IV

A porta abriu-se. Um robot branco e cor de laranja esperava no relvado. Saí.

— Bem-vindo a Clavestra — disse-me. e a sua barriga branca começou inesperadamente a cantar: notas tilintantes. como se tivesse uma caixa de música dentro dele.

Ainda a rir, ajudei-o a descarregar as minhas coisas. Depois a escotilha da retaguarda do ulder, que estava pousado na erva como um pequeno zepelim prateado, abriu-se e dois robots cor de laranja empurraram o meu carro para o exterior. O pesado corpo azul refulgiu ao sol. Esquecera-me por completo dele. Em seguida, todos os robots, carregando as minhas malas e caixas e os meus embrulhos, seguiram em fila indiana na direcção da casa.

A casa era um grande cubo com paredes de vidro. Entrava-se por um solário panorâmico a que se seguiam um átrio, uma sala de jantar e uma escada de madeira, que subia. O robot da caixa de música não deixou de me apontar essa raridade.

No andar de cima havia cinco quartos. Não escolhi um com melhor situação — virado para oriente — porque nesses, em especial o que tinha vista para as montanhas, havia demasiado ouro e prata, ao passo que o meu tinha apenas laivos de verde, como folhas esmagadas num fundo creme.

Eficiente e rapidamente, os robots arrumaram todos os meus pertences em armários, enquanto eu estava à janela. Um porto, pensei, um porto de abrigo. Inclinando-me para a frente, conseguia ver a névoa azulada das montanhas. Em baixo havia um jardim com uma dúzia, mais ou menos, de velhas árvores de fruto ao fundo. As árvores tinham os ramos torcidos e cansados e provavelmente já não davam nada.

Ao lado, na direcção da estrada (vira-a antes, do ulder, obscurecida por sebes), a torre de uma prancha de mergulhos erguia-se acima dos arbustos. A piscina. Quando me voltei, os robots já tinham saído. Transferi a secretária, leve como se fosse inflada, para a janela. Pus-lhe em cima as minhas rimas de jornais científicos, os sacos de livros de cristal e a máquina de leitura. Arrumei separadamente os livros de apontamentos ainda não utilizados e a caneta. Era a minha velha caneta — devido ao aumento da gravidade, começara a verter e borrara tudo, mas Olaf arranjara-a. Pus capas nos livros de apontamentos e rotulei-os: «História», «Matemática» e «Física», mas tudo à pressa porque estava ansioso para me meter dentro de água. Não sabia se podia sair de casa de calções de banho; esquecera-me de arranjar um roupão. Por isso, fui para a casa de banho, no corredor, e, manobrando uma garrafa de espuma, confeccioneiuma horrível monstruosidade que não se parecia com coisa nenhuma. Rasguei-a e recomecei. O segundo roupão saiu um bocadinho melhor, mas mesmo assim metia medo. Cortei com uma faca as irregularidades maiores das mangas e da bainha e ficou mais ou menos apresentável.

Desci, ainda sem saber se estava alguém em casa. O átrio estava deserto. O jardim também. Via-se apenas um robot cor-de-laranja a aparar a relva junto das roseiras, que já não estavam em flor.

Corri praticamente para a piscina. A água brilhava e cobria-a uma frescura invisível. Atirei o roupão para a areia dourada que me queimava os pés, subi os degraus metálicos e corri para o alto da prancha de mergulhos. Era baixa, mas servia para começar. Saltei, dei uma cambalhota simples — não me atrevia a mais ao fim de tanto tempo! — e entrei na água como uma faca.

Nadei, feliz. Comecei por dar largas braçadas numa direcção, virar e nadar na outra direcção. A piscina tinha cerca de 50 metros de comprimento. Fiz oito voltas sem abrandar, saí da água a pingar como uma foca e deitei-me na areia, com o coração a bater com força. Era bom. A Terra tinha as suas atracções! Sequei em poucos minutos. Levantei-me e olhei em redor. Ninguém. Esplêndido. Corri para a prancha de mergulhos. Primeiro dei um salto de costas com cambalhota. Resultou, embora eu tivesse saltado com muita força: em vez de uma prancha havia uma secção de plástico, que funcionava como mola. Depois dei uma cambalhota dupla que não resultou tão bem e me fez bater na água com as coxas, A pele ficou um momento vermelha, como se me tivesse queimado. Repeti. Um bocadinho melhor, mas não completamente bem. Na segunda volta não me endireitei a tempo e fiz um parafuso com os pés. Mas eu era teimoso e tinha tempo, muito tempo! Um terceiro mergulho, um quarto, um quinto. Começara a sentir um zumbido nos ouvidos quando — após mais um olhar em redor, pelo sim, pelo não — tentei uma cambalhota com torção. Foi um fiasco completo. O impacte tirou-me o fôlego, engoli água e, a tossir, arrastei-me para a areia. Sentei-me debaixo da escada azul-celeste da prancha de mergulhos, mortificado e furioso, mas de súbito desatei a rir. Depois nadei mais 400 metros, descansei e nadei outros 400.

Quando voltei para casa o mundo parecia-me diferente. Fora aquilo de que mais sentira a faha, pensei. Um robot branco csperava-me à porta.

— Come no seu quarto ou na sala de jantar?

— Comerei sozinho?

— Sim, senhor. Os outros chegam amanhã.

— Então na sala de jantar.

Fui ao quarto mudar de roupa. Ainda não sabia por onde começar os meus estudos. Provavelmente pela História. Seria o mais razoável, embora eu desejasse fazer tudo ao mesmo tempo e, principalmente, lançar-me ao ataque do mistério da conquista da gravidade. Ouvi um som musical. Como não era o telefone e eu não sabia do que se tratava, servi-me do infor da casa.

— O almoço está servido — explicou uma voz melodiosa.

A sala de jantar estava banhada por uma luz que se filtrava através de verdura. Os painéis curvos do tecto brilhavam como cristal. Na mesa estava só um prato. Um robot trouxe a ementa.

— Não, não — disse-lhe. — Qualquer coisa serve.

O primeiro prato pareceu-me uma sopa fria de frutos. O segundo não me pareceu nada. Teria de dizer adeus a carne, batatas e vegetais, segundo parecia.

Ainda bem que estava a comer sozinho, porque a minha sobremesa explodiu. Um ligeiro exagero, talvez. De qualquer modo, fiquei com creme nos joelhos e na camisola. Tratara-se de uma estrutura complicada, dura apenas à superfície, e eu cravara-lhe descuidadamente a colher.

Quando apareceu um robot, perguntei-lhe se podia tomar o café no quarto.

— Naturalmente — respondeu-me. — Agora?

— Por favor. Mas muito café.

Fiz tal pedido porque me sentia um pouco ensonado, sem dúvida em consequência de ter nadado, e de súbito lamentei o tempo que perdera. Como era tão diferente, ali, do que fora a bordo da astronave! O sol da tarde batia nas velhas árvores, as sombras eram curtas e reuniam-se nos troncos e o ar tremia ao longe. Mas o quarto estava fresco. Sentei-me à secretária e peguei nos livros. O robot levou-me o café. O termos transparente continha gelojnenos três litros. Não disse nada. Era evidente que ele tiweraJemJinha de contadas minhas dimensões.

Tencionara começar pela história, mas comecei pela sociologia, pois queria aprender imediatamente o mais possível. Não tardei a compreender, porém, que a tarefa era superior às minhas forças. Estava carregada de uma matemática difícil, porque especializada, e, pior ainda, os autores referiam-

— se a factos que me eram desconhecidos. Além disso, não compreendia muitas palavras e tinha de procurá-las na enciclopédia. Por isso, utilizei um segundo opton — tinha três—, mas acabei por desistir, pois demorava muito tempo. Engoli o orgulho e abri um vulgar manual escolar de História.

Não sei que me dera, que não tinha a mínima paciência — eu,a quem Olaf chamara a «última encarnação do Buda». Em vez de levar as coisas por ordem, procurei logo o capítulo da betrização.

A teoria tinha sido desenvolvida por três pessoas: Bennett, Trimaldi e Zakharov. Daí o seu nome. Surpreendeu-me verificar que eram da minha geração e tinham anunciado a sua descoberta um ano depois da nossa partida. A resistência fora, claro, tremenda. Ao prindpio, ninguém quisera tomar sequer o processo a sério. Depois chegou ao fórum das Nações Unidas. Durante algum tempo andou de subcomissão para subcomissão e deu a ideia de que o projecto acabaria por ficar sepultado sob intermináveis deliberações. Entretanto, a pesquisa ia fazendo progressos rápidos, foram introduzidos aperfeiçoamentos e fizeram-se experiências em grande escala em animais e depois em seres humanos (os primeiros a submeterem-se a elas foram os próprios inventores. Trimaldi ficou paralisado durante algum tempo, pois o perigo da aplicação da betrização aos adultos ainda não tinha sido descoberto, e isso imobilizou o projecto durante os oito anos seguintes). Mas no 17.° ano depois de zero (pelas minhas contas pessoais o zero era a partida do Prometheus) foi aprovada uma resolução para a aplicação universal da betrização, o que constituiu apenas o princípio da luta pela humanização da espécie humana (como dizia o manual). Em muitos países, pais recusaram-se a deixar tratar os filhos e os primeiros centros de betrização foram atacados, tendo ficado 50 ou 60 completamente destruídos. Um período de agitação, de repressão, de coerção e resistência durou uns 20 anos. O manual passou por cima disso com algumas generalidades, por razões perfeitamente óbvias. Resolvi consultar algumas fontes, para informação mais detalhada, mas entretanto continuei com a leitura. A nova ordem só ficou firmemente estabelecida quando a primeira geração betrizada teve filhos. O livro não dizia nada acerca do aspecto biológico do processo. Por outro lado, não faltavam elogios a Bennett, Zakharov e Trimaldi. Foi apresentada uma proposta para se contarem os anos da Nova Era a partir da introdução da betrização, mas não foi aceite. O cálculo das datas não mudou. Mas as pessoas mudaram. O capítulo terminava com um vibrante encómio à Nova Época de Humanismo.

Consultei a monografia sobre betrização de Ulirich. Também estava inçada de matemática, mas eu estava determinado a não desistir. O processo não era transportado no plasma hereditário, como eu receara secretamente. Se fosse, claro, não seria necessário betrizar cada nova geração. Isso e-ra encorajador: pelo menos em teoria, persistia a possibilidade de regresso. íA betrização actuava sobre o desenvolvimento do prosencéfalo num período precoce da vida, por meio de um grupo de enzimas proteolíticas. Os efeitos eramselectivos: a redução de 80 % a 88 % dos impulsos agressivos, em comparação com os não-betrizados; a eliminação da formação de ligações associativas entre actos de agressão e a esfera dos sentimentos positivos; uma redução geral de 87 % da possibilidade de aceitar risco de vida pessoal. A maior realização citada consistia no facto de estas mudanças não influenciarem negativamente o desenvolvimento da inteligência ou a formação da personalidade e, o que era ainda mais importante, de as limitações não actuarem sobre o princípio do condicionamento pelo medo. Por outras palavras, um homem coibia-se de matar não por ter medo do acto em si. Tal resultado teria psiconeurosado e contagiado de medo toda a espécie humana. Em vez disso, um homem não matava porque «não lhe podia entrar na cabeça» fazer isso.

Houve uma frase de Ullrich que me impressionou particularmente: «A betrização causa o desaparecimento da agressão através da completa ausência de comando e não por inibição.» Ao reflectir nisto, cheguei no entanto à conclusão de que não explicava a coisa mais importante: o processo de pensamento de um homem sujeito à betrização. No fim de contas, eram pessoas completamente normais, capazes de imaginar absolutamente tudo e, portanto, o assassínio também. Que tomava então a sua prática impossível?

Procurei a resposta a essa pergunta até escurecer. Como acontece geralmente com os problemas científicos, o que parecia claro e simples numa exposição teórica ou sumarizada tomava-se tanto mais complicado quanto mais precisa era a explicação desejada. O sinal musical anunciou o jantar e eu pedi que mo servissem no quarto, mas nem lhe toquei. As explicações que finalmente encontrei não concordavam inteiramente umas com as outras. Uma repulsa semelhante ao nojo; uma aversão suprema, ampliada de uma maneira incompreensível, pelos não betrizados. O mais interessante eram os testemunhos de pessoas que, 80 anos antes, como sujeitos de uma experiência no Instituto Tribaldi, perto de Roma, tinham tentado ultrapassar a barreira invisível levantada na sua mente. Foi a coisa mais impressionante que li. Nenhum deles o conseguira, mas cada um fazia um relato diferente das sensações que tinham acompanhado a sua tentativa. Nalguns predominavam os sintomas psicológicos: um desejo de fugir, de evitar a situação em que tinham sido colocados. Neste grupo, os testes continuados causavam violentas dores de cabeça e, se persistiam, acabavam por conduzir a neuroses que, no entanto, se podiam curar rapidamente. Noutros, prevaleciam os sintomas físicos: falta de ar, uma sensação de sufocação. O seu estado assemelhava-se às manifestações de medo, mas estas pessoas não se queixavam de medo e sim, apenas, do seu desconforto físico.

A obra de Pilgrin demonstrava que 18 % dos betrizados eram capazes \ de praticar um assassino simulado, por exemplo num boneco, mas a convicção de que estavam a lidar com um boneco animado tinha de assumir a forma da certeza absoluta.

A proibição estendia-se a todos os animais superiores, mas os anfíbios e C!S répteis não contavam como tais, e os insectos tão-pouco. Claro que os betrizados não tinham qualquer conhecimento científico da taxinomia zoológica. A proibição aplicava-se simplesmente de acordo com o grau de similaridade com o homem como era geralmente aceite. Como toda a gente, instruída ou não, considera um cão mais próximo do homem do que uma serpente, o problema ficava assim resolvido.

À medida que fui lendo muitos outros ensaios, tive de concordar com aqueles que diziam que um indivíduo betrizado só podia ser compreendido introspectivamente por alguém que também o fosse. Pus de parte este género de leitura com sentimentos diversos. O que mais me perturbava era a falta de qualquer obra crítica elaborada no espírito de oposição, até de sátira, a falta de qualquer análise expondo os aspectos negativos do processo. Não duvidava nem por um minuto de que existiam, nem porque pusesse em causa os cientistas, mas simplesmente por ser essa a natureza de todo o empreendimento humano: nunca há bem sem mal.

O breve esboço sociográfico de Murwick proporcionou-me um número de factos interessantes acerca da resistência à betrização nos seus primeiros tempos. Essa resistência parece ter sido mais forte em países com uma longa tradição de conflito e derramamento de sangue, tais como a Espanha e certos estados latino-americanos. Mas formaram-se por todo o Mundo organizações ilegais para combater a betrização: na África Meridional, no México, em diversas ilhas do Pacífico… Recorreu-se a toda a espécie de métodos, desde atestados médicos forjados certificando que as operações tinham sido efectuadas, até ao assassínio dos médicos que as efectuavam. Ao período de violência em larga escala seguiu-se uma calma aparente. Aparente porque foi então que o conflito das gerações começou. Os betrizados jovens, a crescer, rejeitaram uma parte considerável das realizações da humanidade, assim como dos seus costumes, tradições e arte. Toda a herança cultural sofreu uma reavaliação radical. A mudança incluiu um grande número de áreas: sexualidade, costumes sociais, atitude perante a guerra…

Claro que esta grande divisão das pessoas tinha sido prevista. A lei só foi cumprida cinco anos depois da sua aprovação, pois foi necessário reunir um número enorme de quadros — educadores, psicólogos, vários especialistas — para gizarem o devido curso de desenvolvimento da nova geração. Foi necessária uma reforma geral nos programas escolares, no conteúdo das peças de teatro, no material de leitura e nos filmes. Para dar em poucas palavras uma ideia da transformação necessária, basta dizer que nos primeiros 10 anos a betrização consumiu cerca de 40 % dos rendimentos nacionais do Mundo, em todas as suas ramificações e exigências.

Foi uma época de grandes tragédias. Os jovens, betrizados, tomaram-se estranhos para com os próprios pais, cujos interesses não compartilhavam. Detestavam os gostos sanguinários dOs progenitores. Durante um quarto de século foi necessário ter dois tipos de jornais, livros e peças: um para a antiga geração e outro para a nova. Mas tudo isto tivera lugar 80 anos atráfi! As crianças agora nascidas pertenciam à terceira geração betrizada e sobrevivia apenas um punhado de não betrizados, pessoas com 130 anos. A substância da sua juventude parecia à nova geração tão remota como o Paleolítico.

No manual de História encontrei finalmente informação acerca do segundo grande acontecimento do último século: a subjugação da gravitação.

o século chamava-se, até, «século da parastática». A minha geração sonhara com a conquista da gravidade na esperança de que isso proporcionasse uma revolução nas viagens espaciais. Afinal, as coisas passaram-se de modo diferente. Houve revolução, de facto, mas os seus efeitos principais incidiram sobre a Terra.

O problema da «morte em tempo de paz» causado pelos acidentes de viação tomara-se a ameaça do meu tempo. Lembro-me de que alguns dos melhores cérebros lutaram para aliviar o congestionamento eterno das estradas e auto-estradas, a fim de reduzirem, por pouco que fosse, as estatísticas sempre crescentes. Todos os anos os desastres reclamavam centenas de milhares de vidas e o problema parecia tão insolúvel como a quadratura do círculo. Não havia nenhum meio de regressar, dizia-se, à segurança de viajar a pé. O melhor aeroplano, o mais potente automóvel ou comboio, podiam escapar ao controlo humano. Os autómatos eram de maior confiança do que as pessoas, mas também se avariavam. Toda a tecnologia, até a mais avançada, tinha uma certa margem, uma percentagem de erro.

A parastática, a engenharia da gravitação, forneceu uma solução tão necessária quanto inesperada: necessária, porque um mundo betrizado tinha de ser um mundo de completa segurança; caso contrário, as virtudes desse processo clínico seriam inúteis.

Roemer tivera razão. A essência da descoberta só se podia exprimir através da matemática — e, devo acrescentar, de uma matemática infernal. A solução geral, própria «para todos os universos possíveis», foi encontrada por Emil Mitke, filho de um empregado dos Correios, um génio aleijado que fez com a teoria da relatividade o que Einstein fizera com Newton. Era uma história comprida e invulgar, como todas as histórias verdadeiras, uma história improvável, uma mistura de assuntos banais e importantes, do que há de ridículo e de colossal no homem, e que culminara finalmente, decorridos 40 anos, nas «caixinhas pretas».

Cada veículo, cada nave da água ou do ar, tinha de ter a sua caixinha preta. Era uma garantia de «salvação agora», como Mitke dissera jocosamente já para o fim da sua vida. No momento de perigo — a queda de um avião ou uma colisão de automóveis ou comboios —, a caixinha preta libertava uma carga «anticampo gravitacional» que se combinava com a inércia produzida pelo impacto (de modo mais geral, pela travagem súbita, pela perda de velocidade) e dava uma resultante de zero. Este zero matemático era uma realidade concreta, absorvia todo o choque e toda a energia do acidente e desse modo salvava não só os passageiros do veículo, mas também aqueles a quem a massa do veículo teria de outro modo esmagado.

As caixas pretas encontravam-se em toda a parte: em elevadores, em guindastes, nos cintos dos pára-quedistas, em navios oceânicos e em veículos motorizados. A simplicidade da sua construção era tão espantosa como a complexidade da teoria que as criara.

O nascer do dia avermelhava as paredes do meu quarto quando caí, exausto, na cama.

Acordou-me um robot que entrou no quarto com o pequeno-almoço.

Era quase uma hora. Ao sentar-me na cama, certifiquei-me de que estava perto o livro que pusera de parte na noite anterior: Sobre o Voo Interstelar, de Starck.

— Tem de comer, Sr. Bregg — disse o robot, reprovadoramente. — Caso contrário, enfraquece. E ler até de madrugada também não é aconselhável. Os médicos são muito contrários a isso.

— Devem ser, com certeza, mas como é que sabe? — perguntei.

— É meu dever, Sr. Bregg.

Estendeu-me um tabuleiro e eu prometi:

— Tentarei corrigir-me.

— Espero que não interprete mal a minha solicitude e me julgue importuno.

— Ah, de modo nenhum! — tranquilizei-o.

Enquanto mexia o café e sentia os torrões de açúcar desfazer-se sob a colher, senti-me estupefacto, de uma maneira simultaneamente serena e profunda, não só pelo facto de estar realmente na Terra, de ter regressado, não só pela leitura que fizera toda a noite e que ainda me agitava e fermentava na minha cabeça, mas também, simplesmente, por estar sentado numa cama, com o coração a bater — por estar vivo. Desejei fazer qualquer coisa em honra dessa descoberta, mas, como de costume, não me acudiu ao espírito nada particularmente adequado.

— Escute — disse ao robot —, tenho um favor a pedir-lhe.

— Estou às suas ordens.

— Dispõe de um momento? Então toque-me aquela melodia, a de ontem, sim?

— Com prazer.

Bebi o meu café em três golos, ao som alegre da caixa de música. Assim que o robot saiu, mudei de roupa e corri para a piscina. Não sei explicar por que estava naquela pressa constante. Qualquer coisa me impelia, como se pressentisse que de um momento para o outro aquela paz chegaria ao fim, por imerecida e incrível. De qualquer modo, o meu afã fez-me atravessar o jardim a correr, sem olhar à minha volta, e em poucos saltos encontrei-me no cima da prancha de mergulhos. Já iniciara o salto quando reparei em duas pessoas que vinham de trás da casa. Por razões óbvias, não pude estudá-las bem. Dei uma cambalhota e mergulhei para o fundo. Abri os olhos. A água era como cristal reluzente, verde, com as sombras das ondas a dançar no fundo iluminado pelo Sol. Nadei baixo, na direcção dos degraus, e quando emergi não estava ninguém no jardim. Mas os meus olhos apurados tinham-me fixado uma imagem no cérebro, uma imagem de que me apercebera de cabeça para baixo e numa fracção de segundo: um homem e uma mulher. Aparentemente, já tinha vizinhos. Debati-me comigo mesmo, para saber se deveria nadar mais um comprimento, mas Starck ganhou. A introdução ao livro — onde ele falava de voos às estrelas cemo de um erro dos primeiros tempos da astronáutica — irritara-me tanto que a minha vontade era fechá-lo e não voltar a abri-lo. Mas forcei-me a isso. Fui p: ira o quarto e mudei de roupa. Ao descer, vi na mesa do átrio uma taça cheia de frutos rosa-pálido, um pouco parecidos com pêras. Enchi as algibeiras do meu fato-macaco. procurei um lugar isolado, cercado em três lados por sebes, subi a uma velha macieira, escolhi uma forquilha dos ramos capaz de suportar o meu peso e instalei-me para estudar o obituário do trabalho da minha vida.

Passada uma hora, não me sentia muito seguro de mim. Starck empregava argumentos difíceis de refutar. Baseava-se nos poucos dados trazidos pelas duas expedições que tinham precedido a nossa e a que chamáramos «picadas de alfinete», pois não passavam de sondas numa distância de apenas vários anos-luz. Starck traçou quadros estatísticos da probabilidade de distribuição ou «densidade de habitação» de toda a galáxia. Concluiu que a probabilidade de encontrar seres inteligentes era de uma em vinte. Por outras palavras, por cada 20 expedições — num raio de mil anos-luz —, urria tinha uma probabilidade de descobrir um planeta habitado. No entanto. por estranho que possa parecer, esta conclusão era considerada por Starck muito encorajadora; destruiu a ideia de estabelecer contactos cósmicos numa parte final da sua exposição.

Irritei-me ao ler o que um autor, para mim desconhecido, escrevera acerca de expedições como a nossa — isto é, iniciada antes da descoberta do efeito de Mitke e do fenómeno da parastática —, porque ele as considerava absurdas. Mas aprendi com ele, o preto no branco, que, pelo menos em princípio, era possível construir uma nave capaz de atingir a aceleração da ordem dos 1000 ou talvez mesmo dos 2000 g" s. A tripulação de uma tal nave não sentiria nenhuma aceleração ou travagem; a bordo, a gravitação seria constante, igual a uma fracção da da Terra. Assim. Starck admitia que voos aos confins da galáxia e até a outras galáxias — a transgalastodromia com que Olaf sonhara— eram possíveis, e possíveis na duração de uma só vida. A uma velocidade ligeiramente inferior á velocidade da luz, uma tripulação envelheceria vários meses, ou umas duas dúzias de meses, no lempo que levava para chegar às profundezas da metagaláxia e voltar á Terra. Mas nesse tempo teriam decorrido na Terra não centenas, mas sim milhões de anos. A civilização encontrada pelos que regressassem não poderia assimilá-los. Seria niais fácil a um homem de Neanderthal adaptar-se à vida do nosso tempo. E isso não era tudo. O destino de um grupo de pessoas não era o problema. Eles eram os enviados da humanidade. A humanidade levantava por intermédio deles uma pergunta a que deveriam trazer uma resposta. Se a resposta se relacionava com problemas ligados ao nível de desenvolvimento da civilização, então a humanidade obtê-la-ia com certeza antes do seu regresso. Isso porque do levantar da questão à chegada da resposta teriam passado milhões de anos. Além disso, a resposta estaria desactualizada, caduca, pois eles trariam notícias do estado da outra civilização referentes ao momento em que tinham chegado a essa margem distante do mar estelar. Mas durante a sua viagem de regresso esse outro mundo não teria permanecido imóvel, deveria ter avançado um, dois ou três milhões de anos. As perguntas e respostas desencontrar-se-iam, perder-se-iam umas das outras, sofreriam centenas de séculos de atraso que as anulariam e tomariam impossível qualquer troca de experiências, valores e ideias. Inútil. Os astronautas seriam assim os portadores de informação morta e o seu trabalho seria um acto de absoluta e irreversível separação da história humana. As expedições espaciais eram uma deserção sem precedentes e dispendiosa — o mais dispendiosa possível — do reino da mudança histórica. E por tal fantasia, por essa loucura nunca proveitosa e sempre inútil, deveria a Terra trabalhar com o máximo esforço e ceder as suas melhores pessoas?

O livro terminava com um capítulo sobre as possibilidades de exploração com o auxílio de robots. Os robots também transmitiriam informação caduca, mas pelo menos evitar-se-iam sacrifícios humanos.

Seguia-se um apêndice de três páginas, uma tentativa de responder à questão da possível existência de viagem mais rápida do que a luz e até da chamada «conjunção cósmica instantânea», ou seja, a travessia de espaço com pouca ou nenhuma passagem de tempo, graças a uma propriedade ainda por descobrir de matéria e de espaço, por meio de uma espécie de «hiper-salto». Esta teoria, ou melhor, esta especulação não baseada em quaisquer factos dignos de nota, tinha um nome: teletaxe. Starck estava convencido de que possuía um argumento para destruir esta última esperança. Se tal coisa existisse, afirmava, teria indubitavelmente sido descoberta por uma das civilizações mais altamente desenvolvidas da nossa ou de outra galáxia. Nesse caso, os representantes dessa civilização teriam podido, num espaço de tempo incrivelmente breve, visitar sucessivamente cada sistema planetário e cada sol, incluindo os nossos. Mas a Terra não tivera tal visita, por enquanto, o que provava poder esse método, rápido como a luz, de penetrar o cosmo, ser imaginado, mas nunca tornado realidade.

Voltei para casa atordoado, com o sentimento quase infantil de que tinha sido pessoalmente ofendido. Starck, um homem que nunca conhecera, desferira-me um golpe sem comparação com nenhum outro que recebera. O meu tosco resumo não dá uma ideia da lógica implacável do raciocínio dele. Não sei como cheguei ao meu quarto nem como mudei de roupa — a certa altura, apeteceu-me um cigarro e descobri que já estava a fumar, sentado de ombros curvados na cama, como se esperasse qualquer coisa. E era verdade, esperava: o almoço. Almoço para três. O facto é que tinha medo das pessoas. Não o admitira nem para comigo, mas tinha sido por isso que concordara tão depressa em compartilhar a vila com desconhecidos. Talvez a previsão da sua chegada fosse até a razão da minha invulgar pressa, como se tivesse estado á trabalhar para estar pronto para a sua presença, para me iniciar, através dos livros, nos mistérios da nova vida. Não teria considerado tal possibilidade na manhã desse dia, mas depois do livro de Starck o nervosismo abandonou-me subitamente. Retirei da máquina de leitura o cristal azulado e coloquei-o respeitosamente em cima da mesa. Fora aquilo que me pusera fora de mim. Pela primeira vez desde que regressara, pensei em Thurber e Gimma. Tinha de os ver. O livro talvez tivesse razão, mas nós representávamos uma verdade diferente. Ninguém possuía a verdade total. Não era possível. O sinal musical despertou-me do meu transe. Endireitei a camisola e desci, senhor de mim e já mais calmo. O sol entrava pelas trepadeiras da varanda; o vestíbulo, como sempre acontecia à tarde, estava cheio de uma difusa claridade esverdeada. A mesa da sala de jantar estava posta para três. Quando entrei, a porta do lado oposto abriu-se e eles apareceram. Eram altos, pelos padrões actuais. Encontrámo-nos no meio da sala, como diplomatas. Disse o meu nome, trocámos um aperto de mão e sentámo-nos à mesa.

Invadia-me uma espécie de entorpecimento, como um pugilista que se levantara do chão depois de um KO técnico. Da minha depressão, como de um camarote de teatro, olhava para o jovem casal.

A rapariga provavelmente ainda não teria 20 anos. Mais tarde, chegaria à conclusão de que ela não se prestava a descrições; com certeza não se pareceria com uma fotografia dela própria — e no segundo dia eu ainda não fazia ideia de que tipo era o seu nariz: recto ou arrebitado? A maneira como ela estendia a mão para um prato deliciava-me incrivelmente, uma surpresa que não acontecia todos os dias. Sorria raramente e com compostura, como se desconfiasse ligeiramente de si própria, se considerasse que era insuficientemente segura de si, demasiado alegre por natureza ou talvez demasiado voluntariosa, e tentasse judiciosamente remediá-lo. Mas o seu rigor para consigo própria estava constantemente a ser minado, ela sabia-o e até se divertia com isso.

Atraía o meu olhar, facto contra o qual eu tinha de lutar. Dava comigo a todo o momento a fitá-la, a olhar para o seu cabelo que desafiava o vento. Inclinava a cabeça para o meu prato e olhava furtivamente, ao estender a mão para outro, de tal modo que por duas vezes quase derrubei uma jarra de flores. Por outras palavras, fiz uma perfeita figura de parvo. Mas dir-se-ia que eles nem sequer me viam. Os seus olhos eram só um para o outro e uniam-nos fios invisíveis de compreensão. Tenho a certeza de que durante todo o tempo não trocámos mais de 20 palavras: acerca do bom tempo que fazia e de como o lugar era bom, perfeito para umas férias.

Marger era apenas uma cabeça mais baixo do que eu, mas esbelto como um rapaz, embora devesse ter 30 anos. Vestia de escuro, era louro e tinha rosto comprido e testa alta. Ao princípio pareceu-me excepcionalmente bem parecido, mas isso só acontecia quando mantinha o rosto imóvel. Ouase não dizia uma palavra à mulher, e quando dizia, geralmente com um sorriso, a conversa consistia em alusões e insinuações absolutamente misteriosas para um estranho, e então tomava-se quase feio. Não, não era exactamente feio. Era como se as suas proporções faciais se deteriorassem: a boca torcia-se-Ihe um pouco para a esquerda e perdia a sua expressão, e até o seu sorriso se tomava neutro, embora ele tivesse bonitos dentes brancos. E quando estava animado os olhos tomavam-se demasiado azuis e o queixo demasiado pronunciado, e transformava-se por completo num modelo impessoal de encanto masculino tirado de uma revista de modas.

Por outras palavras, senti aversão por ele desde o princípio.

A rapariga — não conseguia pensar nela como sua mulher, por mais que tentasse — não tinha olhos nem lábios bonitos nem cabelo fora do vulgar.

Não tinha nada fora do vulgar. Era, no seu conjunto, invulgar. Com urea rapariga como ela, de tenda às costas, seria capaz de atravessar duas vezes as Montanhas Rochosas, pensei. Porquê montanhas, exactamente? Não sabia. Ela trazia à memória noites passadas em pinhais, o trabalho de escalar um penhasco, a beira-mar onde só há areia e ondas. Seria por não usar bâton? Sentia-a sorrir, sentia-o através da mesa, mesmo quando ela não sorria. De siibito, num ímpeto de ousadia, decidi olhar-lhe para o pescoço, como se cometesse um roubo. Foi quase no fim da refeição. Marger virou-se inesperadamente para mim e eu creio que corei.

Ele estivera a falar durante algum tempo antes de eu apreender o sentido do que dizia: que a casa só tinha um gleeder e que ele infelizmente precisava de o utilizar, porque ia à cidade. Por isso, se eu também precisasse de ir e não quisesse esperar pelo entardecer, talvez me não importasse de o acompanhar;.. Podia, claro, mandar-me outro gleeder da cidade ou…

Interrompi-o. Comecei a dizer que não tinha intenção de ir a lado nenhum, mas contive-me, como se me lembrasse de qualquer coisa, e depois ouvi a minha própria voz dizer que, na realidade, tencionava ir à cidade, e se não se importasse…

— Óptimo, então — disse ele e levantámo-nos da mesa. — A que horas seria mais conveniente para si?

Fizemos cerimónia, durante um bocado, mas finalmente levei-o a admitir que tinha certa pressa e disse-lhe que podia ir em qualquer altura. Ficou combinado que partiríamos dali a meia-hora.

Voltei para o quarto, confuso com aquela volta dos acontecimentos. Ele não significava nada para mim. E não havia absolutamente nada que me chamasse à cidade. Qual era então a razão daquela escapada? Além diso, parecia-me que a sua polidez para comigo era um bocado exagerada. De resto, se eu tivesse realmente pressa de ir à cidade os robots certamente se teriam encarregado do necessário. Não teria precisado de ir a pé. Quereria ele alguma coisa de mim? Mas o quê? Não me conhecia de lado nenhum… Estava a meditar no assunto, sem motivo que o justificasse, quando chegou a hora combinada e desci.

A mulher dele não se via e nem sequer apareceu à janela para se despedir uma vez mais dele. Ao princípio mantivemo-nos silenciosos no interior do espaçoso veículo, a ver surgir as curvas à medida que a estrada serpenteava entre os montes. Pouco a pouco, começámos a conversar e eu fiquei a saber que Marger era engenheiro.

— Hoje tenho de inspeccionar a estação-selex da cidade — informou-me. — Segundo me consta, você também é um cibemeticista?

— Da Idade da Pedra — respondi. — Desculpe… Mas como soube isso?

— Diseram-me na agência de viagens. Naturalmente, senti curiosidade acerca de quem seria o nosso vizinho.

— Ah!

Não dissemos nada durante momentos. A densidade crescente das excrecências de plástico colorido indicava que nos aproximávamos dos subúrbios.

— Se não se importa… gostaria de lhe perguntar se vocês, a tripulação, tiveram alguns problemas com os seus autómatos — disse, de súbito.

Compreendi, mais pelo tom da sua voz do que pela própria pergunta, que a minha resposta éra importante para ele. Seria isso que pretendia? Mas que queria ao certo?

— Refere-se a mau funcionamento? Tivemos centenas de problemas. Natural, aliás, visto que os nossos modelos, em comparação com os vossos, eram tão primitivos…

— Não, não me referia a mau funcionamento — apressou-se a corrigir. — Trata-se antes de flutuação de desempenho em condições tão variáveis… Hoje, infelizmente, não temos oportunidade de testar autómatos de modo tão minucioso.

Tratava-se afinal de uma questão puramente técnica. Ele estava meramente interessado em certos parâmetros funcionais de cérebros electrónicos, como se comportavam no contexto de fortes campos magnéticos, em nebulosas, em funis de perturbação gravitacional, e pensava que essa informação fizesse parte dos registos da expedição, temporariamente afastados da publicação. Disse-lhe o que sabia e, para dados mais especializados, aconselhei-o a contactar com Thurber, que tinha sido assistente do director científico da viagem.

— E poderia indicar o seu nome?

— Claro que sim.

Agradeceu-me calorosamente. Senti-me um bocadinho decepcionado. Tratava-se afinal só daquilo? Mas a conversa criara entre nós um laço profissional e eu interroguei-o, por minha vez, acerca do seu trabalho. Que era a tal estação-selex que tinha de inspeccionar?

— Ah, nada de muito interessante! Um monte de sucata… Do que eu gostaria realmente era de me dedicar ao trabalho teórico. Este trata-se de experiência prática e, mesmo assim, não muito útil.

— Experiência prática? Trabalho num monte de sucata? Como é possível? No fim de contas, é um cibemeticista…

— É sucata cibernética — explicou, com um sorriso ácido, e acrescentou, com certo desdém: — Somos muito poupados, compreende? Existe a ideia de que não se deve desperdiçar nada. No meu instituto poderia mostrar-lhe uma ou duas coisas interessantes, mas aqui…

Encolheu os ombros. O gleeder saiu da estrada principal, passou através de um alto portão de metal e entrou no grande pátio de uma fábrica. Vi séries de correias de transporte, guindastes rolantes e qualquer coisa como um forno modernizado.

— Agora pode dispor deste veículo — disse Marger.

De uma abertura na parede perto da qual parámos, um robot inclinou-se e disse-lhe qualquer coisa. Marger apeou-se e vi-o gesticular. Depois virou-se para mim, aborrecido.

— Maravilhoso! — exclamou. — Gloor está doente, Gloor é o meu colega… não estou autorizado a trabalhar sozinho. Que hei-de fazer?

— Qual é o problema? — perguntei, e apeei-me também.

— A inspecção tem de ser feita por duas pessoas… pelo menos por duas — explicou e, de súbito, o seu rosto iluminou-se. — Sr. Bregg! O senhor também é cibemiticista! Se concordasse…

— Ah, um cibemeticista! — exclamei, a sorrir. — Acrescente: antigo. Não sei nada.

— Mas trata-se apenas de uma formalidade! — interrompeu-me. — Eu encarregar-me-ei do lado técnico, claro. Só precisamos de uma assinatura, mais nada!

— Sério? — perguntei, devagar.

Compreendia a sua pressa em voltar para junto da mulher, mas não gostava de fingir ser o que não era. Não sirvo para cabeça-de-turco. Disse-Iho, embora, talvez, em termos mais brandos. Ele levantou os braços, como se quisesse defender-se.

— Por favor, não me interprete mal! Mas deve estar com pressa, não deve? Tinha um assunto a tratar na cidade. Nesse caso, eu… enfim, hei-de encontrar uma maneira qualquer… Desculpe-me…

— O meu assunto pode esperar — respondi-lhe. — Prossiga, por favor. Se puder, ajudo-o.

Entrámos num edifício branco que se encontrava a um lado. Marger conduziu-me por um corredor estranhamente vazio. Em alcovas viam-se alguns robots imóveis. Num pequeno escritório, mobilado com simplicidade, tirou um maço de papéis de um armário da parede, espalhou-os em cima da mesa e começou a explicar a natureza do seu — ou melhor, do nosso — trabalho. Não era grande coisa a dar explicações e pouco tardou para que me restassem poucas dúvidas quanto às suas probabilidades de uma carreira científica: presumia constantemente que eu tinha conhecimento de coisas que me eram completamente desconhecidas. Tive de o interromper repetidamente para lhe fazer perguntas embaraçosamente elementares, mas ele, compreensivo e não querendo ofender-me, aceitou todas essas provas da minha ignorância como se fossem virtudes.

No fim, fiquei a saber que nos últimos 50 anos existira uma separação total entre trabalho e vida. Toda — a produção era automatizada e se efectuava sob a supervisão de robots, que eram supervisados por outros robots, naquele âmbito já não havia lugar para pessoas. A sociedade levava a sua vida e os robots e os autómatos a deles. Com a excepção de que, para evitar aberrações imprevistas na ordem estabelecida deste exército mecânico de trabalho, eram necessárias inspecções periódicas, as quais eram efectuadas por especialistas. Marger era um deles.

— Não pode haver dúvida nenhuma — explicou-me — de que encontraremos tudo normal. Depois daremos uma vista de olhos a elos particulares do processo, assinaremos e pronto.

— Mas eu nem sequer sei o que se produz aqui! — apontei os edifícios através da janela.

— Absolutamente nada! — exclamou — Aí é que bate o ponto. Nada. Isto é simplesmente um depósito de sucata, como lhe disse.

Não me agradava aquele papel que me era inesperadamente imposto, mas não podia levantar objecções constantes.

— Está bem. Que devo, ao certo, fazer?

— O que eu fizer. Damos uma volta pelos complexos…

Deixámos os papéis no escritório e saímos para efectuar a inspecção. Primeiro passámos por uma imensa sala de selecção, onde uma espécie de pás automáticas agarravam montes de metal em chapa e outro torcido e partido, o esmagavam e o atiravam para prensas. Os blocos por estas ejectados viajavam por correias de transmissão para o transportador principal. À entrada, Marger pôs uma pequena máscara com um filtro e estendeu-me outra. Não podíamos falar um com o outro por causa do barulho. O ar estava cheio de uma poeira cor de ferrugem que saía das prensas em nuvens vermelhas. Prosseguimos pela sala seguinte, também muito ruidosa, e metemos por um passadiço para um andar onde filas de prensas consumiam a sucata que, partida em fragmentos mais pequenos e irreconhecível, saía de uma espécie de grandes funis. Numa galeria superior, que levava a um edifício do lado oposto, Marger conferiu as leituras dos contadores de controlo. Depois dirigimo-nos para o pátio da fábrica, onde o nosso caminho foi bloqueado por um robot que disse que o engenheiro Gloor chamava Marger ao telefone.

— Desculpe, volto já — disse-me Marger e correu por uma escada de caracol para um anexo de vidro que não ficava muito longe.

Fiquei parado sozinho no chão quente, ao sol. Olhei em redor. Os edifícios do fundo já tinham sido vistos por nós. Era onde estavam as prensas. Mas devido à distância e ao facto de serem à prova de som não vinha de lá nem um murmúrio. Isolado atrás do anexo onde Marger se dirigira havia um edifício baixo e invulgarmente comprido, uma espécie de caserna de lata. Dirigi-me para lá, em busca de um pouco de sombra, mas o calor das paredes metálicas era insuportável. Preparava-me para me afastar quando ouvi um som peculiar vindo do interior, um som difícil de identificar e que não se parecia nada com o barulho de máquinas a trabalhar. Trinta passos mais adiante encontrei uma porta de aço, à frente da qual se encontrava um robot. Ao ver-me, abriu a porta e afastou-se para o lado. O som curioso tornou-se mais forte. Olhei para o interior. Não era tão escuro como ao princípio pensara. Devido ao calor tórrido emanado pelas chapas metálicas, quase não podia respirar e teria recuado imediatamente se não fossem as vozes. Eram vozes humanas — deformadas, fundindo-se num coro rouco, abafadas, tagarelas, como se na penumbra estivessem a falar diversos telefones defeituosos. Dei dois passos incertos, rangeu qualquer coisa debaixo dos meus pés e falou claramente, do chão:

— FachaVor… xenhor… dê…

Fiquei pregado ao chão. O ar asfixiante sabia a ferro. O murmúrio vinha de baixo.

— FachaVor… dê uma vista… de olhos… Facha…

Juntou-se-lhe uma segunda voz monótona, a recitar firmemente:

— Ó anomalia excêntrica… Ó assimptota esférica… Ó pólo de infinida de… Ó protossistema linear… Ó sistema hoionómico… Ó espaço semimétrico… Ó espaço esférico… Ó espaço dieléctrico…

— Facha Vor… xenhor… seu criado… FachaVor…

Na escuridão fervilhavam murmúrios roucos, no meio dos quais se erguia, forte:

— O bioplasma planetário, a sua lama em decomposição, é a alvorada da existência, a fase inicial, e olhai, do sanguinário, cabeça de massa, saiu cobre…

— Brec… bric… brabzel…be… bre… veriscópio…

— Ó classe imaginária… Ó classe poderosa… Ó classe vazia… Ó classe das classes…

— FachaVor… dê uma vista… de olhos… xenhor…

— Calu-uda…

— Tu…

— Caiu…

— Ouça-me…

— Eu ouço…

— Pode tocar…?

— Brec… bric…brabzel…

— Sem braços…

— Que… p-pena… devia… devia ver como sou reluzente e frio…

— E-eles que de… volvam a minha armadura, a minha espada dourada… a minha herança… espoliada…

— Olhai os últimos esforços do emproado e grasnador mestre de aquartelamento e encarceração, pois é verdade, ele ergueu-se, três vezes se ergueu o reino vindouro dos não viventes…

— Estou novo… completamente novo… Nunca tive um defeito no esqueleto… Aqui estou apto… por favor…

— Fachavor…

Não sabia para que lado olhar, asfixiado pelo calor implacável e por aquelas vozes. Vinham de todos os lados. Do chão até às fendas das janelas, debaixo do tecto, erguiam-se montes de corpos torcidos e emaranhados; a pouca luz que entrava reflectia-se fracamente no metal amachucado desses corpos.

— Tive um defeito temp… um defeito temporário, mas agora estou… agora estou bem, vejo…

— Vês o quê… está escuro…

— Escute, por favor. Sou muito valioso, sou caro. Indico todas as fugas de energia, localizo toda a corrente desencaminhada, toda a sobrecarga, por favor, experimente-me… Esta… esta tremura é temporária… Não tem nada em comum com… por favor…

— Fachavor… xenhor…

— E os cabeças de massa tomaram a sua fermentação ácida por alma, o apunhalamento de carne por história, os meios de adiar a sua decadência por civilização…

— Por favor, eu… só eu… é um engano…

— Fachavor… xenhor… dê…

— Salvá-los-ei…

— Quem ç?

— O quê?

— Oue salva?

— Repitam comigo: o fogo não me consumirá completamente e a água não me conveilerá todo em ferrugem, ambos os elementos serão uma porta para mim e eu entrarei…

— Caluda, caluda!

— A contemplação do cátodo…

— Catodoplação…

— Estou aqui por engano… Penso… penso, no fim de contas…

— Eu sou espelho da traição…

— FachaVor… xenhor… seu criado… dê uma vista… de olhos…

— Ó voo do transfinito. ó voo das nebulosas… Ó voo das estrelas…

— Ele está aqui!!! — gritou qualquer coisa e seguiu-se um silêncio súbito, um silêncio quase tão penetrante, na sua terrível tensão, como o coro de muitas vozes que o precedera.

— Senhor!!! — disse qualquer coisa; não sei porque estava tão certo, mas senti que aquelas palavras me eram dirigidas e não respondi.

— Senhor, por favor… um momento do seu tempo. Senhor… eu sou diferente. Estou aqui por engano.

Houve um certo movimento.

— Silêncio! Estou vivo! — Esta voz abafou as outras. — Sim, fui atirado para aqui, eles vestiram-me propositadamente de metal para que ninguém soubesse, mas, por favor, encoste o seu ouvido a mim e ouvirá uma pulsação!

— Também eu! — ergueu-se sobre a primeira uma segunda voz. — Também eu, senhor! Estive doente, durante a minha doença imaginei que era uma máquina, foi essa a minha loucura, mas agora estou bem! Hallister, o Sr. Hallister pode confirmá-lo. Por favor, pergunte-lhe, por favor, leve-me daqui!

— Fachavor… facha" vor, xenhor…

— Brec… bric…

— Seu criado…

No barracão ecoavam vozes ásperas e a certa altura encheu-o todo um grito ofegante. Comecei a recuar e saí cambaleante para a luz do sol, ofuscado e a semicerrar as pálpebras. Parei um bocado, a proteger os olhos com a mão. Atrás de mim ouviu-se um som prolongado e áspero: o robot fechara e trancara a porta.

— Senhorrrr… — chegou-me ainda aos ouvidos através da onda de vozes abafadas atrás da parede. — FachaVor… serviço… um engano…

Passei pelo anexo de vidro. Não sabia para onde ia, só queria afastar-me daquelas vozes, não as ouvir. Dei um salto quando senti tocarem-me no ombro. Era Marger, louro, simpático, sorridente.

— Peço desculpa, Sr. Bregg. Nunca mais me despachava…

— Que lhes acontecerá? — interrompi-o quase grosseiramente, a apontar para o barracão.

— Perdão? — perguntou, a pestanejar. — A quem?

De súbito, compreendeu e ficou surpreendido:

— Ah, foi ali?! Não havia necessidade…

— Porquê?

— É sucata.

— Que quer dizer?

— Sucata para revestimento, após selecção. Vamos? Temos de assinar o registo oficial.

— Só um momento. Quem conduz essa selecção?

— Quem? Os robots, — O quê? São eles próprios que fazem isso?

Ficou silencioso, perante o meu olhar.

— Por que não são reparados?

— Não compensaria — respondeu devagar, surpreendido.

— E que lhes acontece?

— À sucata? Vai para ali — apontou para a chaminé estreita e solitária do forno.

No escritório os impressos estavam preparados, em cima da secretária — o registo oficial da inspecção e alguns outros papéis. Marger preencheu os espaços em branco, assinou e estendeu-me a caneta, que fiquei a virar nos dedos.

— E não há possibilidade de erro?

— Perdão?

— Ali. naquela… sucata, como lhe chama… eles podem ir lá parar… mesmo que ainda estejam eficientes, capazes de funcionar… que lhe parece?

Olhou para mim como se não compreendesse o que eu estava a dizer.

— Foi essa a impressão que tive — concluí, devagar.

— Mas isso não é da nossa conta.

— Da conta de quem é, então?

— Dos robots.

— Mas somos nós que fazemos a inspecção.

— Ah, não! — Sorriu, aliviado, ao compreender finalmente a origem do meu erro. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Nós inspeccionamos a sincronização de processos, o seu ritmo e eficiência, mas não nos prendemos com pormenores como selecção. Isso não é do nosso pelouro. Tirando o facto de ser desnecessário, seria também impossível, pois hoje há cerca de dezoito autómatos para cada pessoa. Desses dezoito, cinco terminam diariamente o seu ciclo e tomam-se sucata. Isso equivale a qualquer coisa da ordem dos dois biliões de toneladas por dia. Como vê, seríamos incapazes de nos avir com isso… e, de qualquer modo, a estrutura do nosso sistema baseia-se precisamente na relação oposta: os autómatos servem-nos e não nós a eles…

Não tive argumentos para rebater o que ele dizia. Sem uma palavra mais, assinei os papéis. Preparávamo-nos para partir quando eu próprio me supreendi ao ouvir a minha voz perguntar-lhe se também produziam robots humanóides.

— Não — respondeu, e acrescentou, relutante: — No seu tempo causaram complicações…

— Porquê?

— Bem, sabe como são os engenheiros! Atingiram um tal nível dc perfeição nas suas simulações que certos modelos não se distinguiam de seres humanos vivos. Algumas pessoas não o podiam tolerar.

De súbito, lembrei-me da hospedeira da nave que me trouxera de Luna.

— Não o podiam tolerar? — repeti as palavras dele. — Era, então, uma coisa assim como uma fobia?

— Não sou psicólogo, mas creio que lhe pode chamar isso. De qualquer modo, trata-se de história antiga.

— E ainda há robots desses?

— Oh, sim! Andam em foguetões de curta distância. Encontrou algum?

Dei uma resposta evasiva.

— Terá tempo agora de tratar do seu assunto? — perguntou-me, preocupado.

— Do meu assunto?…

Depois lembrei-me de que dissera que tinha qualquer coisa a tratar na cidade. Separámo-nos à entrada da estação, aonde ele me conduzira enquanto me agradecia por o ter libertado de uma situação difícil.

Vagueei pelas ruas, fui a um realon, mas saí antes do meio do ridículo espectáculo, e regressei a Clavestra muito deprimido. Mandei embora o gleeder a um quilómetro da vila e percorri o resto do caminho a pé. Estava tudo em ordem. Eram mecanismos de metal, fio e vidro, que se podiam montar e desmontar, disse a mim mesmo. Mas não consegui afastar a recordação daquela sala, da escuridão e das vozes deformadas, daquela cacofonia de desespero que continha excessivo significado, excessivo medo, do medo mais comum. Disse a mim mesmo que era um especialista nessa matéria, que a saboreara o suficiente: o horror perante a perspectiva da aniquilação súbita deixara de ser uma ficção para mim, embora o fosse para eles, para aqueles sensatos planeadores que tinham organizado tudo tão bem: os robots encarregavam-se da sua espécie, faziam-no até ao próprio fim, e o homem não interferia. Era um ciclo fechado de instrumentos de precisão que se criavam, reproduziam e desiruiam a si mesmo, e eu ouvira escusadamente a agonia da morte mecânica.

Parei no alto de um monte. O panorama, sob os raios oblíquos do sol. era indescritivelmente belo. De vez em quando, um gleeder a brilhar como uma bala preta passava velozmente pela faixa da auto-estrada, apontado ao horizonte onde se erguiam montanhas em contornos azulados, suavizados pela distância. De súbito, achei que não podia olhar, como se não tivesse o direito de olhar, como se houvesse uma horrível decepção em tudo aquilo, uma decepção que me apertava a garganta. Sentei-me entre as árvores e ocultei o rosto nas mãos. Lamentei ter regressado. Quando entrei em casa um robot branco dirigiu-se-me:

— Tem um telefonema à sua espera — informou-me, em tom confidencial. — Longa distância. Eurásia.

Segui-o rapidamente. O telefone estava no vestíbulo, de modo que enquanto falava podia ver o jardim através da porta de vidro.

— Hal? — perguntou uma voz distante, mas clara. — É Olaf.

— Olaf… Olaf! — repeti, em tom triunfante. — Onde estás, amigo?

— Em Narvik.

— Que estás a fazer? Como vai isso? Recebeste a minha carta?

— Claro. Foi por ela que soube que te podia encontrar.

Um momento de silêncio.

— Que estás a fazer? — repeti, menos certo.

— Que poderei fazer? Não estou a fazer nada. E tu?

— Foste para a Adaptação?

— Fui, mas só um dia. Parei. Não podia, como sabes…

— Pois sei. Escuta, Olaf… Aluguei aqui uma moradia. Pode não ser… Ouve, vem até cá!

Não respondeu logo. Quando o fez, havia hesitação na sua voz.

— Gostaria de ir. E, talvez vá, Hal… mas tu sabes o que eles nos disseram…

— Sei. Mas que nos podem fazer? De qualquer modo, que vão para o inferno. Vem.

— Para quê? Pensa, Hal. Podia ser…

— O quê?

— Pior.

— Como sabes que não me estou a divertir aqui à grande?

Ouvi a sua gargalhada breve, que mais parecia um suspiro. Ria tão baixinho!

— Então para que me queres aí?

Tive, de súbito, uma ideia:

— Escuta, Olaf. Isto aqui é uma espécie de estância de Verão. Uma moradia, uma piscina, jardins. O único problema… mas tu deves saber como as coisas são, a maneira como eles vivem, não é verdade?

— Tenho uma vaga ideia, sim.

O tom disse mais do que as palavras.

— Aí tens. Agora presta atenção. Vem para cá, mas primeiro arranja umas… luvas de boxe! Dois pares. Daremos uns toques. Verás, será formidável!

— Jesus, Hal! Onde irei eu arranjar luvas de boxe? Provavelmente não as fazem há anos.

— Manda-as fazer! Não me digas que é impossível fazer quatro estúpidas luvas. Montaremos um pequeno ringue… e esmurrar-nos-emos um ao outro. Nós dois podemos, Olaf! Presumo que ouviste falar de betrização?

— Hum… Hei-de dizer-te o que penso disso, mas não pelo telefone. Poderia haver alguém com ouvidos delicados.

— Vem, homem! Fazes o que eu disse?

Ficou silencioso durante um bocado.

— Não sei se é sensato, Hal.

— Está bem. Então diz-me, já agora, que planos tens. Se tiveres alguns, não ousarei, naturalmente, incomodar-te qom os meus caprichos.

— Não tenho nenhuns. E tu?

— Vim para aqui para descansar, para me instruir e ler, mas isto não são planos, são apenas… Enfim, não consegui imaginar mais nada para mim.

Silêncio.

— Olaf?

— Parece que estamos nas mesmas circunstâncias, à partida — resmungou. — .No fim de contas, poderei vir-me embora em qualquer ocasião, se verificar que…

— Pára com isso! — interrompi-o, impaciente. — Não há nada que discutir. Faz uma mala e vem. Quando podes chegar?

— Amanhã de manhã. Queres realmente jogar boxe?

— E tu não queres?

Riu-se.

— Sim, com os diabos! E pela mesma razão que tu.

— Então está combinado — disse, muito depressa. — Fico à tua espera. Cuida de ti.

Fui para o quarto. Procurei entre algumas coisas que metera numa mala e encontrei a corda. Um grande rolo. Cordas para um ringue. Quatro postes, um bocado de borracha ou molas e estaríamos feitos. Não haveria árbitro. Não precisaríamos.

Depois sentei-me para ler. Mas parecia que tinha a cabeça cheia de cimento. Já tivera a mesma sensação no passado, mas nunca com tanta intensidade. Em duas horas peguei em 20 livros e não consegui concentrar a atenção em nada durante mais de cinco minutos. Pus de parte até os contos de fadas. Decidi, no entanto, não estar com contemplações. Peguei no que me pareceu a coisa mais difícil, uma monografia sobre a análise de metagenes, e atirei-me às primeiras equações como se me atirasse, de cabeça baixa, a uma parede de pedra.

No entanto, a matemática tinha certas propriedades benéficas, particularmente para mim, pois ao fim de uma hora compreendi subitamente, fiquei boquiaberto e cheio de respeito. Como conseguira aquele Ferret fazer aquilo? Mesmo agora, retrocedendo pelo caminho que ele abriu, havia momentos em que me perdia. Passo a passo ainda me aguentava, mas aquele homem devia ter feito tudo num salto.

Teria dado todas as estrelas para ter na minha cabeça, durante um mês, qualquer coisa parecida com o conteúdo da sua.

Tocou o sinal para o jantar e ao mesmo tempo senti uma volta nas tripas, a lembrar-me de que não estava sozinho. Durante um segundo considerei a ideia de comer no quarto. Mas a vergonha venceu-me. Atirei para debaixo da cama a horrível camisa apertada que me dava o aspecto de um macaco inflado, vesti a minha impagável camisola velha, solta, e fui para a sala de jantar. Tirando a troca de algumas delicadezas banais, houve silêncio. A conversa esteve ausente. Eles não precisavam de palavras. Comunicavam por olhares. Ela falava com ele com a cabeça, as pestanas e o leve sorriso. Lentamente, começou a crescer dentro de mim um peso frio e senti os braços famintos, desejosos de agarrar qualquer coisa, apertar, esmagar. Porque era tão selvagem? — perguntei-me com desespero. Porque seria que em vez de pensar no livro de Perret, nas questões levantadas por Starck e em vez de tratar dos meus próprios assuntos tinha de lutar comigo mesmo para não sorrir àquela rapariga como um lobo?

Mas só me senti assustado quando me fechei no quarto, no andar de cima. Na Adaptação tinham-me dito, depois dos testes, que era completamente normal. O Dr. Juffon confirmara-o. Mas uma pessoa normal poderia sentir o que eu sentia naquele momento? De onde vinha aquilo? Eu não era um participante: era uma testemunha. Estava a realizar-se qualquer coisa, qualquer coisa irreversível como o movimento de um planeta, uma emergência gradual e quase imperceptível, ainda sem forma. Fui à janela, olhei para o jardim às escuras e apercebi-me de que, o que quer que era, devia estar em mim desde o almoço, desde o primeiro momento. Nem sequer precisara de um certo período de tempo. Por isso eu fora à cidade, por isso esquecera as vozes no escuro.

Era capaz de fazer fosse o que fosse por aquela rapariga. Não compreendia, porém, o como nem o porquê do que me acontecia. Não sabia se era amor ou loucura. Isso não importava. Só sabia que tudo o mais perdera a importância para mim. E lutei contra isso, de pé junto da janela aberta, como nunca lutara contra coisa alguma. Comprimi a testa contra o vidro frio e tive medo de mim mesmo.

«Tenho de fazer qualquer coisa», pensei. «Tenho de fazer qualquer coisa. Isto acontece porque algo está errado em mim. Passará. Ela não pode significar nada para mim. Não a conheço. Nem sequer é especialmente bonita. Mas pelo menos não farei nada. Não farei…», supliquei a mim próprio. «Pelo menos não cometerei nenhuma… Não, por Deus!»

Acendi a luz. Olaf. Olaf salvar-me-ia. Contar-lhe-ia tudo. Ele tomaria conta de mim. Iríamos para qualquer lado. Eu faria o que ele me dissesse, tudo o que ele me dissesse. Só ele compreenderia. Olaf chegaria no dia seguinte. Óptimo.

Andei de um lado para o outro. Sentia cada um dos meus mtisculos, era como se estivesse cheio de animais que se retesavam e lutavam uns com os outros. De súbito, ajoelhei-me junto da cama, mordi o cobertor e soltei um som estranho, um som seco e horrível, que não se parecia com um soluço. Eu não queria, eu não queria fazer mal a ninguém, mas sabia que era inútil mentir a mim mesmo, que Olaf me não poderia ajudar, nem ele nem ninguém.

Levantei-me. Durante 10 anos aprendera a tomar decisões repentinas, decisões de que dependiam vidas, a minha e as de outros, e fizera-o sempre do mesmo modo: friamente, com o cérebro transformado numa máquina feita para calcular os prós e os contras, para separar e solucionar, irrevogavelmente. Até Gimma, que não gostava de mim, reconhecia a minha imparcialidade. E agora, mesmo que quisesse, não poderia agir de modo diferente, mas só como então agira, numa situação extrema, porque esta também o era. Vi o meu rosto ao espelho. As íris pálidas, quase brancas, as pupilas apertadas. Olhei com ódio e afastei-me. Não podia pensar em ir para a cama. Tal qual como estava, passei as pernas por cima do parapeito da janela. Eram quatro metros até ao chão. Saltei e aterrei quase silenciosamente. Corri no mesmo silêncio na direcção da piscina, ultrapassei-a e cheguei à estrada. A superfície fosforescente levava para os montes, ziguezagueava entre eles como uma serpente reluzente, uma víbora, até desaparecer, cicatriz de luz nas sombras. Corri cada vez mais depressa, para cansar o coração que batia tão firmemente, tão fortemente. Corri durante cerca de uma hora até ver as luzes de algumas casas em frente. Regressara ao ponto de partida. Estava cansado, mas por essa razão mantive o mesmo passo, dizendo-me silenciosamente: «Anda! Anda! Anda!» Continuarei a correr e finalmente cheguei a uma fila dupla de sebes. Estava de novo defronte do jardim da vila.

A respirar com dificuldade, parei junto da piscina e sentei-mé na borda de cimento. Baixei a cabeça e vi as estrelas reflectidas na água. Mas não queria as estrelas. Não as queria para nada. Estivera louco, dementado, quando lutara para conseguir um lugar na expedição, quando permitira que me transformassem num saco sangrento nos gravi-rotores. Que razão tivera para fazer isso e por que motivo não compreendera que um homem deve ser vulgar, completamente vulgar, pois de contrário é impossível, e inútil, viver?

Ouvi uma restolhada. Eles passaram por mim. Ele enlaçava-a e caminhavam com o mesmo passo. Ele inclinou-se. As sombras das suas cabeças fundiram-se.

Levantei-me. Ele beijava-a. Ela abraçava-lhe a cabeça. Vi os contornos pálidos dos braços dela. Depois traspassou-me como uma faca um sentimento de vergonha, de vergonha como nunca sentira, horrível e nauseante. Eu, viajante interstelar, companheiro de Arder, regressara, encontrava-me num jardim e só pensava na maneira de tirar uma rapariga a um homem qualquer, sem saber nada dele nem dela. Era um pulha, um pulha das estrelas sem atenuantes, pior, pior do que isso…

Não pude olhar. Mas olhei. Por fim, eles retrocederam devagar, agarrados um ao outro, e eu contornei a piscina e parti de novo. Depois vi uma grande sombra preta e ao mesmo tempo embati em qualquer coisa com as mãos. Era um carro. Às apalpadelas, encontrei a porta. Quando a abri, acendeu-se uma luz.

Tudo quanto fiz a partir desse momento foi com uma pressa deliberada, concentrada, como se devesse ir a algum lado, como se tivesse de ir…

O motor reagiu. Girei o volante e, de faróis acesos, saí para a estrada. As mãos tremiam-me um pouco e, por isso, apertei o volante com mais força. De súbito, lembrei-me da pequenina caixa preta. Travei bruscamente, saí da estrada a derrapar, apeei-me de um salto, levantei a capota e comecei a procurá-la febrilmente. Não conseguia encontrá-la, o motor era completamente diferente. Talvez mesmo à frente… Fios. Um bloco de ferro fundido.

Uma cassette. Qualquer coisa estranha, quadrada… sim, era isso. Ferramentas. Trabalhei furiosamente, mas com cuidado. Quase não ensanguentei as mãos. Por fim, levantei o cubo preto, pesado como se fosse de metal sóhdo, e atirei-o para o mato ao longo do lado da estrada. Estava livre. Bati com a porta e arranquei. O ar começou a assobiar. Mais velocidade. O motor rugia, os pneus emitiam um silvo penetrante. Uma curva. Lancei-me nela sem afrouxar, guinei para a esquerda, saí da curva. Outra, mais apertada. Senti uma enorme força a empurrar-me, juntamente com o veículo, para o lado de fora da curva. Mas ainda não era o suficiente. Na próxima curva. Em Apprenous tinham carros especiais para pilotos. Fazíamos proezas neles, para melhorar os reflexos. Excelente treino. Também desenvolvia um sentido de equilíbrio. Por exemplo, numa curva lançava-se o carro nas duas rodas exteriores e conduzia-se um bocado assim. Fora capaz de fazer isso, em tempos. E voltei a fazê-lo naquele momento, na auto-estrada deserta, lançado através da escuridão rasgada pelos meus faróis. Não que quisesse matar-me. O que acontecia, simplesmente, era que nada me importava. Se não demonstrava nenhuma misericórdia pelos outros também a não podia ter por mim próprio. Lancei o carro na curva e levantei-o, de modo que, por um momento, foi de lado, com os pneus a gritar; seguidamente, atirei-o de novo na direcção oposta e embati com a retaguarda em qualquer coisa escura — uma árvore? Depois só havia o rugido do motor a adquirir velocidade, e os reflexos pálidos dos mostradores do painel, e o vento a assobiar ferozmente. Em seguida vi, à minha frente, um gleeder. Tentou evitar-me chegando-sè para a beirinha da estrada. Um pequeno movimento do volante permitiu-me passar por ele. Mas o meu pesado veículo girou como um pião, houve um choque surdo, o barulho de metal lacerado e escuridão. Os faróis estavam espatifados, o motor parado.

Respirei fundo. Não me acontecera nada, nem uma beliscadura. Experimentei os faróis. Naaa, Tentei com os farolins da frente. O esquerdo funcionou. À sua fraca luz liguei o motor. O carro, a gemer, manquejou para a auto-estrada. Uma excelente máquina, apesar de tudo. Ainda me obedecia, depois daquilo a que a expusera. Voltei para trás, mais devagar. Mas o meu pé premiu o pedal, voltou a entrar em mim qualquer coisa quando vi aproximar-se uma curva. E de novo exigi o máximo ao motor, até que, com os pneus a chiar, impelido para a frente pelo ímpeto, me encontrei defronte da sebe. Conduzi o carro para os arbustos. Afastando para o lado os ramos, acabou por parar encostado a um toco de árvore. Como não queria que ninguém soubesse o que lhe fizera, arranquei alguns ramos e coloquei-os sobre a capota e os faróis partidos. Havia apenas uma pequena amolgadela na retaguarda, da primeira colisão com o que quer que fosse, na escuridão.

Escutei. A casa estava às escuras. Reinava o silêncio. O grande silêncio da noite que chegava às estrelas. Não queria voltar para dentro. Afastei-me do carro amachucado e quando a erva — a erva alta e húmida — me chegou aos joelhos, deixei-me cair e fiquei assim até os olhos se me fecharem e adormecer.

Acordou-me uma gargalhada, que reconheci. Soube quem era antes de 112

abrir os olhos, instantaneamente acordado. Estavà encharcado, não havia nada que não escorresse orvalho. O Sol ainda estava baixo. O céu, tufos de nuvens brancas e. defronte de mim, sentado numa pequena mala, Olaf a rir. Levantámo-nos ao mesmo tempo. A sua mão era como a minha, tão grande e tão dura como ela.

— Quando chegaste?

— Há um momento.

— De ulder?

— Sim. Também dormi assim, nas duas primeiras noites.

— Sim?

Deixou de sorrir e eu também. Como se qualquer coisa se erguesse entre nós. Estudámo-nos mutuamente.

Ele era da minha altura, talvez até um pouco mais alto, mas mais delgado. À luz forte, o seu cabelo, embora escuro, denunciava a sua origem escandinava e a barba de um dia era completamente loura. Nariz curvo, cheio de carácter, e um lábio superior curto, que lhe mostrava os dentes. Os seus olhos, que sorriam facilmente, eram de um azul-pálido que escurecia quando sorria; lábios finos, com um ligeiro e eterno arquear, como se aceitasse tudo com cepticismo — talvez fosse essa sua expressão que nos fazia manter uma certa distância um do outro. Olaf era dois anos mais velho do que eu: o seu melhor amigo tinha sido Arder. Só depois de Arder morrer nos tomáramos íntimos. Para sempre, agora.

— Deves estar com fome, Olaf. Vamos arranjar qualquer coisa para comer.

— Espera. Que é aquilo?

Segui a direcção do seu olhar.

— Ah. aquilo!… Nada… Um carro. Comprei-o… para me recordar.

— Tiveste um acidente?

— Tive. Estava a conduzir à noite, compreendes…

— Tu, um acidente? — repetiu.

— Tive, pronto. Mas nada de importante. De qualquer modo, não aconteceu nada. Vamos, não vais ficar aí parado, com essa mala…

Pegou na mala sem dizer nada. Não òlhou para mim. Os músculos do seu queixo retesaram-se.

«Desconfia de qualquer coisa», pensei. «Não sabe o que causou o acidente, mas desconfia…»

No andar de cima, disse-lhe que escolhesse um dos quatro quartos vazios. Escolheu aquele de onde se viam as montanhas.

— Porque não o quiseste? — perguntou-me e depois sorriu. — Já sei! Por causa dos dourados, não foi?

— Foi.

Tocou na parede com a mão.

— Vulgar, espero? Nem imagens, nem televisão?

— Fica tranquilo. — Foi a minha vez de sorrir. — É umá parede normal.

Telefonei a pedir o pequeno-almoço. Queria que comêssemos sozinhos.

O robot branco trouxe café. E um tabuleiro cheio, com um pequeno-almoço farto. Vi-o comer com prazer. Mastigava de tal maneira que um tufo de cabelo, por cima de uma orelha, se mexia. Quando acabou, perguntou-me:

— Ainda fumas?

— Ainda. Trouxe dois pacotes. O que acontecerá depois disso, não sei. Por enquanto, fumo. Queres um?

— Um. Fumámos.

— Como vai ser? Cartas na mesa? — perguntou, após uma longa pausa.

— Sim. Eu dir-te-ei tudo. E tu a mim?

— Sempre. Mas, Hal, não sei se vale a pena.

— Diz-me uma coisa: sabes o que é o pior de tudo?

— Mulheres.

— Exactamente.

Ficámos de novo silenciosos.

— É por causa disso? — perguntou-me.

— É. Verás ao jantar. Lá em baixo. Eles alugaram metade da moradia.

— Eles?

— Um jovem casal.

Os músculos do seu queixo moveram-se de novo sob a pele sardenta.

— Isso é pior.

— Pois é. Estou aqui há dois dias. Não sei como foi possível, mas… logo na primeira conversa. Sem qualquer razão, sem qualquer… nada, nada. Absolutamente nada.

— Curioso.

— O quê?

— Fiz o mesmo.

— Então porque vieste?

— Fizeste uma boa acção, Hal. Compreendes?

— Por ti?

— Não. Por outra pessoa. Teria acabado mal.

— Porquê?

— Ou sabes, ou então não compreenderás.

— Sei. Que é isto, Olaf? Somos realmente selvagens?

— Não sei. Estivemos dez anos sem mulheres. Não esqueças isso.

— Isso não explica tudo. Há uma espécie de implacabilidade em mim, não tomo ninguém em consideração, compreendes?

— Ainda tomas, meu amigo. Ainda tomas.

— Bem, é verdade. Mas tu sabes o que quero dizer.

— Pois sei. Novo silêncio.

— Queres falar mais ou jogar boxe? — perguntou-me por fim. Ri-me.

— Onde arranjaste as luvas?

— Hal, nunca adivinharias.

— Mandaste-as fazer?

— Roubei-as.

— Não!

— Palavra! De um museu. Tive de voar para Estocolmo especialmente para as arranjar.

— Nesse caso, vamos.

Olaf tirou da mala os seus modestos pertences e mudou de roupa. Vestimos ambos roupões e descemos. Ainda era cedo. Normalmente, o pequeno-almoço só seria servido dali a meia hora.

— Acho melhor irmos para as traseiras da casa — sugeri. — Lá ninguém nos verá.

Parámos num círculo de arbustos altos. Primeiro espezinhámos a erva, que já de si era baixa.

— É escorregadio — disse Olaf, a fazer deslizar um pé no ringue improvisado.

— Não tem importância. Será mais difícil.

Calçámos as luvas. Tivemos um pequeno problema, pois não havia ninguém para as atar e eu não queria chamar um robot.

Olaf parou à minha frente. O seu corpo era completamente branco.

— Ainda hão bronzeaste — observei.

— Mais tarde contar-te-ei o que me tem acontecido. Não tive tempo para ir à praia. Gongo.

— Gongo.

Começámos sem pressa. Uma finta. Outra e outra. Aqueci. Dava mais sapatadas do que socos. Não queria, realmente, aleijá-lo. Eu era uns bons 15 kg mais pesado e o seu alcance ligeiramente mais comprido não anulava a minha vantagem, tanto mais que eu era também o melhor pugilista. Por essa razão dei-lhe diversas vezes uma aberta, embora não fosse obrigado a isso. De súbito, ele baixou as luvas. Tinha o rosto duro. Estava zangado.

— Desta maneira, não — declarou.

— Que se passa?

— Nada de brincadeiras, Hal. Ou jogamos boxe ou não jogamos.

— Está bem! — exclamei, e cerrei os dentes. — Jogamos boxe.

Comecei a penetrar. Luva bateu em luva com uma pancada forte. Ele apercebeu-se de que eu estava a sério e levantou a guarda. O ritmo acelerou-se. Fintei para a esquerda e para a direita, sucessivamente, e a última pancada quase lhe acertou no peito — Olaf não foi suficientemente rápido. Inesperadamente, tomou a ofensiva e encaixou uma bela direita que me atrirou dois passos para trás. Refiz-me imediatamente. Andámos ã roda, ele atacou e eu ocultei-me atrás da luva, recuei e atirei uma direita directa de meia distância, com o meu peso atrás. Olaf pareceu amolecer e afrouxou por momentos a guarda, mas depois avançou cuidadosamente, encolhido. No minuto seguinte bombardeou-me com socos. As luvas batiam-me nos antebraços com um barulho assustador, mas inofensivamente. Uma vez, esquivei-me mesmo a tempo e a sua luva ainda me roçou na orelha. Se tem acertado em cheio ter-me-ia atirado ao chão. Andámos de novo ã roda. Ele levou um soco no peito, com força, baixou a guarda e eu poderia tê-lo fustigado, mas não fiz nada, fiquei como que paralisado… Ela estava a uma das janelas, tão branca como o tecido que lhe cobria os ombros. Passou uma fracção de segundo. No instante seguinte, um soco violento deixou-me atordoado. Caí de joelhos.

— Desculpa! — ouvi Olaf gritar.

— Não tens nada de que pedir desculpa… Foi um bom golpe — tartamudeei, a levantar-me.

A janela fechara-se. Combatemos talvez meio minuto mais e, de súbito, Olaf recuou.

— Que se passa contigo?

— Nada.

— Não é verdade.

— Está bem, já me chega. Não estás zangado?

— Claro que não. Não fazia sentido nenhum, de qualquer modo, recomeçar… Vamos.

Fomos para a piscina. Olaf era melhor mergulhador do que eu. Era capaz de fazer coisas fantásticas. Temei um gainer com torsão, como ele fazia, mas só consegui bater na água com as coxas. Sentado na beira da piscina, salpiquei a pele a arder com água. Olaf riu-se.

— Perdeste a prática.

— Que queres dizer? Nunca fui capaz de dar esse salto bem. Tu é que és formidável!

— Nunca se perde o jeito. Hoje foi a primeira vez.

— Sério?

— Sério. Isto é óptimo.

O Sol já estava alto. Deitámo-nos na areia e fechámos os olhos.

— Onde estão… eles? — perguntou-me, após longo silêncio.

— Não sei. Provavehnente no seu quarto. As janelas dão para as traseiras da casa. Eu não sabia.

Senti-o mexer-se. A areia estava muito quente.

— Sim, foi por causa disso — murmurei.

— Eles viram-nos?

— Ela viu-nos.

— Deve ter-se assustado, não achas? — perguntou, baixinho.

Não respondi. Nova pausa.

— Hal!

— Que é?

— Sabias que eles agora quase não voam?

— Sabia.

— Sabes porquê?

— Alegam que não vale a pena…

Comecei a expor-lhe o que lera no livro de Starck. Ele permaneceu imóvel e calado, mas eu sabia que escutava atentamente.

Quando acabei, não falou logo.

— Leste Shapley?

Salto em que o mergulhador sai da prancha voltado para a frente, dá uma cambalhota para trás e entra na água com os pés. (N. da T.)

— Não. Que Shapley?

— Não? Pensei que tinhas lido tudo… Um astrónomo do século XX. Um dos seus livros veio parar-me às mãos, uma vez, precisamente sobre esse assunto. Muito parecido com o teu Starok.

— O quê? Isso é impossível. Shapley não podia saber… Mas lê tu mesmo o Starck.

— Não tenciono fazê-lo. Sabes o que tudo isso é? Uma cortina de fumo.

— Uma cortina de fumo?

— Sim. Julgo saber o que aconteceu.

— Que foi?

— Betrização.

Sentei-me.

— Achas que sim?

Olaf abriu os olhos.

— É óbvio. Eles não voam nem nunca voarão. Irá de mal a pior. Papas. Um grande chiqueiro de papas. Não suportam ver sangue. Não podem pensar no que poderia acontecer quando…

— Aguenta aí — interrompi-o. — Isso é impossível. No fim de contas, há médicos. Deve haver cirurgiões…

— Então não sabes?

— Não sei o quê?

— Os médicos só planeiam as operações. São os robots que as fazem.

— Não pode ser!

— Estou a dizer-te! Eu próprio vi, em Estocolmo.

— E se um médico tem de intervir, de repente?

— Não tenho a certeza. Deve haver uma droga que anule parcialmente os efeitos da betrização, durante muito pouco tempo, mas eles ocultam isso, como podes imaginar. A pessoa que me disse não quis adiantar nada específico. Teve medo.

— De quê?

— Não sei, Hal. Penso que eles fizeram uma coisa terrível. Mataram o homem que havia no homem.

— Exageras — murmurei, debilmente. — De qualquer modo…

— Na realidade é muito simples. Aquele que mata está preparado para ser ele prório morto, não é?

Fiquei calado.

— E consequentemente pode-se dizer que é essencial uma pessoa ser capaz de arriscar… tudo. Nós somos capazes. Eles não são. É por isso que têm tanto medo de nós.

— As mulheres?

— Não só as mulheres. Eles todos, Hal!

Sentou-se bruscamente.

— O que é?

— Tens um hipnagogue?

— Um hipna… aquela máquina para aprender enquanto dormimos?

— Tenho.

— Utilizaste-a? — quase gritou.

— Não. Qual é o problema?…

— Tens sorte. Atira-a à piscina.

— Mas porquê? De que se trata? Utilizaste alguma?

— Não. Tive um pressentimento e ouvi-a acordado, embora as instruções proibissem isso. Nem fazes ideia!

Voltei-me para ele.

— Que contém a máquina?

— Rebuçados. Uma autêntica confeitaria, acredita. Que deves ser calmo, que deves ser cortês. Que deves resignar-te a todas as coisas desagradáveis e que se alguém não te compreende ou não quer ser bom para ti — uma mulher, por outras palavras—, a culpa é tua e não dessa pessoa. Que o maior bem é o equilíbrio social, a estabilidade, etc., etc., num círculo que nunca mais acaba. Conclusão: vive calmamente, escreve as tuas memórias — mas não para publicação; só para ti —, dedica-te ao desporto e educa-te. Respeita os mais velhos.

— Um substituto para a betrização — murmurei.

— Claro. E muito mais coisas do mesmo género; que nunca devemos usar a força ou sequer um tom agressivo para quem quer que seja e que é uma grande má acção bater em alguém, é mesmo um crime, pois causa um choque terrível. Que não se deve lutar em circunstâncias nenhumas, pois só os animais lutam, que…

— Espera… E se algum animal selvagem foge de uma reserva… não… já não há animais selvagens…

— Não há animais selvagens, mas há robots.

— Que quer isso dizer? Insinuas que se lhes podia dar uma ordem para matar?

— Isso mesmo.

— Como sabes?

— Não tenho a certeza. Mas eles têm de estar preparados para emergências. Até um cão betrizado pode ficar raivoso, não pode?

— Mas então… espera um momento! Então eles podem matar, no fim de contas? Por meio de ordens? Não é a mesma coisa se eu efectuo a morte ou dou a ordem?

— Para eles, não. Mas isso só aconteceria in extrçmis, compreendes? Em caso de uma calamidade ou uma ameaça, como a do cão raivoso. De modo geral não acontece. Mas se nós…

— Nós?

— Sim, por exemplo, tu e eu… se nós… sabes o que quero dizer… então, claro, os robots e não eles encarregar-se-iam de nós. Eles não podem. São bons.

Ficou um momento calado. O seu peito largo, avermelhado pelo sol e pela areia, arfava.

— Hal, se eu tivesse sabido… se eu tivesse sabido isto! Se… eu tivesse… sabido… isto…

— Pára!

— Já te aconteceu alguma coisa?

— Já.

— Sabes de que estou a falar?

— Sei. Houve duas. Uma convidou-me logo que saí da estação, embora não tenha sido exactamente assim… eu perdi-me na maldita estação e ela levou-me a casa.

— Sabia quem tu eras?

— Eu disse-lhe. Ao princípio ficou assustada, mas depois… Atirou-se de certo modo — não sei se por compaixão, se não —, mas acabou por se assustar a valer. Fui para um hotel. No dia seguinte… Sabes quem encontrei? Roemer!

— Não me digas! Ele deve ter… cento e setenta anos, não?

— Não, era a filho. Mesmo assim, o homem tem quase cento e cinquenta anos. Uma múmia. Horrível. Falei com ele. E sabes o que descobri? Inveja-nos…

— Não tem nada que invejar.

— Ele não compreende isso. Embora, no entanto, haja alguma coisa. Depois foi uma actriz. Chamam-lhes realistas. Ficou encantada comigo, um verdadeiro pitecantropo! Fui a casa dela e no dia seguinte safei-me. Era um palaácio. Magnificente. Mobília que desabrochava como flores, paredes móveis, camas que liam os nossos pensamentos e desejos…

— Hum… Ela não teve medo, hem?

— Teve, mas bebeu qualquer coisa… Não sei o que foi, talvez um narcótico qualquer. Perto, ou coisa parecida.

— Perto?

— Sim. Sabes o que é? Já bebeste?

— Não — respondeu, devagar. — Não bebi. Mas é o nome do que anula…

— A betrização? Não!

— Foi o que a tal pessoa me disse.

— Quem?

— Não te posso dizer. Dei a minha palavra.

— Está bem. Então foi por isso… foi por isso que ela…

Calei-me.

— Senta-te.

Sentei-me.

— E tu? — perguntei. — Tenho estado para aqui a falar de mim…

— Eu? Nada. Quero dizer, nada resultou, para mim. Nada…

Fiquei de novo calado.

— Como se chama este lugar? — perguntou-me.

— Clavestra. Mas a cidade fica a alguns quilómetros de distância. Olha, vamos até lá. Preciso de reparar o carro. Viremos a corta-mato… uma pequena corrida. Que dizes?

— Hal, estabanado… — murmurou, devagar.

— Porquê?

Os seus olhos sorriam.

— Pensas que podes expulsar o demónio com atletismo? És um asno.

— Decide-te: ou sou um estabanado ou um asno. Que mal há em pensar assim?

— Não dará resultado. Já tocaste num deles?

— Se já… ofendi algum? Não. Porquê?

— Não, pergunto se tocaste num deles?

Compreendi finalmente.

— Não houve nenhuma razão para isso. Por que perguntas?

— Não o faças.

— Porquê?

— Porque é o mesmo que bater numa velha. Compreendes?

— Mais ou menos. Entraste nalguma briga?

Tentei não manifestar a minha surpresa. Olaf tinha sido um dos homens com mais autodomínio de bordo.

— Entrei. Fiz uma perfeita figura de idiota. Foi no primeiro dia. À noite, para ser exacto. Não consegui sair do posto dos Correios. Não havia porta, somente uma coisa que girava. Já viste alguma?

— Uma porta giratória?

— Não. Penso que tinha alguma coisa a ver com o controlo da gravitação. Em resumo, rodopiei como um pião e um gajo que estava com uma rapariga apontou para mim e riu-se.

A pele da minha cara pareceu ficar mais esticada.

— Velha ou não — comentei —, ele provavelmente não voltará a rir.

— Pois não. Ficou com uma clavícula partida.

— Não te fizeram nada?

— Não. Não porque eu acabara de sair da geringonça e ele provocou-me… eu não o agredi logo, Hal. Perguntei-lhe onde estava a piada, uma vez que eu estivera ausente tanto tempo, e ele riu-se de novo e disse, a apontar para cima: «Ah, veio do circo dos macacos?!»

— Circo dos macacos?

— Sim. Depois…

— Espera lá. Circo dos macacos porquê?

— Não sei. Talvez tenha ouvido dizer que os astronaustas são postos a girar em centrifugadoras. Não sei, porque nessa altura já não estava a falar com ele… Foi assim. Deixaram-me em paz, mas doravante a Adaptação de Luna terá de fazer melhor trabalho com os recém-chegados.

— Há outros a regressar?

— Há. O grupo de Simonadi, daqui a dezoito anos.

— Nesse caso temos tempo.

— Muito.

— Tens de admitir que são cordatos — observei. — Partes a clavícula ao tipo e deixam-te em paz dessa maneira…

— Tenho a impressão de que foi por causa daquele «circo». Até eles são… em relação a nós… sabes o que quero dizer. E não são estúpidos. Teria causado um escândado. Hal, homem, não sabes nada.

— Nada de quê?

— Sabes por que razão não deram publicidade ao nosso regresso?

— Disseram qualquer coisa no real. Eu não vi, mas alguém me disse.

— Pois disseram. Terias morrido a rir. se tivesses visto. «Ontem de manhã regressoy à Terra um grupo de exploradores do espaço exterior. Os seus membros estão bem. Os resultados científicos da expedição estão a ser estudados.» Ponto final.

— Falas a sério?

— Palavra de honra. E sabes porque fizeram isso? Porque nos temem. Foi também por isso que nos espalharam pela Terra.

— Não… não compreendo. Eles não são estiipidos. como tu mesmo disseste há momentos, certamente não pensam que somos predadores, que nos vamos lançar ao pescoço das pessoas!

— Se pensassem isso, não nos teriam deixado vir. Não, Hal. Isto não tem a ver connosco. O que está em causa é mais importante. Não compreendes?

— Aparentemente, tomei-me estúpido. Diz-me.

— O público não está ao corrente…

— De quê?

— Do facto de que o espírito de exploração morreu. Sabem que não há expedições. Mas não pensam nisso. Pensam que não há expedições porque são desnecessárias e mais nada. Mas há alguns que vêem e sabem perfeitamente o que se passa e quais serão as consequências. Quais foram já.

— E então?

— Papas. Papas e mais papas por toda a eternidade. Agora ninguém voará para as estrelas. Ninguém correrá o risco de uma experiência perigosa. Ninguém experimentará em si mesmo um novo remédio. Julgas que não o sabem? Sabem! E se se espalhasse quem nós somos, o que fizemos, porque voámos, do que se tratou, enfim, então seria impossível… impossível, compreendes? ocultar a tragédia!

— Papas e mais papas? — perguntei, usando a sua expressão; se alguém estivesse a ouvir a nossa conversa tê-la-ia achado divertida, mas eu não estava com disposição nenhuma para rir.

— Claro. E não achas que seja uma tragédia?

— Náo sei. Escuta. Olaf. Para nós deve ser e será sempre uma grande coisa. O modo como desperdiçámos esses anos. e tudo o mais… enfim, nós cremos que foi da máxima importância. Mas talvez não tenha sido. Temos de ser objectivos. Porque… Diz-mo tu mesmo: que conseguimos, que realizámos?

— Que queres dizer?

— Bem, desfaz as malas. Despeja tudo quanto trouxeste de Fomalhaut.

— Endoideceste?

— De modo nenhum. Qual foi o valor desta expedição?

— Nós éramos pilotos. Ha!. Pergunta ao Gimma, ao Thurber.

— Não me venhas com isso, Olaf. Estivemos lá juntos e tu sabes perfeitamente o que eles fizeram, o que fez o Venturi antes de morrer, o que fez o Thurber… Porque estás a olhar-me dessa maneira? Que trouxemos nós? Quatro carregamentos de várias análises espectrais, elementares, etc.; amostras de minérios, e aquele caldo, ou metaplasma, ou como diabo se chamava aquela porcaria de Beta Arcturi. Normers conferiu a sua teoria de rotações gravimagnéticas e verificou-se além disso que em planetas do tipo C Meoli podem existir não tri, mas sim tetraplóides de silício, e que naquela lua onde o Arder quase foi desta para melhor não há nada além de reles lava e bolhas do tamanho de arranha-céus. Foi a fim de aprendermos que essa lava endurece nessas malditas bolhas que vomitámos dez anos da nossa vida e voltámos para sermos uma espécie de abortos de feira? Então para que raio lá fomos? Para quê? Talvez me saibas dizer. Para quê?

— Não fales tão alto.

Eu estava furioso. E ele também. Tinha semicerrado os olhos. Pensei que ainda acabaríamos por brigar e os meus lábios começaram a tremer e a esboçar um sorriso. E, de repente, ele sorriu também.

— Sempre o mesmo estabanado — comentou. — Sabes que és capaz de enfurecer um homem?

— Vamos ao ponto que interessa, Olaf. Ao ponto que interessa.

— Ao ponto que interessa? Ainda lá não chegaste. Que teria acontecido se tivéssemos trazido um elefante com oito pernas e conhecimentos de álgebra? Isso ter-te-ia tomado feliz? Que esperámos encontrar em Arcturus? Q Paraíso? Um arco do triunfo? Que queres? Em dez anos não te ouvi dizer tantos disparates como disseste agora num minuto.

Respirei fundo.

— Olaf, estás a tentar ridicularizar-me. Sabes o que quis dizer. Quis dizer que as pessoas podem viver sem isso…

— Também acho que podem! Podem, sim, senhor!

— Espera. Podem viver sem isso e mesmo que seja como tu dizes, mesmo que tenham deixado de voar por causa da betrização, mesmo assim, valeu a pena, esteve certo pagar um tal preço? É essa a questão que se nos apresenta, meu amigo.

— É? E supõe que casas. Por que fizeste uma careta? Não te podes casar? Podes. Estou a dizer-te que podes. E terás filhos. E levá-los-ás para serem betrizados com uma canção nos lábios. Então?

— Com uma canção, não. Mas que poderia eu fazer? Não posso entrar em guerra contra o mundo todo…

— Nesse caso, que as bênçãos do firmamento caiam sobre ti. E agora, se quiseres, podemos ir à cidade.

— Óptimo. O almoço será daqui a duas horas e meia. Temos tempo.

— E se não tivermos tempo eles não nos darão nada de comer?

— Darão, mas…

Corei. Fingindo não reparar, ele sacudiu a areia dos pés descalços. Subimos para os quartos, mudámos de roupa e levámos o carro a Clavestra. Havia muito trânsito na estrada. Vi pela primeira vez gleeders coloridos, cor-de-rosa e limão pastel. Encontrámos uma estação de serviço. Pareceu-me ver surpresa nos olhos de vidro do robot que examinou os estragos.

Deixámos ficar o automóvel e regressámos a pé. Descobrimos que havia duas Clavestras, uma velha e uma nova. Na cidade velha ficava o centro industrial local, onde eu tinha estado no dia anterior com Marger. A parte nova era uma estância de Verão moderna e havia gente por todo o lado, quase exclusivamente jovens, adolescentes. Com as suas vestimentas berrantes e reluzentes, os rapazes pareciam vestidos como soldados romanos, pois o metal captava o sol como as meias armaduras desse tempo. Havia muitas raparigas, na sua maioria atraentes e frequentemente de fatos de banho mais ousados do que tudo quanto já vira. Enquanto caminhava com Olaf sentia os olhos da rua toda postos em mim. Grupos coloridos paravam debaixo das palmeiras ao ver-nos. Não havia ninguém tão alto como nós e as pessoas paravam e trocavam olhares. Era muitíssimo embaraçoso.

Quando chegámos finalmente à auto-estrada e virámos para sul através dos campos, na direcção de casa, Olaf enxugou a testa com um lenço. Eu também suava um pouco.

— Diabos te levem — praguejou ele.

— Deixa isso para melhor ocasião…

Esboçou um sorriso amargo.

— Hal…

— Que é?

— Sabes o que me pareceu? Um cenário de um estúdio cinematográfico. Romanos, cortesãs e gladiadores.

— Nós éramos os gladiadores?

— Exactamente.

— Corremos?

— Vamos a isso.

Fomos através dos campos. Eram cerca de oito quilómetros. Mas fomos parar muito para a direita e tivemos de andar um pouco para trás. Mesmo assim, tivemos tempo de tomar banho antes do almoço.

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