III — A EXPLORAÇÃO

Naqueles dias ultimei meu projeto de exploração, uma vez que me dei conta que gostava de Martina. Cada noite subíamos juntos para a casa do meu tio para a ceia.

Michel nos acompanhava, porém na maioria das vezes ele ia adiante. Eu confiava a Martina meus projetos, e ela se manifestava como uma excelente conselheira. Desta forma, trocávamos nossos pontos de vista sobre os respectivos trabalhos e, pouco a pouco, chegamos à troca de recordações pessoais.

Me inteirei então de que ela era órfã desde os três anos, e que Michel a havia educado.

Como era astrônomo, e como ela também era muito bem dotada para as ciências exatas, ele a havia incentivado neste sentido. Por minha parte, eu havia tido a sorte, como primo irmão de Bernard Verillae, de conhecer os membros da primeira expedição Terra-Marte, e pude fornecer muitos detalhes inéditos sobre eles. Havia sido, inclusive, fotografado por um jornalista entusiasta, entre Bernard e Sigmund Olsson, como o «membro mais jovem da expedição», o que me valeu muitas brincadeiras na Faculdade. Em troca, quando se tratou de incluir-me a bordo, para o segundo «raid», eu recusei, em parte com o fim de não afligir minha mãe, ainda viva naquele tempo, o que era honorável, e em parte por simples medo, o que era o de menor importância. Encontrei os jornais da época na biblioteca do meu tio e expliquei a Martina a famosa fotografia. Ela me mostrou outro clichê, que reproduzia os assistentes em uma conferência do chefe da missão Paul Bernadac. Com um traço de lápis, enquadrou a um jovem e uma moça na quinta fila.

— Michel e eu. Tivemos, em sua qualidade de astrônomo, um bom lugar. Para mim foi uma jornada gloriosa!

— Talvez eu tenha me encontrado contigo naquele dia. — disse — Eu ajudava Bernard a passava os clichês no aparelho de projeção.

Com o auxilio de uma lupa, pude reconhecer o rosto de Martina, um pouco acriançado.

Assim conversamos, noite após noite.

Um dia em que Michel nos aguardava na porta, chegamos de mãos dadas. Cômicamente ele colocou as suas sobre as nossas cabeças.

— Meus queridos filhos, como chefe de família, dou-lhes minha bênção.

Nos olhamos, incomodados.

— Então, terei eu me equivocado?

Respondemos ao mesmo tempo: — Pergunta a Martina.

— Pergunta a Jean.

Os três rompemos numa gargalhada.

No dia seguinte, tendo meditado conscienciosamente sobre meus projetos, expus ao Conselho meu plano de exploração.

— Você poderia — perguntei a Estranges — transformar um caminhão em uma espécie de tanque ligeiro, blindado com duralumínio e armado de uma metralhadora?

Servirá para explorar uma parte da superfície de Tellus.

— Isto é necessário? — perguntou Louis.

— Certamente. Não ignora que nossos recursos são bastante precários e o resto de minério de ferro da mina é suficiente apenas para dois anos, se não o utilizarmos em demasia. A planície e os pântanos que nos rodeiam são muito pouco propícios para a descoberta de depósitos de minérios. Seria necessário ir até as montanhas. Talvez ali encontremos também árvores suficientes, para fornecer-nos madeira de construção sem que tenhamos que destruir os bosques que nos restam, os que não estão sobrando.

Talvez ali descubramos animais úteis, carvão. Quem sabe? Talvez também um local sem hidras. É pouco provável que se afastem dos pântanos.

— Quanto diesel pensas em gastar?

— Quanto consome o menor caminhão?

— Vinte e dois litros a cada cem Km. Carregado e em terreno desigual, pode chegar a gastar trinta.

— Suponhamos que eu leve 1.200 litros. Isto me proporcionará um raio de ação de 2.000 quilômetros. Não me distanciarei tanto, porém tenho que contar com os desvios.

— De quantos homens precisas?

— Sete, contando comigo. Penso em levar Beltaire, a quem ensinei a reconhecer os principais minerais. Michel, se quiser ir.

— Com certeza! Sou voluntário. Afinal farei astronomia «sobre o terreno».

— Tu me serás útil, especialmente para marcar o lugar com os dados topográficos.

No que respeita aos outros membros, verei depois.

O projeto foi aceito por unanimidade, exceto por um voto, o de Charnier.

No dia seguinte, Estranges pôs os operários a trabalhar para transformar o caminhão convenientemente. Escolhemos um caminhão de plexiglas, provenientes da reserva do observatório. O sistema de fechamento das portas foi reforçado com placas de duralumínio, podendo-se, em caso necessário, obstruir as janelas. Uniu-se a plataforma com a cabine, sendo aquela alargada e transformada em moradia. Os arcos de aço foram recobertos de espessas placas de duralumínio Uma cúpula superior albergou uma metralhadora de 20mm, cuja abertura era feita com um sistema de pedais.

Devíamos levar, além disso: 30 foguetes de 1.10m, de longo alcance, dois fuzismetralhadora e quatro fuzis de repetição. A metralhadora foi aprovisionada com 800 cartuchos, os fuzis_metralhadora com 600 e os fuzis de repetição com 400. Seis tambores de 200 litros continham nosso diesel. Seis catres subrepostos em séries de três, uma pequena mesa dobrável, umas caixas cheias de víveres, utilizadas também como assentos; instrumentos explosivos, ferramentas,um tambor de água potável, um pequeno aparelho de radio emissor-receptor, acabaram de obstruir o reduzido espaço, no interior, até o teto.

O habitáculo estava iluminado por duas lâmpadas e três janelas obturáveis. Uns disparadores permitiam atirar deste o interior. No teto, ao redor da cúpula, colocaram seis pneus novos. O motor foi totalmente revisado, e assim tive à minha disposição um veículo temível, bem armado, capaz de desafiar às hidras, possuindo, em combustível, uma autonomia de 4.000 quilômetros, e em víveres, de vinte e cinco dias.

No teste na estrada, obtivemos facilmente uma média de 60km/h. Em terreno desigual não se podia contar com mais de 30.

Também me ocupei da composição da equipe. Deveria compreender:

Chefe da missão e geólogo: Jean Bournat.

Chefe de campo: Breffort.

Zoólogo e botânico: Vandal.

Navegador: Michel Sauvage.

Exame de terrenos e minerais: Beltaire.

Mecânico e radio: Paul Schoeffer.

Este último, antigo mecânico aviador, era um amigo de Louis.

Não sabia como escolher o último expedicionário. Havia pensado em Massacre, mas sua presença era igualmente indispensável no povoado. Deixei minha lista incompleta em cima da mesa. Quando regressei encontrei-a concluída com a atrevida letra de Martina: Cozinheiro e enfermeiro: Martina Sauvage.

Apesar de todos meus pedidos e os do seu irmão, foi impossível dissuadi-la. Como era robusta, valente e excelente atiradora, não fiquei muito preocupado em ceder.

Por outro lado, eu estava convencido de que nosso «tanque» nos oferecia o máximo de segurança.

Realizamos nosso últimos preparativos. Cada um colocou como pôde alguns livros ou objetos pessoais que queria levar. Tomamos posse dos nossos catres. Havia mais de 60cm de separação entre eles. Martina ficou no mais alto à direita, eu no mais alto à esquerda. Abaixo de mim, Vandal e Breffort e abaixo dela, Michel e Beltaire.

Schoeffer teria que deitar no banco do condutor, sendo a cabine suficientemente larga para seus 1,60m. Instalamos também um ventilador, por causa da temperatura, que prometia ser incomodativa. Um tampa se abria em um dos lados da cúpula, o que nos permitia subir ao teto. Porém, ao menor perigo, todo mundo deveria entrar imediatamente.

Cada um tomou seu lugar, numa madrugada azul. Eu empunhei o volante, com Michel e Martina ao meu lado. Vandal, Breffort e Schoeffer subiram ao teto. Beltaire estava no posto da metralhadora, na torre, em comunicação comigo por telefone. Eu me havia assegurado de que cada um de nós, inclusive Martina, era capaz de dirigir, atirar com a metralhadora e reparar as avarias mais frequentes.

Depois de haver estreitado a mão de nossos amigos e abraçado ao meu tio e ao meu irmão, pus o motor em marcha. Rodamos em direção ao castelo. Na torre, Beltaire agitou a mão por longo tempo, em resposta ao lenço de Ida. Eu estava exultante e feliz, cantando a plena voz. Passamos sobre as ruínas, bordejamos a via férrea e, por uma nova estrada que havíamos construído, — uma pista melhor — chegamos à mina de ferro. Tive a satisfação de encontrar os observadores nos seus postos. Alguns operários iam e vinham antes de começar o trabalho, outros comiam algo. Trocamos sinais amistosos. Depois começamos a rodar na planície, entre as ervas telurianas.

A princípio, espaçadamente, vimos algumas plantas terrestres. Desapareceram logo. Uma hora mais tarde passamos sobre os últimos vestígios dos meus reconhecimentos.

E adentramos o desconhecido.

Um ligeiro vento do Oeste ondulava a vegetação que passava soba o caminhão, com um suave rumor. O solo era firme e muito plano. A savana cinzenta estendia-se até o infinito. Algumas nuvens brancas — nuvens «normais», falou Michel — flutuavam para o Sul.

— Em que direção vamos? — perguntou Michel, que havia disposto sobre uma pequena prateleira os instrumentos de que precisava para seu papel de navegante inverso, com relação à Terra — a ponta do compasso que na Terra indica o Norte, aqui aponta para o Sul. — O magnetismo de Tellus é constante, e nossas bússolas funcionavam perfeitamente.

— Primeiro em frente, para o Sul depois para o Sudoeste. Com isto rodearemos o pântano. Ao menos assim espero. Depois para as montanhas.

Ao meio-dia fizemos alto. Tomamos nossa primeira refeição «à sombra do caminhão», como disse Paul, sombra é coisa inexistente. Afortunadamente soprava um vento suave. Enquanto bebíamos alegremente uma garrafa de bom vinho, as ervas ondularam, e uma enorme víbora apareceu. Sem duvidar um momento, seguiu reta e afundou suas mandíbulas no pneu esquerdo dianteiro, que emitiu um chiado característico.

— Santo Deus! — exclamou Paul, que saltou para o caminhão, saindo com um machado.

Incentivado pelo «Esquarteja-a» de Vandal, assestou na besta um golpe tão furioso que a partiu em duas e o metal do machado afundou no solo até a empunhadura.

Nós morríamos de rir.

— Acho que esta víbora não achou esta presa suculenta, — disse Michel, esforçandose em abrir-lhe as mandíbulas.

Foi necessário empregar uma pinça. Desmontado o pneu, verificamos que os sucos digestivos do animal eram tão poderosos que a câmara de ar esta dissolvida e a borracha corroída — Minhas desculpas, — disse Michel, voltando-se para os restos do animal. — Acho que ela poderia comer a borracha!

Novamente em marcha, rodamos a 25 ou 30km em média.

Quando entardeceu, eu ainda estava ao volante, havíamos feitos 300km e uns picos situados à esquerda nos haviam convencido de que o pântano continuava.

Foi somente ao cabo de três horas do dia seguinte, depois de uma boa noite, que pudemos mudar de direção, sem haver encontrado outra coisa mais que ervas cinzentas, raras árvores pequenas e algum barranco que tivemos que evitar. Ao longe se perfilavam as montanhas para as quais seguíamos Pouco antes das dez, o tempo mudou e ao meio-dia a chuva tamborilava sobre as chapas de duralumínio. Comemos, apertados no interior. A chuva era tão violenta que dificultava a visão, e decidi deter-nos até que parasse. Entreabrimos as janelas para deixar entrar ar fresco e, uns estirados nos catres e os demais sentados na mesa, ficamos discutindo. Eu estava em um lugar intermediário na banqueta dianteira, com Michel e sua irmã ao meu lado, sentados na soleira da porta de comunicação.

Michel e eu fumávamos nossos cachimbos e os demais fumavam cigarros. Graças a Deus ou ao azar, havia plantas de tabaco no povoado, além de uma abundante provisão, e havíamos podido plantá-las. Ao abrigo das incursões dos inspetores da Tabacaria!

A chuva durou dezessete horas. Quando despertamos ainda persistia, embora mais fraca, e os turnos de guarda afirmaram que não havia cessado um instante. Toda a planície estava coberta por uma película de água, absorvida lentamente pelo húmus Quando Michel o pôs em marcha, o caminhão derrapou antes de avançar.

Ao final do terceiro dia, havíamos percorrido 650 quilômetros, chegamos perto das montanhas. As colinas, orientadas no sentido SO-NO, reduziam o horizonte, e entre duas delas eu faria um achado capital.

Era noite. Nós havíamos nos detido ao pé de um montículo avermelhado, onde a vegetação permitia ver uma terra desnuda, argilosa. Levando minha arma, havia me distanciado um pouco. Vagando, vigiando o céu de vez em quando, eu refletia. Me perguntava se as leis da geologia terrestre eram aplicáveis a Tellus. Acabara de decidir— me pela afirmativa, quando notei que há algum tempo experimentava uma sensação indefinível, porém conhecida. Me detive. Estava diante de um pequeno pântano oleoso, onde a vegetação era muito pobre, apenas umas manchas amareladas rodeados de reflexos iridescentes. Tive um sobressalto: aquilo cheirava a petróleo!

Aproximei-me. Umas bolhas negras subiam à superfície, por uma pequena fenda.

Inflamaram-se sem dificuldade, o que não significava nada, pois podia tratar-se de simples gás Porém, e as iridescências? Aparentemente, ali havia um depósito petrolífero, provavelmente a pouca profundidade. Estudei o local detidamente. A capa argilosa que cobria a colina era substituída aqui por uma rocha escura, ardósia. A uns cem metros, esta terminava em uma beirada de calcário branco. Todas as aparências de uma fissura. O petróleo podia ser rastreado através dessa fissura, caso em que era provável que se perdesse. Ou talvez permanecesse próximo à superfície. De toda forma, havia petróleo em Tellus, e encontraríamos uma maneira de explorá-lo.

Anotamos cuidadosamente aquele lugar no nosso itinerário e rodeamos uma cadeia de montanhas pelo sul. — seria melhor chamá-las colinas altas, pois não ultrapassavam os 800 metros de altura. — Eram elevações calcárias, pouco erodidas, provavelmente geologicamente jovens. Em um bloco desmoronado descobri uma concha fóssil, muito parecida a um braquípodo terrestre. Isso provava que nem todos os seres de Tellus estavam — ou não haviam estado — tão absolutamente desprovidos de armação, como as hidras. A vegetação continuava igualmente monótona: ervas cinzas e «árvores» cinzas. Durante as paradas, Vandal transformava a mesa em laboratório, e o micrótomo não deixava de funcionar. Porém até o momento não havia conseguido nenhum descobrimento sensacional. As células das plantas eram análogas às dos vegetais terrestres, embora frenquentemente polinucleadas. Estas plantas não tinham inflorescências, e sim uns grãos semelhantes ao dos pteridospermos da era Primaria da Terra.

Assim que rodeamos as colinas vimos ao longe uma poderosa cadeia de montanhas coroadas de picos nevados. A mais alta era particularmente bela. Chocava-nos por sua enorme altitude. Levantava-se negra como a noite sob seu chapéu de neve, cônico, regular, caindo reto sobre a planície. Era provavelmente vulcânica. Batizamos de «Monte Tenebroso».

Dirigimos direto para ela. Michel tomou alguns dados e, com um simples cálculo, deduziu sua altura. Sussurrou: — Aproximadamente 12.700m!

— Doze quilômetros! Superior ao Everest…

— Mais de 3.000 metros.

— Porque conseguimos distinguir claramente o pico? Não deveria estar acima das nuvens?

— Acontece que não há nuvens. São bastante raras em Tellus. Porém quando chove!…

Lembra de anteontem!

— Entretanto, deve chover mais frequentemente do que pensas. Esta vegetação não vive sem água!

Antes de chegarmos ao pé do pico, topamos com um difícil obstáculo. O solo começou a descer. E no fundo de um amplo vale avistamos um rio. Estava rodeado de uma vegetação dendriforme, que mostrou-se mais próxima das árvores terrestre que todas as que conhecíamos até o momento. Existiam inclusive inflorescências, que Vandal comparou com os cones de determinados gimnospermos Como atravessar o rio? Não era muito largo, — uns 200 metros — mas era rápido e profundo. As águas eram negras. Como recordação do meu país natal, o batizei de «Dordogne». Parecia pouco provável que umas águas tão rápidas pudessem agradar às hidras, porém tomamos nossas precauções. Seguimos o fluxo da corrente, na esperança de encontrar um vau fácil. À noite, nos pareceu que chegáramos à nascente.

O rio parecia saltar de um penhasco. Não foi fácil passar com o caminhão pela espécie de ponte que formava essa paragem rochosa: estava obstruída pela vegetação e por blocos de pedra e cortado pelas torrentes. Rio abaixo, pela outra margem, seguimos até o «Monte Tenebroso». Por uma ilusão de ótica, parecia formar parte da cadeia de montanhas. Na realidade, erguia-se muito antes, como uma gigantesca mesa recoberta de lava negra, basalto e outras rochas. Ele nos pareceu a prova de uma mudança recente na origem profunda do magma expelido pelo vulcão, pois as lavas, fluidas, não formam um relevo escarpado. Grande quantidade de obsidiana pontilhavam a base.

Perto de uma delas fiz um surpreendente achado: em um monte de lascas encontrei uma ponta finamente cinzelada, em forma de folha de louro, totalmente análoga às que nossos antepassados fabricaram na Terra ao longo do período solutrense.

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