No dia seguinte, na hora do almoço, encontrei sobre a mesa um bilhete de Snow. Sartorius havia adiado a construção do aniquilador e estava se preparando para lançar pela última vez um poderoso feixe de raios no oceano.
— Rheya, minha querida, tenho de ir ver Snow.
A aurora vermelha incendiava a janela e dividia o quarto em dois. Nós estávamos na região da sombra azul. Para além dessa zona escura, tudo estava acobreado. Se um livro caísse da prateleira, meu ouvido esperaria instintivamente ouvir um som metálico.
— Trata-se da tal experiência. Só que eu não sei como fazer. Você sabe, eu preferiria…
Interrompi-me.
— Kris, não precisa se justificar! Eu gostaria tanto… se isso não durar muito tempo.
— Vai durar algum tempo. Olhe, você acha que pode esperar no corredor?
— Vou tentar. E se não conseguir me controlar?
— Você sente exatamente o quê? — Acrescentei, apressadamente: — Não estou querendo ser indiscreto, me entenda, mas se aprofundarmos um pouco o assunto, você talvez consiga se controlar.
— Tenho medo — respondeu ela, empalidecendo. — E nem mesmo posso explicar do que tenho medo, porque na realidade não há alguém ou alguma coisa me assustando. Eu… eu me sinto perdida. E tenho uma enorme vergonha disso. Mas assim que você volta, tudo passa. Foi por isso que pensei que se tratava de doença…
Rheya falava em voz baixa e trêmula.
— Talvez seja só dentro desta maldita estação que você fique aterrorizada. vou dar um jeito de irmos embora logo.
Ela franziu os olhos.
— Você acha que pode?
— Por que não? Não estou preso aqui. vou discutir o assunto com Snow. Acha que pode ficar só durante quanto tempo?
— Depende… — respondeu, baixando a cabeça. — Se eu ouvir sua voz, acho que conseguirei ficar sem me mexer.
— Prefiro que você não nos ouça. Não tenho nada a esconder, mas não sei nem posso saber o que Snow dirá.
— Chega, já entendi. Ficarei longe, pois me basta reconhecer o som da sua voz.
— vou à oficina telefonar para ele. Deixarei as portas abertas. Rheya concordou com a cabeça.
Atravessei a zona vermelha. Por contraste, e apesar das lâmpadas, o corredor me pareceu escuro. A porta da oficina estava aberta. Últimos traços deixados pelos acontecimentos da noite, os estilhaços da garrafa Deware brilhavam sob uma fileira de reservatórios de oxigênio líquido. Quando peguei no fone, a pequena tela se iluminou. Disquei o número da sala de rádio. Por trás do vidro fosco, a película de luz azulada brilhou. Inclinado para o lado, sobre o braço da poltrona, Snow me encarava.
— Viva! — disse ele.
— Encontrei seu bilhete. Quero falar com você. Posso ir aí? Pode. Já?
— Já — Desculpe, mas você vem só ou… acompanhado? — só.
Inclinado para a frente, a testa sulcada de rugas profundas, as faces magras e crestadas, ele me examinava através do vidro abaulado — estranho peixe num estranho aquário.
Snow adotou um ar despreocupado.
— Está bem, venha.
Quando voltei aos meus alojamentos, percebi vagamente a silhueta de Rheya por trás da cortina de raios vermelhos.
— Podemos ir, minha querida?
Senti minha voz faltar. Rheya estava sentada numa poltrona, com os braços dobrados. Teria eu demorado? No espaço de um segundo, eu a vi lutar contra a força incompreensível que a habitava, vencer aquela horrível contração de todo o seu corpo e, por fim, relaxar. Eu estava sufocado por um furor cego misturado de piedade.
Seguimos em silêncio, pelo corredor de paredes policrônicas. A diversidade de cores, segundo os arquitetos, devia facilitar nossa vida no interior da carapaça blindada.
Vi, de longe, que a porta da sala de rádio estava entreaberta e deixava passar uma réstia de luz vermelha. Olhei para Rheya, que nem mesmo procurou sorrir. Ela havia se preparado, durante todo o trajeto, para uma luta com ela mesma e agora que o momento se aproximava, tinha o rosto pálido e confrangido. A quinze passos da porta, Rheya deteve-se. Virei-me e ela empurrou-me com a ponta dos dedos. Imediatamente Snow, meus projetos, a experiência, a estação, tudo me pareceu irrelevante comparado com o suplício a que ela ia ser submetida. Eu não tinha a menor vocação para ajudante de carrasco e por isso quis recuar. Mas uma sombra expulsou da parede o reflexo do sol e eu me apressei a entrar na sala.
Snow caminhara para a porta, como se tivesse a intenção de sair ao meu encontro. O disco solar o aureolava com um clarão púrpura, que parecia ser irradiado por seus cabelos grisalhos. Olhamo-nos em silêncio durante uni momento. Se ele podia me examinar à vontade, o mesmo não me acontecia, pois eu não via Snow em virtude da reverberação da janela.
Passei ao lado dele e fui me apoiar numa mesa alta da qual emergiam as hastes flexíveis dos microfones. Snow fez meia-volta lentamente e continuou a me olhar, com seu sorriso habitual, que não exprimia alegria e traía muito amiúde um cansaço mortal. com os olhos sempre pregados em mim, abriu caminho entre os inúmeros objetos amontoados de forma desordenada acumuladores térmicos, instrumentos e sobressalentes da aparelhagem do rádio. Aproximou-se de um armário metálico, pôs de pé um tamborete e sentou-se, com as costas apoiadas na porta do armário.
Agucei os ouvidos, preocupado, mas nenhum som vinha do corredor onde Rheya ficara. Por que Snow não falava? Nosso silêncio tornara-se incômodo para ambos.
Pigarreei.
— Vocês ficam prontos quando?
— Podemos começar hoje, mas a gravação demora algum tempo.
— A gravação? Você quer dizer o encefalograma?
— Sim, você está de acordo… que é que há?
— Não, nada.
Com o silêncio ameaçando se prolongar outra vez, Snow prosseguiu:
— Você tinha alguma coisa a dizer?
— Ela sabe… — murmurei… Snow franziu as sobrancelhas. — Ah? — Tive a impressão de que ele estava realmente surpreso. Então por que fingia? Perdi toda a vontade de confiar nele. Apesar disso, para ser honesto, forcei-me a falar:
— Ela começou a suspeitar depois de nossa conversa na biblioteca. Passou a me espionar, somou os indícios, depois achou o gravador de Gibarian e ouviu a fita… com as costas apoiadas no armário, Snow continuava imóvel, mas uma fagulha longínqua animava seus olhos. De pé ao lado da mesa, eu tinha à minha frente a porta entreaberta do corredor
Baixei mais a voz:
— Esta noite, quando eu estava dormindo, Rheya tentou se matar. Bebeu oxigênio líquido…
Houve um ruído de papéis levados por uma corrente de ar. Parei de falar, atento ao que acontecia no corredor. O barulho não vinha do corredor, mas do quarto. Um rato! Absurdo. Ali não havia ratos! Olhei de soslaio para Snow.
— Continue — disse ele, tranqüilamente.
— Não conseguiu, é claro… mas agora sabe quem ela é.
— Por que você me diz isso?
De imediato, não soube o que responder, mas murmurei:
— Para informar… pô-lo a par da situação… — Eu lhe avisei.
Ergui a voz sem querer.
— Você quer dizer que sabia…
— O que você acaba de contar? Claro que não. Mas lhe expliquei a situação. Quando chega, o «visitante» é quase vazio, não passa de um fantasma alimentado por recordações e imagens confusas extraídas do seu… Adão. Quanto mais tempo fica com você, mais se humaniza. Torna-se também mais independente, mas só até certo ponto. E quanto mais tempo durar, mais difícil se torna… — Snow parou, olhou-me de alto a baixo e acrescentou, contra a vontade: — Ela sabe tudo?
— Sabe, já disse.
— Tudo? Sabe que veio antes e que você…
— Não!
Snow sorriu.
— Olhe, Kelvin, já que você está aqui… Que é que você vai fazer? Ir embora?
— Sim.
— Com ela?
— Com ela.
Snow ficou calado, meditando uma resposta, porém seu silêncio também significava outra coisa… Mas o quê? Ouvi novamente junto a mim — sem poder situá-lo e parecendo vir de trás de uma fina parede — o ruído de uma corrente de ar que não era sentida no quarto.
Snow mudou de posição no tamborete.
— Muito bem — disse ele. — Por que você fica me olhando? Pensou que eu ia lhe criar dificuldades? Meu caro Kelvin, você fará o que quiser. Já nos basta os aborrecimentos que estamos tendo, para ainda ficarmos brigando uns com os outros! Embora sem esperança de convencê-lo, preciso dizer-lhe isto: numa situação inumana, você se esforça para conservar um comportamento humano. Isso pode ser muito bonito, mas não conduz a nada. Aliás, não tenho tanta certeza de que seja bonito. Como pode ser belo um comportamento idiota? Mas não se trata disso. Voltemos ao que interessa! Você desiste de continuar as experiências e quer partir imediatamente, levando-a com você, não é?
— É.
— É também… uma experiência. Pensou nisso? “
— Que é que você quer dizer? Está me perguntando se ela… poderá?… Uma vez que ela está comigo, não vejo…
Falando cada vez mais devagar, parei no meio da frase. Snow deu um suspiro.
— Todos nós estamos usando a política do avestruz, meu caro Kelvin, e sabemos disso. Não é hora de atitudes cavalheirescas!
— Não estou com atitudes.
— Desculpe, não quis ofendê-lo. Retiro as atitudes cavalheirescas, mas confirmo a política do avestruz, que você pratica sob uma forma especialmente perigosa. Você mente a si mesmo, mente a ela e fica andando em círculos. Conhece as condições de estabilização de uma estrutura de neutrinos?
— Não, nem você. Ninguém conhece.
— É verdade. Sabemos apenas que tal estrutura é instável e só pode subsistir graças a um contínuo afluxo de energia. Foi Sartorius quem me disse. Essa energia cria um campo de estabilização turbilhonante. Esse campo magnético é exterior com relação ao «visitante» ou é criado no interior do corpo dele? Percebeu a diferença?
— Percebi… se é exterior… ela… Snow concluiu por mim.
— Afastada de Solaris, a estrutura se desagrega. É uma pura hipótese, sem dúvida, mas que você pode constatar porque já tentou uma experiência. O foguete que você lançou… continua em órbita. Nos meus momentos de folga, cheguei mesmo a calcular os elementos da movimentação dele. Você pode levantar vôo, colocar-se em órbita, aproximar-se e ver o que aconteceu à passageira…
— Você está louco! — berrei.
— Você acha? E se trouxéssemos o foguete de volta? Não há nenhuma dificuldade, pois é teleguiado. Faremos com que saia da órbita e…
— Cale-se!
— Então você também não quer? Há ainda um meio muito simples. Não será necessário traze-lo para a estação. Ele poderá continuar gravitando. Basta um contato pelo rádio. Se ela estiver viva, responderá e…
— Mas… mas há muito tempo que ela não tem mais oxigênio!
— Talvez não precise de oxigênio. Vamos tentar?
— Snow… Snow…
Ele me imitou, enraivecido.
— Kelvin… Kelvin… Reflita um pouco! Você é um homem ou não? Você está procurando satisfazer a quem? Quem quer salvar? A você ou a ela? E a qual das elas? A que está aqui ou a que está lá? Você não tem bastante coragem para enfrentar as duas? Está vendo que esse é um comportamento absurdo! Repito pela última vez: estamos numa situação que foge à moral.
Ouvi o mesmo ruído de havia pouco e dessa vez pareceume o de unhas arranhando uma parede. Não sei por quê, sentime subitamente tão passivo e indiferente quanto uma mula. Eu me via, eu nos via, a mim e a ele, muito longe, como quando olhamos pelo lado inverso de um binóculo, e tudo me pareceu insignificante, desprezível, um tanto risível.
— bom e, segundo você, que devo fazer? — perguntei. -Afastála? Ela voltará amanhã, não é? E depois de amanhã e nos outros dias. Durante quanto tempo? Que adianta me ver livte dela hoje, se ela vai voltar? Que vantagem tenho nisso? E qual a vantagem para você, para Sartorius, para a estação?
— Não é isso. O que eu proponho é que você vá embora com ela! Você assistirá à transformação. Ao fim de alguns minutos, você verá.
Interrompi, sem entusiasmo: — O quê? Um monstro, um demônio?
— Não, você muito simplesmente a verá morrer. Acredita mesmo na imortalidade dela? Garanto-lhe que elas morrem… Então você fará o quê? Voltará para cá… para se reabastecer?
Cerrando os punhos, gritei:
— Cale a boca!
Com as pálpebras semicerradas, Snow olhava-me com ar zombeteiro, mas condescendente.
— Ah, eu é que devo calar? No entanto não fui eu que comecei esta conversa e acho que foi longe demais! É melhor você arranjar outro divertimento. Ir, por exemplo, chicotear o oceano para se vingar dele! Que é que você imagina? Que é um canalha pelo fato de mandá-la embora?…
Fez, com a mão, um irônico gesto de adeus e virou o rosto para cima, como se estivesse seguindo com os olhos o vôo de um foguete.
— E que você é um sujeito decente, se ficar com ela? — prosseguiu. — Sorrir, quando tem vontade de chorar, fingir paz e alegria, quando tem vontade de bater com a cabeça na parede, é não ser um canalha? E se for impossível, aqui, não ser um canalha? Que é que você vai fazer? Atacar o crápula do Snow, que é o culpado de tudo?
É isso? Então, meu caro Kelvin, para cúmulo da desgraça, você é um verdadeiro cretino!
De cabeça baixa, respondi:
— Essa é a sua opinião… eu… eu a amo.
— A quem? À lembrança dela? l — Não, a ela. Já lhe disse o que ela tentou fazer. Poucos seres humanos… autênticos, teriam tido a coragem de agir assim.
— Por essas palavras, você reconhece…
— Não me atormente por causa de palavras!
— Está bem. Então, ela o ama. E você deseja amá-la. Não é a mesma coisa.
— Você está enganado.
— Lamento, Kelvin, mas foi você mesmo quem me revelou suas preocupações. Você não a ama. Você a ama. Ela está pronta a dar a própria vida. Você também. É comovente, é magnífico, é sublime, é tudo o que você quiser. Mas aqui não funciona. O lugar não é próprio. Compreendeu? Não, você se recusa a compreender! Forças desconhecidas independentes de nós arrastam num processo em círculo, do qual ela é um aspecto, uma fase, uma manifestação periódica. Se ela fosse… se você fosse importunado por um animal devotado, você não hesitaria um instante em afastá-lo, não é?
— É verdade.
— É por isso que ela não é um animal! Você está de mãos amarradas? O caso é exatamente esse, você está de mãos amarradas!
— Essa é uma nova hipótese, que vai se juntar a um milhão de outras, catalogadas na biblioteca. Me deixe em paz, Snow, ela é… Não, não quero mais falar com você a respeito dela.
— Está bem. Mas foi você quem começou. Lembre-se, apenas, de que ela é um espelho onde se reflete uma parte do seu cérebro. Se ela é maravilhosa é porque você tem recordações maravilhosas. Foi você quem forneceu a receita. Você está preso num processo em círculo, não esqueça!
— Que é que você espera de mim? Que eu… que eu a afaste? Já lhe fiz a pergunta: por quê?… Você não respondeu.
— vou responder. Não fui eu quem quis esta conversa. Não me meti com seus negócios. Não lhe ordenei nada, não proibi nada e mesmo que tivesse o direito, não o faria.
Você veio para cá porque quis e desfez as malas na minha frente. Sabe por quê? Não? Para se livrar de um fardo, de um peso! Ah, meu caro Kelvin, eu conheço esse fardo. Oh, não me interrompa! Deixo você livre para tomar decisões, mas o que você quer é oposição. Se eu lhe barrasse o caminho, você provavelmente me quebraria a cara. Mas é comigo que você teria de se entender, com um homem moldado no mesmo lodo que você, um homem da mesma carne e do mesmo sangue, e então você também se sentiria um homem. Como não lhe dou a oportunidade de brigar, você discute comigo… ou melhor, você discute com você mesmo! Só lhe falta me dizer que sucumbirá à dor se ela desaparecer de repente… Não, por favor, não diga nada!
Revidei sem jeito o ataque dele.
— Vim informá-lo, por estrita honestidade, de que tenho a intenção de sair da estação com ela.
Snow sacudiu os ombros.
— Você não desiste… Exprimi minha opinião unicamente porque vejo que você está excitado. Acalme-se e venha amanhã de manhã, pelas nove horas, aos aposentos de Sartorius… Você virar Fiquei espantado.
— Aos aposentos de Sartorius? Pensei que ele não deixasse ninguém entrar. Você me disse que nem se podia telefonar para ele.
— Parece que ele deu um jeito. Nunca discutimos nossos problemas domésticos. Você… é inteiramente diferente. Virá, amanhã de manhã?
— Virei. — resmunguei.
Olhei para Snow. Sua mão direita havia deslizado para dentro do armário. Depois de quanto tempo a porta estava entreaberta? Havia muito, provavelmente, mas na excitação daquela conversa horrível, eu não tinha notado nada. A posição daquela mão não era natural. Dir-se-ia que estava escondendo alguma coisa. Ou que segurava alguém pela mão.
Umedeci os lábios.
— Snow, que é que você…
— Saia — respondeu ele, com voz baixa e muito tranqüila saia!
Saí e fechei a porta sobre os últimos clarões do crepúsculo vermelho. Rheya estava esperando a dez passos da porta, sentada no chão e encostada na parede.
Ela levantou de um pulo, com os olhos brilhantes pousados em mim.
— Viu, Kris? Consegui… estou tão contente! Talvez… Vai ser cada vez mais fácil.. — Oh, sim, claro… — respondi, de forma distraído.
Voltamos para os meus aposentos. Eu continuava quebrando a cabeça por causa daquele armário. Era então ali que ele escondia?… E toda aquela conversa?… Meu rosto começou a ficar tão quente que, involuntariamente, toquei-o com as costas da mão. Que idiota! E para quê? Para nada. Ah, sim, no dia seguinte pela manhã…
Fui bruscamente envolvido pelo medo, um medo semelhante ao que havia sentido na noite anterior. Meu encefalograma. O registro integral dos processos do meu cérebro, transformado num feixe de raios, seria descarregado no oceano, nas profundezas daquele monstro inconcebível, infinito… Que havia dito Snow? «Se ela desaparecer você sofrerá horrivelmente?» Um encefalograma é o registro de todos os processos — dos conscientes e dos inconscientes. «Se eu desejar que ela desapareça», pensei, «ela desaparecerá! Mas se eu desejar me livrar dela, também serei apavorado pela idéia do aniquilamento de que ela está ameaçada? Sou responsável pelo meu inconsciente? Se não, que outro será?… Que bobagem! Por que aceitarei entregar meu encefalograma a eles?… Posso, evidentemente, examinar a fita antes de permitir que eles a utilizem, mas não saberei interpretá-la.
Ninguém o saberá! Os especialistas só podem circunscrever os pensamentos do indivíduo em termos gerais. Dirão, por exemplo, que o indivíduo estava meditando a respeito da solução de um problema matemático, mas serão incapazes de fornecer os dados do problema. São obrigados a se cingir às generalidades, afirmam, pois o encefalograma reproduz de cambulhada uma quantidade de processos que se desenrolam simultaneamente, do qual somente uma parte tem um 'avesso' psíquico. E os processos inconscientes?
Os especialistas se recusam terminantemente a falar disso. Como exigir, portanto, que eles decifrem recordações mais ou menos reprimidas?… Mas de que tenho tanto medo? Eu disse a Rheya, hoje mesmo de manhã, que a experiência não teria sucesso. Se nossos neurofisiólogos são incapazes de decifrar o registro, como aquele estranho gigante negro e fluido seria ca— paz?…
No entanto ele havia me penetrado, contra minha vontade. Havia sondado minha memória e descoberto meu ponto mais sensível. Como pôr em dúvida? Sem qualquer ajuda, sem qualquer «transmissão de raios», ele havia atravessado a blindagem estanque, a dupla carapaça da estação, me encontrara e levara o produto do saque…
— Kris? — murmurou Rheya.
De pé diante da janela, com o olhar fixo, eu não vira a noite chegar. Uma fina camada de nuvens elevadas, cúpula prateada refletindo fracamente o sol desaparecido, ocultava as estrelas.
Se ela desaparecesse depois da experiência, significaria que eu desejava seu desaparecimento. Que eu a matara. Não, não iria ver Sartorius. Não era obrigado a obedecer-lhe.
Que diria a ele? A verdade? «Não. Não posso dizer-lhe a verdade. É preciso fingir, mentir, agora e sempre… Porque há, talvez, em mim, pensamentos, intenções, esperanças cruéis, das quais não tenho conhecimento, porque sou um assassino que se ignora. O homem partiu para a descoberta de outros mundos, de outras civilizações, sem ter inteiramente explorado seus próprios abismos, seu labirinto de corredores escuros e câmaras secretas, sem ter penetrado no mistério das portas que ele mesmo condenou.
Entregar-lhes Rheya… por pudor? Entregá-la somente porque me falta coragem?»
— Kris — disse Rheya, ainda mais baixo.
Ela havia se aproximado de mim. Fingi não ter ouvido. Naquele instante eu queria me isolar. Devia me isolar. Eu ainda nada decidira, ainda não tomara qualquer resolução.
Imóvel, fiquei contemplando o céu escuro, as estrelas frias, pálidos fantasmas das estrelas que brilhavam no céu da Terra. Minha mente ficara subitamente oca. Restava-me apenas a triste certeza de ter atravessado uma fronteira de forma irremediável. Indiferente, recusei-me a ter consciência de que estava caminhando para o inacessível e nem sequer tinha mais força para me desprezar.