9. O Nobre

O Nobre de Fife era o individuo mais importante de Sark, e por essa razão não gostava de ser visto de pé. Como sua filha, era pequeno, mas, diferentemente dela, não era perfeitamente proporcionado, já que as suas pernas eram as principais responsáveis por sua baixa estatura. Tinha o tronco até mesmo robusto, e a cabeça era indubitavelmente majestosa, mas seu corpo era sustentado por pernas atarracadas que eram forçadas a um gingado poderoso para transportar sua carga.

Assim, sentava-se atrás de uma escrivaninha e, exceto por sua filha e criados pessoais e, quando estava viva, sua esposa, ninguém o via em qualquer outra posição.

Ali parecia o homem que era. Sua grande cabeça, com sua boca larga e de lábios pequenos, nariz largo e de largas narinas e queixo pontudo e fendido, poderia demonstrar ser afável ou inflexível a cada vez, com igual facilidade. Seus cabelos, penteados rigidamente para trás e, num indiferente descaso para com a moda, caídos até quase os ombros, eram azuis-escuros, intocados pelo cinza. Um vago azul marcava as regiões de seu rosto onde um barbeiro floriniano duas vezes por dia combatia o tenaz crescimento de sua barba.

O Nobre fazia poses e sabia disso. Disciplinara a expressão de sua face e deixava as mãos, amplas, fortes e de dedos curtos, permanecerem vagamente crispadas contra uma escrivaninha, cuja superfície lisa e polida estava completamente vazia. Não havia sequer uma folha de papel sobre ela, um tubo de comunicações, um ornamento. Por sua extrema simplicidade a presença do próprio Nobre era enfatizada.

Dirigiu-se a seu pálido, branco como carne de peixe, secretário com o tom sem vida especial que reservava para aparelhos mecânicos e funcionários públicos florinianos. — Presumo que todos aceitaram.

Não tinha qualquer dúvida quanto à resposta.

Seu secretário respondeu em um tom igualmente sem vida: — O Nobre de Bort afirmou que a premência de arranjos comerciais anteriores impossibilitava seu comparecimento antes das três.

— E você lhe disse?

— Eu afirmei que a natureza do caso presente tornaria qualquer atraso desaconselhável.

— O resultado?

— Estará aqui, senhor. O resto concordou sem reservas.

Fife sorriu. Meia hora antes ou depois não teria feito qualquer diferença. Havia um novo princípio envolvido, isto era tudo. Os Grandes Nobres eram muito sensíveis quanto a sua própria independência, e tal sensibilidade teria que sumir.

Estava esperando, agora. A sala era grande, os lugares para os outros estavam preparados. O grande cronômetro, cujas minúsculas e potentes faíscas de radiatividade não haviam falhado ou faltado em mil anos, dizia que eram duas e vinte e um.

Que explosão a dos últimos dois dias! O velho cronômetro poderia ainda testemunhar eventos iguais a qualquer daqueles do passado.

Contudo, tal cronômetro havia visto muitos em seu milênio. Quando contava seus primeiros minutos, Sark era um mundo novo de cidades construídas manualmente com contatos duvidosos entre outros mundos mais antigos. Naqueles tempos o relógio estava na parede de um velho edifício de tijolos, os mesmos tijolos que desde então tornaram-se pó. Registrara seu curso uniforme através de três “impérios” sarkianos de curta duração, quando os indisciplinados soldados de Sark lograram governar, por um intervalo maior ou menor, uma meia dúzia de mundos vizinhos. Seus átomos radiativos explodiram em estrita seqüência estatística através de dois períodos, quando as frotas de mundos vizinhos ditaram a política de Sark.

Quinhentos anos atrás marcava um tempo tranqüilo quando Sark descobriu que o mundo mais próximo, Florina, possuía um tesouro incalculável em seu solo. Movera-se uniformemente durante duas guerras vitoriosas e registrou solenemente o estabelecimento de uma paz de conquistador. Sark abandonou seus impérios, absorveu firmemente Florina, e tornou-se poderoso de uma maneira que nem o próprio Trantor poderia alcançar.

Trantor queria Florina, e outras potências também a queriam. Os séculos marcaram Florina como um mundo para o qual mãos se estenderam através do espaço, tateando e tocando ansiosamente. Mas eram de Sark as mãos que o seguraram, e Sark, antes de libertá-lo, deflagrara a guerra galáctica.

Trantor sabia disso! Trantor sabia disso!

Era como se o ritmo silencioso do cronômetro estabelecesse a pequena ladainha no cérebro do Nobre.

Eram duas e vinte e três.

Quase um ano antes, os cinco Grandes Nobres de Sark haviam se encontrado. Então, como agora, haviam estado ali, em sua própria sala. Naquela época, como agora, os Nobres, espalhados pela face do planeta, cada um em seu próprio continente, encontraram-se em personificação tridimensional.

Grosso modo, equivalia à televisão tridimensional em tamanho natural com som e cor. A duplicata poderia ser encontrada em qualquer sala privada moderadamente abastada de Sark. O incomum era a ausência de qualquer receptor visível. Exceto por Fife, os Nobres presentes estavam ali de todas as maneiras possíveis, menos a real. A parede poderia não ser vista atrás deles, eles não tremulavam, contudo uma mão poderia ser passada através de seus corpos.

O corpo material do Nobre de Rune estava sentado nas antípodas, seu continente era o único em que, nesse momento, a noite prevalecia. A área cúbica que imediatamente circundava sua imagem no estúdio de Fife tinha o brilho frio, branco, da luz artificial, obscurecida pela luz mais brilhante do dia sobre ela.

Presente em uma sala, real ou em imagens, estava o próprio Sark. Era uma personificação estranha e não totalmente heróica do planeta. Rune era calvo e obeso, rosado, enquanto que Balle era pardo e secamente enrugado. Steen era empoado e usava ruge, mostrando o desesperado sorriso de um homem cansado que pretendia uma força vital que não mais tinha, e Bort transmitia indiferença quanto ao bem-estar ao ponto desagradável de manter uma barba de dois dias e unhas sujas.

Contudo eram os cinco Grandes Nobres.

Eram o ponto mais alto das três pirâmides de poderes dirigentes de Sark. A menor pirâmide era, claro, o Funcionalismo Público Floriniano, que permanecia estável através de todas as vicissitudes que marcavam a ascensão e a queda das nobres casas dos indivíduos de Sark. Eram eles que realmente lubrificavam os eixos e faziam girar as rodas do governo. Acima deles estavam os ministros e chefes de departamentos apontados pelo hereditário (e inofensivo) Chefe de Estado. Seus nomes e o do próprio Chefe eram necessários em documentos de Estado para torná-los comprometidos legalmente, mas suas únicas tarefas consistiam em assinar seus nomes.

O posto mais alto era ocupado por estes cinco, cada um deles tacitamente com um continente concedido pelos outros quatro. Eram os chefes das famílias que controlavam o volume principal do comércio do kyrt, e as rendas que dele derivavam. Era dinheiro que dava poder e eventualmente ditava a política em Sark, e estes o tinham. E dos cinco, era Fife o que tinha mais.

O Nobre de Fife encarou-os nesse dia, há quase um ano atrás, e disse aos outros mestres do segundo planeta mais rico da Galáxia (segundo mais rico após Trantor, que, afinal, tinha meio milhão de mundos a explorar, em vez de somente dois):

— Recebi uma mensagem curiosa.

Nada disseram. Esperaram.

Fife entregou uma tira de filme de metalita a seu secretário, que caminhou de uma figura sentada a outra, segurando-a bem alto para que cada um a visse, permanecendo assim somente o tempo suficiente para que a lessem.

Para cada um dos quatro que compareceram à conferência no escritório de Fife, ele, somente ele, era real, mas todos, afinal, incluindo Fife, eram apenas sombras. O filme de metalita era também uma sombra. Podiam somente sentar-se e observar os raios de luz que focalizavam através dos vastos setores-mundos do Continente de Fife aos de Balle, Bort, Steen e a ilha-continente de Rune. As palavras que liam eram sombra sobre sombra. Somente Bort, direto e pouco dado a sutilezas, esqueceu este fato e procurou alcançar a mensagem.

Sua mão estendeu-se para a borda do receptor de imagens retangular e foi cortada. Seu braço terminava em um toco descaracterizado. Em seus próprios aposentos, Fife sabia, o braço de Bort havia logrado simplesmente aproximar-se de nada e passado através da mensagem filmada. Sorriu, e também os outros. Steen deu uma risadinha.

Bort enrubesceu. Puxou de volta o braço e sua mão reapareceu.

— Bem, cada um de vocês o viu — disse Fife. — Se não se importarem, agora vou lê-lo alto para que possam considerar seu conteúdo.

Estendeu-se para cima, e seu secretário, apressando os passos, conseguiu segurar o filme na posição adequada para que a mão de Fife o agarrasse sem tatear um instante em vão.

Fife leu suavemente, dramatizando as palavras, como se a mensagem fosse sua, e apreciou fazê-lo.

— Esta é a mensagem — começou: — “Você é um Grande Nobre de Sark e não há ninguém que rivalize com você em poder e opulência. Contudo, tais poder e opulência sustentam-se em alicerces frágeis. Você pode pensar que um fornecimento planetário de kyrt, como o que existe em Florina, de modo algum seja um alicerce frágil, mas, pergunte-se, por quanto tempo existirá Florina? Para sempre?

— “Não! Florina pode ser destruída amanhã. Pode existir por um milênio. Das duas possibilidades, é mais provável que seja destruída amanhã. Não por mim, estejam certos, mas de uma maneira que não podem prever ou prognosticar. Considere tal destruição. Considere, também, que seu poder e opulência já se tenham ido, visto que demandarei a maior parte deles. Vocês terão tempo para considerar, mas não muito tempo.

— “Tentem se acomodar e anunciarei a toda Galáxia e particularmente para Florina a verdade em relação à destruição esperada. Depois dela não mais haverá o kyrt, opulência ou poder. Nenhum deles para mim, mas então estarei acostumado a isso. Nenhum deles para vocês, e isto seria extremamente sério, já que nasceram para grande riqueza.

— “Transfiram a maior parte de seus bens para mim na quantidade e na forma que imporei em futuro próximo e permanecerão na posse segura do que restar. Pelos seus padrões atuais não lhes será deixado uma grande fatia, estejam certos, mas será mais que o nada que de outra forma lhes seria deixado. Não zombem do fragmento que reterão, tampouco. Florina pode durar enquanto viverem, e viverão, se não prodigamente, ao menos confortavelmente”.

Fife terminou. Virou e virou o filme em suas mãos, dobrou-o gentilmente em um cilindro translúcido de prata através do qual as letras em estêncil fundiram-se em um borrão avermelhado.

— É uma carta engraçada — disse com naturalidade. — Não há assinatura e o tom da carta, como ouviram, é elevado e pomposo. O que acham disso, Nobres?

O rosto corado de Rune manifestava desprazer. — É obviamente obra de um homem não muito distante da psicose — disse ele. — Escreve como se fosse uma novela histórica. Francamente, Fife, eu não vejo por que tal asneira seja uma desculpa decente para romper nossas tradições de autonomia continental nos convocando. E não gosto que isto continue na presença de seu secretário, por favor.

— Meu secretário? Porque ele é floriniano? Você teme que sua mente seja pervertida por coisas como esta carta? Bobagem. — O tom de sua voz passou de suavemente divertido para as imoduladas sílabas de comando: — Vire-se para o Nobre de Rune.

O secretário obedeceu. Seus olhos estavam discretamente baixados, seu rosto, pálido e liso, era inexpressivo. Parecia quase intocado pela vida.

— Este floriniano — disse Fife, indiferente à presença do homem — é meu servo pessoal. Nunca está longe de mim, nunca com outros de sua espécie. Mas não é por esta razão que ele é absolutamente digno de confiança. Não lhe é óbvio que está sob efeito da sonda psíquica? É incapaz de qualquer pensamento desleal para comigo, por mais insignificante que seja. Sem tencionar qualquer ofensa, posso dizer que antes confiaria nele que em qualquer um de vocês.

Bort sorriu com desdém. — Não o censuro. Nenhum de nós deve a você a lealdade de um servo floriniano sondado.

Steen novamente deu uma risadinha e contorceu-se em seu assento como se este estivesse tornando-se paulatinamente quente.

Nenhum deles fez qualquer comentário a respeito do uso de Fife de uma sonda psíquica em servos pessoais. Fife teria ficado tremendamente espantado se o fizessem. O uso da sonda psíquica por outra razão que não a correção de doenças mentais ou a remoção de impulsos criminosos era proibido. Mais rigorosamente, era proibido até mesmo para os Grandes Nobres.

Contudo, Fife aplicava a sonda quando achasse necessário, particularmente quando o paciente era um floriniano. A sondagem de um sarkiano era um assunto muito mais delicado. O Nobre de Steen, cujas contorções à menção da sondagem Fife não esquecera, tinha bem a fama de fazer uso de florinianos sondados de ambos os sexos para propósitos bem distintos dos do secretário de Fife.

— Continuando — Fife juntou seus grossos dedos. — Não reuni todos vocês para a leitura de uma carta maluca. Isto, eu espero, está entendido. Realmente temo que tenhamos um problema importante em nossas mãos. Em primeiro lugar, eu me pergunto, por que somente eu devo me preocupar? Certamente, sou o mais rico dos Nobres, mas, sozinho, controlo somente um terço do comércio de kyrt. Juntos, nós cinco controlamos todo ele. É fácil fazer cinco celucópias de uma carta, tão fácil quanto fazer uma.

— Você fala muito e não diz nada — resmungou Bort. — O que você quer?

Os lábios murchos e descoloridos de Balle moveram-se num rosto tolo e cinzento. — Ele quer saber, meu Nobre Bort, se recebemos cópias desta carta.

— Então, deixe-o dizer isso.

— Pensei que estivesse dizendo — disse Fife calmamente. — Então?

Entreolharam-se, duvidosa ou desafiadoramente, conforme a personalidade de cada um impunha.

Rune falou primeiro. Sua testa rosada estava úmida, com discretas gotas de suor; ele puxou do macio quadrado de kyrt para enxugar a umidade das rugas entre dobras de gordura que formavam semi-círculos de orelha a orelha.

— Não saberia, Fife — disse. — Posso perguntar a meus secretários, que, a propósito, são todos sarkianos. Afinal, mesmo se tal carta chegasse a meu escritório, teria sido considerada… como direi?… considerada uma carta excêntrica. Nunca teria chegado às minhas mãos. Isto é certo. Somente seu próprio sistema peculiar de secretário o mantém a par de seu próprio lixo.

Olhou em torno e sorriu, com a goma de mascar brilhando úmida entre os lábios, para cima e para baixo nos dentes artificiais de aço-cromo. Cada um dos dentes era implantado profundamente, soldado ao maxilar, e mais forte que qualquer dente natural. Seu sorriso mostrava-se mais aterrorizante que sua carranca.

Balle deu de ombros. — Eu imagino que o que Rune disse pode perfeitamente valer para todos nós.

Steen riu nervosamente. — Eu nunca leio a correspondência. Realmente, nunca leio. É muito chato, e vem em tal quantidade que eu nunca teria tempo. — Olhou em torno de si com seriedade, como se fosse necessário convencer os companheiros deste importante fato.

— Bolas! — disse Bort. — O que está errado com vocês todos? Medo de Fife? Olhe aqui, Fife, eu não mantenho nenhum secretário porque não preciso de ninguém entre mim e meus negócios. Recebi uma cópia desta carta e estou certo de que estes três também. Querem saber o que eu fiz com a minha? Atirei no duto de refugos. Eu os aconselho a fazerem o mesmo com as suas. Vamos acabar com isso. Estou cansado.

Sua mão procurou acima dele o interruptor articulado que cortaria o contato e libertaria sua imagem da presença ante Fife.

— Espere, Bort. — A voz de Fife soou asperamente. — Não faça isso. Eu não terminei. Você não iria querer que tomássemos medidas e tomássemos decisões em sua ausência. Certamente que não.

— Vamos permanecer, Nobre Bort — apressou-se Rune em sua voz mais suave, embora seus pequenos olhos enterrados em gordura não estivessem particularmente amáveis. — Eu estou curioso em saber por que o Nobre Fife parece tão preocupado com uma ninharia.

— Bem — disse Balle, sua voz seca arranhava os outros ouvidos — talvez Fife ache que nosso amigo correspondente tenha informações sobre um ataque trantoriano a Florina.

— Ora! — disse Fife com desdém. — Como ele saberia, quem quer que seja ele? Nosso serviço secreto é adequado, asseguro-lhes. E como impediria o ataque se recebesse nossas propriedades como suborno? Não, não. Ele fala da destruição de Florina como se significasse a destruição física e não a destruição política.

— É realmente muito insano — disse Steen.

— É? — disse Fífe. — Então não percebe o significado dos acontecimentos das duas últimas semanas?

— Que acontecimentos, em particular? — perguntou Bort.

— Parece que um analista espacial desapareceu. Certamente você ouviu algo sobre isso.

Bort parecia irritado e nem um pouco confortável. — Eu ouvi algo de Abel de Trantor sobre isso. O que é? Eu não sei nada sobre analistas espaciais.

— Ao menos você leu uma cópia da última mensagem para sua base em Sark antes que desaparecesse.

— Abel mostrou-a a mim. Não prestei muita atenção.

— Que me dizem os outros? — Os olhos de Fife desafiaram um por um. — Sua memória consegue recuar uma semana?

— Eu o li — disse Rune. — E me lembro dele também. Claro! Fala de destruição também. É aí que você está querendo chegar?

— Olhe aqui — Steen falou estridentemente —, estava cheio de insinuações desagradáveis que não faziam sentido. Realmente, espero sinceramente que não o discutamos agora. Mal poderia livrar-me de Abel, e foi justamente antes do jantar, também. Muito penoso. Realmente.

— Não há cura para isso, Steen — disse Fife com mais que um traço de impaciência. (O que alguém poderia fazer com uma coisa como Steen?) — Devemos falar disso novamente. O analista espacial falou da destruição de Florina. Coincidindo com seu desaparecimento, recebemos mensagens também ameaçando a destruição de Florina. Isto é coincidência?

— Você está dizendo que o analista espacial enviou a mensagem de extorsão? — sussurrou o velho Balle.

— Provavelmente não. Por que dizer isso primeiro em seu próprio nome, e depois anonimamente?

— Na primeira vez em que falou — disse Balle — estava se comunicando com sua agência distrital, não conosco.

— Mesmo assim. Um chantagista não negocia com ninguém a não ser com sua vítima, se puder fazê-lo.

— E daí?

— Ele está desaparecido. Digamos que o analista espacial seja honesto. Mas ele transmitiu informações perigosas. Agora está em mãos de outros que não são honestos, são chantagistas.

— Quais outros?

Fife, carrancudo, sentou-se novamente em sua cadeira, seus lábios mal se moviam. — Você está me perguntando com seriedade? Trantor.

Steen estremeceu. — Trantor!

— Por que não? Quem melhor para assumir o controle de Florina? É um dos primeiros objetivos de sua política externa. E se puderem fazê-lo sem guerra, tanto melhor para eles. Olhe aqui, se cedermos a este ultimato impossível, Florina será deles. Eles nos oferecem um pouco — levou dois dedos juntos ante sua face —, mas quanto manteremos mesmo com isso?

— Por outro lado, suponha que ignoremos o fato, e, realmente, tenhamos escolha. O que faria Trantor, então? Porque espalharão boatos de um fim eminente do mundo dos camponeses florinianos. Quando estes boatos se espalharem, os camponeses entrarão em pânico, e o que poderá suceder a não ser um desastre? Que força poderá fazer um homem trabalhar se ele pensar que o fim do mundo virá amanhã? A colheita irá apodrecer. Os armazéns ficarão vazios.

Steen levantou um dedo para examinar o colorido de uma das bochechas, como se olhasse para um espelho em seu próprio quarto, fora do alcance do cubo receptor.

— Eu não acho que nos prejudicaria muito — disse. — Se a oferta cair, o preço não subirá? Então, logo ficaria evidente que Florina ainda estava lá e os camponeses voltariam ao trabalho. Além disso, poderíamos sempre ameaçar sermos mais exigentes com as exportações. Realmente, eu não vejo como qualquer mundo civilizado poderia esperar viver sem o kyrt. Ah, vai tudo bem com o Rei Kyrt. Acho que isto é fazer drama sobre coisa alguma.

Lançou-se a uma atitude de tédio, um dedo delicadamente colocado em sua bochecha.

Os velhos olhos de Balle haviam permanecido fechados durante todo este tempo. — Não pode haver aumento de preços agora — disse. — Nós já o mantemos no máximo absoluto.

— Exatamente — disse Fife. — Não levará a rompimento sério em lugar nenhum. Trantor espera por qualquer sinal de desordem em Florina. Se puderem apresentar à Galáxia a perspectiva de um Sark incapaz de garantir os embarques de kyrt, seria a coisa mais natural do universo para eles moverem-se para manter o que chamam de ordem e para garantir a chegada do kyrt. E o risco seria de que os mundos livres da Galáxia provavelmente entrariam em cena a seu lado pela causa do kyrt. Especialmente se Trantor concordar em quebrar o monopólio, aumentar a produção e baixar os preços. Posteriormente seria outra história, mas, enquanto isso, obteriam seu apoio.

— É a única maneira lógica em que Trantor poderia possivelmente agarrar Florina. Se fosse caso de simples força, a Galáxia livre fora da esfera de influencia de Trantor iria unir-se a nós como pura autodefesa.

— Como o analista espacial se encaixa nisso? — disse Rune. — Ele é necessário? Se sua teoria for adequada, deve explicar isso.

— Eu acho que sim. Estes analistas espaciais são geralmente desequilibrados, e este deve ter desenvolvido alguma — os dedos de Fife moveram-se, como se construíssem uma estrutura vaga — alguma teoria maluca. Não importa qual. Trantor não poderia deixar isto vir à tona, ou o Departamento Analítico-espacial abafaria. Entretanto, agarrar o homem e conhecer os detalhes iria dar-lhes algo que provavelmente possuiria uma validez superficial para os não-especialistas. Poderiam utilizá-lo, fazê-lo parecer real. O Departamento é um fantoche trantoriano, e seu desmentido, uma vez que a história já se tenha espalhado na forma de boato científico, nunca seria poderoso o bastante para superar a mentira.

— Parece muito complicado — disse Bort. — Bolas. Não podem deixar que venha à tona.

— Não podem deixar que venha à tona como um sério anúncio científico, ou mesmo atingir o Departamento com isso — disse Fife pacientemente. — Podem deixar vazar como um boato. Não percebe isso?

— O que o velho Abel está fazendo, perdendo seu tempo procurando o analista espacial, então?

— Você espera que ele comunique o fato de que o apanhou? O que Abel faz e o que Abel parece estar fazendo são duas coisas diferentes.

— Bem — disse Rune —, se você está certo, o que estamos fazendo?

— Estamos tomando conhecimento do perigo — disse Fife — e isto é o que importa. Encontraremos o analista espacial, se pudermos. Devemos manter todos os agentes conhecidos de Trantor sob estrita vigilância sem interferir realmente em seu trabalho. A partir de suas ações poderemos tomar conhecimento do curso dos próximos acontecimentos. Devemos suprimir completamente qualquer propaganda em Florina no sentido da destruição do planeta. Ao primeiro fraco sussurro deve-se opor uma ação contrária do mais violento tipo.

— Acima de tudo, devemos permanecer unidos. Este é todo o propósito deste encontro, a meu ver; a formação de uma frente comum. Todos nós sabemos da autonomia continental e estou certo de que não há ninguém mais insistente a respeito dela que eu. Isto é, sob circunstâncias normais. Estas não são circunstâncias normais. Entendem isso?

Mais ou menos relutantemente, visto que a autonomia continental não era uma coisa a ser abandonada alegremente, entenderam.

— Então — disse Fife — esperaremos pelo segundo movimento.

Isto ocorrera há um ano. Saíram e o que se seguiu foi o mais estranho e o mais completo fiasco que já desabara sobre a sorte do Nobre de Fife em uma carreira moderadamente longa e mais que moderadamente audaciosa.

Não aconteceu um segundo movimento. Não houve outras cartas para qualquer um deles, O analista espacial permaneceu desaparecido, enquanto Trantor mantinha uma busca incoerente. Não havia qualquer traço dos apocalípticos rumores em Florina, e a colheita e o processamento do kyrt continuava com seu ritmo normal.

O Nobre de Rune costumava chamar Fife a intervalos semanais,

— Fife — dizia. — Alguma novidade? — Sua gordura tremeria de alegria e abundantes risinhos forçavam passagem através de sua garganta.

Fife o atendia fria e impassivelmente. O que poderia fazer? Repetidamente examinara minuciosamente os fatos. Era inútil. Alguma coisa estava faltando. Algum fator vital estava faltando.

E então tudo começou a explodir de uma vez, e ele teve a resposta. Ele sabia que tinha a resposta, mesmo sem nunca ter esperado por ela.

Convocou novamente a reunião, O cronômetro agora dizia que eram duas e vinte e nove.

Estavam começando a surgir agora. Primeiro Bort, lábios comprimidos e um ridículo e rude dedo raspando contra a superfície escanhoada-encanecida de sua bochecha. Então Steen, com seu rosto recém-lavado, limpo de pintura e apresentando uma aparência pálida, doentia.Balle indiferente e cansado, seu rosto encovado, o braço da cadeira bem almofadado, um copo de leite quente a seu lado. Finalmente Rune, dois minutos atrasado, lábios úmidos e mal-humorado, sentado uma vez mais à noite. Desta vez suas luzes estavam obscurecidas a um ponto em que ele era um volume enevoado sentido em um cubo de sombras que as luzes de Fife não poderiam ter iluminado, embora tivessem a potência do Sol de Sark.

Fife começou: — Nobres! Ano passado especulei sobre um perigo distante e complicado. Assim procedendo, caí numa armadilha. O perigo existe, mas não está distante. Está próximo de nós, muito próximo. Um de vocês já sabe o que quero dizer, Os outros descobrirão dentro em breve.

— O que você quer dizer? — perguntou Bort rispidamente.

— Alta traição! — explodiu em resposta Fife.

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