Bati à porta de Olaf.
— Se te conheço, entra — ouvi-o responder.
Estava nu no meio do quarto e empunhava um spray com um fluido amarelo pálido que, depois de esguichado, formava imediatamente uma massa fofa.
— Roupa interior líquida? — perguntei. — Suportas isso?
— Não trouxe uma camisa para mudar — murmurou. — Não gostas?
— Não, E tu?
— A minha camisa rasgou-se.
Ao ver a minha expressão de surpresa acrescentou, com uma careta:
— O tipo que se riu.
Não disse mais nada. Ele vestiu as suas velhas calças — lembrava-me delas do Prometheus — e descemos. Só estavam postos três pratos e não se encontrava ninguém na sala.
— Somos quatro — disse eu ao robot branco.
— Não, senhor. O Sr. Marger partiu. A senhora, o senhor e o Sr. Staave são três. Posso servir ou esperam pela senhora?
— Esperamos — respondeu Olaf, despreocupadamente.
Era um indivíduo fantástico. Nesse momento entrou a rapariga. Vestia a mesma saia do dia anterior e tinha o cabelo um pouco húmido, como se tivesse vindo da água. Apresentei-lhe Olaf, que se mostrou calmo e digno. Eu nunca conseguira mostrar-me assim.
Conversámos um pouco. Ela disse que o marido tinha de se ausentar três dias todas as semanas, por causa do seu trabalho, e que a água da piscina não estava tão quente quanto deveria, apesar do sol. Mas a conversa esmoreceu depressa e, por mais que pensasse, não me ocorreu nada para dizer. Comi em silêncio, com os perfis fortemente contrastantes dos dois à minha frente. Reparei que Olaf a estudava, mas só quando eu lhe falava e ela olhava na minha direcção. O rosto do meu amigo estava completamente inexpressivo. Como se pensasse noutra coisa.
Cerca do fim da refeição o robot branco aproximou-se e disse que a água da piscina seria aquecida para o entardecer, de acordo com os desejos da Sra. Marger. Esta agradeceu-lhe e foi para o seu quarto. Ficámos os dois sós. Olaf olhou para mim e eu voltei a corár tremendamente.
— Como se explica — disse, levando aos lábios o cigarro que eu lhe dera — que um tipo que entrou naquele imundo buraco em Kereneia, um velho cão do espaço — ou melhor, um velho rinoceronte, de 150 anos —, como se explica que comece agora…?
— Por favor — murmurei —, se queres realmente saber, eu entraria lá outra vez…
Não acabei.
— Está bem, eu paro. Palavra de honra. Mas, Hal, tenho de dizer o seguinte: compreendo-te. E aposto que nem sabes porquê…
Inclinei a cabeça na direcção que ela tomara.
— Porquê ela?
— Sim, porquê? Sabes?
— Não. E tu também não.
— Sei, sim. Queres que te diga?
— Quero. Mas sem as tuas brincadeiras.
— Endoideceste, realmente! — exclamou Olaf. — É muito simples. Mas sempre tiveste o defeito de não ver o que estava debaixo do teu nariz e sim apenas o que estava muito longe, como aqueles Cantor, Corbasileuses…
— Não sejas vaidoso.
— O estilo é bombástico, bem sei, mas o nosso desenvolvimento foi interrompido quando nos puseram aqueles 680 parafusos…
— Continua.
— Ela é exactamente como uma rapariga do nosso tempo. Não tem 124
aquela idiotice vermelha no nariz, nem aqueles pratos nas orelhas, nem algodão brilhante na cabeça. Não escorre dourados, é uma rapariga que podias ter conhecido em Ceberio ou Apprenous. Lembro-me de algumas exactamente como ela. É só isso.
— Macacos me mordam! — exclamei, em voz baixa. — Sim… Sim, mas há uma diferença.
— Qual?
— Já te disse, logo no princípio. Nunca me comportei assim. E, para ser absolutamente franco, nunca me imaginei… Pensei que pertencia ao tipo tranquilo.
— Foi realmente uma pena não te ter fotografado quando saíste daquele buraco em Kereneia. Assim-poderias ver o tipo tranquilo que és… Homem, eu pensei que tu… Mas não interessa!
— Para o inferno com Kereneia, as suas cavernas e tudo o mais. Sabes, Olaf, antes de vir para aqui fui a um médico. Chama-se Juffon e é um indivíduo muito simpático. Tem mais de oitenta anos, mas…
— É esse o nosso destino, agora — observou Olaf, calmamente, a exalar o fumo e a vê-lo alastrar por cima de um ramo de flores de tom púrpuraclaro, que pareciam jacintos. — Sentimo-nos mais à vontade entre os velhos, muito velhos. Com gra-a-andes barbas. Quando penso nisso tenho vontade de gritar. Uma sugestão: compremos uma capoeira de galinhas, para lhes podermos torcer o pescoço.
— Basta de palhaçada. Q médico disse-me uma quantidade de coisas sensatas. Que não temos família nem amigos da nossa geração, o que deixa apenas as mulheres, mas que hoje em dia é mais difícil arranjar uma mulher do que muitas. E tinha razão. Vejo-o agora.
— Hal. sei que és muito mais esperto do que eu. Sempre gostaste do novo, do sem precedentes. Tinha de ser sempre tudo muito difícil, qualquer coisa que não conseguias resolver à primeira, qualquer coisa que não obtinhas sem rebentar três vezes uma tripa. Se não fosse assim não impressionava a tua fantasia. Não olhes para mim dessa maneira. Sabes que não tenho medo de ti.
— Graças ao Senhor. Isso seria o cúmulo.
— E portanto… que ia eu dizer? Ah! Ao princípio pensei que querias estar sozinho e que devoravas os livros por desejares ser algo mais do que um piloto e o tipo que fazia a máquina trabalhar. Esperei que começasses a dar-te ares. E devo dizer que quando deixaste o Normers e o Venturi de boca aberta com aquelas tuas observações e, todo inocência, participaste naquelas discussões oh-tão-elevadas, enfim, pensei que tinhas começado. Mas depois houve aquela explosão, lembras-te.
— Aquela à noite.
— Essa mesmo. E Kereneia, e Arcturus, e aquela lua… Meu amigo, às vezes ainda vejo aquela lua em sonhos e uma vez até caí da cama abaixo por causa dela. Oh, aquela lua! Sim, mas o que… Como vês, a minha memória falha, estou sempre a esquecer-me de coisas… Mas depois aconteceu aquilo e percebi que a tua intenção não era seres superior. Era simplesmente daquilo que gostavas e não podias ser diferente. Lembras-te como pediste ao Venturi o seu exemplar pessoal daquele livro, do vermelho? Que era?
— A Topologia do Hiperspaço.
— Isso. E ele disse: «É muito difícil para ti, Bregg. Faltam-te bases…»
Ri-me, porque ele imitou o Venturi perfeitamente.
— Ele tinha razão, Olaf. Era demasiado difícil.
— Sim, nessa altura, mas com o tempo conseguiste percebê-lo, não conseguiste?
— Consegui. Mas… sem qualquer real satisfação. Sabes porquê. O Venturi coitado…
— Nem mais uma palavra. Resta saber quem deveria lamentar quem, à luz de acontecimentos subsequentes.
— Ele agora não pode lamentar ninguém. Tu estavas na coberta superior, na altura?
— Eu? Na coberta superior? Estava mesmo ao teu lado!
— É verdade. Se ele não tem apostado tudo no sistema de arrefecimento ter-se-ia safado com algumas queimaduras. Como o Ame. Mas tinha de perder a cabeça…
— Deveras! Palavra, és incrível! De qualquer modo, o Ame morreu.
— Sim, mas cinco anos depois. Cinco anos são cinco anos.
— Anos como aqueles?
— Agora estás a falar dessa maneira, mas antes, junto da água, quando eu comecei, atiraste-te a mim.
— Foi insuportável, sem dúvida, mas também foi magnífico. Tens de o admitir. Diz-me… Mas não precisas de falar. Quando saíste daquele buraco em Ke…
— Basta, quanto a esse maldito buraco!
— Foi só então que compreendi o que te fazia mexer. Ainda nos não conhecíamos muito bem. Quando o Gimma me disse, um mês depois, que o Arder voaria contigo, pensei… bem, não sei! Fui ter com ele, mas não disse nada. Ele percebeu logo, claro. «Olaf», disse-me, «não estejas zangado. És o meu melhor amigo, mas eu vou voar com ele desta vez, e não contigo, porque…» Sabes o que ele disse?
— Não — respondi, com um nó na garganta.
— «Porque foi o único que desceu. Só ele. Ninguém acreditava que fosse possível aterrar lá. Nem ele acreditava.» Acreditavas que voltariam?
Fiquei calado.
— Estás a ver, meu pulha? «Ou ele regressa comigo», disse o Arder, «ou nenhum de nós regressa…»
— E eu regressei sem ele — comentei.
— E tu regressaste sem ele. Não te reconheci, fiquei horrorizado. Estava cá em baixo, nas bombas.
— Eras então tu?
— Era. Vi… um desconhecido. Um desconhecido completo. Pensei que estava com alucinações. Até o teu fato, todo encamado…
— Isso era ferrugem. Tinha-me rebentado um tubo.
— És tu que mo dizes? Fui eu que consertei esse tubo, mais tarde. O teu aspecto… Mas a discussão, depois…
— Aquela história com o Gimma?
— Sim. Não está nos registos oficiais e eles também a tiraram da fita gravada, na semana seguinte. Creio que foi o próprio Gimma. Na altura, julguei que o matasses. Jesus!
— Não fales disso — pedi, consciente de que desataria a tremer de um momento para o outro. — Não fales, Olaf, por favor.
— Nada de histerismos. O Arder era mais chegado a mim do que a ti.
— Mais chegado, menos chegado, que diferença faz? És um cabeçudo. Se o Gimma lhe tivesse dado uma reserva, o Arder estaria agora aqui sentado connosco! O Gimma guardava tudo. Tinha medo de que se lhe acabassem os transistores, mas acabarem-se-lhe os homens não o preocupava! Eu…
Fiz uma pausa.
— Olaf, isto é uma loucura! Esqueçamos.
— Aparentemente, Hal, não podemos esquecer. Pelo menos enquanto estivermos juntos. Depois disso, o Gimma nunca mais…
— O Gimma que vá para o inferno! Fim, Olaf! Ponto final. Não quero ouvir nem mais uma palavra!
— Também estou proibido de falar a meu respeito?
Encolhi os ombros. O robot branco veio para limpar a mesa, mas limitou-se a olhar do vestíbulo e a ir-se embora. As nossas vozes altas devem tê-lo assustado.
— Diz-me uma coisa Hal: que te atormenta, ao certo?
— Não finjas.
— Não estou a fingir, palavra.
— Como podes perguntar? No fim de contas, foi por minha causa…
— Por tua causa o quê?
— O caso do Arder.
— O quê?!
— Claro. Se, eu tivesse insistido desde o prindpio, antes de partirmos, o Gimma teria dado…
— Deixa-te agora disso! Como poderias adivinhar que seria o rádio dele que falharia? Poderia ter sido outra coisa qualquer.
— Poderia, poderia… Mas foi o rádio.
— Espera! Queres dizer que andaste seis anos com isso dentro de ti sem dizeres uma palavra?
— Que havia eu de dizer? Pareceu-me que era óbvio, não achas?
— Óbvio! Deus! Que estás a dizer, homem? Recupera a razão! Se tivesses dito isso, qualquer de nós te teria julgado doido. E quando o feixe do Ennesson se desfocalizou, também foi por culpa tua? Foi?
— Não. Ele… Isso pode acontecer.
— Bem sei. Não te preocupes, sei tanto como tu. Hal, não terei descanso enquanto me não disseres…
— Que queres agora?
— Estás a a imaginar coisas. É um disparate completo. O próprio Arder to diria, se estivesse aqui.
— Obrigado.
— Hal, estou com vontade de…
— Lembra-te que sou mais pesado.
— Mas eu estou mais zangado, compreendes? Idiota!
— Não grites, Olaf. Não estamos aqui sozinhos.
— Está bem, está bem. Foi disparate ou não foi?
— Não.
Olaf inspirou até ficar com as narinas brancas.
— Não foi, porquê? — perguntou, quase bem disposto.
— Porque, já antes disso, eu notara a sovinice do Gimma. Era meu dever prever o que podia acontecer e confrontar imediatamente o Gimma… e não quando regressei com o obituário do Arder. Não se trata, por isso, de disparate nenhum.
— Compreendo. Sim. Foste mole de mais… Não! Eu… Hal! Não posso. Vou-me embora.
Levantou-se bruscamente da mesa e eu fiz o mesmo.
— Endoideceste? — perguntei. — Vai-se embora! Só porque…
— Sim, sim! Sou obrigado a escutar as tuas fantasias? Não, obrigado. O Arder não respondeu?
— Deixa lá isso.
— Ele não respondeu, pois não?
— Não, não respondeu.
— Poderia ter tido um acidente coronário?
Não respondi.
— Poderia ter tido qualquer de mil outras espécies de acidentes? Ou poderia ter entrado numa faixa de eco? Teria desligado o seu sinal quando perdeu contacto na turbulência? Ou ter-se-iam os seus emissores desmagnetizado acima de uma mancha solar e…?
— Basta.
— Não admites que tenho razão? Devias envergonhar-te de ti mesmo.
— Eu não disse nada.
— É verdade. Podia ter acontecido alguma das coisas que eu disse?
— Podia.
— Então porque insistes que foi o rádio, o rádio e nada mais do que o rádio?
— Talvez tenhas razão. — Sentia-me terrivelmente cansado e já tanto me fazia, de uma maneira ou de outra. — Talvez tenhas razão — repeti. — O rádio… era simplesmente a coisa mais provável… Não, não digas mais nada. Já falámos nada do assunto dez vezes mais do que era necessário.
Olaf aproximou-se de mim.
— Bregg, pobre velho soldado! Tens demasiado bem em ti, sabias?
— Oue bem?
— Uma noção de responsabilidade. Deve haver moderação em tudo, Que tencionas fazer?
— A que respeito?
— Tu sabes.
— Não faço ideia.
— É mau. não é?
— Não podia ser pior.
— E se partisses comigo? Ou fosses para qualquer outro lado… sozinho? Se quiseres, posso ajudar-te a arranjar isso. Posso levar as tuas coisas, ou podes deixá-las. ou…
— Achas que devo fugir.
— Não acho nada. Mas ao ver-te perder o domínio de ti próprio — só um bocadinho — como há momentos, então…
— ntão o quê?
— Então comecei a pensar…
— Não me quero ir embora. Sabes que mais? Não sairei daqui. E se…
— Ouê?
— Não tem importância. Que disse aquele robot da estação de serviço? Quando estará o carro pronto? Amanhã ou hoje? Esqueci-me.
— Amanhã de manhã.
— Óptimo. Olha. está a escurecer. Passámos a tarde toda a tagarelar.
— Deus nos livre de semelhantes tagarelices!
— Estava a brincar. Vamos dar um mergulho?
— Não. Apetece-me ler. Podes emprestar-me alguma coisa?
— Leva o que quiseres. Sabes manejar aqueles grãos dê vidro?
— Sei, Espero que não tenhas aquela… aquela engenhoca que lê com a voz açucarada?
— Não, Tenho apenas um opton.
— Óptimo, sirvo-me disso. Tu vais para a piscina?
— Vou. Mas primeiro subo contigo, pois tenho de mudar de roupa. Dei-lhe alguns livros, principalmente de História, e uma coisa sobre a estabilização da dinâmica populacional, pois isso interessava-lhe. E outra sobre biologia, com um longo artigo sobre a betrização. Quanto a mim. comecei a mudar de roupa, mas não consegui encontrar os calções de banho. Tinha-os perdido em qualquer lado. Náo havia sinal deles. Vesti os calções pretos do Olaf. enfiei o roupão e saí.
O Sol já se pusera. De ocidente avançava um castelo de nuvens que extinguia a parte mais luminosa do céu. Atirei o roupão para a areia, que já arrefecera def)ois do calor do dia. Sentei-me. com os dedos dos pés metidos dentro de água. A conversa perturbara-me mais do que desejaria admitir. A morte de Arder estava gravada em mim como um espinho. Olaf podia ter razão. Talvez fosse apenas a exigência de uma recordação que nunca se reconciliaria…
Levantei-me e mergulhei, sem prancha, de cabeça para baixo. A água estava tépida. Preparava-me para a encontrar fria e fora apanhado de surpresa. Vim ã superfície. Quente de mais, era como nadar em sopa.
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Acabara de sair do lado oposto, deixando marcas húmidas e escuras no corrimão, quando qualquer coisa me trespassou o coração. A história de Arder levara-me para um mundo diferente, mas agora, possivelmente porque a água estava tépida — porque devia estar tépida — lembrei-me da rapariga e foi como se me tivesse recordado de algo horrível, de um infortúnio que não podia vencer, mas que tinha de vencer.
E talvez se tratasse apenas da minha imaginação. Estudei a ideia, hesitante, encolhido no crepúsculo crescente. Quase não via o meu próprio corpo, o bronzeado escondia-me no escuro. Entretanto, as nuvens tinham enchido o céu e inesperadamente, demasiado cedo, era noite. Vinda de casa, aproximava-se uma coisa branca. A touca de banho dela. O pânico apoderou-se de mim. Levantei-me, devagar. A minha intenção era apenas fugir, ir-me embora, mas ela viu-me recortado no céu.
— Sr. Bregg? — perguntou, em voz baixa.
— Sou eu. Ouer nadar? Eu estou a atrapalhar. Vou-me embora…
— Porquê? Não me incomoda nada. A água está morna?
— Está. Morna de mais para o meu gosto.
Ela dirigiu-se para a beira da piscina e mergulhou com leveza. Via-lhe apenas a silhueta. O seu fato de banho era escuro. Um splash. Veio à superfície perto dos meus pés.
— Terrível! — exclamou, a cuspir água. — Que fez ele? É preciso deitar alguma água fria. Sabe como se faz?
— Não. Mas vou já descobrir isso.
Mergulhei por cima da cabeça dela. Nadei para baixo, até tocar no fundo, e comecei a nadar à volta e a tocar de vez em quando no cimento. Debaixo de água, como geralmente acontece, estava um pouco mais claro do que cá fora e, por isso, consegui localizar os canos de entrada de água. Ficavam na parede oposta à casa. Nadei para a superfície um pouco falto de fôlego, pois estivera um bocado submerso.
— Bregg! — ouvi-a chamar.
— Estou aqui. Aconteceu alguma coisa?
— Assustei-me… — respondeu, mais serena.
— Com quê?
— Desapareceu durante tanto tempo…
— Já sei onde é. Resolve-se o assunto num instante!
Corri para casa. Podia ter evitado o heróico mergulho: as torneiras estavam bem à vista, numa coluna perto da varanda. Abri a da água fria e voltei para a piscina.
— Já está. Terá de esperar um bocadinho.
— Pois sim.
Ela estava debaixo da prancha e eu do lado menos fundo da piscina, como se receasse aproximar-me. Depois encaminhei-me na direcção dela, devagar, como que sem intenção. Os meus olhos tinham-se habituado à escuridão. Conseguia distinguir-lhe as feições. Ela olhava para a água. Estava muito bonita na sua touca branca e, sem roupa, parecia mais alta.
Parei como um poste ao lado dela. A situação tomou-se constrangedora.
Talvez tenha sido por isso que me sentei, de repente. «Estúpido!», chamei a mim mesmo; mas não conseguia lembrar-me de nada para dizer. As nuvens adensavam-se, escurecia mais, mas não parecia que fosse chover. Estava fresco.
— Tem frio?
— Não. Sr. Bregg…
— Diga.
— A água não [Darece estar a subir…
— Eu abri a descarga. Mas já deve bastar. Vou fechá-la.
Quando regressava da casa, lembrei-me de que podia chamar Olaf. Quase ri alto. Era tão estúpido! Estava com medo dela.
Mergulhei e voltei à superfície.
— Pronto… a não ser que eu tenha exagerado… Se assim for diga-me e eu deixo entrar alguma água quente.
A água estava visivelmente mais baixa, porque a descarga ainda estava aberta. A rapariga — via-lhe a sombra esbelta contra as nuvens — parecia hesitar. Talvez já não quisesse tomar banho, talvez se fosse embora. A ideia acudiu-me de repente e senti uma espécie de alívio. Nesse momento ela saltou, de pés para a frente, e soltou um pequeno grito, pois a água estava baixa, agora, e eu não tivera tempo de a avisar. Devia ter batido no fundo com força. Cambaleou, mas não caiu. Atirei-me na direcção dela.
— Magoou-se?
— Não.
— A culpa é minha. Sou um idiota.
Estávamos parados, com água até à cintura. Ela começou a nadar. Eu saí da piscina, fui a correr fechar a descarga e regressei. Não a vi em lado nenhum. Entrei na água e nadei a todo o comprimento da piscina. Depois virei-me de costas e vi a superfície vítrea-escura delicadamente ondulada da água. Deixei-me subir devagar, comecei a nadar e vi-a. Estava de pé do mesmo lado da piscina. Nadei para ela. A prancha ficava do outro lado; ali a água era baixa e fiquei imediatamente com pé. A água que eu afastava enquanto caminhava, abria-se ruidosamente. Vi a cara dela, a olhar para mim. Não sei se foi o balanço dos meus últimos passoa — pois se é difícil andar na água também não é fácil parar subitamente — ou qualquer outra coisa, mas encontrei-me de repente ao lado dela. Talvez não tivesse acontecido nada se ela se tivesse afastado, mas ficou onde estava, com a mão no primeiro degrau da escada, e eu estava demasiado perto para falar, para procurar refúgio numa conversa…
Apertei-a com força. Estava fria, escorregadia, como um peixe ou uma estranha criatura de outro mundo, e de súbito nesse contacto tão frio e sem vida — pois ela não se mexeu — encontrei um lugar quente, a sua boca, e beijei-a, beijei-a, beijei-a… Foi uma perfeita loucura. Ela não se defendeu, não resistiu, foi como se estivesse morta. Segurei-lhe os braços, levantei-lhe a cara, quis vê-la, olhá-la nos olhos, mas já estava muito escuro e tive de imaginá-los. Ela não tremia. Havia apenas uma palpitação — do meu coração ou do dela, não sei. Ficámos assim até que, vagarosamente, começou a libertar-se dos meus braços. Larguei-a imediatamente. Ela subiu a escada. Segui-a e de novo a abracei, de lado. Tremeu. Agora tremia. Quis dizer qualquer coisa, mas a voz fugira-me. Limitei-me a apertá-la, a comprimi-la contra mim, e ela libertou-se outra vez — sem me empurrar, quase como se eu ali não estivesse. Deixei pender os braços. Ela afastou-se. Pela luz que vinha do meu quarto via-a pegar no roupão e, sem o vestir, começar a subir a escada. Havia luzes acesas à porta e no vestíbulo. Brilhavam-lhe gotas de água nos ombros e nas coxas. A porta fechou-se. Ela desapareceu.
Tive, durante um segundo, vontade de me atirar à água e não voltar à superfície. Sério. Era a primeira vez que me passava semelhante coisa pela cabeça. Pelo que me fazia as vezes de cabeça. Fora tudo tão insensato, tão impossível, e o pior é que eu não sabia o que significava nem o que deveria fazer a seguir. E porque tinha ela sido asim… tão…? Ter-se-ia sentido dominada pelo medo? Teria então de ser sempre medo, nada mais do que medo? Fora qualquer outra coisa. Mas o quê? Como poderia descobri-lo? Olaf. Mas seria eu um garoto de 15 anos, que beijava uma rapariga e tinha de ir a correr pedir conselhos?
Sim, pensei, iria. Encaminhei-me para casa, peguei no roupão e sacudi-Ihe a areia. O vestíbulo estava brilhantemente iluminado. Aproximei-me da porta dela. Talvez me deixasse entrar… Se me deixasse entrar, eu deixaria de me importar com ela. Talvez. E talvez isso fosse o fim de tudo. Ou talvez me desse uma bofetada na cara. Não. Eles eram bons, eram betrizados, não podiam fazer isso. Ela dar-me-ia um copo de leite que me faria muito bem. Devo ter estado ali parado cinco minutos — e recordei as cavernas de Kereneia, o famoso buraco de que Olaf falara. Esse maravilhoso buraco! Provavelmente um antigo vulcão. Arder ficara entalado entre uns pedregulhos e não pudera sair e a lava estava a subir. Não era realmente lava. Venturi dissera que era uma espécie de géiser — mas isso tinha sido mais tarde. Arder… Ouvimos a sua voz. Pelo rádio. Eu desci e soltei-o. Meu Deus! Teria preferido isso dez vezes àquela porta. Não se ouvia o mínimo som. Nada.
Se ao menos a porta tivesse um puxador! Mas em vez disso tinha uma placa. Não havia nada semelhante na minha, no andar de cima. Não sabia se funcionava como uma fechadura, ou se deveria premi-la. Continuava a ser o selvagem de Kereneia.
Levantei a mão e hesitei. E se a porta não se abrisse? Imaginei a minha retirada: teria assunto para pensar durante muito tempo. Achei que quanto mais tempo ali permanecese, menos força teria, como se tudo estivesse a esvair-se de mim. Toquei na placa. Não cedeu. Toquei com mais força.
— É o Sr. Bregg? — ouvi a voz dela perguntar; devia estar parada do outro lado da porta.
— Sou.
Silêncio. Meio minuto. Um minuto.
A porta abriu-se. Ela parou no limiar. Vestia um roupão fofo. O cabelo 132
caía-lhe para a gola. Por incrível que pareça, só naquele momento reparei que era castanho.
A porta só entreaberta. Agarrada por ela. Quando avancei, recuou. Por si só. sem um som, a porta fechou-se atrás de mim.
E. de súbito, via a cena. Ela observava-me imóvel, pálida, a segurar as abas do roupão, e eu estava defronte dela, a pingar, apenas com os calções pretos de Olaf vestidos e com o roupão de banho sujo de areia na mão, de boca aberta…
Semelhante pensamento fez-me sorrir. Sacudi o roupão, vesti-o, atei-o, sentei-me. Vi duas marcas húmidas onde antes estivera parado. Mas não tinha absolutamente nada que dizer. Que poderia dizer? Subitamente, como uma inspiração, soube o que havia de dizer.
— Sabe quem eu sou?
— Sei.
— Ah, sabe? Isso é bom. Soube pela agência de viagens?
— Não.
— Não tem importância. Sou… selvagem, sabe?
— Sim?
— Sim. Terrivelmente selvagem. Como se chama?
— Não sabe?
— O seu primeiro nome.
— Eri.
— Vou levá-la comigo.
— O quê?
— Isso mesmo, vou levá-la comigo. Não quer?
— Não.
— Não importa. Levo-a. Sabe porquê?
— Calculo.
— Não pode calcular. Nem eu calculo.
Ficou calada.
— Não posso fazer nada — continuei. — Aconteceu assim que a vi. Anteontem. À mesa. Sabia?
— Sabia.
— Mas talvez pense que estou a brincar?
— Não.
— Como pôde…? Mas não interessa. Tentará fugir?
Ficou calada.
— Não tente — pedi. — Seria inútil, bem sabe. Não a deixaria em paz. Mas gostaria de deixar, acredita?
Ficou calada.
— Compreende, não é apenas por eu não ser betrizado. Nada me importa, sabe? Nada. Excepto você. Tenho de a ver. Tenho de a olhar. Tenho de ouvir a sua voz. Tenho de fazer isso e nada mais me interessa. Não sei o que será de nós. Acabará mal, suponho. Mas não me importo. Porque há agora qualquer coisa que vale a pena. Porque falo e você escuta. Compreende? Não. Como poderia compreender? Puseram todos ponto final no drama, a fim de viverem calmamente. Eu não posso. Não preciso disso.
Continuou calada e eu respirei fundo.
— Escute, Eri… mas sente-se.
Não se mexeu.
— Por favor, sente-se.
Nada.
— Não lhe fará mal nenhum sentar-se.
De súbito, compreendi. Cerrei os dentes.
— Se não quer, porque me deixou entrar?
Nada.
Levantei-me e agarrei-lhe nos ombros. Não resistiu. Sentei-a numa poltrona e cheguei a minha para mais perto, de modo que os nossos joelhos quase se tocaram.
— Pode fazer o que quiser, mas escute-me. Não tenhg a culpa disto. E você com certeza também não. Ninguém tem. Eu não queria que acontecesse. Mas as coisas são assim. Trata-se, compreende, de um começo. Sei que me estou a comportar como um louco. Sei isso. Mas dir-Ihe-ei porquê. Não fala comigo?
— Depende.
— Por esse pouco, obrigado. Sim, eu sei. Não tenho direito nenhum, etc. Bem, mas o que eu queria dizer… Há milhões de anos houve aqueles grandes lagartos, brontossauros, atlantossauros… Talvez tenha ouvido falar deles?
— Ouvi.
— Eram gigantes, do tamanho de uma casa. Tinham uma cauda excepcionalmente grande, com três vezes o tamanho do corpo. Consequentemente, era-lhes impossível moverem-se do modo que devem ter desejado: leve e graciosamente. Eu também tenho uma cauda dessas. Durante dez anos, por razões desconhecidas, andei a meter o nariz entre as estrelas. Talvez não tivesse sido necessário. Mas deixemos isso. Não posso desfazer o que está feito. Essa é a minha cauda. Compreende? Não posso proceder como se nunca tivesse acontecido. Não imagino que esteja entusiasmada com isso, com o que lhe disse, com o que lhe estou a dizer e com o que ainda me falta dizer. Mas não o posso evitar. Preciso de a ter, de a ter durante o máximo tempo possível, a verdade é essa. Diz alguma coisa?
Olhou para mim. Pareceu-me que se tomou ainda mais pálida, mas talvez fosse da luz. Estava encolhida no roupão fofo, como se tivesse frio. Quis perguntar-lhe se tinha frio, mas estava outra vez de língua atada. Eu… eu não tinha frio.
— Que… faria… no meu lugar?
— Muito bem! — exclamei, encorajadoramente. — Imagino que lutaria.
— Eu não posso.
— Bem sei. Julga que isso toma as coisas mais fáceis para mim? Juro-lhe que não torna. Quer que me vá já embora ou posso dizer mais alguma cc>isa? Porque está a olhar para mim dessa maneira? Já deve saber, com certeza, que faria tudo por si. Por favor, não olhe para mim dessa maneira. As coisas que eu digo não significam o mesmo do que quando são ditas por outras pessoas. E sabe que mais?
Estava com uma falta de ar terrível, como se estivesse a correr havia muito tempo. Segurava-lhe ambas as mãos — segurava-lhas não sei havia quanto tempo, talvez desde o princípio. Não sabia. Eram muito pequenas.
— Eri, nunca senti o que sinto agora. Neste momento. Pense. Aquele vazio terrível, no espaço. Indescritível. Eu não acreditava que regressaria. Ninguém acreditava. Costumávamos falar no regresso, mas só por falar, sem esperança. O Tom Arder, o Ame e o Venturi ainda lá estão e agora são como pedras, como pedras geladas na escuridão. Eu também lá devia ter ficado, mas se estou aqui e lhe seguro as mãos, se posso falar-lhe e você me escuta, então talvez não tenha sido assim tão mau. Tão ignóbil. Talvez não seja, Eri. Só lhe peço que não olhe para mim dessa maneira. Suplico-lhe. Dê-me uma oportunidade. Não pense que isto é… meramente amor. Não pense isso. É mais. Mais. Não me acredita… Nao me acredita porquê? Estou a dizer-lhe a verdade. Mas não acredita, pois não?
Ficou calada. Tinha as mãos como gelo.
— Não pode, não é? É impossível. Sim, eu sei que é impossível. Soube desde o princípio, desde o primeiro momento. Não tenho nada que estar aqui. Devia haver um espaço vazio, aqui. O meu lugar é lá. Não tenho culpa de ter voltado. Sim. Não sei porque lhe estou a dizer tudo isto. Isto não exite. Não existe, pois não? Se lhe não diz respeito, então não interessa. Nada do que disse. Pensou que eu podia fazer consigo o que me apetecesse? Não é isso que eu quero, não compreende? Você não é uma estrela…
Silêncio. Toda a casa estava silenciosa. Baixei a cabeça para as suas mãos, que jaziam inertes nas minhas, e comecei a falar-lhes.
— Eri. Eri. Agora sabe que não precisa de ter medo, não sabe? Que nada a ameaça. Mas isto é… tão grande. Eri. Eu não sabia… juro-lhe. Porque voa o homem para as estrelas? Não consigo compreender. Porque isto é aqui. Mas talvez seja desnecessário ir lá primeiro, para compreender. Sim, é possível. Agora vou. Vou-me embora. Esqueça tudo. Esquece?
Acenou com a cabeça.
— Não dirá a ninguém?
Abanou a cabeça.
— De verdade?
— De verdade.
Foi um sussurro.
— Obrigado.
Saí. Escadas. Uma parede cor de creme; outra, verde. A porta do meu quarto. Escancarei a janela e aspirei com força. Como o ar era bom. Desde o momento em que a deixara estava completamente calmo. Até sorri — mas não com a boca, não com o rosto. O meu sorriso era interior, compassivo, era um sorriso da minha própria estupidez, de não ter sabido uma coisa tão simples. Procurei no conteúdo da mala os objectos de desporto. Entre as cordas? Não. Entre os diversos embrulhos, seria? Não, um momento…
Encontrara. Endireitei-me e, de súbito, senti-me embaraçado. As luzes. Assim não podia. Virei-me para as apagar e encontrei Olaf parado à porta. Estava vestido. Não se tinha deitado?
— Que estás a fazer?
— Nada.
— Nada? Que tens aí? Não escondas!
— Não é nada.
— Mostra-me.
— Não. Vai-te embora.
— Mostra-me!
— Não!
— Eu sabia. Meu sacana!
Eu não esperava o murro. A minha mão abriu-se, deixou-o cair no chão e depois lutámos. Imobilizei Olaf debaixo de mim, ele desalojou-me, a secretária voltou-se e o candeeeiro bateu na parede com um estrondo que abalou a casa toda. Tinha-o dominado. Não podia safar-se por muito que se debatesse… Ouvi um grito, um grito dela, larguei-o e saltei para trás. Ela estava parada à porta. Olaf ergueu-se de joelhos.
— Ele queria matar-se. Por sua causa! — gritou, rouco, a agarrar a garganta.
Virei o rosto e encostei-me à parede, com as pernas a tremer. Estava tão envergonhado, tão horrivelmente envergonhado… Ela olhou-nos, primeiro a um e depois ao outro. Olaf continuava a segurar a garganta.
— Vão, os dois — disse eu, serenamente.
— Terás de acabar primeiro comigo.
— Por piedade.
— Não.
— Vá, por favor — disse ela a Olaf.
Eu fiquei mudo, de boca aberta. Olaf olhou-a, aparvalhado.
— Rapariga, ele… Ela abanou a cabeça.
Sem afastar os olhos de nós, Olaf saiu do quarto. Ela olhou para mim.
— É verdade? — perguntou.
— Eri…
— Tem de ser?
Acenei afirmativamente. E ela abanou a cabeça.
— Quer dizer…? — perguntei, e repeti, tartamudeante: — Quer dizer…? Ficou calada. Aproximei-me dela e vi que estava encolhida, que as suas mãos tremiam agarradas à aba solta do fofo roupão.
— Porquê? Por que tem tanto medo? Abanou a cabeça.
— Não?
— Não.
— Mas está a tremer. 136
— Não é nada.
— E… partirá comigo?
Acenou duas vezes com a cabeça, como uma criança. Abracei-a o mais delicadamente que pude. Como se ela fosse de vidro.
— Não tenha medo — murmurei. — Olhe…
As minhas próprias màos tremiam. Por que nào tinham tremido então, quando me tomara lentamente grisalho à espera de Arder? Que reservas, que íntimos recessos, atingira finalmente, a fim de tomar consciência do que valia?
— Sente-se — disse. — Ainda está a tremer? Não, espere.
Deitei-a na minha cama e tapei-a até ao pescoço.
— Melhor?
Acenou afirmativamente. Seria muda apenas comigo ou era assim mesmo?
— Diga-me qualquer coisa — pedi. num murmúrio.
— O quê?
— Fale-me a seu respeito. Quem é. O que faz. O que deseja. Não… o que desejava antes de eu lhe cair em cima como uma avalanche.
Encolheu ligeiramente os ombros, como se dissesse: «Não há nada a dizer.»
— Não quer falar? Porquê?
— Não é importante — respondeu, e foi de tal maneira como se me batesse com aquelas palavras que recuei.
— Quer dizer… Eri… quer dizer… — gaguejei.
Mas agora compreendia. Compreendia perfeitamente.
Levantei-me de um pulo e comecei a andar de um lado para o outro.
— Dessa maneira, não. Dessa maneira não posso. Não eu…
Fiquei de boca aberta. Mais uma vez. Porque ela sorria. O sorriso era tão ténue que mal se notava.
— Eri. que…?
— Ele tem razão.
— Quem?
— Aquele homem, o seu amigo.
— Tem razão a respeito de qué?
Era-lhe difícil dizê-lo. Desviou o olhar.
— Que não é sensato.
— Como sabe que ele disse isso?
— Quvi-o.
— A nossa conversa? Depois do jantar?
Acenou com a cabeça e corou. Até as suas orelhas ficaram rosadas.
— Não pude deixar de ouvir. Vocês falavam muitíssimo alto. Teria saído. mas…
Compreendi. A porta do seu quarto ficava no corredor. Que grande idiota eu fora! Fiquei atordoado.
— Ouviu tudo?
Acenou afirmativamente.
— E sabia que era a seu respeito?
— Mmm…
— Mas como? Eu nunca mencionei…
— Já sabia, antes disso.
— Como?
— Não sei. Sabia. Quero dizer, ao prinrípio julguei que estava a imaginar.
— E quando, mais tarde?
— Não sei… Durante o dia. Senti-o.
— Teve medo? — perguntei, cabisbaixo.
— Não.
— Não? Porquê?
Voltou a sorrir tenuemente.
— É exactamente, exactamente como…
— Como o quê?
— Como num conto de encantar. Eu não sabia que se podia ser dessa maneira… e se não tivesse sido o faco de… você sabe… teria pensado que era um sonho.
— Não é, garanto-lhe.
— Oh, eu sei! Só disse que era dessa maneira. Sabe o que quero dizer?
— Não sei, exactamente. Parece que sou um obtuso, Eri. Sim, o Olaf tem razão. Sou um asno. Um asno chapado. Por isso, fale claramente sim?
— Está bem. Pensa que é assustador, mas não é nada. Só… Calou-se, como se não conseguisse encontrar as palavras. Eu estivera a escutá-la boquiaberto.
— Eri, minha criança, eu… eu não pensava que fosse assustador. Não pensava. Que disparate. Foi só quando cheguei e ouvi, e aprendi várias coisas… Mas basta. Já disse o suficiente. Já falei de mais. Nunca na minha vida fui tão falador. Fale, Eri, fale. — Sentei-me na cama.
— Não tenho nada que dizer, realmente. A não ser… não sei…
— Não sabe o quê?
— Oue vai acontecer?
Debrucei-me para ela. Fitou-me nos olhos. As suas pálpebras não estremeceram. Os nossos hálitos misturaram-se.
— Por que me deixou beijá-la?
— Não sei.
Toquei-lhe na face com os lábios. No pescoço. Deitei a cabeça no seu ombro. Nunca me sentira assim. Nem soubera que me poderia sentir. Apetecia-me chorar.
— Eri — murmurei, quase inaudivelmente. — Eri. Salve-me.
Ficou imóvel. Ouvi, como que muito distante, o bater rápido do seu coração. Endireitei-me.
— Podíamos… — comecei, mas não tive coragem de acabar. Levantei-me, apanhei o candeeiro, endireitei a secretária e tropecei em qualquer coisa: o canivete. Estava caído no chão. Apanhei-o e atirei-o para a mala. Virei-me para ela.
— Vou apagar a luz — disse. — Está bem?
Não respondeu. Toquei no interruptor. A escuridão tomou-se completa, até na janela aberta, Não eram visíveis luzes nenhumas, nem mesmo distantes. Nada. Tudo negro. Tão negro como lá.
Fechei os olhos. O silêncio parecia zumbir.
— Eri — murmurei.
Ela não respondeu e eu senti o seu medo. Tacteei na direcção da cama. Escutei, para ouvir a sua respiração, mas o silêncio vibrante abafava tudo, como se se tivesse materializado na escuridão e agora fosse a escuridão. Devia ir-me embora, pensei. Sim, partiria imediatamente. Mas inclinei-me e, com uma espécie de clarividência, encontrei-lhe o rosto. Ela conteve a respiração.
— Não — murmurei —, realmente…
Toquei-lhe no cabelo. Afaguei-o com as pontas dos dedos. Ainda era estranho para mim, inesperado. Desejava tanto compreender tudo aquilo? Mas talvez não houvesse nada para compreender. Um tal silêncio… Olaf estaria a dormir? Com certeza que não. Estava a pé, a escutar. A espera. Devia ir ter com ele, então? Mas não podia. Aquilo era muito inprovável, incerto. Não podia. Não podia. Deitei a cabeça no ombro dela. Um movimento e estava a seu lado. Senti todo o seu corpo retesar-se, afastar-se. Murmurei:
— Não tenha medo.
— Não.
— Está a tremer.
— É só…
Enlacei-a. O peso da sua cabeça deslizou para a curva do meu braço. Ficámos assim, lado a lado, na escuridão e no silêncio.
— É tarde — murmurei. — Muito tarde. Pode dormir. Por favor, durma.
Embalei-a, apenas com o lento flectir do meu braço. Ficou quieta, mas eu senti o calor do seu corpo e da sua respiração. Da sua respiração acelerada. E o seu coração batia depressa, alarmado. Pouco a pouco, devagarinho, começou a acalmar. Devia estar muito cansada. Escutei ao princípio com os olhos abertos, mas depois fechei-os. Parecia-me que ouvia melhor assim. Já estaria a dormir? Quem era ela? Porque significava tanto para mim? Fiquei deitado, naquele escuro. Entrava uma brisa pela janela e agitava as cortinas, que faziam um roçagar suave. Eu estava imóvel e cheio de espanto. Ennesson. Thomas. Venturi. Arder. Para que fora tudo? Para aquilo? Uma pitada de pó. Lá onde o vento nunca sopra. Onde não há nuvens, nem sol, nem chuva, onde não há nada, exactamente como se o nada fosse possível ou sequer imaginável. E eu estivera lá? Estivera realmente? Porquê? Já não sabia nada, dissolvia-se tudo na escuridão informe. Imobilizei-me ainda mais. Ela estremeceu. Lentamente, virou-se de lado. Mas a sua cabeça continuou no meu braço. Murmurou qualquer coisa, muito suavemente. E continuou a dormir. Esforcei-me por imaginar a cromosfera de Arcturus. Uma fervilhante vastidão acima da qual voei e tomei a voar, como se girasse num monstruoso e invisível carrocei de fogo, de olhos dilatados e inchados, a repetir numa voz morta: Sonda, zero, sete — sonda, zero, sete — sonda, zero, sete — a repeti-lo mil vezes, de tal modo que depois a simples recordação dessas palavras fazia estremecer qualquer coisa em mim, como se tivesse sido marcado com elas, como se fossem uma ferida. E a resposta era um crepitar nos auriculares e a espécie de gargalhadinha esganiçada em que o meu receptor traduzia as chamas da proeminência — e isso era Arder, o seu corpo e o seu rosto, e o foguetão, transformados em gás, incandescente… E Thomas? Thomas perdera-se e ninguém sabia que ele… E Ennesson? Nunca nos entendemos, eu não o suportava. Mas na câmara de pressão lutei com Olaf, que não queria deixar-me ir porque era demasiado tarde. Que excelentemente nobre da minha parte! Mas não se tratava de nobreza, tratava-se simplesmente de uma questão de preço. Sim, porque nenhum de nós tinha preço, a vida humana atingia o valor mais elevado onde podia não ter nenhum, onde uma película fina, praticamente inexistente, a separava da aniquilação. Aquele fio ou contacto no rádio do Arder. Aquela soldadura no reactor de Venturi que escapara à detecção de Voss — mas era possível que se tivesse aberto subitamente, isso acontecia, no fim de contas, fadiga do metal… E Venturi deixara de existir em cinco segundos, talvez. E o regresso de Thurber? E o miraculoso salvamento de Olaf, que se perdera quando a sua antena direccional se furara — quando? Como? Ninguém sabia. Olaf voltou por milagre. Sim, uma probabilidade num milhão. E eu tive sorte. Uma sorte extraordinária, impossível. O braço doía-me, com uma dor maravilhosa. «Eri», disse mentalmente, «Eri.» Como o canto de um pássaro. Que nome! O canto de um pássaro… Costumávamos pedir ao Ennesson que imitasse cantos de aves. Ele tinha jeito para isso, muito jeito, mesmo. E quando pereceu foram com ele todos esses pássaros…
Mas as coisas começaram a tomar-se confusas. Mergulhei na escuridão, nadei através dela. Momentos antes de adormecer tive a impressão de que estava lá, no meu lugar, deitado no meu beliche nas profundezas do ferro, e que perto de mim estava deitado o pequeno Ame… Acordei um momento. Não. Arne não estava vivo e eu encontrava-me na Terra. A rapariga respirava serenamente.
— Deus te abençoe, Eri — disse, a inalar a fragrância do seu cabelo, e adormeci.
Abri os olhos sem saber onde estava nem sequer quem era. O cabelo escuro a espraiar-se através do meu braço — o braço dormente, como se fosse uma coisa estranha — surpreendeu-me. Durante uma fracção de segundo. Depois compreendi tudo. O Sol ainda não nascera; o alvorecer — branco-leite, sem vestígios de rosa, limpo e fresco — pairava nas janelas. Àquela luz precoce estudei o rosto de Eri, como se o visse pela primeira vez. Profundamente adormecida, respirava com os lábios fechados com força. Não devia sentir-se muito confortável no meu braço, pois metera uma das mãos debaixo da cabeça e de vez em quando, devagarinho, as suas pálpebras mexiam-se, como que numa surpresa contínua. O movimento era leve, mas eu observava-o atentamente, como se naquele rosto estivesse escrito o meu destino.
Pensei em Olaf. Com o máximo cuidado, comecei a libertar o braço. Afinal, o cuidado não era necessário. Ela dormia profundamente, a sonhar com qualquer coisa. Parei e tentei adivinhar, não o sonho, mas apenas se era ou não mau. O seu rosto era quase infantil. O sonho não era mau. Soltei-me e levantei-me. Estava com o roupão com que me deitara. Descalço, fui ao corredor e fechei a porta de mansinho, muito devagar, e com igual cuidado espreitei no quarto dele. A cama estava intacta. Olaf estava sentado à mesa, com a cabeça nos braços, a dormir. Não se despira, como eu pensara. Não sei o que o acordou — o meu olhar? Estremeceu, lançou-me um olhar vivo, endireitou-se e começou a espreguiçar-se.
— Olaf — disse eu —, nem em cem anos…
— Cala a boca — interrompeu-me bondosamente. — Sempre tiveste tendências pouco salutares, Hal.
— Já começas? Eu só queria dizer…
— Eu sei o querias dizer. Sei sempre o que vais dizer com uma semana de antecedência. Se tivesse havido necessidade de um capelão a bordo do Prometheus, terias servido para o lugar. Foi uma grandíssima pena não ter percebido isso antes. Ter-te-ia tirado a mania, fosse como fosse. Nada de sermões. Hal! Nada de solenidades, de pragas, de juras e coisas que tais. Como vai? Bom, hem?
— Não sei. Suponho… Não sei. Se te referes… bem, não aconteceu nada.
— Claro que não, primeiro tens de ajoelhar — redarguiu-me. — Tens de falar na posição de ajoelhado. Burro, perguntei-te alguma coisa a esse respeito? Estou a falar das tuas perspectivas, etc.
— Não sei. E não creio que ela saiba, também. Caí-lhe em cima como uma avalancha.
— Sim, é um problema — observou Olaf.
Despiu-se e começou a procurar os calções.
— Quanto pesas? Cento e dez quilogramas?
— Mais ou menos. Se estás à procura dos calções, tenho-os vestidos.
— Apesar de toda a tua santidade, sempre gostaste de fanar coisas — resmungou e, quando comecei a despi-los, acrescentou: — Deixa-os ficar, idiota. Tenho outro par na mala…
— Sabes por acaso como se fazem os divórcios? — perguntei.
Olaf olhou-me por cima da mala aberta e piscou o olho.
— Não, não sei. Como havia de saber? Mas ouvir dizer que é tão fácil como espirrar. E nem sequer é preciso dizer «santinho». Há por aqui uma casa de banho decente, com água?
— Não sei. Provavelmente não há. Só há do género… tu sabes.
— Pois sei. O vento revigorante com um cheiro a loção para os dentes. Uma abominação. Vamos para a piscina. Sem água não me sinto lavado. Ela está a dormir?
— Está.
— Então piremo-nos.
A água fria, soberba. Fiz um meio gainer com torção: saiu bem. Foi o meu primeiro. Vim à superfície meio sufocado, com água no nariz.
— Tem cuidado! — gritou Olaf do lado da piscina. — Agora precisas de ter cuidado. Lembras-te do Markel?
— Lembro. Porquê?
— Ele tinha ido às quatro luas amonificadas de Júpiter. Quando voltou e aterrou no campo de treinos, e saiu do foguetão carregado de troféus como uma árvore de natal, tropeçou e partiu uma perna. Por isso, tem cuidado. Estou a avisar-te.
— Tentarei. Esta água está muito fria. Vou sair.
— Pois claro, não apanhes alguma constipação. Não tive nenhuma durante dez anos, mas assim que aterrei em Luna comecei a tossir.
— Isso aconteceu porque lá era muito seco — observei, com ar sério.
Olaf riu-se, atirou-me água à cara e saltou a um metro de distância.
— Seco, exactamente — disse, ao vir à superfície. — Uma boa maneira de o descrever. Seco, mas não muito acolhedor.
— Ole, vou-me embora.
— Pois sim. Vemo-nos ao pequeno-almoço? Ou preferes que não?
— Claro que nos vemos.
Corri para o primeiro andar, a secar-me no caminho. A porta contive a respiração e espreitei cautelosamente. Ela ainda dormia. Aproveitei-me disso para mudar rapidamente de roupa. Também tive tempo para me barbear na casa de banho.
Enfiei a cabeça no quarto, pois pareceu-me que ela tinha dito qualquer coisa. Quando me aproximei da cama em bicos de pés, abriu os olhos.
— Dormi aqui?
— Dormiu. Sim, Eri.
— Tive a impressão de que alguém…
— Sim, Eri, eu estive aí.
Fitou-me como se, gradualmente, se lembrasse de tudo. Primeiro os seus olhos dilataram-se um pouco — de surpresa? — , depois fechou-os, voltou a abri-los e, furtiva e rapidamente, embora sem que o gesto me escapasse, olhou para debaixo do cobertor… e corou.
Pigarreei.
— Provavelmente quer ir para o seu próprio qiiarto? Talvez eu deva sair, ou…
— Não — interrompeu-me —, estou com o meu roupão.
Aconchegou-o bem à sua volta e sentou-se na cama.
— Afinal… é realidade? — disse baixinho, como se se despedisse de qualquer coisa.
Fiquei calado.
Levantou-se, atravessou o quarto e voltou para trás.
Ergueu para o meu rosto uns olhos em que havia uma interrogação, incerteza e mais qualquer coisa que eu não soube definir.
— Sr. Bregg…
— O meu nome é Hal. O meu primeiro nome. 142
— Sr… Hal, eu…
— Diga.
— Francamente não sei… Gostaria… Seon…
— O quê?
— Bem… ele…
Não podia ou não desejava dizer «o meu marido». Qual das coisas seria?
— Ele volta depois de amanhã.
— E?
— Oue vai acontecer? Engoli ern seco.
— Deverei ter uma conversa com ele? — perguntei.
— Oue quer dizer?
Foi a minha vez de a olhar com surpresa, sem compreender.
— Ontem disse… Esperei, — Oue me… levaria.
— Sim.
— E ele?
— Então devo falar com ele? — perguntei, a sentir-me estúpido.
— Falar? Ouer tratar pessoalmente disso?
— Ouem haveria de tratar?
— Tem de ser… o fim?
Havia qualquer coisa que me sufocava. Pigarreei.
— Francamente, não há outra maneira.
— Pensei que seria… uma mesk.
— Uma quê?
— Não sabe?
— Não compreendo nada. Não, não sei. Oue é isso? — perguntei, a sentir um calafrio ominoso; deparara-se-me de novo um daqueles vazios súbitos, um pântano de incompreensão.
— Trata-se do seguinte… Um homem… uma mulher… se um deles conhece uma pessoa… se quer, durante um certo período de tempo… Não sabe realmente nada a este respeito?
— Espere, Eri. Não sei, mas creio que começo a perceber. É qualquer coisa provisória, uma espécie de suspensão temporária, um episódio?
— Não — respondeu, e os seus olhos arredondaram-se. — Você não sabe o que é… e eu não sei exactamente como funciona — admitiu. — Ouvi falar, apenas. Pensei que era por isso que você…
— Eri, estou completamente às escuras. Diabos me levem se percebo alguma coisa! Tem de…? De qualquer modo, está de certa maneira relacionado com casamento, não está?
— Bem, está. Uma pessoa vai a um escritório e aí, não tenho bem a certeza, mas de qualquer maneira depois disso fica… fica…
— Fica o quê?
— Independente. Ninguém pode dizer nada. Incluindo ele…
— No fim de contas é… é uma espécie de legalização… irra, é uma legalização de infidelidade!
— Não… sim… Quero dizer, assim não é infidelidade, ninguém fala do caso como sendo isso. Eu sei o que signfica; li a esse respeito. Não há infidelidade nenhuma porque… bem, no fim de contas, o Seon e eu só estamos juntos por um ano.
— O quê?! — perguntei, pensando que não ouvira bem. — Que significa isso, um ano? Casamento por um ano? Por um ano?! Porquê?
— É uma experiência.
— Uma experiência, valha-me Deus! E que é uma mesk? uma notificação para o ano seguinte?
— Não compreendo o que quer dizer. É… significa que se o casal se separa ao fim de um ano, então a outra coisa se toma um laço. Como um casamento.
— A mesk?
— Sim.
— Se não acontece assim, nada. Não tem significado.
— Ah, agora julgo compreender! Não. Nada de mesk. Até que a morte nos separe. Sabe o que isso significa?
— Sei. Sr. Bregg…
— Que é?
— Completo a minha graduação em Arqueologia este ano…
— Compreendo. Está a informar-me de que, tomando-a por idiota, estou só a proceder como um idiota.
Sorriu.
— Expõe as coisas de uma maneira tão forte…
— Pois exponho, desculpe. Bem, Eri, posso falar com ele?
— A respeito de quê?
Fiquei de boca aberta. «Lá vamos nós outra vez», pensei.
— Com os diabos, o que é que… — Mordi a língua e respondi: — A nosso respeito.
— Mas isso não se faz.
— Não? Então está bem. E que se faz?
— Adopta-se o procedimento da separação. Mas, Sr. Bregg, francamente, não posso… não posso fazer as coisas assim.
— E como pode fazê-las?
Encolheu desamparadamente os ombros.
— Isso significa que voltámos ao ponto onde começámos ontem à noite? — perguntei. — Não se zangue comigo por eu falar assim, Eri, mas encontro-me em desvantagem dupla. Não estou familiarizado nem com as formalidades nem com os costumes, com o que se deve ou não deve fazer, nem mesmo numa base diária; por isso, quando se trata de coisas como…
— Bem sei, bem sei. Mas ele e eu… eu… Seon…
— Compreendo. Olhe, sentemo-nos.
— Penso melhor de pé.
— Por favor. Escute, Eri, eu sei o que devia fazer. Devia levá-la, como 144
disse, e ir para qualquer lado. Não sei como tenho esta certeza. Talvez se deva apenas à minha ilimitada estupidez. Mas parece-me que eventualmente poderia ser feliz comigo. Sim. Ao mesmo tempo, eu — note — pertenço ao tipo que… enfim, numa palavra, não quero fazer isso. Forçá-la. Assim, toda a responsabilidade da minha decisão, chamemos-lhe assim, recai em você. Por outras palavras, obrigar-me a ser um suíno não do lado direito, mas somente do esquerdo. Sim. vejo isso claramente. Muito claramente. Agora diga-me só uma coisa; que prefere?
— O direito.
— Ouê?
— O lado direito do suíno.
Comecei a rir. Talvez um pouco histericamente.
— Meu Deus. óptimo! Então posso falar com ele? Depois. Isto é, eu voltaria aqui sozinho…
— Não.
— Não se faz assim? Talvez não. mas eu acho que devo, Eri.
— Não. Eu… por favor, por favor. Francamente, não!
De siibito. saltaram-lhe as lágrimas dos olhos e eu abracei-a.
— Eri! Não. pronto, é não. Farei o que quiser, mas não chore. Suplico-Ihe. Porque… Não chore. Pare. está bem? Mas… chore, se… Eu não…
— Eu não sabia que seria tão… tão… — soluçou.
Transportei-a ã volta do quarto.
— Não chore. Eri… Sabe que mais? Partimos por… um mês. Que diz a isso? Depois, se quiser, poderá regressar.
— Por favor — pediu —. por favor.
Pousei-a no chao.
— Assim não? Não percebo nada. Pensei…
— Oh. como você é! Deve ser. não deve ser… Não quero isto! Não quero!
— O lado direito toma-se cada vez maior — observei, com inesperada frieza. — IVluito bem, então. Eri. Não a consultarei mais. Vista-se. Tomaremos o pequeno-almoço e partiremos.
Voltou para mim o rosto molhado de lágrimas. Com uma expressão estranhamente atenta. Franziu a testa. Tive a impressão de que queria dizer qualquer coisa, qualquer coisa que não seria lisongeira para mim. Mas limitou-se a suspirar e a sair sem dizer palavra. Sentei-me à mesa. Aquela minha súbita decisão — como um episódio de um romance de piratas — tinha sido uma coisa de momento. Na realidade, estava tão resoluto como um cata-vento. E sentia-me um velhaco. Como podia fazer uma coisa daquelas? — perguntava-me. Oh. que complicação!
No limiar da porta semiaberta estava Olaf.
— Meu velho, lamento muito — disse. — Foi uma grande indiscrição, mas ouvi. Não pude evitá-lo. Devias fechar a porta… e. além disso, tens uma voz tão saudável! Hal, ultrapassas-te. Que queres da rapariga? Que se lance nos teus braços porque, uma vez, desceste naquele buraco de…?
— Olaf! — rosnei.
LBFC66-10 145
— Só a calma nos pode salvar. Com que então, a arqueologista encontrou uma boa localização. Cento e sessenta anos já é antiguidade, não é?
— O teu sentido do humor…
— Não te agrada. Bem sei. Nem a mim. Mas onde estaria eu, meu velho, se não lesse em ti como num livro aberto? No teu funeral, se queres saber. Hal, Hal…
— Sei o meu nome.
— Que é que tu queres? Vamos, capelão, decide-te. Comamos e partamos.
— Nem sequer sei para onde ir.
— Por acaso, eu sei. Ao longo da costa ainda há algumas pequenas cabanas para alugar. Levas o carro…
— Levo o carro? Que queres dizer?
— Como havia de ser? Preferes a Santíssima Trindade? Capelão…
— Olaf, se não páras com isso…
— Está bem, eu sei. Gostarias de tornar toda a gente feliz. Eu, ela, o tal Seol ou Seon… Não, assim não poderá ser. Hal, partiremos juntos. Poderás deixar-me em Houl, onde tomarei um ulder.
— Estou a proporcionar-te umas boas férias!
— Se eu não me queixo, não te queixes tu por mim. Talvez dê algum resultado. Mas por agora basta. Anda.
O pequeno-almoço decorreu numa estranha atmosfera. Olaf falou mais do que de costume, mas à toa. Eri e eu quase não dissemos palavra. Depois o robot branco foi buscar o gleeder e Olaf levou-o a Clavestra, para trazer o carro. Teve essa ideia no último momento. Uma hora depois, o automóvel estava no jardim. Carreguei as minhas coisas e Eri também trouxe as suas — não todas, porém, segundo me pareceu, mas não perguntei; na realidade, não conversámos. E assim, num dia soalheiro que viria a tomar-se muito quente, seguimos primeiro para Houl — um pouco fora do nosso caminho —, onde Olaf se apeou. Só me dissera no carro que alugara um chalé para nós.
Não houve despedida propriamente dita.
— Escuta, Olaf, se eu te informar… virás!
— Com certeza. Mandar-te-ei o meu endereço.
— Escreve para o posto dos correios de Houl — recomendei.
Estendeu-me a sua mão firme. Quantas mãos como aquela restavam na Terra? Apertei-lha com tanta força que os meus dedos estalaram. Depois, sem olhar para trás, sentei-me ao volante. Viajámos menos de uma hora. Olaf dissera-me como encontraria a pequena casa. Não era realmente grande — quatro divisões e sem piscina —, mas ficava na praia, mesmo à beira-mar. Ao passarmos por enfiadas de chalés vivamente coloridos espalhados pelos montes, vimos o oceano da estrada. Mas mesmo antes de o vermos ouvimos o seu rugir distante e abafado.
De vez em quando, olhava para Eri. Estava silenciosa, hirta, e raramente olhava para a paisagem mutável. A casa — a nossa casa — deveria ser azul com telhado cor detoçja.-Toquei com a língua nos lábios e soube-me a sal. A estrada virou e correu paralela à linha arenosa da praia. O oceano, de ondas aparentemente imóveis por causa da distância, juntava a sua voz ao rugido do motor.
O chalé era um dos últimos da estrada. Um minúsculo jardim, com os arbustos cinzentos da espuma salgada, conservava os vestígios de uma recente tempestade. As ondas deviam ter chegado mesmo à sebe baixa: aqui e ali viam-se conchas vazias. O telhado inclinado estendia-se à frente, como a aba caprichosamente dobrada de um chapéu, e proporcionava muita sombra. Atrás de uma grande duna coberta de erva via-se o chalé vizinho, a uns 600 passos de distância. Em baixo, na praia em meia-lua, avistavam-se as formas minúsculas das pessoas.
Abri a porta do carro.
— Eri.
Ela saiu sem dizer uma palavra. Se ao menos soubesse o que se passava atrás daquela testa franzida! Caminhou a meu lado para a porta.
— Não, assim não — disse-lhe eu. — Não deves transpor o limiar.
— Porquê?
Peguei-lhe.
— Abre… — pedi.
Ela tocou na chapa com os dedos e a porta abriu-se.
Atravessei o limiar com ela e depositei-a no chão.
— É um costume. Para dar sorte.
Primeiro foi ver as divisões do chalé. A cozinha ficava nas traseiras, era automática e tinha um robot — não era realmente um robot, mas sim apenas um imbecil eléctrico, para fazer a lida da casa. Sabia pôr a mesa e cumpria instruções, mas só dizia meia dúzia de palavras.
— Eri, gostarias de ir à praia?
Abanou a cabeça. Estávamos parados no meio da sala maior, branca e dourada.
— Então do que gostarias? Talvez…
Repetiu o gesto antes de eu acabar a frase.
Compreendi o que me estava reservado. Mas os dados estavam lançados e o jogo teria de ser jogado.
— Vou buscar as nossas coisas — disse-lhe, e esperei que ela respondesse, mas Eri sentou-se numa cadeira verde como erva e eu compreendi que não falaria.
O primeiro dia foi terrível. Eri não fez nada óbvio, não se esforçou propositadamente para me evitar e depois do almoço até tentou estudar um pouco — perguntei-lhe, então, se podia ficar no seu quarto, a vê-la, e prometi que não diria uma palavra e não a perturbaria. Mas decorrido um quarto de hora (que rápido da minha parte!) compreendi que a minha presença era um tremendo fardo para ela. Denunciavam-no a linha das suas costas e os seus movimentos pequenos e cautelosos, o seu esforço oculto. Por isso, coberto de suor, bati apressadamente em retirada e fui andar de um lado para o outro no meu próprio quarto. Ainda não a conhecia. Mas percebia que ela não era estúpida, longe disso. O que, na situação vigente,
tanto era bom como mau. Era bom porque, mesmo que não compreendesse, ela podia pelo menos calcular o que eu era e não veria um monstro bárbaro ou um selvagem. Era mau porque, nesse caso, o conselho que Olaf me dera no.último momento não serviria de nada. Citara-me um aforismo que eu conhecia, de Hon: «Para que a mulher seja como fogo o homçm deve ser como gelo.» Por outras palavras, ele achava que a minha única oportunidade seria à noite e não durante o dia. Eu não queria que assim fosse e por essa razão me atormentava, mas compreendia que no curto espaço de tempo que me restava não podia esperar comunicar com ela, alcançá-la por meio de palavras, que tudo quanto eu dissesse permaneceria no exterior, pois de maneira nenhuma enfraqueceria a sua rectidão, a sua justificada cólera, que só se manifestara uma vez numa breve explosão, quando ela começara a gritar: «Não quero! Não quero!» Também considerei mau sinal o facto de, então, se ter controlado tão depressa.
Ao anoitecer começou a ter medo. Tentei manter-me calmo, andar suavemente, como Voov, o pequeno piloto que conseguia — perfeito homem de poucas palavras — dizer e fazer tudo quanto queria sem falar.
Depois do jantar — ela não comeu nada, o que me alarmou —, senti a cólera crescer dentro de mim. Em certas ocasiões quase a odiei pelo meu próprio tormento e a grande injustiça desse sentimento serviu apenas para o intensificar.
A nossa primeira verdadeira noite juntos. Quando ela adormeceu nos meus braços ainda toda afogueada, e a sua respiração entrecortada começou, em suspiros cada vez mais fracos, a serenar e a conduzi-la ao sono, tive a certeza de que vencera. Debatera-se do princípio ao fim, não comigo, mas com o seu corpo, que eu fiquei a conhecer: as unhas delicadas, os dedos delgados, as palmas das mãos, os pés, tudo coisas que tive de abrir e trazer à vida, por assim dizer, com os meus beijos e o meu hálito, abrindo caminho para ela — contra ela — com infinita paciência e lentidão, de modo que as transições foram imperceptíveis. Todas as vezes que sentia uma resistência crescente, como a morte, batia em retirada e começava a segredar-lhe palavras loucas, insensatas e infantis, ou voltava a ficar silencioso e limitava-me a acariciá-la, a sitiá-la com o meu contacto horas a fio, até senti-la descontrair-se e a sua rigidez ceder o lugar à tremura de uma última defesa. Depois tremeu de modo diferente, já conquistada, mas mesmo assim esperei e, sem dizer nada, pois o que se passava ficava além das palavras, puxei da escuridão os seus braços esguios e os seus seios — o seio esquerdo, pois aí batia o coração cada vez mais depressa. A sua respiração tomou-se mais violenta, desesperada, e aconteceu o que tinha de acontecer. Não foi sequer prazer, mas sim a misericórdia do aniquilamento e da dissolução, um ataque à última muralha dos nossos corpos, para que na violência pudessem ser só um durante alguns segundos. Os nossos hálitos ofegantes, o nosso fervor, tudo se fundiu em esquecimento, ela gritou uma vez, fracamente, com a voz alta de uma criança, e agarrou-me. E depois as suas mãos largaram-me furtivamente, como que numa grande vergonha e tristeza, como se compreendesse de repente como a ludibriara horrivelmente. E comecei tudo outra vez, os beijos nas curvas dos dedos, as súplicas mudas, toda a tema e cruel progressão. E repetiu-se tudo, como num escaldante sonho negro, e a certa altura senti a sua mão enterrada no meu cabelo a comprimir o meu rosto contra o seu ombro nu com uma força que não esperara nela. Mais tarde, exausta, a respirar rapidamente como se quisesse expulsar de si o calor acumulado e o medo súbito, adormeceu. E eu fiquei imóvel, como morto, tenso, a tentar discernir se o que acontecera significava alguma coisa ou não significava nada. Imediatamente antes de adormecer pareceu-me que estávamos salvos e só então veio a paz, uma grande paz, tão grande como a de Kereneia, quando estive deitado nos lençóis quentes de lava estalada com Arder, cuja boca via respirar atrás do vidro do seu fato, apesar de ele estar inconsciente, o que me disse que não tinha sido em vão, apesar de não ter sequer forças para abrir a válvula do seu cilindro de reserva. Fiquei paralisado, com a sensação de que a maior coisa da minha vida já ficara para trás e que, se morresse naquele instante, nada mudarij. A minha imobilidade era como o inexprimível silêncio do triunfo.
Mas de manhã recomeçou tudo. Nas primeiras horas do dia continuou envergonhada — ou talvez fosse desprezo o que sentia, embora eu não soubesse se era por mim se por ela própria, pelo que acontecera. Por volta da hora do almoço consegui persuadi-la a dar uma pequena volta de automóvel. Seguimos ao longo das imensas praias, com o Pacífico estendido ao sol à nossa frente, colosso rugidor sulcado por crescentes de espuma branca e dourada, cheio até ao horizonte de minúsculas velas coloridas. Parei o carro onde as praias terminavam numa inesperada parede de rocha. A estrada descrevia uma curva acentuada e, parados a um metro da sua beira, víamos em baixo a rebentação violenta. Regressámos a casa para almoçar. Foi como na véspera e tudo em mim se revoltava ao pensamento da noite, porque não queria que fosse assim. Quando não estava a olhar para ela, sentia os seus olhos postos em mim. Sentia-me intrigado com os seus renovados cenhos franzidos, com os seus súbitos olhares fixos. E de repente, pouco antes do jantar, ao sentarmo-nos à mesa, compreendi tudo, como se alguém me tivesse aberto o crânio com uma simples pancada. Apeteceu-me esmurrar-me a mim mesmo. Que idiota egocêntrico eu tinha sido, que canalha auto-enganador! Fiquei atordoado, imóvel com uma tempestade dentro de mim e bagas de suor na testa. Senti-me fraquíssimo.
— Que tens? — perguntou-me.
— Eri — murmurei, rouco —, eu… só agora… Juro! Só agora compreendo que vieste comigo porque tinhas medo, medo de que eu… Não foi?
Os seus olhos dilataram-se de surpresa e observaram-me cuidadosamente, como se suspeitasse de um estratagema, uma brincadeira.
Acenou afirmativamente.
Levantei-me de um pulo.
— Vamos.
— Para onde?
— Para Clavestra. Arruma as tuas coisas. Estaremos lá… — consultei o relógio —… dentro de três horas.
Permaneceu imóvel.
— Falas a sério? — perguntou.
— Eri, eu não sabia. Bem sei que parece incrível. Mas há limites. Sim. há limites. Eri, ainda não compreendo claramente como pude fazer semelhante coisa… porque creio que fechei os próprios olhos. Mas não interessa, agora não tem importância.
Ela fez as malas — tão depressa! Tudo dentro de mim se quebrou e desfez, mas à superfície mantive-me perfeitamente, ou quase perfeitamente, calmo. Quando se sentou a meu lado, no carro, disse:
— Perdoa-me, Hal.
— O quê? Ah! — exclamei, ao compreender. — Pensaste que eu sabia?
— Pensei.
— Está bem, não falemos mais disso.
Voltei a conduzir a cem. As casas desfilavam, cor de púrpura, brancas e cor de safira, a estrada ziguezagueava e curvava, eu aumentava a velocidade; o trânsito era muito, mas depois abrandou e os chalés perderam as suas cores, o céu tomou-se azul-escuro, as estrelas apareceram e nós continuámos a viajar velozmente, com o vento a assobiar.
A região circundante tornou-se cinzenta, os montes perderam o seu volume, tomaram-se contornos, séries de corcovas escuras, e a estrada sobressaiu contra o crepúsculo como uma faixa larga e fosforescente. Reconheci a primeira casa de Clavestra, uma curva familiar e as sebes. Parei à entrada e levei as coisas dela para o jardim e daí para a varanda.
— Não quero entrar. Tu compreendes.
— Compreendo.
Não me despedi dela. Virei-me simplesmente. Ela tocou-me no braço e eu encolhi-me como se me tivessem batido.
— Obrigada, Hal.
— Não digas nada. Só te peço que não digas nada.
Fugi. Saltei para o carro e parti. O ragido do motor salvou-me durante um bocado. Dava vontade de rir. Obviamente, ela tivera medo de que eu o matasse. No fim de contas, vira-me tentar matar Olaf, que estava inocente como um cordeirinho, simplesmente porque não me deixaraí.. E de qualquer modo… De qualquer modo, nada. Ali, no carro, uivei, pude permitir-me tudo porque estava sozinho e o barulho do motor encobria a minha loucura. Não sei em que momento compreendi o que tinha a fazer. E mais uma vez, como da primeira, chegou a paz. Não a mesma paz. Não a mesma paz porque o facto de ter tirado tão horrivelmente partido da situação, de a ter forçado a acompanhar-me e de tudo ter acontecido por causa disso, porque esse facto era pior do que tudo quanto poderia ter imaginado e até me roubava as recordações dessa noite, de tudo. Sozinho, com as próprias mãos, destruíra tudo devido a um egoísmo ilimitado, a uma mentira que me não deixara ver o que estava mesmo à superfície, o que era a coisa mais óbvia. Sim, ela falara verdade quando dissera que não tinha medo de mim. Não me temia por si, mas sim por ele.
Passavam luzes velozes, que iam ficando lentamente para trás, a paisagem era indescritivelmente bela e eu — dilacerado, trespassado — lançava-me com os pneus a protestar de uma curva para outra, na direcção do Pacífico, na direcção do penhasco que lá existia. A certa altura, quando o carro virou mais acentuadamente do que eu esperava e as rodas direitas saíram da estrada, entrei em pânico durante uma fracção de segundo, mas depois explodi num riso louco. Imaginem, ter medo de morrer ali, eu que decidira morrer noutro lado! E o riso transformou-se bruscamente em soluços. «Tenho de o fazer depressa», pensei. «Já não sou eu próprio. O que me está a acontecer é pior do que terrível, é repugnante.» Disse também a mim mesmo que devia sentir-me envergonhado. Mas as palavras não tinham peso nem significado. Escurecera por completo, a estrada estava praticamente deserta, porque poucos conduziam à noite. Nisto, porém, reparei que vinha atrás de mim, não muito longe, um gleeder preto. Passava ligeiro e sem esforço pelos lugares onde eu tinha de usar de toda a minha perícia com travão e acelerador. Porque os gleeders se seguravam à estrada por meio de forças magnéticas ou gravitacionais, sabia Deus de quais. O certo é que podia ter-me ultrapassado sem dificuldade nenhuma, mas em vez disso manteve-se à minha retaguarda, a uns 80 metros de distância, umas vezes um pouco mais perto, outras um pouco mais longe. Nas curvas apertadas, quando eu derrapava através da estrada e cortava pela esquerda, conservava-se à distância, embora eu não acreditasse que não pudesse acompanhar-me. Talvez o condutor tivesse medo. Mas a verdade é que não havia condutor nenhum. De resto, que me importava o gleeder?
Importava, porque eu sentia que ele não se deixava ficar para trás por acaso. E, de súbito, acudiu-me o pensamento de que era Olaf, de que Olaf, que não confiava absolutamente nada em mim (e com razão!), se deixara ficar nas imediações, à espera, para ver como corriam as coisas. Sim, estava ali o meu salvador, o bom e velho Olaf, que uma vez mais me não deixaria fazer o que eu queria, que seria o meu irmão mais velho, o meu confortador. Semelhante pensamento fez com que qualquer coisa se apoderasse de mim e, durante um segundo, a fúria cega não me deixou ver a estrada.
«Por que não me deixam em paz?», pensei, e comecei a exigir tudo do carro, a aproveitar todas as suas possibilidades, como se não soubesse que o gleeder podia atingir o dobro da velocidade. Assim, viajámos através da noite, por entre os montes salpicados de luzes, e acima do silvo da deslocação do ar comecei a ouvir o rugido do invisível, do imenso Pacífico, como se o som subisse de insondáveis abismos.
«Conduz, anda. Conduz. Não sabes o que eu sei. Espias-me, segues-me, não me abandonas. Óptimo. Mas eu enganar-te-ei, fugir-te-ei quando mal te precatares. E faças o que fizeres não servirá de nada, porque um gleeder não pode sair da estrada. Por isso, até ao último segundo terei a consciência tranquila. Excelente.»
Passei pelo chalé onde estivéramos. As suas três janelas iluminadas apunhalaram-me, quando passei, como se quisessem provar-me que não há sofrimento que não possa tomar-se maior ainda. Iniciei o último troço da estrada, paralelo ao oceano. Então, para meu horror, o gleeder aumentou subitamente a velocidade e começou a ultrapassar-me. Bloqueei-lhe brutalmente a passagem, guinando para a esquerda. Deixou-se ficar para trás e assim fomos manobrando: todas as vezes que ele tentava ultrapassar-me, eu bloqueava a faixa esquerda com o carro. Fizemo-lo umas cinco vezes ao todo. Nisto, embora eu estivesse a barrar o caminho, começou a avançar à rainha frente. O corpo do meu carro roçou praticamente pelo reluzente casco preto daquele projéctil sem janelas e aparentemente desocupado. Tive então a certeza de que só podia ser Olaf, pois nenhum outro homem tentaria fazer tal coisa — mas eu não podia matar Olaf. Não podia. Por isso, deixei-o passar. Colocou-se à minha frente e eu pensei que, por sua vez, me fosse bloquear, mas em vez disso manteve-se uns 15 metros à frente. «Está bem assim», pensei. E afrouxei, com a ténue esperança de que ele aumentasse a pequena distância entre nós. Mas não aumentou: afrouxou também. Faltavam cerca de dois quilómetros para a última curva do penhasco quando o gleeder afrouxou ainda mais e se manteve no centro da estrada, para que não conseguisse ultrapassá-lo. Pensei que talvez pudesse fazer o que queria, mas ainda não havia penhasco nenhum, só praia arenosa, e as rodas do carro afundar-se-iam na areia ao fim de 100 metros. Nem sequer chegaria ao oceano. Seria idiota. Não tinha por onde escolher, só me restava continuar a conduzir. O gleeder afrouxou ainda mais e eu compreendi que o pararia em breve. As traseiras do seu corpo preto brilhavam, como se manchadas de sangue fervente, das luzes de travagem. Tentei contorná-lo com uma guinada silbita, mas bloqueou-me o caminho. Era mais rápido e mais ágil do que eu — o que não admirava, pois era uma máquina que o guiava. Uma máquina tem sempre reflexos mais rápidos. Travei a fundo, tarde de mais, houve um choque terrível, uma massa preta cresceu à frente do pára-brisa e eu fui atirado para diante e perdi a consciência.
Abri os olhos e acordei de um sonho, de um sonho insensato: sonhara que estava a nadar. Qualquer coisa fria e húmida corria-me pela cara, senti mãos a sacudirem-me e ouvi uma voz.
— Olaf… — murmurei. — Porquê, Olaf? Porquê…?
— Hal!
Esforcei-me para despertar por completo, apoiei-me num cotovelo e vi a cara dela debruçada para mim, próxima. Quando me sentei, tão atordoado que não conseguia raciocinar, ela deixou-se cair devagar nos meus joelhos, com os ombros sacudidos… e eu continuei sem poder acordar. Sentia a cabeça enorme, como que cheia de algodão.
— Eri — murmurei, com os lábios curiosamente grandes, pesados e, não sei explicar como, muito distantes. — Eri, és tu. Ou estou apenas…
E, de súbito, senti a força voltar-me, agarrei-lhe nos braços, levantei-a e levantei-me, e andei cambaleante com ela. Caímos ambos na areia macia e ainda quente. Beijei-lhe a cara húmida e salgada e chorei — foi a primeira vez na minha vida— e ela chorou também. Não dissemos nada durante muito tempo. Gradualmente, começámos a ter medo — de quê, não sei— e ela olhou-me com olhos desvairados.
— Eri — repeti. — Eri… Eri…
Era tudo quanto sabia dizer. Deitei-me na areia, subitamente fraco, e ela alarmou-se ainda mais, tentou levantar-me, mas não teve forças.
— Não. Eri — murmurei. — Não, eu estou bem. É só este…
— Hal! Diz qualquer coisa! Diz qualquer coisa!
— Que hei-de dizer?… Eri…
A minha voz acalmou-a um pouco. Afastou-se a correr e voltou com uma lata, da qual me deitou de novo água na cara — amarga, a água do Pacífico. Eu tencionara beber uma quantidade muito maior — lembrou-me, rápido, um pensamento insensato. Pestanejei. Sentei-me e toquei na cabeça. Não tinha sequer um golpe. O meu cabelo amortecera o impacto e, por isso, só tinha um alto do tamanho de uma laranja, algumas escoriações e os ouvidos ainda a zumbir, mas estava bem. Pelo menos enquanto permaneci sentado. Quando tentei levantar-me. as pernas não pareceram querer cooperar.
Ela ajoelhou à minha frente, a observar, de braços caídos aos lados.
— És realmente tu? — perguntei.
Só então compreendi. Virei-me e vi, através da nauseante vertigem provocada pelo movimento, duas formas negras entrelaçadas ao luar, a uma dúzia de metros de distância, na berma da estrada. A voz não me obedeceu quando voltei a olhar para Eri.
— Hal…
— Sim?
— Tenta levantar-te. Eu ajudo-te.
— Levantar-me?
Aparentemente, a minha cabeça ainda não estava desanuviada. Compreendia e não compreendia o que acontecera. Fora Eri que viajara no gleeder? Impossível.
— Onde está o Olaf? — perguntei.
— O Olaf? Não sei.
— Queres dizer que ele não esteve aqui?"
— Não.
— Vieste sozinha?
Acenou afirmativamente.
E. de súbito, apossou-se de mim um medo temvel, desumano.
— Como foste capaz? Como?
O rosto dela tremeu, os lábios tremeram-lhe, teve dificuldade em dizer as palavras.
— Ti-tive de…
Chorou de novo. Depois serenou, tornou-se mais calma. Tocou-me na cara. na testa. Com dedos leves tacteou-me a cabeça. Repeti, ofegante:
— Eri… és tu?
Dementado. Mais tarde, vagarosamente, levantei-me. Ela amparou-me o melhor que pôde e caminhámos para a estrada. Só então vi em que estado o automóvel se encontrava. A capota, a frente toda, estava tudo como um acordeão. O gleeder. pelo contrário, quase não apresentava estragos. — pude assim apreciar a sua superioridade —, além de uma pequena amolgadela de lado, onde sustentara a maior força do choque. Eri ajudou-me a entrar, fez recuar o gleeder até os destroços do meu carro caírem de lado com um longo som metálico, e arrancou. Voltámos para trás. Fiquei calado, enquanto as luzes desfilavam. A minha cabeça não se segurava, ainda grande e pesada. Apeámo-nos defronte do chalé. As janelas continuavam iluminadas, como se tivéssemos saído só por um momento. Ajudou-me a entrar em casa. Deitei-me na cama. Ela aproximou-se da mesa, contomou-a e dirigiu-se para a porta. Sentei-me.
— Vais-te embora!
Correu para mim, ajoelhou ao lado da cama e abanou a cabeça.
— Não?
— Não.
— E nunca me deixarás?
— Nunca.
Abracei-a. Ela encostou a face à minha e tudo se esvaiu de mim: as brasas ardentes da minha obstinação e da minha cólera, a loucura das últimas horas, o medo e o desespero. Fiquei vazio, como morto, e limitei-me a apertá-la a mim com mais força, como se as minhas energias tivessem voltado. Reinava o silêncio, a luz brilhava no papel dourado das paredes do quarto e algures, muito longe, noutro mundo, fora das janelas abertas, o Pacífico bramia., Pode parecer estranho, mas nessa noite não dissemos nada. Nem uma única palavra. Só no outro dia, já tarde, soube o que se passara. Assim que eu partira no automóvel, ela adivinhara a razão e entrara em pânico, sem saber que fazer. Primeiro pensara em chamar o robot branco, mas compreendera que não poderia ajudá-la. E ele — não se lhe referia de outro modo — também não podia ajudar. Olaf, talvez. Olaf, com certeza, mas ela não sabia onde encontrá-lo e, de resto, não havia tempo. Meteu-se no gleeder da casa e partiu atrás de mim. Alcançou-me depressa e depois manteve-se na minha retaguarda enquanto houve a possibilidade de eu ir apenas regressar ao chalé.
— Ter-te-ias apeado, então? — perguntei.
Hesitou.
— Não sei… penso que teria. Penso assim agora, mas saber, não sei.
Depois, quando vira que eu não parava e continuava em frente, ficara ainda mais assustada. O resto já eu sabia.
— Não, não compreendo — confessei. — É essa parte que não compreendo. Como foste capaz?
— Disse a mim própria que… que não aconteceria nada.
— Sabias o que eu queria fazer? E onde?
— Sabia.
— Como?
Uma longa pausa.
— Não sei. Talvez porque, entretanto, aprendera a conhecer-te um pouco.
Fiquei calado. Ainda tinha muitas coisas que perguntar, mas não ousava. 154
Estávamos de pé junto da janela. De olhos fechados, a sentir o grande espaço aberto do oceano, disse:
— Está bem, Eri. Mas e agora? Que vai acontecer?
— Já te disse.
— Mas eu não quero assim — murmurei.
— Não pode ser de nenhum outro modo — respondeu, após outra longa pausa. — Além disso…
— Além disso?
— Não importa.
Nesse mesmo dia, ao anoitecer, as coisas voltaram a piorar. Os nossos problemas voltaram, progrediram e retrocederam. Porquê? Não sei. Provavelmente ela também não sabia. Dir-se-ia que só em situações extremas nos tomávamos chegados, íntimos, e só então conseguíamos compreender-nos um ao outro. Seguiu-se uma noite. E outro dia.
No quarto dia ouvi falar ao telefone e fiquei assustadíssimo. Depois ela chorou. Mas ao jantar estava de novo sorridente.
E isso foi o fim e o princípio. Porque na semana seguinte fomos a Mae, a principal cidade do distrito, e num escritório, perante um homem vestido de branco, dissemos as palavras que fizeram de nós marido e mulher. Nesse mesmo dia mandei um telegrama a Olaf. No dia seguinte fui aos Correios, mas não havia nada dele. Pensei que talvez se tivesse mudado e daí o atraso. Para dizer a verdade, já então, nos Correios, senti uma ponta de ansiedade, porque aquele silêncio não estava de acordo com a maneira de ser de Olaf. Mas, com tudo quanto acontecera, só pensei no assunto um rfiomento e nem disse nada a Eri. Como se o caso estivesse esquecido.