Vitória


Passaram-se três semanas. Os protetores das janelas baixavam e levantavam em horas fixas. De noite, eu era prisioneiro dos meus pesadelos. E cada manhã a comédia recomeçava. Mas seria uma comédia? Eu aparentava calma e Rheya fazia o mesmo. Enganávamo-nos mutuamente, conscientemente, e essa concordância servia à nossa fuga derradeira: falávamos do futuro, da nossa vida na Terra, da nossa instalação nos arredores de uma grande cidade. Não deixaríamos mais a Terra e passaríamos o resto da nossa existência sob o céu azul e entre as árvores verdes. Imaginávamos juntos a disposição da casa, o traçado do jardim, brigávamos por causa de minúcias, como a localização de uma sebe ou de um banco… Seria eu sincero? Não. Eu sabia que nossos projetos eram impossíveis. Eu o sabia. Pois mesmo se Rheya pudesse deixar a estação e sobreviver à viagem, como poderia eu atravessar os controles com um passageiro clandestino? A Terra só acolhe os humanos e todo ser humano deve ter os documentos em ordem. Rheya seria detida no primeiro posto para provar sua identidade. Seríamos separados e Rheya imediatamente se trairia. A estação era o único lugar onde podíamos viver juntos. Rheya saberia disso? Certamente. Alguém lhe dissera? Sim, provavelmente…

Certa noite, ouvi Rheya levantar de mansinho. Quis segurála — no escuro e no silêncio, acontece-nos por vezes livrarmonos por um momento do desespero, fugir à tortura pelo esquecimento. Rheya não havia notado que eu tinha acordado. Quando estendi o braço, ela já estava em pé. Caminhou, descalça, para a porta.

Senti uma angústia indefinida. Sem ousar levantar a voz, falei:

— Rheya… Sentei-me na cama. Rheya havia saído, deixando a porta entreaberta. Uma fina réstia de luz cortava obliquamente o quarto. Pensei ter ouvido cochichos. Rheya falava com alguém… com quem?

Pulei da cama, mas um terror louco apossou-se de mim e minhas pernas fraquejaram. Prestei atenção, mas não ouvi mais nada. Tornei a cair sobre os lençóis. O sangue latejava na minha cabeça. Comecei a contar. Quando cheguei a mil, a folha da porta se abriu. Rheya entrou, fechou silenciosamente a porta e ficou imóvel durante um momento. Procurei respirar normalmente.

— Kris! — ela falou baixinho. Não respondi.

Rheya deslizou com rapidez para debaixo dos lençóis e se estendeu a meu lado, procurando não encostar em mim. Não me mexi. Comecei a formular mentalmente uma série de perguntas, mas recusei-me a ser o primeiro a falar. Durante quanto tempo fiquei assim, fazendo perguntas mudas? Talvez uma hora. Depois adormeci.

A manhã foi igual a tantas outras. Eu ficava observando Rheya de modo furtivo. Não notei qualquer mudança em seu comportamento. Depois do almoço, sentamos em frente à grande janela panorâmica. A estação vagava entre nuvens avermelha— Solaris 247 das. Rheya lia um livro. Olhando fixamente para a frente, descobri de repente que, inclinando a cabeça num determinado ângulo, eu via nosso duplo reflexo na vidraça. Tirei a mão do corrimão. Rheya não desconfiou de que eu a estava observando. Atirou-me um olhar e, pela minha posição, pensou evidentemente que eu estava contemplando o oceano. Então inclinou-se para o corrimão e beijou o lugar onde minha mão estivera pousada. Um momento depois, estava lendo outra vez.

— Rheya — perguntei calmamente —, aonde foi você na noite passada?

— Na noite passada? — É.

— Você… você sonhou, Kris, não fui a lugar nenhum.

— Você não saiu?

— Não… você deve ter sonhado. -Talvez… É, devo ter sonhado…

De noite, voltei a falar de nossa viagem, de nossa volta à Terra.

Rheya me interrompeu.

— Não me fale mais dessa viagem, Kris! Não quero mais ouvir falar dela. Você sabe muito bem…

— O quê?

— Não, nada.

Quando fomos dormir, ela me disse que estava com sede.

— Há um copo de refresco lá na mesa, você quer apanhá-lo? Ela bebeu a metade do copo e depois estendeu-o para mim, mas eu não estava com sede.

Rheya sorriu.

— Beba à minha saúde! Bebi o refresco, que me pareceu um tanto salgado, mas estava pensando em outra coisa.

— Rheya…

Ela acabara de apagar a luz.

— Rheya, já que você não quer falar mais da nossa viagem, falemos de outra coisa!

— Se eu não existisse, você se casaria?

— Não.

— Nunca?

— Nunca.

— Por quê?

— Não sei. Fiquei sozinho durante dez anos e não casei outra vez. Vamos mudar de assunto, querida…

Minha cabeça andava à roda como se eu tivesse bebido vinho demais.

— Não, vamos continuar! E se eu pedisse?

— Para eu casar? Que idéia absurda, Rheya! Não preciso de ninguém a não ser de você!

Ela inclinou-se sobre mim e sua respiração atingiu meus lábios. Abraçou-me com força.

— Diga de outra forma!

— Eu a amo!

Sua cabeça pousou no meu braço e senti que ela chorava.

— Rheya, que é que você tem? — perguntei.

— Nada… nada… nada… — repetiu, cada vez mais baixo. Meus olhos começaram a se fechar.

Fui acordado pela aurora vermelha. Senti a cabeça pesada e o pescoço duro como se as vértebras tivessem sido soldadas. Tinha a língua grossa e a saliva amarga. Que teria me envenenado? Estendi o braço na direção de Rheya, mas minha mão apalpou um lençol frio.

Ergui-me de um salto.

Eu estava só, só na cama, só na cabina. A vidraça curva refletia uma fileira de sóis vermelhos. Pulei para o chão. Cambaleando como um bêbado, agarrando-me aos móveis, cheguei ao armário de porta corrediça. O banheiro estava vazio. O vestíbulo também estava deserto. Não havia ninguém na oficina.

— Rheya!

Sacudindo os braços, corri para todos os lados, gritando por ela. Berrei pela última vez.

— Rheya!

Tive um estrangulamento: eu já conhecia a verdade…

Não me lembro direito do que aconteceu em seguida. Meio nu, corri a estação de ponta a ponta. Se não me engano, fui até mesmo à central de refrigeração, cujos depósitos examinei. Dei murros nas portas aferrolhadas. Afastei-me e depois me atirei contra portas que já me haviam resistido. Despenquei pelas escadas, caí, levantei, precipitei-me para não sei onde, para a frente… Uma parede de vidro deslizou. Eu havia chegado à dupla porta blindada que dava para o oceano. Tentei abri-la. Eu dava gritos, com a esperança de estar sonhando. Havia já um instante que alguém estava a meu lado, agarrando-me, arrastando-me…

Quando dei por mim, estava deitado numa mesa de metal, na pequena oficina. Eu ofegava. Vapores de álcool queimavam minhas narinas e garganta. Minha camisa estava empapada de água gelada e eu tinha os cabelos colados na cabeça.

Snow estava junto do armário de medicamentos, mexendo nos instrumentos e utensílios de vidro, que se chocavam com um barulho insuportável.

Subitamente, vi-o inclinado sobre mim, olhando-me com ar sério.

— Onde está ela?

— Não está aqui.

— Mas… Rheya…

Snow curvou-se mais, aproximou o rosto do meu e disse, pausadamente, claramente:

— Rheya morreu.

— Ela voltará…

Eu não temia a volta dela, desejava-a. Não conseguia entender por que, um dia, eu mesmo havia tentado expulsá-la, por que havia tido tanto medo de vê-la voltar!

Snow deu-me um copo.

— Vamos, beba isto!

estava em pé, dominando-o com a minha estatura. Ele era tão pequeno…

— E você!

— Que história é essa?

— Deixe disso, você sabe de que estou falando! Foi você que ela encontrou na outra noite… e você mandou-a dar-me um soporífero. Que aconteceu a ela? Conte!

Snow meteu a mão no bolso da camisa e tirou um envelope. Arranquei-o das mãos dele. Estava fechado e sem endereço. Rasguei-o e apanhei uma folha de papel dobrada em quatro.

Reconheci a letra grande e irregular, um tanto infantil.

Meu querido, fui eu quem pediu a ele. Ele é bom. Lamento ter sido obrigada a mentir para você. Peço-lhe que me faça um favor, só um, o de ouvi-lo e, principalmente, não se torture. Você foi maravilhoso.

Havia uma última palavra, riscada, mas que pude entender. Ela havia assinado Rheya. Li e reli a carta.

Eu readquirira toda minha lucidez e não ia começar a dar gritos histéricos. Aliás, não tinha mais voz, nem mesmo para gemer.

Finalmente, consegui murmurar:

— Como… Como?

— Depois, Kelvin. Fique calmo!

— Estou calmo. Fale! Como?

— Por aniquilação.

— O aparelho de Roche não convinha. Sartorius construiu outro, um novo desestabilizador. Um aparelho-miniatura, do alcance de poucos metros.

— E ela…

— Ela desapareceu. Um relâmpago e um sopro. Um pequeno sopro de ar, e pronto.

— Um aparelho de pequeno alcance…

— Sim, não tínhamos com que construir um grande. As paredes inclinavam-se para mim. Fechei os olhos.

— Mas… Rheya… ela voltará…

— Não.

— Como você sabe?

— Não, Kelvin, ela não voltará. Você se lembra daquelas asas de espuma que subiam? Desde aquele dia não voltaram.

— Não?

— Não.

— Você matou-a… — falei baixinho.

— Matei… Se você fosse eu, faria outra coisa?

Voltei-lhe as costas e comecei a andar pela oficina. Nove passos rápidos de uma parede à outra. Volta. Outros nove passos, mais depressa ainda.

Parei na frente de Snow.

— Olhe, vamos escrever um relatório. Pediremos uma ligação imediata com o Conselho. Não é difícil. Eles concordarão, têm de concordar. O planeta não continuará submetido à Convenção dos Quatro. Todos os meios serão permitidos. Mandaremos vir geradores de antimatéria. Você acha que existe algum corpo capaz de resistir à antimatéria? Não há! Nada resiste à antimatéria, nada, nada, nada!

Eu estava gritando e as lágrimas me cegavam.

— Você quer destruir o planeta? Por quê?

— Vá embora, me deixe!

— Não, não vou.

— Snow! Olhei-o duramente e sacudi a cabeça.

— Que é que você quer? — prossegui. — Que é que você exige de mim?

Snow recuou para junto da mesa.

— Está bem, escreveremos um relatório. Recomecei a andar.

— Sente-se! — ordenou-me ele.

— Me deixe em paz!

— Há duas coisas diferentes. Em primeiro lugar, os fatos e, em segundo, os desejos.

— E temos de falar disso agora?

— Sim, agora.

— Não me interessa. Entendeu? Suas diferenças não me interessam.

— Enviamos nosso último comunicado há mais ou menos dois meses. Logo antes da morte de Gibarian. Era preciso estabelecer exatamente o processo de aparição…

Peguei o braço dele.

— Vai calar a boca ou não?

— Pode me bater, se quiser, mas não calarei a boca.

Larguei-o.

— Oh, fale à vontade…

— Bem, ouça!… Sartorius tentará esconder certos fatos… tenho quase a certeza…

— E você, não vai esconder nada?

— Não, não agora. Este assunto está acima dos interesses pessoais. Você sabe muito bem que eu… «Ele» deu provas de atividade reflexiva. E capaz de operar uma síntese orgânica no mais elevado nível, uma síntese nunca conseguida por nós. Ele conhece a estrutura, a microestrutura, o metabolismo do nosso corpo…

— De fato… Por que você parou? Ele fez conosco uma série… uma série de experiências. Vivissecção psíquica. Utilizou conhecimentos roubados a nós, sem levar em conta nossas aspirações.

— Kelvin, você não está apresentando fatos nem proposições. Apenas hipóteses. De uma certa maneira, ele levou em conta os desejos escondidos num recanto secreto das nossas mentes. Talvez nos tenha mandado… presentes.

— Presentes! Meu Deus!

Um riso incontrolável me sacudiu e eu urrava de tanto rir.

Snow pegou minha mão.:

— Acalme-se!

Apertei-lhe os dedos e ouvi os ossos estalarem. Impassível, com as pálpebras franzidas, ele enfrentava meu olhar. Afasteime e fui para um canto da oficina.

De rosto para a parede, disse:

— Vou procurar me dominar.

— Hum, claro… compreendo. Que vamos pedir a ele?

— Você é quem sabe… Estou incapaz de me concentrar… Ela disse alguma coisa… antes?

Não, nada. Se você quer minha opinião, temos uma chance a partir de agora.

— Uma chance? Que chance? Uma chance de… Ah… Tornei a encará-lo e subitamente compreendi:

— O contato? Ainda o contato? Você não acha que basta esta casa de loucos? Que é que você quer mais… O contato? Não, não e não, não conte comigo!

— Por que não? — respondeu Snow, calmamente. -Você mesmo, instintivamente e agora mais que nunca, trata-o como a um ser humano. Você o odeia.

— E Você não?

— Não, Kelvin, não… Ele é cego…

— Cego? — repeti. Pensei não ter entendido.

— Ou, melhor, ele «vê» de maneira diferente. Não existimos para ele da mesma maneira que existimos uns em relação aos outros. Nós reconhecemos uns aos outros pelo aspecto do rosto, do corpo… Para ele, essa aparência é uma vidraça translúcida. Ele vai direto ao interior do cérebro.

— Bem, e então? Aonde você quer chegar? Se ele conseguiu recriar um ser humano que existe apenas na minha memória e de tal maneira que seus gestos, sua voz… sua voz…

— Continue! Fale!

— Eu falo… eu falo… A voz… a voz… porque ele é capaz de ler em nós como num livro… Você sabe o que quero dizer?

— Sei, quer dizer que ele poderia se entender conosco.

— Não é evidente?

— Não. Não é nada evidente. Talvez ele use uma fórmula de fabricação não expressa por palavras. Como registro gravado na memória, essa fórmula apresenta-se sob a forma de uma estrutura protéica, comparável a um zoosperma ou a um ovo. No cérebro não há palavras nem sentimentos. A memória do homem é um catálogo redigido em termos de ácidos nucléicos sobre cristais assíncronos de grandes moléculas. «Ele» trouxe à tona a impressão mais profunda, mais isolada, mais «assimilada», sem necessidade de saber o que ela significa para nós. Admitamos que eu seja capaz de reproduzir a arquitetura de uma simetríade, que eu conheça os meios tecnológicos de operar com eficácia… Crio uma simetríade e jogo-a no oceano. Mas não sei por que agi assim, não sei para que ela serve, não sei o que ela significa para ele…

— E — respondi —, talvez você tenha razão. Nesse caso, ele não quer nos fazer mal, nem tenta nos destruir… Sim, é possível. E sem nenhuma intenção…

Meus lábios começaram a tremer. -Kelvin!

— Está bem, não se preocupe! Você é bom e o oceano é bom. Todo mundo é bom. Mas, por quê?… Explique-me! Por que, por que ele fez isso? Que é que você lhe disse… a ela?

— A verdade.

— A verdade, a verdade!… Qual?

— Você sabe muito bem… Venha, vamos escrever o relatório! Venha!

— Espere! Que é que você quer exatamente? Apesar de tudo, você tem a intenção de ficar na estação?

— Sim, quero ficar.



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