Rheya


A OBSTINAÇÃO, uma espécie de raiva muda, mantivera-me em pé ao lado da calculadora. Naquele instante, morto de cansaço, eu não sabia mais abrir uma cama mecânica.

Esqueci de retirar os grampos e pendurei-me na grade dos pés da cama. O leito desabou.

Tirei toda minha roupa, fiz com ela uma bola que joguei longe e deixei-me cair sobre o travesseiro. Nem mesmo me dei ao trabalho de o inflar convenientemente. Adormeci sem apagar a luz.

Quando tornei a abrir os olhos, tive a impressão de haver cochilado alguns minutos. O quarto estava banhado por uma penumbra vermelha. Fazia menos calor. Eu estava me sentindo bem, deitado, com as cobertas afastadas, inteiramente nu. A cortina só cobria metade da janela e lá, defronte de mim, ao lado da vidraça, iluminada pelo sol vermelho, havia alguém sentado. Reconheci Rheya. Usava um vestido de praia, branco, cujo tecido estava esticado no bico dos seios. Tinha as pernas cruzadas e pés descalços. Imóvel, com os braços abertos bronzeados até os cotovelos, olhava-me por entre os cílios escuros. Rheya, com seus cabelos pretos penteados para trás.

Encarei-a durante muito tempo, calmamente. Meu primeiro pensamento foi reconfortante: eu estava sonhando e consciente disso. Não obstante, preferia que ela sumisse. Fechei os olhos e tratei de varrer aquele sonho. Quando tornei a abri-los, Rheya estava sentada ao meu lado. Tinha os lábios entreabertos, como de costume, num gesto de assoviar.

Mas seu olhar era sério. Lembrei-me da véspera, quando fizera aquelas especulações a respeito dos sonhos. Rheya não havia mudado desde o dia em que a vira pela última vez. Tinha, naquela época, dezenove anos. Hoje teria vinte nove. Mas, evidentemente, os mortos não mudam, ficam eternamente jovens. Ela fixava-me com o olhar espantado de sempre. Tive vontade de atirar algum coisa sobre ela. No entanto, apesar de se tratar de um sonho, não tive coragem — mesmo em sonho de maltratar uma morta.

— Coitadinha! Você veio me visitar? — murmurei.

O som da minha voz assustou-me, embora o quarto, Rheya e tudo o mais tivessem uma aparência tão real.

Um sonho em relevo, levemente colorido… Eu via, no chão, uma porção de objetos que não notara na hora de deitar. «Quando acordar», pensei, «verificarei se esses objetos estão mesmo aí ou se, como Rheya, só os vejo em sonho…»

— Você pensa demorar? — perguntei.

Reparei que estava falando baixinho, com a voz de alguém que teme ser ouvido do outro lado da porta. Por que me preocupar, em sonho, com ouvidos indiscretos?

O sol estava acima do horizonte. bom sinal! Eu me deitara num dia vermelho, ao qual devia suceder um dia azul, seguido de outro vermelho. Portanto, não havia dormido quinze horas de uma vez… era um sonho!

Tranqüilizado, olhei Rheya com atenção. O sol desenhava os contornos de sua silhueta. Os raios vermelhos douravam a pele aveludada de sua face esquerda e os cílios projetavam uma sombra no seu rosto. Estava incrivelmente bela e eu, mesmo adormecido, prestava uma enorme atenção, vigiando o movimento do sol, esperando ver aparecer a covinha naquele lugar esquisito, logo abaixo do canto da boca. Todavia, preferia acordar, pois tinha de trabalhar.

Fechei os olhos.

Ouvi um rangido. Imediatamente abri os olhos. Rheya havia sentado na cama, junto de mim. Continuava a olhar-me com ar sério. Sorri-lhe. Ela sorriu de volta e inclinou-se. Beijamo-nos. Um beijo tímido de crianças. Depois beijamonos novamente, desta vez durante muito tempo. Era correto aproveitar-me assim de um sonho? — perguntei-me. Não estava traindo sua memória. Sonhava sempre com ela, só com ela. Aquilo nunca me acontecera… Ficamos em silêncio. Continuei deitado de costas. Quando ela erguia o rosto, eu podia ver suas narinas transparentes, cujo fremir eu havia aprendido a interpretar. Acariciei, com a ponta dos dedos, a parte de trás da sua orelha, onde o sangue afluíra, provocado por meus beijos. Fora então que eu começara a me preocupar? Eu continuava a pensar que era um sonho, mas meu coração se confrangia.

Retesei os músculos para pular da cama. Tinha quase a certeza de que não ia conseguir porque, nos sonhos, nosso corpo entorpecido se recusa, com freqüência, a obedecer.

Não obstante, eu esperava que essa tentativa me arrancasse do sono. Não acordei. Sentei-me, com as pernas pendentes. Não havia solução, tinha de agüentar aquele sonho até o fim… Meu bom humor desaparecera. Eu estava com medo.

— O que é — pigarreei —, o que é que você quer?

Meus pés descalços tateavam o chão à procura de um par de chinelos. Uma aresta afiada atingiu-me um dos pés de forma brutal. Abafei um grito. Pensei, com satisfação, que aquele grito me acordaria e lembrei-me de que não tinha chinelos!

Mas a coisa continuava… Rheya havia recuado. Estava encostada na grade da cama. O pulsar do coração elevava cadenciadamente o vestido sobre seu seio esquerdo.

Rheya me observava com um interesse calmo.

Depressa, um banho! Depois pensei que um banho, em sonho, não interromperia meu sono…

— De onde vem você?

Ela pegou minha mão, com um gesto que eu conhecia muito, atirou-a para o ar, apanhou-a, mexeu em cada dedo e respondeu:

— Não sei. Está zangado?

Era a voz dela, uma voz de entonações profundas, um tanto ausente. Rheya falava sempre assim, com o ar de não se preocupar muito com o que dizia, de estar já pensando em outra coisa. As pessoas a julgavam avoada ou insolente, pois seu olhar não abandonava aquela vaga expressão de espanto.

você?

— Não sei. Cheguei sem problemas. Kris, é importante? Ela continuava a brincar com meus dedos, mas seu rosto contraído não mais participava do brinquedo., -Rheya…

— O que é, meu querido?

— Como sabia onde eu estava?

— Ela refletiu. Um sorriso — Rheya tinha os lábios cor de cereja — descobriu seus dentes.

— Não tenho a menor idéia! Engraçado, não é? Você estava dormindo quando entrei. Não quis acordá-lo. Não quis, porque você fica danado. Você tem um temperamento terrível…

Apertou minha mão com mais força.

— Você esteve lá embaixo?

— Estive, é uma geladeira. Caí fora!

Rheya largou minha mão. Esticou-se com a cabeça para trás e os cabelos jogados para um lado, olhando-me com aquele sorriso que havia me irritado, antes de me seduzir.

— Mas… Rheya… mas… gaguejei. — Inclinei-me para ela e suspendi a manga do vestido. Junto e acima da cicatriz em forma de flor deixada pela vacina antivariólica, havia um ponto vermelho, a marca de uma injeção. Não me surpreendeu (instintivamente eu me empenhava em sondar o inverossímil para reunir os farrapos de uma verdade coerente) mas, apesar disso, senti uma vertigem. Coloquei o dedo naquele ponto vermelho, objeto de meus pensamentos havia tantos anos, com o qual sonhava com tanta freqüência. Acordava imediatamente com um gemido e me encontrava sempre na mesma posição, dobrado em dois entre os lençóis amarfanhados, como a encontrara, já quase fria. Quando eu dormia, procurava reviver o que ela vivera, como se, através do tempo, esperasse obter seu perdão, fazer-lhe companhia no correr dos últimos minutos, naqueles em que ela sentia o efeito da injeção e em que era invadida pelo terror.

Ela, que temia um simples arranhão, que não suportava a dor nem a visão do sangue, havia cometido aquela ação terrível de forma deliberada, deixando para mim apenas algumas palavras rabiscadas. Eu havia guardado seu bilhete na carteira, hoje um papel amarelado, com dobras antigas, do qual jamais me separava. Não tinha coragem.

Quantas vezes eu a imaginara escrevendo aquelas palavras, preparandose para agir…

tentei me convencer de que ela havia montado uma peça, que quisera apenas me assustar, mas que a dose, por causa de um engano, fora forte de maís, Todos me sugeriram que havia sido isso o que acontecera ou que se tratara de uma decisão precipitada, provocada por uma depressão, uma depressão súbita. Mas todos ignoravam o que eu havia dito a ela cinco dias antes. Ignoravam que, para feri-la mais cruelmente, eu havia carregado minhas coisas e que ela, no momento em que eu fechava as malas, me perguntara com calma: «Você sabe o que isso significa?» Eu fingi não compreender, embora tivesse compreendido perfeitamente, mas pensei que ela não teria coragem. Aliás, disse-lhe isso… E agora ela estava deitada atravessada na cama e me olhava com atenção, como se não soubesse que fora eu que a matara.

— Sim e então? — Rheya perguntou.

O sol vermelho se refletia em seus olhos. O quarto inteiro estava vermelho. Rheya olhou com curiosidade para o braço.que eu havia observado tanto e quando voltei à posição primitiva, ela pousou a face fresca e lisa na palma da minha mão.

— Rheya… é impossível… — murmurei.

— Silêncio!

— Onde estamos, Rheya?

— Em casa.

— Onde fica?

Um olho entreabriu-se e fechou-se imediatamente. Os longos cílios fizeram cócegas na palma da minha mão.

— Kris!

— Hem?

— Estou bem.

Levantei a cabeça e vi uma parte da cama refletida no espelho da pia. Vi também os cabelos de Rheya e meus joelhos nus. Puxei, com a ponta do pé, um dos objetos informes que tirara da caixinha. Apanhei-o com a mão livre. Tinha uma haste aguçada como uma agulha. Coloquei a ponta contra minha pele e enterrei-a ao lado de uma pequena cicatriz rosada. A dor percorreu todo meu corpo. Olhei o sangue escorrer pela parte interna da coxa, gotejando sem barulho no chão.

Para que, para que… Fui assaltado por pensamentos terríveis, pensamentos claramente formulados. Eu já não dizia mais: «É um sonho.» Já não acreditava que fosse um sonho. Agora eu me dizia: «Tenho de me defender.»

Examinei suas costas, suas ancas modeladas pelo tecido claro, os pés descalços que balançavam… Inclinei-me, peguei com delicadeza um tornozelo e depois passei o dedo pela planta de seus pés.

A pele era lisa como a de um recém-nascido.

Eu sabia, não mais duvidava de que ela não era Rheya e tinha quase a certeza de que ela própria, ignorava isso.

Rheya mexeu o pé e um riso silencioso arredondou seus Wssculos.

— Pare — murmurou ela.

Retirei suavemente a mão que sustentava seu rosto e levantei-me. Vesti-me com rapidez.:

Rheya havia se sentado e me olhava.

— Onde estão suas coisas? — perguntei. Imediatamente lamentei ter feito a pergunta. -Minhas coisas?

— Você só tem esse vestido?

A partir desse momento, comecei a participar do jogo de forma lúdica. Procurei adotar um comportamento despreocupado, indiferente, como se tivéssemos nos separado ontem… Não, como se nunca tivéssemos nos separado!

Rheya levantou-se. com um gesto habitual, vivo e firme, puxou a saia, a fim de desamarrotá-la. Minhas palavras a haviam perturbado, mas Rheya continuava calada.

Olhou pela primeira vez em volta do quarto, com ar curioso e observador. Depois, perplexa, respondeu:

— Não sei… — entreabriu a porta do armário. -Talvez aqui!

— Não, aí só há macacões.

Achei um aparelho elétrico ao lado da pia e comecei a fazer a barba, sem despregar os olhos dela por um instante sequer.

Rheya ia e vinha, mexendo em tudo. Finalmente, dando uma olhada para fora da janela, aproximou-se de mim.

— Kris, tenho a impressão de que aconteceu alguma coisa… Interrompeu-se. Desliguei o barbeador e fiquei esperando.

— Tenho a impressão de haver esquecido alguma coisa — continuou ela —, de haver esquecido muita coisa… Só me lembro de você… eu… eu não me lembro de mais nada.

Eu a ouvia, procurando conservar uma aparência impassível. — Terei… terei estado doente? — perguntou.

— Esteve… num certo sentido. Sim, você esteve meio doente.

— Ah, isso explica minha falta de memória, é claro. Rheya se acalmara. Era impossível descrever o que eu sentia.

Quando eu a observava indo e vindo, sorridente ou séria, falando ou calada, sentada ou levantando, meu terror cedia diante da convicção de ter Rheya diante de mim, mesmo nos momentos em que eu corrigia meu julgamento e ela me parecia estilizada, reduzida a umas poucas expressões, a alguns gestos, a alguns movimentos característicos.

Rheya colou-se em mim, com os punhos cerrados pressionando meu peito, na altura do pescoço.

— Onde estamos nós dois? Vai tudo bem ou mal?

— Melhor impossível.

Ela esboçou um sorriso. — Quando você responde assim, é porque as coisas vão mal.

Retorqui precipitadamente:

— Que idéia! Rheya, meu bem, preciso sair já. Fique aqui me esperando!

E acrescentei, porque começava a sentir uma fome enorme:

— Você não quer comer?

— Comer? — Rheya sacudiu a massa ondulante dos cabelos. -Não… Tenho de esperar você?… Por muito tempo?

— Uma horinha, vou com você.

— Não pode vir. Tenho de trabalhar.

— vou com você.

Ela havia mudado, não era mais a Rheya que eu conheci. A outra não impunha sua presença, jamais insistia.

— É impossível, minha querida…

Olhou-me da cabeça aos pés. De repente, pegou na minha mão. Durante muito tempo fiquei passando a mão no seu braço morno e roliço. Eu a acariciava, mesmo contra minha vontade. Meu corpo reconhecia o dela, meu corpo a desejava, meu corpo me atraía para ela, a despeito do raciocínio, da reflexão, do medo.

Procurando me manter calmo, repeti:

— Rheya, é impossível. Você tem de ficar aqui. Respondeu com uma só palavra:

— Não.

— Por quê?

— Não… não sei.

Olhou em volta e depois encarou-me.

— Não posso — acrescentou, num sussurro.

— Mas por quê?

Rheya procurava uma resposta e quando a descobriu foi como se tivesse recebido uma revelação.

— Me parece que devo ver você sempre!

O tom firme prestava-se mal à confissão de um sentimento. A coisa era bem outra. Essa constatação modificou brutalmente, embora não de maneira aparente, a natureza do meu abraço.

Eu a tinha nos braços. Olhava-a nos olhos. Insensivelmente, com um movimento instintivo, comecei a puxar suas mãos para trás e, quando as juntei, meu olhar percorreu o quarto. Precisava de um lugar onde amarrar-lhe as mãos.

Seus cotovelos se chocaram, seguidos de um poderoso movimento de afastamento. Só resisti um segundo. Fiquei arqueado para trás e com as pontas dos pés mal tocando o chão. Mesmo um atleta não teria conseguido se libertar. Mas Rheya endireitou o corpo e colocou os braços no lugar. Seu rosto, fracamente iluminado por um sorriso incerto, não havia participado da luta.

Rheya me olhava, com uma curiosidade calma, como no começo, quando eu acordara. Como se minha tentativa desesperada não a tivesse atingido. Como se não tivesse percebido nada. Como se ignorasse minha crise de pânico. Em pé na minha frente, ela esperava séria, passiva, um pouco espantada.

Deixando Rheya no meio do quarto, fui até a pequena prateleira sobre a pia. Eu era vítima de uma cilada absurda e tinha de sair dela, custasse o que custasse! Se me perguntassem o que estava acontecendo comigo e o que significava tudo aquilo, eu seria incapaz de pronunciar três palavras. Mas naquela altura já sabia que minha situação era idêntica à de outros habitantes da estação, que tudo o que eu vivera, aprendera ou entrevira fazia parte de um todo, aterrador e incompreensível. Todavia, naquele instante preciso, eu me dedicava unicamente a encontrar um truque, a inventar um meio de fuga. Sem me voltar, sentia o olhar de Rheya. Havia, acima da prateleira, uma pequena farmacia embutida na parede. Examinei apressadamente o que havia dentro dela. Encontrei entre os medicamentos um vidro de comprimidos para dormir. Abri a tampa e coloquei quatro comprimidos — dose máxima — dentro de um copo. Eu agia às claras, sem procurar dissimular meus gestos e ações. Por quê? Não pensei nisso. Enchi o copo de água fervendo.

Dissolvidos os comprimidos, caminhei para Rheya, que continuava de pé.

Ela me perguntou em voz baixa:

— Você está zangado?

— Não. Beba isto!

Eu previra, inconscientemente, que ela me obedeceria. De fato, Rheya pegou o copo em silêncio e bebeu de uma só vez o líquido fervente. Coloquei o copo vazio em cima de um tamborete e fui me sentar num canto do quarto, entre o armário e a estante.

Rheya foi para perto de mim. Sentou no chão, como costumava fazer, com as pernas dobradas sob o corpo e, com outro movimento habitual, atirou os cabelos para trás.

Eu não me enganara: não era ela. Apesar disso, reconhecia seus menores gestos. O pavor me sufocava. E o pior era que eu devia enganar, devia fingir que ela era Rheya, embora ela mesma, de boa-fé, pensasse ser Rheya. Se ainda pudesse haver alguma dúvida, agora eu tinha certeza!

Ela apoiou-se nos meus joelhos, com o cabelo caindo sobre minha mão imóvel. Ficamos um longo tempo assim. De vez em quando eu olhava o relógio. Passou-se meia hora.

Os comprimidos deviam começar a fazer efeito. Rheya murmurou qualquer coisa.

— Que é que você disse?

Ela não respondeu.

Atribuí seu silêncio ao torpor do sono. Mas, na verdade, eu duvidava da eficácia dos comprimidos. Por quê? Também não tinha resposta para essa pergunta. Provavelmente porque meu subterfúgio me parecia fácil demais.

Sua cabeça deslizou devagar sobre meus joelhos, com os cabelos escuros cobrindo-lhe inteiramente o rosto. Rheya respirava regularmente. Havia adormecido. Inclinei-me a fim de levantála e levá-la para a cama. Abriu de imediato os olhos, segurou-me a nuca e explodiu numa risada aguda.

Fiquei estatelado. Rheya estourava de alegria. com os olhos entrefechados, observava-me com ar ao mesmo tempo ingênuo e malicioso. Tornei a sentar-me ereto, espantado, desamparado. Ela foi sacudida por um último acesso de riso. Depois aninhouse entre meus joelhos.

Perguntei, com voz sem timbre:

— Por que você está rindo?

Seu rosto tornou a exprimir um espanto preocupado. Não havia dúvida de que ela gostaria de me dar uma explicação honesta. Esfregou o narizinho e suspirou.

— Não sei — disse ela, por fim, sinceramente surpresa. — Estou me portando como uma idiota, não é? Mas você também está com o ar de um refinado idiota, afetado como…

Como Pelvis…

Pensei ter ouvido mal.

— Como quem?

— Como Pelvis — sabe? — o gordo…

Rheya não podia em hipótese alguma conhecer Pelvis, nem me ter ouvido falar nele, pela simples razão de ter ele voltado de uma expedição três anos depois da morte dela. Eu não o conhecia antes e ignorava, portanto, que ele tinha a tendência inveterada, quando presidia as reuniões do Instituto, a prolongar indefinidamente as sessões. Chamava-se, aliás, Pelle Villis e até sua volta eu ignorava que, por contração, fora apelidado de Pelvis.

Rheya apoiou os cotovelos nos meus joelhos e encarou-me. Coloquei as mãos sobre seus braços e subi pelos ombros até o começo do pescoço. O vestido decotado mostrava a pele, que palpitava sob meus dedos. Poderia parecer que eu ia acariciá-la. Aliás, pelo seu olhar, ela também interpretava dessa maneira o toque de minhas mãos.

Na realidade, verifiquei mais uma vez que seu corpo era morno, um corpo humano comum, com músculos, ossos, articulações. Encarando-a com firmeza, tive o tremendo desejo de apertar bruscamente os dedos.

Lembrei-me, de súbito, das mãos ensangüentadas de Sriow. Larguei-a.

— Que jeito de me olhar… — disse Rheya, calmamente.

Meu coração batia tanto que não pude falar. Fechei os olhos.

No mesmo instante preparei um plano de ação, de ponta a ponta e com todos os detalhes. Sem perder um instante, levantei-me.

— Tenho de ir, Rheya. Se você quiser mesmo vir comigo, pode.

— Ótimo. «Ela se levantou de um pulo.

Abri o armário, escolhi, entre as vestimentas coloridas, um macacão para cada um e perguntei:

— Por que você está descalça? Ela respondeu, titubeante:

— Não sei… acho que atirei os sapatos por aí.

Não insisti.

— Você precisa tirar o vestido para botar isto.

— Um macacão… por quê?

Ela quis tirar o vestido, mas aconteceu uma coisa curiosa: era impossível desabotoar uma roupa desprovida de botões! Os botões vermelhos do corpete eram só enfeites. Não havia um zíper ou qualquer outro tipo de fecho. Rheya sorria, confusa.

Como se eu nunca tivesse feito outra coisa na vida, apanhei no chão uma espécie de escalpelo e cortei o tecido em suas costas, da gola à cintura. Rheya pôde tirar o vestido pela cabeça.

Depois de ter posto o macacão, um pouco grande, e no momento de sairmos, Rheya perguntou:

— Vamos voar? Você também, não é?

Contentei-me em sacudir a cabeça. Temia encontrar Snow. Mas o vestíbulo estava deserto e a porta que dava para a sala do rádio estava fechada. — Um silêncio de morte, sempre o silêncio, pairava sobre o espaçoporto. Rheya acompanhava atentamente meus movimentos. Abri uma escotilha e examinei o foguete. Inspecionei, um após outro, o microrreator, os comandos e os difusores. Depois, retirei a cápsula vazia da base inclinada sob a cúpula em forma de funil, e dirigi para a rampa a carreta elétrica que transportava o projétil a ser disparado.

Eu havia escolhido um pequeno veículo, utilizado para o intercâmbio entre a estação e o satelóide, que só transportava pessoas em ocasiões excepcionais, pois não podia ser aberto pelo lado de dentro. Escolhera-o exatamente em função do meu plano. Claro, não tinha a intenção de lançar o foguete, mas simulei os preparativos de uma partida real. Rheya, que me acompanhara tantas vezes em minhas viagens, conhecia alguma coisa de manobras preliminares. Verifiquei ainda, no interior do pequeno módulo, o bom funcionamento da climatização e da entrada de oxigênio. Liguei o circuito central e as lâmpadas de controle se acenderam. Saí e disse para Rheya, que estava ao pé da escada:

— Entre!

— Entrarei depois. Tenho de fechar a escotilha atrás de nós.

Ela não me deu a impressão de estar desconfiando da tramóia. Quando desapareceu no interior, meti a cabeça na abertura e perguntei:

— Você está bem instalada?

— Ouvi um «estou» abafado por causa da exigüidade da cabina. Abaixei-me e, com um só impulso, fiz cair a tampa da escotilha.

Corri os dois ferrolhos. com a chave-inglesa, apertei os cinco parafusos de segurança.

O charuto afilado erguia-se, vertical, como se de fato fosse voar através do espaço. Nenhum perigo ameaçava a prisioneira. Os reservatórios de oxigênio estavam cheios e o módulo continha alimentos. Aliás, eu não tinha a intenção de mantê-la presa por tempo indefinido.

Desejava desesperadamente duas horas de liberdade, a fim de poder me concentrar nas decisões a tomar e elaborar com Snow uma tática em comum.

No instante em que eu estava apertando o penúltimo parafuso, senti vibrar o tripé que sustentava a base do foguete. Pensei ter abalado o suporte ao girar minha pesada chave com violência.

Quando, porém, recuei alguns passos, vi um espetáculo que preferia não ter de contemplar uma segunda vez.

O foguete inteiro tremia, sacudido do interior. E que sacudidas! Um robô de aço não teria conseguido imprimir aquele tremor convulsivo a uma massa de oito toneladas.

No entanto, na cabina do veículo só havia uma mocinha graciosa, uma mocinha de cabelos pretos.

O reflexo das luzes tremia sobre o casco polido do foguete.

Eu não ouvia as batidas. Reinava um silêncio absoluto no interior do projétil. Mas os pés amplamente afastados da grande base vibravam como cordas. O ritmo dos solavancos era tal que temi ver o andaime inteiro desmoronar.

Torci o último parafuso com mão trêmula, atirei a chave longe e pulei para o chão. Recuei devagar e vi que os amortecedores, construídos para resistir a uma pressão continuada, dançavam furiosamente. Pareceu-me que o casco do foguete estava ficando enrugado.

Pulei como um louco para o painel de telecomando. Empurrei para cima, com as duas mãos, a alavanca de ligação do reator. Então o alto-falante ligado com o interior do foguete deixou escapar um som penetrante. Não um grito, mas um som que não se parecia com a voz humana. Apesar disso, distingui confusamente meu nome, repetido inúmeras vezes: «Kris! Kris! Kris!»

Atirei-me tão violentamente sobre os comandos, com movimentos tão desordenados, que o sangue começou a escorrer dos meus dedos esfolados. Uma luz azul, como uma aurora pálida, iluminou as paredes. Turbilhões de poeira gasosa apareceram em torno da base de lançamento. A poeira se transformou numa coluna de fagulhas violentas e os ecos de um poderoso rugido sobrepuseram-se a todos os outros ruídos. Três colunas de fogo, logo confundidas numa só, ergueram o foguete, que passou pela abertura da cúpula. Um sulco fumegante ondulou e morreu. Os protetores tornaram a cobrir a boca do poço. Os ventiladores automáticos começaram a aspirar a fumaça sufocante que rodopiava pela sala.

Minha mente só veio a reconstituir tudo isso mais tarde. Na verdade, não sei direito o que vi. Agarrado ao painel de comando, com o rosto pegando fogo, com os cabelos queimados, réspirei aos tragos o ar acre, fedendo a cinza misturada com os detritos da ionização. Eu havia fechado de forma instintiva os olhos no momento do lançamento, mas o flamejar penetrara nas minhas pálpebras. Durante certo tempo, vi apenas espirais pretas, vermelhas, douradas, que se afastavam progressivamente. Os ventiladores continuavam a gemer. A fumaça, a névoa, a poeira se dissipavam.

Vi a tela esverdeada do radar. Manipulando apressadamente os botões graduados, comecei a procurar o foguete. Quando o enquadrei, ele já tinha ultrapassado a atmosfera.

Nunca eu havia lançado um projétil de forma tão aberrante e cega, sem me preocupar em regular a velocidade e a direção. Achei que o mais simples era colocar o foguete em órbita circular em torno de Solaris, a mais ou menos mil e quinhentos quilômetros de altura. Eu poderia, então, cortar os propulsores, cujo empuxo eu ignorava.

Temia uma catástrofe de conseqüências incalculáveis. Uma órbita de mil quilômetros era estacionaria. Confirmei, consultando o quadro. Para dizer a verdade, aquilo não representava nenhuma garantia, mas eu não tinha outra saída.

Não tive coragem de ligar o alto-falante, cortado logo após o lançamento. Não, não queria me expor a ouvir de novo aquela voz horrível, que nada mais tinha de humano.

Considerava-me no direito de pensar que havia vencido os simulacros. Acima das aparências, encontrei Rheya, a verdadeira Rheya. Levando em conta sua lembrança, a hipótese de loucura significava, efetivamente, uma libertação.

Deixei o espaçoporto à uma hora.



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