III

Passei a tarde numa livraria. Que não tinha livros. Não tinha sido impresso nenhum havia quase meio século. E como eu os desejara, depois dos microfilmes que constituíam a biblioteca do Prometheus! Não teria essa sorte. Já não era possível caminhar entre estantes, sopesar os volumes na mão, sentir-lhes o peso, a promessa de apaixonante leitura. A livraria parecia mais um laboratório de electrónica. Os livros eram cristais com o conteúdo gravado. Podiam ser lidos com a ajuda de um opton, que era semelhante a um livro, mas tinha apenas uma página entre as capas. Um toque e apareciam nele sucessivas páginas de texto. Mas os optons eram pouco usados, disse-me o robot vendedor. O público preferia os lectons: os lectons liam alto, podiam ser regulados para qualquer voz, ritmo e modulação. Só se imprimiam, numa imitação plástica de papel, publicações científicas, que tinham uma distriuição muito limitada. Por isso, todas as minhas aquisições couberam numa algibeira, embora devessem constar de quase 300 títulos. Um punhado de milho de cristal, os meus livros. Escolhi um certo número de obras de história e sociologia, algumas sobre estatística e demografia, e o que a rapariga da Adaptação me recomendara sobre psicologia. Um par dos maiores manuais de matemática — maiores, claro, no aspecto do conteúdo e não do seu tamanho físico. O robot que me serviu era ele próprio uma enciclopédia, em virtude de, como se disse, estar directamente ligado, por intermédio de catálogos electrónicos, a padrões de todos os livros da Terra. Por norma, uma livraria só tinha «cópias» simples de livros e quando alguém queria determinado livro o conteúdo da obra era gravado num cristal.

Os originais — cristomatrizes — não se viam; estavam gravados atrás de chapas de aço esmaltadas, azul-pálido. Assim, podia-se dizer que um livro era impresso todas as vezes que alguém o queria. Os problemas das edições, da sua quantidade e do seu esgotamento tinham cessado de existir. Na realidade, tratava-se de um grande progresso, mas eu lamentei o desaparecimento dos livros. Ao ser informado de que havia livrarias de segunda mão que tinham livros de papel, procurei uma. Fiquei decepcionado, pois não havia praticamente obras científicas. Literatura ligeira, alguns livros infantis e algumas séries de antigos periódicos.

Comprei (só se pagavam os livros antigos) alguns contos de fadas de quarenta anos atrás, a fim de ficar a saber o que consideravam, agora, contos de fadas, e dirigi-me a uma loja de artigos de desporto. Aí a minha decepção não teve limites. O atletismo só existia numa forma insignificante. Corrida, lançamento, saltos, natação; mas quase não havia desportos de combate. Não havia boxe e aquilo a que chamavam «luta» era perfeitamente ridículo, uma troca de empurrões em vez de um combate respeitável. Observei um combate do campeonato do mundo na sala de projecções do estabelecimento e julguei que rebentava de raiva. Em certas passagens desatei a rir como um maluco. Fiz perguntas a respeito do estilo livre americano, do judo, do ju-jitsu, mas ninguém percebeu do que estava a falar. Compreensível, dado que o râguebi tinha morrido sem deixar herdeiros, como uma actividade em que se verificavam recontros violentos e danos físicos. Havia hóquei, mas não era hóquei! Jogavam com equipamentos tão inflados que pareciam enormes bolas. Era interessante ver as duas equipas chocar uma com a outra, mas tratava-se de uma farsa e não de um desafio. Mergulho, sim, mas só de uma altura de quatro metros. Pensei imediatamente na minha (minha!) piscina e comprei uma prancha desdobrável, para acrescentar à que devia ter em Clavestra. Aquela desintegração era obra da betrização. Que touradas, lutas de galos e outros espectáculos sangrentos tivessem desaparecido, não me incomodava, e também nunca fora entusiasta do boxe profissional. Mas a papa tépida que restava não me atraía minimamente. Tolerara apenas no negócio turístico a invasão do desporto pela tecnologia. Mas ela aumentara, especialmente nos desportos subaquáticos.

Dei uma olhadela a vários equipamentos para mergulhar: pequenos torpedos eléctricos que se podia usar para viajar ao longo do fundo de um lago; barcos a motor; hidroplacas que se moviam sobre uma almofada de ar comprimido, e microgleders aquáticos, tudo munido de dispositivos especiais de segurança contra acidentes. As corridas, que desfrutavam de considerável popularidade, não as considerava um desporto. Claro que não havia cavalos nem automóveis: máquinas accionadas por controlo à distância disputavam as corridas e podia-se apostar nelas. A competição perdera a importância. Explicaram-me que os limites da capacidade física do homem tinham sido atingidos e que os recordes existentes só poderiam ser derrubados por uma pessoa anormal, por algum monstro de força ou velocidade. Racionalmente, tive de concordar com iso. E a popularidade universal das disciplinas atléticas que tinham sobrevivido à dizimação merecia orgulho. No entanto, ao fim de três horas de observação saí, deprimido.

Pedi que me enviassem para Clavestra o equipamento de ginástica que tinha escolhido. Depois de pensar um bocado, resolvi não comprar um barco a motor. Qugiiaomprar um iate, mas não havia nenhum decente, isto é, com velas sériiye bolinas; havia apenas uns barcos miseráveis que asseguravam tal estabilidade que me era impossível compreender como velejar neles poderia dar prazer a alguém.

Anoitecia quando regressei ao hotel. Do ocidente avançaram flocosas nuvens avermelhadas, o Sol já se pusera, a Lua começava a mostrar o seu quarto crescente e no zénite brilhava outra, um enorme satélite qualquer. No alto, por cima dos edifícios, passavam enxames de máquinas voadoras. Havia menos peões e mais gleeders e estavam a aparecer, a atravessar a estrada, aquelas luzes metidas em aberturas, cujo propósito ainda desconhecia. Meti por um caminho de regreso diferente e fui ter a um grande jardim. Ao princípio pensei que era o parque do terminal, mas a montanha da estação brilhava ao longe, na parte setentrional e mais elevada da cidade.

A vista era invulgar, pois apesar de a escuridão, entrecortada pelas luzes das ruas, envolver toda a área, os níveis superiores do Terminal ainda brilhavam como picos alpinos cobertos de neve.

Estava muita gente no parque. Havia muitas novas espécies de árvores, especialmente palmeiras, e cactos em flor e sem espinhos. A um canto, afastado dos passeios principais, encontrei um castanheiro que devia ter duzentos anos. Três homens do meu tamanho não lhe poderiam ter abarcado o tronco. Sentei-me num pequeno banco e durante algum tempo olhei para o céu. Como as estrelas pareciam inofensivas e amigas, a piscar e a brilhar nas invisíveis correntes atmosféricas que delas protegiam a Terra! Pela primeira vez em anos pensei nelas como «estrelinhas». Lá em cima, ninguém teria falado de tal maneira, pois se o fizesse julgá-lo-íamos doido. Estrelinhas, sim, famintas estrelinhas. Por cima das árvores, já completamente escuras, explodia fogo de vista, ao longe, e de súbito, e com espantosa realidade, vi Arcturus, as montanhas de fogo sobre as quais voara a bater os dentes com frio, enquanto a geada do equipamento arrefecido se fundia e escorria, vermelha de ferrugem, pelo meu fato abaixo. Andava a recolher amostras com um sifão corona e tinha um ouvido atento ao silvo dos compressores, no caso de alguma perda de rotação, porque uma paragem de um simples segundo, o seu emperramento. bastaria para transformar a minha blindagem, o meu equipamento e eu próprio num puf! invisível de vapor. Uma gota de água a cair numa chapa ao rubro não desaparece tão depressa como um homem, lá em cima.

O castanheiro estava quase no fim da floração. Nunca me interessara pelo cheiro das flores, mas agora recordava-me coisas de havia muito tempo. Por cima das sebes, o clarão do fogo de vista acendia-se e apagava-se, em ondas. Um ruído aumentava, orquestras misturavam-se e com intervalos de poucos segundos, transportado pelo vento, voltava ao grito coral de participantes nalgum espectáculo, talvez de passageiros de um carro. Mas o meu cantinho permanecia imperturbado.-

Nisto, um vulto alto e escuro emergiu de um carreiro lateral. A verdura ainda nào estava completamente cinzenta e eu só vi o rosto da pessoa que se aproximava muitíssimo devagar, passo a passo e mal levantando os pés do chão, só vi, dizia, quando ele parou a alguns metros de distância. Tinha as mãos enfiadas numa espécie de funis dosquais saíam duas hastes delgadas que terminavam numa bola preta. Ele apoiava-se nelas não como um paralítico, mas sim como alguém num estado de extremo enfraquecimento. Não olhou para mim nem fosse para o que fosse — o riso, os gritos, a miisica e o fogo de vista pareciam não existir para ele. Ficou parado talvez um minuto, a respirar com grande esforço, e eu vi-lhe intermitentemente o rosto nos clarões de luz de fogo de vista, um rosto tão velho que os anos lhe tinham apagado toda a expressão e deixado apenas a pele e o osso. Quando ele se preparava para recomeçar a andar, avançando com aquelas esquisitas muletas ou membros artificiais, uma delas escorregou. Saltei do banco para o amparar, mas ele já recuperara o equilíbrio. Era uma cabeça mais baixo do que eu. mas mesmo assim alto para um homem da época. Ólhou-me com olhos brilhantes.

— Desculpe-me… — murmurei.

Queria afastar-me, mas fiquei: nos seus olhos havia um não-sei-quê de autoritário, que me retinha.

— Já o vi em qualquer lado… Mas onde? — disse, em voz surpreendentemente forte.

— Duvido — respondi, a abanar a cabeça. — Regressei ontem, apenas… de uma viagem muito longa.

— De…?

— De Fomalhaut.

Os seus olhos iluminaram-se.

— Arder! Tom Arder!

— Não — corrigi. — Mas estive com ele.

— E ele?

— Morreu.

O desconhecido começou a respirar com dificuldade.

— Ajude-me… a sentar.

Peguei-lhe no braço. Sob o tecido preto e escorregadio só havia ossos. Sentei-o devagarinho no banco e fiquei a olhá-lo, de pé.

— Sente-se…

Sentei-me. Ele continuava a ofegar, de olhos semicerrados.

— Não é nada… foi a excitação… — murmurou e, passados momentos, descerrou as pálpebras. — Sou Roemer — disse, simplesmente.

Mas bastou para me deixar sem respiração, — O quê?! Será possível… o senhor… o senhor…? Que idade…

— Cento e trinta e quatro — respondeu, secamente. — Então tinha… sete.

Lembrei-me dele. Visitara-nos com o pai, o brilhante matemático que trabalhava como assistente de Geonides, o criador da teoria ligada ao nosso voo. Arder mostrara ao garoto a enorme sala de experiências e as centrifugadoras. Era assim que permanecia na minha memória, vivo como uma chama, com sete anos e os olhos escuros do pai. Arder erguera-o no ar, para que o pequeno pudesse ver de perto o interior da câmara de gravitação onde eu me encontrava.

Ficámos ambos silenciosos. Havia algo de estranho naquele encontro. Qlhei através da escuridão, com uma espécie de avidez dolorosa, para aquele rosto terrivelmente velho, e senti um aperto na garganta. Apeteceu-me tirar um cigarro da algibeira mas os dedos tremiam-me tanto que não fui capaz.

— Que aconteceu a Arder? — perguntou-me.

Contei-lhe.

— Não recuperaram… nada?

— Sabe que nunca se recupera nada.

— Confundi-o com ele…

— Compreendo. A minha altura e tudo o mais.

— Sim… Que idade tem agora, biologicamente?

— Quarenta anos.

— Eu podia… — murmurou.

Compreendi em que estava a pensar.

— Não o lamente — disse-lhe, em tom firme. — Não o deve lamentar. Não deve lamentar nada, compreende?

Ergueu pela primeira vez o olhar para o meu rosto.

— Pprquê?

— Porque não há nada para eu fazer aqui. Ninguém precisa de mim. E eu… de ninguém.

Não pareceu ouvir-me.

— Como se chama?

— Bregg. Ha! Bregg.

— Bregg — repetiu. — Bregg… Não, não me lembro. Estava lá?

— Estava. Em Apprenous, quando o seu pai foi levar as correcções que Geonides fez no último mês antes da partida… Tinha-se verificado que os coeficientes de refracção das poeiras escuras eram muito baixos… Isso diz-Ihe alguma coisa? — Calei-me, hesitante.

— Diz. Claro — respondeu, com certa ênfase. — O meu pai. Claro. Em Apprenous? Mas que fazia lá você? Onde estava?

— Na câmara de gravitação, em casa de Janssen. O senhor estava lá nessa altura, o Arder levou-o. Ergueu-se na plataforma e observou enquanto eles me aplicavam quarenta gs. Quando sai, sangrava do nariz e o senhor deu-me o seu lenço.

— Ah! Era você?

— Era.

— Mas a pessoa que estava na câmara tinha cabelo escuro. Pareceu-me, pelo menos.

— Pois tinha. O meu cabelo não é claro: é grisalho. O senhor é que não vê bem agora.

Seguiu-se outro silêncio, mais longo.

— É professor, suponho? — perguntei, para dizer alguma coisa.

— Fui. Agora… nada. Há vinte e três anos. Nada. — E repetiu ainda, serenamente: — Nada.

— Hoje comprei alguns livros e, entre eles, a topologia de Roemer. E seu ou do seu pai?

— É meu. É matemático?

Fitou-me, como que com interesse renovado.

— Não, mas dispus de muito tempo… lá. Cada um de nós fazia o que queria. Eu achei a matemática útil.

— Como a compreendeu?

— Dispúnhamos de um número enorme de microfilmes: ficção, romances o que quiséssemos. Sabia que tinhamos trezentos mil títulos? O seu pai ajudou Arder a compilar a parte matemática.

— Estou ao corrente disso.

— Ao princípio, encarámo-lo como… uma diversão. Para matar o tempo. Mas depois, após alguns meses, quando perdêramos por completo o contacto com a Terra e pairávamos lá em cima, aparentemente imóveis em relação às estrelas… então, compreende, ler que um Peter qualquer fumava nervosamente sem saber se a Lucy viria ou não, e que ela entrava nervosamente a torcer as luvas… bem, primeiro começámos por rir como idiotas, mas depois ficámos simplesmente furiosos. Por outras palavras, ninguém tocava nessas leituras.

— E na matemática?

— Não, logo, não. Ao princípio estudei línguas e continuei a estudá-las até ao fim, embora soubesse que podia ser tempo perdido, pois quando voltasse algumas ter-se-iam tomado dialectos arcaicos. Mas Gimma — e Thurber, especialmente — instigaram-me a aprender Física. Disseram que podia ser útil. Assim fiz, juntamente com Arder e Olaf Staave, mas nós três não éramos cientistas…

— Tinha um diploma.

— Sim, um mestrado em teoria da informação e cosmodromia e um diploma em engenharia nuclear, mas tudo isso era profissional e não teórico. Não ignora como os engenheiros sabem matemática… Portanto, depois dediquei-me à física. Mas queria mais qualquer coisa, só para mim, e por isso, finalmente, voltei-me para a matemática pura. Não tinha inclinação nenhuma para matemática. Nenhuma. Só tinha persistência.

— Sim — murmurou serenamente —, era necessário tê-la para voar…

— Particularmente para se tomar membro da expedição — corrigi-o. — E sabe porque teve a matemática esse efeito? Só o compreendi lá. Porque a matemática se eleva acima de tudo. As obras de Abel e Kronecker valem tanto hoje como há quatrocentos anos, e será sempre assim. Surgem novas estradas, mas as velhas é que indicam o caminho. As ervas daninhas não as invadem. Lá… lá temos etemidade. Só a matemática não a receia. Lá em cima compreendi como é definitiva. E forte. Não havia nada como ela. E o facto de eu ter de me esforçar, de luíar, também era bom. Esfalfava-me a estudá-la e quando não conseguia dormir revia mentalmente o material que estudara nesse dia.

— Interessante — comentou, mas não havia interesse nenhum na sua voz; eu nem sequer sabia se me estava a ouvir.

Ao longe, no parque, subiam colunas de fogo, clarões vermelhos e verdes acompanhados por gritos de contentamento. Ali, onde nos sentávamos debaixo das árvores, estava escuro. Calei-me. Mas o silêncio era insuportável.

— Para mim, teve o valor da autopreservação — disse. — A teoria da pluralidade… o que Mirea e Averin fizeram com o legado de Cantor… Operações utilizando quantidades infinitas e transfinitas, os continua de aumentos discretos… era maravilhoso. Lembro-me como se fosse ontem do tempo que passei com essas coisas.

— Não é tão inútil como pensa — murmurou. Afinal estava a ouvir. — Suponho que não ouviu falar dos estudos de Igalli?

— Não. De que se trata?

— Da teoria do antipólo descontínuo.

— Não sei nada a respeito de nenhum antipólo. Que é?

— Retroniilação. Foi donde surgiu a parastática.

— Nunca ouvi sequer falar desses termos.

— É natural, pois tiveram a sua origem há sessenta anos. Mas isso foi apenas o princípio da gravitologia.

— Estou a ver que tenho que estudar um bocado… Gravitologia. É a teoria da gravitação?

— Muito mais. Só pode ser explicada por intermédio da matemática. Estudou Appiano e Froom?

— Estudei.

— Nesse caso, não deve ter dificuldade. São expansões metagénicas numa série n-dimensional, configuracional e degenerativa.

— Oue está a dizer? Skriabin não provou que não há metragens além dos variacionais?

— Provou. Uma prova muito elegante. Mas isto, compreende, é transcontínuo.

— Impossível! Isso… mas isso deve ter aberto todo um novo mundo!

— Pois abriu — respondeu secamente.

— Lembro-me de um ensaio de Mianikowski… — comecei.

— Oh, não está relacionado! No máximo, uma direcção similar.

— Precisaria de muito tempo para alcançar tudo quanto foi feito em todos estes anos?

Não respondeu logo.

— Oue utilidade poderá ter para si?

Não soube que responder.

— Não tenciona voltar a voar?

— Não. Sou muito velho. Não suportaria a espécie de aceleração que… e, de qualquer modo, agora não voaria.

Depois destas palavras ficámos muito tempo silenciosos. A elação inesperada com que eu falara a respeito de matemática evaporara-se de súbito, e continuei ao lado dele a sentir o peso do meu próprio corpo e o seu tamanho desnecessário. Tirando a matemática não tínhamos nada a dizer um ao outro e sabíamo-lo ambos. Ocorreu-me então que a emoção com que eu falara do abençoado papel da matemática na viagem tinha sido um subterfiigio. Enganara-me a mim próprio com a modéstia, o heroísmo sério do piloto que se ocupa, nos intervalos das nebulosas, com estudos teóricos de infinito. Hipocrisia. O que tinha sido na realidade? Se um náufrago, à deriva durante meses no mar, contou mil vezes o número de fibras de madeira que constituem a sua jangada, a fim de manter a sanidade mental, deverá depois gabar-se disso, quando alcançá terra? Deverá gabar-se de ter tido a tenacidade de sobreviver? E depois? Quem se interessa? Por que havia de interessar a alguém como eu enchera o meu pobre cérebro durante aqueles dez anos, e por que era isso mais importante do que a maneira como enchera o estômago? «Tenho de deixar de representar o papel de herói sereno», pensei. «Poderei permitir-me fazê-lo quando tiver o aspecto dele. Agora devo concentrar-me no futuro.»

— Ajude-me a levantar — pediu, num murmúrio.

Conduzi-o a um gleeder que estava parado na rua. Fomos muito devagar. Onde havia luzes, entre as sebes, as pessoas seguiam-nos com o olhar. Antes de entrar no gleeder, voltou-se para se despedir de mim. Nem ele nem eu encontrámos nada que dizer. Roemer fez um movimento ininteligível com a mão, da qual irrompia uma das canas como uma espada, abanou a cabeça e entrou. O veículo escuro afastou-se silenciosamente. Fiquei de braços pendentes, até o gleeder desaparecer no meio de outros. Meti as mãos nas algibeiras e comecei a andar, incapaz de responder à pergunta quanto a qual de nós escolhera melhor.

Era uma boa coisa que não restasse nada da cidade que eu deixara, nem uma pedra sobre outra. Era como se, então, tivesse vivido numa Terra diferente, entre homens diferentes. Isso começara e terminara de uma vez para sempre e isto era novo. Nem relíquias nem ruínas para lançarem dúvidas sobre a minha idade biológica. Pudera esquecer a sua contagem terrestre, tão contrária à natureza, até aquela incrível coincidência me fazer encontrar uma pessoa que vira pela última vez quando ela era uma criança pequena. Durante todo o tempo que estivera sentado a seu lado, a olhar para as suas mãos secas como as de uma múmia e para o seu rosto, sentira-me culpado e soubera que ele tivera consciência disso. Pensei e tornei a pensar que se tratara de um acidente improvável, até compreender que ele podia ter sido atraído para aquele lugar pela mesma coisa que me atraíra a mim: afinal, crescia ali aquele castanheiro que era mais velho do que qualquer de nós. Ainda não fazia ideia do que eles tinham conseguido no capítulo de aumentar a duração da vida humana, mas percebera que a idade de Roemer era algo de excepcional: devia ser o último ou um dos últimos da sua geração. «Se eu não tivesse saído da Terra, já não estaria vivo», pensei — e pela primeira vez vi que a nossa expedição tinha um reverso inesperado: o subterfúgio, a partida cruel que pregara a outros. Continuei a andar às cegas. À minha volta havia o barulho de uma multidão, uma corrente de transeuntes foi-me empurrando. Até que parei, subitamente desperto.

Havia um barulho indescritível. No meio da mistura de gritos e música, rajadas de fogo de vista explodiam no céu e ficavam a pairar, muito alto, em ramos coloridos; esferas incandescentes caíam nas copas das árvores próximas; com intervalos regulares ouvia-se o som penetrante de muitas vozes, como que um grito de terror misturado com riso, exactamente como se algures, ali perto, houvesse uma montanha russa. Mas olhei em vão em busca da sua armação. No meio do parque erguia-se um grande edifício com torres e ameias, como um castelo fortificado vindo directamente da Idade Média. As chamas frias das luzes de néon que lhe lambiam o telhado ordenavam-se com intervalos de poucos segundos nas palavras pal ácio de merlin. A multidão que para ali me arrastara desviou-se para o lado, na direcção da parede escarlate de um pavilhão que tinha a particularidade de se parecer com um rosto humano, com olhos incandescentes a servirem de janelas e uma boca imensa e disforme cheia de dentes, aberta para engolir a dose seguinte de gente que se empurrava, ao compasso da alegria geral. Todas as vezes a boca consumia a mesma quantidade: seis. Ao princípio, a minha intenção era sair da turba e ir-me embora. Mas isso não teria sido fácil e. além do mais, não tinha aonde ir e ocorreu-me a ideia de que, de todas as maneiras possíveis de passar o resto da noite, aquela, desconhecida, podia não ser a pior. Eu parecia o único que estava sozinho — eram principalmente pares, rapazes e raparigas, homens e mulheres enfileirados a dois e dois — e quando chegou a minha vez, anunciada pelo clarão branco dos grandes dentes e pela escuridão iante e escarlate da misteriosa garganta, dei comigo em apuros, pois não sabia se me podia juntar a um sexteto já completo. No último momento, decidiu por mim uma mulher que estava com um jovem de cabelo escuro e vestido mais extravagantemente do que todos os outros: agarrou-me na mão e, sem cerimónia, puxou-me atrás de si.

Ficou quase completamente escuro. Senti a mão quente da mulher desconhecida, o chão moveu-se, a luz voltou e encontrámo-nos numa gruta espaçosa. A última dúzia de passos era a subir, sobre saibro solto e entre montes de pedra esmagada. A desconhecida largou a minha mão e, um por um, inclinámo-nos para passar pela estreita saída da caverna.

Apesar de estar preparado para uma surpresa, fiquei boquiaberto. Encontrámo-nos na margem larga e arenosa de um grande rio, sob os raios escaldantes de um sol tropical. A outra margem estava invadida pela selva. Na água parada da margem estavam ancorados barcos, ou melhor canoas escavadas, e contra o fundo do rio verde-acastanhado que corria indolentemente atrás deles, encontravam-se negros imensamente altos, como que petrificados em poses hieráticas, nus, reluzentes de óleo e cobertos de tatuagens brancas, cada um inclinado para o remo espatulado, junto ao costado do barco.

Um dos barcos estava a partir, cheio. A sua tripulação negra dispersava, com pancadas dos remos e gritos assustadores, crocodilos que se encontravam meio imersos no lodo, como troncos. Os crocodilos viravam-se e, debiimente, batiam com as mandíbulas orladas de dentes, enquanto deslizavam para água mais funda. O nosso grupo de sete desceu o aterro íngreme da margem. Os primeiros quatro tomaram lugar no barco seguinte. Com visível esforço, os negros cravaram os remos na margem e afastaram o barco pouco estável, de modo que ele deu uma volta. Eu fiquei na retaguarda, tendo à minha frente apenas o casal a quem devia a minha presença e a viagem prestes a iniciar-se. pois surgiu o barco seguinte, com cerca de dez metros de comprimento. Os remadores negros gritaram-nos e, lutando contra a corrente, encostaram habilmente a embarcação. Saltámos para o interior a apodrecer do barco e levantámos uma poeira que cheirava a madeira queimada. O jovem extravagantemente vestido — uma pele de tigre, com a metade superior do crânio do predador caída sobre o ombro, para poder servir de capuz — ajudou a companheira a sentar-se. Eu sentei-me defronte deles. Já andáramos um bocado, e embora alguns minutos antes tivesse estado no parque, no meio da noite, naquele momento não estava muito certo disso. O negro alto que se encontrava na proa aguçada do barco soltava um grito selvagem de poucos segundos em poucos segundos. Duas filas de costas dobraram-se, reluzentes, os remos bateram na água com pancadas breves e violentas, o barco raspou na areia, pareceu desgovernado e, de súbito, entrou na corrente principal do rio.

Aspirava-se o cheiro pesado e quente da água, do lodo e da vegetação em decomposição que passava a flutuar pelos lados do barco, que mal se encontrava uma mão travessa acima da superfície da água. As margens foram-se afastando. Passámos por mato caracteristicamente verde-acinzentado, como que queimado. De baixios arenosos batidos pelo sol deslizavam de vez em quando crocodilos, como troncos animados de vida que caíam na água com um splash! Um deles permaneceu um bom bocado à nossa ré, com a cabeça alongada à superfície. Lentamente, a água começou a cobrir-lhe os olhos salientes e a certa altura já só se via a ponta do focinho, escura como uma pedra do rio, a abrir rapidamente a água castanha. Entre as costas ritmicamente ondulantes dos remadores pretos viam-se elevações no rio, quando ele corria sobre obstáculos submersos. Então o homem da proa soltava um grito áspero, os remos de um lado começavam a bater na água mais vigorosamente e o barco virava. É difícil dizer quando os gemidos cavos soltados pelos pretos, ao inclinarem-se sobre os remos, começavam a amalgamar-se num canto inexprimivelmente triste e infinitimente repetitivo, numa espécie de grito irado que se transformava numa queixa e tinha como coro o bater da água aberta pelos remos. Assim continuámos, como se viajássemos realmente pelo coração da África, num enorme rio no meio de uma selva verde-acinzentada. A sólida parede da selva recuou finalmente e desapareceu numa massa tremeluzente de ar escaldante. O timoneiro negro acelerou o ritmo. Na savana distante pastavam antílopes e a certa altura passou uma manada de girafas numa nuvem de poeira e num trote indolente. Depois senti o olhar da mulher sentada defronte de mim e olhei para ela.

O seu encanto surpreendeu-me. Já notara antes que era atraente, mas isso fora apenas de passagem e não me prendera a atenção. Agora estava tão perto dela que não podia cometer o mesmo erro: não era atraente, era bela. Tinha cabelo escuro com um brilho de cobre, rosto branco e indescritivelmente tranquilo e lábios escuros e imóveis. Cativou-me. Não como uma mulher, mas antes de um modo semelhante ao daquela vasta exposição silenciosa sob o sol. A sua beleza tinha a perfeição que sempre me assustara um pouco. Possivelmente porque, na Terra, a experimentara muito pouco e pensara muito nela. De qualquer modo, ali à minha frente estava uma daquelas mulheres que parecem feitas de barro diferente do usado no comum dos mortais, embora essa magnificente vida se deva somente a uma certa configuração das feições e seja inteiramente superficial — mas quem, ao olhar, pensa nisso? Sorria apenas com os olhos; os seus lábios conservavam uma expressão de desdenhosa indiferença. Não para comigo, porém. Talvez para com os seus próprios pensamentos. O seu companheiro estava sentado numa saliência da canoa e tinha a mão esquerda indolentemente pendurada do lado de fora, de modo que os seus dedos arrastavam pela água, mas não olhava nessa direcção nem para o panorama da África selvagem que se desenrolava a toda a volta. Estava sentado como na sala de espera de um dentista, muitíssimo chateado.

À nossa frente surgiram rochas cinzentas, espalhadas através de toda a largura do rio. O timoneiro começou a gritar, como se praguejasse, com uma voz penetrante e forte. Os negros bateram furiosamente com os remos e quando se verificou que as «rochas» eram hipopótamos mergulhados o barco readquiriu velocidade. A manada dos animais de pele dura ficou para trás e acima do spiash rítmico dos remos e do canto rouco e forte dos remadores, ouviu-se uma espécie de rugido cavo. de origem desconhecida. Ao longe, onde o rio desaparecia entre margens cada vez mais íngremes, vi dois arco-íris imensos, tremeluzentes, a inclinarem-se um para o outro.

— Age. Atmai! Annai! Agee! — gritou freneticamente o timoneiro.

Os negros redobraram os esforços e o barco pareceu ter adquirido asas. A mulher estendeu a mão. sem olhar, para a mão do companheiro.

O timoneiro gritava. A canoa avançava a uma velocidade espantosa. A proa ergueu-se. nós descemos da crista de uma vaga enorme e aparentemente imóvel e por entre as filas de costas pretas que se moviam a um ritmo incrível vi uma curva do rio: as águas subitamente escurecidas embatiam numa porta de pedra. A corrente partia-se em duas. Mantivemo-nos do lado direito, onde a água subia em cristas de espuma cada vez mais brancas, enquanto o braço esquerdo do rio desaparecia, como que amputado, e só um trovejar monstruoso e colunas de névoa turbilhonante inidicavam que aquelas rochas ocultavam uma queda-dágua. Evitámo-la e chegámos ao outro braço do rio. mas as coisas aí também não estavam pacíficas. A canoa empinava-se como um cavalo entre penedos pretos, cada um dos quais detinha uma parede alta de água rugidora. As margens aproximaram-se e os negros do lado direito do barco pararam de remar e encostaram ao peito os cabos rombos dos remos. Depois, com um choque cuja força pôde ser avaliada pelo som cavo que produziu, o barco foi repelido pela rocha e lançado no centro da corrente. A proa pareceu voar para cima e o timoneiro que lá se encontrava manteve o equilíbrio graças a algum milagre. Senti o frio dos salpicos soltados pelas arestas das rochas quando a canoa, a vibrar como uma mola, acelerou e desceu. À nossa passagem pelos rápidos foi e.xtraordinária. De ambos os lados brilhavam rochas pretas com jubas ondulantes de água e. vezes repetidas, a canoa foi desviada delas pelos remos e, com um estremeção, pareceu fazer tabela e voltou para a garganta da água mais rápida, como uma seta lançada através de espuma branca. Olhei para cima e vi. lá no alto entre as copas dos sicómoros, pequeninos macacos aos saltos de ramo para ramo. Tive de me agarrar aos lados da embarcação, tão forte foi o solavanco seguinte, e na parede de água que correu para nós de ambos os lados ficámos num instante encharcados até aos ossos. Descemos num ângulo ainda mais agudo — estávamos a cair, os penhascos da margem desfilavam como estátuas de pássaros monstruosos num caos de asas aguçadas e trovoada. Recortadas no céu. as silhuetas tensas dos remadores, como guardiões num cataclismo foram lançados a direito para um pilar de pedra que dividia o estreito em dois e à frente do qual redemoinhava um vórtice preto de água. Voámos na direcção da barreira e eu ouvi um grito de mulher.

Os negros lutavam com o frenesi do desespero e o timoneiro levantava os braços; vi-lhe os lábios escancarados num grito, mas não ouvi nenhuma voz. Ele pareceu dançar na proa, a canoa virou-se de lado, uma onda deteve-nos, durante um segundo ficámos imobilizados, como se o trabalho dos remos não servisse para nada, depois o barco deu uma volta e andou para trás cada vez mais depressa.

Num instante, as duas filas de negros largaram os remos e desapareceram: sem hesitar, lançaram-se pela borda fora de cada lado da embarcação. O último a efectuar o perigoso salto foi o timoneiro.

A mulher gritou segunda vez. O seu companheiro aguentava firme com os pés contra o lado oposto do barco e ela agarrava-se a ele. Observei, extasiado, o espectáculo da água revolta e dos arco-íris. O barco embateu em qualquer coisa, ouviu-se um grito, um grito penetrante… Através do caminho da impetuosa corrente descendente que nos arrastava encontrava-se, imediatamente acima da superfície, uma árvore, um gigante da floresta, que caíra e formara uma espécie de ponte. Os outros dois deixaram-se cair no fundo da embarcação. Na fracção de segundo que me restava, perguntei-me se deveria fazer o mesmo. Sabia que tudo aquilo — os negros, a velocidade dos rápidos e a queda de água africana — era apenas uma espantosa ilusão, mas não era capaz de continuar sentado enquanto a proa da canoa se infiltrava sob o tronco resinoso e a pingar da enorme árvore. Era superior às minhas forças. Atirei-me ao chão, mas ao mesmo tempo levantei a mão, que passou através do tronco da árvore sem lhe tocar. Não senti nada, como esperara, mas apesar disso a ilusão de que escapáramos miraculosamente a uma catástrofe manteve-se intacta.

Mas ainda não acabara, A onda seguinte empinou o barco, depois uma enorme vaga apanhou-nos e virou-nos, e nos segundos seguintes a embarcação descreveu um círculo diabólico, arrastada para o centro do redemoinho. Se a mulher gritou, não a ouvi; não teria ouvido nada naquele momento. Senti com o corpo todo o choque, o rachar da canoa, e os meus ouvidos foram como que tapados pelo rugir da queda-dágua. A canoa foi atirada para cima com enorme força e ficou entalada entre dois rochedos. Os outros dois saltaram para uma rocha coberta de espuma e amarinharara por ela acima comigo atrás.

Encontrámo-nos num penhasco entre dois braços de brancura trémula. A margem direita estava muito distante; para a esquerda seguia uma ponte presa em fendas da rocha, uma espécie de passagem elevada acima das ondas que mergulhavam nos abismos daquele diabólico caldeirão. O ar estava frio da névoa e da espuma; a ponte estreita pairava, sem corrimãos e escorregadia da humidade, acima da parede de som. Era necessário colocar os pés nas tábuas meio podres, mal unidas umas às outras por meio de cordas, e caminhar alguns passos para chegar à margem. Os outros estavam de joelhos à minha frente e aparentemente discutiam quem deveria ir primeiro. Eu não ouvia nada, claro. Era como se o próprio ar tivesse endurecido em consequência do troar constante. Por fim, o jovem levantou-se e disse-me qualquer coisa, a apontar para baixo. Vi a canoa. A sua proa partida dançou numa onda e desapareceu, a rodopiar cada vez mais depressa, atraída pelo redemoinho. O jovem de pele de tigre estava menos indiferente ou sonolento do que no princípio da viagem, mas parecia aborrecido, como se estivesse ali contra sua vontade. Agarrou no braço da mulher e eu pensei que tivesse endoidecido, pois não havia dúvida de que a puxava a direito para a garganta rugidora. Ela disse-lhe qualquer coisa e vi-lhe um clarão de indignação nos olhos. Pus as mãos nos ombros deles, disse-lhes por sinais que me deixassem passar e pus os pés na ponte, que balouçava e dançava. Caminhei não muito depressa, movendo os ombros para me equilibrar. No meio balancei uma ou duas vezes e, de súbito, a ponte começou a oscilar, de tal modo que quase caí. Sem esperar que eu chegasse ao outro lado, a mulher meteu também pela pene. Com medo de cair, saltei para a frente, pousei mesmo à beirinha do rochedo e virei-me imediatamente.

A mulher não atravessara: voltara para trás. O homem novo começou a atravessar primeiro, a segurá-la pela mão. As estranhas formas criadas pela queda-dágua, fantasmas pretos e brancos, constituíam um pano de fundo da sua instável passagem. Ele estava perto; estendi-lhe a mão. Ao mesmo tempo, a mulher tropeçou, a ponte começou a oscilar e eu puxei como se preferisse arrancar-lhe o braço a deixá-lo cair. O ímpeto transportou-o numa distância de dois metros e ele aterrou de joelhos atrás de mim. Mas largou a mulher.

Ela ainda estava no ar quando eu saltei, com os pés para a frente, a fim de entrar na água em ângulo, entre a margem e a face vertical do rochedo mais próximo. Pensei em tudo isso mais tarde, quando tive tempo. Essencialmente, sabia que a queda-dágua e a travessia da ponte eram uma ilusão, como o provava o tronco da árvore através do qual a minha mão passara. Apesar disso, saltei como se ela corresse verdadeiro perigo de vida, e até me lembro de que, por instinto, me preparei para o impacte gelado com a água, cujos salpicos nos tinham molhado constantemente o rosto e as roupas.

No entanto, não senti nada além de um forte jacto de ar e aterrei numa sala espaçosa, de pernas ligeiramente dobradas, como se tivesse saltado, no máximo, da altura de um metro. Ouvi um coro de gargalhadas.

Fiquei parado num chão macio, que parecia de plástico, rodeado por outras pessoas, algumas ainda com a roupa molhada. Olhavam para cima e riam à gargalhada.

Segui a direcção do seu olhar. Era extraordinário.

Não havia vestígios de quedas-dágua, de penhascos, nem do céu africano. Vi um tecto iluminado e, debaixo dele, uma canoa que acabava de chegar. Na realidade, tratava-se de uma espécie de decoração, pois só parecia uma embarcação vista de cima e dos lados. A base era uma espécie de construção metálica qualquer. Estavam quatro pessoas deitadas dentro dela, mas nada as cercava — nem remadores negros, nem rochedos, nem rio: apenas finos jactos de água que esguichavam de vez em quando de agulhetas ocultas… A certa distância erguia-se o obelisco de rocha onde a nossa viagem terminara. Erguia-se como um balão preso, pois não tinha nada a suportá-lo. Dele, a ponte conduzia a uma saída de pedra que irrompia da parede de metal. Um pouco mais alto, pequenos degraus com um corrimão e uma porta. E era tudo. A canoa com as pessoas lá dentro levantou-se e caiu sem o mínimo som. A única coisa que eu ouvia eram as explosões de riso que acompanhavam cada fase sucessiva da aventura da queda-dágua que não existia. Passado um bocado, a canoa colidiu com a rocha e as pessoas saltaram; tinham de atravessar a ponte…

Tinham decorrido talvez 20 segundos depois do meu salto. Olhei à procura da mulher. Estava a observar-me. Senti-me ainda mais confuso. Não sabia se devia ir ter com ela. Mas a multidão começou a sair e no momento seguinte encontrámo-nos ao lado um do outro.

— É sempre a mesma coisa — comentou ela, então. — Caio sempre!

A noite no parque, o fogo de vista e a música não me pareceram, não sei explicar porquê, inteiramente reais. Saímos com a multidão, que estava agitada após os terrores que acabara de experimentar. Vi o companheiro da mulher a abrir caminho na direcção dela. Mostrava-se de novo letárgico. Nem sequer pareceu reparar em mim.

— Vamos ao Palácio de Merlin — disse a mulher, tão alto que ouvi.

Não tencionara escutar, mas uma nova onda de gente excitada aproximou-nos ainda mais. Por essa razão, continuei parado perto deles.

— Estás com um ar de quem tenta escapar — disse ela, a sorrir. — De que estás com medo, de bruxaria?…

Falava com ele, mas olhava para mim. Podia ter aberto caminho para me afastar, claro, mas, como sempre em tais situações, tive muito medo de parecer ridículo. Continuaram a andar e deixaram um vazio na multidão. Outros, perto de mim, decidiram de súbito visitar o Palácio de Merlin, e quando segui nessa direcção, com algumas pessoas a separar-nos, compreendi que um momento antes me não enganara.

Avançámos um passo de cada vez. No relvado encontravam-se potes de alcatrão com chamas trémulas, cuja luz revelava íngremes bastiões de tijolo. Atravessámos uma ponte levadiça, por cima de um fosso, e passámos por baixo dos dentes nus de uma porta levadiça. Envolveram-nos a penumbra e o frio de um átrio de pedra; uma escada de caracol subia, cheia de ecos de passos. Mas o corredor arqueado do andar superior continha menos gente. O corredor conduzia a uma galeria com vista para um pátio onde uma turba barulhenta, montada em cavalos ajaezados, perseguia uma monstruosidade negra qualquer. Segui, hesitante, sem saber para onde ir, entre diversas pessoas que começava a reconhecer. A mulher e o companheiro passaram por mim entre colunas. Havia armaduras vazias em recantos das paredes. Mais adiante, uma porta com adornos de cobre — uma porta para gigantes — abriu-se e permitiu-nos a entrada numa câmara forrada de damasco vermelho e iluminada por archotes cujo fumo resinoso irritava o nariz. Em diversas mesas, banqueteava-se uma ruidosa companhia, de piratas ou cavaleiros andantes; enormes metades de animais giravam em espetos, lambidos por chamas; uma luz avermelhada dançava nos rostos suados; ossos estalavam entre os dentes dos farristas de armadura, que de vez em quando se levantavam da mesa e se misturavam connosco. Na sala seguinte, diversos gigantes jogavam boliche, utilizando crânios como bolas. Tudo aquilo me pareceu tremendamente ingénuo, medíocre. Parara ao lado dos jogadores, que eram tão altos como eu, quando alguém chocou comigo, por trás, e gritou de supresa. Voltei-me e deparou-se-me o olhar de um jovem, que tartamudeou uma desculpa e se afastou muito depressa, com uma expressão idiota no rosto. Só o olhar da mulher de cabelo escuro, que era a razão da minha presença naquele palácio de maravilhas baratas, me permitiu compreender o que acontecera: o jovem tentara passar através de mim, tomando-me por um dos farristas irreais de Merlin.

O próprio Merlin nos recebeu numa ala distante do palácio, rodeado por um séquito de homens mascarados que o ajudavam passivamente nos seus actos mágicos. Mas eu já vira o suficiente e observei com indiferença as demonstrações da arte negra. O espectáculo não tardou a terminar e a assistência começara a sair quando Merlin, grisalho e majestoso, nos barrou a passagem e apontou silenciosamente a porta oposta, coberta por um lençol.

Convidou a entrar apenas a nós três. Ele não entrou. Encontrámo-nos numa sala relativamente pequena, muito alta, uma das paredes da qual era um espelho desde o tecto ao chão preto e branco. A impressão que dava era a de uma sala com o dobro do tamanho e seis pessoas de pé num tabuleiro de xadrez de pedra.

Não havia móveis, nada além de um jarrão alto de alabastro com um ramo de flores que pareciam orquídeas, mas tinham grandes cálices. Era cada uma de sua cor. Nós estávamos voltados para o espelho.

Depois a minha imagem olhou para mim. O movimento não foi uma reflexão de mim próprio. Eu fiquei imóvel, mas a imagem, alta e de ombros largos, olhou primeiro, lentamente, para a mulher de cabelo escuro e depois para o seu companheiro. Nenhum de nós se mexia, só as nossas imagens, que misteriosamente se tinham tomado independentes de nós, pareciam ter adquirido vida e desempenhavam entre elas uma cena silenciosa.

No espelho, o jovem aproximou-se da mulher e fitou-a nos olhos. Ela abanou a cabeça, numa recusa, e depois tirou as flores do vaso branco e escolheu três: uma branca, uma amarela e um preta. Deu a branca ao jovem e dirigiu-se-me com as outras duas. A mim, no espelho, ofereceu ambas as flores. Eu aceitei a preta. Depois ela voltou para o seu lugar e todos três — ali, na sala do espelho — assumimos exactamente as posições que na realidade ocupávamos. Quando isso aconteceu, as flores desapareceram das mãos dos nossos duplos, que voltaram a ser apenas simples reflexos, a repetir fielmente cada movimento nosso.

Abriu-se uma porta na parede mais distante e descemos uma escada de caracol. Colunas, alcovas, abóbadas, assumiam imperceptivelmente o prateado e o branco dos corredores de plástico. Continuámos a caminhar em silêncio, nem separados nem juntos. A situação estava a tomar-se intolerável, mas que havia eu de fazer? Dar um passo em frente e apresentar-me à moda antiga, com um antiquado savoir-vivre?

O som abafado de uma orquestra. Era como se estivéssemos nos bastidores, atrás de um palco invisível. Havia algumas mesas vazias, com as cadeiras puxadas para trás. A mulher parou e perguntou ao companheiro:

— Não danças?

— Não quero — respondeu ele.

Ouvi a sua voz pela primeira vez. Era um jovem atraente, mas cheio de inércia, de uma inexplicável passividade, como se nada no mundo lhe importasse. Tinha belos lábios, quase de rapariga. Olhou para mim e depois para ela, mas não disse nada.

— Bem, então vai-te embora, se queres — disse ela.

Ele afastou uma cortina que formava uma das paredes e foi-se embora. Comecei a segui-lo.

— Por favor?… — ouvi a voz dela chamar.

Parei. De trás da cortina chegou o som de aplausos.

— Não se senta?

Sentei-me, sem uma palavra. Ela tinha um perfil magnífico. Pequenos escudos de pérola cobriam-lhe as orelhas.

— Sou Aen Aenis.

— Hal Bregg.

Pareceu surpreendida. Não pelo meu nome — que não significava nada para ela —, mas sim pelo facto de eu ter recebido o seu tão indiferentemente. Pude olhá-la melhor. A sua beleza era perfeita e implacável, assim como a indiferença calma e controlada dos seus movimentos. Usava um vestido cinzento-rosado, mais cinzento do que rosado, que lhe realçava a brancura do rosto e dos braços.

— Não gosta de mim? — perguntou calmamente.

— Não a conheço.

— Sou Ammai, em Os Sinceros.

— Que é isso?

Olhou-me com curiosidade.

— Não viu Os Sinceros?

— Nem sequer sei o que é.

— De onde veio?

— Vim do meu hotel.

— Realmente? Do seu hotel… — Havia um franco tom trocista na sua voz. — E posso perguntar-lhe onde esteve antes de chegar ao seu hotel?

— Em Fomalhaut.

— Que é isso?

— Uma constelação.

— Que quer dizer?

— Um sistema de estrelas a vinte e três anos-luz daqui.

As pálpebras palpitaram-lhe. Entreabriu os lábios. Era muito bonita.

— Astronauta?

— Sim.

— Compreendo. Eu sou uma realist… muito famosa. Não disse nada. Ficámos silenciosos. A música tocava.

— Dança? Quase ri alto.

— O que dançam agora, não.

— É uma pena. Mas pode aprender. Porque fez aquilo?

— O quê?

— Lá na ponte.

Não respondi imediatamente.

— Foi… um reflexo.

— Estava familiarizado com aquilo?

— Com aquela viagem de faz de conta? Não.

— Não?

— Não.

Um momento de silêncio. Os seus olhos, por instantes verdes, tornaram-se quase pretos.

— Só em impressões muito antigas se encontra esse género de coisa — observou, como que involuntariamente. — Ninguém representaria… Não é possível. Quando vi aquilo, pensei que… que você… Fiquei à espera.

— … que talvez fosse capaz. Porque tomou o caso a sério. Não tomou?

— Não sei. Talvez.

— Não se preocupe. Eu sei. Estaria interessado? Sou amiga de Frenet. Mas não sabe quem ele é, pois não? Hei-de dizer-lhe… É o principal produtor do real. Se está interessado…

Desatei a rir e ela estremeceu.

— Desculpe. Mas, meu Deus, pensou arranjar-me emprego como…

— Pensei.

Não pareceu ofendida. Pelo contrário.

— Obrigado, mas não. Acho realmente que não.

— É capaz de me dizer como o fez? É segredo?

— Como? Que quer dizer? Não viu?… Calei-me.

— Quer saber como fui capaz de o fazer.

— É muito perceptivo.

Sabia como ninguém sorrir só com os olhos. «Espera, que daqui a bocadinho já não estarás interessada em seduzir-me», pensei.

— É simples e não é segredo: não estou betrizado.

— Oh!

Por momentos pensei que se fosse levantar, mas controlou-se. Os seus olhos voltaram a tomar-se grandes e ávidos. Olhou-me como a uma fera que se encontra a um passo de distância, como se tivesse um perverso prazer no terror que lhe despertava. Para mim isso constituiu um insulto maior do que se se tivesse mostrado meramente assustada.

— Pode…?

— Matar? — concluí por ela, a sorrir cortesmente. — Posso, sim. — Ficámos silenciosos. A música continuava a tocar. Ela levantou diversas vezes os olhos para mim. Mas não falou. Nem eu. Aplausos. Música. Aplausos. Devemos ter ficado assim, calados, um quarto de hora. De súbito, ela levantou-se.

— Vem comigo?

— Aonde?

— A minha casa.

— Paia uma taça de brit?

— Não.

Voltou-se e partiu. Eu continuei sentado, imóvel. Detestava-a. Caminhava sem olhar para os lados, caminhava como eu nunca vira mulher nenhuma caminhar. Ou melhor, flutuava. Como uma rainha.

Alcancei-a entre as sebes, onde estava quase escuro. Os últimos vestígios de luz dos pavilhões fundiam-se com a claridade azulada da cidade. Ela deve ter ouvido os meus passos, mas continuou a andar, sem olhar, como se estivesse sozinha, mesmo quando lhe agarrei o braço. Foi andando sempre. Foi como se me desse uma bofetada. Agarrei-lhe nos ombros e voltei-a para mim. Ela ergueu o rosto, branco na escuridão, e fitou-me nos olhos. Não tentou soltar-se. Nem o teria conseguido. Beijei-a brutalmente, cheio de ódio. Senti-a tremer.

— Seu… — murmurou em voz baixa, quando nos separámos.

— Cale-se.

Tentou libertar-se.

— Ainda não — disse-lhe, e recomecei a beijá-la.

De súbito, a minha raiva transformou-se em náusea por mim próprio e larguei-a. Pensei que fosse fugir, mas ficou. Tentou olhar-me no rosto, mas eu desviei-o.

— Oue se passa? — perguntou, serenamente.

— Nada.

Deu-me o braço e disse:

— Venha.

Passou por nós um casal que desapareceu nas sombras. Segui-a. Ali, na escuridão, parecera que tudo era possível, mas, quando a claridade aumentou, a minha explosão de um momento antes — que deveria ter sido uma represália por um insulto — tomou-se meramente divertida. Senti que me encaminhava para qualquer coisa falsa, tão falsa como o perigo, a magia. Tinha sido tudo falso. E continuei a andar. Sem cólera, sem ódio, sem nada. Não me importava. Encontrei-me entre luzes altas e senti a minha enorme e pesada presença, que tomava grotesco cada passo que dava a seu lado. Mas ela parecia alheia a isso. Caminhou ao longo de uma plataforma atrás da qual se encontravam filas de gleeders. Quis ficar para trás, mas a mão dela deslizou pelo meu braço e agarrou a minha. Se quisesse deixá-la teria de puxar a mão, tomando-me ainda mais cómico — iima imagem de virtude astronáutica nas garras da mulher de Putífar. Subi atrás dela e o veículo estremeceu e arrancou. Foi a minha primeira viagem de gleeder e compreendi finalmente por que motivo não tinham janelas: do interior eram completamente transparentes, como se fossem de vidro.

Viajárnos durante muito tempo, em silêncio. Os edifícios do centro da cidade cederam o lugar a formas estranhas de arquitectura suburbana — sob pequenos sóis artificiais, imersas em vegetação, encontravam-se estruturas de linhas ondulantes, ou infladas a formar estranhas almofadas, ou com alas. de modo que a divisão entre o interior de uma casa e o que a rodeava se perdia. Eram produtos de fantasmagoria, de incansáveis tentativas para criar sem repetir formas antigas. O gleeder saiu do largo corredor de trânsito, meteu por um parque às escuras e parou junto de uma escada que se dobrava como uma cascata de vidro. Ao subi-la. vi um laranjal alastrar debaixo dos meus pés.

O pesado portão abriu-se silenciosamente. Um vestíbulo imenso cercado por uma galeria alta. quebra-luzes rosa-pálido de candeeeiros que não estavam apoiados em nada nem suspensos de nada; nas paredes inclinadas, janelas que pareciam dar para um espaço diferente, nichos que não continham fotografias nem bonecos, mas sim a própria Aen. enorme… Mesmo em frente. Aen nos braços de um homem moreno que a beijava, por cima da escada ondulante: Aen na brancura tremeluzente de um vestido, e, ao lado. Aen inclinada para flores, para lilases do tamanho do seu rosto. Ao caminhar a seu lado. voltei a vê-la noutra janela, a sorrir gaiatamente, sozinha, com a luz a tremer-lhe no cabelo acobreado.

Degraus verdes. Uma sucessão de salas brancas. Degraus prateados. Corredores de ponta a ponta e. neles, movimento lento e incessante, como se o espaço respirasse. As paredes recuavam silenciosamente, a abrir caminho para onde quer que a mulher que ia à minha frente dirigia os seus passos. Poder-se-ia pensar que um vento imperceptível soprava em redor das intersecções das galerias, a esculpi-las, e que tudo quanto eu vira até ali era apenas um limiar, uma apresentação, um vestíbulo. Através de uma sala, iluminada do exterior pela mais delicada nervação de gelo que se possa imaginar, tão branca que até as sombras pareciam leitosas, entrámos numa divisão mais pequena — depois da radiãncia pura da outra, a sua cor de bronze era como um grito. Não havia lá nada além de uma luz misteriosa, de uma fonte que parecia Invertida, pois brilhava em nós e na nossa cara vinda de baixo. Ela fez um movimento com a mão e a luz empalideceu. Aproximou-se da parede e com alguns gestos fez aparecer um volume que começou imediatamente a abrir-se e a formar uma espécie de larga cama de casal — eu sabia o suficiente de topologia para apreciar a investigação que tinha sido dedicada só à linha da cabeceira.

— Temos um convidado — disse ela. parando.

Do painel aberto saiu uma mesa posta, que correu para ela como um cão. As luzes grandes apagaram-se quando, sobre um nicho com poltronas — não sei descrever de que espécie eram — ela fez um gesto para que aparecesse um pequeno candeeiro. E a parede obedeceu. A minha anfitriã parecia ter muitas daquelas desabrochantes peças de mobiliário. Inclinou-se sobre a mesa e perguntou, sem olhar na minha direcção:

— Blar?

— Está bem — respondi.

Não fiz perguntas. Não podia deixar de ser um selvagem, mas ao menos podia ser um selvagem silencioso.

Estendeu-me um cone alto com um tubo. Cintilava como um rubi mas era macio, como se eu tivesse tocado na pele penugenta de um fruto. Pegou também num. Sentámo-nos. As cadeiras eram desconfortavelmente macias e tive a sensação de me sentar numa nuvem. O líquido sabia a frutos frescos desconhecidos e tinha pequenos glóbulos que inesperada e divertidamente explodiam na língua.

— É bom? — perguntou-me.

Talvez fosse uma bebida de ritual. Por exemplo, para os eleitos; ou, pelo contrário, para pacificar os especialmente perigosos. Mas eu decidira que não faria perguntas.

— Fica melhor sentado.

— Porquê?

— É tremendamente grande.

— Bem sei.

— Esforça-se por ser grosseiro.

— Nãó, é natural em mim.

Começou a rir, baixinho.

— Também sou espirituoso. Tenho toda a espécie de talentos.

— É diferente. Ninguém fala assim. Porque é? O que sente?

— Não compreendo.

— Está a fingir. Ou talvez tenha mentido… Não, isso não é possível. Não teria sido capaz de…

— Saltar?

— Não estava a pensar nisso.

— Em que pensava, então?

Semicerrou os olhos.

— Não sabe?

— Ah, isso! Já não se faz?

— Faz. mas não desse modo.

— Faço-o assim tão bem?

— Não, certamente que não. Mas foi como se quisesse… — não completou a frase.

— Como se quisesse o quê?

— Você sabe. Eu senti-o.

— Estava zangado — confessei.

— Zangado! — exclamou, desdenhosamente. — Eu pensei que… Não sei o que pensei. Ninguém se atreveria, sabe?

Comecei a sorrir um pouco.

— E você gostou.

— Não compreende. Este é um mundo sem medo. Mas você… uma pessoa pode ter medo de você.

— Quer mais? — perguntei.

Os lábios dela entreabriram-se e olhou-me de novo como se eu fosse uma fera imaginária.

— Quero.

Aproximou-se de mim. Peguei-lhe na mão e encostei-a, aberta, à palma da minhaj Os seus dedos mal chegavam aos meus.

— Tem a mão tão dura — comentou.

— É das estrelas. Têm arestas aguçadas. E agora diga; Tem uns dentes tão grandes!

Sorriu.

— Os seus dentes são vulgares.

Depois levantou-me a mão e fê-lo com tanto cuidado que me lembrei do encontro com o leão. Mas, em vez de me sentir ofendido, sorri, pois era tremendamente estúpido.

Levantou-se, deitou uma bebida de uma pequena garrafa escura e bebeu-a.

— Sabe o que era? — perguntou-me de rosto franzido, como se o líquido a tivesse queimado.

Tinha enormes pestanas, sem dúvida postiças. As actrizes têm sempre pestanas postiças.

— Não.

— Não dirá a ninguém?

— Não.

— Perto.

— Bem… — murmurei, sem me comprometer.

Abriu os olhos e observou:

— Já o tinha visto antes. Ia a caminhar com um velho horrível e depois voltou sozinho.

— Como se o quê?

— Era o filho de um jovem colega meu — respondi, e o singular é que era verdade.

— Atrai as atenções, sabia?

— Que posso eu fazer?

— Não só por ser tão grande… Anda de modo diferente e… olha à sua volta como se…

— Como se o quê?

— Como se estivesse na defensiva.

— Contra quê?

Não me respondeu. A sua expressão modificou-se. A respirar mais pesadamente, observou a própria mão, Os dedos tremiam.

— Agora… — murmurou suavemente e sorriu, embora o sorriso me não fosse dirigido.

O seu sorriso tornou-se inspirado, as pupilas dilataram-se e absorveram a íris, recíinou-se devagar até assentar a cabeça na almofada cinzenta, com o cabelo solto e a olhar-me com uma espécie de jubilante letargia.

— Beije-me.

Beijei-a, mas foi horrível, porque queria e não queria. Parecia-me que deixara de ser ela própria, como se tivesse a faculdade de se transformar noutra qualquer, em qualquer momento. Enfiou os dedos no meu cabelo. A sua repiração, quando se afastou de mim, parecia um gemido. «Um de nós é falso, desprezível», pensei. «Mas quem, ela ou eu?» Beijei-a, o seu rosto era dolorosamente belo, terrivelmente estranho. Depois foi só prazer, um prazer insuportável, mas mesmo então permaneceu em mim o observador frio e silencioso. Não me abandonei. As costas da cadeira, obedientes, transformaram-se num apoio para as nossas cabeças. Era como a presença de uma terceira pessoa degradantemente atenta, e, como se conscientes disso, não trocámos uma só palavra durante o tempo todo. Depois dormitei, com os meus braços à roda do pescoço dela, mas continuei com a sensação de que estava ali alguém a observar, a observar…

Quando acordei ela estava a dormir. Era uma sala diferente… Não, era a mesma. Mas mudara, de certo modo. Uma parte da parede desviara-se para revelar a alvorada. Por cima de nós, como se tivesse sido esquecido, estava aceso um candeeiro estreito. Em frente, por cima das copas das árvores ainda quase pretas, o dia rompia. Desviei-me cautelosamente para a beira da cama. Ela murmurou qualquer coisa parecida com «Alan» e continuou a dormir.

Caminhei através de salas enormes e vazias, com janelas voltadas para oriente. Uma luminosidade vermelha entrava por elas e enchia o mobiliário transparente, que tremeluzia com o fogo do vinho tinto. Através da sucessão de salas vi a silhueta de alguém a andar — um robot cinzento-pérola sem rosto, com uma luz fraca a emanar do tronco e, no interior, uma chama rubi, com uma pequena vela diante de um ícone.

— Desejo ir-me embora — disse-lhe.

— Sim, senhor.

Prata, verde, escadas azul-celeste. Disse adeus a todas as caras de Aen no átrio alto como uma catedral. Já era dia. O robot abriu o portão. Disse-lhe que me chamasse um gleeder.

— Sim, senhor. Gostaria do da casa?

— Pode ser o da casa. Quero ir para o Alcaron Hotel.

— Muito bem, senhor. Entendido.

Alguém me falara já daquele modo. Quem? Não me lembrava.

Descemos ambos os degraus íngremes — para que, até ao fim, se não esquecesse de que aquilo era um palácio e não uma casa. Entrei no veículo à luz do Sol nascente. Quando começou a andar, olhei para trás. O robot continuava parado numa pose subserviente, lembrando um pouco um louva-a-deus com os seus braços finos e articulados.

As ruas estavam quase desertas. Nos jardins, como estranhos navios abandonados, as moradias repousavam — sim, repousavam, como se tivessem apenas pousado por um momento entre as sebes e as árvores, com as asas coloridas e angulosas dobradas. Havia mais gente no centro da cidade. Pináculos com os cumes incendiados de sol, casas em jardins de palmeiras, casas leviatãs que pareciam apoiadas em andas muito dispersas… A rua cortava através delas e voava para o horizonte azul. Não olhei para mais nada. No hotel tomei banho e telefonei para a agência de viagens. Reservei um ulder para o meio-dia. Divertiu-me um pouco poder dizer o nome com tanta facilidade, embora não fizesse ideia nenhuma do que era um ulder.

Dispunha de quatro horas. Telefonei ao infor do hotel e pedi informações acerca dos Bregg. Não tinha quaisquer descendentes, mas o irmão do meu pai deixara dois filhos, um rapaz e uma rapariga. Mesmo que não estivessem vivos, os seus filhos…

O infor enumerou onze Bregg. Pedi então a sua genealogia. Fiquei a saber que só um deles, um Atai Bregg, pertencia à minha família. Era o neto do meu tio e já nada jovem: tinha quase 60 anos. Descobrira, pois, o que queria saber. Levantei até o auscultador com a intenção de lhe telefonar, mas voltei a pô-lo no descanso. No fim de contas, que tinha a dizer-Ihe? Ou ele a mim? Como morrera o meu pai? Como morrera a minha mãe? Eu morrera antes para eles e agora não tinha direito nenhum de perguntar, como seu filho sobrevivente. Teria sido — pelo menos assim pensei, naquele momento — um acto de traição, como se os tivesse ludibriado fugindo cobardemente ao futuro, escondendo-me dentro do tempo, que fora menos mortal para mim do que para eles. Eles é que me tinham sepultado entre as estrelas, e não eu a eles, na Terra.

No entanto, voltei a levantar o auscultador. O telefone tocou durante muito tempo. Por fim, o robot da casa atendeu e informou-me de que Atai Bregg estava fora da Terra.

— Onde? — perguntei muito depressa.

— Em Luna. Estará ausente durante quatro dias. Que lhe devo dizer?

— Que faz ele? Qual é a sua profissão? — perguntei. — É que não tenho bem a certeza de ser a mesma pessoa que pretendo, talvez haja engano…

Não sei porquê, era mais fácil mentir a um robot.

— É psicopedista.

— Obrigado. Voltarei a telefonar dentro de dias.

Desliguei. Pelo menos não era astronauta. Óptimo.

Liguei outra vez para o infor do hotel e perguntei o que recomendava como diversão para as próximas duas ou três horas.

— Experimente o nosso realon.

— Que vai lá?

— A Fiancée. É o último real de Aen Aenis.

Desci, pois o realon ficava no rés-do-chão. O espectáculo já começara, mas o robot da entrada disse-me que não perdera praticamente nada, apenas alguns minutos. Conduziu-me, às escuras, puxou uma cadeira em forma de ovo e, depois de me sentar, desapareceu.

A minha primeira impressão foi de estar sentado perto do palco de um teatro… ou melhor, no próprio palco, tão perto estavam os actores. Parecia que se estendêssemos a mão lhes tocaríamos. Estava com sorte, pois tratava-se de uma história do meu tempo: por outras palavras, um drama histórico. Os anos em que a acção tinha lugar não eram exactamente especificados, mas a julgar por certos pormenores tratava-se de uma ou duas décadas depois da minha partida.

Fiquei imediatamente encantado com o guarda-roupa. O cenário era naturalista, mas diverti-me por essa mesma razão, pois encontrei um grande número de erros e de anacronismos. O herói, um homem atraente e moreno, de cabelo castanho, saiu de casa em trajo de cerimónia (a cena passava-se de manhã cedo) e foi de carro encontrar-se com a sua amada. Levava até chapéu alto, mas cinzento, como se fosse um inglês a cavalgar no Derby. Mais tarde, apareceu uma estalagem romântica à beira da estrada, com um estalajadeiro como eu nunca vira — parecia um pirata. O herói sentou-se nas abas do casaco e bebeu cerveja por uma palhinha, etc.

De súbito, deixei de sorrir. Aen entrara. Vestia de modo absurdo, mas isso tornou-se irrelevante. O espectador sabia que ela amava outro e andava a enganar o jovem. O papel típico e melodramático da mulher traiçoeira, sentimentalismo, cliché. Mas Aen fazia-o de modo diferente. Era uma rapariga cabeça-no-ar, afectuosa e, em virtude da ilimitada ingenuidade da sua crueldade, uma criatura inocente que levava infelicidade a toda a gente porque não queria tomar ninguém infeliz Quando caía nos braços de um homem esquecia-se do outro, e fazia-o de tal maneira que acreditámos na sua sinceridade, de momento.

Mas todos aqueles disparates eram incoerentes, não se aguentavam, e só restava Aen, a grande actriz.

O real era mais do que apenas um filme, pois sempre que me concentrava em qualquer parte da cena esta tomava-se maior, expandia-se. Por outras palavras, o próprio espectador, por escolha própria, decidia se veria um close-up ou a imagem toda. Entretanto, o que restava na periferia do seu campo de visão não sofria qualquer distorção. Tratava-se de um truque óptico diabolicamente inteligente que produzia uma ilusão de uma realidade exraordinariamente viva, quase ampliada.

Depois fui para o meu quarto acondicionar as minhas coisas, pois partiria dentro de minutos. Afinal, tinha mais coisas do que imaginara. Ainda não estava pronto quando o telefone me anunciou que o meu ulder estava à espera.

— Desço num minuto — respondi.

O robot carregador levou as minhas malas e eu ia a sair quando o telefone tocou de novo. Hesitei. O sinal suave repetiu-se incansavelmente. «Para que não pareça que fujo», pensei enquanto levantava o auscultador, embora não tivesse bem a consciência do motivo por que o fazia.

— É você?

— Sou. Está levantada?

— Há muito tempo. Que está a fazer?

— Vi-a. No real.

— Sim? — Foi tudo quanto ela disse, mas eu apercebi-me da satisfação da sua voz, que significava: é meu.

— Não — disse.

— Não o quê?

— Pequena, é uma grande actriz. Mas eu não sou de modo nenhum a pessoa que imagina.

— Também imaginei a noite passada? — interrompeu-me.

Na sua voz havia uma tremura de riso e, de súbito, o ridículo voltou. Não pude evitá-lo: o quacre das estrelas que caíra uma vez, grave, desesperado e modesto.

— Não — respondi, a controlar-me —, não a imaginou. Mas eu vou-me embora.

— Para sempre?

Ela estava a divertir-se com a conversa.

— Pequena… — comecei, mas não soube que acrescentar; durante um momento ouvi-lhe apenas a respiração.

— E que se segue?

— Não sei. — Corrigi-me imediatamente: — Nada. Vou-me embora. Não tem senso nenhum…

— Absolutamente nenhum — concordou. — Mas é por isso que pode ser esplêndido. Que viu? Os Sinceros?

— Não. A Fiancée. Escute…

— É uma autêntica bomba. Não posso nem vê-la. Foi a pior coisa que fiz. Veja Os Sinceros… ou melhor, venha cá esta noite. Eu mostro-lho. Não, hoje não posso. Amanhã.

— Aen, não irei. Parto realmente dentro de um minuto…

— Não me trate por Aen, trate-me por «pequena» — pediu.

— Pequena, vá para o Inferno!

Pousei o auscultador, senti-me envergonhadíssimo comigo próprio, voltei a levantá-lo e a pousá-lo. Saí do quarto a correr, como se fosse alguém atrás de mim. Em baixo disseram-me que o ulder estava no telhado. Tive, portanto, de subir.

No telhado havia um jardim-restaurante e um aeroporto. Na realidade, tratava-se de um restaurante-aeroporto, uma mistura de níveis, plataformas voadoras e janelas invisíveis… Não teria encontrado o meu ulder nem num ano. Mas conduziram-me a ele, praticamente pela mão. Era mais pequeno do que supusera. Perguntei quanto tempo demoraria o voo, pois tencionava ler alguma coisa.

— Cerca de doze minutos.

Não valia a pena começar a ler nada. O interior do ulder lembrou-me o foguetão Thermo-Fax que eu pilotara em tempos, com a diferença de que era mais confortável. Mas quando a porta se fechou, enquanto o robot me desejava uma viagem agradável, as paredes tomaram-se imediatamente transparentes, e como eu me sentara no primeiro dos quatro lugares (os outros não estavam ocupados) tive a impressão de voar numa poltrona montada dentro de um grande copo.

É engraçado, mas o ulder não tinha nada em comum com um foguetão ou um aeroplano; lembrava mais um tapete voador. O peculiar veículo moveu-se primeiro verticalmente, sem a mínima vibração e emitindo um longo assobio, e depois acelerou horizontalmente, como uma bala.


Verificou-se de novo o que já observara uma vez antes: a aceleração não era acompanhada por ura aumento da inércia. Na primeira vez, na estação, julgara-me vítima de uma ilusão; agora, porém, tinha a certeza. É difícil exprimir por palavras o que senti. É que, se eles tinham de facto conseguido tornar a aceleração independente da inércia, então todas as hibernações, todos os testes, todas as selecções, dificuldades e frustrações da nossa viagem tinham sido completamente inúteis. Por isso, naquele momento, era como o conquistador de algum pico do Himalaia que, depois da indescritível dificuldade da subida, descobre que no cume há um hotel cheio de turistas, porque durante o seu labor solitário foi instalado do lado oposto um teleférico e arcadas de divertimentos. O facto de que, se tivesse permanecido na Terra, provavelmente não teria vivido para assistir àquela extraordinária descoberta constituía pequena consolação para mim: uma consolação seria saber que talvez aquele invento não se pudesse aplicar à navegação cósmica. Era, evidentemente, puro egoísmo da minha parte, admito, mas o choque foi tão grande que não me deixou mostrar o entusiasmo devido.

Entretanto, o ulder voava, agora silenciosamente. Olhei para baixo. Estávamos a passar pelo Terminal. Ficou lentamente para trás, uma fortaleza de gelo. Nos níveis superiores, não visíveis da cidade, viam-se enormes plataformas pretas de fançamento de foguetões. Depois voámos relativamente perto da torre-pináculo, a que tinha faixas pretas e prateadas, e vi que se erguia acima do ulder. Da Terra não se podia avaliar a sua altura. Era uma ponte de tubo que unia a cidade e o céu e as «prateleiras» que irrompiam dela estavam cheias de ulders e de outros veículos maiores. As pessoas que se encontravam nessas faixas de aterragem pareciam sementes de papoula espalhadas numa salva de prata. Voámos sobre colónias de casas brancas e azuis e sobre jardins. As ruas foram-se tomando cada vez mais largas e com as superfícies também coloridas: predominavam o rosa-pálido e o ocre. Um mar de edifícios estendia-se até ao horizonte, ocasionalmente interrompido por faixas verdes, e eu receei que continuasse assim até Clavestra. Mas o veículo acelerou, as casas afastaram-se, dispersaram-se entre os jardins, e em vez delas começaram a aparcer enormes drculos e extensões rectas de estradas que corriam em numerosos níveis, se fundiam e entrecruzavam, mergulhavam debaixo do chão e convergiam em forma de estrelas, ou partiam em tiras ao longo de uma planura verde-cinzenta, debaixo do sol alto e coalhada de gleeders. Então, no meio de quadrângulos de árvores, emergiram grandes estruturas com telhados do formato de espelhos concávos, no centro dos quais ardia qualquer coisa vermelha. Mais adiante, as estradas separaram-se e o verde prevaleceu, aqui e ali interrompido por quadrados de vegetação diferente, vermelha e azul. Não podiam ser flores, pois as cores eram demasiado intensas.

O Dr. Juffon sentir-se-ia orgulhoso de mim, pénsei. Ainda ia no terceiro dia e já… E que começo! Não fora uma qualquer, mas sim uma actriz brilhante e famosa. Não tivera medo, ou se o tivera também encontrara prazer no medo. Era preciso era continuação. Mas porque falara ele de intimidade? Era aquele o aspecto da intimidade deles? Com que heroicidade mergulhara na queda-d água! O nobre gorila. E depois uma beldade adorada pelo povo recompensou-o abundantemente. Que generoso da parte dela!

Todo a. meu rosto ardia. «Está bem, cretino», disse a mim mesmo, brandamente, «que queres ao certo? Uma mulher? Tiveste uma mulher. Tiveste tudo quanto é possível ter aqui, incluindo um convite para apareceres no real. Agora terás uma casa, darás passeios no jardim, lerás livros, olharás para as estrelas, e pensarás, serenamente, na tua modéstia: Estive ali. Estive ali e voltei. E até as leis da física trabalharam a teu favor, felizardo, tens meia vida à tua frente… e lembras-te como o Roemer parecia cem anos mais velho do que tu?»

O ulder iniciou a descida, o assobio começou e o solo, cruzado por estradas brancas e azuis cujas superfícies brilhavam como esmalte tomou-se maior. O sol reflectia-se em grandes lagoas e pequenas piscinas quadradas. As casas espalhadas pelas encostas de montes pouco íngremes tomaram-se progressivamente mais reais. No horizonte azul erguia-se uma cadeia de montanhas com picos brancos. Vi caminhos de saibro, relvados, canteiros de flores, o verde fresco da água em piscinas orladas de cimento, alamedas, arbustos, um telhado branco… Tudo isso girou lentamente, me rodeou e se tomou imóvel, como se tivesse tomado posse da minha pessoa.

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