10. O Fugitivo

Myrlyn Terens não era um homem de ação. Logo, disse a si mesmo, como uma desculpa, ao deixar o espaçoporto, que sua mente estava paralisada.

Tinha de controlar o andar cuidadosamente. Não muito devagar, ou pareceria estar vadiando. Nem muito depressa, ou pareceria estar correndo. Só vivamente, como um patrulheiro caminharia, um patrulheiro que estivesse cuidando de sua vida e pronto a entrar em seu carro diamagnético.

Se pelo menos pudesse entrar em um carro diamagnético! Dirigir um, infelizmente, não se inclui na educação de um floriniano, nem mesmo de um Conselheiro floriniano, então tentou pensar enquanto caminhava e não pôde. Precisava de silêncio e descanso.

E sentia-se meio fraco para caminhar. Poderia não ser um homem de ação, mas tinha agido rapidamente agora por um dia e uma noite e parte de um outro dia. Havia utilizado o estoque de nervos de toda sua vida.

Contudo, não ousava parar.

Se fosse noite poderia ter tido umas poucas horas para pensar. Mas era inicio da tarde.

Se pudesse dirigir um carro diamagnético poderia colocar quilômetros entre si e a cidade. A distância suficiente para pensar um pouco antes de decidir o próximo passo. Mas tinha somente suas pernas.

Se pudesse pensar. Era assim. Se pudesse pensar. Se pudesse suspender toda movimentação, toda ação. Se pudesse apanhar o universo entre instantes, ordenar-lhe-ia que estancasse, enquanto resolvia as coisas. Deveria haver algum jeito.

Mergulhou na bem-vinda sombra da Cidade Inferior. Caminhava rijamente, como vira os patrulheiros caminharem. Oscilava seu cassetete de choque firmemente seguro. As ruas estavam vazias. Os nativos estavam aconchegados em suas barracas. Tanto melhor.

O Conselheiro decidiu escolher uma casa cuidadosamente. Seria melhor escolher uma das melhores, uma decorada com tijolos plásticos coloridos e vidro polarizado nas janelas. A classe inferior estava sombria. Tinha menos a perder. Um “homem superior” recorreria a si mesmo por ajuda.

Caminhou a pequena distância que o separava da casa. Era afastada da rua, outro sinal de influência. Sabia que não teria necessidade de bater à porta ou quebrá-la. Havia um perceptível movimento em uma janela quando ele caminhou pela rampa. (Quantas gerações de necessidade capacitaram um floriniano a farejar a aproximação de um patrulheiro!) A porta se abriria.

Abriu-se.

Uma jovem abriu-a, seus olhos eram círculos de orlas brancas. Estava desajeitada em um vestido de babados que mostrava o esforço determinado da parte de seus pais em sustentar seu status como algo mais que o povo do “lixo floriniano”. Ficou de lado para deixá-lo passar, sua respiração vindo rápida entre lábios separados.

O Conselheiro fez-lhe um gesto para que fechasse a porta. — Seu pai está, menina?

— Pa — gritou, e então disse, ofegante. — Sim, senhor.

— Pa — estava vindo apologeticamente de outro cômodo. Veio devagar. Não era novidade para ele que um patrulheiro estivesse à porta. Era simplesmente mais seguro deixar que uma menina o fizesse entrar. Ela era menos capaz de ser nocauteada que ele mesmo, se acontecesse de o patrulheiro estar irado.

— Seu nome? — perguntou o Conselheiro.

— Jacof, se lhe agradar, senhor.

O uniforme do Conselheiro tinha um caderninho de folhas finas em um de seus bolsos, O Conselheiro o abriu, estudou-o brevemente, fez uma marca de verificação ondulada e disse: — Jacof! Sim! Eu quero ver cada membro da família. Depressa!

Se houvesse encontrado espaço para qualquer emoção que não fosse uma de desesperançada opressão, Terens quase teria apreciado a si mesmo. Não era imune aos sedutores prazeres da autoridade.

Enfileiraram-se. Uma mulher magra, preocupada, uma criança de cerca de dois anos contorcendo-se em seus braços. Então a menina que o fez entrar e um irmão mais jovem.

— Isto é tudo?

— Todo mundo, senhor — disse Jacof humildemente

— Posso cuidar do bebê? — perguntou ansiosamente a mulher. — É hora de sua sesta. Eu o estava colocando na cama. — Estendia a criança como se a visão da jovem inocência pudesse derreter o coração de um patrulheiro.

O Conselheiro não olhou para ela. Um patrulheiro, imaginava, não olharia, e ele era um patrulheiro. — Ponha-a no chão — disse — e dê-lhe uma chupeta açucarada para mantê-la quieta. Agora você, Jacof!

— Sim, senhor.

— Você é um menino responsável, não é? — Um nativo de qualquer idade era, claro, um “menino”,

— Sim, senhor. Os olhos de Jacof brilharam e seus ombros levantaram-se um pouco. — Sou escrevente no centro de processa mento de alimentos. Eu aprendi matemática, divisão explícita. Posso fazer logaritmos.

Sim, o Conselheiro pensou, eles mostraram a você como utilizar uma tábua de logaritmos e ensinaram-lhe como pronunciar a palavra.

Conhecia o tipo. O homem ficaria mais orgulhoso de seus logaritmos que um Nobrezinho de seu iate, O vidro polarizado das janelas era a conseqüência de seus logaritmos e os tijolos decorados anunciavam sua divisão. Seu desacato para com o nativo não-educado seria igual àquele do Nobre médio para com todos os nativos e sua aversão seria mais intensa, já que havia vivido entre eles e fora confundido como um deles por seus chefes.

— Você acredita na lei, não acredita, menino, e nos bons Nobres? — O Conselheiro mantinha-se fingindo, impressionantemente, consultando seu caderninho.

— Meu marido é um bom homem — explodiu a mulher voluvelmente. — Nunca se meteu em encrencas, Não se associa com lixo. E nem eu. Nem também as crianças. Nós sempre…

Terens fez sinal para que ela se calasse. — Sim. Sim. Agora olhe, menino, eu quero que você se sente aqui mesmo e faça o que eu disser. Eu quero uma lista de todo mundo que você conhece neste bloco. Nomes, endereços, o que fazem, e que tipo de meninos eles são. Se houver um daqueles agitadores, eu quero saber. Vamos fazer uma limpeza. Entendeu?

— Sim, senhor. Sim, senhor. Tem o Husting primeiro. Ele está ai no meio do bloco. Ele…

— Assim não, menino. Ponha-o num pedaço de papel, você. Agora sente-se lá e escreva tudo. Cada coisinha. Escreva devagar porque eu não posso ler garranchos de nativos.

— Eu tenho uma mão treinada para escrever, senhor.

— Vamos vê-la, então.

Jacof curvou-se sobre sua tarefa, a mão movendo-se lentamente. Sua esposa observava por cima de seu ombro.

Terens falou para a garota que o havia deixado entrar. — Vá para a janela e faça-me saber se quaisquer outros patrulheiros vierem nesta direção. Eu vou querer falar com eles. Não os chame. Só me avise. E então, finalmente, ele podia relaxar. Havia construído um nicho momentaneamente seguro para si no centro do perigo.

Exceto pela barulhenta sucção do bebê no canto da sala, havia silêncio razoável. Seria avisado da aproximação do inimigo com tempo para uma chance de escapar à luta.

Agora poderia pensar.

Em primeiro lugar, seu papel de patrulheiro estava quase terminado. Havia indubitavelmente bloqueios de estrada em todas as saídas possíveis da Cidade, e eles sabiam que ele não poderia utilizar qualquer meio de transporte mais complicado que uma aeromoto diamagnética. Não demoraria muito tempo antes que se começasse a ver os patrulheiros em ociosa busca que somente por um sistemático esquadrinhamento da Cidade, quarteirão por quarteirão e casa por casa, poderiam se certificar de encontrar seu homem.

Quando finalmente decidissem fazê-lo, começariam sem dúvida nos arredores da cidade e avançariam para o centro. Se fosse assim, esta casa estaria entre as primeiras a ser examinadas, assim seu tempo estava particularmente limitado.

Até agora, a despeito de sua evidência negra e prateada, o uniforme de patrulheiro havia sido útil. Os próprios nativos não o contestaram. Não se detiveram para observar seu pálido rosto floriniano; não estudaram sua aparência. O uniforme havia sido suficiente.

Dentro em breve os cães de caça perceberiam tal fato mostrando-se para eles. Iria ocorrer-lhes transmitir instruções a todos os nativos para que detivessem qualquer patrulheiro incapaz de mostrar identificação adequada, particularmente um com pele branca e cabelos ruivos. Identificações temporárias seriam distribuídas para todos os patrulheiros legítimos. Recompensas seriam oferecidas. Talvez somente um nativo em cem fosse corajoso o bastante para atacar o uniforme, não importando quão pacientemente falso o ocupante fosse. Um em cem seria o bastante.

Assim tinha de parar de ser um patrulheiro.

Isto era uma coisa. Agora outra. Não estaria seguro em lugar nenhum de Florina de agora em diante. Assassinar um patrulheiro era o pior dos crimes e em cinqüenta anos, se ele conseguisse iludir seus captores por tanto tempo, a caçada permaneceria quente. Por tanto, teria de deixar Florina.

Como?

Bem, dava a si mesmo mais um dia de vida. Esta era uma estimativa generosa. Supunha os patrulheiros como de máxima estupidez e a si mesmo em um estado de sorte máxima.

De certa forma tinha uma vantagem. Meras vinte e quatro horas de vida não eram muito a arriscar. Significava que poderia arriscar-se de uma forma que possivelmente nenhum homem são se arriscaria.

Levantou-se.

Jacof levantou os olhos de seu papel. — Não acabei tudo, senhor. Eu estou escrevendo com muito cuidado.

— Deixe-me ver o que você escreveu.

Olhou para o papel que lhe foi entregue. — é suficiente — disse. — Se outros patrulheiros vierem, não gaste o tempo deles dizendo que você já vez uma lista. Estão com pressa e poderão ter outras tarefas para você. Só faça o que eles mandarem. Tem algum vindo para cá agora?

A menina à janela disse: — Não, senhor. Quer que eu vá lá fora e olhe?

— Não é necessário. Vamos ver agora. Onde fica o elevador mais próximo?

— É mais ou menos a quatrocentos metros para a esquerda, senhor, saindo da casa. O senhor pode…

— Sim. Sim. Deixe-me ir.

Um esquadrão de patrulheiros passou pela rua justamente quando a porta do elevador fechou-se atrás do Conselheiro. Podia sentir seu coração pesado. A busca sistemática estava provavelmente começando, e estavam em seus calcanhares.

Um minuto mais tarde, o coração ainda como um tambor, caminhou do elevador para a Cidade Superior. Aqui não havia cobertura. Nem pilares. Nem cimentoliga para escondê-lo do que estava acima.

Sentia-se como uma pequena mancha negra entre o brilho dos edifícios de cores berrantes. Sentia-se visível para um raio de três quilômetros e em oito quilômetros na direção do céu. Parecia haver grandes setas apontando para ele.

Não havia patrulheiros à vista. Os Nobres que passavam olhavam através dele. Se um patrulheiro era um motivo de medo para um floriniano, era motivo de indiferença para um Nobre. Se alguma coisa iria salvá-lo, seria isso.

Tinha uma vaga noção da geografia da Cidade Superior. Em alguma parte deste setor estava o Parque da Cidade. O passo mais lógico seria pedir informações, o mais lógico seguinte seria entrar em qualquer edifício moderadamente alto e observar de vários terraços dos pavimentos superiores. A primeira alternativa era impossível. Nenhum patrulheiro poderia possivelmente pedir informações. O Segundo era muito arriscado. Dentro de um edifício, um patrulheiro sena bastante evidente. Evidente demais.

Simplesmente seguiu na direção indicada por sua memória dos mapas da Cidade Superior que vira de vez em quando. Servia bastante bem. Era inconfundivelmente o Parque da Cidade com que se deparava após cinco minutos de caminhada.

O Parque da Cidade era uma mancha artificial verde de cerca de quatrocentos metros quadrados de área. No próprio Sark, o Parque da Cidade tinha fama exagerada por muitas coisas, da paz bucólica a orgias noturnas. Em Florina, aqueles que vagamente haviam ouvido algo a respeito imaginavam-no com de dez a cem vezes o seu tamanho real e de cem a mil vezes sua real luxúria.

A realidade era bastante agradável. No clima ameno de Florina era verde durante todo o ano. Tinha trechos gramados, áreas arborizadas e grutas rochosas. Tinha um pequeno lago com peixes decorativos e um maior para as crianças remarem. À noite era feericamente iluminado com luzes coloridas até que o chuvisco começasse. Era entre o crepúsculo e a chuva que mais fervilhava. Havia bailes, shows tridimensionais, e casais perdendo-se ao longo dos passeios sinuosos.

Terens na realidade nunca havia entrado nele. Notou sua repelente artificialidade quando entrou no Parque. Sabia que o solo e as rochas que pisava, a água e as árvores em torno dele, tudo repousava sobre uma base rasa e morta de cimentoliga e isso o irritava. Pensou nos campos de kyrt, vastos e planos, e nas cadeias de montanhas ao sul. Desprezava os forasteiros que haviam construído brinquedos para si mesmos no meio da magnificência.

Por meia hora vagueou pelas alamedas sem rumo. O que tinha de fazer teria de ser feito no Parque da Cidade. Mesmo aqui poderia ser impossível. Em qualquer outro lugar era impossível.

Ninguém o viu. Ninguém tinha consciência dele. Estava certo disso. Os Nobres e Damas que passavam por ele perguntavam-se: — Você viu um patrulheiro no Parque ontem?

Podiam somente olhar espantados. Poderiam da mesma forma perguntar se haviam visto um maruim de árvore deslizar pelo caminho.

O Parque estava monótono demais. Sentia o pânico começar a crescer. Avançou por uma escada entre matacões e começou a descer para a área em forma côncava circundada por pequenas cavernas projetadas para abrigar casais apanhados pelo chuvisco noturno. (Eram mais os apanhados que o que poderia ser creditado somente ao azar.)

E então viu o que estava procurando.

Um homem! Mais precisamente um Nobre. Caminhava de um lado para o outro rapidamente. Fumando a ponta de um cigarro com baforadas bruscas, socando-a em um recesso para cinzas, onde ela permaneceu quietamente por um momento, então desapareceu com um rápido clarão. Estava consultando um relógio de corrente.

Não havia ninguém mais na área. Era um lugar feito para a tarde e a noite.

O Nobre estava esperando por alguém. Óbvio demais. Terens olhou em tomo de si. Ninguém o estava seguindo pelas escadas.

Poderia haver outras escadas. Certamente havia. Não importa. Ele não poderia perder esta chance.

Desceu, em direção ao Nobre. O Nobre não o havia visto, claro, até que Terens disse: — Se o senhor me perdoa?

Era bastante respeitoso, mas o Nobre não estava acostumado a ter um patrulheiro tocando seu cotovelo, não importa se mesmo numa maneira respeitosa.

— Que diabo? — disse.

Terens não abandonou nem o respeito nem a urgência no tom de sua voz. (Continue falando. Mantenha seus olhos nos dele só por meio minuto!) — Por aqui, senhor — disse. — Tem relação com a busca em toda a Cidade do nativo assassino.

— Do que você está falando?

— Levarei só um minuto.

Discretamente Terens havia sacado seu chicote neurônico. O Nobre nunca havia visto um. Zuniu um pouco e o Nobre retesou-se e caiu.

O Conselheiro nunca havia levantado a mão contra um Nobre antes. Estava surpreso de quão angustiado e culpado se sentia.

Ainda não havia ninguém à vista. Arrastou o corpo rijo, com seus olhos vidrados e fixos, para a caverna mais próxima. Arrastou-o para a parte mais rasa da caverna.

Despiu o Nobre, puxando as roupas dos braços e pernas enrijecidos com dificuldade. Tirou seu próprio uniforme de patrulheiro, sujo, manchado de suor, e enfiou-o por cima das roupas de baixo do Nobre. Pela primeira vez sentia o tecido de kyrt em alguma parte de si mesmo além de seus dedos.

Então o resto das roupas, e o barrete do Nobre. Este último era necessário. Os barretes não eram inteiramente elegantes para os grupos mais jovens, mas alguns o usavam, e este Nobre felizmente estava entre estes. Para Terens era uma necessidade, pois do contrário seus cabelos claros tomariam o disfarce impossível. Forçou o barrete para baixo firmemente, cobrindo as orelhas.

Então fez o que tinha de ser feito. O assassinato de um patrulheiro não era, deu conta repentinamente, afinal, o pior dos crimes.

Ajustou seu explosor para dispersão máxima e apontou-o para o Nobre inconsciente. Em dez segundos somente uma massa carbonizada havia restado. Isso atrasaria a identificação, confundiria seus perseguidores.

Reduziu o uniforme do patrulheiro a uma cinza branca pulverulenta com o jato e agarrou a pilha de botões e fivelas de prata enegrecida. Isto, também, tomaria a caçada mais difícil. Talvez estivesse conseguindo somente uma hora a mais, mas isto, também, era válido.

E agora teria de ir-se sem demora. Parou por um momento à entrada da gruta para cheirar. O jato trabalhara limpamente. Havia somente o mais leve odor de carne queimada e a leve brisa o limparia em poucos minutos.

Estava descendo os degraus quando uma jovem passou por ele no sentido oposto. Por um momento baixou seus olhos como de hábito. Ela era uma Dama. Levantou-os a tempo de ver que ela era jovem e bem bonita, e estava apressada.

Seu queixo imobilizou-se. Ela não o encontraria, claro. Mas ela estava atrasada, ou ele não estaria olhando tanto para seu relógio. Ela poderia pensar que ele ficara cansado de esperar e fora embora. Ele caminhava um pouco mais rápido. Não a queria retornando, perseguindo-o ofegante, perguntando-lhe se vira um homem jovem.

Deixou o Parque, caminhando sem rumo. Outra meia hora se passou.

Agora o quê? Não mais era um patrulheiro, era um Nobre.

Mas agora o quê?

Parou numa pequena praça em que uma fonte estava ao centro de uma pequena área gramada. À água uma pequena quantidade de detergente fora adicionada, de forma que espumava em vistosa iridescência

Apoiou-se contra a cerca, de costas para o sol do oeste, e, pouco a pouco, jogou a prata enegrecida na fonte.

Pensou na garota que passara por ele na escada quando fizera isso. Ela era muito jovem. Então pensou na Cidade Inferior e o espasmo momentâneo de remorso o deixou.

Os vestígios de prata já se haviam ido e suas mãos estavam vazias. Lentamente começou a revirar os bolsos, fazendo o melhor que podia para que parecesse casual.

O conteúdo de seus bolsos não era particularmente incomum. Um livreto de pequenas anotações, umas poucas moedas, um cartão de identificação. (Santo Sark! Até mesmo os Nobres os carregavam. Contudo, não tinham de exibi-lo para todo patrulheiro que se aproximasse.)

Seu novo nome, aparentemente, era Alstare Deamone. Esperava que nunca tivesse de usá-lo. Existiam somente dez mil homens e crianças na Cidade Superior. A chance de encontrar alguém entre eles que conhecesse Deamone pessoalmente não era muito grande mas tampouco era insignificante.

Tinha vinte e nove anos. Novamente sentiu uma crescente náusea quando pensou no que havia deixado na gruta, e combateu-a. um Nobre era um Nobre. Quantos florinianos de vinte e nove anos foram levados à morte por suas mãos ou por suas ordens? Quantos florinianos de nove anos de idade?

Tinha um endereço, também, mas isto não significava nada para ele. Seu conhecimento da Cidade Superior era rudimentar.

Veja só!

Um retrato colorido de um menininho, talvez três anos, em pseudo-3D. As cores cintilaram quando o retirou de seu estojo, enfraqueceram-se progressivamente quando o colocava de volta. Um filhinho? Um sobrinho? Havia a garota do Parque, portanto não poderia ser um filho, poderia?

Ou ele era casado? Seria o encontro um dos que chamam “clandestino”? Esse encontro aconteceria à luz do dia? Por que não, sob tais circunstâncias?

Terens esperava que sim. Se a garota fosse encontrar um homem casado não relataria rapidamente sua ausência. Ela suporia que ele não havia sido capaz de escapar de sua mulher. Isso lhe daria tempo.

Não, não seria isso. Uma momentânea depressão apoderou-se dele. Crianças brincando de esconde-esconde tropeçariam nos despojos e correriam gritando. Estava fadado a acontecer dentro de vinte e quatro horas.

Voltou ao conteúdo de seus bolsos uma vez mais. Uma licença de bolso de piloto de iate. Não levou em conta. Todos os sarkianos mais abastados tinham iates e os pilotavam. Era a coqueluche deste século. Finalmente, umas poucas tiras de comprovantes de crédito sarkianos. Agora estes poderiam ser temporariamente úteis.

Ocorreu-lhe que não havia comido desde a noite anterior, na casa do Padeiro. Quão rápido alguém podia tomar consciência da fome.

Repentinamente, tornou à licença de iate. Espere, agora, o iate não está em uso agora, não com o proprietário morto. E era seu iate. O número de seu hangar era 26, no Porto 9. Bem…

Onde era o Porto 9? Não tinha a mínima idéia.

Apoiou sua testa contra a frieza da cerca lisa em torno da fonte. E agora? E agora?

Uma voz sobressaltou-o

— Alô — disse. — Está doente?

Terens levantou o olhar. Era um Nobre mais velho. Estava fumando um cigarro longo que continha algumas folhas aromáticas enquanto que uma pedra verde de algum tipo pendia de um punho dourado. Sua expressão era de bondoso interesse, que perturbou Terens a um momento de silêncio, até que se lembrasse. Ele era um do próprio clã agora. Entre si, os Nobres bem poderiam ser seres humanos decentes.

— Só descansando — disse o Conselheiro. — Decidi dar um passeio e perdi a noção do tempo. Temo que esteja atrasado para um compromisso agora.

Acenou com a mão num gesto deturpado. Podia imitar o sotaque sarkiano razoavelmente bem pela sua longa associação, mas não cometeria o erro de tentar exagerá-lo. O exagero era mais fácil de detectar que a deficiência.

— Encalhado sem um deslizador, hem? — disse o outro. — Era o homem mais velho, divertido com a insensatez da juventude.

— Sem deslizador — admitiu Terens.

— Use o meu — veio o oferecimento instantâneo. — Está estacionado à direita aí fora. Você pode ajustar os controles e trazê-lo de volta para cá quando terminar. Não precisarei dele pela próxima hora, mais ou menos.

Para Terens, isto era quase ideal. Os deslizadores eram rápidos e deslizavam como um raio, podia correr mais e manobrar melhor que qualquer carro diamagnético dos patrulheiros. Era o ideal somente pelo detalhe de que Terens sabia dirigir um deslizador tanto quanto sabia voar sem ele.

— Daqui a Sark — disse. Sabia esta expressão da gíria de Sark para “obrigado” e a inseriu na conversa. — Acho que irei andando. Não é muito longe até o Porto 9.

— Não, não é longe — concordou o outro.

Isto não deixou Terens melhor que antes. Tentou novamente.

— Claro, queria estar mais próximo. A caminhada até a Rodovia Kyrt é bastante saudável por si mesma.

— Rodovia Kyrt? O que isto tem a ver com ela?

Estaria ele olhando duvidosamente para Terens? Ocorreu ao Conselheiro, de repente, que suas roupas provavelmente estavam folgadas. Disse rapidamente: — Espere! Estou confuso com isso. Eu tenho de cruzá-la caminhando. Vamos ver agora. — Olhou em tomo, vagamente.

— Olhe. Você está na Rua Recket. Tudo o que você tem a fazer é descer até Triffis e virar à esquerda, então seguir até o porto. — Apontara automaticamente.

Terens sorriu. — Você está certo. Vou ter de parar de sonhar e começar a pensar. Daqui a Sark, senhor.

— Você ainda pode usar meu deslizador.

— Gentileza sua, mas…

Terens estava se afastando, uru pouco rápido demais, balançando sua mão. O Nobre olhava espantado atrás dele.

Talvez amanhã quando encontrarem o cadáver nas pedras e começarem a procurar, o Nobre poderá pensar nesta conversa novamente. Provavelmente dirá: — Havia algo de esquisito nele, se entende o que eu digo. Tinha um estranho jeito de falar e não parecia saber onde estava. Eu juro que ele nunca tinha ouvido falar da Avenida Triffis.

Mas isto seria amanhã.

Caminhava na direção que o Nobre havia indicado. Chegou à placa brilhante, “Avenida Triffis”, quase sem brilho contra a iridescente estrutura laranja que lhe servia de fundo. Virou à esquerda.

O Porto 9 fervilhava com jovens em roupas de iatismo, que pareciam chapéus de bicos altos e calções. Terens sentiu-se distinto mas ninguém prestou atenção a ele. O ar estava cheio de conversas temperadas com termos que ele não entendia.

Encontrou o Abrigo 26 mas esperou alguns minutos antes de aproximar-se dele. Não queria um Nobre persistentemente parado nas suas vizinhanças, um Nobre que acontecesse de ter um iate de um abrigo próximo que conhecesse o verdadeiro Alstare Deamone de vista e procurasse saber o que um estranho estava fazendo com seu iate.

Finalmente, com a vizinhança do abrigo aparentemente segura, avançou. A quilha do iate despontava para fora de seu hangar, no campo aberto no qual os abrigos estavam colocados. Esticou seu pescoço para olhá-lo.

E agora?

Havia assassinado três homens nas Últimas doze horas. Subira de Conselheiro floriniano para patrulheiro, de patrulheiro para Nobre. Tinha vindo da Cidade Inferior para a Cidade Superior e da Cidade Superior para um espaçoporto. Para todos os efeitos, ele tinha um iate, um vaso suficientemente bom para o espaço para levá-lo em segurança para qualquer mundo inabitado deste setor da Galáxia.

Havia somente um embaraço.

Ele não podia pilotar um iate.

Estava morto de cansaço, verde de fome. Tinha chegado até aqui, e agora não poderia ir além. Estava à beira do espaço mas não havia jeito de passar da beira.

A esta hora os patrulheiros devem ter decidido que ele não estava em lugar nenhum da Cidade Inferior. Passariam a procurá-lo na Cidade Superior tão logo metessem em suas cabeças duras que um floriniano ousaria subir. Então o corpo seria encontrado e uma nova decisão seria tomada. Procurariam por um Nobre impostor.

E aqui estava ele. Tinha atingido o nicho mais distante do beco sem saída e com suas costas para o extremo fechado somente poderia esperar que os fracos sons da perseguição se tomassem mais altos e altos até que eventualmente os cães de caça estivessem sobre ele.

Trinta e seis horas atrás a maior oportunidade de sua vida estivera em suas mãos. Agora, a oportunidade se fora e sua vida logo a seguiria.

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