7. O Patrulheiro

Rik viu o Padeiro ser morto. Viu-o curvar-se silenciosamente, seu peito perfurado e carbonizado em fragmentos fumegantes sob o golpe vigoroso do explosor. Era uma visão que abafou para Rik a maior parte do que a precedera e quase tudo o que a seguiria.

Havia a lembrança pouco clara da abordagem inicial do patrulheiro, da calma mas terrível maneira decidida com que puxara sua arma. O Padeiro vira e moldara seus lábios para uma última palavra que não teve tempo de proferir. Então a ação completou-se, o sangue subiu à cabeça de Rik e ouviu-se o selvagem alarido da desorientada multidão que serpenteava em todas as direções, como um rio transbordando.

Por um momento, anulava-se a melhora na mente de Rik que acontecera naquelas últimas poucas horas de sono. O patrulheiro precipitou-se em sua direção, lançando-se à frente por entre homens e mulheres que gritavam, como se fossem um viscoso mar de lodo em que ele teria de abrir caminho. Rik e Lona voltaram com a corrente e foram carregados. Havia redemoinhos e subcorrentes, girando e estremecendo quando os carros voadores dos patrulheiros começavam a pairar sobre suas cabeças. Valona apressava Rik para a frente, sempre em direção aos arredores da Cidade. Por um momento, ele era a aterrorizada criança de ontem, não o quase-adulto daquela manhã.

Acordara naquele dia no cinzento amanhecer que não podia ver no quarto sem janelas em que dormira. Por longos minutos permanecera deitado ali, examinando sua mente. Algo havia se cicatrizado durante a noite; algo se ligara e tornara-se um todo. Alguma coisa ficara pronta desde o momento, há dois dias, em que começara a se “lembrar”. O processo continuara durante todo o dia anterior. A ida à Cidade Superior e à biblioteca, o ataque ao patrulheiro e a fuga em seguida, o encontro com o Padeiro — tudo isto havia agido sobre ele como um fermento. As fibras atrofiadas de sua mente, há tanto dormentes, foram dominadas e distendidas, forçando uma atividade dolorida, e agora, depois do sono, havia um fraco pulsar sobre si.

Pensava no espaço e nas estrelas, de grandes, grandes períodos de solidão, e grandes silêncios.

Finalmente virou a cabeça para o lado e chamou: — Lona.

Ela acordou de súbito, apoiou-se num dos cotovelos e fitou-o.

— Rik?

— Estou aqui, Lona.

— Você está bem?

— Claro. — Não podia controlar sua excitação. — Sinto-me ótimo, Lona. Ouça! Lembro mais. Estava em uma nave e sei exata mente…

Mas ela não o estava ouvindo. Escorregou para dentro de seu vestido e de costas para ele alisou o fecho do trespasse na frente e então lutou desajeitada e nervosamente com seu cinto.

Foi até ele na ponta dos pés. — Não pretendia dormir, Rik. Tentei ficar acordada.

Rik sentiu o contágio do nervosismo de Valona. — Há alguma coisa errada? — perguntou.

— Shh, não fale tão alto. Está tudo bem.

— Onde está o Conselheiro?

— Ele não está aqui. Ele… ele teve de sair. Por que não volta a dormir, Rik?

Ele empurrou para o lado o confortador braço de Valona. — Estou bem. Não quero dormir. Queria contar ao Conselheiro sobre minha nave.

Mas o Conselheiro não estava lá e Valona não o ouviria. Rik acalmou-se e pela primeira vez sentiu-se ativamente irritado com Valona. Ela o tratava como se ele fosse uma criança e ele estava começando a se sentir como um homem.

Uma luz penetrou no quarto é a figura troncuda do Padeiro entrou. Rik olhou-o e ficou, por um momento, desanimado. Não objetou inteiramente quando o braço confortador de Valona foi passado em torno de seu ombro.

Os lábios grossos do Padeiro estenderam-se em um sorriso. — Vocês acordaram cedo.

Nenhum dos dois respondeu.

— Foi bom — disse o Ladeiro. — Vamos nos mudar hoje.

A boca de Valona estava seca. — Você não vai nos entregar aos patrulheiros? — perguntou.

Lembrava-se da forma como ele olhara para Rik depois que o Conselheiro havia saído. Ainda olhava para Rik; somente para Rik.

— Não para os patrulheiros — disse ele. — As pessoas certas foram informadas e vocês estarão bastante seguros.

Saiu, e quando pouco depois retornou, trazia comida, roupas e duas tigelas de água. As roupas eram novas e pareciam completamente estranhas.

Ele os olhava enquanto comiam e dizia: — Eu vou lhes dar novos nomes e novas histórias. Vocês vão escutar, e eu não quero que esqueçam. Vocês não são florinianos, entendem? Vocês são irmãos do planeta Wotex. Estavam visitando Florina.

Continuou fornecendo detalhes, fazendo perguntas, ouvindo suas respostas.

Rik estava satisfeito por ser capaz de demonstrar as operações de sua memória, sua capacidade de aprender facilmente, mas os olhos de Valona estavam obscuros pela preocupação.

O Padeiro não estava cego para isso. Disse para a garota: — Se você me causar o mínimo problema eu o enviarei sozinho e deixarei você para trás.

As fortes mãos de Valona cerraram-se espasmodicamente. — Não vou te causar problemas.

O Sol já ia alto quando o Padeiro levantou-se e disse: — Vamos!

Sua última ação foi colocar pequenas tiras pretas flexíveis imitando couro nos seus bolsos de cima.

Uma vez fora do esconderijo, Rik olhou com espanto o que podia ver de si mesmo. Não entendia como aquelas roupas podiam ser tão complicadas. O Padeiro o ajudara a colocá-las, mas quem o ajudaria a tirá-las? Valona não parecia de modo algum uma camponesa. Mesmo suas pernas estavam cobertas com um material fino, e seus sapatos eram elevados nos calcanhares de forma que tinha de equilibrar-se cuidadosamente enquanto andava.

Passantes reuniam-se, olhavam fixa e embasbacadamente, chaman do mais alguém. A maioria eram crianças, algumas mulheres, e vagabundos esfarrapados, esquivos. O Padeiro parecia indiferente a eles. Carregava um grosso bastão que colocava, ocasionalmente, como que por acaso, entre as pernas de quem quer que passasse muito perto.

E então, quando estavam distantes somente uns cem metros da padaria, e haviam contornado só uma esquina, as filas externas da multidão ao redor entraram em redemoinho excitadamente e Rik divisou o negro e prateado de um patrulheiro.

Foi então que aconteceu. A arma, o jato, e novamente uma selvagem revoada. Houve algum momento em que o medo não estivesse com ele, em que a sombra de um patrulheiro não estivesse atrás dele? Encontraram-se na esqualidez de um dos distritos afastados da Cidade. Valona arquejava asperamente; seu novo vestido apresentava as manchas úmidas da transpiração.

Rik ofegava — Não posso mais correr.

— Temos de correr.

— Não assim. Ouça. — Pulou para trás firmemente contra a pressão do agarro da mão da garota. — Ouça-me.

O terror e o pânico o estavam deixando.

— Por que não continuamos e fazemos o que o Padeiro queria que fizéssemos? — perguntou Rik.

— Como você sabe o que ele queria que a gente fizesse? — disse ela. Estava ansiosa. Queria continuar a fuga.

— Devíamos fingir que éramos de outro mundo, e ele nos deu isso. — Rik estava excitado. Tirou o pequeno retângulo de seu bolso, olhando ambos os lados e tentando abri-lo como se fosse um livrinho.

Não poderia. Era uma tira única. Examinou as bordas e quando seus dedos chegavam a um dos cantos ele ouvia, ou melhor, sentia, algo ceder, e a face virada para seus olhos tomava uma assustadora cor branco leitoso. O fraseado nela contido era difícil de entender, embora ele começasse a decifrar as sílabas.

— É um passaporte — disse finalmente.

— O que é isso?

— Algo para escaparmos daqui. — Estava certo disso. Estourara em sua cabeça. Uma única palavra, “passaporte”, como essa. — Não percebe? Ele estava tentando tirar a gente de Florina. Numa nave. Vamos terminar isso.

— Não — disse Lona. — Eles pararam ele. Eles mataram ele. Nós não poderíamos, Rik, não poderíamos.

Ele insistia nisso. Estava quase balbuciando. — Mas seria a melhor coisa a fazer. Eles não estariam esperando que fizéssemos isso. E não iríamos na nave em que ele queria que fôssemos. Eles a estariam vigiando. Iríamos em outra nave. Qualquer outra nave.

Uma nave. Qualquer nave. As palavras repicavam em seus ouvi-dos. Se sua idéia era boa ou não, não se importava. Queria estar em uma nave. Queria estar no espaço.

Por favor, Lona!

— Está bem — disse ela. — Se você realmente pensa assim. Eu sei onde fica o aeroporto. Quando era uma garotinha costumava ir lá algumas vezes nos dias de folga e olhar de muito longe para ver as naves subirem velozmente.

Estavam de novo em seu caminho, e somente uma leve inquietação arranhava em vão a porta da consciência de Rik. Certa lembrança, não do passado longínquo, mas do passado muito próximo; alguma coisa de que deveria lembrar-se e não podia; realmente não podia. Alguma coisa.

Afogara-a na idéia da nave que esperava por eles.

O floriniano no portão de entrada estava se fartando de excitação naquele dia, mas era excitação a longa distância. Havia as selva gens histórias da tarde anterior, narrando ataques a patrulheiros e fugas audaciosas. Nesta manhã, as histórias se espalharam e havia boatos de patrulheiros mortos.

Não ousou deixar seu posto, mas esticou o pescoço e observou os discos passarem, e patrulheiros carrancudos irem embora, enquanto o contingente no espaçoporto diminuía, diminuía, até que fosse quase nenhum.

Estavam enchendo a Cidade de patrulheiros, pensou, e estava simultaneamente aterrorizado e com o moral ebriamente alto. Por que pensar em patrulheiros sendo mortos deveria fazê-lo feliz? Nunca o aborreceram. Ao menos não muito. Tinha um bom trabalho. Não era como se fosse um estúpido camponês.

Mas estava feliz.

Mal teve tempo para o casal diante de si, desconfortável e transpirando em roupas bizarras que os distinguia como estrangeiros. A mulher estava mostrando um passaporte através da abertura.

Uma olhada para ela, uma olhada para o passaporte, uma olhada na lista de reservas. Pressionou o botão adequado e duas faixas de filme translucentes saltaram para eles.

— Vão em frente — disse impacientemente. — Coloquem em seus pulsos e vão embora.

— Qual nave é a nossa? — perguntou a mulher em um sussurro polido.

Isto o agradou. Não eram freqüentes estrangeiros no espaçoporto floriniano. Nos últimos anos haviam se tornado cada vez menos freqüentes. Mas quando vieram não eram patrulheiros nem Nobres. Pareciam não imaginar que ele era somente um floriniano e falavam-lhe polidamente.

Isso o fez sentir-se bem melhor. Disse: — Vai encontrá-la no ancoradouro 17, madame. Desejo.lhe uma viagem agradável a Wotex.

Disse isto em grande estilo.

Então retornou à sua tarefa de fazer sub-reptícias chamadas para amigos da Cidade para obter mais informações e de tentar, até mesmo mais discretamente, interceptar conversas privadas em raios de força na Cidade Superior.

Passaram-se horas antes que descobrisse que havia cometido um erro horrível.

— Lona! — disse Rik.

Puxava-a pelo cotovelo, apontando rapidamente e sussurrando.

— Aquele!

Valona olhou a nave indicada duvidosamente. Era muito menor que a nave do ancoradouro 17, para a qual suas passagens eram válidas. Parecia mais polida. Quatro comportas de ar abriam-se como bocejando e a porta principal escancarava-se, com uma rampa conduzindo dela ao chão como uma língua estendida.

— Estão arejando-o — disse Rik. — Normalmente ventilam naves de passageiros antes dos vôos para limpar o odor acumulado de ar enlatado, usado e reusado.

Valona olhou espantada para Rik: — Como você sabe?

Rik sentiu uma ponta de vaidade crescer dentro de si. — Só sei. Veja, não deve haver ninguém dentro dela agora. Não é confortável, com a corrente de ar.

Olhou ao redor apreensivamente. — Mesmo assim, não sei por que não tem mais gente por aqui. Era assim quando você costumava vir vê-los?

Valona não refletiu, mas mal poderia lembrar-se. As lembranças da infância iam muito longe.

Não havia nenhum patrulheiro à vista quando subiram a rampa com as pernas trêmulas. As figuras que podiam ver eram empregados civis, absortos em seu trabalho, e pequenos à distância.

A corrente de ar atravessou-os quando entraram no compartimento e o vestido de Valona enfunou-se de forma que ela teve de baixar suas mãos para mantê-lo no lugar.

— É sempre assim? — perguntou. Nunca havia estado em uma espaçonave antes; nunca sonhara estar em uma. Apertou os lábios e seu coração batia pesadamente.

— Não — disse Rik. — Somente durante a ventilação.

Caminhou alegremente pela passarela de metalita dura, inspecionando ansiosamente os compartimentos vazios.

— Aqui — disse. Era o passadiço.

Falou rapidamente. — Não é pela comida. Podemos passar sem comida um bom pedaço. É pela água.

Remexeram as caixas arrumadas e compactas de utensílios e apanharam um recipiente grande, com tampa. Procuraram em torno pela torneira da água, murmurando ofegantes a esperança de que não tivessem esquecido de encher os tanques de água, então sorriram aliviados quando o suave som das bombas foi ouvido, e veio o fluxo constante do líquido.

— Agora é só encher algumas latas. Não muitas. Não devemos deixar que percebam.

Rik tentava desesperadamente pensar em meios de evitar ser descoberto. Novamente buscava em vão alguma coisa de que não podia lembrar-se totalmente. Ocasionalmente, ainda ocorriam tais vazios em seu pensamento e, covardemente, evitava-os, negando sua existência.

Encontrou um pequeno compartimento destinado a equipamentos de combate a incêndios, material médico e cirúrgico de emergência, e equipamento de soldagem.

Disse, com uma certa falta de confiança: — Não virão para cá, exceto em emergências. Você está com medo, Lona?

— Não vou ficar com medo com você, Rik — disse ela humildemente. Dois dias antes, não, doze horas antes, fora ao contrário. Mas a bordo da nave, por alguma transmutação de personalidade que ela não questionara, era Rik o adulto e ela a criança.

— Não poderemos usar as luzes porque eles iriam notar o consumo de potência — disse ele — nem os toaletes; teremos de esperar pelos períodos de repouso e tentar sair depois de qualquer das turmas da noite.

A corrente de ar cessou repentinamente. Seu toque frio em suas faces não mais estava ali e o zunido constante, suave, que à distância o acompanhava, cessou e deixou um grande silêncio tomar seu lugar.

— Logo estarão à bordo — disse Rik — e então sairemos para o espaço.

Valona nunca vira semelhante alegria no rosto de Rik. Ele parecia um enamorado indo ao encontro de seu amor.

Se Rik se sentira como um homem ao acordar naquele dia, era um gigante agora, seus braços abraçando toda a Galáxia. As estrelas eram suas bolinhas de gude, e as nebulosas eram teias de aranha a serem limpas.

Estava numa nave! As lembranças se precipitavam continuamente num longo fluxo e outras saíam para dar espaço. Estava esquecendo os campos kyrt e a usina e Valona cantando para ele no escuro. Foram somente brechas momentâneas em um arranjo que agora retornava com suas pontas desfiadas lentamente se ligando.

Era a nave!

Se o tivessem colocado em uma nave há muito tempo atrás, não teria esperado tanto para que seus neurônios queimados se curassem

Falou suavemente a Valona na escuridão. — Agora, não se preocupe. Você vai sentir uma vibração e ouvir um ruído, mas será só o motor. Vai haver uma grande pressão sobre você. É a aceleração.

Não havia uma palavra floriniana comum para o conceito e então utilizou uma outra, que lhe veio facilmente à mente. Valona não entendeu.

— Vai machucar? — perguntou.

— Será bastante desconfortável — disse Rik — porque não temos equipamento anti-aceleração para absorver a pressão, mas não vai durar muito. Somente fique de pé contra a parede, e quando você se sentir empurrada contra ela, relaxe. Veja, está começando.

Ele havia escolhido a parede certa, e quando o som monótono dos motores de empuxo hiperatômicos aumentou, a gravidade aparente mudou, e o que fora uma parede vertical parecia tornar-se cada vez mais diagonal.

Valona então lamuriou, em seguida caiu em um silêncio ofegante. Suas gargantas se irritaram quando seus peitos, desprotegidos pela ausência de correias e amortecedores hidráulicos, trabalharam para livrar suficientemente seus pulmões para que somente um pouco de ar fosse inspirado.

Rik procurou arquejar algumas palavras, quaisquer palavras que pudessem fazer Valona saber que ele estava ali e suavizar o terrível medo do desconhecido que devia estar envolvendo-a. Era somente uma nave, somente uma nave maravilhosa; mas ela nunca havia estado antes em uma nave.

— Há o salto, claro, quando passamos através do hiperespaço e atravessamos subitamente a maior parte da distância entre as estrelas — disse. — Isto não vai aborrecê-la, afinal. Você nem mesmo saberá que aconteceu. Não é nada comparado a isto. Somente um pequeno puxão por dentro de você e acabou-se. — Deixou escapar as palavras grunhidas sílaba por sílaba. Levou muito tempo.

Lentamente, o peso sobre seus peitos diminuiu e a corrente invisível que os prendia à parede distendeu-se e sumiu. Caíram, arquejando.

Finalmente Valona falou: — Você está machucado, Rik?

— Eu, machucado? Não. — Conteve uma gargalhada. Não havia ainda tomado fôlego, mas riu quando considerou a idéia de que poderia ferir-se numa nave.

— Eu vivi numa nave anos atrás — disse. — Eu não aterrissava em um planeta durante meses de cada vez.

— Por quê? — ela perguntou. Arrastara-se para mais próximo de Rik e colocara uma das mãos em seu rosto, certificando-se de que ele estava ali.

Ele passou seu braço pelos ombros de Valona, e ela nele se apoiou quietamente, aceitando a inversão.

— Por quê? — perguntou.

Rik não podia lembrar-se por quê. Ele o tinha feito; detestara pousar em um planeta. Por alguma razão fora necessário permanecer no espaço, mas não podia lembrar-se por quê. Novamente esquivara-se pelo vazio.

— Eu tinha um emprego — disse.

— Sim, eu sei, você analisava Nada.

— Certo. — Estava satisfeito. — Era isso exatamente o que eu fazia. Você sabe o que isso significa?

— Não.

Não esperava que ela entendesse, mas tinha de conversar. Tinha de divertir-se com as lembranças, deliciar-se embriagadamente com o fato de que podia evocar fatos passados ao piparote de um dedo mental.

— Veja — começou —, toda matéria no universo é composta de uns cem tipos diferentes de substâncias. Chamamos estas substâncias de elementos. Ferro e cobre são elementos.

— Eu pensei que eram metais.

— E são, e são elementos também. Também oxigênio, e nitrogênio, carbono e paládio. Os mais importantes são o hidrogênio e o hélio. São os mais simples e os mais comuns.

— Nunca ouvi falar deles — disse Valona, tristemente.

— Noventa e cinco por cento do universo são hidrogênio e a maior parte do resto é hélio. Até mesmo do espaço.

— Uma vez me contaram — disse Valona — que o espaço era um vácuo. Disseram que significava que não tinha nada lá. Tá errado?

— Não inteiramente. Não há quase nada lá. Mas veja, eu era um analista espacial, o que significa que eu ia de um lado para outro do espaço coletando aqui e ali quantidades extremamente pequenas e as analisando. Isto é, eu verificava o quanto tinha de hidrogênio, de hélio e o quanto de outros elementos.

— Por quê?

— Bom, isso é complicado. Veja, a distribuição dos elementos não é a mesma em todo lugar do espaço. Em algumas regiões há mais hélio que o normal, em outros lugares, mais sódio que o normal; e assim por diante. Estas regiões de composição analítica especial sopram através do espaço como correntes. É assim que são chamadas. São as Correntes do espaço. É importante saber como as correntes se distribuem, porque isso poderia explicar como o universo foi criado e como se desenvolveu.

— Como se explicaria isso?

Rik hesitou. — Ninguém sabe exatamente.

Precipitou-se, embaraçado pelo fato de que esta imensa reserva de conhecimentos que sua mente estava gratamente jorrando pudesse chegar tão facilmente a um extremo marcado “desconhecido” sob a questão de… de… Subitamente ocorreu-lhe que Valona, afinal, não era nada mais que uma camponesa floriniana.

— Então — disse —, novamente, achamos a densidade, sabe, a espessura deste gás do espaço em todas as regiões da Galáxia. É diferente em diferentes lugares e temos de saber exatamente qual é para permitir que as naves calculem exatamente como saltar pelo hiperespaço. É como… — Sua voz desapareceu aos poucos.

Valona enrijeceu-se e esperou apreensivamente que ele continuasse, mas somente o silêncio sucedeu. Sua voz soou roucamente na completa escuridão.

— Rik? O que está errado, Rik?

Ainda o silêncio. Suas mãos buscaram os ombros de Rik, sacudindo-os. — Rik! Rik!

E foi a voz do antigo Rik, por alguma razão, a que respondeu. Era fraca, apavorada, sua alegria e confiança haviam desaparecido.

— Lona. Fizemos alguma coisa errada.

— O que há? Fizemos o que errado?

A lembrança da cena em que o patrulheiro havia atingido o Padeiro estava na mente de Rik, gravada forte e clara, como se chamada de volta pela sua exata lembrança de tantas outras coisas.

— Não devíamos ter fugido — disse ele. — Não devíamos estar aqui nesta nave.

Estava tremendo incontrolavelmente, e Valona tentava futilmente enxugar a umidade da testa de Rik.

— Por quê? — ela interpelou. — Por quê?

— Porque devíamos saber que se o Padeiro estivesse querendo nos levar à luz do dia não esperaria problemas com os patrulheiros. Lembra-se do patrulheiro? Aquele que atirou no Padeiro?

— Sim.

— Lembra-se de seu rosto?

— Não me atrevi a olhar.

— Eu olhei, e tinha alguma coisa estranha, mas eu não acreditei. Eu não acreditei. Lona, aquele não era um patrulheiro. Era o Conselheiro, Lona. Era o Conselheiro vestido como um patrulheiro.

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