Os monstros


A luz acordou-me no meio da noite. com a mão sobre os olhos, levantei-me apoiado num cotovelo. Enrolada num lençol, com os cabelos caindo no rosto, Rheya estava agachada aos pés da cama. Seus ombros tremiam. Ela estava chorando em silêncio.

— Rheya! — Encolheu-se ainda mais. — Rheya, que foi? Sentei-me, meio dormindo, ainda arrasado pelo pesadelo que tivera havia pouco. Rheya continuava a tremer. Estendi os bra— ços e toquei-lhe o rosto. -Rheya, meu amor…

— Cale a boca!

— Rheya, que é que há?

Ergueu o rosto úmido e fremente. Lágrimas enormes, lágrimas de criança, escorriam-lhe pela face, faiscando na covinha sobre o queixo, e pingavam no lençol.

— Você não gosta de mim.

— Porque diz isso?

— Eu ouvi.

Senti OS ladosdo rosto se contraírem. — você não compreende.

— Ouviu o que?

— Compreendi, compreendi muito bem. Você disse que eu não era eu. Você quer que eu vá embora. Irei, juro por Deus! Irei, mas não posso. Não sei por quê. Tentei ir.

Não posso. Sou tão covarde!

— Vamos, que é isso!

Agarrei-a e apertei-a fortemente contra mim. Só ela me importava. O resto que se danasse. Beijei-lhe as mãos e os dedos molhados de lágrimas. Falei-lhe, intimei-a a me ouvir, pedi que me perdoasse, repeti as juras, disse-lhe que ela tivera um sonho estúpido, horrível. Rheya acalmou-se pouco a pouco. Parou de chorar. Seus olhos estavam escancarados como olhos de sonâmbulo. Virou a cabeça.

— Não — disse ela — cale a boca, não fale assim, nunca! Você não é mais o mesmo para mim.

Deixei escapar um gemido.

— Não, você não gosta de mim — ela prosseguiu. — Sei há muito tempo. Eu fingia não notar. Pensei estar imaginando coisas. Mas não… Você não é mais o mesmo. Você não me leva a sério. Um sonho? Isso mesmo, mas era você quem sonhava e sonhava comigo. Você disse meu nome com nojo. Por quê? Por quê?…

Ajoelhei-me e abracei-lhe as pernas.

— Minha garotinha…

— Não fale assim comigo! Não quero, ouviu? Não sou garotinha, não sou criança. Sou…

Começou a soluçar e enfiou o rosto no travesseiro. Levantei-me. Os ventiladores zumbiam suavemente. Eu estava sentindo frio. Atirei sobre os ombros o roupão de banho e sentei-me ao lado de Rheya. Peguei seu braço.

— Ouça, Rheya! vou lhe dizer uma coisa. vou lhe falar a verdade.

Rheya virou-se. Eu via suas veias pulsarem sob a pele do pescoço. Senti os músculos do meu rosto se contraírem outra vez. Já não sentia mais frio. Minha cabeça estava completamente vazia.

— A verdade? — perguntou Rheya. — Palavra de honra?

Com a garganta embargada, não pude responder logo. Palavra de honra era a nossa fórmula sagrada, nossa velha maneira de jurar! Quando jurávamos dessa maneira, nenhum de nós tinha coragem de mentir nem de esconder nada. Lembro-me do tempo em que nos atormentávamos, por excesso de sinceridade, convencidos de que aquela procura ingênua da verdade manteria a nossa união.

Respondi, sério:

— Palavra de honra. Rheya…

Ela ficou esperando.

— Você também mudou, Rheya.Todos mudamos. Mas não era isso o que eu queria dizer. Por um motivo que não conhecemos exatamente, parece que… que você não pode me abandonar. Isso é bom porque eu também não a posso abandonar…

— Kris!

Levantei-a, sempre enrolada no lençol. Uma ponta deste, molhada de lágrimas, roçou minha nuca. Caminhei de um lado para o outro, ninando Rheya. Ela me acariciava o rosto.

— Não, você não mudou. Eu sim — sussurou ela ao meu ouvido. — Alguma coisa está errada. Talvez desde o acidente?

Rheya estava olhando para o retângulo escuro e vazio da porta. Eu levara, na véspera à noite, os destroços para o depósito. Era preciso colocar outra no lugar. Deitei Rheya na cama.

Inclinando sobre ela, perguntei:

— Você consegue dormir?

— Não sei.

— Como não sabe?

— Eu sonho… Não sei se é sonho mesmo. Talvez eu esteja doente. Fico deitada, pensando, e…

Rheya estremeceu.

— E o quê? — perguntei baixinho.

— Tenho pensamentos esquisitos. Não sei de onde vem.

— Por exemplo? perguntei ainda.

E pensei: «Seja o que for que ela diga, fiquei calmo!» Preparei-me para a resposta, como nos preparamos para receber uma pancada.

Indefesa, ela sacudiu a cabeça.

— São pensamentos… à minha volta…

— Não compreendo.

— Tenho a impressão de que eles não estão só dentro de mim, mas por aí. Não sei explicar, não acho as palavras… Atalhei, quase sem querer:

— Certamente são sonhos… — Depois respirei fundo e prossegui: — Agora vamos apagar a luz e, até de manhã, adeus às tristezas! Amanhã de manhã, se você quiser, inventaremos outras, não é?

Ela torceu o comutador. A escuridão nos separou. Deitei-me. Um bafo morno foi se aproximando de mim. Apertei-a nos braços.

— Mais forte! — ela murmurou. E, depois de um longo silêncio: — Kris!

— Hein?

— Amo você.

Quase urrei.

A manhã era vermelha. O disco redondo do sol subia no horizonte, Havia uma carta para mim na soleira da porta. Rasguei o envelope.

Rheya estava cantando no banheiro. De vez em quan do, ela passava a cabeça pela porta e me mostrava o rosto coberto de cabelos molhados. Fui até a janela e li:

Kelvin, a coisa vai. Sartorius decidiu-se por um tratamento enérgico. Ele acha que conseguirá desestabilizar as estruturas dos neutrinos. Quer examinar uma certa quantidade de plasma F, submetido ao transporte periférico. Ele propõe que você saia para fazer um reconhecimento e que volte trazendo algum plasma na cápsula. Você decidirá, mas peço-lhe que me comunique o que decidir. Não tenho opinião. Acho que não tenho mais nada. Se prefiro que você aceite, é porque teremos pelo menos a impressão de dar um passo à frente. Se não, só nos resta invejar G.

Seu Rato-Velho.

P S. — Não entre na sala do rádio, é só o que lhe peço. Você pode telefonar.

Meu coração se confrangeu à leitura daquela carta. Reli-a cuidadosamente, depois rasguei-a e joguei os pedaços na lata do lixo. — Escolhi um macacão para Rheya. Estava repetindo os gestos da comédia abominável que imaginara no outro dia. Mas Rheya de nada sabia. Quando lhe disse eu ia sair para fazer um reconhecimento e lhe propus acompanhar-me, ela vibrou com a idéia. Paramos na cozinha. Preparamos juntos o café. Rheya comeu pouquíssimo. Acabada a refeição, fui até a biblioteca e Rheya me acompanhou.

Antes de cumprir a missão desejada por Sartorius, quis dar uma olhada na literatura sobre campos magnéticos e estruturas de neutrinos. Sem saber ainda como proceder, decidi exercer algum controle sobre o trabalho do eminente físico. «Evidentemente», pensei, «quando o aniquilador estiver pronto não poderei evitar que Snow e Sartorius 'se libertem'.» Eu poderia levar Rheya e, dentro de um veículo voador, esperaríamos o fim da operação em qualquer lugar fora da estação. Suei no grande computador. Umas vezes respondia ao que eu programava cuspindo fichas onde se lia laconicamente «Falta no catálogo» e outras sugeria uma tal catarata de obras sobre física superior, que eu hesitava em seguir seus conselhos. Apesar disso, eu não tinha vontade de sair da vasta sala circular. Sentia-me bem ali, cercado de filas de gavetas atulhadas de microfilmes e gravações elétricas. Situada bem no centro da estação, a biblioteca não tinha janelas. Era o lugar mais bem isolado no interior da carapaçade aço. Era por isso, talvez, que eu sentia uma sensação tão agradável apesar do evidente fracasso das minhas pesquisas. Errando através da sala imensa, cheguei até uma estante que atingia o teto e cujas prateleiras continham cerca de seiscentos volumes, todos os clássicos concorrentes à história de Solaris, a começar pelos nove volumes da monumental monografia, embora um tanto superada, de Giese. Não se tratava de exibicionismo, bastante improvável naquele local, mas uma respeitosa homenagem à memória dos pioneiros. Apanhei os pesados volumes de Giese e, sentando-me no braço da poltrona, comecei a folheálos. Também Rheya havia encontrado o que ler, como pude ver por cima do ombro dela. Tinha escolhido um dos numerosos livros trazidos pela primeira expedição, O cozinheiro interplanetário, volume que talvez tivesse pertencido ao próprio Giese. Rheya lia com atenção as receitas adaptadas às severas condições da cosmonáutica. Fiquei quieto e voltei à obra séria que tinha sobre os joelhos: Solaris — Dez anos de exploração, que havia aparecido na coleção solariana, tomos de 4 a 13, enquanto a numeração das últimas obras publicadas na mesma coleção tinha quatro algarismos.

Faltava lirismo a Giese. Mas, no estudo de Solaris, um ponto de vista lírico só pode atrapalhar o explorador. Imaginação e hipóteses prematuras são especialmente nefastas quando se trata de um planeta onde, afinal de contas, tudo parece possível. É muitíssimo provável que as descrições inverossímeis das metamorfoses «plasmáticas» do oceano traduzam fielmente os fenômenos observados, embora essas descrições sejam incontroláveis, pois o oceano raramente se repete. O caráter estranho, o gigantismo daqueles fenômenos enchiam de pavor a quem os contemplava pela primeira vez e a quem considerava fenômenos análogos como simples «caprichos da natureza» — uma manifestação acidental de forças cegas —, quando observados em escala reduzida, em qualquer buraco enlameado. Em suma, o gênio e o espírito medíocre ficavam igualmente perplexos diante da inesgotável variedade das formações solaristas. Nenhum homem se familiarizou realmente com os fenômenos do oceano vivo. Giese não era um espírito medíocre, mas também não era gênio. Era um classificador pedante, dos que uma incansável dedicação ao trabalho absorve inteiramente e preserva dos tumultos da vida. Empregava uma linguagem descritiva relativamente banal, que completava com termos de sua invenção, insuficientes, para não dizer mal escolhidos. Mas, reconheçamo-lo com honestidade, nenhuma terminologia poderia exprimir o que acontecia em Solaris. As «árvores-montanhas», os «longus», as «fungosidades», os» mimóides», «simetríades» e «assimetríades», os «vertebrídeos», e os «ágilus» têm uma fisionomia lingüística terrivelmente artificial. Essas expressões bastardas dão, não obstante, uma idéia de Solaris a quem só viu o planeta em fotografias desfocadas e filmes bastante imperfeitos. Na realidade, malgrado sua circunspecção, nosso classificador escrupuloso pecou mais de uma vez por imprudência. O homem não cessa de formular hipóteses, mesmo quando desconfia e se crê ao abrigo da tentação. Giese achava que os longus constituíam uma categoria de formas fundamentais. Comparava-os a acumulações de ondas gigantescas e fazia um paralelo entre a formação dos longus e os movimentos de fluxo dos nossos oceanos terrestres. Basta, aliás, consultar a primeira edição da sua obra para verificar que ele os havia, a princípio, chamado «fluxos», inspirado por um geocentrismo que eu poderia considerar divertido, se não revelasse que ele traía explicitamente a perplexidade do cientista. A partir do momento em que se procura estabelecer comparações com a Terra, toma-se necessário explicar que os longus são formações cujas dimensões ultrapassam as do Grand Canyon do Colorado; que são compostos de uma matéria que, na superfície, tem uma aparência de colóide espumoso (no decorrer desse «trabalho» fantástico, a espuma endurece em festões de renda gomada, de malhas enormes; alguns cientistas falam de cancros ossificados), enquanto no fundo a substância se toma cada vez mais firme, como um músculo retesado, um músculo que, a quinze metros da superfície, é duro como pedra e conserva ao mesmo tempo sua leveza. Os longus propriamente ditos, criações aparentemente independentes, espalham-se por quilômetros — entre paredes membranosas esticadas, às quais agarram-se as «excrescências ossificadas» —, píton colossal que teria devorado montanhas e que digeria silenciosamente, imprimindo ao corpo rastejante, de tempos em tempos, um lento movimento vibratório. O longus apresenta essa aparência de réptil passivo somente quando é sobrevoado muito alto. Quando nos aproximamos, as duas «paredes da ravina» sobrepassam o aparelho voador de algumas centenas de metros e vemos que aquele cilindro inflado, estendido até o horizonte, é animado por um movimento vertiginoso. Nota-se, em primeiro lugar, o movimento de rotação contínuo de uma espécie de graxa cinza esverdeada, que reverbera violentamente aos raios do sol. Mas se o aparelho desce ainda mais até tocar o «dorso da píton» nas anfractuosidades da «ravina» que abriga o longus, ficam, então, semelhantes às cristas que marcam um desmoronamento geológico. Constata-se que se trata de um movimento muito mais complicado, feito de redemoinhos concêntricos, onde se cruzam correntes mais escuras. Em certos momentos, aquela «capa» toma-se uma crosta luzidia, refletindo o céu e as nuvens, logo esburacada pelas barulhentas detonações dos gases e fluidos internos. Pouco a pouco vamos compreendendo que ali se localiza o centro das forças que separam e elevam para o céu as duas encostas gelatinosas, que começam a se cristalizar lentamente. Mas a ciência não aceita tais evidências sem maiores provas. Explodiram discussões virulentas pelos anos afora sobre um tema prioritário: que acontece exatamente no interior dos longus, que sulcam aos milhões a imensidade do oceano vivo? Atribuíam funções orgânicas a esses longus. Segundo alguns, eles usavam processos de transformação da matéria. Processos respiratórios, sugeriam outros. Ou ainda, teriam eles por função o transporte de matérias alimentares. A poeira das bibliotecas sepultou o catálogo infinito das suposições. Experiências cansativas, às vezes perigosas, eliminaram todas essas hipóteses. Hoje só se fala dos longus, formações relativamente simples e estáveis, cujo tempo de vida se mede em semanas — particularidade excepcional entre os fenômenos observados no planeta.

Os mimóides são formações notavelmente mais complexas, mais bizarras, e provocam no observador uma reação mais ardorosa, instintiva, diga-se de passagem. Pode-se afirmar, sem exagerar, que Giese apaixonou-se pelos mimóides, aos quais não tardou a consagrar a totalidade do seu tempo. Estudou-os, descreveu-os e se dedicou a definir-lhes a natureza até o fim de sua vida. Pelo nome que deu àqueles fenômenos, quis exprimir sua característica mais perturbadora: a imitação dos objetos, próximos ou distantes, fora do oceano.

Um belo dia vemos, enfumado no oceano, um grande disco achatado, cheio de franjas e como que coberto de piche. Ao cabo de algumas horas, o disco começa a se decompor em folhas, que sobem uma a uma. Os observadores pensam, então, assistir a uma luta furiosa. Em filas cerradas, acorrem de todas as direções ondas fortíssimas, qual lábios convulsos, maxilares carnudos, que se abrem, ávidos, sobre essas folhas rasgadas e ondulantes e depois mergulham na profundeza. Cada vez que uma cratera de ondas desmorona e soçobra, a queda daquela massa de centenas de milhares de toneladas é acompanhada, durante um segundo, de um ronco viscoso, de um trovão monstruoso. A folhagem betuminosa é empurrada para baixo, sacudida, desmembrada. A cada novo assalto, películas arredondadas espalham-se e planam, como asas ondulantes e preguiçosas, abaixo da superfície do oceano. Transformam-se em cachos piriformes, em longos colares, fundem-se umas nas outras e sobem, arrastando nas dobras fragmentos grumosos da base do disco primitivo, enquanto que, em volta, as ondas continuam a arrebentar nos flancos de uma cratera que vai aumentando. O fenômeno pode durar um dia ou um mês. Às vezes não tem continuação. Giese, o consciencioso, chamava a essa primeira variante de «mimóide abortado», pois estava convencido de que cada um desses cataclismos visava a um fim definitivo, o «mimóide maior», colônia de pólipos (cujo conjunto ultrapassava o tamanho de uma cidade), pálidas excrescências destinadas à imitação das formas existentes fora do oceano. Uyvens, em compensação, considerava essa última fase como uma degenerescência, uma necrose. Í Segundo ele, a aparição das «cópias» correspondia a um desperj dício localizado das próprias forças do oceano, que não mais: controlava as formas originais que havia criado. Giese, no entanto, insistia em ver nas diversas fases do pro— cesso uma contínua marcha em direção à perfeição. Adotava uma segurança tanto mais surpreendente quanto era de hábito exageradamente comedido e prudente quando formulava com a intrepidez de uma formiga andando sobre uma cascata gelada — a menor hipótese concernente às outras criaturas do oceano. Visto do alto, o mimóide parece uma cidade. E, no entanto, é apenas uma ilusão provocada por nossa necessidade de estabelei cer analogias com o que conhecemos. Quando o céu está claro, uma massa de ar superaquecido cobre com um envoltório vibrante as estruturas flexíveis das colônias de pólipos, amontoa das umas sobre as outras e dominadas por paliçadas membrano sas. A primeira nuvem que atravessa o azul (disse «azul» mas aqui o céu é púrpura ou de um branco sinistro durante o dia «azul»), a primeira nuvem que passa acorda o mimóide. Todas as excrescências desenvolvem novos brotos, de repente. Depois, a totalidade das colônias de pólipos projeta para o alto um amplo tegumento, que se dilata, incha, tumefica-se, descolora e, ao fim de alguns minutos, imita erradamente as volutas de uma nuvem. O enorme «objeto» projeta uma sombra avermelhada sobre o mimóide, cujas extremidades inclinam-se umas para as outras, movimento esse sempre efetuado no sentido oposto ao do movimento da nuvem real. Se seu sacrifício lhe proporcionasse saber por que isso acontecia dessa maneira, suponho que Giese teria cortado de bom grado uma das mãos. Mas aquelas produções «isoladas» do mimóide nada são se comparadas com a atividade impetuosa que ele manifesta quando é «estimulado» por objetos de origem humana.

O processo de reprodução abrange todos os objetos que se encontram num raio de oito a nove milhas, A reprodução é, mais freqüentemente, uma ampliação do original, cujas formas são copiadas às vezes de modo bastante aproximado. A reprodução das máquinas, sobretudo, dá lugar a simplificações que podem ser consideradas grotescas, para não dizer caricaturais. A cópia do objeto é sempre moldada naquele tegumento incolor, que plana acima das protuberâncias, ligado à base apenas por frágeis cordões umbilicais, que desliza e rasteja, dobra-se, estica-se ou incha e toma, enfim, as formas mais complicadas. Um aparelho voador, uma tela de arame ou um mastro são reproduzidos com a mesma presteza. O homem, no entanto, não estimula o mimóide. Mais precisamente, o mimóide não reage a nenhuma matéria viva e nunca copiou, por exemplo, as plantas que os pesquisadores haviam trazido com fins experimentais. Em troca, o mimóide reproduz imediatamente um manequim, um boneco com forma humana, uma estatueta representando um cão, ou uma árvore esculpida num material qualquer.

Devemos assinalar aqui, entre parênteses, que a «obediência» do mimóide aos experimentadores solaristas não é um testemunho de «boa vontade», pois não é constante. O mimóide mais evoluído tem seus dias de lazer, com uma «vida» retardada, onde sua pulsação enfraquece. Essa «pulsação» não é, aliás, discernível a olho nu e só foi descoberta com a ajuda de filmagens, pois cada movimento de fluxo e refluxo leva duas horas.

Durante esses «dias de lazer», o mimóide pode ser facilmente explorado, sobretudo se é velho, pois tanto a base assentada no oceano como as protuberâncias dela têm uma firmeza relativa, que permite ao homem pousar sem perigo no mimóide.

Pode-se de fato demorar igualmente no interior do mimóide durante seus «dias de atividade», mas aí a visibilidade é quase nula em conseqüência de uma poeira coloidal esbranquiçada, que se espalha continuamente pelos rasgões do tegumento suspenso sobre as protuberâncias. É, aliás, impossível distinguir de perto as formas que aquele tegumento reproduz, em razão do seu tamanho gigantesco. As dimensões da menor cópia são do tamanho de montanhas. Além disso, uma espessa camada de neve coloidal cobre com rapidez a base do mimóide. Esse tapete lodoso só endurece depois de horas (a crosta «gelada» suporta o peso de um homem, embora seja uma matéria muito mais leve que a pedra-pomes). Em suma, sem equipamento apropriado há o perigo de alguém se perder no labirinto das estruturas nodosas e cheias de fendas, que lembram tanto colunatas destruídas, como gêiseres petrificados. Há mesmo o perigo de alguém se perder em pleno dia, pois os raios do sol não atravessam o teto branco projetado na atmosfera pelas «explosões imitativas».

Nos dias felizes (felizes tanto para o cientista como para o mimóide), o observador contempla um espetáculo inesquecível. Nesses dias de superprodução, o mimóide se entrega a extraordinários «esforços criativos». Entrega-se a variantes do tema dos objetos exteriores, que ele se compraz em complicar e a partir dos quais desenvolve» prolongamentos formais». Diverte-se, assim, durante horas, para alegria do pintor não figurativo e desespero do cientista, que se esforça em vão para compreender alguma coisa do processo em curso. Se, às vezes, o mimóide faz simplificações «pueris», faz também seus «desvios barrocos» e tem magníficas crises de extravagância. Os velhos mimóides, em especial, fabricam formas muito cômicas. Apesar disso, ao olhar as fotografias, nunca tive acessos de riso, pois ficava sempre perturbado por seu mistério.

Durante os primeiros anos de exploração todos se atiraram literalmente sobre os mimóides, janelas abertas no oceano, diziam, que facilitaria o contato ardentemente esperado de duas civilizações. Tiveram de confessar, dentro de muito pouco tempo, que esse famoso contato estava longe de acontecer, que tudo se limitava a uma reprodução de formas e que estavam marcando passo num beco sem saída.

Inúmeros cientistas, cedendo à tentação de um antropomorfismo ou zoomorfismo latentes, viam nas diversas formações do oceano vivo «órgãos sensoriais» ou mesmo «membros» — foi assim que eruditos (como Maartens e Ekkonai) definiram durante certo tempo os vertebrídeos e os ágilus de Giese. Se alguém se arrisca a declarar que aquelas protuberâncias do oceano, que se elevam até duas milhas na atmosfera, são «membros», pode-se também pretender que os sismos são a «ginástica» da crosta terrestre!

Trezentos capítulos constituem o catálogo das formações que se produzem regularmente na superfície do oceano vivo e que podem ser observadas às dezenas, talvez centenas, em vinte e quatro horas. As simetríades — segundo a terminologia e definição da escola de Giese — são as formações menos «humanas», isto é, não têm qualquer semelhança com coisa alguma que o homem possa ver sobre a Terra. Na época em que começaram a estudar as simetríades, já se sabia que o oceano não era agressivo e que seus turbilhões plasmáticos não submergiriam ninguém, a não ser um indivíduo notavelmente imprudente e írrefletido (não falo, evidentemente, dos acidentes decorrentes de falha do sistema de oxigênio, ou dos climatizadores, por exemplo). Pode-se de fato, sem o menor perigo, atravessar com um veículo, de lado a lado, o corpo cilíndrico dos longus ou a fantástica coluna de vertebrídeos que oscila entre as nuvens, pois o plasma afastase com a velocidade do som na atmosfera solarista e abre passagem para o corpo estranho. Túneis profundos se abrem, mesmo sob o oceano (a energia instantaneamente desprendida para isso é prodigiosa; Skriabin estimou-a em cerca de 1019 ergs). Não obstante, começou-se, com enorme prudência, a exploração das simetríades, evitando-se qualquer incursão temerária e multiplicando-se as precauções, estas amiúde ilusórias. Todas as crianças da Terra sabem os nomes dos primeiros homens que se aventuraram nos abismos de uma simetríade.

O perigo dessas formações gigantescas não reside no seu aspecto, embora este possa produzir pesadelos. O perigo se deve, antes, ao fato de que, no interior de uma simetríade, nada se encontra que seja estável ou garantido. Mesmo as leis físicas foram abolidas. Os exploradores das simetríades — convém frisar sustentavam com mais ardor que os outros cientistas a tese segundo a qual o oceano vivo era dotado de inteligência.

As simetríades aparecem de repente. O nascimento de uma simetríade assemelha-se a uma erupção. Uma hora antes da «erupção», o oceano adquire um aspecto vítreo num espaço de algumas dezenas de quilômetros quadrados e começa a brilhar. Apesar disso, conserva sua fluidez e o ritmo das ondas não muda. Às vezes, mas não necessariamente, esse fenômeno de vitrificação produz-se nos arredores de um funil deixado por um ágilus. Ao cabo de uma hora, o envoltório brilhante do oceano se eleva e forma uma bolha monstruosa, que reflete o firmamento, o sol, as nuvens e o horizonte inteiro, feixe de imagens cambiantes e multicores. Os raios luminosos, quebrados e desviados, criam um jogo de cores fulgurante.

Os efeitos da luz sobre uma simetríade são particularmente surpreendentes durante o dia azul e ao pôr-do-sol vermelho. Tem-se, então, a impressão de que o planeta dá à luz um duplo que, de instante a instante, aumenta de volume. E, de repente, o imenso globo flamejante, mal chegando acima do oceano, explode no cimo e fende-se verticalmente. No entanto, não se trata de uma desagregação. Essa segunda fase, muito impropriamente chamada «fase do cálice floral», dura alguns segundos. As curvaturas membranosas erguidas para o céu se recolhem ao interior da simetríade e se fundem num torso maciço, no seio do qual prossegue uma quantidade de fenômenos. No centro desse torso — explorado pela primeira vez pelos setenta membros da expedição Hamalei — um processo gigantesco de policristalização ergue um eixo, chamado comumente» coluna vertebral», expressão que não é do meu agrado. A arquitetura vertiginosa desse pilar central é sustida in statu nascendi por hastes verticais, de uma consistência gelatinosa quase líquida, que surgem continuamente de orifícios desmesurados. Durante esse processo, o colosso — rodeado por um cinto de espuma cor de neve, cujas enormes bolhas agitam-se com violência — emite um rugido surdo e contínuo. Partindo do centro para a periferia, desenrolam-se a seguir as complicadas revoluções de pesadas asas, sobre as quais se acumulam pencas de matérias dúcteis, subidas das profundezas. Simultaneamente, os gêiseres gelatinosos se transformam em colunas móveis que estendem tentáculos. Esses feixes de antenas, que são orientados para pontos da estrutura rigorosamente determinados pela dinâmica de conjunto, lembram as brânquias de um embrião e giram com uma velocidade fabulosa, inundadas por filetes de sangue rosa e por uma secreção verde-escura, quase preta. A partir desse momento, a simetríade começa a revelar sua particularidade mais extraordinária: a faculdade de «modelar» ou mesmo negar certas leis físicas. Digamos antes de mais nada, que não existem duas simetríades idênticas e que a geometria de cada uma delas é sempre uma «invenção» diferente do oceano vivo. O interior da simetríade transforma-se numa usina fabricando «máquinas monumentais», como são freqüentemente designadas essas criações, embora em nada lembrem as máquinas construídas pelo homem. Trata-se aqui de uma atividade com fins limitados e, por conseqüência, de certa forma «mecânica».

Quando os gêiseres jorram do abismo, imobilizam-se as colunas ou galerias e corredores, espalhando-se em todas as direções. Quando as «membranas» se fixam num dispositivo inextricável de planos, de painéis e de abóbodas, a simetríade justifica seu nome, pois o conjunto da estrutura se divide em duas partes iguais, compostas de maneira absolutamente semelhantes.

Ao fim de vinte a trinta minutos, tendo o eixo, às vezes, se inclinando num ângulo de oito a doze graus, o gigante começa a descer devagar. (Existem simetríades maiores e menores, mas mesmo as menores, embora com a base submersa, atingem mais ou menos oitocentos metros de altura e são visíveis a muitas milhas de distância.) Depois, o corpo maciço se estabiliza progressivamente — o eixo inclinado volta à vertical — e a simetríade, parcialmente submersa, acaba por se imobilizar. É, então, possível explorá-la sem perigo, penetrando por um dos inúmeros sifóes que perfuram a calota perto do cimo, orifícios pertencentes a diversos condutos e canais. A simetríade apresenta no seu todo, o desenvolvimento tridimensional de qualquer equação transcendente.

Todos sabemos que se pode exprimir qualquer equação na linguagem figurada da geometria superior e construir sua representação espacial. A simetríade, encarada dessa maneira, é párente dos cones de Lobatchevski e das curvas negativas de Riemann, mas parente extremamente afastada por causa da sua inimaginável complexidade. Ela oferece, sob a forma de um volume de algumas milhas cúbicas, um desenvolvimento de todo o sistema matemático e, na verdade, um desenvolvimento em quatro dimensões, pois os termos fundamentais das equações exprimem-se igualmente no tempo, nas transformações que este opera.

Seria muito natural, evidentemente, supor que a simetríade é uma «máquina matemática» do oceano vivo, uma representação espacial — à escala do oceano — dos cálculos que ele faz, com objetivos desconhecidos para nós. Mas ninguém, hoje, admite mais essa idéia de Fermont. A hipótese, sem dúvida, era tentadora. Todavia, revela-se impossível de ser sustentado o conceito do oceano se dedicando a examinar os problemas da matéria, do cosmo e da existência, à força de erupções titânicas, cuja substância participaria, com cada fragmento, da expressão infinitamente complexa de uma análise superior. De fato, fenômenos múltiplos contradizem aquela concepção demasiadamente simples (de uma ingenuidade infantil — segundo alguns).

Não deixaram também de tentar transpor a simetríade, de «ilustrá-la». A demonstração de Awerian teve um sucesso não desprezível. Imaginemos, dizia ele, um edifício datando do esplendor da Babilônia, mas construído de uma substância viva, sensível e capaz de evoluir. A arquitetura desse edifício passa por uma série de fases e toma diante de nós as formas de uma construção grega e depois romana. As colunas, qual hastes vegetais, tomam-se em seguida mais finas e a abóboda, mais leve, elevase, encurva-se, o arco descreve uma parábola abrupta e se rompe em flecha. O gótico nasce, atinge a maturidade, o tempo corre e novas formas se esboçam. Desaparece a austeridade da linha sob as explosões de uma exuberância orgíaca e o barroco se expande sem entraves. Se a progressão continua, levando-se sempre em conta que consideramos as sucessivas mutações como etapas de uma vida evolutiva, atingimos enfim a arquitetura da época cósmica e chegamos talvez a compreender o que é uma simetríade. Mas, quaisquer que sejam os desenvolvimentos e as melhorias acrescentadas à demonstração (tentaram visualizá-la com a ajuda de maquetes e de filmes), a comparação continua fraca. Não passa de fato, de uma escapatória, para não dizer tapeação, uma vez que a simetríade em nada se parece com qualquer coisa existente na Terra…

O homem só pode apreender pouca coisa de cada vez. Vemos somente o que acontece na nossa frente, aqui e agora. Não podemos imaginar simultaneamente uma sucessão de processos, por mais ligados que estejam ente si, por mais complementares que sejam uns dos outros. Nossas faculdades de percepção são, portando, limitadas, mesmo no que concerne a fenômenos relativamente simples. O destino de um só homem pode ser rico de significação. Só fazemos uma idéia vaga do destino de algumas centenas de homens. Mas a história de milhares, de milhões de homens, para falar a verdade, não significa absolutamente nada. A simetríade é um milhão, não, um bilhão elevado à x potência — é o incompreensível. Que compreenderíamos, portanto, daquelas naves inumeráveis — cada uma da capacidade de dez unidades de Kronecker — que exploramos, como formigas, agarrados às reentrâncias das abobódas que respiram e contemplam o vôo de arcos gigantescos, opalescências cinzentas na luz dos nossos projetos, cúpulas leves que se interpenetram e se equilibram infalivelmente, perfeição de um momento, pois tudo aqui passa e escorre, o movimento é a essência da arquitetura, um movimento concentrado e orientado no sentido de uma finalidade precisa? Só observamos um fragmento do processo, a vibração de uma só corda de uma orquestra sinfônica de supergigantes, embora saibamos — sabemos sem admitir — que acima e abaixo de nós, nos abismos vertiginosos, além dos limites de percepção dos olhos e da imaginação, milhares e milhões de transformações são simultaneamente realizadas, ligadas entre si como uma partitura por um contraponto matemático. Alguém falou de sinfonia geométrica — nós ficamos surdos a esse concerto.

Para alguém ver de fato alguma coisa, será preciso que fique afastado, que tome uma distância considerável. Mas tudo acontece no interior da simetríade — matriz colossal e prolífica, onde a criação é incessante, onde a criatura toma-se imediatamente criadora e onde «gêmeos» perfeitamente idênticos nascem nas antípodas, separados por andaimes babélicos e milhas de distância. Na simetríade, cada construção monumental, de uma beleza monumental, cuja realização escapa à nossa vista, é o executante e o maestro, as formas colaboram entre si e influem, ordenadamente, umas sobre as outras. Uma sinfonia. Sim, uma sinfonia que cria a si mesma e pára espontaneamente.

O fim da simetríade é horrível. Todas as testemunhas têm o sentimento de assistir a uma tragédia, a um crime. Ao cabo de duas ou três horas — o processo de reprodução espontânea, de proliferação explosiva não dura mais que isso — o oceano vivo parte para o ataque. A superfície lisa do oceano se anima e ondula, a espuma ressecada toma-se fluida e começa a borbulhar. Acorrem, de todos os lados, ondas em filas concêntricas, maxilares carnudos, incomparavelmente maiores que os enormes lábios que cercam o mimóide ao nascer. A parte imersa da simetríade é comprimida e o colosso se eleva, como se estivesse sendo atirado para fora da zona de atração do planeta. As camadas superiores do oceano redobram de atividade, as ondas crescem cada vez mais, lambem os flancos da simetríade, a envolvem, endurecem e arrolham os orifícios. E tudo isso não é nada comparado com o que acontece no interior da simetríade. Primeiro, o processo de criação — a arquitetura evolutiva — estaciona por um momento e depois começa a «loucura». O leve movimento de interpenetração das formas, o jogo harmonioso dos planos e das linhas se precipitam. Temos a impressão arrasadora de que o colosso, em face do perigo ameaçador, procura apressar a realização de alguma coisa. Mais o movimento de transformação se acelera, maior se toma o horror que inspira a metamorfose da simetríade e de sua dinâmica. A projeção admirável das cúpulas amolece, as abóbodas racham e pendem, as «desafinações» começam a aparecer: formas inacabadas, grotescas, estropiadas. Das invisíveis profundezas escapa-se um tremendo ruído, um mugido — uma golfada de ar, suspiro de agonia, debate-se nos canais que começam a estreitar, ronca e troa e os domos desmoronados rosnam como gargantas monstruosas, eriçadas de estatactites de muco, cordas vocais inertes. Então o espectador, apesar do movimento que se desencadeia com extrema violência — movimento manifesto de destruição — é tomado por um invencível torpor. Sozinho, o furacão surge dos abismos e, inflando as milhares de galerias, ergue novamente a alta estrutura. Imediatamente ela torna a cair e começa a fundir. Testemunhamos, então, convulsões, sobressaltos cegos e desordenados, derradeiras palpitações. Atacado, roído, desvairado, o gigante submerge lentamente e desaparece, coberto de turbilhões de espuma.

E que significa tudo isso? Sim, que significa?

Lembrei-me de um incidente que datava da época em que eu era assistente de Gibarian. Um grupo de estudantes visitava o Instituto Solarista, em Adem. Os adolescentes, depois de terem atravessado um gabinete, chegaram à sala principal da biblioteca e olharam, à direita de quem entra, os escaninhos dos microfilmes, que ocupavam a metade da enorme sala. Havia, ali, explicaram a eles, entre outros fenômenos imortalizados pela imagem, ínfimos fragmentos de simetríades desaparecidas havia muito tempo — não fotogramas isolados, mas rolos inteiros, totalizando mais de noventa mil!

Uma mocinha gordinha, de seus quinze anos, de óculos, olhar vivo e decidido, perguntou de repente:

— E isso serve para quê?

No silêncio embaraçoso que se seguiu, a professora contentou-se em atirar um olhar severo sobre sua indisciplinada aluna. Entre os solaristas encarregados de guiar os estudantes (eu era um deles), ninguém pôde responder. Pois não existem duas simetríades semelhantes e os fenômenos que acontecem no seio de uma delas são, em geral, imprevisíveis. Às vezes não há nenhum som. Às vezes o índice de refração aumenta ou diminui. Às vezes pulsações rítmicas provocam uma mudança local da gravitação, como se a simetríade tivesse um coração que batesse em harmonia com ela. Às vezes as bússolas dos observadores começavam a girar. Camadas ionizadas surgiam e desapareciam… Poderíamos continuar indefinidamente a dar exemplos. Aliás, se chegarmos um dia a penetrar no segredo das simetríades, ainda nos restarão as assimetríades!

As assimetríades nascem da mesma maneira que as simetríades, mas seu fim é diferente e só distinguimos nelas tremores, vibrações e cintilações. Sabemos, porém, que no interior de uma assimetríade realizam-se operações atordoantes, a uma velocidade que desafia as leis da física, denominadas «fenômenos quânticos gigantes». A analogia matemática de tais fenômenos com certos modelos tridimensionais do átomo é tão instável e fugaz que certos observadores só vêem nessa semelhança um interesse secundário ou mesmo a julgam puramente acidental. As assimetríades têm uma existência curtíssima — quinze a vinte minutos — e o seu fim é ainda mais horrível que o de uma simetríade. com o sopro tempestuoso, uivante, que invade a assimetríade, jorra um fluído que gorgoleja pavorosamente e submerge tudo num borbulhar de espuma suja. Depois, uma explosão, acompanhada de uma erupção de lama, projeta uma coluna de destroços, que torna a cair longamente, numa chuva imunda, sobre o oceano agitado. Esses destroços levados pelo vento, ressecados, amarelos, achatados e semelhantes a estilhaços cartilaginosos, chegam a ser descobertos num raio de muitas dezenas de quilômetros em torno do local da explosão.

Muito mais raras, difíceis de observar e com uma duração muito variável, certas criações destacam-se completamente do oceano. Os primeiros vestígios dessas «independentes» foram identificados — de maneira errada, como ficou demostrado mais tarde — como os restos de criaturas que viviam nas profundezas do oceano. As formas autônomas fazem lembrar, em geral, pássaros de muitas asas, que fogem das trompas móveis dos ágilus. Mas as noções importadas da Terra não ajudam a penetrar nos mistérios deste planeta. Algumas vezes, aparição excepcional na margem rochosa de uma ilha, distinguimos corpos estranhos, parecidos com focas, estendidos ao sol ou se arrastando preguiçosamente na direção do oceano, onde se integram.

Não se saia das noções concebidas pelo homem da Terra. Quanto a um primeiro contato… Os exploradores percorriam centenas de quilômetros nas profundezas das simetríades, colocavam aparelhos de gravação e filmadoras automáticas. Os satélites artificiais televisavam o brotar dos mimóides e longus, transmitindo imagens fiéis da maturação e do aniquilamento. As bibliotecas transbordavam, os arquivos não paravam de crescer e o preço a pagar por toda aquela documentação foi, freqüentemente, muito caro. Cataclismos mataram um total de setecentos e dezoito homens, que não haviam deixado a tempo os colossos condenados a desaparecer. Uma catástrofe tristemente célebre custou a vida de cento e seis pessoas, inclusive a do próprio Giese, então com setenta anos. A expedição estudava uma simetríade bem definida, que foi bruscamente destruída por um processo de exterminação peculiar às assimetríades. Em dois segundos, uma erupção de lama pegajosa submergiu setenta e nove homens com máquinas e aparelhos. Outros vinte e sete observadores, que sobrevoavam a zona em aviões e helicópteros, foram também arrastados para o abismo. O local da catástrofe, na interseção do quadragésimo segundo paralelo com o octogésimo nono meridiano, passou a ser chamado, depois disso, de Erupção dos Cento e Seis. Mas só os mapas conservam a lembrança daquele cataclismo, do qual o oceano não guardou qualquer traço.

Em seguida à Erupção dos Cento e Seis, e pela primeira vez na história dos estudos solaristas, foram feitos requerimentos exigindo um ataque termonuclear contra o oceano. Essa represália teria sido mais cruel que uma vingança, pois significava destruir o que não compreendíamos. Embora nunca tivesse sido reconhecido oficialmente, é provável que o ultimato de Tsanken houvesse influído no resultado negativo da votação. Tsanken comandava o grupo de reserva de Giese e um erro de transmissão lhe salvara a vida. Ficara errando acima do oceano e chegou nas proximidades do local da catástrofe alguns minutos depois da explosão, da qual ainda viu um cogumelo escuro. Quando soube do projeto nuclear, ameaçou fazer explodir a estação com os dezenove sobreviventes que haviam se refugiado nela.

Hoje somos apenas três na estação… Controlada por satélites, a edificação da estação foi uma operação técnica que deixou os homens orgulhosos. Mas o oceano, em poucos segundos, constrói estruturas infinitamente mais consideráveis. A estação é um disco com um raio de cem metros. Tem quatro pavimentos no centro e dois na periferia. É mantida numa posição entre quinhentos e cinco mil metros acima do oceano, por gravitadores encarregados de compensar as forças de atração. Além de todos os aparelhos que as estações comuns e os grandes satelóides dos outros planetas dispõem, a estação Solaris está equipada com radares especiais, sensíveis à primeira mudança da superfície do oceano, que desencadeiam uma energia suplementar, permitindo ao disco de aço elevar-se até a estratosfera assim que surgem os sinais denunciadores de nova construção plasmática.

Sim, hoje, apesar da presença dos nossos fiéis «visitantes», a estação está singularmente despovoada. Desde que os robôs foram encerrados no pavimento inferior, nos depósitos, por um motivo que ainda ignoro, pode-se circular sem encontrar ninguém, como nos tombadilhos de um navio fantasma, abandonado pela tripulação e cujas máquinas continuassem a funcionar.

Quando coloquei na prateleira o novo volume da monografia de Giese, pareceu-me que o chão de aço, revestido de espuma plástica, havia vibrado sob meus pés. Prestei atenção, mas a vibração não se repetiu. A biblioteca estava completamente isolada das outras salas e aquela vibração só poderia ter uma origem: um foguete partira da estação. Esse pensamento fez-me voltar à realidade. Eu ainda não havia me decidido a sair, como Sartorius desejava. Fingindo aprovar inteiramente o projeto, eu no mínimo retardei o início das hostilidades, pois estava decidido a salvar Rheya. Mas que chance teria Sartorius de conseguir? Em todo caso, ele tinha grandes vantagens sobre mim: era físico e conhecia o problema muito melhor que eu. Eu só podia contar (situação paradoxal) com a superioridade do oceano. Durante uma hora, entreguei-me ao estudo dos microfilmes, tentando penetrar na física dos neutrinos através de uma linguagem matemática na qual eu não reconhecia nenhum elemento familiar. No começo, a empreitada me pareceu sem esperança. Não havia menos de cinco teorias sobre os campos de neutrinos, sinal evidente de que nenhuma entre elas era decisiva. Apesar disso, consegui finalmente arar uma parcela de terreno bastante prometedora. Eu estava começando a copiar umas fórmulas quando ouvi baterem à porta.

Levantei-me depressa e fui abrir. Snow ergueu para mim o rosto brilhante de suor. O corredor, atrás dele, estava deserto.

— Ah, é você… — escancarei a porta. — Entre!

— Sim, sou eu. — Falou com voz rouca. Havia bolsas sob seus olhos injetados de sangue. Usava um avental anti-radiação de borracha brilhante e suspensórios elásticos seguravam suas calças imundas.

Percorreu com o olhar a sala circular, iluminada por igual, e se deteve em Rheya. Ela estava em pé, no fundo, ao lado de uma poltrona. Snow voltou-se para mim e eu baixei imperceptivelmente as pálpebras. Ele inclinou-se e eu disse, num tom natural::

— Rheya, olhe o doutor Snow!… Snow, esta é minha mulher.

— Sou apenas… sou apenas um membro muito retraído da equipe e pouco apareço. Por isso… — Sua hesitação se prolongou por um espaço de tempo perigosamente grande, mas Snow conseguiu terminar a frase: —…por isso não tive o prazer de a en— contrar antes…

Rheya sorriu e estendeu-lhe a mão, que ele segurou com certo espanto. Piscou repetidamente os olhos e ficou olhando para ela sem nada dizer.

Toquei no ombro dele.

— Desculpe — disse Snow para Rheya. — Quero falar com você, Kelvin…

Com grande naturalidade, respondi: —Claro, estou à sua disposição.

Eu estava representando uma comédia sinistra, mas que po deria fazer?

— Rheya, minha querida, fique aí. Snow e eu precisamos discutir coisas de trabalho muito cacetes…

Peguei Snow pelo braço e levei-o para as cadeiras no outro lado da sala. Rheya sentou na poltrona onde eu estivera antes. Virou-a de tal forma que podia ver-nos por cima do livro.

— Que é que há? — perguntei, em voz baixa.

Snow murmurou entredentes:

— Me divorciei.

Se, alguns dias antes, me contassem tal início de conversa, eu teria achado graça. Mas, na estação, meu senso de humor ficara embotado.

— Desde ontem à noite — continuou — estou vivendo horas que valem por anos. Anos inolvidáveis. E você?

Demorei um instante e respondi:

— Nada…

Snow, repetiu:

— Nada? Você devia…

Fingi não ter compreendido.

— Eu o quê?

Com os olhos semicerrados, Snow inclinou-se para mim e ficou tão perto que senti sua respiração morna.

— Nós estamos enrolados nesta história, Kelvin. Não consigo mais falar com Sartorius. Só sei o que escrevi a você e que me foi contado por ele depois de nossa breve conferência…

— Ele desligou o telefone?

— Não, houve um curto-circuito nos aposentos dele. Talvez Sartorius o tenha provocado deliberadamente, a menos que…

Fechou a mão e esboçou o gesto de arrebentar um objeto. Um sorriso desagradável ergueu os cantos da sua boca. Olhei-o sem dizer nada.

— Kelvin, eu vim para… que é que você pensa fazer? Respondi pausadamente:

— Você veio pegar minha resposta à carta? vou dar uma volta lá fora, pois não tenho motivo para recusar. Eu estava exatamente preparando essa ida…

Snow me interrompeu:

— Não, não se trata disso!

— Fingi surpresa.

— Não? Então o que é? Diga! — Ele resmungou.

— Sartorius… acha que está na pista…

Snow não tirava os olhos de mim. Eu continuava imóvel, procurando adotar um ar indiferente.

— Primeiro foi aquela operação de raios-x, que ele organizou com Gibarian, como você deve estar lembrado. Isso pode ter provocado uma certa modificação…

— Que modificação?

— Eles dirigiram um feixe de raio diretamente para o oceano, apenas modulando a intensidade de acordo com um programa.

— Sei. Niline e muitos outros já o haviam feito.

— Já, mas os outros usaram uma radiação fraca. Dessa vez, foi uma radiação potente. Aplicaram no oceano toda a energia de que dispunham.

— Isso pode ter conseqüências desagradáveis… violação da Convenção dos Quatro e da ONU…

— Kelvin! Você sabe muito bem que isso agora não tem nenhuma importância. Gibarian está morto.

— Ah! Sartorius vai atirar toda a culpa nele?

— Não sei. Não falamos nisso. Não tem importância. Sartorius está impressionado pelo fato de os «visitantes» chegarem sempre quando acordamos. Ele deduziu que o oceano se interessa principalmente pelo nosso sono e tira de nós suas receitas de produção enquanto dormimos. Agora Sartorius gostaria de enviar a ele nosso «estado de vigília», nossos pensamentos acordados, você compreende?

— Pelo correio?

— Guarde suas piadas para rir sozinho! Um feixe de raios será modulado pelas correntes cerebrais de um de nós.

Comecei a ver claro.

— Ah! E esse um de nós sou eu?

— É. Sartorius pensou em você.

— Agradeça a ele de minha parte.

— Então?

Fiquei calado. Snow olhou para Rheya, que lia com ar atento, e depois voltou a me encarar. Fiquei pálido.

— Então? — repetiu ele Sacudi os ombros.

— A idéia de transmitir esses sermões sobre a grandeza do homem por intermédio dos raios-x parece-me absolutamente ridícula. A você também, não?

— Mesmo?

— Mesmo.

— Muito bem — disse ele, sorrindo como se eu tivesse concordado. — Então você é contra o projeto de Sartorius?

Não sei como foi que a coisa aconteceu, mas pela expressão de Snow, vi que ele me manejara como quisera.

— Muito bem — continuou. — Há um segundo projeto: construir um aparelho Roche.

— Um aniquilador?

— Isso. Sartorius já fez os cálculos preliminares. E possível e não necessita uma grande utilização de energia. O aparelho produzirá anticampos magnéticos vinte quatro horas por dia durante um tempo indeterminado.

— Como é que a coisa age?

— É muito simples. Trata-se de anticampos de neutrinos. A matéria comum não sofrerá alteração. Só as… estruturas de neutrinos serão destruídas. Compreende?

Snow sorria, satisfeito. Fiquei imóvel, com a boca entreaberta. O sorriso dele desapareceu. com a testa franzida, olhavame atentamente e esperou um momento antes de continuar.

— Bom, vamos abandonar o primeiro projeto, o projeto «Pensamento»? Quanto ao segundo, Sartorius está trabalhando nele ativamente. Iremos chamá-lo projeto «Libertação»!

Fechei os olhos por um momento. Bruscamente, decidi-me. Snow não era físico. Sartorius havia desligado ou destruído o próprio telefone. Perfeito!

Então respondi:

— Eu chamaria esse segundo projeto, de preferência, «Operação Matadouro».

— Você também andou matando, não me venha com essa! Desta vez trata-se de coisa muito diferente. Não mais «visitantes», criações F… nada! A desagregação sucede instantaneamente à materialização.

Sacudi a cabeça, com um sorriso que me esforcei por tornar tão natural quanto possível., — Está havendo um malentendido. Não estou me referindo a escrúpulos morais, mas a instinto de conservação. Meu caro Snow, não tenho vontade de morrer.

— O quê?

Tirei do bolso um papel cheio de fórmulas. -Também eu pensei nessa «experiência». Você se espanta? No entanto fui eu que lancei a hipótese dos neutrinos, lembra? Olhe! Podemos fazer nascerem anticampos. De fato, são inofensivos para a matéria comum. Mas, no momento da desestabilização, quando a estrutura dos neutrinos se desintegra, liberamos a energia que mantém a estrutura e um considerável excesso dela escapa. Se admitirmos, para um quilo de substância em repouso IO8 ergs, obteremos, para uma criação F, 57 multiplicado por IO8. Você sabe o que isso significa?… O equivalente a uma pequena carga de urânio explodindo dentro da estação.

— Puxa vida! Mas… Sartorius certamente levou isso em consideração.

Dei-lhe um sorriso malicioso.

— Não sei por quê! Veja, Sartorius pertence à escola de Prazer e Cajolla. Segundo as teorias deles, no momento da desagregação toda a energia latente é liberada sob a forma de um raio luminoso — uma luz poderosa, talvez não sem perigo, mas sem poder de destruição. Não obstante, existem outras hipóteses, outras teorias, a respeito dos campos de neutrinos. Segundo Cayatte, Awallow, Sion, a extensão da emissão é muito maior. Quando está no máximo, a liberação de energia torna-se uma poderosa emissão de raios gama. Sartorius acredita em seus mestres e nas teorias deles, o que é muito bonito, mas existem outros mestres e outras teorias. E você sabe, Snow — continuei, vendo que minhas palavras o haviam impressionado —, é preciso também levar em conta o oceano! Para executar suas criações, ele certamente seguiu o melhor método. Em outras palavras, a maneira de agir do oceano parece-me um argumento a favor da outra escola e contra Sartorius.

— Dê-me esse papel, Kelvin…

Dei-lhe a folha. Snow tentou decifrar meus rabiscos. Mostrou alguma coisa com a ponta do dedo.

— O que é isto? Peguei o papel de volta.

— Isto? O tensor de transmutação do campo magnético. -Mede…

— Por quê?

Eu sabia o que ele ia responder.

— Quero mostrar esses cálculos a Sartorius.

— Como queira… — meu tom era indiferente. — Posso darlhe esta folha, evidentemente. Apenas, ninguém ainda confirmou experimentalmente estas teorias. Não conhecemos ainda tais estruturas. Sartorius confia em Prazer e eu em Sion. Sartorius lhe dirá que eu não sou físico e que Sion também não o é. Ou, pelo menos, não segundo o ponto de vista dele. Irá discutir. Não tenho vontade de discutir, o que me levaria a me retratar, para maior glória de Sartorius. A você eu posso convencer, mas não tenho força para convencer Sartorius e nem mesmo tentarei.

— Então, que é que você quer fazer? Ele já está agindo… Respondi, baixinho:

— Que quero fazer? O que faz um homem a quem querem matar.

— Vou me comunicar com Sartorius. Talvez ele tenha previsto precauções… — resmungou Snow. — Ouça! E se… e o primeiro projeto? Você o aceitaria? Sartorius estaria de acordo. com certeza. É… em todo caso é uma chance a ser usada. “

— Você crê nisso?

— Não — respondeu ele, imediatamente. — Mas nada temos a perder.

Eu não queria concordar logo. Estava tentando ganhar tempo e Snow podia me ajudar a prolongar a decisão.

— Pensarei a respeito.

— bom, vou embora — disse Snow. Quando levantou, seus ossos estalaram.

— Será necessário começar por um encefalograma — disse ele, esfregando o avental, como se tentasse limpar uma mancha invisível.

— Está bem.

Sem se despedir de Rheya, Snow caminhou para a porta. com o livro sobre os joelhos, Rheya olhou-o sair. Quando a porta se fechou, levantei-me. Desamassei a folha de papel. As fórmulas estavam corretas. Eu não as havia falsificado. Mas Sion as teria aprovado? Provavelmente não.

Estremeci. Rheya havia se aproximado e pusera a mão no meu ombro.

— Kris!

— O que é, minha querida?.

— Quem é ele?

— O doutor Snow, já disse a você.

— Que espécie de gente é ele?

— Conheço-o mal… por quê?

— Ele me olhou de um modo tão estranho…

— Gostou de você.

Rheya sacudiu a cabeça.

— Não, ele me olhou de outro jeito… como… como se… Estremeceu, ergueu os olhos para mim, mas baixou-os logo.

Vamos embora…



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