão manifestamente impossível? Antes de conhecer bem suas ideias, achava que eram fantasias; agora, tenho certeza.
— Alguns sonhos podem parecer impossíveis, mas acabam se transformando em realidade. Terminus, localizado na borda da Galáxia e com apenas quinhentos anos de idade, o que não é nada para um mundo, controla praticamente toda a Galáxia. Por que Comporellon não pode superá-lo? Hein?
Trevize estava sorrindo. Lizalor continuou séria.
— Terminus chegou à posição que ocupa graças ao Plano de Seldon.
— Esta é uma vantagem psicológica, o fato de muita gente acreditar nesta explicação. É provável, porém, que o governo de Comporellon seja mais cético. Mesmo assim, Terminus desfruta de uma considerável liderança tecnológica. Na verdade, Terminus conquistou a hegemonia da Galáxia graças a sua tecnologia de ponta... da qual a nave gravítica na qual você está tão ansiosa para pôr as mãos representa um excelente exemplo. Terminus é o único planeta da Galáxia inteira que dispõe de naves gravíticas. Se Comporellon conseguisse uma dessas naves e pudesse desmontá-la para ver como funciona, estaria dando um passo gigantesco em seu progresso tecnológico. Não acho que seria suficiente para ameaçar a liderança de Terminus, mas talvez 0 seu governo pense de outra forma.
— Não pode estar falando sério! — exclamou Lizalor. — Qualquer mundo que se apoderasse indevidamente de uma nave da Fundação estaria sujeito a sérias represálias! Acha que correríamos esse risco?
— Se a Fundação não soubesse que a nave estava com vocês, não haveria motivo para represálias...
— Nesse caso, Trevize... supondo que a sua análise da situação estivesse correta..., não seria melhor entregar-nos a nave em troca de vantagens pessoais? Se houvesse algum fundo de verdade no que diz, estaríamos dispostos a pagar-lhe uma soma considerável.
— Como podem ter certeza de que eu não contaria tudo à Fundação?
— Porque nesse caso teria que admitir sua própria culpa.
— Eu poderia alegar que fui forçado a entregar a nave contra a minha vontade.
— Sabe muito bem que a prefeito Branno nunca acreditaria em você. Vamos, faça um acordo conosco!
Trevize sacudiu a cabeça.
— Não posso, ministro. A nave é minha e continuará a ser minha. Como já expliquei, qualquer tentativa de arrombá-la terá como consequência uma enorme explosão. Pode crer que é verdade. Não estou blefando.
— Você sabe como abri-la sem provocar explosão. - Claro que sei, mas não vou contar a ninguém.
Lizalor deu um profundo suspiro.
— Sabe que podemos forçá-lo a mudar de ideia... Se não for pelo que podemos fazer a você, será pelo que pudermos fazer ao seu amigo, dr. Pelorat, ou à jovem.
— Tortura, ministro? É assim que vocês agem?
— Não, conselheiro. Não precisamos recorrer a métodos tão primitivos. Sempre existe a Sonda Psíquica...
Pela primeira vez desde que havia entrado no apartamento da ministro, Trevize sentiu um calafrio.
— Duvido muito. O uso da Sonda Psíquica por pessoas não autorizadas está proibido em toda a Galáxia.
— Se não nos deixar alternativa...
— Estou disposto a correr o risco — afirmou Trevize, com toda a calma. — Não vai adiantar nada para vocês. Minha decisão de conservar a nave é tão firme que a Sonda Psíquica destruirá a minha mente antes de conseguir fazer-me mudar de ideia! — Aquilo era um blefe, pensou Trevize. — Mesmo, porém, que fossem suficientemente hábeis para me persuadir a abrir a nave e entregá-la a vocês, isso seria inútil. O computador da nave é um modelo novo, que foi programado... não me pergunte como... para trabalhar exclusivamente para mim. É o que se poderia chamar de computador individual.
— Suponhamos, então, que você continue de posse da sua nave. O que acha da ideia de pilotá-la para nós... como cidadão comporeliano? Um salário de príncipe. Todo o conforto. Para os seus amigos, também.
— A resposta é não.
— O que sugere então? Que a gente simplesmente deixe você e seus amigos irem embora? Seria preferível avisar à Fundação que vocês estão aqui e deixar que eles cuidem do resto!
— E perder a nave?
— Se temos que perder a nave, melhor perdê-la para a Fundação do que para um aventureiro qualquer.
— Deixe-me então propor uma solução de compromisso.
— Uma solução de compromisso? Está bem, pode falar. Trevize começou, pronunciando as palavras com cuidado:
— Estou no meio de uma importante missão, que começou com o apoio da Fundação. Parece que esse apoio foi retirado, mas nem por isso a missão deixou de ser importante. Se Comporellon me oferecer: o apoio de que preciso e eu conseguir completar a missão com sucesso, todos só terão a lucrar.
Lizalor olhou para ele, indecisa.
— Quando a missão terminar pretende devolver a nave à Fundação?
— Claro que não. A Fundação não estaria tão empenhada em recuperar a nave se tivesse esperanças de que eu a devolvesse espontaneamente.
— Isso não é a mesma coisa que dizer que nos entregará a nave.
— Depois que terminar a missão, a nave talvez não tenha mais utilidade para mim. Nesse caso, não teria nenhuma objeção a entregá-la a Comporellon.
Os dois se entreolharam em silêncio por alguns momentos.
— Você usou o condicional — disse Lizalor, afinal. — A nave “talvez”... isso não é suficiente.
— Poderia prometer mundos e fundos, mas de que adiantaria isso? O fato de que minhas promessas são limitadas e cautelosas é a maior prova de que estou sendo sincero.
— Faz sentido — concordou Lizalor. — Gostei. Diga-me qual é a sua missão e em que ela beneficiaria Comporellon.
— Não, não, é a sua vez. Você me ajudará se eu lhe mostrar que minha missão é importante para o futuro de Comporellon?
A ministro Lizalor levantou-se do sofá, uma figura alta, majestosa.
— Estou com fome, conselheiro Trevize, e não posso prosseguir de estômago vazio. Vamos comer e beber alguma coisa... com moderação. Depois, discutiremos o assunto.
Nesse instante, Trevize surpreendeu um brilho de antecipação quase canibalesco nos olhos da ministro, algo que o fez cismar por muito tempo.
A refeição podia ser nutritiva, mas não agradava ao paladar. O prato principal era uma carne assada com um molho picante, acompanhada por uma verdura que Trevize não conhecia e cujo sabor agridoce considerou extremamente enjoativo. Mais tarde descobriu tratar-se de um tipo de alga.
Como sobremesa, comeram uma fruta que parecia uma mistura de pêssego e maçã (nada má, comparada com o resto) e depois beberam um líquido preto tão amargo que Trevize desistiu na metade e pediu um copo d’água. As porções eram pequenas, mas, dadas as circunstâncias, satisfatórias.
Durante todo aquele tempo, não apareceu mais ninguém. A própria Lizalor tinha esquentado e servido a comida, e foi a própria Lizalor que tirou a mesa e lavou os pratos.
— Espero que tenha gostado do jantar — disse Lizalor, quando voltaram para a sala de visitas.
— Estava ótimo — disse Trevize, sem entusiasmo. A ministro tornou a sentar-se no sofá.
— Vamos voltar ao ponto em que estávamos — disse. — Você sugeriu que Comporellon talvez se ressentisse do papel de liderança exercido pela Fundação em relação à Galáxia como um todo. De certa forma, isto pode ser verdade, mas este aspecto da situação interessa apenas aos que estão envolvidos nas questões de política interestelar, que não são muitos em nosso planeta. Não, o mais importante é que o comporeliano médio está horrorizado com a imoralidade da Fundação. A imoralidade existe em todos os planetas, mas em Terminus parece haver ultrapassado todos os limites. Eu diria que esta é a principal razão para o sentimento anti-Terminus que existe atualmente neste planeta.
— Imoralidade? — repetiu Trevize, genuinamente surpreso. — Sejam quais forem os erros da Fundação, tem que admitir que ela administra a Galáxia com honestidade e eficiência. Os direitos civis são quase sempre respeitados e...
— Conselheiro Trevize, estou falando de moralidade sexual.
— Nesse caso, não entendi mesmo. Somos uma sociedade extremamente moralista do ponto de vista sexual. As mulheres são representadas em todos os órgãos do governo. Nosso prefeito é uma mulher e quase metade do Conselho é composta por...
A ministro fez um gesto de impaciência.
— Conselheiro, está se fazendo de desentendido? Deve saber o que significa moralidade sexual. O casamento é ou não é um sacramento em Terminus?
— O que quer dizer com “sacramento”?
— Existe uma cerimônia formal em que os casais se comprometem a viver juntos?
— Sim, existe. Essa cerimônia tem valor jurídico e simplifica vários problemas legais, como os de impostos e heranças.
— Mas o divórcio é permitido.
― Naturalmente. Seria imoral obrigar duas pessoas a compartilharem a mesma casa quando...
— Não existem restrições religiosas?
— Religiosas? Existem pessoas que ainda praticam certos cultos antigos, mas o que tem isso a ver com casamento?
— Conselheiro, aqui em Comporellon, todos os aspectos do sexo são fortemente controlados. Não pode haver sexo fora do casamento. Sua expressão é limitada mesmo dentro do casamento. Ficamos profundamente chocados com esses mundos, especialmente Terminus, onde o sexo é encarado como simples prazer social e praticado sem nenhum respeito pelos valores religiosos.
Trevize franziu a testa.
— Sinto muito, mas não posso reformar a Galáxia, ou mesmo Terminus... O que tem isso a ver com a questão da minha nave?
— Estou falando da opinião pública a respeito da sua nave e de como ela limita o meu poder de negociação. O povo de Comporellon ficaria horrorizado ao saber que você e seu companheiro trouxeram a bordo uma mulher jovem e atraente apenas para satisfazer aos seus desejos lascivos durante a viagem. Foi por estar muito preocupada com a segurança de vocês que propus um acordo informal em lugar de um julgamento público.
— Estou vendo que aproveitou a interrupção da conversa para pensar em novas formas de intimidação. Quer dizer que agora devo temer um linchamento?
— Estou só explicando como o nosso povo se sente. Como poderá negar que a mulher que veio com vocês não passa de uma conveniência sexual?
— Com toda a facilidade. Bliss é a companheira do meu amigo, o dr. Pelorat. Os dois no momento não têm outros parceiros. Talvez não estejam legalmente casados, mas acredito que, moralmente, a união entre eles é bastante sólida.
— Está querendo me dizer que nunca teve nada com a moça?
— Exatamente — disse Trevize. — Quem você pensa que eu sou? — Não posso saber. Não conheço o seu código moral.
— Deixe-me então explicar que o meu código moral me faz respeitar as companheiras dos meus amigos.
— Você nunca se sentiu pelo menos tentado?
— Não posso evitar as tentações, mas posso resistir a elas.
— Sempre? Talvez não se interesse por mulheres.
— Bobagem.
— Há quanto tempo não faz amor com uma mulher?
— Há vários meses. Desde que partimos de Terminus.
— Não sente falta?
— Claro que sim! — exclamou Trevize, com irritação. — Acontece que não tive escolha!
―- Acredito que o seu amigo, Pelorat, ciente do seu problema, estaria disposto a compartilhar a mulher com você.
— Ele não sabe que eu sofro com isso, mas mesmo que soubesse, não gostaria de dividir Bliss comigo. E nem a mulher concordaria. Ela não sente nenhuma atração por mim.
―- Está dizendo isso porque já tentou conquistá-la?
— Não, eu não tentei conquistá-la. Não preciso tentar conquistá-la para saber. Além disso, também não gosto dela.
― Incrível! Pensei que todos os homens a considerassem atraente.
— Sei que Bliss tem tudo no lugar. Mesmo assim, não é o meu tipo. Para começar, considero-a muito criança, muito infantil em algumas coisas...
―- Então prefere mulheres mais maduras? Trevize parou para pensar. Estaria caindo em uma armadilha? Respondeu, de forma cautelosa:
— Tenho idade suficiente para apreciar mulheres maduras. Que é que isso tem a ver com minha nave?
— Esqueça sua nave, pelo menos por um momento — disse Liza-lor. — Tenho 46 e continuo solteira. Acho que nunca tive tempo para me casar.
— Nesse caso, pelas regras da sua sociedade, você ainda deve ser virgem. Foi por isso que me perguntou há quanto tempo não faço amor? Quer saber minha opinião a respeito do assunto? Pois vou lhe dizer: sexo não é como oxigênio ou comida. É desagradável passar sem sexo, mas não é impossível.
A ministro sorriu e Trevize viu de novo aquele brilho canibalesco em seus olhos.
— Não me entenda mal, Trevize. O poder tem seus privilégios e é possível fazer as coisas de forma discreta. Faz muito tempo que deixei de ser virgem. Entretanto, os homens de Comporellon são parceiros bastante sofríveis. Aceito a tese de que a moralidade no sentido geral da palavra só pode ser benéfica a um povo, mas neste caso em particular tende a carregar nossos homens de culpa, de modo que eles se tornam tímidos, sem imaginação, lentos para começar, rápidos para terminar, e, de forma geral, extremamente inábeis.
— Quanto a isso, também, não há nada que eu possa fazer — disse Trevize, cautelosamente.
— Está insinuando que a culpa pode ser minha? Que os homens não sentem atração por mim?
— Não foi isso que eu disse! — protestou Trevize.
— Nesse caso, como você reagiria, se tivesse a oportunidade? Você, que vem de um planeta imoral, que certamente já passou por um sem-número de experiências sexuais das mais variadas, que vem de vários meses de abstinência forçada na presença constante de uma mulher jovem e bonita. Como reagiria diante de uma mulher como eu, do tipo maduro que você diz apreciar?
— Eu me comportaria com o respeito e a dignidade condizentes com a importância do seu cargo — respondeu Trevize.
— Não seja tolo! — exclamou a ministro.
Levou a mão à cintura. A faixa branca que envolvia o pescoço e o peito ficou visivelmente mais frouxa. As golas do vestido se separaram.
Trevize ficou paralisado. Ela estava planejando aquilo desde... desde quando? Ou estaria tentando conseguir através do sexo o que não conseguira com ameaças?
A parte de cima do vestido se abriu completamente e a ministro ficou ali sentada, nua da cintura para cima, com uma expressão desdenhosa no olhar. Os seios eram uma versão menor da mulher em si: cheios, firmes e imponentes.
— Então? — perguntou.
— Estou deslumbrado! — exclamou Trevize, com toda a sinceridade.
— O que vai fazer a respeito? .....
— O que dizem as regras de conduta locais? — perguntou Trevize.
— O que significam nossas regras de conduta para um homem de Terminus? Como você acha que deve reagir? Venha cá. Estou ficando com frio.
Trevize levantou-se e começou a tirar a roupa.
Trevize sentia-se quase como se tivesse sido drogado. Imaginou que horas seriam.
A seu lado estava Mitza Lizalor, ministro dos Transportes, deitada de bruços, com o rosto apoiado no travesseiro, a boca aberta, ressonando ruidosamente. Trevize sentiu-se aliviado por ela estar dormindo. Quando acordasse, esperava que tivesse consciência do fato de que havia adormecido.
Trevize também estava com sono, mas fazia um esforço consciente para manter-se acordado. Era importante que Lizalor não o visse dormindo. Que tivesse a impressão de ter chegado à exaustão, enquanto ele já estava pronto para outra. Era o mínimo que podia esperar de um atleta sexual criado na Fundação; não queria que ficasse desapontada.
Até que, considerando as circunstâncias, ele se havia saído muito bem. Tinha adivinhado, corretamente, que Lizalor, dado o seu tamanho e força física, o seu poder político, o desprezo que sentia pelos homens de Comporellon que conhecera, a mistura de horror e fascinação que sentia pelas supostas proezas sexuais (que histórias teriam contado a ela?, pensou Trevize) dos decadentes habitantes de Terminus, nutria um desejo secreto de ser dominada.
Trevize tinha agido de acordo com essa suposição e, para sua grata surpresa, descobrira que estava absolutamente certo. (Trevize, o homem que não erra nunca, repetiu, em tom de brincadeira.). Além de agradar à mulher, pudera dirigir as atividades de forma a deixá-la esgotada enquanto ele próprio se poupava na medida do possível.
Não tinha sido fácil. Lizalor tinha um corpo maravilhoso (46, dissera ela, mas seu corpo não envergonharia uma jovem de 25) e uma energia quase inesgotável, só superada pelo entusiasmo com que a utilizava.
Na verdade, se ela pudesse ser domada e aprendesse as virtudes da moderação; se com a prática (conseguiria ele próprio sobreviver às sessões de treinamento?) viesse a conhecer melhor seu próprio corpo e o corpo do parceiro, então...
Lizalor parou de ressonar e se remexeu na cama. Trevize tocou-a de leve com a mão e ela abriu os olhos. Trevize estava apoiado em um cotovelo e fez o possível para parecer descansado e cheio de vida.
— Foi bom você dormir, querida — disse. — Estava precisando descansar.
Os lábios de Lizalor se abriram em um sorriso sonolento e, por um momento, Trevize temeu que fosse convidá-lo para uma nova sessão. Entretanto, ela se limitou a rolar na cama, ficando deitada de costas.
— Eu estava certa... você é um rei do sexo! Trevize tentou parecer modesto.
— Preciso aprender a me controlar.
— Não diga tolices. Você é fantástico! Tinha medo de que aquela mocinha tivesse consumido suas energias, mas você me assegurou que ela pertencia exclusivamente ao seu amigo. Estava falando a verdade, não estava?
— Acha que me comportei como alguém que está saciado de sexo?
— Não, de jeito nenhum! — exclamou Lizalor, com uma sonora gargalhada.
— Ainda está pensando em me submeter à Sonda Psíquica? Ela riu de novo.
— Está maluco? E me arriscar a perder você?
— Seria melhor se você me perdesse temporariamente...
— O quê?
— Se eu ficasse aqui permanentemente, quanto tempo acha que levaria para as pessoas começarem a falar? Por outro lado, se eu partisse para continuar minha missão, poderia voltar periodicamente a Comporellon, e todos achariam natural que nos encontrássemos em particular... além disso, minha missão é realmente muito importante!
Lizalor refletiu um pouco, coçando distraidamente o quadril direito, e depois disse:
— Acho que você tem razão. A ideia não me agrada, mas... acho que tem razão.
— E não precisa ter medo de que eu não volte — disse Trevize — Não, quando sei o que me espera aqui.
Lizalor sorriu para ele, acariciou-lhe o rosto e disse, olhando-o nos olhos:
— Foi bom para você, amor?
— Muito mais que isso, querida.
— Você é da Fundação. Um homem no apogeu da juventude, que passou a vida em Terminus. Deve estar acostumado a mulheres de todos os tipos, com todos os tipos de...
— Jamais conheci uma mulher como você — disse Trevize, com uma convicção que era fácil para alguém que, afinal de contas, estava! dizendo a verdade.
— Oh, está bem. Mesmo assim, você sabe, o hábito é uma segunda natureza, e não consigo acreditar na palavra de um homem sem al-gum tipo de garantia. Você e seu amigo Pelorat poderão prosseguir nessa missão de vocês assim que me falarem a respeito e eu aprovar, mas a mocinha vai ficar aqui. Ela será muito bem tratada, não se preocupe. Assim, o dr. Pelorat sentirá saudades e se encarregará de exigir frequentes visitas a Comporellon, mesmo que o seu entusiasmo pela missão o leve a ficar afastado tempo demais.
— Isso é impossível, Lizalor.
— Impossível? — repetiu Lizalor, com um olhar de suspeita. — Impossível por quê? Para que precisa da mulher?
— Não para sexo. Já lhe disse isso uma vez e estava falando a verdade. Ela é de Pelorat e não sinto interesse por ela. Além disso, acho que não aguentaria metade do que você fez com tanta desenvoltura ontem à noite.
Lizalor quase sorriu, mas controlou-se e disse, muito séria:
— Que diferença faz, então, se ela ficar em Comporellon?
— Acontece que ela é essencial para a nossa missão. É por isso que deve ir conosco.
— Afinal, que missão é essa? Já é tempo de você me contar.
Trevize hesitou apenas por um momento. Teria que contar a verdade. Não podia imaginar nenhuma mentira que causasse um impacto semelhante.
— Preste atenção — disse. — Comporellon pode ser um mundo antigo, talvez até um dos mais antigos, mas não pode ser o mais antigo. Não foi aqui que começou a vida humana. Os primeiros seres humanos neste planeta vieram de outro mundo, e talvez a vida humana não tenha surgido nesse mundo, mas tenha vindo de outro ainda mais antigo. Entretanto, essa cadeia tem que ter um fim; se voltarmos cada vez mais no tempo, acabaremos por chegar ao primeiro mundo, o mundo que foi a origem da raça humana. Estou procurando a Terra.
A reação de Mitza Lizalor deixou Trevize estupefato Seus olhos se arregalaram, a respiração disparou e todos os músculos do corpo se retesaram. Ela ficou ali deitada, rígida, com os dois braços levantados em ângulo reto com o corpo, o indicador e o anular de cada mão cruzados.
— Não diga essa palavra — murmurou, com voz rouca.
Lizalor não disse mais nada, nem olhou para ele. Os braços desceram devagar, ela girou o corpo e sentou-se na cama, de costas para Trevize, que ficou onde estava, paralisado.
Trevize estava se lembrando das palavras de Munn Li Compor, quando os dois conversavam no Centro de Turistas de Sayshell. Podia ouvi-lo dizer, referindo-se ao planeta dos seus ancestrais, o mesmo planeta em que Trevize estava agora: “São supersticiosos. Sempre que mencionam esse nome, erguem ambas as mãos com o indicador e o médio cruzados, para afastar a má sorte.”
De que adiantava lembrar-se depois que o mal já estava feito?
— Que palavra eu devia ter usado, Mitza? — perguntou. Lizalor sacudiu a cabeça, levantou-se e saiu por uma porta, que fechou atrás de si. Pouco depois, Trevize ouviu o barulho de água correndo.
Não havia nada a fazer senão esperar, nu, frustrado, pensando a princípio se não seria melhor entrar no chuveiro junto com Lizalor e logo chegando à conclusão de que isso não seria aconselhável. Estranhamente, sentiu uma necessidade imperiosa de tomar um banho.
Lizalor saiu do banheiro em silêncio e começou a escolher uma roupa para vestir.
— Você se importa se eu... ? — perguntou Trevize.
Lizalor não respondeu e Trevize supôs que ela não se incomodasse. Tentou atravessar o quarto com passos firmes, masculinos, mas se sentia como nos dias em que a mãe, aborrecida com alguma peralticesua, resolvia puni-lo apenas com o silêncio, castigo que o deixava desnorteado.
Entrou no banheiro e viu-se em um cubículo de paredes nuas... totalmente nuas. Examinou melhor. Não havia nada.
Abriu a porta, pôs a cabeça para fora e disse:
— Escute, como é que a gente faz para ligar o chuveiro?
Lizalor deixou o desodorante de lado (pelo menos, o que Trevize achou que era um desodorante), foi até a porta do banheiro e apontou, sem olhar para o rapaz. Trevize olhou para o lugar indicado e viu uma pequena mancha rósea na parede. Dando de ombros, inclinou-se na direção da parede e encostou o dedo na mancha. Aparentemente, era tudo o que era necessário, pois imediatamente um dilúvio de jatos finos de água se lançou sobre ele de todas as direções. Sufocado, tocou de novo o lugar e a água parou.
Trevize abriu a porta, ciente de que parecia ainda mais ridículo agora que o frio o fazia tremer, tornando difícil articular as palavras.
— C-como se f-faz para esquentar a água?
Lizalor olhou finalmente para ele e o aspecto do rapaz a fez esquecer a raiva (ou medo, ou qualquer que fosse a emoção que estava sentindo) e explodir em uma sonora gargalhada.
— Esquentar a água? Acha que vamos gastar energia esquentando a água de banho? Meu banheiro tem água morna. O que mais você quer? Vocês terminianos são uns molengas! Agora entre aí e lave-se!
Trevize hesitou, mas não por muito tempo, porque não tinha saída. Relutantemente, tornou a tocar na mancha rosada e dessa vez preparou o corpo para o choque. Água morna? Descobriu que o corpo estava coberto de espuma e começou a esfregar-se, calculando que o ciclo de lavar não duraria muito tempo.
Depois veio o ciclo de enxaguar. Ah, água quente... bem, quente, propriamente, não, mas menos gelada que no ciclo anterior. Então, no momento em que se preparava para tocar de novo na mancha e se perguntava como Lizalor havia saído do banho totalmente seca quando não havia nenhuma toalha à vista... a água parou. Seguiu-se um jato de ar que certamente o teria derrubado se não viesse de várias direções ao mesmo tempo.
Era quente; quase quente demais. Era preciso muito menos energia para aquecer o ar do que para aquecer a água, pensou Trevize. Em poucos minutos, estava totalmente seco.
Lizalor parecia totalmente recuperada.
— Como está se sentindo?
— Muito bem — respondeu Trevize. — Da primeira vez, eu estava desprevenido. Você não me avisou que a água era fria...
— Seu molenga — disse Lizalor, em tom carinhoso.
Trevize pediu emprestado o desodorante e depois começou a vestir-se, consciente do fato de que ela tinha roupas de baixo limpas para vestir e ele não.
— Como eu devia ter chamado... aquele planeta? — perguntou.
— Nós o chamamos de O Mais Antigo.
— Como eu iria saber que o nome que usei era proibido? Você me contou?
— Você perguntou?
— Por que iria perguntar?
— Não importa... agora você já sabe!
— E se eu esquecer?
— Não faça isso!
— Qual a diferença? É apenas uma palavra, um som! — exclamou Trevize, com impaciência.
— Existem palavras que não devem ser ditas. Você se sente livre para usar todas as palavras que conhece em qualquer circunstância?
— Algumas palavras são grosseiras, outras inadequadas, outras, em certas condições, podem ser perigosas. A que categoria pertence a palavra... a palavra que eu disse?
— É uma palavra triste, uma palavra solene — explicou Lizalor. — Representa um mundo que foi o berço de todos nós e que não existe mais. Somos especialmente sensíveis porque esse mundo ficava perto de nós. Preferimos não falar dele, mas se isso é necessário, nunca pronunciamos o seu nome.
— Mas por que cruzou os dedos? De que jeito isso afasta a tristeza?
Lizalor enrubesceu.
— Foi uma reação involuntária. Algumas pessoas pensam que essa palavra traz má sorte... e que cruzar os dedos é a única defesa.
— Você acredita nisso?
— Não... ou por outra, sim, de certa forma. — Como se estivesse ansiosa para mudar de assunto, disse depressa: — Por que você precisa de sua amiga de cabelos pretos para encontrar... para encontrar o mundo que está procurando? — Por que não disse “O Mais Antigo”? Será que também dá azar?
— Prefiro não discutir o assunto. Responda à minha pergunta.
— Acho que o planeta de onde ela vem foi colonizado por emigrantes d’O Mais Antigo.
— Como o nosso — disse Lizalor, com orgulho.
— Acontece que, segundo minha amiga, seu povo tem os conhecimentos necessários para compreender O Mais Antigo. Antes, porém, temos que localizá-lo e estudar seus registros.
— Se o que você quer é visitar O Mais Antigo acompanhado por essa mulher, por que veio a Comporellon?
— Para tentar descobrir onde fica O Mais Antigo. Tive um amigo em Terminus que descendia dos comporelianos. Ele me assegurou que boa parte da história d’O Mais Antigo era bem conhecida em Comporellon.
— Verdade? E ele contou a você alguma coisa dessa história?
— Contou. Disse que O Mais Antigo era um mundo morto, totalmente radioativo. Ele não sabia por quê, mas achava que devia ser o resultado de explosões nucleares. Uma guerra, talvez.
— Não! — exclamou Lizalor.
— Não, não foi uma guerra? Ou não, O Mais Antigo não está radioativo?
— Está radioativo, mas não por causa de uma guerra.
— Então como foi que ficou radioativo? Não pode ter sido assim desde o começo, caso contrário seria um planeta estéril.
Lizalor pareceu hesitar.
— Foi um castigo — disse, afinal. — Era um mundo que usava robôs. Sabe o que é um robô?
— Sei.
— Os habitantes d’O Mais Antigo tinham robôs e por isso foram punidos. Todos os mundos que usavam robôs foram punidos e não existem mais.
— Quem os puniu, Lizalor?
— Aquele Que Pune. As forças da História. Não sei. — Desviou os olhos do rapaz e acrescentou, em voz baixa: — Pergunte por aí.
— Bem que eu gostaria, mas perguntar a quem? Existem estudiosos de História antiga em Comporellon?
— Existem, sim. Não são muito populares aqui... mas a Fundação, a sua Fundação, insiste no que chama de liberdade acadêmica.
— Uma insistência bastante louvável, na minha opinião. — Nada que é imposto pode ser louvável.
Trevize franziu a testa. Não adiantava continuar a discussão. Resolveu mudar a abordagem.
— Meu amigo, o dr. Pelorat, é um estudioso de História antiga — começou. — Estou certo de que gostaria muito de se encontrar com os colegas locais. Você poderia arranjar isso, Lizalor?
A ministro assentiu.
— Existe um historiador chamado Vasil Deniador que trabalha na Universidade aqui mesmo na capital. Ele não dá aulas, mas pode contar muita coisa para vocês.
— Por que não dá aulas?
— Não porque seja proibido; é que os alunos nunca escolhem o seu curso.
— Imagino — disse Trevize, esforçando-se para não parecer irônico — que o curso dele não seja propriamente recomendado aos estudantes...
— Por que seria? Ele é um cético. Também temos céticos aqui, sabia? Indivíduos que têm ideias extravagantes e são suficientemente arrogantes para pensar que eles, sozinhos, estão certos, enquanto que a maioria está errada!
— E isso não pode acontecer em alguns casos?
— Nunca! — exclamou Lizalor, com tal veemência que ficou claro que jamais admitiria o contrário. — E com todo o seu ceticismo, o dr. Deniador será obrigado a dizer para vocês a mesma coisa que qualquer comporeliano diria.
— O quê?
— Que se vocês procurarem O Mais Antigo, não o encontrarão.
NOS aposentos que haviam sido reservados para eles, Pelorat escutou atentamente a história de Trevize e depois observou:
— Vasil Deniador? Não me lembro do nome, mas pode ser que encontre algum artigo escrito por ele na biblioteca da nave.
— Tem certeza de que não reconhece o nome? Pense!
— Não me lembro, mesmo — disse Pelorat. — Mas afinal de contas, meu amigo, deve haver centenas de cientistas de valor de quem eu nunca ouvi falar... ou ouvi falar e me esqueci.
— Mesmo assim, não pode ser um cientista de primeira linha, caso contrário você o conheceria de nome! — O estudo da Terra...
— É melhor se acostumar a dizer “O Mais Antigo”, Janov. Não queremos ofender os locais...
— O estudo d’O Mais Antigo — recomeçou Pelorat — não é um dos assuntos mais populares, de modo que os cientistas de primeira linha, mesmo no campo da História antiga, não se dedicam a ele. Se quiser interpretar de outra forma, o assunto desperta tão pouco interesse que os cientistas que se dedicam a ele jamais são considerados de primeira linha. Eu, por exemplo, não sou considerado por ninguém como um cientista de primeira linha.
— Para mim, Pel, você é um cientista de primeiríssima linha — disse Bliss, carinhosamente.
— Acredito, minha querida — disse Pelorat, com um leve sorriso —, mas você não está julgando minha capacidade profissional.
Era quase noite, a julgar pelas horas, e Trevize sentiu-se um pouco impaciente, como se sentia sempre que Bliss e Pelorat começavam a trocar gentilezas. Ele disse:
— Vou tentar marcar nosso encontro com Deniador para amanhã, mas se ele sabe tanto a respeito do assunto quanto a ministro, vamos sair dê mãos abanando.
— Pode ser que ele nos forneça alguma pista nova.
— Duvido muito. A atitude deste planeta em relação à Terra... é melhor eu também me acostumar a falar por eufemismos. A atitude desta planeta em relação a O Mais Antigo é uma atitude tola e supersticiosa. Mas tivemos um dia cheio e devíamos pensar em comer alguma coisa... a comida daqui é tão sem graça!... e depois dormir. Vocês dois já sabem usar o chuveiro?
— Meu caro amigo — disse Pelorat —, temos sido muito bem tratados. Recebemos instruções de todos os tipos, quase todas desnecessárias.
— E a nave, Trevize? — perguntou Bliss.
— Como assim?
— O governo de Comporellon vai confiscá-la?
— Não, acho que não.
— Que bom! Por que não?
— Porque fiz a ministro mudar de ideia.
— Espantoso! — exclamou Pelorat. — Ela me pareceu uma pessoa difícil de dobrar.
— Não sei, não — disse Bliss. — Pude ler com toda a clareza em sua mente que ela se sentia atraída por Trevize.
Trevize olhou para Bliss com uma irritação súbita.
— Você fez isso, Bliss?
— O que quer dizer?
— Você mexeu com as emoções...
— Não mexi, propriamente. Entretanto, quando percebi que ela sentia atração por você, não pude deixar de suprimir uma inibição ou outra. Foi uma coisa muito pequena. Essas inibições poderiam ter desaparecido naturalmente e era importante que ela estivesse cheia de boa vontade em relação a você.
— Boa vontade? Foi muito mais que isso! Ela ficou doida para fazer amor comigo!
— Quer dizer que vocês dois... — começou Pelorat.
— Por que não? — interrompeu Trevize. — Ela pode não ser nenhuma jovem, mas conhece bem a arte. Não é nenhuma principiante, isso eu garanto. E nem vou bancar o cavalheiro e mentir para protegê-la. A ideia foi dela... depois que Bliss removeu as inibições... e eu não estava em posição de recusar, mesmo que quisesse, o que não era o caso. Vamos, Janov, não faça essa cara de puritano. Faz vários meses desde que eu estive com uma mulher pela última vez. Enquanto isso, vocês...
— Acredite, Golan — disse Pelorat, envergonhado —, está interpretando mal minha expressão. Não o censuro de modo algum.
— Por outro lado, ela devia ser puritana! — disse Bliss. — Queria apenas que ela simpatizasse com você; não esperava provocar um paroxismo sexual!
— Pois foi exatamente o que você provocou, minha pequena metida. A ministro pode ter que desempenhar o papel de puritana em público, mas isso serve apenas para reavivar o fogo que tem dentro de si.
— E assim, contanto que você lhe dê prazer, ela estará pronta a trair a Fundação...
— Ela teria feito isso de qualquer forma — disse Trevize. — Ela queria a nave para... — Interrompeu o que estava dizendo e sussurrou: — Alguém está nos ouvindo?
— Não! — respondeu Bliss.
— Tem certeza?
— Absoluta. É impossível espreitar a mente de Gaia sem que Gaia perceba.
— Está bem. O que eu estava dizendo é que ela quer a nave para Comporellon... uma excelente aquisição para a armada do planeta, não acham?
— A Fundação jamais permitiria isso.
— E se a Fundação não ficasse sabendo? Bliss suspirou.
— Vocês, Isolados, são estranhos! A ministro pretende trair a Fundação para favorecer Comporellon, mas, em troca de sexo, está pronta a também trair Comporellon. E você, Trevize, não hesita em vender seu corpo para conseguir o que quer. Quanta anarquia, na Galáxia de vocês! É o próprio caos!
— Está muito enganada, mocinha... — começou Trevize.
— Não estava falando como mocinha, e sim como Gaia. Eu sou Gaia.
— Então está muito enganado, Gaia. Não vendi meu corpo. Ofereci-o espontaneamente. Isso me deu prazer e não fiz mal a ninguém. Quanto às consequências, não nego que tenham sido favoráveis para minha missão. Que mal há nisso? A nave pertence à Fundação, mas foi confiada a mim quando recebi a missão de procurar a Terra. Considero-a minha até terminar a busca; não acho que a Fundação tenha o direito de desistir do acordo. Quanto a Comporellon, não aprecia nem um pouco o domínio da Fundação; pelo contrário, sonha com independência. A seus próprios olhos, é perfeitamente correto enganar a Fundação; não se trata de um ato de traição, mas de um ato de patriotismo. Quem sabe?
— Exatamente. Quem sabe? Em uma Galáxia de anarquia, como é possível separar os atos razoáveis dos que não são razoáveis? Quem decide o que é certo e o que é errado, o que é bom e o que é mau, o que é útil e o que é inútil? Como explica que a ministro seja capaz de trair seu próprio governo, deixando você ficar com a nave? Será que ela anseia por liberdade pessoal em um mundo totalitário? Devemos considerá-la uma traidora ou uma patriota na oposição?
— Para ser franco — disse Trevize —, não sei se ela resolveu me devolver a nave simplesmente por gratidão pelo prazer que lhe proporcionei. Acho que só tomou a decisão quando lhe contei que estava procurando O Mais Antigo. Para ela, trata-se de um mundo proibido, e nossa nave, por estar sendo usada nessa busca, também se tornou proibida. Tenho a impressão de que Lizalor acha que cometeu algum sacrilégio ao tentar apossar-se da nave. Talvez pense que ao nos deixar ir embora esteja prestando um serviço a Comporellon, livrando o planeta da má sorte de que nós e nossa nave somos portadores. Nesse caso, o ato dela poderia ser considerado como patriótico.
— Mesmo que sua interpretação esteja correta, o que eu duvido, Trevize, a decisão da ministro se baseou em mera superstição. Você admira isso?
— Não admiro nem condeno. Na falta de conhecimentos suficientes, o ser humano sempre recorreu à superstição. A Fundação acredita no Plano de Seldon, embora nenhum de nós seja capaz de compreendê-lo, interpretá-lo ou usá-lo para fazer previsões. Seguimos cegamente o plano graças a nossa ignorância e nossa fé; isso não pode ser chamado de superstição?
— Acho que sim.
— No caso de Gaia é a mesma coisa. Vocês acreditam que eu tomei a decisão correta ao julgar que Gaia deveria absorver toda a Galáxia e transformá-la em um único organismo, mas não sabem por que eu tenho que estar certo, nem quais são os riscos envolvidos. Concordam comigo apenas por causa de ignorância e da fé e chegam a ficar aborrecidos quando eu tento descobrir fatos que acabariam com a ignorância e talvez tornassem a fé desnecessária. Isso não é superstição?
— Acho que agora ele pegou você, Bliss — disse Pelorat.
— Não concordo — disse Bliss. — Ou a busca não vai resultar em nada ou Trevize encontrará razões que justifiquem sua decisão.
— Bliss, não há nada que apoie esta sua última afirmação a não ser a ignorância e a fé — disse Trevize. — Em outras palavras, superstição!
Vasil Deniador era um homem baixinho, de feições miúdas, que tinha mania de olhar para o interlocutor sem mover a cabeça, apenas levantando os olhos. Esse hábito, combinado com o breve sorriso que periodicamente iluminava-lhe o semblante, fazia com que parecesse alguém que está sempre achando graça nas coisas que o cercam.
O escritório que ocupava era comprido e estreito, cheio de fitas magnéticas que pareciam em total desordem, não porque houvesse qualquer indicação concreta disso, mas porque não tinham sido introduzidas até o fim nos seus nichos, o que dava às prateleiras um aspecto irregular. As três cadeiras que indicou para os visitantes não combinavam entre si e davam a impressão de terem sido espanadas recentemente, sem muito sucesso.
— Janov Pelorat, Golan Trevize e Bliss — disse. — Não sei o sobrenome da senhora.
— Todos me chamam de Bliss — replicou a moça, sentando-se.
— Pensando bem, Bliss é mais que suficiente — disse Deniador, piscando o olho para ela. — Uma moça atraente como você não precisa nem de nome.
Os dois homens também se sentaram. Deniador disse:
— Conheço-o de nome, dr. Pelorat. Trabalhou para a Fundação, não é mesmo? Em Terminus?
— Isso mesmo, dr. Deniador.
— Também ouvi falar do senhor, conselheiro Trevize. Soube que não faz muito tempo foi expulso do Conselho e exilado. Gostaria de saber por quê.
— Não é verdade que eu tenha sido expulso. Ainda sou membro do Conselho, embora não tenha data marcada para reassumir minhas funções. Também não fui exilado. Recebi uma missão. É por isso que estamos aqui... talvez possa ajudar-nos.
— Com todo o prazer — disse Deniador. — E a linda mocinha? Também é de Terminus?
— Ela é de outro lugar — respondeu Trevize secamente.
— Ah, é um estranho planeta, esse Outro Lugar! Seus nativos são uma fauna tão variada... Escute, se vocês dois são de Terminus, a capital da Fundação, e a companheira de vocês é uma jovem muito atraente, e se Mitza Lizalor não nutre uma simpatia especial por nenhuma das duas categorias, como explica que tenham sido tão bem recomendados?
— Acho que ela queria livrar-se de nós — explicou Trevize. — Quanto mais depressa nos ajudar, mais depressa deixaremos o planeta.
Deniador olhou para Trevize por um momento, sorriu ironicamente e disse:
— Naturalmente, não seria difícil para a ministro sentir-se atraída por um tipo como o senhor a ponto de esquecer a sua nacionalidade. Ela gosta de se fazer de vestal, mas tudo tem um limite.
— Não sei do que está falando — protestou Trevize, muito sério.
— E é melhor que não saiba... pelo menos oficialmente. Acontece que sou um cético, acostumado a não me deixar levar pelas aparências. De qualquer forma, conselheiro, qual é a sua missão? Vejamos se posso ajudá-lo.
— Prefiro que o dr. Pelorat fale por mim.
— Como quiser. Dr. Pelorat? Pelorat começou:
— Para ir direto ao ponto, meu caro doutor, dediquei a maior parte da minha vida adulta à busca do planeta em que se originou a espécie humana. Fui enviado, juntamente com o meu bom amigo, Golan Trevize, embora, para ser franco, não o conhecesse até iniciarmos a missão, à procura da... isto é, à procura d’O Mais Antigo.
— O Mais Antigo? — repetiu Deniador. — Você deve estar querendo dizer a Terra.
Pelorat ficou de boca aberta por alguns instantes. Depois disse, com alguma hesitação:
— Estava com a impressão... ou por outra, fui levado a crer... que neste planeta ninguém tinha coragem de...
Olhou para Trevize, como que pedindo socorro. Trevize explicou:
— A ministro Lizalor me disse que essa palavra não era usada em Comporellon.
— Quando vocês falaram na Terra ela fez um gesto assim? — Deniador levantou os dois braços, cruzando o indicador e o anular de cada mão.
— Isso mesmo — confirmou Trevize. — Foi isso o que ela fez. Deniador deu uma risada.
— Bobagem, senhores. Fazemos isso apenas por força de hábito. No interior pode ser que ainda haja alguém que leve essa superstição a sério, mas não aqui, na capital. Não conheço nenhum comporeliano que não diga “terra” quando está nervoso ou irritado. É uma das interjeições mais comuns que nós temos.
— Seja como for — insistiu Trevize —, a ministro pareceu bastante perturbada quando eu usei a palavra.
— Talvez seja porque ela foi criada nas montanhas.
— Que quer dizer com isso?
— Mitza Lizalor nasceu e foi criada na Cordilheira Central. Lá as crianças recebem uma educação extremamente conservadora... do tipo que deixa marcas para a vida inteira!
— Então a palavra “terra” não o incomoda nem um pouco, não é mesmo, doutor? — observou Bliss.
— Claro que não, minha cara. Já disse que sou um cético. Trevize interveio:
— Sei o que significa a palavra “cético” em galáctico, mas em que sentido ela é usada aqui?
— No mesmo sentido que no seu mundo, conselheiro. Só aceito o que sou forçado a aceitar diante de provas que mereçam uma confiança razoável; meus julgamentos são provisórios, sujeitos a revisão sempre que surgirem novas provas. Naturalmente, isso não me torna muito popular.
— Por que não? — quis saber Trevize.
— Os céticos não são populares em parte alguma. Qual o mundo cuja população não prefere uma crença morna e respeitável, por mais ilógica que seja, aos ventos frios da incerteza?... Veja como vocês aceitam o Plano de Seldon sem nenhuma prova concreta!
— Tem razão — disse Trevize, olhando para as pontas dos dedos. — Ontem mesmo usei o Plano de Seldon como exemplo do que chamo de superstição.
Pelorat interrompeu:
— Vamos voltar ao que interessa, meu caro. O que é que se conhece a respeito da Terra que até mesmo um cético aceitaria?
— Muito pouco — afirmou Deniador. — Podemos supor que a espécie humana tenha se originado em um único planeta, já que seria extremamente improvável que a mesma espécie surgisse independentemente em vários mundos. Podemos chamar de Terra esse planeta original. Ora, em Comporellon, todos acreditam que a Terra fica neste canto da Galáxia, porque os planetas aqui são muito antigos e é provável que os primeiros planetas a serem colonizados tenham sido os mais próximos da Terra.
— A Terra apresenta alguma característica peculiar, além de ter sido o planeta de origem da espécie humana? — perguntou Pelorat, em tom ansioso.
— Está pensando em alguma coisa em particular? — retrucou Deniador, com um sorriso irônico.
— Estou pensando no satélite da Terra, que alguns chamam de Lua. O satélite seria uma característica peculiar, não seria?
— Esta pergunta é tendenciosa, dr. Pelorat. Está tentando colocar palavras na minha boca.
— Eu não disse por que o satélite da Terra poderia ser considerado peculiar.
— Por causa do tamanho, é claro. Acertei? Estou vendo que sim... Todas as lendas a respeito da Terra falam da grande variedade de seres vivos que abriga e do seu gigantesco satélite, com três mil a três mil e quinhentos quilômetros de diâmetro. A variedade de formas de vida é fácil de aceitar, já que seria uma consequência natural da evolução biológica. Um satélite gigantesco é mais difícil de aceitar. Nenhum outro mundo habitado da Galáxia possui um satélite assim. Os grandes satélites estão invariavelmente associados a gigantes gasosos, inabitados e inabitáveis. Assim, como cético que sou, prefiro não acreditar na existência da Lua.
— Se a Terra é o único planeta que possui milhões de espécies vivas — objetou Pelorat —, por que não pode ser o único planeta habitado que possui um satélite gigantesco? As duas coisas podem estar ligadas.
Deniador sorriu.
— Não vejo como a presença de milhões de espécies na Terra pode vir a criar um satélite do nada.
— Talvez seja o contrário... talvez um satélite gigante tenha ajudado a criar os milhões de espécies.
— Também não consigo imaginar de que forma isso seria possível.
— E quanto ao fato de a Terra ser um planeta radioativo? — quis saber Trevize.
— Este fato faz parte praticamente de todas as lendas — respondeu Deniador.
— Acontece — argumentou Trevize — que a Terra não poderia ter sido radioativa desde o princípio, caso contrário jamais teria sido habitada. Como, então, se tornou radioativa? Uma guerra nuclear?
— É o que a maioria pensa, conselheiro Trevize.
— Pela sua expressão, posso ver que não está de acordo com essa crença.
— Não existe nenhuma prova concreta de que tenha havido uma guerra.
— O que acha, então, que aconteceu?
— Por que teria que acontecer alguma coisa? Talvez a radioatividade da Terra seja tão falsa quanto o seu satélite gigante!
— Poderia contar-nos a história da Terra segundo os comporelianos? — pediu Pelorat. — Através dos anos, tomei conhecimento de muitas lendas sobre a origem da espécie humana. Entretanto, não sei quase nada a respeito dos mitos deste planeta, a não ser pelo fato de que envolvem um personagem misterioso chamado Benbally.
— Isso não me surpreende. Os comporelianos não gostam de discutir o assunto com estranhos. Superstição, o senhor entende. Estou admirado até mesmo que tenha ouvido falar de Benbally.
— Por outro lado, o senhor não é supersticioso e portanto não se incomoda de falar do assunto, não é mesmo?
— Exatamente — disse o historiador, olhando para Pelorat sem mover a cabeça. — Claro que meus compatriotas não aprovariam, mas sei que deixarão em breve o planeta e se prometerem que não vão revelar onde conseguiram a informação...
— Tem nossa palavra de honra — assegurou Pelorat.
— Então aqui está um resumo do que dizem as nossas lendas, depois de expurgadas de todos os enfeites de cunho moralista. Durante muitos e muitos milênios, a Terra foi o único planeta habitado por seres humanos. Então, há cerca de vinte ou vinte e cinco mil anos atrás, o Homem inventou o Salto no hiperespaço, o que tornou possível as viagens interestelares. Em consequência, vários planetas próximos da Terra foram colonizados.
Os colonizadores que chegaram a esses planetas faziam uso de robôs, que tinham sido inventados na Terra antes da era das viagens interestelares... a propósito, vocês sabem o que são robôs, não sabem?
— Sabemos, sim — respondeu Trevize. — Vivem nos perguntando isso. Sim, sabemos o que são robôs.
— Os colonizadores, que viviam em sociedades altamente robotizadas, conseguiram um grande progresso tecnológico e uma longevidade fora do comum. Com o passar dos anos, passaram a sentir desprezo pelo planeta natal. De acordo com as versões mais dramáticas da lenda, chegaram mesmo a dominar e oprimir os habitantes da Terra.
”Quando a Terra mandou para o espaço uma segunda leva de colonizadores, o uso de robôs foi proibido. Comporellon foi um dos primeiros desses novos mundos. Na verdade, nossos patriotas mais extremados insistem em que Comporellon foi o primeiro, mas não há provas concretas de que isso seja verdade. Depois que o primeiro grupo de colonizadores desapareceu...
— Por que o primeiro grupo desapareceu, dr. Deniador? — quis saber Trevize.
— Por quê? Os mais românticos afirmam que eles foram punidos pelos seus crimes por Aquele Que Pune, embora ninguém saiba explicar por que razão Ele esperaria tanto tempo. Mas existe uma razão bem mais lógica. Qualquer sociedade baseada no uso intensivo de robôs está fadada a tornar-se fraca e decadente. A longo prazo, seus membros simplesmente perdem a vontade de viver.
”Depois que o primeiro grupo desapareceu, os colonizadores do segundo grupo, que não usavam robôs, espalharam-se por toda a Galáxia, mas a Terra tornou-se radioativa e portanto inabitável. Segundo a lenda, os robôs continuaram a ser usados na Terra enquanto ela foi habitada.
Bliss, que estivera escutando o relato com visível impaciência, interveio:
— Dr. Deniador, com radioatividade ou sem radioatividade, com robôs ou sem robôs, a questão mais importante é a seguinte: onde fica a Terra? Quais são as coordenadas do planeta?
— Minha resposta é simples: não sei — disse Deniador. — Mas acho que está na hora do almoço. Vou mandar trazer alguma coisa para mastigarmos enquanto continuamos nossa conversa a respeito da Terra.
— O senhor não sabe? — repetiu Trevize, indignado.
— Nem eu nem ninguém que eu conheça.
— Impossível!
— Conselheiro — disse Deniador, com um suspiro —, se quer chamar a verdade de impossível, é direito seu, mas não conseguirá nada com isso.
O almoço era uma série de bolinhas crocantes, de cores variadas, que continham diferentes recheios.
Deniador apanhou um pequeno objeto que, ao ser desdobrado, transformou-se em um par de luvas transparentes. Calçou as luvas e os convidados o imitaram.
Bliss perguntou:
— Poderia nos dizer o que há dentro dessas bolinhas?
— As bolinhas cor-de-rosa estão recheadas com pedacinhos de peixe temperado, um dos pratos mais famosos da cozinha comporeliana. As amarelas contêm um recheio muito suave, à base de queijo; as verdes, uma mistura de verduras. São mais gostosas enquanto ainda estão bem quentes. Depois vamos ter uma torta quente de amêndoas e as bebidas de costume. Recomendo a cidra quente. Num clima frio como o nosso, temos o hábito de servir tudo quente, até mesmo as sobremesas.
— O senhor parece ser um bom garfo — disse Pelorat.
— Nem tanto — protestou Deniador.. — Estou procurando ser hospitaleiro. Quando estou sozinho, contento-me com muito pouco...
Trevize deu uma dentada em uma bolinha cor-de-rosa e constatou que o recheio tinha mesmo gosto de peixe, com um tempero forte, de gosto agradável, mas que, pensou, não sairia de sua boca durante o resto do dia e talvez durasse até a manhã seguinte.
Quando olhou para a bolinha que havia acabado de morder, descobriu que a casca tinha tornado a se fechar em volta do resto do recheio. Imaginou então para que serviriam as luvas, já que aparentemente seria impossível sujar as mãos. Chegou à conclusão de que devia ser uma questão de higiene. As luvas tinham sido usadas inicialmente para substituir a lavagem das mãos e mais tarde seu uso havia sido incorporado à etiqueta. (Lizalor não tinha usado luvas no jantar, na noite anterior... talvez por tratar-se de uma mulher das montanhas.).
— Seria considerado falta de educação falar de negócios durante o almoço? — perguntou a Deniador.
— Pelos padrões comporelianos, seria, sim, conselheiro. Entretanto, são meus convidados e têm o direito de se guiar pelos seus próprios padrões. Se acham que uma conversa séria não vai impedir que apreciem a comida, não tenho nada a opor.
— Obrigado — disse Trevize. — A ministro Lizalor insinuou... não, ela afirmou que os céticos são muito impopulares neste planeta. Isso é verdade?
Deniador pareceu animar-se.
— Claro que sim. Ficaríamos muito desapontados se não o fôssemos. Comporellon é um mundo de frustrados! Diz a lenda que antigamente, há muitos milênios, quando a Galáxia habitada era pequena, Comporellon era o centro de tudo. Nunca nos esquecemos disso... o fato de que em todo o período histórico Comporellon jamais passou de um planeta secundário nos parece... quando digo “nós”, estou me referindo à população em geral... nos parece uma grande injustiça.
”O que podemos fazer? Antigamente, tínhamos que jurar lealdade ao imperador. No momento, fazemos parte dos Planetas Associados, sujeitos à liderança da Fundação. Quanto mais patente a nossa posição subalterna, mais forte a crença em um misterioso passado de glória!
”Que fazem, então, os comporelianos? Ontem, não tinham coragem de enfrentar o Império; hoje, não podem desafiar a Fundação. Sua válvula de escape, portanto, consiste em nos atacar, já que não acreditamos nas lendas e achamos graça nas superstições.
”Entretanto, estamos a salvo dos efeitos mais sérios dessa perseguição. A tecnologia do planeta está em nossas mãos e controlamos boa parte do magistério das universidades. Alguns de nós, que temos a coragem de externar abertamente nossos pontos de vista, encontram alguma dificuldade para lecionar em público. Meus alunos, por exemplo, preferem se encontrar comigo em algum lugar discreto, fora do campus. Caso, porém, fôssemos realmente excluídos da vida pública, a indústria do planeta entraria em colapso e o ensino superior ficaria muito prejudicado. Talvez a ameaça de um suicídio intelectual não os impedisse de dar vazão ao seu ódio... tal é a dimensão da tolice de que são capazes os seres humanos... mas a própria Fundação nos apoia. Assim, somos constantemente criticados, denunciados, reprovados... mas ninguém faz nada a respeito!
— É o medo da opinião pública que o impede de nos revelar a localização da Terra? — perguntou Trevize. — O senhor teme que, apesar de tudo, o movimento contra os céticos possa apanhá-lo se o senhor for longe demais?
Deniador sacudiu a cabeça.
— Não. Não conheço a localização da Terra. Não estou escondendo nada de vocês, nem por medo nem por nenhuma outra razão.
— Escute — insistiu Trevize. — Existe um número limitado de planetas neste setor da Galáxia que possuem todas as características associadas à habitabilidade, e quase todos devem ser não apenas habitáveis, mas também habitados, e portanto bem conhecidos do senhor. Seria tão difícil assim procurar por um planeta que teria tudo para ser habitável, a não ser pelo fato de apresentar altos níveis de radioativi-dade? Além disso, o planeta estaria acompanhado por um satélite de tamanho fora do comum. Não, a Terra se destacaria claramente, mesmo em uma busca superficial. Encontrá-la seria apenas uma questão de tempo!
— Acontece — replicou Deniador — que, de acordo com os céticos, a radioatividade da Terra e a existência de um satélite não passam de lendas.
— Talvez, mas isso não deveria impedir os outros comporelianos de tentar. Se encontrassem um planeta radioativo de tamanho suficiente para ser habitado, com um grande satélite em órbita, as lendas relativas à antiga grandeza de Comporellon passariam a ser encaradas com muito mais seriedade pelos outros planetas...
Deniador deu uma risada.
— Pode ser que os comporelianos não tentem exatamente por esse motivo. Se a busca não der em nada, ou se encontrarmos uma Terra muito diferente da que é descrita nas nossas lendas, acontecerá o oposto. O passado glorioso de Comporellon cairá em descrédito. Seremos motivo de riso para toda a Galáxia. Meus compatriotas não estão dispostos a correr esse risco!
Trevize pensou um pouco e depois insistiu, em tom ansioso:
— Escute, mesmo que a Terra não esteja radioativa, mesmo que não tenha nenhum satélite, existe uma terceira característica que, por definição, tem que existir, independentemente de qualquer lenda. A Terra, por ser o mais antigo de todos os planetas, deve abrigar uma notável diversidade de formas de vida, ou os restos de uma, ou, na pior das hipóteses, os vestígios fósseis de uma.
— Conselheiro — replicou Deniador —, embora Comporellon jamais se tenha empenhado em uma busca sistemática do planeta Terra, viajamos bastante pelo espaço e ocasionalmente temos tido notícia de naves que, por uma razão ou por outra, se desviaram da rota. Os Saltos, como o senhor deve saber, nem sempre são exatos. Mesmo assim, nunca foi descoberto nenhum planeta com as características atribuídas pelas lendas ao planeta Terra, ou que apresentasse uma variedade de formas de vida fora do comum. Assim, se em milhares de anos não foi observado nenhum indício da existência da Terra, estou propenso a acreditar que é impossível encontrar a Terra porque a Terra não está aqui para ser encontrada.
— Mas a Terra tem que estar em algum lugar! — exclamou Trevize. — Em algum ponto do Universo existe um planeta no qual a espécie humana e todas as formas de vida a ela associadas tiveram origem. Se a Terra não fica neste setor da Galáxia, isso não quer dizer que ela não exista.
— Pode ser — concordou Deniador, muito sério —, mas até agora ninguém conseguiu encontrá-la.
— Talvez não tenham procurado direito.
— O que o senhor está disposto a fazer. Desejo-lhe boa sorte, mas não estou disposto a apostar no seu êxito.
— Tem conhecimento de alguma tentativa de descobrir a localização da Terra por meios indiretos, por outros meios que não uma busca direta? — perguntou Trevize.
— Tenho — disseram duas vozes ao mesmo tempo. Deniador, a quem pertencia uma das vozes, disse para Pelorat:
— Está pensando no projeto de Yariff?
— Isso mesmo — confirmou Pelorat.
— Então quer explicar ao conselheiro? Aeho que ele confia mais no senhor do que em mim.
— Você sabe, Golan — disse Pelorat —, nos últimos dias do Império, houve uma época em que a Busca das Origens, como era chamada, tornou-se um passatempo muito popular, talvez como forma de escapar à realidade desagradável do cotidiano. Na ocasião, o Império estava se desintegrando.
”Pois ocorreu a um historiador lívio chamado Humbal Yariff que o planeta original da espécie humana, qualquer que fosse, certamente teria colonizado primeiro os planetas mais próximos para depois colonizar os mais distantes. Em outras palavras, quanto mais longe um mundo estivesse do planeta de origem, mais recentemente teria sido colonizado.
”Suponhamos, então, que alguém verificasse a data de colonização de todos os planetas habitáveis da Galáxia e ligasse todos os que tivessem sido colonizados no mesmo milênio. Haveria uma superfície ligando todos os planetas que foram colonizados há dez mil anos; outra, ligando os planetas que foram colonizados há vinte mil anos; uma terceira, ligando os planetas que foram colonizados há quinze mil anos. Teoricamente, todas as superfícies seriam aproximadamente esféricas e aproximadamente concêntricas. As superfícies associadas a mundos mais antigos teriam, raios menores que as associadas a mundos mais recentes. No centro comum de todas as esferas estaria o planeta de origem... a Terra.
Pelorat olhou para o amigo enquanto desenhava superfícies esféricas no ar com as mãos em concha.
— Está acompanhando o meu raciocínio, Golan? Trevize assentiu.
— Sim, mas suponho que não deu certo.
— Teoricamente, deveria ter dado, meu caro amigo. O problema é que as datas de colonização eram extremamente imprecisas. Todos os planetas exageravam, em maior ou menor grau, a própria antiguidade, e não havia uma maneira fácil de determinar a data de colonização de forma confiável.
— Por que não usaram o método do carbono 14 em amostras de madeira? — quis saber Bliss.
— Para isso, minha cara — explicou Pelorat —, seria preciso a colaboração do planeta investigado, o que não era fácil de conseguir. Nenhum planeta queria correr o risco de ver abaladas todas as suas tradições; por outro lado, o Império não estava mais em posição de impor sua vontade. Assim, Yariff teve que se contentar com planetas que tinham sido colonizados no máximo há dois mil anos e cuja fundação tinha sido registrada de forma confiável. Não havia muitos desses planetas, e embora estivessem distribuídos de forma aproximadamente esférica, o centro ficava, não na Terra, mas perto de Trantor, a capital do Império, de onde haviam partido as expedições que haviam colonizado esses planetas.
”Esse, naturalmente, era outro problema. A Terra não era o único ponto de origem para a colonização de outros planetas. Com o passar do tempo, outros planetas também se tornaram focos de colonização; quando o Império estava no apogeu, Trantor era o mais importante desses focos. Quando os resultados da investigação foram conhecidos, Yariff ficou desmoralizado e sua teoria tornou-se objeto de ridículo, o que, em minha opinião, foi uma grande injustiça.
— Obrigado pela explicação, Janov. Dr. Deniador, então não me pode fornecer nenhuma informação útil? Sabe de algum outro planeta onde eu possa encontrar alguma pista a respeito da localização da Terra?
Deniador pensou por alguns instantes.
— Hum... — começou, afinal, com muita hesitação — como Cético, quero preveni-lo de que não estou certo da existência da Terra. Entretanto... — Interrompeu-se de novo.
Afinal, Bliss interveio:
— Acho que se lembrou de algo que pode ser importante, doutor.
— Importante? Duvido muito — disse Deniador. — Curioso seria um termo mais apropriado. A Terra não é o único planeta cuja localização constitui um mistério. Existem também os mundos da primeira leva de Colonizadores, os Espaciais, como são chamados em nossas lendas. Alguns chamam os planetas que eles colonizaram de “mundos dos Espaciais”; outros, de “Mundos Proibidos”. Hoje em dia, o segundo nome é mais comum.
”No seu apogeu, diz a lenda, os Espaciais viviam centenas de anos e não permitiam que nossos ancestrais pousassem em seus mundos. Depois que nós os derrotamos, a situação se inverteu. Recusamo-nos a comerciar com eles e proibimos que nossas naves e as dos Mercadores visitassem os seus planetas. Assim, eles se tornaram Mundos Proibidos. Estávamos certos, diz a lenda, que Aquele Que Pune acabaria por destruir os mundos dos Espaciais. A verdade é que há vários milênios que ninguém ouve falar dos Espaciais.
— Acha que os Espaciais conhecem a localização da Terra? — perguntou Trevize.
— É possível, já que seus planetas são mais antigos do que os nossos. Isto é, se é que ainda existem Espaciais, o que considero extremamente improvável.
— Mesmo que não existam mais, podem ter deixado registros em seus planetas.
— Para ter acesso a esses registros, primeiro seria preciso encontrar os planetas dos Espaciais...
Trevize parecia exasperado.
— Está querendo dizer que as pistas para a localização da Terra podem ser encontradas nos planetas dos Espaciais, para cuja localização não há nenhuma pista?
Deniador fez uma careta.
— Nosso último contato com eles foi há mais de vinte mil anos... Os Espaciais, como a Terra, estão perdidos nas trevas da História.
— Quantos eram os planetas dos Espaciais?
— As lendas falam de cinquenta planetas... um número redondo demais para ser verdadeiro. Provavelmente eram muito menos.
— E o senhor não conhece a localização de pelo menos um desses planetas?
— Talvez sim, talvez não...
— O que quer dizer?
Deniador deu um suspiro e explicou:
— Meu passatempo, como o do dr. Pelorat, é a História antiga. Assim, dedico parte do meu tempo ao exame de velhos documentos. No ano passado, chegou às minhas mãos o diário de bordo de uma velha espaçonave. Os registros, que eram quase indecifráveis, datavam de uma época tão antiga que nosso planeta ainda não era chamado de Comporellon. O nome que usavam era “Baleyworld”, que, a meu ver, não passa de uma versão primitiva do “mundo de Benbally” de nossas lendas.
— O senhor publicou alguma coisa a respeito? — quis saber Pelorat.
— Não — respondeu Deniador. — Como diz o ditado, não gosto de mergulhar sem ter certeza de que a piscina está cheia. Acontece que, de acordo com o diário, o comandante da nave tinha visitado um planeta dos Espaciais e levado com ele uma mulher Espacial.
— Mas o senhor disse que os Espaciais não recebiam visitas! — protestou Bliss.
— Exatamente! Foi por isso que não escrevi nada sobre minha descoberta. Parece impossível. Conheço muitas lendas a respeito dos Espaciais e suas disputas com os Colonizadores, nossos antepassados. Essas lendas existem não só em Comporellon mas também em outros mundos e apresentam muitas variações, mas sob um aspecto estão todas de acordo: os dois grupos, Espaciais e Colonizadores, não se misturavam. Não havia contatos sociais e muito menos sexuais. No entanto, de acordo com o diário da nave, o comandante Colonizador e a mulher Espacial estavam apaixonados um pelo outro. Isto é tão incrível que não vejo nenhuma possibilidade de que a história seja considerada como algo mais que um romance de ficção. Trevize parecia desapontado.
— Isso é tudo?
— Não, conselheiro, há mais uma coisa. Encontrei no diário de bordo daquela nave uma série de números que poderiam ou não representar coordenadas espaciais. Supondo que representassem... como Cético, sinto-me na obrigação de repetir que se trata apenas de uma conjectura... supondo que representassem coordenadas espaciais, poderiam indicar a localização de três dos planetas dos Espaciais. Um deles seria o planeta onde o comandante pousou e de onde partiu com a mulher Espacial.
— Acha possível que mesmo que a história seja fictícia as coordenadas sejam reais? — perguntou Trevize.
— Pode ser — disse Deniador. — Vou dar os números a vocês. Podem usá-los à vontade, mas talvez não os levem a lugar nenhum... Entretanto, fico imaginando...
— Imaginando o quê? — perguntou Trevize.
— E se entre esses números estivessem as coordenadas da Terra?
O sol de Comporellon, de cor alaranjada, era maior em aparência que o sol de Terminus, mas estava baixo no céu e dava pouco calor. O vento, que felizmente não era forte, tocou o rosto de Trevize com dedos gelados.
O rapaz estremeceu, apesar do casaco aquecido eletricamente que havia recebido de Mitza Lizalor, que no momento estava de pé a seu lado.
— O sol de vocês não esquenta nada, Mitza — disse Trevize. A ministro olhou rapidamente para o sol e continuou ali parada no espaçoporto quase vazio, sem nenhum sinal de desconforto... alta, corpulenta, usando um traje muito mais leve que o de Trevize. Se estava sentindo um pouco de frio, sabia disfarçar muito bem.
— Na verdade, Trevize, temos um lindo verão. Não é longo, mas nossas lavouras estão adaptadas ao clima do planeta. Usamos variedades que se desenvolvem muito depressa na estação quente e resistem bem às geadas. Nossos animais domésticos são todos muito peludos; a lã de Comporellon é considerada com justiça a melhor da Galáxia.
Temos também algumas fazendas em órbita onde plantamos frutas tropicais. Na verdade, somos grandes exportadores de abacaxi em conserva! Pouca gente sabe disso. Para muitos, não passamos de um mundo gelado...
— Obrigado por vir despedir-se de nós — disse Trevize. — Obrigado também por nos ajudar em nossa missão. Para minha paz de espírito, entretanto, gostaria de saber se isso não lhe vai causar problemas.
— Não! — respondeu a ministro, sacudindo a cabeça orgulhosamente. — Nenhum problema. Em primeiro lugar, ninguém vai questionar minhas ordens. Sou encarregada dos meios de transporte. Sou eu quem dita as regras a serem cumpridas neste e nos outros espaçoportos, sou eu quem decide quais as naves que podem pousar e quais as que podem partir. O primeiro-ministro me encarregou dessa tarefa e não faz a mínima questão de conhecer os detalhes. Além disso, mesmo que eu fosse interrogada, bastaria contar a verdade. O governo me aplaudiria por não entregar a nave à Fundação. A população também me apoiaria, se chegasse a conhecer os fatos.
Trevize insistiu:
— Concordo em que o governo talvez não quisesse entregar a nave à Fundação, mas tem certeza de que aprovaria o fato de você nos deixar partir com ela?
Lizalor sorriu.
— Você é um homem decente, Trevize. Lutou com todas as forças para não perder a nave e agora que conseguiu o que queria encontra tempo para preocupar-se com o meu bem-estar!
Estendeu a mão para o rapaz, como se estivesse a ponto de fazer um gesto de carinho, mas controlou o impulso com dificuldade. Prosseguiu, de forma mais impessoal:
— Se não concordarem com minha decisão, terei apenas que revelar que vocês estavam, e ainda estão, à procura d’O Mais Antigo. Todos vão dizer que fiz muito bem em me livrar de vocês, com nave e tudo. Vão encenar todo um ritual de expiação, apenas pelo fato de vocês terem pisado no planeta!
— Acha que nossa presença pode trazer má sorte para você e para Comporellon?
— Acho, sim — declarou Lizalor, em tom de desafio. Depois prosseguiu, de forma mais branda: — Você já me trouxe má sorte, pois agora, que conheci você, os homens de Comporellon vão me parecer mais insípidos que nunca. Ficarei com um desejo insaciável. Aquele Que Pune já providenciou para que isso acontecesse.
Trevize hesitou por um momento e depois disse:
— Não quero que mude de opinião a meu respeito, mas também não quero que se preocupe sem necessidade. Essa história de que minha chegada lhe trouxe má sorte não passa de superstição.
— Aposto que foi o Cético quem disse isso.
— Não preciso de que o Cético me diga.
Lizalor passou a mão pelo rosto, pois uma fina camada de gelo estava se acumulando nas sobrancelhas espessas. Depois, disse:
— Sei que alguns consideram isso superstição. Estou convencida, porém, de que O Mais Antigo traz má sorte. Este fato já foi demonstrado vezes sem conta e nem todos os argumentos engenhosos dos Céticos são suficientes para mudar a verdade.
A ministro estendeu a mão.
— Adeus, Golan. Entre na nave e junte-se aos seus companheiros antes que o seu corpo frágil de terminiano sucumba ao nosso vento frio mas gentil.
— Adeus, Mitza. Espero voltar em breve.
— Você fala em voltar e eu procuro me convencer de que isso será possível. Cheguei a pensar em ir ao seu encontro no espaço, para que a má sorte recaia apenas sobre mim e não sobre meu planeta... mas a verdade é que você nunca voltará.
— Está enganada! Eu voltarei! Não desistiria com tanta facilidade de uma mulher como você! — exclamou Trevize, com toda a sinceridade.
— Não duvido dos seus impulsos românticos, meu galante terminiano, mas aqueles que partem à procura d’O Mais Antigo jamais retornam.
Trevize esforçou-se para evitar que os dentes batessem de frio. Não queria que a ministro pensasse que estava com medo.
— Lizalor, isso não passa de superstição.
— Para mim, é a mais pura verdade.
Era bom estar de volta à sala de comando do Estrela Distante. Podia ser apertada. Podia ser uma bolha de confinamento no espaço infinito. Mesmo assim, era familiar, amistosa, e morna.
— Até que enfim! — disse Bliss. — Estava imaginando quanto tempo você ficaria com a ministro.
— Fiquei morrendo de frio — disse Trevize.
— Estava com medo de que você resolvesse ficar com ela e adiar a viagem em busca da Terra — disse a moça. — Sabe que não gosto de ler seus pensamentos, mas não pude deixar de perceber a tentação que passou por sua cabeça.
— Tem razão. Senti forte tentação de ficar. A ministro é uma mulher notável, nunca conheci ninguém igual a ela. Bliss, você me fez mudar de ideia?
— Já lhe disse várias vezes que não devo e não vou influenciá-lo de forma alguma, Trevize. Imagino que afinal o seu senso de dever tenha prevalecido.
— Não, acho que não foi isso — disse o rapaz, com um sorriso irônico. — Nada de tão nobre. Acontece que, para começar, eu estava mesmo morrendo de frio, e, além disso, ocorreu-me o triste pensamento de que eu simplesmente não tenho preparo físico para viver por muito tempo com uma mulher como aquela.
— Seja como for, você está de volta a bordo — disse Pelorat. — O que vamos fazer agora?
— No futuro imediato, vamos viajar por este sistema planetário até estarmos suficientemente afastados do sol de Comporellon para executarmos um Salto.
— Acha que alguém vai nos deter ou tentar nos seguir?
— Não. Acredito que a ministro está realmente ansiosa para que a gente vá embora o mais depressa possível, de forma a que o castigo d’Aquele Que Pune não recaia sobre o planeta. Na verdade...
— Sim?
— Na verdade, Lizalor tem certeza de que seremos punidos. Acredita firmemente que jamais retornaremos de nossa busca. Isto, apresso-me a acrescentar, não é uma estimativa do meu grau provável de infidelidade, coisa que ela não teve tempo de avaliar. Não, o que ela pensa é que a Terra constitui um símbolo tão terrível de má sorte que os que a buscam não têm chance alguma de sobreviver.
— Quantos comporelianos partiram do planeta em busca da Terra para que ela possa fazer esse tipo de afirmação? — perguntou Bliss.
— Duvido que algum comporeliano jamais tenha partido em busca da Terra. Eu disse para ela que seus temores eram infundados, que tudo não passava de superstição.
— Tem certeza de que acredita nisso, ou ela o deixou em dúvida?
— O medo de Lizalor se baseia apenas na superstição, mas mesmo assim pode ser justificado.
— Está querendo dizer que a radioatividade nos matará se nos aproximarmos demais da Terra?
— Não acredito que a Terra esteja radioativa. Em minha opinião, o que a Terra faz é proteger-se dos intrusos. Lembre-se de que todas as referências à Terra na Biblioteca de Trantor foram removidas. Lembre-se de que nem a memória maravilhosa de Gaia, da qual todo o planeta participa, desde as pedras das montanhas até o núcleo de metal fundido, é capaz de revelar-nos coisa alguma a respeito da Terra.
”É evidente que se a Terra é suficientemente poderosa para apagar todos os vestígios de sua existência, também é capaz de disseminar a crença de que se tornou radioativa, desencorajando possíveis buscas. Talvez Comporellon fique suficientemente próximo da Terra para representar um perigo especial, que justifique esse esforço extraordinário. Deniador, que é um cético e um cientista, está totalmente convencido de que não adianta procurar a Terra. É por isso que eu acho que talvez a superstição da ministro, afinal de contas, tenha razão de ser. Se a Terra está tão interessada em esconder-se, não seria capaz de matar aqueles que estivessem próximos de descobri-la?
Bliss franziu a testa e começou:
— Gaia...
— Não diga que Gaia nos protegerá — interrompeu Trevize. — Se a Terra conseguiu apagar as memórias mais antigas de Gaia, é evidente que em qualquer conflito entre os dois, a Terra sairá vitoriosa.
— Como sabe que essas memórias foram removidas? — protestou Bliss. — Pode ser que Gaia tenha levado um certo tempo para desenvolver uma memória planetária, de modo que hoje não podemos ler acesso a fatos que ocorreram antes que essa memória estivesse bem desenvolvida. Mas mesmo que algumas memórias tenham sido removidas, como pode ter certeza de que a responsável foi a Terra?
— Não posso — admitiu Trevize. — Estou apenas especulando Pelorat interveio timidamente:
— Se a Terra é tão poderosa e está tão preocupada em resguardar sua privacidade, por assim dizer, de que adianta continuarmos a busca? Você parece acreditar que a Terra será capaz de matar-nos se for necessário para impedir que sua localização seja revelada. Nesse caso, não seria mais sensato desistirmos enquanto ainda estamos vivos?
— Admito que pode parecer assim, mas tenho uma forte convicção de que a Terra existe e de que devo e posso encontrá-la. E Gaia me assegura que quando tenho uma forte convicção, sempre estou certo.
— Pode ser, mas como vamos fazer para sobreviver à descoberta, meu caro amigo? — Talvez a própria Terra seja forçada a reconhecer que eu tenho o dom de sempre tomar a decisão acertada e decida deixar-me em paz. Por outro lado... e é isso o que me preocupa... não tenho a menor garantia de que vocês dois vão sobreviver. Venho pensando nisso há algum tempo, mas agora, que você mesmo tocou no assunto, acho que devemos tomar uma atitude. Por que não levo vocês devolta para Gaia e continuo sozinho? Afinal, fui eu, e não vocês, que achei que era importante localizar a Terra. Então sou eu, e não vocês, que devo correr o risco. Que acha, Janov?
O rosto comprido de Janov pareceu ainda mais longo Quando ele enterrou o queixo no pescoço.
— Não vou negar que esteja com medo, Golan, mas jamais o abandonaria. Para mim, é uma questão de honra.
— Bliss?
— Gaia também não pode abandoná-lo, Trevize. Se a Terra o ameaçar, Gaia fará tudo para protegê-lo. Além disso, como Bliss, quero estar ao lado de Pel; se ele resolveu continuar, devo continuar também.
— Está bem — disse Trevize, muito sério. — Vocês tiveram a sua oportunidade de desistir. Continuaremos juntos.
— Juntos — repetiu Bliss.
Pelorat sorriu e deu um tapinha no ombro do amigo.
— Juntos. Sempre juntos.
Bliss disse:
— Olhe para isso, Pel.
A jovem tinha estado manipulando o telescópio, praticamente ao acaso, como alternativa a examinar no vídeo uma das obras da biblioteca de Pelorat a respeito da Terra.
Pelorat aproximou-se, colocou o braço no ombro da moça e olhou para a tela. Um dos gigantes gasosos do sistema planetário de Comporellon estava à vista, ampliado até parecer o grande astro que realmente era.
O planeta tinha cor alaranjada, com faixas mais claras. Visto do plano da eclíptica, e mais afastado do sol que a nave, era um círculo luminoso quase completo.
— É lindo! — exclamou Pelorat.
— A faixa central é maior que o planeta, Pel. Pelorat franziu a testa e disse:
— Sabe que você tem razão?
— Acha que se trata de uma ilusão de ótica?
— Não sei, Bliss. Sou um novato no espaço tanto quanto você... Golan!
Trevize respondeu ao grito com um “Que foi?” pouco entusiasmado e entrou na sala de comando com a aparência um pouco amarrotada de quem estava tirando um cochilo de roupa e tudo... o que era exatamente o que tinha estado fazendo.
— Não brinquem com os instrumentos! — exclamou, mal-humorado.
— É apenas o telescópio — disse Pelorat. — Veja isso. Trevize olhou.
— É um gigante gasoso, aquele que os comporelianos chamam de Gallia.
— Como pode reconhecê-lo com tanta facilidade?
— Na distância a que estamos do sol, e dadas as posições atuais dos planetas, que tive que examinar quando estava calculando nosso curso, é o único gigante gasoso que poderia aparecer deste tamanho no telescópio. Além disso, estou vendo o anel.
— Anel? — repetiu Bliss, surpresa.
— Tudo o que se vê é uma faixa central mais clara, porque estamos olhando para o anel praticamente de perfil. Posso tirar a nave do plano da eclíptica para termos uma vista melhor. Estão interessados?
— Não quero obrigá-lo a recalcular o nosso curso, Golan — disse Pelorat.
— Não se preocupe, o computador fará isso para mim num instante.
Enquanto falava, Trevize sentou-se e colocou as mãos sobre as “mãos” do computador, assumindo o controle na nave.
O Estrela Distante, livre de problemas de combustível e de inércia, acelerou rapidamente e mais uma vez Trevize sentiu uma onda de paixão pela combinação de computador e nave que atendia tão prontamente aos seus desejos, como se fosse controlada diretamente por seus pensamentos, como se não passasse de uma extensão poderosa e obediente de sua vontade.
Não era de admirar que a Fundação a quisesse de volta; era mais do que compreensível que Comporellon desejasse conservá-la. A única coisa estranha era que a força da superstição tivesse sido suficiente para fazer Comporellon mudar de ideia.
Equipada com armamentos pesados, o Estrela Distante seria capaz de vencer em combate qualquer nave da Galáxia, ou mesmo qual-quer combinação de naves... contanto que não tivesse que se defrontar com outra nave da sua classe.
Naturalmente, no momento a nave não dispunha de armamentos pesados, ou de qualquer outro tipo de armamentos. Antes de entregar o Estrela Distante a Trevize, a prefeito Branno tinha mandado remover, por prudência, todos os sistemas de armas.
Pelorat e Bliss observaram atentamente enquanto o planeta Gal-lia rolava devagar, bem devagar, na tela do telescópio. O pólo superior ficou bem visível, rodeado por um grande círculo de turbulência, enquanto o pólo inferior escondeu-se atrás do planeta.
Na parte de cima, o lado escuro do planeta invadiu o disco de luz alaranjada e o belo círculo transformou-se pouco a pouco em um crescente.
O mais interessante, porém, foi que a faixa central, que originalmente era reta, passou a exibir uma curvatura perceptível. O mesmo ocorreu, em menor grau, com as outras faixas acima e abaixo.
Agora a faixa central estendia-se nitidamente além do planeta e exibia uma curvatura acentuada nas extremidades. Não podia ser uma ilusão de ótica; não havia mais dúvidas quanto a sua natureza. Era um anel de matéria, girando em torno do planeta.
— Daqui já dá para vocês terem uma ideia — disse Trevize. Se nos colocássemos acima de um dos pólos, vocês veriam o anel em sua forma circular, concêntrico com o planeta, sem tocá-lo em ponto algum. Também devem estar reparando que não se trata de apenas um anel, mas de vários anéis concêntricos.
— Não pensei que uma coisa dessas fosse possível — disse Pelorat, admirado. — O que é que mantém o anel em posição?
— A mesma coisa que mantém um satélite no espaço — explicou Trevize. — Os anéis são constituídos por pequenas partículas, todas em órbita em torno do planeta. Os anéis estão tão próximos do planeta que o efeito de maré impede que as partículas se fundam para formar um único corpo.
Pelorat sacudiu a cabeça.
— Meu amigo, fico triste só de pensar. Como é possível que eu tenha passado a vida inteira estudando e saiba tão pouco de astronomia?
— E eu não sei nada a respeito de História antiga. Ninguém pode dominar todos os ramos do conhecimento... A verdade é que esses anéis planetários não têm nada de especial. Estão presentes, em maior ou menor escala, em quase todos os gigantes gasosos. Infelizmente, o sistema de Terminus não tem nenhum planeta que possa ser considerado um gigante gasoso, de modo que a menos que um terminiano seja um viajante espacial, ou tenha feito um curso de Astronomia, o mais provável é que nunca tenha ouvido falar em anéis planetários. Por outro lado, o anel que vocês estão vendo é excepcionalmente largo e brilhante. É lindo... deve ter no mínimo duzentos quilômetros de largura. Nesse momento, Pelorat estalou os dedos.
— Então é isso!
Bliss olhou para ele, espantada.
— Isso o quê, Pel? Pelorat explicou:
— Uma vez tive nas mãos um fragmento de uma poesia muito antiga, escrita em uma versão arcaica de galáctico que era difícil de entender mas que constituía, por si só, uma garantia da autenticidade do documento... Eu devia ser o último a reclamar dos dialetos arcaicos, meu amigo. Devido à minha profissão, tornei-me por necessidade um especialista nas diversas variantes do galáctico antigo, o que, para mim, constitui motivo de orgulho, mesmo que não tenha utilidade alguma na vida prática... De que é mesmo que eu estava falando?
— De uma velha poesia, querido — disse Bliss.
— Obrigado, Bliss. — Voltou-se para Trevize: — Bliss se acostumou a prestar muita atenção no que estou dizendo para me colocar de novo nos trilhos quando eu me desvio do assunto, o que está sempre acontecendo.
— Isso faz parte do seu charme, Pel — disse Bliss, sorrindo.
— Seja como for, essa poesia supostamente continha uma descrição do sistema planetário do qual a Terra fazia parte. Não sabemos o que motivou o poeta, pois jamais conseguimos localizar o resto da obra. Sobreviveu apenas esse fragmento, talvez por conter informações de caráter astronômico. Falava de um anel tríplice, muito brilhante, no sexto planeta do sistema, um anel “mui grandes y bellos, elles phaziam o astro insigniphicante em comparaçam”. Ainda me lembro de cor, como podem ver. Na época, não sabia o que podia ser um anel planetário. Pensei em três círculos flutuando acima da superfície do planeta. Parecia uma coisa tão sem sentido! Nem me dei ao trabalho de pesquisar mais a fundo. Agora estou arrependido. — Sacudiu a cabeça. — Ser um historiador nos dias de hoje é um trabalho tão solitário que a gente se esquece das vantagens de consultar os especialistas.
Trevize observou, à guisa de consolo:
— Provavelmente você estava certo quando não levou o poema a sério, Janov. Tudo não devia passar de uma imagem literária.
— Mas agora eu sei o que o poeta queria dizer! — exclamou Pe-lorat, apontando para a tela. — Três anéis enormes, concêntricos, mais largos que o próprio planeta!
— Nunca ouvi falar de nada parecido — disse Trevize. — Não acho que possa haver anéis tão largos. Comparados com o planeta que circundam, são sempre muito estreitos.
— Também nunca ouvimos falar de um planeta com um satélite gigantesco — objetou Pelorat. — Ou com uma crosta radioativa. Trata-se apenas de mais uma entre várias peculiaridades do sistema da Terra. Se encontrarmos um planeta radioativo com um grande satélite e outro planeta do mesmo sistema tiver grandes anéis, não terei a menor dúvida de que encontramos a Terra!
Trevize sorriu.
— De acordo, Janov. Se encontrarmos todos os três indícios, certamente teremos encontrado a Terra.
— Se! — exclamou Bliss, com um suspiro.
Estavam agora nos limites do sistema planetário de Comporellon. Depois de ultrapassarem a órbita do último gigante gasoso, estavam passando entre os dois planetas mais afastados do sistema, de modo que não havia nenhuma massa significativa em um raio de 1, 5 bilhão de quilômetros. À frente havia apenas a tênue nuvem de cometas, que, para todos os efeitos práticos, podia ser ignorada.
O Estrela Distante tinha atingido uma velocidade de 0, 1c, um décimo da velocidade da luz. Trevize sabia que, teoricamente, a nave era capaz de atingir uma velocidade próxima à da luz, mas sabia também que, na prática, 0, 1c era o limite razoável.
Nessa velocidade, qualquer objeto de tamanho apreciável podia ser evitado, mas não havia meio de impedir que a nave colidisse com partículas de poeira espacial ou mesmo com moléculas e átomos isolados, ainda mais numerosos. Em alta velocidade, mesmo esses pequenos objetos podiam causar danos, arranhando e corroendo o casco da nave. Em velocidades próximas à da luz, cada átomo que penetrava no casco tinha as propriedades de uma partícula de radiação cósmica. Submetida a essa radiação, a tripulação da nave não sobreviveria por muito tempo. As estrelas distantes pareciam imóveis na tela do telescópio; embora a nave estivesse se movendo a trinta mil quilômetros por segundo, era como se estivesse parada.
O computador esquadrinhava o espaço em todas as direções, em busca de objetos, grandes ou pequenos, que pudessem estar em rota de colisão, preparado para executar uma pequena mudança de curso no caso extremamente improvável em que ela fosse necessária. Graças ao pequeno tamanho da imensa maioria dos objetos, à velocidade com que passavam e à falta de qualquer efeito de inércia no caso de uma manobra brusca, os passageiros não tinham meios de saber se alguma vez haviam corrido perigo. Assim, Trevize não se preocupava com essas coisas. Em vez disso, concentrava a atenção dos três conjuntos de coordenadas que havia recebido de Deniador, particularmente no objeto que ficava mais próximo na posição atual da nave.
— Há alguma coisa errada com os números? — perguntou Pelorat, em tom ansioso.
— Ainda não sei — respondeu Trevize. — As coordenadas não servem para nada, a não ser que se conheçam o ponto de origem e as convenções usadas para marcá-las: direções, escalas, etc.
— E como se pode saber essas coisas? — perguntou Pelorat.
— Obtive as coordenadas de Terminus e de alguns outros pontos conhecidos em relação a Comporellon. Se eu as colocar no computador, ele calculará quais devem ser as convenções para que a localização de Terminus e dos outros pontos seja determinada corretamente. Estou apenas tentando organizar as coisas na minha mente de modo a poder programar o computador de forma adequada para esta tarefa, Depois de conhecidas as convenções, os números de que dispomos para os Mundos Proibidos talvez adquiram algum significado.
— Talvez? — repetiu Bliss.
— Talvez — confirmou Trevize. — Esses números são muito antigos... pode ser que se baseiem nas convenções usadas em Comporellon, mas isto não é certo. E se as convenções forem outras?
— E se forem?
— Nesse caso, os números não terão nenhuma utilidade. Mas logo saberemos.
Trevize apertou as teclas do computador com dedos ágeis, fornecendo-lhe as informações necessárias. Depois, colocou as mãos sobre as “mãos” da escrivaninha. Esperou um momento, enquanto o computador determinava as convenções usadas nas coordenadas conhecidas, interpretava as coordenadas do Mundo Proibido mais próximo com base nas mesmas convenções e finalmente localizava essas coordenadas no mapa da Galáxia.
Um campo estelar apareceu na tela e começou a mudar rapidamente. Quando as estrelas se estabilizaram, a imagem foi ampliada ra-pidamente. A maioria das estrelas desapareceu nas bordas da tela. Afinal, restou apenas uma região cúbica com um décimo de parsec de lado (de acordo com o número que apareceu em um canto da tela). Não houve mais nenhuma alteração. A escuridão da tela era quebrada apenas por uma meia-dúzia de pontos pouco brilhantes.
— Qual deles é o Mundo Proibido? — perguntou Pelorat, em tom ansioso.
— Nenhum deles — respondeu Trevize. — Quatro são anãs vermelhas, uma é uma anã infravermelha e a última é uma anã branca. Nenhuma dessas estrelas pode ser orbitada por um planeta habitável.
— Como pode saber quais as que são anãs vermelhas? Não vejo nenhuma diferença.
— Não estamos olhando para estrelas de verdade — explicou Trevize. — Estamos olhando para uma parte do mapa da Galáxia, que está guardado na memória do computador. Junto com o mapa, estão armazenadas informações a respeito de todas as estrelas. O computador não mostra essas informações na tela, mas enquanto minhas mãos estiverem em contato com ele, posso obter os dados que quiser, bastando para isso fixar os olhos na estrela desejada.
— Então as coordenadas são inúteis — disse Pelorat, desanimado. Trevize olhou para ele.
— Não, Janov. Ainda não desisti. Temos que nos lembrar de que esses registros são muito antigos. As coordenadas do Mundo Proibido são as de há vinte mil anos atrás. Nesse tempo, tanto ele como Comporellon têm girado em torno do centro da Galáxia, e podem muito bem estar girando com velocidades diferentes e em órbitas com diferentes inclinações e excentricidades. Com o tempo, portanto, os dois planetas podem ter se aproximado ou se afastado. Em vinte mil anos, a distância entre Comporellon e o Mundo Proibido pode muito bem ter variado de uns cinco parsecs, o que o colocaria bem fora do cubo de um décimo de parsec.
— O que vamos fazer, então?
— Vamos pedir ao computador para fazer a Galáxia voltar vinte mil anos no tempo em relação a Comporellon.
— Isso é possível? — perguntou Bliss, admirada.
— Pelo menos, o computador pode mudar a posição das estrelas no mapa da Galáxia, de modo a representá-las como eram há vinte mil anos atrás.
— O que vai acontecer na tela? — perguntou Bliss.
— Observe — disse Trevize. Muito lentamente, as seis estrelas começaram a se deslocar na tela. Uma nova estrela apareceu no lado esquerdo da tela e Pelorat apon-tou para ela, animado:
— Ali está! Ali está!
— Sinto muito — disse Trevize. — Outra anã vermelha. Elas são muito comuns. Pelo menos três quartos das estrelas da Galáxia são vermelhas.
As estrelas pararam de se mover na tela.
— E então? — perguntou Bliss.
— É isso aí — disse Trevize. — Era assim que era esse setor da Galáxia há vinte mil anos atrás. No centro da tela fica o ponto onde deveria estar o Mundo Proibido, se o seu sol acompanhou o movimento médio das estrelas da região.
— Deveria, mas não está — disse Bliss.
— Não, não está — repetiu Trevize, sem emoção. Pelorat deu um longo suspiro.
— É uma pena, Golan.
— Não se desespere — disse Trevize. — Eu não estava esperando encontrar nenhuma estrela nesse lugar.
— Não?
— Não. Já lhe disse que o que estamos vendo não é a Galáxia, mas um mapa da Galáxia que está guardado na memória do computador. Se uma estrela não está na memória, não aparece na tela. Ora, um planeta que é chamado de “Proibido” e que vem sendo chamado assim nos últimos vinte mil anos provavelmente não foi incluído no mapa e portanto não pode aparecer na tela.
— Por outro lado — argumentou Bliss —, pode ser que ele simplesmente não exista. Talvez a lenda seja falsa ou as coordenadas estejam erradas.
— É verdade. Agora, porém, que o computador determinou o local onde o Mundo Proibido deveria ter estado há vinte mil anos atrás, ele pode calcular suas coordenadas no momento presente. Usando essas novas coordenadas, o que somente foi possível calcular com o auxílio do mapa estelar, podemos passar agora para uma vista da Galáxia de verdade.
— Você supôs que o sol do Mundo Proibido acompanhou o movimento médio das estrelas da região — disse Bliss. — E se isso não ocorreu? Ele pode estar longe da posição calculada!
— É verdade. Por outro lado, a posição das estrelas mudou tanto nos últimos vinte mil anos que mesmo uma correção com base em uma velocidade estimada é melhor que nenhuma correção. Espero que a posição que calculamos não esteja muito longe da posição real. — Você espera! — repetiu Bliss, em tom irônico.
— Exatamente. Não mais que isso — disse Trevize. — Agora, vamos dar uma olhada na Galáxia de verdade.
Bliss e Pelorat observaram atentamente enquanto Trevize (talvez para relaxar a tensão e adiar o momento da verdade) falava davagar, como se estivesse dando uma aula.
— A Galáxia de verdade é mais difícil de observar. O mapa do computador é uma estrutura artificial que pode ser manipulada à vontade. Se há uma nuvem de gás atrapalhando minha visão, posso removê-la. Se o ponto de vista não me satisfaz, posso mudá-lo, e assim por diante. No caso da Galáxia de verdade, porém, as coisas são como são. Se quero observá-la de outro ângulo, tenho que movimentar minha nave para a posição desejada, o que leva muito mais tempo que ajustar um mapa.
Enquanto falava, a tela mostrava um aglomerado de estrelas tão denso que parecia uma nuvem de poeira.
— Esta é uma vista geral da Via Láctea — disse Trevize. — Naturalmente, terei que aumentar bastante a ampliação para examinar o setor em que estamos interessados. O ponto cujas coordenadas calculamos está suficientemente próximo de Comporellon para que a imagem ampliada corresponda ao ponto de vista do mapa que vimos na tela há alguns minutos. Deixem-me fornecer as instruções necessárias para o computador. Pronto.
A imagem na tela se expandiu rapidamente. Milhares e milhares de estrelas começaram a se deslocar rapidamente para as bordas da tela, onde desapareciam. A sensação de movimento era tão forte que os três inclinaram o corpo para trás, como que para compensar uma aceleração inexistente.
Afinal, a tela mostrou uma imagem muito semelhante à do mapa que haviam observado anteriormente. Entretanto, além das seis estrelas visíveis no mapa, havia uma nova estrela, muito mais brilhante que as outras.
— É ela — sussurrou Pelorat.
— Pode ser. Vou mandar o computador analisar o espectro. — Depois de algum tempo, Trevize disse: — Classe espectral G-4, o que a faz um pouquinho menor e mais fraca que o sol de Terminus, mas bem mais brilhante que o sol de Comporellon. Acontece que nenhuma estrela da classe G deveria ser excluída do mapa da Galáxia que está na memória do computador. Para mim, o fato de esta estrela não constar do mapa é uma forte indicação de que estamos na pista certa.
— É possível que, afinal de contas, não haja nenhum planeta girando em torno dessa estrela? — perguntou Bliss.
— Sim, é possível — respondeu Trevize. — Nesse caso, tentare-mos localizar os outros dois Mundos Proibidos.
— E se também não conseguirmos nada com os outros dois? — insistiu Bliss.
— Tentaremos outra coisa.
— O quê?
— Gostaria de saber — disse Trevize, sombriamente.