Durante o jantar, Trevize parecia perdido em pensamentos e Bliss concentrou-se na comida.
Pelorat, o único que parecia ansioso para falar, observou que se o mundo em que se encontravam era Aurora e se Aurora tinha sido o primeiro planeta a ser colonizado, então deveriam estar muito perto da Terra.
— Talvez valha a pena investigar as estrelas vizinhas — disse.
Trevize resmungou que só recorreria ao método de tentativa-e-erro como último recurso e que, mesmo que encontrasse a Terra, queria obter o máximo possível de informações antes de desembarcar no planeta. Depois não disse mais nada e Pelorat, muito a contragosto, também mergulhou em um silêncio profundo.
Depois da refeição, como Trevize continuasse calado, Pelorat perguntou:
— Vamos ficar aqui muito tempo, Golan?
— Pelo menos até amanhã — respondeu o rapaz. — Preciso pensar um pouco.
— Acha que é seguro?
— A menos que apareça algo pior do que os cachorros, estaremos perfeitamente seguros aqui dentro.
— Quanto tempo levaria para decolarmos, se aparecer alguma coisa pior que os cachorros?
— O computador está em alerta permanente. Acho que conseguiríamos decolar em menos de três minutos. E o computador nos avisará imediatamente se ocorrer algum fato inesperado, de modo que é melhor dormirmos um pouco. Amanhã de manhã decidiremos qual será nosso próximo passo.
É fácil de dizer, pensou Trevize, enquanto olhava para a escuridão. Estava deitado, parcialmente vestido, no chão da sala do computador. Era bastante desconfortável, mas o rapaz tinha certeza de que; não conseguiria dormir mesmo que fosse para o quarto. Ali, pelo menos, poderia tomar providências imediatas em caso de emergência.
Foi então que ouviu o ruído de passos e se sentou instintivamente, batendo com a cabeça na borda da escrivaninha... não com força suficiente para machucar-se, mas com força suficiente para dar um grito de dor e fazer uma careta.
— Janov? — perguntou em voz abafada, com os olhos lacrimejando.
— Não. Sou eu, Bliss.
Trevize colocou uma das mãos no tampo da mesa para fazer contato com o computador e uma luz mortiça mostrou Bliss. A moça estava usando uma manta cor-de-rosa.
— O que foi? — perguntou Trevize.
— Procurei você no seu quarto, mas não o encontrei. Entretanto, não foi difícil localizá-lo pela atividade neurônica. Quando percebi que estava acordado, decidi entrar.
— Está bem, mas o que é que você quer?
A jovem se sentou com as costas apoiadas na parede e apoiou a cabeça nos joelhos levantados.
— Não se preocupe. Não pretendo acabar com o que resta da sua virgindade.
— Tenho certeza de que não — disse Trevize, em tom irônico. — Por que não está dormindo? Você precisa mais de sono do que eu.
— Acredite — disse Bliss, com voz sentida —, que o incidente com os cachorros foi muito cansativo para mim.
— Acredito.
— Eu tinha que falar com você enquanto Pel está dormindo.
— Falar sobre o quê?
— Quando ele lhe contou a respeito do robô, você afirmou que isso mudava tudo. O que queria dizer?
— É difícil de entender? Nós temos três conjuntos de coordenadas: três Mundos Proibidos. Quero visitar todos os três para descobrir o máximo possível a respeito da Terra antes de tentar chegar lá.
Aproximou-se da moça, para poder falar ainda mais baixo, mas mudou de ideia e recuou bruscamente.
— Escute, não quero que Janov apareça aqui à nossa procura. Não sei o que ele iria pensar.
— Não se preocupe. Pel está dormindo e tornei o sono dele ainda mais pesado. Além disso, se ele acordar, saberei imediatamente... Prossiga. Você quer visitar os três planetas. O que foi que mudou?
— Não pretendo passar mais tempo em um planeta que o estritamente necessário. Se este mundo, Aurora, não é habitado há quase vinte mil anos, é pouco provável que alguma informação útil tenha sobrevivido. Eu não estava disposto a passar semanas ou meses vagando na superfície de um planeta inóspito, defendendo-me de cachorros, gaios, touros e outros animais que possam ter revertido ao estado selvagem só com a esperança de encontrar um fragmento inteligível no meio do lixo secular. Pode ser que em um dos outros dois Mundos Proibidos haja seres humanos e bibliotecas intactas... Assim, estava disposto a deixar imediatamente este planeta. A esta altura, podíamos estar no espaço...
— Mas... ?
— Mas, se ainda existem robôs funcionando neste mundo, podemos aprender muita coisa com eles. Será muito mais seguro lidar com eles do que com seres humanos, já que, pelo que sei, os robôs cumprem ordens sem pestanejar e são incapazes de fazer mal a um ser humano.
— Assim, você mudou de ideia e agora está disposto a passar algum tempo neste planeta procurando robôs.
— Ainda não cheguei a uma decisão, Bliss. A mim me parece impossível que um robô consiga durar vinte mil anos sem manutenção... mas já que você detectou sinais de atividade em um deles, é evidente que não posso confiar no meu bom senso quando se trata de robôs. Talvez sejam mais resistentes do que eu pensava, ou possuam uma capacidade limitada de automanutenção...
— Escute o que eu vou dizer, Trevize — interrompeu Bliss —, por favor, seja discreto.
— Discreto? — repetiu Trevize, surpreso, levantando a voz. — A quem não devo contar?
— Psiu! A Pel, é claro. Escute, você não precisa mudar os planos. Seu palpite estava certo. Não existe nenhum robô funcionando neste mundo. Não consegui detectar nenhum sinal de atividade neurônica.
— A não ser naquele robô. Se aquele robô estava funcionando, pode ser que outros...
— Não detectei nenhuma atividade naquele robô. Ele estava parado; estava parado há muito tempo.
— Mas você disse...
— Eu sei o que disse. Pel teve a impressão de que viu o robô mover-se e produzir ruídos. Pel é um romântico incurável. Passou a vida coletando informações, mas essa é a maneira mais difícil de alguém ficar famoso no mundo acadêmico. Pel adoraria ter uma descoberta importante a seu crédito. A descoberta do nome “Aurora” foi legítima e deixou-o mais feliz do que você pode imaginar. Ele queria desesperadamente encontrar mais alguma coisa.
— Está me dizendo que ele queria tanto fazer uma descoberta importante que se convenceu de que havia encontrado um robô ainda funcionando?
— O que ele encontrou foi um monte de ferrugem com tanta consciência quanto a pedra em que estava apoiado.
— Mas você confirmou a história dele.
— Não tive coragem de decepcioná-lo. Ele significa tanto para mim...
Trevize ficou olhando para a moça durante quase um minuto. Depois, disse:
— Você se incomodaria de explicar por que ele significa tanto para você? Quero saber. Quero mesmo saber. Para você, ele deve parecer um homem idoso e sem nenhum romantismo. É um Isolado e você sente desprezo pelos Isolados. Você é jovem e linda e deve haver outras partes de Gaia que têm os corpos de rapazes fortes e simpáticos. Com eles, você pode ter uma relação física capaz de levá-la ao auge do prazer. Então, o que foi que viu em Janov?
Bliss olhou para Trevize, muito séria.
— Você não o ama? Trevize franziu a testa e disse:
— Gosto muito dele. Acho que poderia dizer que o amo, de uma forma não sexual.
— Você não conhece Pel há muito tempo. Por que acha que o ama, dessa sua forma não sexual?
Quando Trevize deu por si, estava sorrindo.
— Ele é uma pessoa tão diferente... Acho sinceramente que nunca na vida pensou uma única vez em si mesmo. Pediram que viesse comigo e veio. Nenhuma objeção. Queria que fôssemos para Trantor, mas quando eu disse que preferia ir para Gaia, não discutiu. Agora, comigo nesta busca, embora saiba perfeitamente dos perigos que corremos. Tenho certeza de que se tivesse que sacrificar a vida por mim... ou por qualquer um... o faria sem pestanejar.
— E você, sacrificaria a vida por ele, Trevize?
— Acho que sim, se não tivesse tempo de pensar. Se tivesse tempo, hesitaria e talvez recuasse. Não sou tão bom quanto ele. Por isso mesmo, sinto esse impulso de protegê-lo e fazê-lo feliz. Não quero que a Galáxia o ensine a não ser bom. Está entendendo? E tenho que protegê-lo especialmente de você. Não suporto a ideia de vê-lo jogado fora quando você se cansar dele!
— Já desconfiava que você estivesse pensando alguma coisa desse tipo. Não percebe que eu vejo em Pel a mesma coisa que você, só que com muito mais clareza, já que posso ler diretamente os seus pensamentos? Já procedi alguma vez como se quisesse magoá-lo? Alimentaria a sua fantasia de encontrar um robô funcionando se não fosse por não suportar a ideia de vê-lo decepcionado? Trevize, estou muito acostumada ao que você chama de bondade, pois qualquer parte de Gaia está disposta a sacrificar-se pelo todo. Não conhecemos nem compreendemos outro tipo de atitude. Entretanto, não sacrificamos nada quando agimos assim, pois cada parte é o todo, embora seja difícil para você compreender isso. Com Pel é diferente...
Bliss não estava mais olhando para Trevize. Era como se estivesse falando para si mesma.
— Ele é um Isolado. Pel não é desprendido porque faz parte de um todo; é desprendido porque é desprendido. Está me entendendo? Ele tem tudo a perder e nada a ganhar, mas mesmo assim é como é. Pel me deixa envergonhada de ser o que sou sem medo de perder, enquanto ele é o que é sem possibilidade de ganhar.
Olhou de novo para Trevize, muito séria.
— Sabe que eu conheço Pel muito melhor do que você? E que eu seria incapaz de magoá-lo?
— Bliss, há algumas horas atrás, você me disse: “Vamos ser amigos.” Tudo o que eu repliquei foi: “Se você quiser.” Eu estava de mau humor, porque estava pensando no sofrimento que você poderia causar a Janov. Agora é a minha vez de falar: Bliss, vamos ser amigos. Você pode continuar falando das virtudes da Galáxia Viva e eu posso continuar me recusando a aceitar seus argumentos, mas, mesmo assim, vamos ser amigos.
E estendeu a mão.
— Claro que sim, Trevize — disse a jovem, apertando-lhe a mão com força.
Trevize sorriu consigo mesmo. Era um sorriso apenas mental, pois os cantos da boca não se moveram.
Quando ele pedira ao computador para verificar se havia alguma estrela no ponto correspondente ao primeiro conjunto de coordena das, Pelorat e Bliss tinham observado atentamente e feito várias perguntas. Agora, ficavam no quarto e deixavam a tarefa inteiramente por sua conta.
De certa forma, era lisonjeiro, pois revelava que os dois tinham se convencido de que Trevize sabia o que estava fazendo e não precisava de supervisão ou de encorajamento. Na verdade, depois do primeiro episódio, Trevize tinha aprendido a confiar mais no computador e a deixar quase todas as operações por conta dele.
No ponto indicado pelo segundo conjunto de coordenadas havia outra estrela, que também não constava do mapa da Galáxia. Era mais luminosa que o sol do sistema de Aurora, o que tornava ainda mais estranho o fato de não estar registrada na memória do computador.
Trevize maravilhou-se com as peculiaridades da tradição. Séculos inteiros podiam ser relegados ao esquecimento. Civilizações podiam ser varridas das páginas da História. Entretanto, no meio desses séculos obscuros, legado de uma dessas civilizações, uma ou outra informação podia ser preservada sem distorções... como as coordenadas daqueles planetas.
O rapaz havia comentado a respeito com Pelorat e Pelorat lhe dissera que era exatamente isso o que tornava tão interessante e proveitoso o estudo de antigas lendas e mitos. “O segredo” — tinha dito Pelorat — “é descobrir quais as partes de uma lenda que correspondem à verdade histórica. Isso não é nada fácil; diferentes mitologistas podem optar por partes diferentes, escolhendo, em geral, as que estão mais de acordo com suas teorias favoritas.”
Fosse como fosse, a estrela estava bem no lugar onde as coordenadas de Deniador, atualizadas pelo computador, diziam que ela deveria estar. Naquele momento, Trevize seria capaz de apostar muito dinheiro no fato de que haveria uma estrela no local indicado pelo terceiro conjunto de coordenadas. E se houvesse, Trevize estava preparado para acreditar que a lenda também estava correta ao afirmar que havia cinquenta Mundos Proibidos (apesar do número redondo) e para imaginar onde estariam os outros quarenta e sete.
Havia um planeta habitável, um Mundo Proibido, em órbita em torno da estrela... o que não foi surpresa para Trevize. Ele colocou 1 Estrela Distante numa órbita conveniente.
A cobertura de nuvens era suficientemente rala para permitir uma vista razoável da superfície. Era um planeta muito úmido, como quase todos os mundos habitáveis. Havia um oceano tropical e dois oceanos polares. Em uma faixa de latitudes médias, havia um continente mais ou menos sinuoso que dava a volta ao planeta, com baias dos dois lados produzindo vários istmos bastante estreitos. Em outra faixa de latitudes médias, havia três grandes massas continentais, todas mais largas no sentido norte-sul que o continente mais comprido.
Trevize gostaria de entender o suficiente de meteorologia para poder prever, com base no que estava vendo, como seria o clima do planeta. Por um momento, brincou com a ideia de submeter o problema ao computador. Entretanto, tinha coisas mais importantes com que se preocupar.
Mais uma vez, o computador não havia detectado nenhum tipo de radiação artificial. Por outro lado, de acordo com o telescópio, não havia nenhuma região devastada ou mesmo desértica. O solo era coberto de vegetação; não havia vestígios de cidades do lado iluminado nem luzes no lado escuro.
Seria outro planeta habitado apenas por seres sem inteligência?
Trevize bateu na porta do outro quarto de dormir.
— Bliss? — chamou, enquanto batia de novo. Houve um barulho lá dentro e Bliss respondeu:
— O que é?
— Você pode vir aqui? Estou precisando de ajuda.
— Espere só um instante, enquanto dou um jeitinho na minha aparência.
Quando Bliss afinal apareceu, estava mais bonita do que nunca. Trevize sentiu uma ponta de irritação porque a moça o tinha feito esperar. Entretanto, como agora eram amigos, fez o que pôde para disfarçar.
— O que posso fazer por você, Trevize? — disse Bliss, com um sorriso.
Trevize apontou para a tela.
— Como pode ver, estamos em órbita em torno de um mundo que parece perfeitamente saudável, com plantas em abundância. Entretanto, não há luzes à noite nem qualquer radiação artificial. Escute, por favor, e verifique para mim se existe algum tipo de vida animal. Houve uma hora em que julguei ter visto uma manada de herbívoros, mas não tenho certeza.
Bliss “escutou” por alguns momentos. Pelo menos, seu rosto as sumiu expressão atenta. Afinal, disse:
— Oh, sim... é rico em vida animal.
— Mamíferos?
— Em quantidade.
— Humanos?
Bliss pareceu concentrar-se. Passou-se um minuto inteiro, depois mais um, até que ela declarou:
— É difícil dizer. De vez em quando, eu tinha a impressão de estar captando um sopro de inteligência suficientemente intenso para ser considerado humano. Mas era tão fraco e esporádico que, como no caso dos seus herbívoros, não tenho certeza. É como se...
A jovem parou para pensar e Trevize apressou-a com um “Como se o quê?”
— É como se fosse um tipo de inteligência a que não estou acostumada... Não consigo imaginar outra explicação a não ser...
O rosto de Bliss se contraiu enquanto ela “escutava” mais um pouco.
— A não ser o quê? — perguntou Trevize, ansioso.
— A não ser que sejam robôs — disse a moça afinal.
— Robôs!
— Robôs. E se estou conseguindo detectá-los, certamente poderia detectar seres humanos, também. Mas não há nenhum!
— Robôs! — repetiu Trevize, franzindo a testa.
— E pelo que posso julgar, são muito numerosos — acrescentou Bliss.
Quando soube da história, Pelorat exclamou “Robôs!” praticamente com a mesma entonação que Trevize. Depois, sorriu, meio sem graça.
— Você estava certo, Golan, e eu estava errado em duvidar de você.
— Quando foi que duvidou de mim?
— Acontece, meu amigo, que preferi não lhe contar as minhas dúvidas. No íntimo, achava que era um erro partirmos tão depressa de Aurora, onde havia boa probabilidade de encontrarmos um robô ainda funcionando. Agora compreendo que você sabia onde achar um número muito maior de robôs.
— Não é verdade, Janov. Eu não sabia. Foi apenas um palpite. Bliss me contou que, pelo que ela conseguiu verificar através das emissões mentais, os robôs parecem estar em bom estado. A mim me parece que os robôs não podem funcionar muito tempo sem a supervisão de seres humanos. No entanto, ainda não conseguimos localizar nenhum ser humano.
Pelorat olhou para a tela do telescópio.
— Este planeta é cheio de florestas, não é?
— É, sim. O resto são regiões cobertas de vegetação rasteira; praticamente não há desertos. Acontece, porém, que não encontramos nenhum vestígio de cidades e a única radiação que captamos é a radiação térmica.
— Então não existem seres humanos?
— Sei lá. Bliss está na cozinha, tentando concentrar-se. Defini arbitrariamente um meridiano de origem para o planeta, de modo que o computador conta com um sistema completo de latitudes e longitudes. Bliss está com um pequeno transmissor que aciona toda vez que encontra o que parece ser uma concentração incomum de atividade mental. O transmissor está ligado ao computador, que guarda na memória as coordenadas dos locais indicados. Vou deixar que ele escolha o lugar onde iremos pousar.
Pelorat parecia insatisfeito.
— Acha que devemos deixar a decisão por conta do computador?
— Por que não, Janov? É um computador muito competente. Além disso, não temos outra maneira melhor de escolher, temos?
Pelorat pareceu tranquilizar-se.
— Lembrei-me de uma coisa, Golan. Algumas lendas antigas falam de cubos que as pessoas usavam para tomar decisões.
— Como era isso?
— Cada face do cubo tinha uma opção diferente: sim, não, talvez, deixe para depois, etc. A pessoa jogava o cubo e seguia o conselho contido na face que caía para cima. Ou então fazia girar uma bolinha em uma roda com vários compartimentos, cada um com uma opção diferente, e seguia o conselho correspondente ao compartimento onde a bola caía. Alguns mitologistas acreditam que essas atividades representavam jogos de azar, e não de adivinhação, mas em minha opinião as duas coisas são muito parecidas.
— De certa forma — disse Trevize —, estamos jogando um jogo de azar ao escolhermos o local de aterrissagem.
Bliss entrou no aposento a tempo de ouvir o último comentário e emendou:
— Nada de jogos de azar. Depois de vários “talvez”, acabei encontrando um “sim”, e é para o “sim” que nós vamos.
— O que quer dizer com isso?
— Captei um pensamento humano. Sem sombra de dúvida.
Tinha chovido recentemente, pois a grama estava úmida. No céu, as nuvens se moviam rapidamente e estavam se dissipando.
O Estrela Distante pousou perto de um pequeno bosque. (O que viria a calhar se encontrassem cachorros selvagens, pensou Trevize, meio de brincadeira, meio a sério.). Estavam no meio do que parecia uma pastagem e durante a descida Trevize tinha visto o que pareciam pomares e plantações de cereais, além de, com toda a certeza, animais herbívoros.
Por outro lado, não havia nenhuma construção visível. Nada de artificial, se bem que a regularidade das árvores no pomar e as fronteiras nítidas que separavam os campos plantados fossem tão artificiais quanto teria sido uma estação receptora de microondas.
Poderia esse grau de artificialismo ter sido produzido por robôs? Sem a intervenção de seres humanos?
Trevize foi buscar o coldre. Dessa vez, fez questão de verificar se as duas armas estavam carregadas. Quando percebeu que Bliss estava olhando, interrompeu o que estava fazendo.
— Continue — disse a moça. — Não acho que serão necessárias, mas já pensei isso uma vez e estava enganada, não é mesmo?
— Quer uma arma para você, Janov? — perguntou Trevize. Pelorat estremeceu.
— Não, obrigado. Com você e suas defesas materiais e com Bliss e suas defesas mentais, eu me sinto perfeitamente seguro. Talvez seja covardia minha recorrer à proteção de vocês, mas não posso me sentir envergonhado quando estou tão grato por não precisar recorrer à força.
— Compreendo — disse Trevize. — Só lhe peço que não vá a lugar nenhum sozinho. Se Bliss e eu nos separarmos, fique com um de nós.
— Fique tranquilo, Trevize — disse Bliss. — Eu cuidarei dele.
Trevize foi o primeiro a saltar da nave. O vento era um pouquinho frio, mas agradável. Provavelmente tinha sido quente e úmido antes da chuva.
O rapaz respirou fundo e teve uma surpresa. O odor do planeta era delicioso. Cada planeta tinha um cheiro diferente, um cheiro sempre estranho e em geral desagradável... talvez apenas porque era estranho. Por acaso um cheiro estranho não podia ser agradável? Ou seria uma coincidência de desembarcarem pouco depois da chuva, em uma certa estação do ano? Fosse como fosse...
— Venham — chamou. — Está muito agradável aqui fora. Pelorat saiu da nave e disse:
— Agradável é a palavra certa. Será que o planeta tem sempre Um cheiro tão bom?
— Não importa. Daqui a uma hora, vamos estar acostumados ao aroma, nossos receptores nasais estarão saturados e não sentiremos mais cheiro algum.
— Que pena! — exclamou Pelorat.
— A grama está molhada — observou Bliss, com reprovação na voz.
— Por que não? Afinal de contas, em Gaia também chove — disse Trevize. Enquanto falava, um raio de sol surgiu no meio das nuvens. Logo haveria outros.
— É verdade — disse Bliss. — Mas quando chove, estamos preparados.
— Pior para vocês. As coisas inesperadas têm muito mais graça.
— Tem razão. Vou procurar ser menos provinciana. Pelorat olhou em torno e disse, em tom desapontado:
— Não estou vendo nada.
— Estão atrás daquela lombada — explicou Bliss. A moça se voltou para Trevize. — Acha que devemos ir ao encontro deles?
Trevize sacudiu a cabeça.
— Não. Viajamos muitos anos-luz para encontrá-los. Deixe-os percorrer os poucos metros que faltam. Vamos esperar aqui mesmo.
Bliss era a única que podia acompanhar o progresso deles até que, na direção para onde estava apontando, um vulto surgiu na crista da lombada, logo seguido por mais dois.
— Acho que no momento são só esses — disse a moça.
Trevize observou-os com curiosidade. Embora jamais tivesse visto um robô, não tinha a mínima dúvida quanto à identidade dos recém-chegados. Tinham a forma de seres humanos estilizados, mas não a aparência metálica comumente associada a homens mecânicos. A superfície dos robôs era fosca e parecia macia, como se estivesse coberta de pelúcia.
Como o rapaz sabia que a maciez era ilusória? Sentiu uma vontade súbita de apalpar aquelas figuras que se aproximavam com tanta segurança. Se fosse verdade que aquele era um Mundo Proibido, do qual as espaçonaves nunca se aproximavam (e devia ser verdade, pois a estrela do sistema não constava do mapa da Galáxia), então o Estrela Distante e sua tripulação deviam representar uma experiência totalmente nova para os robôs. Mesmo assim, estavam reagindo com toda a tranquilidade, como se estivessem executando um exercício de rotina. Trevize disse, em voz baixa:
— Esses robôs podem nos fornecer informações preciosas. Podemos perguntar a eles qual a localização da Terra em relação a este planeta; se souberem, terão que nos dizer. Quem sabe há quanto tempo essas máquinas existem? Podem ter vinte mil anos de memórias. Pensem nisso.
— Por outro lado — argumentou Bliss —, podem ter sido construídos recentemente e não saber de nada.
— Ou podem saber, mas se recusarem a nos contar — sugeriu Pelorat.
— Acho que não podem deixar de nos responder, a menos que tenham ordens estritas nesse sentido — disse Trevize. — E quem daria esse tipo de ordem, quando seguramente ninguém neste planeta esperava a nossa chegada?
Quando chegaram a três metros de distância, os robôs pararam. Não disseram nada nem fizeram mais nenhum movimento.
Trevize, com a mão no desintegrador, disse para Bliss, sem tirar os olhos dos robôs:
— Você pode saber se são hostis?
— Não tenho nenhuma experiência com os processos mentais deles, Trevize, mas até onde posso perceber, não consegui detectar nenhum sinal de hostilidade.
Trevize tirou a mão direita da coronha da arma, mas a manteve próxima. Levantou a mão esquerda, com a palma voltada para os robôs, no que esperava que fosse reconhecido como um gesto de paz, e disse, falando bem devagar:
— Saudações. Viemos a este mundo como amigos. O robô que estava no meio balançou levemente a cabeça no que um otimista poderia interpretar também como um gesto de paz e respondeu.
Trevize ficou de boca aberta. Aquela possibilidade não lhe havia ocorrido. O robô não estava falando em galáctico padrão ou em qualquer outra língua conhecida. Na verdade, Trevize não conseguiu compreender uma única palavra.
A surpresa de Pelorat foi tão grande quanto a de Trevize,. mas seu rosto assumiu um ar de satisfação.
— Não é estranho? — observou.
Trevize voltou-se para ele e disse, com certa aspereza na voz:
— Estranho, não. É incompreensível.
— Não exagere — disse Pelorat. — Ele está falando um dialeto arcaico de galáctico. Consigo entender algumas palavras. Provavelmente, conseguiria compreender perfeitamente o que ele está dizendo, se estivesse escrito. O problema é a pronúncia...
— Então o que foi que ele disse?
— Acho que disse que não compreendeu o que você disse. Bliss interveio:
— Não sei o que ele disse, mas posso sentir que está surpreso, o que combina com a sua interpretação. Isso se posso confiar em minha análise das emoções de um robô... se é que um robô tem emoções.
Falando bem devagar e com muito esforço, Pelorat disse alguma coisa que fez os três robôs sacudirem a cabeça em uníssono.
— O que foi que você disse? — perguntou Trevize.
— Disse que não sabia falar muito bem a língua deles, mas estava disposto a tentar. Pedi que tivessem paciência. Golan, meu velho amigo, isto é extremamente interessante!
— Para mim, é uma grande decepção — resmungou Trevize.
— Na verdade — disse Pelorat —, cada planeta habitável da Galáxia tem seu dialeto próprio do idioma galáctico, de modo que existem milhões de dialetos, alguns dos quais quase incompreensíveis para homens de outros planetas. Entretanto, depois da adoção do galáctico padrão, todos os dialetos tendem a evoluir mais ou menos da mesma forma. Se este planeta esteve isolado do resto da Galáxia durante vinte mil anos, seu dialeto deveria ter divergido tanto que a esta altura teria que ser uma língua totalmente diferente. O fato de que não é sugere que o planeta tem um sistema social baseado em robôs, que podem compreender apenas a língua para a qual foram programados. Assim, a língua não evoluiu nada e o que temos agora é simplesmente um dialeto muito antigo do idioma galáctico.
— Eis um exemplo de como a robotização de uma sociedade pode impedir o seu progresso e fazê-la degenerar — disse Trevize.
— Meu caro amigo — protestou Pelorat —, manter uma língua intocada durante muitos séculos não é necessariamente um sinal de degeneração. Existem muitas vantagens. Documentos antigos podem ser lidos à vontade e emprestam autenticidade aos registros históricos. No resto da Galáxia, a linguagem empregada nos decretos imperiais do tempo de Hari Seldon já começa a parecer pouco natural.
— E você conhece esse galáctico arcaico?
— Não posso dizer que conheço, Golan, mas de tanto estudar mitos e lendas antigas acostumei-me com certas peculiaridades do galáctico arcaico. O vocabulário não é muito diferente, mas certas palavras são usadas com outro significado. Além disso, existem muitas expressões idiomáticas que já caíram em desuso e, como já disse, a pronúncia mudou totalmente. Posso funcionar como intérprete, mas um intérprete bastante medíocre.
Trevize suspirou fundo.
— Isso é melhor que nada. Prossiga, Janov.
Pelorat voltou-se para os robôs, pensou um pouco e depois olhou para Trevize.
— O que devo dizer a eles?
— Vá direto ao assunto. Pergunte a eles onde fica a Terra. Pelorat fez a pergunta destacando bem as palavras e acompanhando o que dizia com gestos exagerados.
Os robôs se entreolharam e fizeram alguns ruídos. Depois, o do meio disse alguma coisa para Pelorat, que replicou abrindo os braços como se estivesse esticando uma tira de elástico. O robô acrescentou alguma coisa, falando tão pausadamente quanto Perolat havia sugerido.
Pelorat disse para Trevize:
— Não sei se entenderam o que significa “Terra”. Acho que pensam que estou falando de uma região qualquer deste planeta e insistem em dizer que não conhecem nenhuma região com esse nome.
— Sabe como eles chamam este planeta, Janov?
— Pelo que entendi, o nome deste planeta é Solaria.
— Conhece alguma lenda que mencione esse nome?
— Não... mas também nunca tinha ouvido falar de Aurora.
— Pergunte então para eles se existe algum lugar chamado Terra no céu... entre as estrelas. Aponte para cima.
Houve nova troca de palavras e depois Pelorat explicou:
— Tudo o que consegui deles, Golan, foi a informação de que não existem lugares no céu.
Bliss sugeriu:
— Pergunte a esses robôs quantos anos eles têm... ou por outra, há quanto tempo foram construídos.
— Não sei como dizer “construídos” — disse Pelorat, sacudindo a cabeça. — Acho que também não sei dizer “quantos anos”. Como já disse, sou um intérprete medíocre.
— Faça o melhor que puder, Pel querido — disse Bliss. Depois de conversar mais um pouco com os robôs, Pelorat declarou:
— Eles foram construídos há 26 anos.
— Vinte e seis anos — murmurou Trevize, desapontado. — São pouco mais velhos que você, Bliss.
Bliss retrucou, ofendida:
— Acontece que...
— Eu sei. Você é Gaia, que tem milhares de anos de idade... Seja como for, esses robôs não têm idade suficiente para conhecer coisa alguma de primeira mão a respeito da Terra, e seus bancos de memória provavelmente não incluem informações supérfluas. Assim, por exemplo, não sabem nada a respeito de astronomia.
— Pode haver outros robôs no planeta que sejam bem mais antigos — sugeriu Pelorat.
— Duvido muito — disse Trevize. — Em todo caso, pergunte a eles, Janov... se conseguir encontrar as palavras certas.
Pelorat passou muito mais tempo falando com os robôs do que das vezes anteriores. Finalmente, interrompeu a conversa, com o rosto afogueado e um nítido ar de frustração.
— Golan — explicou —, não compreendi parte do que tentaram me dizer, mas parece que os robôs mais velhos são usados para trabalhos mais pesados e não sabem de nada. Se esse robô fosse um homem, eu diria que sente desprezo pelos robôs mais velhos. Esses três são robôs domésticos, dizem eles, que são substituídos antes de ficarem velhos. São eles que realmente sabem das coisas... afirmação deles, não minha.
— Não sabem muita coisa — observou Trevize, de mau humor.
— Pelo menos, não sabem o que nos interessa.
— Agora estou achando que não devíamos ter saído de Aurora — disse Pelorat. — Se encontrássemos um robô funcionando, o que seria bastante provável, já que logo o primeiro que vimos não estava totalmente parado, poderíamos perguntar a ele a localização da Terra e ele seria suficientemente velho para responder.
— Não sabemos quanto tempo dura a memória de um robô, Janov — fez Trevize. — Se for necessário, voltaremos a Aurora, mesmo que seja preciso enfrentar aqueles cachorros. Acontece que se esses robôs têm pouco mais de duas décadas, alguém os fabricou recentemente, e esses fabricantes devem ser humanos.
Voltou-se para Bliss.
— Você tem certeza de que captou... A moça levantou a mão para fazê-lo calar e disse, em voz baixa:
— Ele está chegando agora.
Trevize olhou para a lombada e viu aparecer o vulto inconfundível de um ser humano. Tinha pele clara e cabelos louros e compridos. O rosto era sério, mas de aparência muito jovem. Os braços e pernas não eram particularmente musculosos.
Os robôs abriram caminho para deixá-lo passar, e ele avançou até ficar no meio deles. Então falou, com uma voz muito melodiosa. As palavras, embora pronunciadas com sotaque desconhecido, eram de galáctico padrão e fáceis de entender.
— Saudações, visitantes do espaço. O que desejam dos meus robôs?
Trevize não tentou impressionar o desconhecido. Perguntou, sem necessidade:
— Você fala galáctico?
— E por que não, já que não sou mudo? — respondeu o solariano, com um sorriso irônico.
— E eles? — Trevize apontou para os robôs.
— São robôs. Falam a língua do planeta, como eu. Mas eu sou solariano e escuto as transmissões hiperespaciais de outros mundos, de modo que aprendi a maneira de vocês falarem, como meus antecessores. Meus antecessores deixaram descrições da língua que vocês falam, mas estou sempre ouvindo novas palavras e expressões, como se vocês Colonizadores tivessem aprendido a dominar os mundos, mas não as palavras. Por que ficou surpreso quando descobriu que eu falava sua língua?
— Não devia ter ficado — disse Trevize. — Peço desculpas. Depois que ouvi os robôs, fiquei com a impressão de que não se falava galáctico neste planeta.
Observou o solariano. Estava usando um manto branco, de tecido fino, que pendia frouxamente dos ombros, com grandes aberturas para os braços. Era aberto na frente, expondo um peito nu e uma tanga mais abaixo. Um par de sandálias leves completava o traje.
Ocorreu a Trevize que era impossível dizer se o solariano era homem ou mulher. O peito era liso como o de um homem, mas não tinha pelos; a tanga não revelava nenhuma saliência.
O rapaz se voltou para Bliss e disse, em voz baixa:
— Pode ser outro robô, mas um robô muito... Bliss sussurrou:
— A atividade mental é de um ser humano. O solariano disse:
— Vocês não responderam à minha pergunta inicial. Vou desculpá-los porque foram pegos de surpresa. Perguntarei de novo e espero que não falhem pela segunda vez. O que desejam dos meus robôs?
Trevize respondeu:
— Somos viajantes e precisamos de informações para chegarmos ao nosso destino. Consultamos os robôs, mas eles não puderam nos ajudar.
— O que querem saber?
— Estamos indo para a Terra. Sabe onde fica? O solariano franziu a testa.
— Pensei que o seu primeiro objeto de curiosidade fosse a minha pessoa. Vou apresentar-me. Meu nome é Sarton Bander e estão em minha propriedade, que se estende até onde a vista pode alcançar e muito além. Não posso dizer que são bem-vindos, pois, ao pousarem aqui, desafiaram uma tradição. São os primeiros Colonizadores a pisarem no planeta em muitos milhares de anos e, ao que parece, vieram aqui simplesmente para se informar quanto ao melhor meio de chegar a outro planeta. Nos velhos tempos, Colonizadores, vocês e sua nave teriam sido imediatamente destruídos.
— Seria uma forma injusta de tratar pessoas que vieram em paz — disse Trevize, cautelosamente.
— Concordo, mas quando os membros de uma raça em expansão se encontram com uma sociedade estática e indefesa, o simples contato pode ser perigoso. Enquanto temíamos esse contato, não permitíamos que nenhum forasteiro desembarcasse neste planeta. Agora, que não temos mais nada a temer, estamos, como veem, dispostos a conversar.
— Aprecio as informações que nos ofereceu espontaneamente — disse Trevize —, mas não respondeu à minha pergunta. Vou repeti-la. Sabe onde fica o planeta Terra?
— Quando fala em Terra, suponho que esteja se referindo ao mundo no qual se originou o homem, além de todas as espécies de plantas e animais.
Fez um gesto gracioso, indicando tudo que os cercava.
— Sim senhor.
O rosto do solariano adquiriu uma estranha expressão de repugnância. Ele disse:
— Por favor, chame-me apenas de Bander. Não use nenhuma palavra que tenha uma conotação de sexo. Não sou homem nem mulher. Sou completo.
Trevize assentiu (suas dúvidas tinham razão de ser, pensou).
— Como quiser, Bander. Pode nos dizer, então, onde fica a Terra, o mundo de origem de todos nós?
— Não sei. Não estou interessado em saber. Mesmo que soubesse, ou que pudesse descobrir, não adiantaria nada para vocês, pois a Terra não existe mais como mundo. Ah... — prosseguiu Bander, espreguiçando-se — … como é bom sentir o calor do sol. Não é sempre que venho à superfície; faço questão de que o sol esteja de fora. Quando mandei meus robôs ao encontro de vocês, o sol estava escondido atrás das nuvens. Só saí quando as nuvens se dissiparam.
— Por que a Terra não existe mais como mundo? — insistiu Trevize, lembrando-se da lenda a respeito da radioatividade da Terra.
Bander, porém, ignorou a pergunta, ou por outra, colocou-a de lado sem a menor cerimônia.
— É uma história comprida. Você me disse que vieram em paz.
— Isso mesmo.
— Então por que está armado?
— É apenas por precaução. Não sabia o que iria encontrar.
— Não importa. Suas armas não representam perigo para mim. Entretanto, estou curioso. Naturalmente, conheço alguma coisa a respeito das armas que usam e da história curiosamente bárbara de sua raça, na qual as armas parecem desempenhar um papel tão importante. Mesmo assim, tive a oportunidade de examinar uma arma de perto. Posso ver a sua?
Trevize recuou um passo.
— Sinto muito, Bander. Bander pareceu achar graça.
— Perguntei apenas para ser educado. Não tinha necessidade de pedir.
Estendeu a mão e o desintegrador emergiu do coldre direito de Trevize, enquanto o chicote neurônico saía do coldre esquerdo. Trevize tentou segurar as armas, mas os braços se recusaram a obedecer-lhe, como se estivessem amarrados com uma tira de borracha. Pelorat e Bliss não conseguiram sair de onde estavam.
— Não tentem interferir. Vocês não podem — disse Bander. As armas voaram para suas mãos e ele as examinou com interesse.
— Esta aqui — disse, mostrando o desintegrador — gera um feixe de microondas que produz calor, vaporizando os fluidos de um corpo e fazendo-o explodir. A outra é mais sutil; teria que estudá-la com mais profundidade para compreender como funciona. De qualquer forma, já que vieram em paz, não precisam de armas. Assim, estou descarregando as fontes de energia das duas armas. Isso as torna inofensivas, a não ser que pretenda usá-las como tacapes, o que seria uma grande tolice.
O solariano largou as armas e elas flutuaram novamente no ar. Cada uma voltou para o seu coldre.
Trevize, percebendo que era novamente senhor dos seus movimentos, sacou o desintegrador e constatou que a fonte de energia estava totalmente descarregada. O mesmo havia acontecido com o chicote neurônico.
Olhou para Bander, que disse, sorrindo:
— Vocês estão inteiramente nas minhas mãos, forasteiros. Da mesma forma como descarreguei essas armas, poderia ter destruído vocês e a sua nave.
Trevize estava atônito. Olhou para Bliss, procurando respirar normalmente.
A moça tinha passado o braço na cintura de Pelorat, num gesto protetor, e parecia muito calma. Sorriu levemente e fez um movimento ainda mais discreto com a cabeça.
Trevize olhou de volta para Bander. Tendo interpretado a atitude de Bliss como tranquilizadora e rezando aos céus para que a interpretação estivesse correta, perguntou para o solariano:
— Como foi que fez isso, Bander? Bander sorriu, satisfeito.
— Digam-me, pequenos forasteiros, acreditam em bruxaria?
— Não, não acreditamos, pequeno solariano — respondeu Trevize.
Bliss puxou Trevize pela manga da camisa e sussurrou ao seu ouvido:
— Não o provoque. Ele é perigoso.
— Já percebi — disse Trevize, controlando-se para não levantar o tom de voz. — Faça alguma coisa!
— Ainda não — cochichou Bliss. — Quero que ele se sinta seguro. Bander não prestou atenção ao curto diálogo. Afastou-se dos forasteiros. Os robôs abriram caminho para ele passar.
O solariano olhou para trás e dobrou o dedo languidamente.
— Venham. Sigam-me. Todos os três. Vou contar-lhes uma história que talvez não interesse a vocês, mas que interessa muito a mim.
Continuou a caminhar, sem pressa.
Trevize ficou por alguns momentos onde estava, sem saber o que lazer. Bliss, entretanto, deu um passo à frente, puxando Pelorat consigo. Afinal, Trevize os acompanhou; a alternativa era ficar para trás, na companhia dos robôs.
Bliss disse, em tom despreocupado:
— Se Bander quiser nos contar a história que talvez não nos interesse...
Bander voltou a cabeça e olhou para Bliss como se estivesse vendo a moça pela primeira vez.
— Você é a meio-humana feminina, não é? A metade inferior?
— A metade menor, Bander. Sou, sim.
— Esses dois são meio-humanos masculinos, então?
— Isso mesmo.
— Você já teve o seu filho, feminina?
— Bander, meu nome é Bliss. Ainda não tive nenhum filho. Este aqui é Trevize. Este é Pel.
— Qual desses dois masculinos vai ajudá-la quando chegar a hora? Ou serão os dois? Ou nenhum?
— Pel vai me ajudar, Bander. Bander voltou-se para Pelorat.
— Estou vendo que tem cabelos brancos.
— É verdade — disse Pelorat.
— Eles sempre foram assim?
— Não, Bander, ficaram assim com a idade.
— Quantos anos você tem?
— Cinquenta e dois, Bander — respondeu Pelorat. — Cinquenta e dois anos galácticos.
Bander continuou a caminhar (em direção à mansão distante, imaginou Trevize), mas mais devagar. Ele disse:
— Não sei quanto é um ano galáctico, mas não deve ser muito diferente do nosso. Com quantos anos você vai morrer, Pel?
— Não sei. Pode ser que eu viva mais uns trinta anos.
— Oitenta e dois anos, então. Vivem muito pouco e são apenas metade humanos. É incrível pensar que meus antepassados distantes eram como vocês e viviam na Terra... até que alguns deles deixaram a Terra e fundaram outros mundos, mundos maravilhosos, mundos organizados, uma infinidade deles.
— Infinidade, não — protestou Trevize, em voz alta. — Apenas cinquenta.
Bander olhou com desprezo para Trevize. Já não parecia tão bem humorado.
— Trevize. Você se chama Trevize.
— Meu nome completo é Golan Trevize. Eu disse que os Espaciais só colonizaram cinquenta planetas. Nossos mundos são milhões e milhões!
— Então já conhece a história que eu ia contar? — perguntou Bander.
— Se é a história de que os Espaciais colonizaram cinquenta planetas, nós já a conhecemos.
— Não são os números que importam, pequeno meio-humano, mas a qualidade. Eram cinquenta, sim, mas que valiam mais que todos os seus milhões. E Solaria foi o quinquagésimo, e, portanto, o melhor. Solaria estava tão acima dos outros mundos dos Espaciais quanto os mundos dos Espaciais estavam acima da Terra.
“Fomos nós, de Solaria, que aprendemos como a vida devia ser vivida”. Não nos juntamos em bandos, como animais, da forma como se fazia na Terra ou mesmo nos outros planetas dos Espaciais. Não, vivíamos sozinhos, com robôs para nos ajudar, em contato eletrônico com os outros habitantes, mas raramente havia a oportunidade para um contato físico. Faz muitos anos que não me aproximo de seres humanos tanto quanto me aproximei de vocês. Entretanto, como são apenas metade humanos, sua presença não me incomoda mais que a de uma vaca, digamos, ou a de um robô.
“Acontece que no passado também éramos meio-humanos”. Por mais que aperfeiçoássemos nossa liberdade, por mais que nos cercássemos de robôs capazes de atender a todas as nossas necessidades, nossa liberdade nunca era absoluta. Para reproduzir a espécie, era necessária a colaboração de dois indivíduos. Naturalmente, seria possível recolher óvulos e esperma e realizar a fecundação e o desenvolvimento do embrião em ambiente artificial. As crianças poderiam perfeitamente ser criadas por robôs. Tudo isso seria viável, mas os meio-humanos se recusavam a abrir mão do prazer associado à fecundação biológica. Em consequência, desenvolviam-se ligações anormais entre meio-humanos masculinos e femininos, o que punha em risco a nossa liberdade. Não compreendem que isso tinha que mudar?
— Não, Bander, porque o nosso conceito de liberdade é diferente do seu — observou Trevize.
— Isso é porque não conhecem a verdadeira liberdade. Passaram a vida em grupos, sendo constantemente forçados, até mesmo nas pequenas coisas, a ceder à vontade de outros, ou, o que é igualmente desprezível, a lutar para impor aos outros a sua vontade. Desse jeito, como pode haver liberdade? A liberdade consiste em viver como se quer! Exatamente como se quer!
“Então chegou a época em que o povo da Terra começou mais uma vez a migrar para o espaço”. Os outros Espaciais tentaram compelir com eles. Nós, não. Mudamo-nos para o subsolo e rompemos todos os contatos com o resto da Galáxia. Estávamos decididos a proteger nossa liberdade, custasse o que custasse. Construímos robôs e sistemas de armas para proteger a superfície do planeta, e eles executaram a tarefa de forma admirável. Naves chegaram e foram destruídas, até que pararam de chegar. O planeta foi considerado deserto e todos se esqueceram dele.
“Enquanto isso, no subsolo, trabalhávamos para resolver nossos problemas”. Começamos a manipular nossos genes. Muitas experiências fracassaram, mas algumas deram certo. Levamos muitos séculos, mas afinal nos tornamos seres humanos completos, combinando os princípios masculino e feminino em um só corpo, capaz de atender plenamente às próprias necessidades de prazer e de produzir, no momento próprio, óvulos fertilizados para serem criados pelos robôs.
— São hermafroditas — observou Pelorat.
— É assim que nos chamam na língua de vocês? — perguntou Bander, com indiferença. — Nunca tinha ouvido essa palavra antes.
— O hermafroditismo é um golpe mortal para a evolução — disse Trevize. — O filho passa a ser geneticamente idêntico ao pai.
— Não seja tolo — disse Bander. — Está falando como se a evolução só pudesse acontecer por tentativa e erro. Sabemos como mudar e aperfeiçoar os nossos genes e é o que fazemos, ocasionalmente... Mas já estamos quase chegando na minha casa. Vamos entrar. Está ficando tarde e daqui a pouco vai esfriar. Estaremos mais à vontade dentro de casa.
Passaram por uma porta que não tinha nenhum tipo de fechadura, mas que se abriu quando se aproximaram e se fechou depois que haviam passado. Não havia janelas, mas quando entraram em uma sala espaçosa, as paredes começaram a brilhar. O chão parecia nu, mas era macio e flexível. Em cada um dos quatro cantos da sala havia um robô, imóvel.
— Aquela parede — disse Bander, apontando para a parede em frente à porta, que não parecia diferente das outras — é a minha tela para o exterior. O mundo se abre para mim através dessa tela, mas isso de forma alguma limita a minha liberdade, pois não sou obrigado a usá-la.
— Nem pode obrigar outra pessoa se quiser vê-la através dessa tela e a pessoa não concordar — quis saber Trevize.
— Obrigar outra pessoa? Isso jamais me passaria pela cabeça — disse Bander, com arrogância.
Havia uma cadeira na sala, em frente à parede que servia de tela, e Bander sentou-se.
Trevize olhou em torno, como se esperasse que outras cadeiras se materializassem do ar.
— Podemos nos sentar também? — perguntou.
— Se quiserem — respondeu Bander.
Bliss sentou-se no chão, sorrindo. Pelorat sentou-se ao lado da moça. Trevize continuou teimosamente de pé. Bliss perguntou:
— Bander, quantos seres humanos vivem neste planeta?
— Diga solarianos, Bliss. A expressão “seres humanos” está contaminada pelo fato de que os meio-humanos se consideram seres humanos. Poderíamos nos referir a nós mesmos como “humanos completos”, mas preferimos ser chamados apenas de solarianos.
— Está bem. Quantos solarianos vivem neste planeta?
— Não sei ao certo. Talvez uns mil e duzentos.
— Apenas mil e duzentos em todo o planeta?
— Tenho que lembrar a você que não é a quantidade que conta, mas a qualidade... Também não entende o que é a verdadeira liberdade. Se existe outro solariano para contestar minha soberania absoluta em relação a qualquer parte de minhas terras, em relação a qualquer robô ou outro objeto de minha propriedade, então minha liberdade não é completa. Para que minha liberdade seja total, é preciso que os outros solarianos estejam tão afastados de mim que um contato físico seja extremamente improvável. Para que isso seja possível, a população de Solaria não deve ultrapassar cerca de mil e duzentos habitantes. Se a população ultrapassasse esse limite, nossa vida se tornaria insuportável.
— Isso quer dizer que os nascimentos devem ser planejados, de modo a compensar as mortes — disse Pelorat, de repente.
— Claro que sim. Isso acontece em qualquer planeta com uma população estável... até mesmo no de vocês, suponho.
— E como vocês têm poucos falecimentos, também nascem poucas crianças.
— É verdade.
Pelorat fez que sim com a cabeça e não disse mais nada. Trevize disse:
— Quero saber como você fez minhas armas flutuarem no ar.
— Já propus uma explicação: bruxaria. Recusa-se a aceitá-la?
— Claro que me recuso! Por quem me toma?
— Será, então, que acredita nas leis de conservação de energia e de maximização da entropia?
— Acredito. Acredito também que nem em vinte mil anos vocês poderiam abolir essas leis ou modificá-las um milímetro que fosse.
— E tem razão, meio-humano. Mas acompanhe o meu raciocínio. Lá fora, temos a luz do sol. — O solariano fez um gesto gracioso para mostrar que o sol banhava toda a superfície do planeta. — Aqui dentro, estamos na sombra. É mais quente no sol do que na sombra e o calor passa espontaneamente das regiões iluminadas para as que estão na sombra.
— Tudo isso eu já sei — observou Trevize.
— Deixe-me continuar. À noite, a superfície de Solaria é mais quente que os objetos que estão além da atmosfera, de modo que o calor da superfície é irradiado para o espaço.
— Sei disso, também.
— E de dia ou de noite, o interior do planeta é mais quente que a superfície. Assim, o calor passa espontaneamente do interior para a superfície. Imagino que saiba disso, também.
— E daí, Bander?
— O fluxo de calor dos corpos mais quentes para os mais frios, que deve ocorrer de acordo com a segunda lei da termodinâmica, pode ser aproveitado para realizar trabalho.
— Teoricamente, sim, mas a luz do sol é diluída, o calor da superfície do planeta é ainda mais diluído e a velocidade com que o calor escapa do interior do planeta torna essa fonte ainda mais diluída. A potência que você pode extrair não seria suficiente para mover uma pedra.
— Isso depende do aparelho usado para aproveitar essa energia — disse Bander. — O nosso levou milhares de anos para ser aperfeiçoado e é nada menos que uma parte do nosso cérebro.
Bander levantou o cabelo dos dois lados da cabeça, revelando a parte do crânio atrás das orelhas. Virou a cabeça para lá e para cá e Trevize pôde ver, atrás das orelhas, duas protuberâncias do tamanho e forma da extremidade mais achatada de um ovo de galinha.
— Esta parte do cérebro é que me faz diferente de vocês — disse o solariano.
Trevize olhou de soslaio para Bliss, que parecia inteiramente concentrada no que Bander dizia. O rapaz achava que sabia o que estava acontecendo.
Bander, apesar do seu amor pela liberdade, não pudera resistir àquela oportunidade única. Não podia conversar de igual para igual com os robôs, e muito menos com os animais. Conversar com os outros solarianos seria desagradável, além de representar uma intromissão na liberdade alheia.
Quanto a Trevize, Bliss e Pelorat, para Bander eram apenas parcialmente humanos e tinham tanto direito à liberdade quanto um robô ou uma vaca. Por outro lado, eram intelectualmente seus iguais (ou quase isso) e portanto conversar com eles constituía uma experiência rara.
Não admira, pensou Trevize, que esteja se divertindo tanto. E Bliss certamente estava encorajando essa atitude, pensou o rapaz. Provavelmente a moça estava partindo da suposição de que se Bander falasse bastante, talvez revelasse alguma coisa de útil a respeito da Terra. Trevize concordava com a ideia, de modo que, embora não estivesse muito interessado nas explicações do solariano, procurou manter a conversação acesa.
— Qual é a função desses lobos cerebrais? — perguntou.
— São transdutores — respondeu Bander. — São ativados pelo calor e transformam diretamente o calor em energia mecânica.
— Não posso acreditar. A energia térmica é insuficiente.
— Pequeno meio-humano, você não pensa. Se houvesse muitos solarianos vivendo juntos, todos tentando usar a energia térmica, aí sim, o suprimento seria insuficiente. Acontece que tenho mais de quarenta mil quilômetros quadrados que são meus, unicamente meus. Posso recolher o calor de todos esses quilômetros quadrados e usá-los apenas para mim. Está entendendo?
— É tão fácil recolher o calor em uma grande região? O simples ato de concentrar-se representa um certo consumo de energia.
— Talvez, mas não tenho consciência disso. Meus lobos transdutores estão continuamente concentrando a energia térmica, de modo que posso usar essa energia na hora que quiser. Quando fiz suas armas flutuarem no ar, um certo volume da superfície iluminada pelo sol perdeu uma parte do seu excesso de calor em relação à outra parte da superfície que estava na sombra, de modo que, em última análise, usei a energia solar para fazer as armas se moverem. Só que, em vez de captar e utilizar essa energia através de um dispositivo mecânico ou eletrônico, fiz uso de um dispositivo neurônico. — Bander deu um tapinha em um dos lobos transdutores. — Ele trabalha com rapidez e eficiência... e sem nenhum esforço.
— É incrível — murmurou Pelorat.
— Não, não é incrível — protestou Bander. — Pense na sensibilidade do olho e do ouvido, na forma como conseguem transformar em informação quantidades diminutas de luz e de som. Pareceria incrível, se não estivesse familiarizado com eles. A mesma coisa acontece com os lobos temporais. Para nós, são um órgão como outro qualquer.
— E o que é que vocês fazem normalmente com esse órgão? — quis saber Trevize.
— Fazemos nosso mundo funcionar — respondeu Bander. — Todos os meus robôs são alimentados por mim... ou por outra, são alimentados pela energia solar, por meu intermédio. Quando um robô ordenha uma vaca ou derruba uma árvore, a energia que consome é reposta por transdução mental.
— E quando você está dormindo.
— Os lobos transdutores funcionam o tempo todo, pequeno meio-humano. Por acaso você não respira enquanto está dormindo? Seu cotação para de bater? À noite, o interior de Solaria esfria um pouquinho para que os meus robôs possam continuar funcionando. A mudança é extremamente pequena em termos relativos e somos apenas mil e duzentos, de modo que toda a energia que usamos não é suficiente para esfriar apreciavelmente o núcleo do planeta.
— Já lhe ocorreu que esse órgão poderia ser usado como arma? Bander olhou para Trevize como se estivesse dizendo um absurdo.
— Está insinuando que Solaria poderia enfrentar outros mundos com armas baseadas na transdução mental? Para quê? Mesmo que pudéssemos derrotá-los, o que não é certo, o que ganharíamos com isso? O domínio de outros planetas? Para que conquistar outros planetas, quando vivemos em um mundo ideal? Para dominar os meio-humanos e usá-los como escravos? Temos nossos robôs, que são muito mais eficientes. Não, nós temos tudo o que desejamos. Não queremos nada... a não ser que nos deixem em paz. Escute aqui... vou contar outra história.
— Vá em frente — disse Trevize.
— Há vinte mil anos atrás, quando os meio-humanos da Terra invadiram o espaço e nós nos refugiamos no subsolo, os outros mundos dos Espaciais estavam dispostos a enfrentar os novos colonizadores vindos da Terra. Para isso, atacaram a própria Terra.
— Atacaram a própria Terra — repetiu Trevize, procurando disfarçar a satisfação que estava sentindo por afinal o assunto “Terra” ter surgido na conversa.
— Sim, o centro de tudo. Uma atitude sensata, de certa forma. Se você quer matar uma pessoa, não aponta para o braço ou para a perna, mas para o coração. E os nossos colegas Espaciais, cujas paixões ainda eram bastante primitivas, como as dos terráqueos, conseguiram tornar radioativa a superfície da Terra, de modo que o planeta ficou praticamente inabitável.
— Ah, então foi isso o que aconteceu! — exclamou Pelorat, sacudindo no ar o punho cerrado. — Sabia que não podia ser um fenômeno natural. Como foi que eles conseguiram isso?
— Não conheço os detalhes — disse Bander, com indiferença. — A verdade é que os Espaciais não ganharam muito com isso. É o que estou tentando mostrar. Os Colonizadores continuaram a se expandir e os Espaciais... desapareceram. Tinham tentado competir e foram extintos. Nós, solarianos, nos escondemos, nos recusamos a competir e ainda estamos aqui.
— Nós, Colonizadores, também — disse Trevize, agressivamente.
— Sim, mas não para sempre. Vocês têm que lutar, têm que competir, e acabarão por se destruir. Pode levar dezenas de milhares de anos, mas não temos pressa. Quando isso acontecer, nós, solarianos, completos, solitários, liberados, teremos a Galáxia inteira para nós. Poderemos então usar, ou não usar, qualquer planeta que quisermos além do nosso.
— Voltando à questão da Terra — disse Pelorat, estalando os dedos com impaciência. — O que nos contou é uma lenda ou um fato histórico?
— Qual a diferença, meio-humano? — perguntou Bander. — Toda lenda tem um fundo de verdade.
— Sim, mas o que dizem os seus registros? Posso ver os seus registros a respeito do assunto? Compreenda que essa questão de mitos, lendas e História antiga está dentro do meu campo de interesse. Sou um cientista especializado em História antiga, especialmente a da Terra.
— Estou me limitando a repetir o que me contaram — disse Bander. — Não existem registros a respeito. Nossos registros são apenas sobre os assuntos de Solaria; os outros mundos são mencionados apenas de passagem, quando a sua existência nos afeta de alguma forma.
— A existência da Terra certamente afetou vocês.
— Claro que sim, mas isso foi há muito, muito tempo, e a Terra, de todos os mundos, sempre foi o que nos causava mais repulsa. Se tivermos algum registro a respeito da Terra, estou certo de que foi destruído por pura aversão.
Trevize rangeu os dentes, furioso.
— Por vocês? — perguntou.
Bander voltou sua atenção para Trevize.
— Não havia ninguém mais para destruí-los. Pelorat não estava disposto a deixar o assunto morrer.
— Que mais você ouviu falar a respeito da Terra? Bander pensou um pouco. Depois, disse:
— Quando era moço, ouvi de um robô uma história a respeito de um terráqueo que uma vez visitou Solaria e de uma solariana que partiu com ele e ficou famosa em toda a Galáxia. Em minha opinião, a história foi inventada.
Pelorat mordeu o lábio inferior.
— Tem certeza?
— Como posso ter certeza? — disse Bander. — Apenas acho muito pouco provável que um terráqueo tivesse a coragem de vir a Solaria e que os solarianos permitissem a intrusão. É ainda menos provável que uma mulher solariana... ainda éramos meio-humanos, mas mesmo assim... abandonasse este mundo voluntariamente... Agora vamos, quero mostrar minha casa para vocês.
— Sua casa? — disse Bliss, olhando em torno. — Não estamos na sua casa?
— Não — disse Bander. — Esta é uma antessala. Uma sala de visitas. É aqui que, muito raramente, me encontro com outros solarianos. Suas imagens aparecem na parede, ou tridimensionalmente no espaço diante da parede. Assim, esta sala é um lugar público e não pode fazer parte de minha casa. Venham comigo.
O solariano atravessou o aposento sem olhar para trás para ver se estava sendo seguido, mas os quatro robôs haviam deixado seus cantos e Trevize sabia que se ele e os companheiros não o acompanhassem, os robôs os obrigariam a fazê-lo.
Os outros dois se puseram de pé e Trevize sussurrou para Bliss:
— Você o estimulou a falar? Bliss apertou-lhe a mão e assentiu.
— Mesmo assim, ficaria bem mais tranquila se soubesse o que pretende — acrescentou, com ar preocupado.
Os três seguiram Bander. Os robôs permaneceram a uma distância discreta, mas sua presença era uma ameaça permanente.
Estavam caminhando por um corredor e Trevize resmungou, desanimado:
— Já vi que não vamos descobrir nada de útil a respeito da Terra neste planeta. Apenas variações em torno do velho tema da radioatividade. — Franziu a testa. — Talvez seja melhor prosseguirmos para o terceiro conjunto de coordenadas.
Uma porta se abriu diante deles, revelando uma pequena sala. Bander disse:
— Entrem, meio-humanos, quero que vejam como vivemos. Trevize sussurrou:
— O sujeito tem um prazer infantil de se mostrar. Estou com vontade de amassar-lhe o nariz.
— Não tente competir com ele em infantilidade — disse Bliss. Bander fez os três entrarem no aposento. Um dos robôs os seguiu.
Bander mandou os outros robôs embora com um gesto e entrou também. A porta se fechou atrás dele.
— É um elevador! — exclamou Pelorat, surpreso.
— Isso mesmo — confirmou Bander. — Depois que nos retiramos para o subsolo, nunca mais voltamos a morar na superfície, embora eu goste de tomar sol de vez em quando. Entretanto, nunca vou lá fora à noite ou quando está nublado, pois tenho a impressão de estar em um lugar coberto sem realmente estar em um lugar coberto, se é que me entendem. É uma espécie de dissonância cognitiva que considero extremamente desagradável.
— Houve uma época em que os habitantes da Terra também moravam no subsolo — disse Pelorat. — As cidades eram chamadas de Cavernas de Aço. Trantor, a capital do antigo império, também tinha muitas construções subterrâneas. O mesmo acontece com Comporellon nos dias de hoje. Pensando bem, é uma tendência bastante comum.
— Meio-humanos amontoados debaixo da Terra e solarianos vivendo no subsolo com toda a privacidade e conforto têm muito pouco em comum — disse Bander.
— Em Terminus, todas as residências ficam na superfície — disse Trevize.
— Expostas às intempéries — disse Bander, em tom de reprovação. — Muito primitivo!
Depois da sensação inicial de perda de peso que havia revelado sua natureza a Pelorat, o elevador parecia totalmente imóvel. Trevize tinha começado a imaginar quanto tempo duraria a viagem quando houve uma breve sensação de aumento de peso e a porta se abriu.
Diante deles estava uma sala espaçosa e mobiliada com requinte. Estava iluminada com uma luz difusa, de origem desconhecida. Era como se o próprio ar fosse levemente luminoso.
Bander apontou com o dedo e, no lugar para onde havia apontado, a luz ficou mais forte. Apontou em outra direção e aconteceu a mesma coisa. Apoiou a mão esquerda em uma espécie de cano com a ponta arredondada que estava ao lado da porta e fez um gesto circular com a mão direita. No mesmo instante, toda a sala se iluminou como se estivesse ao sol, mas a sensação de calor estava ausente.
Trevize fez uma careta e exclamou, em voz não muito baixa:
— Esse homem é um charlatão! Bander protestou, zangado:
— Não diga “homem”, e sim “solariano”. Não sei o que significa “charlatão”, mas pelo tom de sua voz, deve ser alguma coisa ofensiva!
Trevize explicou:
— Charlatão é quem não é autêntico, quem faz as coisas parecerem mais extraordinárias do que realmente são.
— Tenho que admitir que gosto de efeitos dramáticos — disse Bander —, mas o que mostrei a vocês não é nenhum truque. É de verdade!
Deu um tapinha no cano em que a mão esquerda estava pousada.
— Este cano condutor de calor atinge uma profundidade de vários quilômetros. Existem canos semelhantes em muitos outros pontos de minha propriedade. Sei que existem canos como este em outras propriedades. Os canos aumentam a velocidade com que o calor é transferido do interior de Solaria para a superfície e facilita a conversão da energia térmica em mecânica. Não precisava dos gestos para produzir a luz, mas assim foi muito mais interessante, não acham?
— Quantas oportunidades você tem de experimentar o prazer desses pequenos toques dramáticos? — perguntou Bliss.
— Não muitas — disse Bander, sacudindo a cabeça. — Meus robôs não se impressionam com essas coisas. Nem os outros solarianos. Esta oportunidade de mostrar a casa para meio-humanos é muito... divertida.
— Havia uma luz difusa na sala quando entramos — disse Pelorat. — Ela fica acesa o tempo todo?
— Fica. Isso representa um pequeno consumo de energia... como o necessário para manter os robôs funcionando. Minha propriedade está sempre ativada; as unidades que não se encontram empenhai das em nenhum serviço ativo são mantidas operando com capacidade reduzida.
— E você fornece constantemente energia para toda a propriedade?
— A energia é fornecida pelo sol e pelo núcleo do planeta; limito-me a canalizar essa energia. Além disso, nem toda a minha propriedade é produtiva. Conservo a maior parte em estado selvagem, abrigando uma boa variedade de animais; primeiro, para proteger os meus! domínios e segundo, porque isso me agrada. Na verdade, minhas fábricas e plantações são pequenas. Servem apenas para suprir minhas! necessidades e produzir alguns itens especiais, que troco com outros, solarianos. Tenho robôs, por exemplo, que são capazes de fabricar e instalar canos condutores de calor. Muitos solarianos contratam os serviços desses robôs.
— E a sua casa? — quis saber Trevize. — É muito grande? O rapaz devia ter feito a pergunta certa, pois um largo sorriso iluminou o rosto do solariano.
— Muito grande. Uma das maiores do planeta, acredito eu. Estende-se por quilômetros e quilômetros em todas as direções. Tenho tantos robôs cuidando da minha casa no subsolo quanto em todos os milhares de quilômetros quadrados da superfície.
— Você não pode morar nela toda, é claro — disse Pelorat.
— Pode haver um quarto ou outro que nunca visitei, mas e daí? ! Os robôs mantêm todos os aposentos limpos, arrumados e bem ventilados. Venham, venham.
Passaram por uma porta diferente da que haviam usado para entrar na sala e foram dar em outro corredor. Diante deles estava um pequeno carro sem teto, que corria em trilhos.
Bander fez um gesto para que subissem a bordo e os três obedeceram. Não havia lugar suficiente para todos os quatro e mais o robô, mas Pelorat e Bliss se apertaram de modo a deixar espaço para Trevize. Bander sentou-se na frente, ao lado do robô, e o carro se pôs em movimento, sem nenhum sinal de que o solariano estivesse usando algum tipo de controle.
— Na verdade, trata-se de um robô em forma de carro — declarou Bander, com ar de indiferença.
Prosseguiram com velocidade razoável, passando por portas que se abriam quando o carro se aproximava e tornavam a se fechar depois que ele passava. Cada porta estava pintada com um desenho geométrico diferente, como se os robôs tivessem recebido instruções para decorá-las com motivos escolhidos ao acaso.
O corredor à frente e atrás do carro estava sempre escuro. O local em que se encontravam, porém, estava sempre bem iluminado. As salas também se acendiam assim que as portas eram abertas.
A viagem parecia não ter mais fim. De vez em quando, o carro fazia uma curva, demonstrando que a casa se estendia em duas dimensões. (Não, em três dimensões, pensou Trevize, quando percebeu que o carro tinha descido uma rampa suave.).
Onde quer que passassem, havia robôs, dezenas, centenas de robôs... empenhados em trabalhos que Trevize era incapaz de precisar. Passaram uma grande sala na qual havia dezenas de robôs sentados diante de escrivaninhas.
— O que é que eles estão fazendo, Bander? — perguntou Pelorat.
— Contabilidade — explicou Bander. — Dados estatísticos, contas financeiras, coisas assim com as quais, felizmente, não preciso me preocupar. Esta propriedade é altamente produtiva. Cerca de um quarto da área cultivada é dedicado às árvores frutíferas. Também produzo vários cereais, mas meu orgulho são as frutas. Minhas frutas são as melhores do planeta. Em Solaria, os pêssegos de Bander são famosos. Ninguém mais se dá ao trabalho de cultivá-los. Tenho 27 diferentes variedades de maçãs... e assim por diante. Os robôs podem fornecer a você os dados completos.
— O que é que você faz com todas essas frutas? — perguntou Trevize. — Não pode comer todas.
— Claro que não! Pessoalmente, nem gosto muito de frutas. Elas são trocadas com os outros solarianos.
— O que é que você recebe em troca?
— Minérios, principalmente. Minha propriedade praticamente não tem recursos minerais. Também adquiro de vez em quando os espécimes necessários para manter o equilíbrio ecológico. Tenho uma grande variedade de animais e vegetais em minha propriedade.
— Os robôs tomam conta de tudo isso, suponho — disse Trevize.
— Tomam. E muito bem.
— Tudo para um solariano.
— Tudo para a propriedade e seus padrões ecológicos. Acontece que sou o único solariano a visitar as várias partes da propriedade... mas isso faz parte da minha liberdade absoluta.
Pelorat disse:
— Suponho que os outros... os outros solarianos também mantenham o equilíbrio ecológico nos pântanos, ou regiões montanhosas, ou litorais, ou seja qual for o tipo de terreno em que estão suas propriedades.
— Claro que sim. Este é um dos assuntos que discutimos nas conferências que às vezes as questões mundiais tornam necessárias.
— Com que frequência vocês se reúnem? — perguntou Trevize. Estavam passando por um corredor muito estreito e comprido, no qual não havia salas. Trevize imaginou que o terreno ali não devia ser apropriado para construção e que o corredor servia apenas para ligar duas alas da casa.
— Com maior frequência do que eu gostaria. É raro o mês em que não tenho que me reunir com os outros membros de uma das comissões de que faço parte. Embora não haja pântanos nem montanhas em minha propriedade, meus pomares, viveiros de peixes e jardins botânicos são considerados os melhores de Solaria!
Pelorat disse:
— Meu velho amigo... quero dizer Bander... suponho que nunca saiu da sua propriedade para visitar outras...
— Claro que não! — exclamou Bander, com ar ofendido.
— Nesse caso — prosseguiu Pelorat —, como pode estar certo de que os seus produtos são os melhores?
— Posso avaliar — explicou Bander — pela forma como meus produtos são valorizados no comércio entre as propriedades.
— E as indústrias? — perguntou Trevize.
— Existem propriedades que fabricam máquinas e ferramentas. Como eu já disse, na minha propriedade fazemos canos condutores de calor.
— E os robôs?
— Os robôs são fabricados aqui e ali. No passado mais remoto, os robôs de Solaria já eram considerados os melhores da Galáxia.
— Hoje em dia também, suponho — disse Trevize, tomando cuidado para que o outro interpretasse a frase como uma afirmação e não como uma pergunta.
— Hoje em dia? Com quem vamos competir hoje em dia? Hoje em dia somos os únicos que fabricamos robôs. Vocês pararam de fabricá-los, se entendi corretamente o que ouvi nas transmissões hiperespaciais.
— E os outros mundos dos Espaciais?
— Já lhe disse que não existem mais.
— Todos eles?
— Não acredito que hoje exista um único Espacial vivo fora de Solaria.
— Então não existe ninguém que conheça a localização da Terra?
— Por que alguém iria se interessar em saber a localização da Terra?
— Estou interessado em saber — interrompeu Pelorat. — Afinal, é o meu campo de estudo.
— Pois é melhor estudar outra coisa — disse Bander. — Não sei onde fica a Terra, nunca ouvi falar de alguém que soubesse e não estou interessado no assunto.
O carro diminuiu a velocidade e por um momento Trevize pensou que Bander tivesse ficado ofendido. A parada, entretanto, foi suave e Bander, ao saltar do carro, parecia o mesmo de sempre.
A sala em que entraram era mal iluminada, mesmo depois que Bander aumentou a luz com um gesto. Dava para um corredor lateral, flanqueado por salas menores. Cada uma dessas salas continha um ou dois vasos decorados, às vezes acompanhados por objetos que pareciam projetores de cinema.
— O que é isso, Bander? — perguntou Trevize.
— São as câmaras mortuárias dos meus ancestrais, Trevize.
Pelorat olhou em torno com interesse.
— As cinzas dos seus ancestrais estão enterradas aqui? — perguntou.
— “Enterradas” não é o termo que usamos — disse Bander. — As cinzas estão no subsolo, mas minha casa também. Na nossa língua, dizemos que, ao serem colocadas aqui, as cinzas foram “encasadas”.
Trevize olhou rapidamente em torno.
— Esses são todos seus ancestrais? Quantos?
— Quase uma centena — respondeu Bander, sem disfarçar o orgulho na voz. — Noventa e quatro, para ser mais exato. Naturalmente, os primeiros não eram solarianos de verdade. Eram meio-humanos, masculinos e femininos. Foram colocados em urnas contíguas por seus descendentes imediatos. Naturalmente, não entro nas salas onde eles estão. Seria “vergonhífero” de minha parte. Pelo menos, esta é a expressão em solariano; não conheço a palavra equivalente em galáctico.
— E os filmes? — perguntou Bliss. — Essas máquinas são projetores, não são?
— Diários — explicou Bander. — A história de suas vidas. Cenas em que aparecem nos locais que gostavam de frequentar. Graças aos diários, não estão totalmente mortos. Parte deles permanece aqui, e é parte de minha liberdade a possibilidade de vir aqui sempre que quiser e juntar-me a eles. Posso ver o trecho de suas vidas que desejar.
— Mas não os... os vergonhíferos. Bander baixou os olhos.
— Não — admitiu. — Mas afinal, todos nós solarianos compartilhamos desse passado desagradável. É uma desgraça coletiva.
— Coletiva? Então os outros solarianos também têm câmaras como essas? — perguntou Trevize.
— Oh, sim, nós todos temos, mas as minhas são as melhores, as mais requintadas, as mais bem conservadas.
— Já preparou a sua câmara mortuária? — perguntou Trevize.
— Certamente. Está pronta para receber minhas cinzas. Foi a primeira coisa que fiz quando herdei a propriedade. Quando chegar a minha vez, meu sucessor fará a mesma coisa.
— Você tem um sucessor?
— Terei, quando chegar a ocasião. Ainda me restam muitos anos de vida. Quando partir, deixarei um sucessor adulto, suficientemente maduro para aproveitar a propriedade e com lobos transdutores suficientemente desenvolvidos para fazê-la funcionar.
-- Será seu descendente, imagino.
— Oh, sim!
— E se as coisas não correrem conforme o previsto? — perguntou Trevize. — Mesmo aqui em Solaria devem ocorrer acidentes. O que acontece se um solariano tem que partir prematuramente e não deixa sucessor, ou deixa um sucessor que não está suficientemente maduro para aproveitar a propriedade?
— Isso é muito raro. Na minha família, só aconteceu uma vez. Acontece, Trevize, que existem outros sucessores em outras propriedades. Alguns desses sucessores têm idade bastante para herdar, mas seus pais são suficientemente jovens para poder gerar um segundo descendente e continuar vivos até que esse segundo descendente atinja a idade adulta. Um desses sucessores veteranos, como são chamados, seria escolhido para herdar rainha propriedade.
— Quem faria a escolha?
— Solaria é governado por um conselho. Uma das poucas atribuições do conselho é exatamente essa: escolher um sucessor em caso de partida prematura. Naturalmente, tudo é feito por holovisão.
Pelorat disse:
— Escute aqui, se os solarianos nunca se veem, como é que ficam sabendo quando alguém mor... quando alguém tem que partir, inesperadamente ou não?
— Quando um de nós tem que partir, a propriedade fíca sem energia; todas as máquinas deixam imediatamente de funcionar. Se um sucessor não assume o lugar, a situação anormal chega ao conhecimento dos outros solarianos e são tomadas medidas corretivas. Asseguro-lhe que nosso sistema social funciona perfeitamente.
— Poderia me mostrar alguns desses filmes que você tem aqui? O rosto de Bander revelou uma indignação genuína. Ele disse:
— Só a sua ignorância se justificaria como desculpa. O que está me propondo é obsceno.
— Peço desculpas — disse Trevize. — Não quero parecer insistente, mas já expliquei que estamos interessados em obter informações a respeito da Terra. Ocorreu-me que os filmes mais antigos que você tem podem ser da época em que a Terra ainda não era radioativa. Nesse caso, talvez mencionem a Terra. Pode ser até que digam alguma coisa a respeito da sua localização. É claro que não queremos nos intrometer em sua privacidade, mas não haveria uma forma de você mesmo examinar esses filmes, ou mandar um robô examiná-los, e nos transmitir qualquer informação que contenham a respeito da Terra? Naturalmente, se entende os nossos motivos e compreende que faremos o possível para respeitar os seus sentimentos, talvez nos permita examinar pessoalmente os filmes.
Bander disse secamente:
— Imagino que você não tem meios de saber que está me ofendendo cada vez mais. Entretanto, podemos encerrar de vez esta conversa, pois lhe asseguro que não há filmes nas câmaras que contêm as cinzas dos meus antepassados meio-humanos.
— Não? — O desapontamento de Trevize era evidente.
— Esses filmes existiram um dia. Até você, porém, pode imaginar o que continham. Dois meio-humanos mostrando interesse um pelo outro, ou mesmo... — Bander pigarreou e completou, com esforço — … ou mesmo interagindo. Naturalmente, todos os filmes a respeito dos meio-humanos foram destruídos há muitas gerações.
— E os filmes guardados por outros solarianos?
— Todos destruídos.
— Tem certeza?
— Conservá-los seria loucura.
— Pode ser que algum solariano seja louco, sentimental ou esquecido. Acho que não se incomodará se visitarmos seus vizinhos.
Bander olhou para Trevize, surpreso.
— Pensa que outros solarianos vão ser tão tolerantes quanto eu?
— Por que não?
— Vocês vão ver.
— Estamos dispostos a correr o risco.
— Não, Trevize. Não posso permitir. Havia robôs por perto e Bander parecia cada vez menos amistoso.
— Que foi que houve, Bander? — perguntou Trevize, pouco à vontade.
— Escute, não posso dizer que não me diverti conversando com vocês, conhecendo pessoas tão... tão diferentes. Foi uma experiência rara, que me trouxe prazer, mas não posso registrá-la no meu diário nem imortalizá-la em filme.
— Por que não?
— Falar com vocês, escutar vocês, recebê-los em minha casa, trazê-los aqui, nas câmaras mortuárias dos meus antepassados... tudo isso constitui grave violação das normas sociais de Solaria.
— Não somos solarianos. Para vocês, não somos mais importantes que um robô, não é verdade?
— Foi a desculpa que usei para mim mesmo. Os outros talvez não pensem da mesma forma.
— E daí? Você tem liberdade absoluta para fazer o que quiser, não tem?
— Claro que não. Se eu fosse o único habitante de Solaria, então sim, teria liberdade absoluta. Mas existem outros solarianos no planeta, de modo que minha liberdade, embora muito grande, tem suas limitações. Existem mil e duzentos solarianos neste planeta que me desprezariam se soubessem o que fiz.
— Eles não precisam saber...
— É verdade. Tenho pensado nisso desde que vocês chegaram. Tenho pensado nisso o tempo todo. Os outros não devem saber.
Pelorat interveio:
— Se tem medo de que nossa visita às outras propriedades em busca de informações sobre a Terra lhe traga complicações, pode ficar tranquilo. Basta não revelarmos que estivemos aqui. Você tem nossa palavra.
Bander sacudiu a cabeça.
— Já me arrisquei demais. Não vou falar com os outros sobre vocês, é claro. Meus robôs não vão falar sobre vocês; vou providenciar para que se esqueçam de tudo a respeito da estada de vocês em Solaria. A nave será trazida cá para baixo e revistada...
— Espere! — protestou Trevize. — Quanto tempo acha que podemos esperar enquanto revista nossa nave? Queremos...
— Não estão em posição de querer nada — interrompeu Bander. Sinto muito. Gostaria de discutir muitas outras coisas com vocês, mas não estou disposto a correr o risco.
— Não entendo qual é esse risco.
— Não precisa entender, pequeno meio-humano. Vou fazer agora o que meus ancestrais teriam feito assim que vocês desembarcaram no planeta. Vou matá-los... todos os três.
Trevize olhou imediatamente para Bliss. A moça estava com os olhos fixos em Bander. O rosto não revelava qualquer emoção. Parecia alheia ao que estava acontecendo.
Pelorat ficou de boca aberta, como se não acreditasse nos próprios ouvidos.
Trevize, sem saber exatamente o que Bliss seria capaz de fazer para salvá-los, lutou para superar uma imensa sensação de perda (não tanto a ideia de morrer, pensou, mas a ideia de morrer sem saber onde ficava a Terra, sem saber por que havia escolhido Gaia como futuro da humanidade). Era preciso ganhar tempo.
Fazendo o possível para conservar a voz firme, o rapaz começou:
— Bander, você se revelou uma pessoa gentil e educada. Não se irritou com nossa intrusão no seu planeta. Deu-se ao trabalho de nos mostrar pessoalmente sua propriedade e sua mansão, não se furtou de responder às nossas perguntas. Estaria muito mais de acordo com o seu caráter se nos deixasse partir agora. Ninguém jamais saberia que estivemos aqui e não temos nenhum motivo para voltar. Chegamos em paz, em busca de informação, e partiríamos em paz.
— O que está dizendo é verdade — concordou Bander, com um sorriso — e é por isso que até agora permiti que vivessem. No momento em que entraram na atmosfera de Solaria, suas vidas já não valiam mais nada. O que eu podia ter feito... o que devia ter feito... era matá-los assim que pousassem. Em seguida, meus robôs dissecariam os cadáveres e revistariam a nave. Informações a respeito dos Forasteiros são sempre bem-vindas.
“Não foi isso que fiz”. Cedi à curiosidade e à minha generosidade natural. Agora basta. Não posso continuar. O que está em risco é a própria segurança de Solaria, pois se, por alguma fraqueza, permitisse que vocês me persuadissem a deixá-los partir, tenho certeza de que outros viriam.
“Entretanto, vocês têm um consolo”. A morte será indolor. Vou simplesmente aquecer o cérebro de vocês até que ele deixe de funcionar. Não sentirão nada. Mais tarde, depois que os robôs acabarem de dissecar e examinar os corpos, eles serão reduzidos a cinzas por um pulso de calor intenso e tudo estará terminado.
— Se vou morrer — disse Trevize —, nada tenho a opor a uma morte rápida e indolor, mas por que temos que morrer, quando não cometemos nenhum crime?
— A chegada de vocês a este planeta foi um crime.
— Não do ponto de vista moral, porque não tínhamos meios de saber que era um crime.
— É a sociedade local que define o que constitui um crime. Para vocês, pode parecer irracional e arbitrário, mas, para nós, não é. Como este é o nosso mundo, no qual temos todo o direito de decidir o que é certo e o que é errado, vocês cometeram um crime e merecem morrer. .
Bander sorriu como se estivesse entretendo um grupo de convidados e prosseguiu:
— Também não podem se queixar com base em pretensas, virtudes morais. Você, por exemplo, carrega uma arma que utiliza um feixe de microondas para aquecer os tecidos da vítima até matá-la. Faz a mesma coisa que eu pretendo fazer com vocês, mas de forma muito mais cruel e dolorosa. Você, Trevize, não hesitaria em usá-la contra mim neste instante, se eu não tivesse tomado a precaução de descarregá-la e se fosse suficientemente tolo para permitir-lhe liberdade de movimentos.
Trevize protestou, desesperado, com medo de olhar para Bliss e atrair para ela a atenção de Bander:
— Por favor, não faça isso! Tenha pena de nós!
— Tenho que pensar primeiro em mim e no meu mundo. Por isso, vocês têm que morrer — disse Bander, subitamente sério.
Levantou a mão e imediatamente Trevize viu tudo escurecer.
Por um momento, Trevize sentiu a escuridão sufocá-lo e pensou consigo mesmo: Isto é a morte?
Como se fosse um eco para os seus pensamentos, ouviu um sussurro:
— Isto é a morte? Era a voz de Pelorat. Trevize tentou falar e descobriu que podia.
— Não precisa perguntar — disse, com uma imensa sensação de alívio. — O simples fato de estar falando significa que isto não é a morte.
— Muita gente acredita que existe vida depois da morte.
— Bobagem — resmungou Trevize. — Bliss? Você está aqui, Bliss?
Não houve resposta. Pelorat chamou também:
— Bliss? Bliss? Golan, que aconteceu?
— Bander deve estar morto — explicou Trevize. — Por isso, a propriedade ficou sem energia. Todas as luzes se apagaram.
— Mas como foi que... você acha que foi Bliss?
— Deve ter sido. Espero que não tenha saído ferida.
Trevize começou a rastejar na escuridão absoluta do complexo subterrâneo (sem contar o brilho ocasional, muito tênue, de um átomo radioativo desintegrando-se nas paredes).
De repente, sua mão tocou alguma coisa quente e macia. Apalpou-a e reconheceu uma perna, que segurou. Era muito pequena para pertencer a Bander.
— Bliss?
A perna se moveu com força, obrigando Trevize a largá-la.
— Bliss? Diga alguma coisa! — exclamou o rapaz.
— Estou viva — disse a voz de Bliss, curiosamente distorcida.
— Você está bem?
— Não.
Nesse momento, a luz voltou... muito fraca. As paredes começaram a brilhar, mas a luz aumentava e diminuía erraticamente.
Bander estava caído no chão, inerte. A seu lado, segurando-lhe a cabeça, estava Bliss.
A jovem olhou para Trevize e Pelorat.
— O solariano está morto — declarou, com os olhos marejados de lágrimas.
Trevize estava atônito.
— Por que está chorando?
— Não deveria chorar, depois de ter matado uma criatura viva e inteligente? Não era essa a minha intenção.
Trevize abaixou-se para ajudá-la a levantar-se, mas Bliss o repeliu. Pelorat ajoelhou-se ao lado da moça e disse baixinho:
— Por favor, Bliss, nem mesmo você é capaz de trazê-lo de volta à vida. Conte-nos o que aconteceu.
A jovem permitiu que Pelorat a levantasse e disse, sem emoção:
— Gaia pode fazer a mesma coisa que os solarianos. Gaia pode lazer uso da distribuição desigual de energia no universo e transformá-la em trabalho útil, usando apenas o poder mental.
— Sei disso — afirmou Trevize, procurando acalmar a moça, mas sem saber muito bem como fazê-lo. — Lembro-me do nosso encontro no espaço, quando você... ou melhor, quando Gaia capturou nossa nave. Pensei nisso quando Bander me imobilizou, depois de tomar minhas armas. Você foi imobilizada, também, mas eu tinha certeza de que você poderia resistir, se quisesse.
— Pois estava enganado. Quando eu/nós/Gaia capturamos sua nave, eu e Gaia éramos uma coisa só. Agora, minha ligação com Gaia tem que ser feita através do hiperespaço, o que limita consideravelmente o que eu/nós/Gaia podemos realizar. Além do mais, Gaia faz o que faz através da conjugação dos esforços de cérebros humanos comuns; nenhum desses cérebros possui o equivalente aos lobos transdutores dos solarianos. Não podemos fazer uso da energia da mesma forma delicada, eficiente, descontraída que um ser como Bander. Não consigo nem iluminar direito esta sala... já estou ficando cansada apenas por manter a luz como está. Bander era capaz de fornecer energia para toda a propriedade, mesmo quando estava dormindo.
— Mas você o venceu — disse Trevize.
— Porque ele não conhecia meus poderes — explicou Bliss — e porque não fiz nada que chamasse sua atenção. Bander se preocupou muito mais com você, Trevize, o único que estava armado... mais uma vez, suas armas foram muito úteis... e tive a oportunidade de atingi-lo com um golpe rápido e inesperado, No momento em que se preparava para matar-nos, quando toda a sua atenção estava concentrada nessa tarefa, e em você, arrisquei nesse único golpe.
— E funcionou magnificamente.
— Como pode dizer uma coisa tão cruel, Trevize? Não pretendia matá-lo. Minha intenção era apenas impedi-lo de usar o transdutor. No momento de surpresa em que tentasse destruir nosso cérebro e descobrisse que continuávamos vivos, e que, além disso, a iluminação estava ficando cada vez mais fraca, usaria meus poderes para fazê-lo dormir e ao mesmo tempo liberaria o transdutor. Nesse caso, as luzes continuariam acesas e poderíamos sair da casa, entrar na nave e ir embora do planeta. Arranjaria as coisas de tal forma que, quando Bander finalmente acordasse, não se lembraria de nada a respeito da nossa visita. Gaia não tem desejo de matar ninguém, quando existem outros meios de atingir os mesmos objetivos.
— O que foi que deu errado, Bliss? — perguntou Pelorat.
— Eu nunca havia encontrado nada parecido com aqueles lobos transdutores e não tivera oportunidade de examiná-los de perto. Limitei-me a bloqueá-los mais ou menos às cegas, e, ao que parece, a manobra não funcionou da forma desejada. Não foi a entrada da energia nos lobos que foi bloqueada, mas a saída dessa energia. A energia está sempre entrando nos lobos, mas, normalmente, o cérebro se protege descarregando o excesso. Quando bloqueei a saída, porém, a energia se acumulou nos lobos e, em fração de segundo, a temperatura subiu a tal ponto que as proteínas do cérebro coagularam e as células morreram. As luzes se apagaram e removi imediatamente o bloqueio, mas era tarde demais.
— Não vejo como poderia ter agido de outra forma, querida — disse Pelorat.
— Grande consolo, considerando que eu o matei.
— Bander estava disposto a nos matar — disse Trevize.
— Tinha razões para impedi-lo, não para matá-lo. Trevize hesitou. Não queria demonstrar a impaciência que estava sentindo; seria bobagem ofender ou irritar Bliss, que era, afinal de contas, sua única defesa naquele mundo extremamente hostil. Ele disse:
— Bliss, precisamos pensar nas consequências da morte de Bander. No momento, toda a propriedade está sem energia. Mais cedo ou mais tarde, talvez mais cedo do que pensamos, os solarianos se darão conta do fato e virão investigar. Não acho que você seja capaz de enfrentar simultaneamente vários nativos do planeta. Além disso, como você mesma confessou, não conseguirá nem mesmo manter as luzes desta sala acesas por muito tempo. É importante, portanto, que a gente volte sem demora para a superfície e para a nossa nave.
— Como vamos fazer isso, Golan? — perguntou Pelorat. — Para chegar até onde estamos, atravessamos quilômetros de túneis tortuosos. Aqui embaixo deve ser um verdadeiro labirinto! Não tenho a menor ideia do que devemos fazer para voltar à superfície. E você?
Trevize olhou em volta e se deu conta de que Pelorat tinha razão. Ele disse para o outro:
— Deve haver muitas comunicações com a superfície... não precisamos voltar pela mesma que usamos na vinda.
— Está certo, mas não sabemos onde estão as passagens. Como vamos encontrar uma delas?
Trevize voltou-se para Bliss.
— Você pode detectar algo, mentalmente, que nos ajude a localizar uma saída?
— Todos os robôs da propriedade estão inativos — respondeu a moça. — Estou captando alguns traços de vida animal acima de nós, mas isso apenas revela que a superfície fica para cima, coisa que estamos fartos de saber.
— Então vamos ter que procurar uma saída — disse Trevize.
— É uma agulha num palheiro — disse Pelorat. — Pode levar anos!
— Não temos alternativa — disse Trevize. — Se ficarmos aqui, mais cedo ou mais tarde os solarianos nos pegarão. Vamos, temos que tentar!
— Espere — disse Bliss. — Estou captando mais alguma coisa!
— O quê? — perguntou Trevize.
— Pensamentos.
— Inteligência?
— Sim, mas limitada. Uma emoção, porém, é muito forte.
— Qual? — perguntou Trevize, lutando novamente para controlar a impaciência.
— Medo! Um medo incontrolável! — explicou Bliss.
Trevize olhou em volta, desconsolado. Sabia por onde tinham entrado, mas não tinha nenhuma esperança de poder refazer o trajeto de vinda. Afinal, não tinha prestado nenhuma atenção às curvas do caminho. Quem teria imaginado que seriam forçados a voltar sozinhos, sem nenhuma ajuda, guiados apenas por uma luz mortiça?
— Acha que pode fazer o carro funcionar, Bliss? — perguntou para a moça.
— Tenho certeza, Trevize, mas isso não quer dizer que eu saiba como dirigi-lo.
— Acho que Bander dirigia o carro mentalmente — disse Pelorat — Pelo menos, não o vi mexer em nenhum controle durante a viagem.
— Eu sei, Pel — concordou Bliss. — Mas como! Suponha qual soubéssemos que Bander havia usado algum tipo de controles. Se não soubéssemos operar os controles, isso não ajudaria muito, não é?
— Você pode tentar — disse Trevize.
— Para tentar, vou ter que me concentrar tanto que duvido que consiga manter as luzes acesas. O carro não nos servirá de nada no escuro.
— Então vamos ter que procurar a saída a pé?
— Acho que sim.
Trevize olhou para a escuridão que cercava a área precariamente iluminada em que os três se encontravam. Não viu nada, não ouviu nada. Perguntou:
— Bliss, ainda está captando aquela criatura amedrontada?
— Estou, sim.
— Pode dizer onde está? Pode guiar-nos até lá?
— As ondas mentais se propagam em linha reta. Não são difratadas apreciavelmente pela matéria comum, de modo que tenho certeza de que está nessa direção.
A jovem apontou para um ponto na parede e disse:
— Acontece que não podemos atravessar a parede. O melhor que podemos fazer é seguir os corredores e escolher sempre o caminho para o qual as ondas se tornem mais fortes. Em outras palavras, acho que vamos ter que brincar de chicotinho-queimado!
— Então vamos logo.
— Espere, Golan — protestou Pelorat. — Tem certeza de que quer encontrar essa criatura? Se está assustada, talvez haja motivo para ficarmos assustados, também.
Trevize sacudiu a cabeça, impaciente.
— Não temos escolha, Janov. Assustado ou não, é um ser inteligente, que talvez possa nos mostrar o caminho para a superfície.
— Vamos deixar Bander aqui? — perguntou Pelorat. Trevize puxou-o pelo braço.
— Vamos, Janov. Nesse caso também não temos escolha. Um dia algum solariano vai reativar a propriedade e um robô vai encontrar o corpo de Bander e cuidar dele... só espero que, quando isso acontecer, a gente esteja longe daqui!
Fez um gesto para que Bliss fosse na frente. A luz era sempre mais forte perto da jovem e ela parava em cada cruzamento, procurando localizar a fonte das transmissões mentais. Às vezes, experimentava um caminho, dava meia-volta e escolhia outra rota, enquanto Trevize a observava, impotente.
Cada vez que Bliss fazia uma escolha e se encaminhava com passos decididos em certa direção, a luz a precedia. Trevize observou que a luz parecia um pouco mais forte. Talvez seus olhos se estivessem habituando à penumbra. Podia ser também que Bliss estivesse aprendendo a energizar o sistema de iluminação de forma mais eficiente. A certa altura, quando passaram por um dos canos condutores de calor, a moça apoiou a mão na extremidade do cano e as luzes ficaram bem mais fortes. Bliss balançou a cabeça, como se estivesse satisfeita consigo mesma.
Nada parecia familiar. Trevize tinha certeza de que estavam em uma parte da mansão por onde não haviam passado para chegar às câmaras mortuárias.
O rapaz estava à procura de corredores que levassem para cima e também examinava constantemente o teto em busca de algo que lembrasse um alçapão. Como não apareceu nada semelhante, a única esperança continuava a ser a criatura amedrontada.
Caminhavam em silêncio, a não ser pelo som dos próprios passos, e no escuro, exceto pela luz que acompanhava Bliss. De vez em quando, encontravam um robô, sentado ou de pé, mas sempre imóvel. Uma vez, passaram por um robô que estava deitado no chão, os braços e pernas em posições grotescas. Tinha sido pego de surpresa pela falta de energia, pensou Trevize, e havia perdido o equilíbrio. Bander, vivo ou morto, não podia modificar a lei da gravidade. Provavelmente havia robôs inativos na superfície; talvez fosse a primeira coisa a atrair a atenção dos vizinhos.
Ou talvez não, pensou subitamente. Os solarianos deviam saber quando um deles estava para morrer de velhice. Nesse caso, a comunidade estaria preparada e alerta. Bander, porém, tinha morrido de repente, sem nenhum aviso, na flor da idade. Quem saberia? Quem estaria prestando atenção no comportamento dos seus robôs?
Pelorat murmurou, em tom preocupado:
— A ventilação deve ter parado! Um lugar como este, no subsolo, precisa de ventilação forçada. Com a morte de Bander, as máquinas de ventilação pararam de funcionar!
— Não se preocupe, Janov — disse Trevize. — O ar que existe aqui embaixo deve ser suficiente para vários anos.
— Já estou me sentindo meio sufocado...
— Janov, não vá me dizer que sofre de claustrofobia! Bliss, estamos chegando perto?
— Estamos quase lá, Trevize. A sensação é cada vez mais forte. A moça agora estava caminhando com mais segurança, hesitando menos nos cruzamentos.
— Está ali! — exclamou. — Bem à frente!
— Já estou ouvindo alguma coisa — observou Trevize.
Os três pararam e, instintivamente, prenderam a respiração. Ouviram alguém chorando baixinho. De vez em quando, o choro era interrompido por soluços.
Entraram em um salão e, quando as luzes se acenderam, verificaram, que, ao contrário de todos os aposentos que haviam visto até o momento, era ricamente mobiliado.
No meio do salão havia um robô, ligeiramente inclinado para a frente, com os braços estendidos no que parecia um gesto quase afetuoso. Naturalmente, o robô estava imóvel.
Houve um ruído atrás do robô. Um olho assustado apareceu por um instante. O choro continuou.
Trevize deu um passo em direção ao robô e, do outro lado, um pequeno vulto saiu correndo, gritando. Tropeçou, caiu e ficou onde havia caído, cobrindo os olhos, dando pontapés em todas as direções, como que para se defender de algum perigo iminente, gritando sem parar...
— É uma criança — observou Bliss, sem a menor necessidade.
Trevize parou, surpreso. O que estaria fazendo ali uma criança? Bander tinha falado com tanto orgulho de sua solidão, de sua privacidade...
Pelorat foi o primeiro a encontrar a explicação.
— Este deve ser o sucessor — disse.
— É o filho de Bander, sim — concordou Bliss. — Mas acho que é jovem demais para herdar a propriedade. Os solarianos vão ter que arranjar outro sucessor.
A moça olhou para a criança, não com os olhos arregalados, mas de uma forma suave, hipnótica, e pouco a pouco os gritos diminuíram. A criança abriu os olhos e olhou para Bliss. Os gritos se transformaram em soluços.
Bliss falou com a criança, palavras doces, que pouco significavam em si mesmas, mas que serviam para reforçar o efeito calmante dos pensamentos da jovem. Era como se estivesse acariciando mentalmente o cérebro da criança, confortando-a, tranquilizando-a.
Devagar, sem tirar os olhos de Bliss, a criança se pôs de pé. Ficou ali parada por um momento, com o corpo balançando para lá e para; depois, correu na direção do robô. Envolveu com os braços a perna da máquina, como se estivesse procurando refúgio.
— Acho que o robô é a ama da criança. Um solariano não pode cuidar de outro solariano, mesmo que seja seu filho.
— Suponho que seja hermafrodita — disse Pelorat.
— Tem que ser — afirmou Trevize.
Bliss, com a atenção concentrada na criança, aproximou-se lentamente, com as mãos à altura dos ombros, as palmas para trás, como que para mostrar à criaturinha que não tinha intenção de agarrá-la. A criança agora estava quieta, olhando fixamente para a moça enquanto segurava com força a perna do robô.
— Calma, criança — disse Bliss. — Está tudo bem... não há perigo... somos amigos...
Parou e, sem olhar para trás, disse em voz baixa:
— Pel, fale com ela. Diga-lhe que somos robôs e viemos cuidar dela porque faltou energia.
— Robôs? — exclamou Pelorat, chocado.
— Temos que nos fazer passar por robôs. A criança não tem medo de robôs. Ela nunca viu um ser humano, talvez nem mesmo saiba o que são os seres humanos.
— Vai ser difícil traduzir isso — disse Pelorat. — Não sei como é “robô” em galáctico arcaico.
— Então diga “robô” mesmo, Pel. Se a criança não entender, tente “coisa de metal”. Faça o que puder.
Pelorat se dirigiu à criança, procurando falar bem devagar. A criança olhou para ele e franziu a testa, como se estivesse fazendo força para compreender.
— Aproveite para perguntar como se sai daqui — sugeriu Trevize.
— Não — disse Bliss. — Ainda não. Primeiro temos que conquistar a sua confiança para depois tentar obter informações.
A criança, que agora estava olhando para Pelorat, largou a perna do robô e começou a falar com uma voz musical, mas muito aguda.
— Está falando depressa demais para mim — disse Pelorat, preocupado.
— Peça-lhe para repetir mais devagar. Estou fazendo o possível para acalmá-la e remover seus temores.
Pelorat escutou de novo a criança e depois disse:
— Acho que está perguntando por que Jemby parou. Jemby deve ser o robô.
— Procure certificar-se, Pel. Pelorat falou com a criança, ouviu a resposta e disse para Bliss:
— Isso mesmo. Jemby é o robô. A criança se chama Fallom.
— Ótimo!
Bliss sorriu para a criança, um sorriso alegre, luminoso. Apontou para ela e disse:
— Fallom. Muito bem, Fallom. Você é valente. Colocou a mão no próprio peito e disse:
— Bliss.
A criança sorriu. Ficava muito bonita quando sorria.
— Bliss — repetiu, pronunciando mal o “s”. Trevize interveio:
— Bliss, se você puder ativar o robô, talvez ele nos diga o que queremos saber. Se Pelorat consegue se entender com a criança, também vai conseguir se entender com o robô.
— Não — disse Bliss. — Isso seria um erro. A primeira obrigação do robô deve ser proteger a criança. Se for ativado e se vir diante de nós, diante de seres humanos desconhecidos, provavelmente nos atacará antes que tenhamos tempo de explicar nossa situação. Aqui não é lugar para seres humanos. Se eu tiver que desativá-lo de novo, não conseguiremos a informação e a criança, vendo o único pai que conhece ser desativado pela segunda vez... não, acho que não é uma boa ideia.
— Pelo que sei — disse Pelorat —, os robôs não podem fazer mal a seres humanos.
— Pode ser — concordou Bliss —, mas mesmo que ele não pretenda fazer mal a ninguém, terá que escolher entre o filho, ou a coisa mais próxima de um filho que um robô pode ter, e três objetos que talvez nem reconheça como seres humanos, mas apenas como intrusos perigosos. Naturalmente, escolherá a criança e nos atacará.
Voltou-se novamente para a criança.
— Fallom. Bliss. Apontou:
— Pel... Trev.
— Pel. Trev — repetiu a criança, obedientemente. Bliss chegou mais perto e estendeu os braços, bem devagar. A criança olhou para ela e recuou um passo.
— Calma, Fallom — disse Bliss. — Está tudo bem, Fallom. Venha, Fallom.
A criança deu um passo à frente e Bliss a encorajou:
— Isso mesmo, Fallom.
Bliss tocou com a mão o braço da criança, que estava exposto, já que ela usava, como o pai, apenas um manto aberto na frente e uma tanga. A moça retirou a mão, esperou um pouco e tornou a tocá-la de leve.
A criança semicerrou os olhos sob o efeito calmante da mente de Bliss.
As mãos de Bliss se moveram devagar, bem de leve, mal tocando a pele da criança, até os ombros, o pescoço, as orelhas e, finalmente, por baixo dos cabelos castanhos, até um ponto atrás e acima das orelhas.
Afinal, Bliss disse para os outros:
— Os lobos transdutores são muito pequenos. Os ossos do crânio ainda não se consolidaram naquela região. Existe apenas uma camada de cartilagem, que provavelmente vai se expandir aos poucos, à medida que os lobos forem crescendo, para depois ser substituída por osso, quando os lobos estiverem totalmente desenvolvidos... no momento, não creio que seja capaz de ativar o robô, ou mesmo de controlá-lo. Pergunte quantos anos tem, Pel.
Depois de conversar um pouco com a criança, Pelorat disse:
— Se entendi direito, tem quatorze anos.
— Não parece ter mais que onze — disse Trevize.
— Talvez o ano oficial neste planeta não seja o Ano Galáctico Padrão. Além disso, os Espaciais vivem muito mais que os seres humanos comuns e, se os solarianos são como os outros Espaciais, sua infância também é mais prolongada. Assim, a idade em anos não significa muita coisa.
— Chega de antropologia — disse Trevize, com impaciência. — Temos que chegar à superfície e estamos perdendo tempo. Pode ser que a criança não saiba como chegar à superfície. Pode ser que nunca tenha estado na superfície!
Bliss exclamou:
— Pel!
Pelorat sabia o que ela queria e teve uma longa conversa com Fallom. Depois, disse para os outros:
— A criança conhece o sol. Ela disse que já viu o sol. Eu acho que já viu algumas árvores. Não parecia muito certa do significado da palavra “árvore”... ou pelo menos da palavra que eu usei para tentar transmitir o significado de “árvore”...
— Está bem, Janov — disse Trevize. — E daí?
— Disse a Fallom que se nos ajudasse a chegar à superfície, talvez pudéssemos reativar o robô. Na verdade, eu disse que nós reativaríamos o robô quando chegássemos à superfície. Acha isso possível?
— Veremos quando chegar a hora — disse Trevize. — A criança concordou em guiar-nos?
— Concordou. Achei que se prometesse reativar o robô, ela teria uma boa razão para colaborar. Não gostaria de desapontá-la...
— Vamos — disse Trevize. — Já perdemos muito tempo. Se formos pegos aqui embaixo, aí mesmo é que você não vai poder cumprir sua promessa.
Pelorat disse alguma coisa para a criança, que começou a andar, mas parou e olhou para Bliss.
Bliss estendeu a mão e os dois saíram andando de mãos dadas. — Sou o seu novo robô — disse a moça, sorrindo. — Parece que ela aceitou bem a mudança — disse Trevize. Fallom continuou a caminhar, saltitante, e Trevize ficou pensando se a criança parecia feliz por influência de Bliss ou se, além disso, havia a novidade de visitar a superfície e de possuir três novos robôs, ou se seria a perspectiva de ter Jemby de volta. Não que fosse tão importante assim... contanto que a criança os ajudasse a encontrar a saída.
A criança parecia saber muito bem para onde estava indo; nas bifurcações, nem ao menos reduzia o passo. Será que conhecia realmente o caminho ou estava apenas brincando com eles, vagando ao acaso \ pelo labirinto subterrâneo?
Logo Trevize percebeu, pelo esforço que estava fazendo, que o caminho que seguiam levava para cima. A criança, que ia na frente, muito orgulhosa, apontou para alguma coisa e começou a falar. Trevize olhou para Pelorat, que pigarreou e disse:
— Acho que o que ela está dizendo é “saída”.
— Espero que tenha entendido bem — disse Trevize. A criança largou a mão de Bliss e saiu correndo. Apontou para uma parte do piso que parecia mais escura que as vizinhanças. A criança chegou ali, pulou algumas vezes no mesmo lugar, com uma expressão cada vez maior de desapontamento no rosto, e começou a falar sem parar, com voz estridente.
Bliss disse, com uma careta:
— Vou ter que fornecer a energia... já estou ficando cansada disso! O rosto da moça ficou um pouco vermelho e as luzes piscaram, mas uma porta se abriu bem à frente de Fallom, que deu gritinhos de prazer. A criança passou correndo pela porta e os dois homens a seguiram. Bliss saiu por último e olhou para trás no momento em que as luzes no interior se apagaram e a porta tornou a se fechar. A moça parou para recuperar o fôlego. Parecia exausta.
— Até que enfim conseguimos sair — disse Pelorat. — Onde está a nave?
Estavam na superfície do planeta, banhados pela luz do crepúsculo.
— Acho que estava naquela direção — murmurou Trevize.
— Também acho — disse Bliss. — Vamos — acrescentou, estendendo a mão para Fallom.
Não havia nenhum ruído, a não ser o sussurro do vento e os sons dos animais. A certa altura, passaram por um robô que estava de pé, imóvel, ao lado de uma árvore, segurando um objeto de utilidade desconhecida.
Pelorat fez menção de aproximar-se, curioso, mas Trevize o deteve.
— Não temos nada com isso, Janov. Vamos andando. Passaram por outro robô, a uma distância um pouco maior, que estava caído no chão.
— Deve haver robôs espalhados por toda a propriedade — observou Trevize. Ah, ali está a nave! — exclamou, triunfante.
Apressaram o passo, mas de repente Fallom deu um grito agudo e todos pararam.
Próximo à nave estava estacionado um veículo aéreo primitivo, com um rotor que, além de frágil, dava a impressão de ser muito pouco eficiente. Ao lado do veículo, bloqueando o acesso do pequeno grupos de forasteiros a sua nave, havia quatro figuras humanas.
— Tarde demais — lamentou-se Trevize. — Perdemos muito tempo. E agora?
Pelorat observou, como se estivesse pensando em voz alta:
— Quatro solarianos? Não pode ser. Não ficariam juntos assim. Será que não passam de projeções holográficas?
— Eles são reais — afirmou Bliss. — Tenho certeza. Só que não são solarianos. Pelos padrões mentais, são todos robôs.
— Então — disse Trevize, com firmeza —, vamos em frente! Continuou a andar na direção da nave e os outros o seguiram.
— O que pretende fazer? — perguntou Pelorat.
— Se são robôs, têm que obedecer a ordens.
Os robôs permaneceram onde estavam. Quanto chegaram mais perto, Trevize os observou atentamente.
Sim, deviam ser robôs. Os rostos, embora parecessem humanos na cor e na textura, eram curiosamente desprovidos de expressão. Os quatro usavam uniformes que, a não ser pelo rosto, não deixavam de fora um único centímetro quadrado de pele. Até as mãos estavam cobertas por luvas feitas de um tecido fino mas opaco.
Trevize fez um gesto para que os robôs o deixassem passar.
Os robôs não se mexeram.
Trevize disse para Pelorat, em voz baixa:
— Fale com eles, Janov. Seja firme.
Pelorat pigarreou e falou devagar, em um tom de voz mais grave que o de costume, pedindo que os robôs abrissem caminho. Um dos robôs, que talvez fosse um pouquinho mais alto que os outros, disse alguma coisa com uma voz fria e incisiva.
Pelorat voltou-se para Trevize.
— Acho que ele disse que somos forasteiros.
— Diga que somos seres humanos e que deve nos obedecer.
O robô falou então em galáctico. Apesar do sotaque carregado, Trevize não teve dificuldade para compreender.
— Entendi o que disse, forasteiro. Eu falo galáctico. Nós somos Robôs Guardiões.
— Então você me ouviu dizer que somos seres humanos e que portanto deve nos obedecer.
— Somos programados para obedecer apenas aos governantes, forasteiro. Vocês não são governantes e não são solarianos. O governante Bander não respondeu na hora normal de Contato e viemos investigar o que aconteceu. É o nosso dever. Encontramos uma espaçonave que não foi fabricada em Solaria, vários forasteiros presentes e descobrimos que todos os robôs do governante Bander foram desativados. Onde está o governante Bander?
Trevize sacudiu a cabeça e disse, com voz pausada:
— Não sei do que está falando. Tivemos problemas com o computador da nossa nave. Viemos parar perto deste planeta desconhecido contra a nossa vontade. Pousamos para verificar nossa posição. Encontramos todos os robôs desativados. Não sabemos o que aconteceu aqui.
— Não é uma história plausível. Se todos os robôs da propriedade estão desativados e além disso falta energia, o governante Bander deve estar morto. Não é lógico supor que o governante Bander, por coincidência, tenha morrido no momento em que vocês pousaram. Deve haver uma relação causal entre os dois acontecimentos.
— Mas não está faltando energia — protestou Trevize, com o único objetivo de mostrar a própria ignorância. — Caso contrário, você e os outros não estariam ativos.
— Nós somos Robôs Guardais — disse o robô. — Não pertencemos a nenhum governante, pertencemos a Solaria. Não somos movidos por nenhum governante, somos movidos por energia nuclear. Vou perguntar de novo: onde está o governante Bander?
Trevize olhou em torno. Pelorat parecia assustado. Bliss estava muito séria, mas tinha expressão serena. Fallom estava tremendo; Bliss colocou a mão no ombro da criança e ela se aquietou. (Será que Bliss a havia sedado?).
O robô disse:
— Vou perguntar pela última vez: onde está o governante Bander?
— Não sei — respondeu Trevize, de cara feia.
O robô fez um gesto e dois dos seus companheiros se afastaram.
— Meus companheiros vão revistar a casa — disse o robô. — Enquanto isso, prosseguirei o interrogatório. Passe-me os objetos que estão pendurados na sua cintura.
Trevize recuou um passo.
— São inofensivos.
— Fique onde está. Não perguntei se são perigosos. Pedi que me entregasse os objetos.
— Não.
O robô deu um passo à frente e esticou o braço. Antes que Trevize tivesse tempo de perceber o que estava acontecendo, a mão do robô pousou no seu ombro e começou a empurrá-lo para baixo. O rapaz caiu de joelhos.
— Passe os objetos — disse o robô, estendendo a outra mão.
— Não — gemeu Trevize.
Bliss se adiantou, tirou o desintegrador do coldre antes que Trevize, seguro pelo robô, pudesse impedi-la e ofereceu a arma ao robô.
— Tome, robô. Espere um instante... aqui está o outro. Agora solte meu companheiro.
O robô recuou com as duas armas na mão e Trevize se pôs de pé devagar, com o rosto contraído de dor, esfregando o ombro esquerdo. (Fallom começou a chorar baixinho e Pelorat segurou-o no colo.). Bliss disse para Trevize, furiosa:
— Para que está discutindo com ele? Pode matar você com dois dedos!
Trevize murmurou, entre os dentes:
— Por que você não cuida dele?
— Estou tentando. Pode demorar. Sua mente é programada logicamente, difícil de ser influenciada. Preciso estudá-la melhor. Procure ganhar tempo.
— Não estude a mente dele. Destrua-o — disse Trevize, baixinho. Bliss olhou furtivamente para o robô. Estava examinando as armas atentamente, enquanto o outro robô que havia ficado vigiava os. Nenhum dos dois parecia interessado na conversa entre Trevize e Bliss.
— Não. Nada de destruição — disse a moça. — No primeiro mundo, matamos um cachorro e ferimos outro. Neste mundo, você sabe o que aconteceu. — (Outro olhar furtivo para os Robôs Guardais). — Gaia não gosta de sacrificar vidas ou inteligências desnecessariamente. Preciso de tempo para encontrar uma solução pacífica. A moça recuou um passo e olhou fixamente para o robô.
— Estes objetos são armas — disse o robô.
— Não são, não — negou Trevize.
— São, sim — disse Bliss. — Acontece que não funcionam. Em tão descarregadas.
— É mesmo? Por que ele levaria armas descarregadas na cintura? Talvez não esteja falando a verdade.
O robô empunhou uma das armas e colocou o dedo no gatilho.
— É assim que se faz para disparar?
— É — disse Bliss. — Só que não vai acontecer nada, porque está descarregada.
— Tem certeza? — perguntou o robô, apontando a arma para Trevize. — Se eu disparar a arma agora, não vai acontecer nada?
— Não — disse Bliss. Trevize ficou onde estava, paralisado de medo. Tinha verificado o desintegrador depois que Bander o devolvera e estava realmente descarregado. Entretanto, a arma que o robô estava apontando para ele era o chicote neurônico, que ele não havia testado.
Se o chicote ainda tivesse algum resíduo de energia, por menor que fosse, o que Trevize ia sentir faria a pressão da mão do robô parecer um afago.
Durante o serviço militar, Trevize, como os outros cadetes, tinha sido exposto a uma chicotada neurônica de baixa intensidade, apenas o suficiente para saber como era. O rapaz não sentia nenhum desejo de repetir a dose.
O robô apertou o gatilho, Trevize retesou o corpo... e nada aconteceu. O chicote também estava totalmente descarregado.
O robô olhou para Trevize e jogou as duas armas no chão.
— Como foi que essas armas ficaram descarregadas? — perguntou. — Se não funcionam, por que as carrega na cintura?
— Estou tão acostumado com elas que gosto de levá-las comigo, mesmo agora que não têm mais nenhuma utilidade — explicou Trevize. - Isso não faz sentido — disse o robô. — Vocês três estão sob custódia. Serão interrogados novamente e, se os governantes assim decidirem, serão desativados... Como se faz para entrar na nave? Preciso revistá-la.
— Não vai adiantar nada — disse Trevize. — Você não vai entender como funciona.
— Se eu não entender, os governantes entenderão.
— Eles também não vão entender.
— Então você explicará a eles.
— Não.
— Então será desativado.
— Se me desativarem, continuarão sem entender como a nave funciona.
Bliss sussurrou:
— Agüente mais um pouco. Estou começando a entender como o cérebro dele funciona.
O robô ignorou Bliss. (Seria o poder mental da moça?, pensou Trevize, e rezou para que estivesse certo.)
Sem tirar os olhos de Trevize, o robô disse:
— Se não quiser cooperar, teremos que desativá-lo parcialmente. Então nos revelará tudo o que queremos saber.
De repente, Pelorat exclamou, com voz esganiçada:
— Ei, você não pode fazer isso! Guardião, você não pode fazer isso!
— Tenho minhas instruções — disse o robô tranquilamente. — Claro que posso fazer isso. Naturalmente, procurarei limitar os danos ao mínimo necessário para obter a informação.
— Escute! Somos forasteiros, eu e meus dois amigos, mas esta criança — Pelorat olhou para Fallom, que ainda estava no seu colo — nasceu em Solaria. Vocês têm que obedecer a ela.
Fallom olhou para Pelorat com olhos que estavam abertos, mas pareciam vazios.
Bliss fez que não com a cabeça, mas Pelorat pareceu não notar.
Os olhos do robô se detiveram em Fallom por um momento. Ele disse:
— A criança não tem importância. Ela não possui lobos transdutores.
— Os lobos transdutores ainda não estão desenvolvidos — disse Pelorat, ofegante — porque ele ainda é muito jovem. Mesmo assim, é um solariano.
— Enquanto não tiver lobos transdutores desenvolvidos, não será um solariano. Não sou obrigado a protegê-lo ou a obedecer a sua ordens.
— Mas ele é filho do governante Bander!
— É mesmo? Como sabe?
Pelorat começou a gaguejar, como costumava fazer quando ficava nervoso.
— Co... co... como poderia haver o... outra criança aqui?
— Como sabe que só há uma criança?
— Você viu mais alguma?
— Sou eu que faço as perguntas!
Nesse momento, a atenção do robô foi atraída pelo companheiro, que tocou-lhe o braço. Os outros dois robôs, que tinham sido enviados para examinar a casa, estavam voltando com passos rápidos, mas que, mesmo assim, tinham certa irregularidade.
Todos ficaram calados esperando que se aproximassem. Então, um deles disse alguma coisa em solariano e os quatro robôs pareceram perder toda a elasticidade. Era como se estivessem confusos e deprimidos.
— Encontraram Bander — disse Pelorat, antes que Trevize tivesse tempo de silenciá-lo com um gesto.
O robô se voltou para Pelorat e disse, com voz pastosa:
— O governante Bander está morto. Pelo que acaba de dizer, você já sabia disso. Como foi que ele morreu?
— Como é que ele vai saber? — interveio Trevize.
— Você sabia que ele estava morto — insistiu o robô, ignorando Trevize. — Sabia que o encontraríamos dentro da casa. Como poderia saber se não tivesse estado lá... se não o tivesse matado?
O robô estava pronunciando melhor as palavras. Já se tinha recuperado do choque.
— Como poderíamos ter matado Bander? — perguntou Trevize. — Com seus lobos transdutores, ele não nos deixaria nem chegar perto...
— Como você sabe do que os lobos transdutores são capazes?
— Você mesmo falou desses lobos.
— Apenas os mencionei. Não os descrevi nem enumerei suas qualidades.
— O conhecimento me foi revelado em um sonho.
— Esta explicação não é plausível.
— Imaginar que fomos nós os culpados também não é uma explicação plausível para a morte de Bander.
Pelorat acrescentou:
— Seja como for, se o governante Bander está morto, esta propriedade agora pertence ao governante Fallom. Vocês devem obediência a ele.
— Já expliquei — disse o robô — que um descendente sem lobos transdutores desenvolvidos não é um solariano e portanto não pode ser um Sucessor. Outro Sucessor, da idade apropriada, será enviado para cá assim que comunicarmos a morte do governante Bander.
— O que será feito do governante Fallom?
— Não existe nenhum governante Fallom. Existe apenas uma Criança e temos um excesso de crianças. Ela será eliminada.
— Vocês não teriam coragem! — protestou Bliss. — Uma pobre criança indefesa!
— Não serei eu o executor da tarefa — disse o robô — nem muito menos o responsável pela decisão. A questão estará a cargo dos governantes. Sei, porém, o que os governantes costumam decidir quando há excesso de crianças.
— Não pode ser!
— A criança não vai sentir nada... Vejo que está chegando outra nave. Devemos entrar na casa que era do governante Bander e convocar o Conselho por holovisão para escolher um Sucessor e decidir o que será feito com vocês... Passe-me a criança.
Bliss arrancou o corpinho semiconsciente de Fallom das mãos de Pelorat. Apertando-o com força, disse para o robô:
— Não toque nesta criança!
O robô deu um passo à frente e estendeu o braço. Bliss desviou-se, mas o robô não interrompeu o movimento. Inclinou-se para a frente, equilibrou-se por um momento nas pontas do pés e depois caiu de bruços no chão. Os outros três ficaram imóveis, os olhos sem brilho.
Bliss estava soluçando de raiva e de tristeza.
— Estava quase descobrindo como controlá-los, mas ele me fez agir antes do tempo. Fui obrigada a desativar todos os quatro... Agora vamos sair daqui antes que a outra nave pouse. Chega de robôs por hoje!