Uma noite, muito tarde, estávamos deitados, exaustos. A cabeça de Eri, vira Ja para um lado, descansava na curva do meu braço. Levantei os olhos para a janela aberta e vi as estrelas nos espaços entre as nuvens. Não havia vento, a cortina pendia imóvel como um pálido fantasma, mas uma onda desolada avançou do vasto oceano e eu ouvi o longo ribombar que a anunciou e depois o furioso rugido da rebentação na praia. Seguiram-se vários momentos de silêncio e de novo a água invisível investiu contra a praia nocturna. Mas eu mal prestava atenção àquele recordar firme e repetido da minha presença na Terra, pois os meus olhos estavam fixos no Cruzeiro do Sul, do qual Beta fora a nossa estrela guia. Todos os dias me orientava por ela. automaticamente, com os pensamentos noutras coisas. Conduzira-nos sem falhas, impecavelmente, como um farol que nunca se apagava no espaço. Quase sentia nas mãos as pegas metálicas que movimentava para colocar o ponto luminoso, distinto na escuridão, no centro do campo de visão, com a orla de borracha macia do aparelho ocular encostado à testa e às faces. Beta. uma das estrelas mais distantes, quase não se modificou quando chegámos ao nosso destino. Brilhava com a mesma indiferença. embora o Cruzeiro do Sul tivesse desaparecido havia muito para nós. porque nos lançáramos profundamente nos seus braços. Depois, aquele ponto de luz branca, aquela estrela gigante, já não era o que parecera no princípio: um desafio. A sua imutabilidade revelava o seu verdadeiro significado: que era uma testemunha da nossa passagem, da indiferença do vazio do Universo — uma indiferença que ninguém é, nunca, capaz de aceitar.
Ma.-, naquele momento, ao tentar ouvir o som da respiração de Eri entre os bramidos do Pacífico, senti-me incrédulo. Disse para comigo, silenciosamente: «É verdade, é verdade, estive ali». Mas o meu espanto permaneceu. Eri estremeceu e eu comecei a afastar-me. para lhe dar mais espaço, mas de súbito senti o seu olhar posto em mim.
— Não estás a dormir? — perguntei, num murmúrio, e inclinei-me para tocar os seus lábios, mas ela colocou as pontas dos dedos na boca.
Deixou-os ficar um momento e depois desceu-os ao longo da clavícula até ao peito, apalpou a cavidade dura entre as minhas costelas e comprimiu-a com a palma da mão.
— Que é isto? — sussurrou.
— Uma cicatriz.
— Que aconteceu?
— Tive um acidente.
Calou-se e eu senti-a a olhar para mim. Levantou a cabeça. Os seus olhos eram só escuridão, sem o mínimo brilho. Eu via o contorno do seu braço, a mover-se ao ritmo da respiração.
— Por que não me dizes nada?
— Eri…
— Por que não queres falar?
— Acerca das estrelas?
Compreendi de súbito. Ela calou-se e eu fiquei sem saber que dizer.
— Pensas que eu não compreenderia?
Olhei-a atentamente, no escuro, como se o rugido do oceano fluísse e refluísse através do quarto. Não sabia como explicar-lhe.
— Eri…
Tentei tomá-la nos braços, mas ela libertou-se e sentou-se na cama.
— Não és obrigado a falar se não quiseres. Mas diz-me ao menos porquê.
— Não sabes? Não sabes realmente?
— Agora, talvez. Querias… poupar-me?
— Não. Tenho simplesmente medo.
— De quê?
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— Não sei bem. Não quero desenterrar tudo. Isso não significa que negue alguma coisa. De resto, seria impossível. Mas falar a esse respeito significaria — ou assim me parece — fechar-me dentro do que se passou. Isolado de toda a gente, de tudo, do que é… o presente.
— Compreendo — disse serenamente.
A mancha branca do seu rosto desapareceu; baixara a cabeça.
— Pensas que não sei apreciar.
— Não, não — tentei interrompê-la.
— Espera, agora é a minha vez. O que penso a respeito da astronáutica e o facto de que jamais deixaria a Terra, são uma coisa. Mas não têm nada a ver contigo e comigo. Embora na realidade tenham, pois estamos juntos. De outro modo não estaríamos, nunca. Para mim, és tu. É por isso que gostaria… mas não és obrigado. Se é como dizes, se sentes assim.
— Eu digo-te.
— Mas não hoje.
— Hoje.
— Deita-te.
Deixei-me cair nas almofadas. Ela foi em bicos de pés à janela, uma brancura na escuridão, e correu a cortina. As estrelas desapareceram e ficou apenas o rugido lento do Pacífico, a voltar repetidamente, com uma persistência monótona. Eu não via praticamente nada. O movimento do ar denunciou os passos dela e a cama afundou-se um pouco.
— Viste alguma vez uma nave do tipo do Prometheus!
— Não.
— É grande. Na Terra pesaria mais de trezentas mil toneladas.
— E vocês eram tão poucos?
— Éramos doze: Tom Arder, Olaf, Ame, Thomas— os pilotos, incluindo eu — e os sete cientistas. Se pensas que aquilo estava vazio, enganas-te. A propulsão ocupava nove décimos da massa. Fotoagregados. Armazenagem, provisões, unidades de reserva. O espaço para viver era na verdade pequeno. Cada um de nós tinha uma cabina, além dos espaços comuns. Na parte média do corpo, o centro de comando, os pequenos foguetões de desembarque e as sondas ainda mais pequenas, para recolher amostras da coroa…
— E tu estiveste sobre Arcturus numa delas?
— Estive. E o Arder também.
— Por que não voaram juntos?
— Num foguetão? É mais arriscado desse modo.
— Mais arriscado como?
— Uma sonda é um sistema de arrefecimento, uma espécie de refrigerador voador. Só tem espaço suficiente para nos sentarmos. Sentamo-nos dentro de uma cápsula de gelo. O gelo funde-se no escudo e volta a congelar nos tubos. Os compressores de ar podem ser danificados. Basta um momento apenas, porque no exterior a temperatura é de dez ou doze mil graus. Quando os canos param num foguetão de dois homens, são dois homens que morrem. De outro modo, é só um. Compreendes?
— Compreendo.
Colocou a mão naquela parte insensível do meu peito.
— E isto… aconteceu lá?
— Não, Eri. Queres que te conte?
— Está bem.
— Mas não penses… Ninguém sabe a esse respeito.
— Isto?
A cicatriz pareceu regressar à vida sob o calor dos seus dedos.
— Sim.
— Como é possível? E o Olaf?
— Nem mesmo o Olaf. Ninguém sabe. Eu menti-lhes, Eri. Agora tenho de te dizer a ti, já que comecei. Eri… deu-se no sexto ano. Regressávamos, mas nas regiões enevoadas não é possível movimentar-nos depressa. É um espectáculo magnificente. Quanto mais velozmente a nave viaja, tanto mais forte é a luminescência da nuvem. Tínhamos uma cauda atrás de nós — não como as dos cometas, era mais uma aurora polar, ténue aos lados, profundamente mergulhada no céu, na direcção de Alpha Eridanus, ao longo de milhares e milhares de quilómetros… O Arder e o Ennesson já tinham perecido, nessa altura. O Venturi também morrera. Eu acordava às seis da manhã, quando a luz mudava de azul para branco. Ouvi o Olaf falar aos comandos. Localizara qualquer coisa interessante. Desci. O radar mostrou um ponto, ligeiramente fora do rumo. Thomas apareceu também e perguntámo-nos o que poderia ser. Era grande de mais para ser um meteoro e, de resto, os meteoros nunca aparecem isolados. Reduzimos a velocidade, o que acordou os restantes. Lembro-me de que, quando se nos reuniram, o Thomas disse que tinha de ser uma nave. Brincávamos muitas vezes desse modo. Pode haver no espaço outras naves de outros sistemas, mas dois mosquitos soltados em extremidades opostas da Terra têm maiores probabilidades de se encontrar. Entretanto, alcançáramos uma aberta na nuvem e a fria poalha nebulosa tomou-se tão dispersa que podíamos ver a olho nu as estrelas de sexta grandeza. Afinal, o ponto era um planetóide. Qualquer coisa como Vesta. Um quarto de bilião de toneladas ou talvez mais. Extraordinariamente regular, quase esférico, o que é raro. Dois miliparsecs ao largo da proa. Estava em movimento e nós seguimo-lo. Thurber perguntou-me se nos podíamos aproximar mais. Respondi-lhe que nos podíamos aproximar um quarto de miliparsec.
«Aproximámo-nos. Visto ao telescópio parecia um porco-espinho, uma bola eriçada de espinhos, Uma excentricidade própria de rfiuseu. Thurber começou a discutir com Biel a respeito da sua origem, se era ou não tectónica. Thomas interveio, para dizer que isso não se podia determinar. Não haveria nenhuma perda de energia; nem sequer começáramos a acelerar. Voaríamos até lá, recolheríamos alguns espécimes e regressaríamos. Gimma hesitou. O tempo não constituía nenhum problema. Tínhamos algum a mais. Por fim, concordou. Sem dúvida por eu estar presente, apesar de não ter aberto a boca. Talvez até por isso. As nossas relações tinham-se tornado… Mas essa é outra história. Parámos. Uma manobra deste género leva tempo e, entretanto, o planetóide afastou-se, mas nós tínhamo-lo no radar. Eu estava preocupado, porque a partir do momento em que iniciáramos o regresso só tivéramos problemas. Avarias que não sendo graves eram no entanto difíceis de consertar e que aconteciam sem qualquer razão aparente. Não sou supersticioso, mas acredito em séries. No entanto, não tinha nada a argumentar contra a ida dele. Talvez tenha parecido infantil, mas verifiquei pessoalmente o motor do Thomas e disse-lhe que tivesse cuidado com a poeira.
— Com o quê?
— A poeira. Compreendes, na região de uma nuvem fria os planetóides actuam como aspiradores. Removem a poeira do espaço no seu caminho, o que se prolonga durante um longo período de tempo. A poeira assenta em camadas que podem duplicar o tamanho do planetóide. A rajada de um jacto ou até um passo pesado bastam para provocar uma nuvem de poeira turbilhonante, que paira sobre a superfície. Pode não parecer grave, mas não se consegue ver nada. Eu disse-lho. Mas ele sabia-o tão bem como eu. Olaf lançou-o pelo lado da nave e eu fui para a navegação e comecei a guiá-lo. Vi-o aproximar-se do planetóide, manobrar, virar o foguetão e descer para a superfície, como que suspenso de uma corda. Depois, claro, perdi-o de vista. Ma isso foi cinco quilómetros…
— Viram-no no radar?
— Não, no sistema óptico; quer dizer, por telescópio. Infravermelho. Mas eu pude falar o tempo todo com ele. Pela rádio. Precisamente quando estava a pensar que havia muito tempo não via o Thomas fazer uma aterragem tão cuidadosa — no regresso tomáramo-nos todos cuidadosos —, vi um pequeno clarão e uma mancha negra começou a alastrar através da superfície do planetóide. Gimma, que estava a meu lado, gritou. Pensou que Thomas, para travar no último momento, tinha batido na chama. Trata-se de uma expressão que usamos. Faz-se o motor ter uma breve explosão, mas, naturalmente, não em semelhantes circunstâncias. E eu sabia que o Thomas seria incapaz de fazer tal coisa. Tinha de ser um relâmpago.
— Um relâmpago? Lá?
— Sim. Qualquer corpo que se desloque a velocidade elevada através de uma nuvem acumula carga, electricidade estática, devido ao atrito. Havia uma diferença de potencial entre o Prometheus e o planetóide. Podia ser de biliões de vóltios. Ou até mais. Quando Thomas aterrou, saltou uma centelha. Foi esse o clarão que vimos. E por causa do calor súbito a poeira subiu e num instante toda a superfície ficou coberta por uma nuvem. Não conseguíamos ouvi-lo. O seu rádio só emitia estalidos. Eu estava furioso, principalmente comigo próprio, por ter subestimado as circunstâncias. O foguetão tinha condutores especiais de relâmpagos em garfo, e a carga deveria ter-se transformado sem problemas em fogo-de-santelmo. Mas não transformou. Era excepcionalmente potente. Gimma perguntou-me quando calculava que a poeira assentaria. Thurber não perguntou; era claro que levaria dias.
— Dias?
— Sim, porque a gravidade era baixíssima. Se largássemos uma pedra, 164
levaria horas a cair antes de atingir o chãô. Imagina quanto mais tempo seria preciso para que a poeira assentasse, depois de ter sido atirada a cem metros de altura. Disse a Gimma que fosse tratar da sua vida, pois teríamos de esperar.
— E não se podia fazer nada?
— Não. Se eu pudesse ter a certeza de que o Thomas ainda se encontrava dentro do foguetão, teria corrido o risco e voltado o Prometheus. chegado junto do planetóide e atirado a poeira para todos os cantos da galáxia. Mas não podia ter a certeza. E encontrá-lo? A superfície do planetóide tinha uma área igual, sei lá, à da Córsega. Além disso, com a nuvem de poeira, era possível passar a pouca distância dele e não o ver. Só havia uma solução, e essa estava nas mãos dele. Podia ter levantado voo e regressado.
— Não o fez?
— Não.
— Sabes porquê?
— Calculo. Teria tido de levantar voo às cegas. Eu podia ver que a nuvem não chegava a atingir um quilómetro acima da superfície, mas ele ignorava-o. Tinha medo de chocar com alguma saliência ou com uma rocha. Podia ter aterrado no fundo de alguma garganta funda. Por isso, deixámo-lo ficar ali um dia, dois dias… Ele tinha oxigénio e provisões para seis. Rações de emergência. Ninguém estava em situação de fazer nada. Nós andávamos de um lado para o outro e pensávamos em maneiras de tirar Thomas daquela complicação. Emissores. Diferentes comprimentos de onda. Até lançámos foguetes luminosos. Mas não deram resultado, porque a nuvem era negra como um túmulo. Um terceiro dia e uma terceira noite. As nossas medições demonstravam que a nuvem estava a assentar, mas eu não tinha a certeza de que a poeira acabasse por descer nas setenta horas que restavam ao Thomas. Ele poderia resistir mais tempo sem comida, mas não sem oxigénio. Então tive uma ideia. Raciocinei do seguinte modo: o foguetão do Thomas era construído principalmente de aço. Desde que não houvesse minérios ferrosos naquela maldito planetóide, talvez fosse possível localizá-lo com um indicador ferromagnético — um instrumento para encontrar objectos de ferro. Nós tínhamos um muitíssimo sensível, capaz de localizar um prego a três quartos de quilómetro. E um foguetão a vários quilómetros. Olaf e eu examinámos o aparelho. Depois eu disse a Gimma e parti.
— Sozinho?
— Sim.
— Porquê?
— Porque sem o Thomas só restávamos nós os dois e o Prometheus precisava de ter um piloto.
— E eles concordaram?
Sorri, no escuro.
— Eu era o primeiro-piloto. Gimma não me podia dar ordens, mas sim, apenas, sugestões que eu avaliava e a que respondia sim ou não. Claro que a maior parte das vezes respondia sim. Mas em emergências a decisão era minha.
— E o Olaf?
— Bem, já conheces um pouco o Olaf. Como podes imaginar, não pude partir logo. No fim de contas, bem vistas as coisas, eu é que tinha mandado o Thomas para baixo. O Olaf não podia negar isso. Portanto, parti. Sem foguetão, evidentemente.
— Sem foguetão?
— Sim. Num fato com propulsor a gás. Demorou um bocado, mas não muito tempo. Tive alguma dificuldade com o detector, que era praticamente uma caixa e pouco fácil de manejar. Sem peso, claro, mas quando entrei na nuvem tive de ter cuidado para não embater em nada. Deixei de ver a nuvem à medida que me aproximei dela. Primeiro as estrelas começaram a desaparecer, algumas de cada vez, na periferia; depois, metade do céu ficou preto. Olhei para trás e vi o Prometheus a brilhar ao longe — a nave tinha equipamento especial, que lhe tomava o casco luminoso. Parecia um comprido lápis branco com uma bola numa extremidade, o farol fotónico. Depois desapareceu tudo. A transição foi muito abrupta. Talvez um segundo de névoa preta e depois nada. O meu rádio estava desligado; em vez dele, tinha o detector preso aos auriculares. Bastaram-me poucos minutos para voar para a orla da nuvem, mas precisei de mais de duas horas para descer para a superfície. Precisava de ter cuidado. A lanterna eléctrica revelou-se inútil, como eu esperara. Iniciei a busca. Sabes o aspecto das estalactites em grutas?
— Sei.
— Era qualquer coisa assim, mas ainda mais estranho. Estou a falar do que vi depois, quando a poeira assentou, porque durante a busca não consegui ver nada, como se alguém tivesse coberto a viseira do meu fato de alcatrão. Levava a caixa presa por correias. Orientei a antena e escutei; depois caminhei com ambos os braços estendidos. Nunca tropecei tanto na minha vida. Se me não aconteceu nada devo-o apenas à baixa gravidade. Claro que com um pouco de visibilidade um homem poderia recuperar o equilíbrio dez vezes mais depressa. Mas assim… É difícil explicar a alguém que nunca o experimentou. O planetóide era todo constitiído por picos irregulares, com pedregulhos amontoados à sua volta, e todas as vezes que pousava o pé eu começava a cair, com aquele movimento lento que faz lembrar um ébrio, e não podia saltar para trás: isso ter-me-ia lançado pelos ares durante um quarto de hora. Tinha simplesmente de esperar e de continuar a tentar, para avançar. O cascalho escorregava debaixo de mim — fragmentos de pedras, colunas, estilhaços de rocha—, tudo mal assente no seu lugar, pois a força que os mantinha era extraordinariamente fraca— o que não quer dizer que se um pedregulho acertasse num homem o não matasse. Nesse caso, seria a massa que actuaria e não o peso. Claro que haveria tempo para uma pessoa saltar e se desviar, se visse a coisa cair… ou pelo menos se a ouvisse. Mas nas circunstâncias não havia ar e, por isso, era só pela vibração debaixo dos pés que eu sabia se voltaria a fazer ruir alguma estrutura de rocha. E não podia fazer nada a não ser esperar que um fragmento saísse do negrume de pez e começasse a esmagar-me… Vagueei durante horas e deixei de considerar brilliante a minha ideia de utilizar o detector. Também precisava de ter cuidado porque, de vez em quando, dava comigo no ar, isto é, a flutuar como num sonho apalhaçado. Por fim, captei um sinal. Devo tê-lo perdido umas oito vezes, não me lembro ao certo, mas quando encontrei o foguetão era noite no Prometheus.
«0 foguetão encontrava-se num ângulo, meio enterrado naquela diabólica poeira. Era a coisa mais macia, mais delicada, que possas imaginar. Quase insubstancial. O mais leve cotão, na Terra, ofereceria maior resistência. As partículas eram incrivelmente pequenas. Inspeccionei o interior do foguetão. Ele não estava lá. Disse que o foguetão se encontrava num ângulo, mas não tinha a certeza disso; era impos,sível encontrar a vertical sem utilizar equipamento especial, e isso teria levado pelo menos uma hora e um fio de prumo convencional, que não pesava praticamente nada, seria inútil, pois a cabeça não chegaria para manter a linha esticada… Na altura, não fiquei surpreendido por ele não ter tentado levantar voo. Entrei. Verifiquei imediatamente que Thomas improvisara qualquer coisa para determinar a vertical, mas que não funcionara. Havia ainda muita comida, mas nenhum oxigénio. Devia tê-lo transferido todo para o tanque do fato e partido.
— Porquê?
— Sim, porquê? Ele estivera ali três dias. Naquele tipo de foguetão há apenas um assento, um pára-brisa, os comandos, alavancas e uma escotilha na retaguarda. Sentei-me lá um bocado e compreendi que nunca seria capaz de o encontrar. Durante um segundo, pensei que talvez ele tivesse partido precisamente quando eu aterrara, que utilizara o seu propulsor a gás para regressar ao Prometheus e se encontrava a bordo enquanto eu andara à toa por cima daquelas estúpidas pedras… Saltei do foguetão tão energicamente que voei para cima. Sem nenhum sentido de direcção, sem nada. Sabes o que acontece quando vemos uma centelha na escuridão total? Os olhos fantasiam, há raios, visões… Bem, com o sentido do equilíbrio pode acontecer uma coisa semelhante. Com uma gravidade zero não há problema, uma pessoa acostuma-se. Mas quando a gravidade é extremamente fraca, como naquela planetóide, o ouvido interno reage erradamente, se não irracionalmente. Uma pessoa pensa que está a subir velozmente, como uma peça de fogo-de-artifício, depois a descer, etc. E sucedem-se as sensações de girar e rodar dos braços, das pernas e do tronco, como se as partes do nosso corpo mudassem de lugar e a cabeça não estivesse no lugar que lhe pertence…
«Foi assim que eu voei até colidir com uma parede, ricochetear, embater em qualquer coisa, ser outra vez atirado e conseguir agarrar-me a uma pedra saliente… Estava lá alguém deitado: o Thomas.
Ela continuou calada. Na escuridão, o Pacífico rugia.
— Não, não é o que tu pensas. Ele estava vivo. Sentou-se imediatamente e eu liguei o rádio. A distância era tão curta que podíamos comunicar perfeitamente.
«És tu? ouvi-o perguntar.
«Sou eu, respondi.
«Parecia uma cena de uma farsa ridícula, de tão espantosa. Mas foi assim que aconteceu. Levantámo-nos.
«Como te sentes? perguntei.
«Óptimo. E tu?
«A resposta surpreendeu-me um pouco, mas redargui:
«Muito bem, obrigado. E lá em casa também estão todos bem.
«Idiota, sem dúvida, mas eu pensei que ele tinha falado assim para mostrar que estava a aguentar-se, compreendes?
— Compreendo.
— Quando parou junto de mim, vi-o como uma mancha de escuridão mais densa à luz da minha lâmpada de ombro. Passei as mãos pelo seu fato. Não estava avariado.
«Tens oxigénio suficiente? perguntei, pois isso era o mais importante.
«Oue importa? respondeu-me.
«Perguntei a mim mesmo que devia fazer a seguir. Pôr o seu foguetão a funcionar? Seria demasiado arriscado. Para dizer a verdade, nem sequer me sentia muito satisfeito. Estava receoso… ou melhor, inseguro. É difícil explicar. A situação era irreal, eu pressentia algo de estranho nela, embora não soubesse exactamente o quê. Nem sequer sabia ao certo o que sentia. A não ser que não estava satisfeito com aquele miraculoso encontro. Tentei imaginar uma maneira de salvar o foguetão. Mas isso, pensei, não era o mais importante. Primeiro precisava de saber em que estado Thomas se encontrava. Estávamos ali parados os dois, na noite sem estrelas.
«Oue andaste a fazer durante este tempo todo? perguntei. Isso era importante. Se ele tivesse tentado fazer alguma coisa, nem que fosse recolher algumas amostras minerais, seria bom sinal.
«Diversas coisas, respondeu-me. E tu, que andaste a fazer. Tom?
«Tom? perguntei e senti-me gelar, pois Tom Arder morrera havia um ano e ele sabia-o muito bem.
«Tu és o Tom, não és? Reconheço a tua voz.
«Não disse nada. Ele tocou-me no fato com a mão enluvada e disse:
«Desagradável, não é? Nada para ver, e nada de nada. Eu tinha-o imaginado de modo diferente. E tu?
«Pensei que estava a imaginar coisas relacionadas com o Arder. Era uma coisa que tinha acontecido a alguns de nós.
«Não, isto aqui não é muito interessante, respondi-lhe. Vamo-nos embora, Thomas, que dizes?
«Embora? Mostrou-se surpreendido. De que estás a falar. Tom?
«Eu já não prestava atenção ao seu Tom.
«Queres ficar aqui? perguntei.
«E tu não queres?.
«Pensei que estava a mangar comigo, mas achei que já bastava de brincadeiras estúpidas.
«Não, respondi. Temos de regressar. Onde está a tua pistola?
«Perdi-a quando morri.
«O quê?
«Mas não me importei. Um morto não precisa de pistola."
«"Está bem… Anda, eu ato-te a mim e partimos.
«"Endoideceste, Tom"? Partimos para onde?"
«Regressamos ao Prometheus.
«"Mas não está aqui…"
«"Está além. Deixa-me atar-te."
«"Espera.
«E empurrou-me.
«Falas de modo estranho. Não és o Tom!"
«"Pois não. Sou o Hal."
«Também morreste? Quando?"
«Compreendi então o que se passava e resolvi fazer o jogo dele.
«Oh. há alguns dias! Mas deixa-me atar-te…"
«Ele não queria. Começámos de brincadeira, a gracejar, ao princípio como que bem-humoradamente. mas depois as coisas tornaram-se mais sérias. Tentei agarrá-lo, mas com o fato não pude. Que havia de fazer? Não podia deixá-lo nem por um momento sequer: não voltaria a encontrá-lo segunda vez. Os milagres náo acontecem duas vezes. E ele queria ficar ali, como morto. Depois, quando pensei que o convencera, quando me pareceu disposto a concordar e lhe pedi que me segurasse no propulsor a gás, ele encostou a sua cara à minha, tão encostada que quase o vi através dos vidros, e gritou: Sacana! Enganaste-me! Estás vivo!" E disparou contra mim.
Havia algum tempo que sentia a cara de Eri encostada às minhas costas. Ao ouvir as últimas palavras, estremeceu, como se a percorresse uma corrente eléctrica, e cobriu-me a cicatriz com a mão. Ficámos um bocado em silêncio.
— Era um fato muito bom — prossegui. — Não se rasgou. Entrou no meu corpo, partiu-me uma costela, dilacerou-me alguns músculos, mas não se rasgou. Nem sequer perdi a consciência, mas o meu braço direito imobilizou-se e uma sensação quente disse-me que sangrava. No entanto, durante um momento devo ter ficado confuso, pois quando me levantei o Thomas desaparecera. Procurei-o. a tactear de gatas, mas em vez dele encontrei o propulsor. Devia tê-lo deixado cair imediatamente após ter disparado. Com o propulsor consegui regressar à nave. Eles viram-me no momento em que saí da nuvem. Olaf aproximou a nave e puxaram-me para dentro. Disse que não tinha conseguido encontrá-lo. Que encontrara apenas o foguetão vazio e o propulsor me caíra da mão e disparara quando eu tropeçara. O fato tinha duas camadas. Um bocado do forro metálico soltou-se e eu tenho-o aqui. debaixo da costela.
De novo silêncio e o bramir de uma onda, em crescendo, como se tomasse balanço para um salto através de toda a praia, como se o fracasso das suas inúmeras predecessoras a não tivesse desencorajado. Ao desfazer-se espraiou-se, tomou-se uma pulsação suave, mais próxima e mais silenciosa. até que deixou por completo de se ouvir.
— Partiram?
— Não. Esperámos. Passados mais dois dias a nuvem assentou e eu desci segunda vez. Sozinho. Compreendes porquê, independentemente de todas as outra razões?
— Compreendo.
— Encontrei-o depressa. O seu fato brilliava na escuridão. Jazia aos pés de um pináculo. O seu rosto não se via, pois o vidro estava enevoado do lado de dentro. Quando o levantei, pensei por momentos que segurava num fato vazio: não pesava quase nada. Mas era ele. Deixei-o e regressei no seu foguetão. Mais tarde, examinei-o cuidadosamente e descobri o que acontecera. O relógio parara — era um relógio vulgar — ele perdera toda a noção do tempo. O relógio media horas e dias. Consertei-o e voltei a instalá-lo, para que ninguém desconfiasse.
Abracei-a. O meu hálito agitou-lhe o cabelo. Tocou na cicatriz e, de súbito, o que fora uma carícia transformou-se numa pergunta:
— A sua forma…
— É peculiar, não é? Foi cosida duas vezes. Os pontos rebentaram, da primeira vez… Quem fez a sutura foi o Thurber, porque Venturi, o nosso médico, já tinha morrido nessa altura.
— O que te deu o livro encarnado?
— Sim. Mas como o sabes, Eri? Fui eu que te disse? Não, impossível.
— Falaste com o Olaf, antes… lembras-te?
— Tens razão. Mas, imagina, lembrares-te disso! Uma coisa tão insignificante. Sou realmente um suíno. Deixei-o no Promelheus, com tudo o mais.
— Tens lá coisas? Em Luna?
— Tenho. Mas não vale a pena trazê-las para cá.
— Vale, sim, Hal.
— Querida, transformaria a casa num memorial, num museu, e eu detesto esse género de coisas. Se as trouxer, será apenas para as queimar. Guardarei algumas como recordação dos outros. Aquela pedra…
— Qual pedra?
— Tenho uma quantidade de pedras. Há uma de Kereneia, outra do planetóide do Thomas… Mas não julgues que andei a apanhá-las! Prenderam-se simplesmente aos refegos das minhas botas. O Olaf soltava-as e guardava-as, devidamente rotuladas. Não consegui tirar-lhe essa mania da cabeça. Não é importante, mas… tenho de te dizer. Sim, devo dizer-te, realmente, para que não penses que tudo quanto lá se passou foi terrível e que nunca aconteceu nada a não ser morte. Tenta imaginar… uma fusão de mundos. Primeiro, cor-de-rosa, o mais leve e delicado cor-de-rosa, uma infinitude de cor-de-rosa, e, dentro dele, a penetrá-lo, um cor-de-rosa mais escuro, e mais afastado um vermelho quase azul, mas muito afastado, e a toda a volta uma fosforescência imponderável, que não se parecia com uma nuvem nem com uma neblina… era diferente. Não tenho palavras para o descrever. Nós dois saímos do foguetão e olhámos. Não compreendo, Eri. Ainda hoje, agora, sinto um aperto na garganta, tão belo era. Imagina: não havia vida alguma, nem plantas, nem animais, nem pássaros, nada. Não havia olhos para o testemunhar. Tenho a certeza de que desde a criação do Mundo ninguém vira aquilo, que nós fomos os primeiros, o Arder e eu, e de que se o gravímetro não se tem avariado, obiigando-nos a desembarcar para o calibrar, pois o quartzo estilhaçara-se e o mercúrio estava a entomar-se, se nâo fosse isso, ninguém, até ao fim do Mundo, ali pararia e o veria. Não é estranho? Sentia-se um impulso para… enfim, não sei. Não podíamos partir. Esquecemos por que desembarcáramos e deixámo-nos ficar, parados, a olhar.
— Que era, Hal?
— Não sei. Quando regressámos e dissemos aos outros, o Biel quis ir ver, mas não era possível. Não havia energia suficiente de reserva. Tiráramos muitas fotografias, mas não tinham saído bem. Nelas parecia tudo leite cor-de-rosa com paliçadas purpúreas, e Biel começou a falar da luminescência química dos vapores do hidrecto de silício. Duvido que ele acreditasse nisso, mas em desespero de causa, visto que nunca poderia investigar o caso, tentou apresentar uma explicação. Era como… como nada que eu tenha visto. Não temos quaisquer pontos de referência. Quaisquer analogias. Possuía uma profundidade imensa, mas não era uma paisagem. Aquelas diferentes tonalidades, como disse, cada vez mais distantes e escuras, até os nossos olhos se alagarem. Movimento: nenhum, realmente. Flutuava e permanecia imóvel. Mudava, como se respirasse, mas permanecia o mesmo; talvez a coisa mais importante fosse a sua enormidade. Como se, para além da sua cruel eternidade negra, existisse outra eternidade, outro infinito tão concentrado e forte, tão brilhante, que se fechássemos os olhos não poderíamos acreditar nele. Quando olhámos um para o outro… Precisarias de conhecer o Arder. Hei-de mostrar-te a sua fotografia. Aquilo é que era um homem! Maior do que eu, dava a impressão de ser capaz de passar através de qualquer parede sem dar sequer por isso. Falava sempre lentamente. Ouviste falar daquele… buraco em Kereneia?
— Ouvi!
— Ficou lá preso, na rocha. Debaixo dele fervia lama quente que de um momento para o outro podia esguichar através da espécie de cano onde ele estava preso. E Arder dizia: «Aguenta, Hal. Vou dar mais uma vista de olhos. Talvez se tirar a garrafa… não. Não sai, tenho as correias embaraçadas. Mas aguenta.» E assim por diante. Até parecia estar a falar ao telefone, do quarto do seu hotel. Não se tratava de uma pose; ele era mesmo assim. O mais sensato de todos nós, sempre a ponderar tudo. Foi por isso que depois voou comigo e não com o Olaf, que era seu amigo… mas tu já ouviste isso.
— Já.
— Mas eu estava a dizer… Arder… Quando olhei para ele, tinha lágrimas nos olhos. Tom Arder. E não se envergonhava delas, sequer. Não se envergonhou então nem depois. Todas as vezes que falávamos do assunto — e falávamos de tempos a tempos —, os outros ficavam furiosos. Pensavam que estávamos a inventar, a fingir. Porque nos tomáramos tão… beatíficos. E engraçado, não é? De qualquer modo, olhámos um para o outro e tivemos o mesmo pensamento, apesar de não sabermos calibrar devidamente o gravímetro, que era a nossa única possibilidade de encontrarmos o Prometheus. O nosso pensamento foi o seguinte: tinha valido a pena. Tinha valido a pena só por termos podido parar ali e admirar aquela majestade.
— Estavam parados num monte?
— Não sei. Era uma espécie de perspectiva diferente, Eri. Era como se olhássemos de uma grande altura, embora não fosse uma elevação. Espera um momento! Viste o Grand Canyon, no Colorado?
— Vi.
— Imagina que esse desfiladeiro é mil vezes maior. Ou um milhão de vezes. Que é feito de vermelho e rosa-dourado, quase completamente transparente, e que através dele podes ver todos os strata, pregas geológicas, anticlinais e sinclinais; que tudo isso é imponderável, flutua e parece sorrir-te. Não, não chega. Querida, tanto eu como o Arder nos esforçámos tremendamente por dizer aos outros, por lhes descrever o que víramos, mas não conseguimos. A pedra é de lá. O Arder apanhou-a, para lhe dar sorte. Tinha-a sempre consigo. Tinha-a com ele em Kereneia. Guardava-a numa caixa de comprimidos de vitaminas. Quando começou a esboroar-se, embrulhou-a em algodão. Mais tarde, quando regressei sem ele, encontrei a pedra debaixo da cama da sua cabina. Devia ter-lhe caído para lá. Creio que o Olaf estava convencido de que tinha sido essa razão que… mas não ousava dizê-lo, era muito estúpido. Que podia uma pedra ter a ver com o fio que causou a avaria do rádio de Arder?…