Rincewind sentiu uma ligeira pressão nos pés. Wuffles, que era lento das idéias, havia cravado as gengivas sem dente no bico da bota de Rincewind e lhe dava uma chupada vigorosa.
Ele pegou o cachorrinho pela nuca e pelo toco peludo que, por falta de palavra melhor, chamava de rabo, e ergueu-o de lado.
— Tudo bem — disse, afinal. — É melhor você me dizer o que anda acontecendo por aqui.
Das Montanhas Carracas, que dão para a imensa e fria Planície Sto, em meio à qual Ankh-Morpork se estende, espalhada como um saco de compras caídas, a vista era sensacional. Raios perdidos da guerra mágica expandiam-se numa nuvem de ar solidificado, dentro da qual cintilavam luzes estranhas.
As estradas que saíam da cidade estavam cheias de refugiados, e todas as hospedarias e tavernas à sua margem encontravam-se lotadas. Ou quase todas.
Ninguém parecia querer parar no pequeno pub, um tanto agradável, instalado entre árvores próximas à estrada de Quirm. Não que tivessem medo de entrar, apenas não podiam notá-lo.
Houve um movimento no ar, a cerca de um quilômetro dali, e três vultos caíram do nada, numa moita de lavanda.
Ficaram estirados sob o sol, entre os ramos perfumados e rompidos, até a sanidade voltar. Creosoto perguntou:
— Onde estamos?
— Tem cheiro de gaveta de roupa íntima — observou Conina.
— Não a minha — contestou Nijel.
Ele se levantou com cuidado e perguntou:
— Alguém viu a lâmpada?
— Esqueça. Deve ter sido trocada por um bar qualquer — respondeu Conina.
Nijel tateou os galhos de lavanda até encontrar um objeto pequeno e metálico.
— Achei! — exclamou ele.
— Não esfregue! — pediram os outros dois, em uníssono.
Seja como for, falaram tarde demais, mas isso não fez muita diferença, porque tudo que aconteceu quando Nijel lhe deu uma leve esfregadela foi o surgimento de algumas palavrinhas vermelhas e esfumaçadas, em pleno ar.
— Oi — leu Nijel, em voz alta. — Não largue a lâmpada, seu pedido é muito importante para nós. Por favor, deixe seu desejo depois do sinal e, em breve, será uma ordem. Enquanto isso, tenha uma boa eternidade. — Ele acrescentou: — Acho que o gênio está realmente sobrecarregado.
Conina não disse nada. Estava olhando a tempestade escaldante de magia. De vez em quando, parte dela se desprendia e voava para alguma torre distante. A menina estremeceu, apesar do calor crescente do dia.
— Temos de chegar lá o mais depressa possível — alertou. — É muito importante.
— Por quê? — indagou Creosoto.
Uma taça de vinho não havia lhe restaurado a antiga natureza despreocupada.
Conina abriu a boca e — o que era bem incomum para ela — fechou-a novamente. Não havia como explicar que todos os genes de seu corpo a impeliam adiante, afirmando que ela deveria participar. Visões de espadas e bolas cheias de pontas presas a correntes não paravam de invadir os salões de beleza da sua consciência.
Nijel, por outro lado, não sentia nenhum desses ímpetos. Tudo de que dispunha para movê-lo adiante era a imaginação, mas ele a tinha o bastante para impulsionar um navio de guerra de tamanho médio. Mirou a cidade com o que teria sido, caso tivesse queixo, uma fisionomia de determinação.
Creosoto deu-se conta de que estava em desvantagem.
— Tem bebida lá? — perguntou.
— Muita — respondeu Nijel.
— Não está mal para começar — avaliou o xerinfe. — Tudo bem, avante, ó filha dos seios de pêssego…
— E chega de poesia.
Eles se desembaraçaram da moita e desceram a encosta até a estrada que, pouco adiante, passava pela taverna mencionada acima ou, como Creosoto insistia em chamá-la, caravançará.
Hesitaram em entrar. O lugar não parecia querer clientes. Mas Conina, que por educação e criação costumava verificar os fundos das casas, achou quatro cavalos amarrados no quintal.
Os três examinaram os animais com atenção.
— Seria roubo — advertiu Nijel.
Conina abriu a boca para concordar, e as palavras “Por que não?” lhe escaparam dos lábios. Ela deu de ombros.
— Talvez devêssemos deixar algum dinheiro — sugeriu Nijel.
— Não olhem para mim — alarmou-se Creosoto.
— Ou escrever um bilhete e deixar debaixo das rédeas. Ou qualquer coisa assim. Vocês não acham?
À guisa de resposta, Conina montou no cavalo maior, que parecia pertencer a um soldado. Havia armas penduradas por todos os lados.
Sem jeito, Creosoto subiu no segundo cavalo, um baio arisco, e suspirou:
— Ela está com cara de caixa de correio — avisou. — Eu faria o que está mandando.
Desconfiado, Nijel estudou os outros dois cavalos. Um deles era imenso e extremamente branco — não o branco amarelado da maioria dos cavalos, mas um branco ebúrneo e translúcido, a que Nijel sentiu vontade inconsciente de chamar de “sudário”. Também lhe deu a nítida sensação de ser mais inteligente do que ele.
Escolheu o outro. Era um pouco magro, mas dócil. E o rapaz conseguiu montar depois de apenas duas tentativas.
Eles partiram.
O barulho dos cascos mal chegou a penetrar na escuridão da taverna. O dono do local se movimentava como em sonho. Sabia que tinha clientes, havia até conversado com eles e podia mesmo vê-los sentados em torno da mesa próxima à lareira. Mas, se lhe pedissem que descrevesse com quem havia conversado ou o que tinha visto, teria ficado desorientado. Isso se dá porque o cérebro humano é excelente para bloquear coisas de que não quer saber. Naquele momento, o dele poderia guardar um cofre de banco.
E as bebidas! Da maioria delas, ele nunca tinha ouvido falar, mas as garrafas surgiam nas prateleiras, sobre os barris de cerveja. O problema era que, sempre que tentava pensar no assunto, as idéias se perdiam…
Os vultos em torno da mesa ergueram as cartas.
Um deles levantou a mão. Fica na extremidade do braço e tem cinco dedos, disse a mente do dono da taverna. Deve ser mão.
Uma coisa que o cérebro dele não conseguia bloquear era o som das vozes. Aquela ali soava como se alguém estivesse batendo em pedra com uma barra de chumbo.
— PESSOA DO BAR.
O dono da taverna soltou um gemido. As lanças térmicas do pânico abriam caminho nas portas de aço de sua mente.
— VEJAMOS. ESSE ERA… COMO SE CHAMA, MESMO?
— Bloody mary.
Aquela voz fazia um mero pedido de bebidas parecer declaração de guerra. — AH.É. E…
— O meu era martini — disse Peste.
— UM MARTINI.
— Com azeitona.
— ÓTIMO — mentiu a voz pesada. — PARA MIM, UM VINHO DO PORTO E — ele fitou o quarto membro do grupo e suspirou — É MELHOR VOCÊ TRAZER OUTRA TIGELA DE AMENDOIM.
A cerca de trezentos metros dali, os ladrões de cavalos tentavam se acostumar à nova experiência.
— Sem dúvida, uma viagem tranqüila — arriscou Nijel, afinal.
— E uma vista gloriosa — concordou Creosoto, a voz perdida no vento.
— Mas eu continuo me perguntando — argumentou Nijel — se fizemos a coisa certa.
— Estamos andando, não estamos? — irritou-se Conina. — Deixe de ser chato.
— Só que, bem, ver essas nuvens… esses cúmulos de cima, é…
— Cale a boca.
— Desculpe.
— De qualquer maneira, são estratos. No máximo, estratos-cúmulos.
— Entendo — disse Nijel, com tristeza.
— Faz alguma diferença? — perguntou Creosoto, que se encontrava deitado sobre o pescoço do cavalo, de olhos fechados.
— Uns trezentos metros.
— Ah.
— Talvez duzentos e cinqüenta — admitiu Conina.
— Ah.
A torre da fonticeria vibrava. Fumaça colorida corria pelos cômodos abobadados e corredores reluzentes. Na grande sala do cume, onde o ar estava denso, escuro e cheirava a lata queimada, vários magos haviam desmaiado por causa do simples esforço mental da luta. Mas muitos resistiam. Estavam sentados num grande círculo, concentrados.
Era possível ver o tremor da fonticeria em estado bruto saindo da vara, nas mãos de Coin, e lançando-se para o centro do octograma.
Formas bizarras surgiam por um instante, e depois desapareciam. Ali, o tecido da própria realidade era passado a ferro.
Carding estremeceu e afastou o olhar, com medo de acabar vendo alguma coisa que realmente não pudesse ignorar.
Os magos sêniores sobreviventes tinham um simulacro do Disco flutuando à sua frente. Quando Carding voltou a olhá-lo, o pequeno brilho vermelho sobre a cidade de Quirm cintilou e se apagou.
O ar rangeu.
— Lá se vai Quirm — murmurou Carding.
— Agora, só falta Al Khali — disse um dos outros.
— Ali há muito poder.
Taciturno, Carding assentiu. Sempre gostara muito de Quirm, que era… que havia sido uma cidadezinha deliciosa, banhada pelo Oceano Periférico.
Lembrou vagamente a ocasião em que fora levado para lá, quando pequeno. Por um instante, contemplou o passado com tristeza. Havia gerânios silvestres, recordou, enchendo as ruas inclinadas de perfume almiscarado.
— Crescendo nas paredes — comentou, em voz alta. — Rosa. Eram rosa.
Os outros magos lançaram-lhe olhares melindrados. Um ou dois, de tendência particularmente paranóica, até mesmo para os padrões de um mago, olharam desconfiados para as paredes.
— Você está bem? — perguntou um deles.
— Hum? — disse Carding. — Ah. Sim. Desculpe. Estava longe daqui.
Ele se voltou para Coin, que se encontrava sentado no círculo com a vara apoiada sobre os joelhos. O menino parecia dormir. Talvez estivesse. Mas, no fundo de sua alma atormentada, Carding sabia que a vara não dormia. Ela o observava, testava sua mente.
E sabia. Sabia até dos gerânios rosa.
— Eu não queria que acabasse assim — murmurou. — A gente só queria um pouco de respeito.
— Tem certeza de que você está bem?
Carding assentiu vagamente. Quando os colegas voltaram a se concentrar, olhou de esguelha para eles.
De alguma forma, todos os amigos haviam partido. Bem, amigos não. Mago nunca fazia amigos. Pelo menos, não amigos que fossem magos. Era necessária uma palavra diferente. Ah, sim, era isso: inimigos. Mas um tipo muito decente de inimigo. Cavalheiros. A nata da profissão. Não como essa gente, que parecia ter feito carreira depois da chegada do fonticeiro.
Não é só a nata que chega ao topo boiando, refletiu ele, com amargor.
Voltou a atenção para Al Khali, investigando, com o pensamento, ciente de que os magos de lá provavelmente faziam o mesmo, sempre buscando um ponto de vulnerabilidade.
Ele pensou: Será que sou um ponto de vulnerabilidade? Lingote tentou me avisar alguma coisa. Era sobre a vara. O homem deve se apoiar na vara, e não o contrário… E ela conduz o menino… Como eu gostaria de ter escutado Lingote… Está tudo errado, sou um ponto de vulnerabilidade…
Tentou novamente, deslizando nas ondas de energia, permitindo que levassem sua mente à torre inimiga. Até Abrim vinha fazendo uso da fonticeria, e Carding deixou-se adaptar às ondas, insinuando-se por entre as defesas erigidas contra ele.
A imagem do interior da torre de Al Khali surgiu, ganhou foco…
…a Bagagem seguia pelos corredores reluzentes. Tinha muita raiva. Havia sido acordada de sua hibernação, havia sido desprezada, havia sido atacada por uma variedade de criaturas mitológicas e, agora, extintas, estava com dor de cabeça e, naquele momento, ao entrar no salão, finalmente localizava o chapéu. O terrível chapéu, causa de todo o seu sofrimento. Ela avançou decidida…
Examinando a resistência da mente de Abrim, Carding sentiu a atenção do homem vacilar. Por um instante, enxergou através dos olhos do inimigo e divisou a arca se aproximando. Abrim tentou deslocar a concentração e, incapaz de se segurar — como gato quando vê um bicho pequeno e chiante correndo pelo chão —, Carding atacou.
Não com muita força. Não foi necessário. A mente de Abrim tentava equilibrar e canalizar energias imensas, e quase não foi preciso muita pressão para derrubá-lo.
Abrim estendeu os braços para detonar a Bagagem, soltou o começo de um grito e implodiu.
Os magos à volta dele imaginaram tê-lo visto ficar absurdamente pequeno, durante uma fração de segundo, e desaparecer, deixando um rastilho de imagem preta…
O mais inteligente deles começou a correr…
E a magia que Abrim vinha controlando irrompeu numa grande explosão, que destruiu o chapéu e destroçou todos os pisos mais baixos da torre e boa parte do que ainda restava da cidade.
Tantos magos de Ankh se encontravam concentrados em Al Khali que a ressonância os fez voar pelo salão. Carding acabou estirado no chão, com o chapéu sobre os olhos.
Levantaram-no, limparam-no e levaram-no até Coin, em meio a aplausos — embora alguns dos magos mais velhos se abstivessem de aplaudir. Mas ele não parecia prestar atenção.
Fitou o garoto e levou as mãos às orelhas.
— Vocês não estão ouvindo? — perguntou.
Os magos fizeram silêncio. Carding ainda se encontrava carregado de energia, e o tom de sua voz teria abafado uma tempestade.
Os olhos de Coin brilhavam.
— Não estou ouvindo nada — respondeu ele.
Carding virou-se para o resto dos magos.
— Vocês também não?
Os homens sacudiram a cabeça. Um deles perguntou:
— Ouvindo o quê, irmão?
Carding sorriu, e era um sorriso largo e enlouquecido. Até Coin se afastou.
— Logo, logo vão ouvir — disse ele. — Vocês criaram um farol. Todos vão acabar ouvindo. Mas por pouco tempo.
Livrou-se dos magos mais jovens que vinham lhe segurando os braços e avançou para Coin.
— Você está trazendo a fonticeria para o mundo, mas outras coisas vêm junto — advertiu. — Outras pessoas já abriram passagem para essas coisas, você abriu uma avenida.
Ele deu um salto, tirou a vara negra das mãos de Coin e girou-a no ar, para quebrá-la na parede.
Carding ficou rígido quando a vara ricocheteou. Sua pele começou a criar bolhas…
A maioria dos magos conseguiu virar o rosto. Alguns poucos — e sempre há esses poucos — observaram com fascínio obsceno.
Coin também observou. Arregalou os olhos de admiração. Pôs uma das mãos sobre a boca. Tentou recuar. Não conseguiu.
— São cúmulos, sim.
— Maravilha — murmurou Nijel.
— O PROBLEMA NÃO É O PESO. MEU CORCEL JÁ CARREGOU EXÉRCITOS. JÁ CARREGOU CIDADES. CARREGOU TUDO NO TEMPO DEVIDO — disse Morte. — MAS NÃO VAI CARREGAR VOCÊS TRÊS.
— Por que não?
— É UMA QUESTÃO DE IMAGEM.
— Ali, mas vai ficar ótimo — provocou Guerra. — O Cavaleiro e os três Andarilhos do Apocralipse.
— Talvez você possa pedir para que nos esperem — sugeriu Peste com sua voz, que parecia alguma coisa gotejando no fundo de um caixão.
— TENHO COMPROMISSOS — desculpou-se Morte. E fez um ruído com os dentes. — ESTOU CERTO DE QUE VOCÊS VÁO DAR UM JEITO. SEMPRE DÃO.
Guerra observou o cavalo se afastar.
— Ás vezes ele me enche. Por que sempre quer ter a última palavra? — perguntou.
— Força do hábito.
Os dois voltaram para a taverna. Durante algum tempo, ninguém falou nada, e depois Guerra perguntou:
— Cadê Fome?
— Foi procurar a cozinha.
— Ah.
Guerra arrastou o pé no chão empoeirado e pensou na distância até Ankh. Fazia muito calor. O apocralipse que esperasse.
— A saideira? — propôs.
— Será que devemos? — objetou Peste. — Devem estar esperando por nós. Quer dizer, eu não gostaria de deixar ninguém desapontado.
— Temos tempo para a última — insistiu Guerra. — Relógio de bar nunca está certo. Temos muito tempo. Todo o tempo do mundo.
Carding caiu para a frente, no reluzente chão branco. A vara saiu rolando de suas mãos e se levantou.
Coin cutucou o corpo inerte com o pé.
— Eu avisei a ele — disse. — Avisei o que aconteceria se encostasse outra vez na vara. Do que ele estava falando?
Houve acessos de tosse e considerável inspeção de unhas.
— O que ele quis dizer? — insistiu Coin.
O professor Ovin Hakardly, mais uma vez, notou que os magos à volta se afastavam feito névoa matutina. Os olhos dele correram de um lado para outro, como dois animais presos.
— Hã… — suspirou. Em seguida, agitou os braços finos. — O mundo, entende? A realidade em que vivemos. Na verdade, podemos pensar nela, de certo modo, como uma folha elástica.
Ele hesitou, ciente de que a frase não apareceria no livro de citações de ninguém. — Então — apressou-se em acrescentar — ela é distorcida, hum, distendida pela presença da magia em qualquer grau, e muita potencialidade mágica, se reunida num único local, força nossa realidade para baixo, embora evidentemente ninguém deva entender o termo de maneira literal, porque não procuro de modo algum sugerir uma dimensão física, e já se supôs que o emprego excessivo da magia possa, digamos, hum, romper a realidade no seu ponto mais baixo e quem sabe criar uma passagem para as criaturas do plano inferior, chamado Calabouço das Dimensões, que, talvez por causa da diferença nos níveis de energia, naturalmente são atraídos pela claridade deste mundo. O nosso mundo.
Houve a pausa demorada que em geral se segue às aulas de Hakardly, enquanto todos mentalmente inseriam vírgulas e amarravam as frases dispersas.
Por um instante, os lábios de Coin mexeram-se em silêncio.
— Você está querendo dizer que a magia atrai essas criaturas? — perguntou, afinal.
A voz parecia muito diferente. Faltava a agressividade. A vara pairava sobre o corpo caído de Carding, girando vagarosamente. Todos os magos mantinham os olhos cravados nela.
— Parece que sim — respondeu Hakardly. — Quem estuda o assunto diz que a presença delas se faz ouvir por um rumorejo enrouquecido.
Coin pareceu confuso.
— Elas zumbem — esclareceu um dos outros magos.
O menino ajoelhou e examinou Carding de perto.
— Ele está muito parado — observou. — Tem alguma coisa de ruim acontecendo com ele?
— Talvez — respondeu Hakardly, com cautela. — Ele está morto.
— Eu gostaria que não estivesse.
— Imagino que ele seja da mesma opinião.
— Mas posso ajudá-lo — lembrou Coin.
O menino estendeu as mãos, e o bastão voou para elas. Se tivesse rosto, a vara teria sorrido.
Quando Coin tornou a falar, a voz novamente apresentava a inflexão fria e distante de alguém falando em cômodo revestido de aço.
— Se o fracasso não tivesse penalidades, o sucesso não seria um prêmio — disse.
— O quê? — perguntou Hakardly. — Não entendi.
Coin deu meia-volta e retornou para a cadeira.
— Não podemos temer nada — disse, e parecia mais uma ordem. — O que tem de mais nesse Calabouço das Dimensões? Se nos incomodarem, acabamos com as tais criaturas! Mago de verdade não tem medo de nada! Nada! Levantou-se novamente e avançou para o simulacro do mundo. A imagem era perfeita em todos os detalhes, até no que se referia ao fantasma de Grande A Tuin, seguindo devagar pelas profundezas interestelares, a alguns centímetros do chão.
Com desdém, Coin agitou a mão.
— Nosso mundo é mágico — declarou. — E existe alguém neste mundo que possa fazer frente a nós?
Hakardly achou que se esperava uma resposta dele.
— Ninguém — arriscou. — Fora os deuses, é claro.
Instaurou-se um silêncio mortal.
— Deuses? — murmurou Coin.
— Bem, é. Evidentemente. A gente não desafia os deuses. Eles fazem o trabalho deles, nós o nosso. Não tem por que…
— Quem governa o Disco? Os magos ou os deuses?
Hakardly pensou rápido.
— Ah, os magos. É claro. Mas sob a lei dos deuses.
E terrível quando metemos um pé no pântano. Mas não é tão terrível quanto enfiar o outro pé, e também ouvi-lo afundar. Hakardly prosseguiu.
— A magia é…
— Então, não somos mais poderosos do que os deuses? — admirou-se Coin.
Alguns dos magos, no fundo da sala, começaram a mudar de posição.
— Bem, sim e não — respondeu Hakardly, agora afundado até os joelhos.
A verdade era que os magos ficavam nervosos em relação aos deuses. As criaturas que habitavam Cori Celesti jamais haviam deixado claro o que pensavam da magia, que, afinal de contas, incluía certa divindade, e os magos evitavam o assunto. O problema dos deuses era que, se não gostavam de alguma coisa, não se limitavam apenas a enviar sinais. Por isso, o senso comum sugeria ser imprudente deixá-los em posição de ter de tomar alguma decisão.
— Parece existir um pouco de dúvida — considerou Coin.
— Se eu puder consultar… — começou Hakardly.
Coin agitou a mão. As paredes sumiram. Os magos estavam no alto da torre, e todos os olhos se voltaram ao pico distante de Cori Celesti, morada dos deuses.
— Quando já vencemos todo o mundo, só falta lutar com os deuses — observou Coin. — Alguém aqui já viu os deuses?
Ouviu-se um coro de negativas hesitantes.
— Então, vou mostrá-los a vocês.
— Meu camarada, ainda há tempo para mais uma — disse Guerra.
Peste vacilou.
— A gente precisa ir — murmurou, sem muita convicção.
— Ah, qual é?
— Então só meia. Depois a gente vai.
Guerra deu-lhe um tapa nas costas e olhou para Fome.
— Também é melhor pedir mais quinze sacos de amendoim — acrescentou.
— Oook — concluiu o bibliotecário.
— Ah — disse Rincewind. — Então o problema é a vara.
— Oook.
— Ninguém tentou tirá-la do fonticeiro?
— Oook.
— E o que aconteceu com eles?
— Eeek.
Rincewind soltou um gemido.
O bibliotecário havia apagado a vela, porque a chama vinha incomodando os livros. Mas, agora que Rincewind se acostumara com a escuridão, notou que não estava nem um pouco escuro. O leve brilho octarina dos livros enchia o interior da torre de uma coisa que, embora não fosse exatamente luz, era um breu no qual se podia enxergar. De vez em quando, ouvia-se a agitação de folhas.
— Portanto, basicamente, não há jeito de derrotá-lo com a nossa magia. E isso?
O bibliotecário oookou com tristeza e continuou girando no chão.
— Mas então é inútil. Você já deve saber que não sou muito prendado no departamento mágico. Qualquer duelo vai se dar nos termos de “Oi, eu sou Rincewind”, seguido de um bum.
— Oook.
— O que você está dizendo é que estou completamente sozinho.
— Oook.
— Obrigado.
Com a iluminação deles próprios, Rincewind observou os livros, que haviam se enfileirado junto às paredes da velha torre.
Suspirou, e marchou animado para a porta, mas reduziu a velocidade notadamente ao alcançá-la.
— Então estou indo — disse.
— Oook.
— Para enfrentar não se sabe quais perigos terríveis — acrescentou Rincewind. — Para arriscar minha própria vida, em prol da humanidade…
— Eeek.
— Tudo bem, dos bípedes…
— Au, au.
— … e quadrúpedes.
Ele olhou o vidro onde estava o Patrício, um homem arruinado.
— E dos lagartos — corrigiu. — Posso ir agora?
Um vendaval soprava do céu claro quando Rincewind saiu em direção à torre da fonticeria. As altas portas brancas estavam de tal modo fechadas que mal se divisava seu contorno na superfície leitosa da parede de pedras.
Ele bateu na madeira, mas não aconteceu nada. As portas pareciam absorver o som.
— Maravilha — murmurou para si mesmo. Depois, lembrou-se do tapete.
Estava no mesmo lugar em que o havia deixado, o que era outro sinal de que Ankh havia mudado. Nos dias de gatunagem, anteriores à vinda do fonticeiro, nada permanecia no mesmo local durante muito tempo. Pelo menos, nada que fosse considerado interessante.
Ele desenrolou a peça no chão, e os dragões dourados estenderam-se outra vez contra o fundo azul — a menos que fossem dragões azuis voando num céu dourado.
Sentou-se.
Levantou-se.
Sentou-se novamente, ergueu o manto e, com alguma dificuldade, tirou uma das meias. Depois, voltou a calçar a bota e andou um pouco entre os destroços até achar meio tijolo. Meteu o meio tijolo na meia e girou-a no ar.
Rincewind havia sido criado em Morpork. Numa briga, o que todo cidadão de Morpork gostava de ter a seu dispor era vantagem de vinte a um, mas, não sendo este o caso, meia com meio tijolo e beco escuro, em geral, eram considerados mais seguros do que qualquer espada mágica.
Ele se sentou de novo.
— Para cima — ordenou.
O tapete não obedeceu. Rincewind examinou o desenho, então levantou uma ponta do tapete e tentou ver se o lado inferior era mais nítido.
— Tudo bem — reconheceu. — Para baixo. Com muita, muita calma. Para baixo.
— Ovelha — resmungou Guerra. — Era ovelha.
Ele deixou a cabeça bater no balcão, com um tinido. Suspendeu-a novamente.
— Ovelha.
— Não era — argumentou Fome, erguendo o dedo fino e vacilante. — Era outro animal domésss… manso. Tipo porco. Bezerro. Talvez gato. Assim. Não era ovelha.
— Abelha — arriscou Peste, e escorregou suavemente da cadeira.
— Tudo bem — disse Guerra, ignorando-o. — Então mais uma vez. Do início.
Ele bateu no copo, em busca do tom certo.
— Somos pequenos… animais domésticos não identificados… que perderam o rumo… — cantou, com a voz trêmula.
— Mééémééé — murmurou Peste, no chão.
Guerra sacudiu a cabeça.
— Não é igual — lamentou. — Não sem ele. Ele mandava bem no grave.
— Mééémééé — repetiu Pestilência.
— Ah, fique quieto — pediu Guerra, estendendo o braço para outra garrafa.
A ventania açoitava o alto da torre: um sopro quente e desagradável, que uivava com vozes estranhas e roçava a pele como lixa fina.
No centro de tudo, Coin erguia a vara por sobre a cabeça. Enquanto a poeira tomava conta do ambiente, os magos viam os fios de força mágica verterem do nada.
Os fios curvaram-se para formar uma grande bolha, que cresceu até ficar, quem sabe, maior do que a cidade. E surgiram vultos nela. Eram volúveis e indistintos, oscilando pavorosamente como imagens em espelho torto. Tão substanciais quanto anéis de fumaça ou desenhos de nuvem, mas pareciam terrivelmente familiares.
Por um instante, surgiu o focinho dentado de Offler. Num átimo da tempestade, apareceu Cego Io, o chefe dos deuses, com seus olhos orbitantes.
Coin mexeu os lábios, e a bolha começou a encolher. Ela se arqueava e produzia movimentos obscenos, à medida que as criaturas de seu interior lutavam para sair, embora não conseguissem deter a contração.
Agora, estava pouco maior do que o campus da Universidade.
Agora, era pouco mais alta do que a torre.
Agora, era o dobro da altura de um homem normal, e cinza.
Agora, era uma pérola iridescente, do tamanho de… bem, do tamanho de uma pérola grande.
A ventania havia desaparecido, substituída por um silêncio pesado. O próprio ar gemia de tensão. A maioria dos magos estava deitada no chão, mantida ali pelas forças soltas que engrossavam a atmosfera e abafavam o som, como um monte de penas, mas todos ouviam seu próprio batimento cardíaco, alto o suficiente para derrubar a torre.
— Olhem para mim — ordenou Coin.
Eles voltaram os olhos para o menino. Não havia como desobedecer.
O garoto segurava o objeto brilhante numa das mãos. Na outra, sustentava o bastão, que desprendia fumaça das pontas.
— Os deuses — anunciou ele. — Aprisionados num pensamento. E, talvez, jamais tenham passado de um sonho.
A voz ficou envelhecida, grave.
— Magos da Universidade Invisível, então não dei o poder absoluto a vocês?
Atrás de Coin, o tapete erguia-se lentamente, junto à torre, com Rincewind tentando manter o equilíbrio. Os olhos do mago estavam arregalados por causa do medo que vem naturalmente quando se está sentado num pedaço de pano a vários metros do chão.
Ele saltou da peça voadora para a torre, rodando a meia em movimentos amplos e perigosos.
Coin o viu refletido no olhar assombrado dos magos ali reunidos. Virou-se com cuidado, e observou o intruso avançar, aos trancos, em sua direção.
— Quem é você? — perguntou.
— Vim desafiar o fonticeiro — respondeu Rincewind. — Cadê ele?
E examinou o grupo de magos, segurando o meio tijolo na mão.
Hakardly arriscou olhar para cima e mexer as sobrancelhas para Rincewind, que, mesmo nas melhores circunstâncias, não era muito bom em interpretar qualquer comunicação que não fosse verbal. Aquela não era a melhor circunstância.
— Com uma meia? — surpreendeu-se Coin. — De que adianta uma meia?
O braço que segurava a vara se ergueu. Ligeiramente aturdido, Coin olhou o próprio membro.
— Não, pare — pediu. — Quero falar com esse homem.
O menino encarou Rincewind, que oscilava sob a influência de sono, medo e efeitos colaterais de uma overdose de adrenalina.
— Ela é mágica? — indagou. — Seria a meia de um arqui-reitor? Uma meia de poder?
Rincewind concentrou-se nela.
— Acho que não — respondeu. — Acho que a comprei numa loja. Hum. Tenho outra por aí.
— Mas existe alguma coisa pesada na ponta.
— Ah, sim — disse Rincewind. E acrescentou: — E meio tijolo.
— Mas isso tem muito poder.
— Hã… Dá para botar coisas sobre ele. Se tivéssemos outra metade, seria um tijolo inteiro.
Rincewind falava vagarosamente. Estava assimilando a situação por uma espécie de osmose hedionda, e avistava a vara, girando ameaçadoramente na mão do menino.
— Sei. É um tijolo comum, dentro de uma meia. O todo transformado em arma.
— Hum. É.
— Como funciona?
— Hum. A gente roda, e acerta alguma coisa. Ou o dorso da mão, às vezes.
— E, então, talvez destrua a cidade? — insistiu Coin.
Rincewind mirou os olhos dourados de Coin, depois a meia.
Já havia botado e tirado aquela peça uma centena de vezes. Ela possuía cerziduras que ele conhecia, e odor… bem, conhecia. Algumas das cerziduras já tinham até formado família. Havia inúmeras descrições que se aplicariam à meia, mas aniquiladora-de-cidades não era uma delas.
— Não exatamente — respondeu, afinal. — Mata as pessoas, mas deixa os prédios.
A mente de Rincewind vinha operando na velocidade da migração dos continentes. Parte dela dizia que ele estava diante do fonticeiro, mas esta se encontrava em conflito direto com outras partes. Rincewind já ouvira falar muito no poder do fonticeiro, na vara do fonticeiro, na maldade do fonticeiro, e assim por diante. A única coisa que ninguém havia mencionado era a idade do fonticeiro. Ele fitou a vara.
— E isso, faz o quê? — perguntou, devagar.
A vara interveio:
Mate este homem.
Os magos, que, com cuidado, vinham se levantando, trataram de se estirar no chão novamente.
A voz do chapéu era pavorosa, mas a voz da vara era metálica e exata. Não parecia dar conselho, apenas afirmar como seria o futuro. Era impossível ignorá-la.
Coin começou a suspender o braço e hesitou.
— Por quê? — perguntou, afinal.
Não desobedeça.
— Você não tem de fazer isso — apressou-se a intervir Rincewind. — É só um objeto.
— Não vejo por que machucá-lo — argumentou Coin. — Ele parece tão inofensivo! Como um coelho nervoso.
Ele nos desafia.
— Eu, não — desmentiu Rincewind, ocultando nas costas a mão com a meia, e tentando ignorar a parte do coelho.
— Por que tenho de fazer tudo que você manda? — rebelou-se Coin. — Sempre faço tudo o que você manda, e isso não ajuda a ninguém.
As pessoas devem temê-lo. Será que não aprendeu nada do que ensinei?
— Mas ele é tão engraçado! Tem uma meia — comentou Coin.
O menino soltou um grito e sacudiu o braço. Os cabelos de Rincewind se arrepiaram.
Você vai fazer o que estou mandando.
— Não vou.
Você sabe o que acontece com os meninos que não se comportam. Houve um estalo e um cheiro de carne chamuscada. Coin caiu de joelhos.
— Ei, espere aí… — começou Rincewind.
Coin abriu os olhos. Ainda estavam dourados, mas salpicados de castanho.
Rincewind girou a meia num arco amplo, que atingiu o meio da vara. Houve uma breve explosão de pó de tijolo e lã queimada, e o bastão saltou da mão do garoto. Os magos dispersaram-se quando a vara rolou pelo chão.
Ela atingiu o parapeito e saltou para fora.
Mas, em vez de cair, manteve-se no ar, girou e voltou em disparada, deixando um rastro de centelhas octarinas e fazendo barulho de serra circular.
Rincewind puxou o garoto, aturdido, para trás de si, jogou longe a meia destruída e tirou o chapéu, agitando-se freneticamente enquanto a vara avançava em sua direção. Ela acertou a lateral da cabeça do mago, num golpe que quase lhe endireitou os dentes e derrubou-o como a uma árvore fina e desconjuntada.
O bastão se virou outra vez, reluzindo incandescente, e lançou-se para a investida final.
Horrorizado, Rincewind apoiou-se nos cotovelos e observou-o cortar o ar frio, que, por alguma razão, pareceu se encher de flocos de neve. E ficou tingido de roxo, borrado de azul. O tempo desacelerou e parou, afinal, como vitrola sem energia.
Rincewind divisou o vulto alto, vestido de preto, que havia surgido a poucos metros de distância.
Evidentemente, era Morte.
Ele voltou as cavidades oculares para Rincewind e, numa voz que parecia o colapso de abismos submarinos, disse:
— BOA TARDE.
Deu meia-volta — como se, por enquanto, houvesse concluído todo o serviço que precisava ser feito —, olhou durante algum tempo para o horizonte, e começou a bater um pé no chão. Parecia um saco de chocalhos.
— Hã… — soltou Rincewind.
Morte pareceu se lembrar dele.
— SIM? — indagou, com educação.
— Sempre me perguntei como seria — disse Rincewind.
Morte tirou uma ampulheta das misteriosas dobras do manto negro e espiou.
— É MESMO? — murmurou, distraído.
— Acho que não posso reclamar — considerou Rincewind. — Tive uma boa vida. Mais ou menos boa. — Ele hesitou. — Nem tão boa assim. Acho que a maioria das pessoas a acharia terrível. — Ele pensou mais no assunto. — Eu acho — acrescentou, um pouco para si mesmo.
— DO QUE ESTÁ FALANDO?
Rincewind ficou confuso.
— Você não aparece quando um mago está para morrer?
— CLARO. E, POR CAUSA DISSO, MEU DIA ESTÁ CHEIO.
— Como consegue estar em tantos lugares ao mesmo tempo?
— BOA ORGANIZAÇÃO.
O tempo voltou. A vara, que se encontrava suspensa no ar, a alguns metros de Rincewind, começou a zunir novamente.
E ouviu-se um tinido metálico quando Coin agarrou-a com uma das mãos.
O bastão soltou um ruído como de mil unhas raspando em vidro. Depois se agitou, debatendo-se no braço que o mantinha preso, e produziu uma chama verde em toda a sua extensão.
Pois bem. No fim, você me decepciona.
Coin soltou um gemido, mas não se deixou abalar quando o metal ficou vermelho, depois branco.
Ele estendeu o braço, e a força que emanava da vara lhe atravessou o corpo, tirando faíscas de seu cabelo e lhe erguendo o manto em formas estranhas e desagradáveis. O menino soltou um grito, girou o bastão e acertou-o no parapeito, deixando uma linha fumegante na pedra.
E jogou a vara longe. Ela bateu no chão e rolou até parar, obrigando os magos a saírem do caminho.
Coin se deixou cair de joelhos, tremendo.
— Eu não gosto de matar — disse. — Isso não pode estar certo.
— Nunca mude de opinião — recomendou Rincewind.
— O que acontece com quem morre? — perguntou Coin.
Rincewind olhou para Morte.
— Acho que essa é para você — sugeriu.
— ELE NÃO ME VÊ, NEM ME ESCUTA — observou Morte. — NÃO, ATÉ QUE QUEIRA.
Ouviu-se um pequeno tinido. A vara estava rolando de volta para Coin, que a fitou apavorado. Pegue-me.
— Você não tem de fazer isso — objetou Rincewind, outra vez.
Não pode resistir a mim. Não pode derrotar a si mesmo — disse a vara.
Devagar, Coin estendeu o braço e pegou o bastão.
Rincewind olhou a meia. Era um resto de lã queimada, com a breve carreira de arma de guerra tendo-a levado para além da possibilidade de qualquer remendo.
Agora o mate.
Rincewind segurou a respiração. Os outros magos seguraram a respiração. Até Morte, que não tinha nada para segurar além da foice, segurou-a com força.
— Não — recusou-se Coin.
Você sabe o que acontece com os meninos que não se comportam. Rincewind viu o rosto do fonticeiro empalidecer. A voz da vara mudou. Agora era doce. Sem mim, quem lhe diria o que fazer?
— É verdade — respondeu Coin, devagar.
Veja o que você conquistou.
Coin correu os olhos pelos rostos assustados.
— Estou vendo — disse.
Ensinei a você tudo que sei.
— Acho que não sabe o suficiente — rebateu Coin.
Ingrato! Quem lhe deu o seu destino?
— Você — respondeu o menino, erguendo a cabeça. — Estou percebendo que cometi um engano — acrescentou, em voz baixa.
Ótimo…
— Não atirei você longe o bastante!
Num único movimento, Coin levantou-se e girou a vara sobre a cabeça. Depois, ficou imóvel como uma estátua, a mão perdida numa bola de luz que era da cor de cobre fundido. A bola ficou verde, passou por vários tons de azul, insinuou-se pelo violeta e, então, se assentou numa octarina pura.
Rincewind protegeu os olhos contra o brilho reluzente e viu a mão de Coin, ainda incólume, ainda segurando firmemente o bastão, com gotas de metal derretido cintilando entre os dedos.
Ele recuou, e tropeçou em Hakardly. O velho mago estava parado como uma estátua, a boca aberta.
— O que vai acontecer? — perguntou Rincewind.
— Ele não vai vencer nunca — respondeu Hakardly. — A vara é dele. Tão forte quanto ele. O menino tem poder, mas ela sabe canalizá-lo.
— Quer dizer que vão anular um ao outro?
— Na melhor das hipóteses.
A luta se ocultava no brilho infernal. O chão começou a tremer.
— Estão levando tudo que é mágico — explicou Hakardly. — É melhor deixarmos a torre.
— Por quê?
— Ela deve sumir em breve.
De fato, as lajes brancas, ao redor da bola reluzente, pareciam se soltar e desaparecer dentro do clarão. Rincewind hesitou.
— Não vamos ajudá-lo? — perguntou.
Hakardly olhou para ele e, em seguida, para a esfera iridescente. Abriu e fechou a boca uma ou duas vezes.
— Sinto muito — disse, afinal.
— Mas ele vai precisar de ajuda. Você viu como é aquele negócio…
— Sinto muito.
— Ele ajudou vocês — Rincewind virou-se para os outros magos, que começavam a correr. — Todos vocês. Ele deu a vocês o que queriam, não deu?
— Talvez nunca o perdoemos por isso — observou Hakardly.
Rincewind soltou um gemido.
— O que vai sobrar no fim de tudo? — perguntou. — O que vai sobrar no fim de tudo?
Hakardly baixou os olhos.
— Sinto muito — repetiu.
A luz octarina havia se tornado mais brilhante e começava a ficar preta nas pontas. Mas não se trata do preto que é apenas o contrário de luz. Trata-se do negrume granulado que reluz além da claridade e não existe em nenhuma realidade que se preze. Também zumbia.
Rincewind executou a pequena dança da incerteza, à medida que seus pés, suas pernas, seus instintos e seu senso de autopreservação, incrivelmente bem desenvolvido, sobrecarregavam os neurônios a ponto de, apenas no instante em que todo o sistema nervoso estava prestes a fundir, a consciência finalmente vencer.
Ele saltou para a bola de fogo e agarrou a vara.
Os magos debandaram. Vários saíram da torre levitando.
Foram mais perspicazes do que os que usaram a escada, porque, cerca de trinta segundos depois, a torre desaparecia.
Continuou nevando em torno da coluna de breu, que zumbia.
Os magos sobreviventes que ousaram olhar para trás viram um pequeno objeto caindo devagar do céu, deixando para trás um rastro de chamas. O negócio atingiu o chão de pedras, onde ardeu um pouco, até a neve apagar o fogo.
Logo virava apenas um montículo.
Pouco tempo mais tarde, um vulto acocorado avançou pelo jardim, cavou a neve e pescou o objeto.
Era, ou tinha sido, um chapéu. A vida não fora generosa com ele. Grande parte da aba larga havia se queimado, a ponta já não existia, e era quase impossível ler as foscas letras prateadas. De qualquer forma, algumas haviam se desprendido. As que restavam diziam: MG.
O bibliotecário virou-se devagar. Estava completamente só, à exceção da coluna de breu ardente e dos flocos de neve a cair compassadamente.
O campus estava vazio. Havia outros chapéus pontudos pisoteados por pés aterrorizados, mas nenhum outro sinal de que houvera gente ali.
Todos os magos haviam sumido.
— Guerra?
— Uguê?
— Não tinha alguma coisa?-perguntou Peste, pegando o copo.
— Uguê?
— A gente deveria estar… tem alguma coisa que a gente deveria estar fazendo — disse Fome.
— É verrrdade. Um compromisso.
— O… — Peste fitou o drinque, pensativo. — Negócio.
Em desalento, os três miraram o balcão. O dono da taverna fugira havia muito tempo. Ainda havia várias garrafas fechadas.
— Quiabo — sugeriu Fome, afinal. — Era isso.
— Nããã.
— Apôs… apóstrofe — arriscou Guerra.
Os outros sacudiram a cabeça. Houve uma pausa demorada.
— O que significa “aprótrafe”? — indagou Peste, contemplando algum mundo particular.
— Adstringente — respondeu Guerra. — Eu acho.
— Então, não é isso.
— Acho que não — concordou Fome, taciturno.
Houve mais um silêncio demorado.
— Melhor tomar outra dose — sugeriu Guerra, endireitando-se na cadeira.
— Tem razão.
A cerca de oitenta quilômetros dali, e várias centenas de metros acima, Conina conseguiu, afinal, controlar o cavalo roubado e fazê-lo trotar com suavidade pelo céu, revelando uma das faltas de preocupação mais determinadas que o Disco já vira.
— Neve? — surpreendeu-se ela.
As nuvens avançavam em silêncio, vindas do Centro. Eram fofas, pesadas e não deveriam se mover tão depressa. Abaixo delas, a tempestade de neve cobria a paisagem de branco.
Não parecia o tipo de neve que cai tranqüilamente durante a noite e, de manhã, transforma a paisagem numa maravilha luminosa, de beleza rara e etérea. Parecia o tipo de neve que pretende deixar o mundo o mais gelado possível.
— Meio fora de época — comentou Nijel.
Ele olhou para baixo e imediatamente fechou os olhos. Creosoto observava, encantado.
— É assim que acontece? — perguntou. — Eu só ouvia falar nas histórias. Achei que brotasse do chão. Como os cogumelos.
— Essas nuvens não estão direitas — notou Conina.
— A gente pode descer agora? — pediu Nijel, num murmúrio.
— Quando a gente estava andando, não parecia tão ruim.
Conina ignorou-o.
— Esfregue a lâmpada — ordenou ela. — Quero saber sobre isso.
Nijel vasculhou a bolsa e pegou a lâmpada.
A voz do gênio se fez ouvir, metálica e distante, dizendo:
— Pedimos um pouco de calma… Estamos tentando fazer a ligação. Seguiu-se uma musiquinha tilintante, do tipo que um chalé suíço talvez produzisse se pudéssemos tocá-lo, até que um alçapão se esboçou no ar e o gênio apareceu. Ele olhou à volta, depois para eles.
— Ah, uau! — exclamou.
— Está acontecendo alguma coisa com o clima — mencionou Conina. — Por quê?
— Vocês não sabem? — surpreendeu-se o gênio.
— Estamos perguntando, não estamos?
— Bem, não sou nenhum entendido, mas me parece o Apocralipse.
— O quê?
O gênio encolheu os ombros.
— Os deuses sumiram — apontou. — E, de acordo com a lenda, isso significa que…
— Os Gigantes do Gelo — disse Nijel, num sussurro apavorado.
— Fale alto — pediu Creosoto.
— Os Gigantes do Gelo — repetiu Nijel, com uma ponta de irritação. — Os deuses os mantinham aprisionados no Centro. Mas no fim do mundo eles vão se libertar e fugir, naquelas geleiras medonhas, e recobrar seu antigo domínio, subjugando as chamas da civilização, até que o mundo se encontre exposto e congelado sob as hediondas estrelas frias, até que o próprio Tempo congele. Ou algo parecido.
— Mas não é hora do Apocralipse — objetou Conina, em desespero. — Quer dizer, tem de surgir um soberano terrível, tem de haver uma guerra horrenda, os quatro cavaleiros têm de aparecer e, então, o Calabouço das Dimensões vai se abrir no mundo…
Ela se deteve, o rosto quase tão branco quanto a neve.
— Ficar enterrado em milhares de metros de gelo me parece tão terrível quanto isso — argumentou o gênio.
Ele estendeu o braço e tirou a lâmpada das mãos de Nijel.
— Muchas desculpas — pediu. — Mas chegou a hora de liquidar meus bens nesta realidade. A gente se vê por aí.
Desapareceu até a cintura e, então, com um último grito fraco de “Uma pena o nosso almoço”, sumiu por completo.
Por entre os véus de neve, os três contemplaram o Centro.
— Deve ser minha imaginação — disse Creosoto. — Mas vocês estão ouvindo uma espécie de chiado?
— Cale a boca — pediu Conina, distraída.
Creosoto aproximou-se dela e apertou-lhe a mão.
— Animo — arriscou. — Não é o fim do mundo.
Pensou um pouco no que disse, e acrescentou:
— Desculpe. Modo de dizer.
— O que vamos fazer? — cortou ela.
Nijel se aprumou:
— Acho que deveríamos ir até lá e explicar.
Os outros dois viraram-se para ele com o tipo de expressão normalmente dispensada a messias ou imbecis completos.
— É — insistiu ele, com um pouco mais de segurança. — Deveríamos explicar.
— Explicar aos Gigantes do Gelo? — perguntou Conina.
— É.
— Desculpe — pediu Conina. — Será que entendi direito? Você acha que a gente deveria procurar os apavorantes Gigantes do Gelo e dizer a eles que existem muitas pessoas aqui que prefeririam que eles não passassem pelo Disco, esmagando todo o mundo com montanhas de gelo, e solicitar que reconsiderassem o assunto. E isso o que você acha que a gente deve fazer?
— É. Exatamente.
Conina e Creosoto entreolharam-se. Nijel mantinha-se sentado com altivez na sela, um leve sorriso no rosto.
— Os seus mulos estão incomodando? — perguntou o xerinfe.
— Múnus — corrigiu Nijel, com calma. — Não está me incomodando nada. Só que preciso ter algum ato de bravura antes de morrer.
— Mas é exatamente isso — observou Creosoto. — Essa é a triste questão. Você vai ter o seu ato de bravura e morrer.
— Que alternativa temos? — indagou Nijel.
Eles consideraram a pergunta.
— Acho que não sou muito boa em explicar — lamentou Conina, baixinho.
— Eu sou — afirmou Nijel. — Estou sempre tendo de explicar.
As partículas dispersas do que havia sido a mente de Rincewind se juntaram e subiram pelas camadas escuras do inconsciente, como cadáver de três dias flutuando até a superfície.
A mente investigou as lembranças mais recentes, da mesma maneira como se toca casca fresca de ferida.
O mago recordou qualquer coisa sobre uma vara e uma dor tão intensa que era como se lhe enfiassem um cinzel entre cada uma das células do corpo e martelassem.
Lembrou-se da vara fugindo, arrastando-o consigo. Depois lhe ocorreu a parte horrorosa em que Morte surgia e passava por ele. A vara se contorcia e, de repente, ganhava vida. Aí Morte falava:
— IPSLORE, O VERMELHO, VOCÊ É MEU.
E agora aquilo.
Pela textura, Rincewind estava deitado em areia. Numa areia muito fria.
Arriscou ver um troço medonho qualquer e abriu os olhos.
A primeira coisa que viu foi seu braço esquerdo, surpreendentemente acompanhado da mão. Era o mesmo negócio imundo de sempre. Ele vinha esperando ver um coto. Parecia noite. A praia, ou o que quer que fosse aquilo, estendia-se em direção a uma fileira de montanhas baixas, sob o céu noturno, coberto de estrelas.
Pouco mais perto, havia uma linha irregular na areia prateada. Ele ergueu a cabeça e viu uma profusão de gotículas de metal fundido. Era octirona, metal tão intrinsecamente mágico que nenhuma forja no Disco jamais conseguira aquecer.
— Ah — disse Rincewind. — Então nós ganhamos.
Ele se deixou cair outra vez.
Depois de algum tempo, a mão direita levantou-se automaticamente e apalpou o alto da cabeça. Em seguida, apalpou as laterais da cabeça. Depois começou a tatear, cada vez com maior urgência, a areia à volta.
Por fim, deve ter comunicado sua preocupação ao resto do corpo, porque o mago logo se sentou e resmungou:
— Ah, inferno!
O chapéu não estava em lugar nenhum. Mas dava para ver um pequeno vulto branco deitado na areia, a poucos metros dali, perto da…
Coluna de luz.
Ela oscilava e zumbia no ar, um canal tridimensional para outro lugar. Ocasionais rajadas de neve sopravam dali. Era possível ver imagens tortas na luz, que talvez fossem prédios ou paisagens distorcidas pela curvatura estranha. Mas não dava para ver com muita clareza, por causa das sombras altas que a cercavam.
A mente humana é um negócio impressionante. Ela opera em vários níveis ao mesmo tempo. E, de fato, enquanto Rincewind gastava tutano reclamando e procurando o chapéu, uma parte interior de seu cérebro observava, ponderava, analisava e fazia comparações.
Foi até o cerebelo, bateu-lhe de leve no ombro, botou uma mensagem em sua mão e saiu correndo.
A mensagem dizia mais ou menos o seguinte: Espero que eu esteja bem. A última experiência mágica foi demais para o castigado tecido da realidade. Abriu um buraco. Eu estou no Calabouço das Dimensões. E as coisas na minha frente são… as Coisas. Foi muito bom me conhecer.
Particularmente, a coisa que se encontrava próxima de Rincewind tinha, pelo menos, seis metros de altura. Parecia um cavalo morto, desenterrado após três meses e apresentado a uma gama de novas experiências, entre as quais, ao menos uma incluía um polvo. Não havia notado Rincewind. Estava concentrada demais na luz. Rincewind arrastou-se até o corpo inerte de Coin e cutucou-o.
— Você está vivo? — perguntou. — Se não estiver, prefiro que não responda.
Coin se virou e, com olhos intrigados, fitou o mago. Depois de um tempo, disse:
— Eu me lembro…
— Melhor não — cortou Rincewind.
O menino tateou a areia.
— Não está mais aqui — informou o mago, num murmúrio.
O menino parou de tatear.
Rincewind ajudou-o a se sentar. Coin mirou a areia fria e prateada, depois o céu, depois as Coisas distantes, depois Rincewind.
— Não sei o que fazer — lamentou.
— Sem problema. Eu nunca soube o que fazer — observou Rincewind, com alegria forçada. — A vida inteira andei na incerteza. — Ele hesitou. — Acho que isso se chama ser humano, ou qualquer coisa assim.
— Mas eu sempre soube o que fazer.
Rincewind abriu a boca para dizer que chegara a ver um pouco do que ele estava falando, mas mudou de idéia. Em vez disso, arriscou:
— Anime-se! Veja o lado bom! Poderia ser pior!
Coin correu os olhos ao redor.
— Em que aspecto, exatamente? — perguntou, com a voz já mais normalizada.
— Hum.
— Que lugar é esse?
— Uma espécie de outra dimensão. Acho que a magia irrompeu aqui, e nós viemos junto.
— E essas coisas?
Ambos olharam as Coisas.
— Acho que são as Coisas. Estão tentando voltar pelo canal — explicou Rincewind. — Não é fácil, por causa dos níveis de energia, ou algo assim. Já tive uma aula sobre isso. Hã…
Coin estendeu a mão branca e magra para a testa de Rincewind.
— Posso…? — começou ele.
Rincewind arrepiou-se ante o toque.
— Pode o quê? — perguntou.
— Dar uma olhada dentro da sua cabeça?
— Aaargh.
Está uma bagunça, aqui. Não me admira que você não encontre nada.
— Eeergh.
Precisa de uma faxina.
— Ooogh.
— Ah.
Rincewind sentiu a presença se retirar. Coin franziu a testa.
— Não podemos deixá-las passar — objetou o menino. — Elas têm poderes horríveis. Estão tentando aumentar o canal, e podem conseguir. Procuram entrar no nosso mundo desde… — ele franziu as sobrancelhas — outras iras.
— Eras — corrigiu Rincewind.
Coin abriu a mão que estava fechada e mostrou a Rincewind uma pequena pérola cinza.
— Sabe o que é isso? — perguntou.
— Não. O que é?
— Eu… não me lembro. Mas temos de devolvê-la.
— Tudo bem. Use a fonticeria. Estoure isso tudo aqui, e vamos para casa.
— Não. Elas vivem de magia. Só pioraria a situação. Não posso usar magia.
— Tem certeza? — insistiu Rincewind.
— Sua memória era bem clara a esse respeito.
— Então, o que vamos fazer?
— Não sei!
Rincewind pensou um pouco no assunto e, com ar de determinação, começou a tirar a última meia.
— Não tem meio tijolo — sussurrou, para ninguém em especial. — Vou ter de usar areia.
— Você vai atacar as Coisas com essa meia?
— Não. Vou fugir. A meia é para quando me seguirem.
As pessoas já estavam voltando para Al Khali, onde a torre destruída não passava de um monte enfumaçado de pedras. Algumas almas corajosas prestavam atenção nos escombros, pensando que talvez houvesse sobreviventes a serem resgatados ou roubados, ou ambos.
E, em meio ao entulho, poder-se-ia ouvir a seguinte conversa:
— Tem alguma coisa se mexendo ali debaixo!
— Debaixo daquilo? Pelas duas barbas de Imtal, você escutou mal. Aquilo deve pesar uma tonelada.
— Aqui, irmãos!
Aí se ouviriam muitos suspiros, e então:
— É uma arca!
— Pode ter tesouro, vocês não acham?
— Estão brotando pernas, pelas Sete Luas de Nasreem!
— Cinco luas…
— Aonde ela foi? Aonde ela foi?
— Não interessa, não tem importância. Agora, vamos deixar uma coisa bem clara: de acordo com a lenda, são cinco luas…
Em Klatch, levam a mitologia muito a sério. Só não acreditam mesmo é na vida real.
Os três cavaleiros sentiram a mudança logo ao descer pelas nuvens carregadas de neve, na extremidade mais ao Centro da Planície Sto. Havia um cheiro forte no ar.
— Estão sentindo? — perguntou Nijel. — Eu me lembro bem de quando era pequeno e ficava deitado na cama, no primeiro dia de inverno, sentindo o cheiro…
As nuvens se abriram, e lá embaixo — enchendo as altas planícies de ponta a ponta — estavam os rebanhos dos Gigantes do Gelo.
Eles se estendiam por muitos quilômetros em todas as direções, e o estrondo da marcha acelerada enchia a atmosfera.
As geleiras-touros seguiam na frente, levantando grandes pedaços de terra ao se lançarem implacavelmente adiante. Atrás delas, seguia a grande massa de vacas e bezerros, deslizando no chão já nivelado pelas líderes.
Essas geleiras assemelhavam-se às geleiras conhecidas por nós, do mesmo modo como um leão dormindo na sombra se assemelha a 140 quilos de músculos perversamente coordenados, saltando na nossa direção com a boca aberta.
— … e… e… eu chegava à janela…
Sem nenhum comando adicional do cérebro, a boca de Nijel parou.
O gelo apoderava-se da planície, avançando sob uma grande nuvem de vapor seco. O chão tremia à medida que as líderes passavam, e era óbvio, para quem estava olhando, que quem quer que fosse deter aquilo precisaria de mais do que apenas um quilo de sal-gema e uma pá.
— Vá dar suas explicações — disse Conina. — Mas é melhor gritar. Nijel olhava o rebanho, aturdido.
— Acho que estou vendo uns vultos — notou Creosoto. — Olhem, em cima dos… negócios da frente.
Nijel espiou por entre os flocos de neve. Havia, de fato, algumas criaturas andando sobre as geleiras. Eram seres humanos, ou humanóides, ou humanescos. Não pareciam muito grandes.
Isso se dava porque as próprias geleiras eram imensas, e Nijel não era muito bom em perspectiva. Quando os cavalos baixaram vôo sobre a geleira da frente — um touro enorme, bastante fendido e marcado com morainas —, ficou evidente que um dos motivos de os Gigantes do Gelo se chamarem Gigantes do Gelo era o fato de serem gigantes.
O outro motivo era serem feitos de gelo.
Um vulto do tamanho de uma casa grande estava sentado sobre o touro, incitando-o a esforços maiores com a pua enfiada numa vara comprida. A criatura era rugosa e reluzia verde e azul. Havia uma faixa prateada estreita nos cachos nevados, e os olhos eram pequeninos, negros e fundos, como pedras de carvão.[20]
Ouviu-se o estrondo de quando as geleiras dianteiras se chocaram contra uma floresta. Alguns pássaros alçaram vôo em desespero. Chovia neve e galhos ao redor de Nijel no instante em que ele se aproximou do gigante, galopando.
O rapaz pigarreou.
— Hã… — disse. — Com licença.
A frente da arrebentação de terra, neve e troncos quebrados, um rebanho de caribus corria apavorado, com os cascos traseiros a poucos metros da derrubada geral.
Nijel tentou outra vez.
— Ei! — gritou.
O gigante virou-se.
— O gue vozê guer? — perguntou. — Zuma daqui, pezoa guente.
— Desculpe, mas será que isso é mesmo necessário?
O gigante encarou-o, estupefato. Virou-se devagar e avistou o resto do rebanho, que parecia se estender até o Centro. Voltou a olhar para Nijel.
— E — respondeu. — Ajo que zim. Zenão, por gue o faríamos?
— Só que tem muitas pessoas que prefeririam que não o fizessem, entende? — argumentou Nijel.
Uma espiral de pedra surgiu na frente da geleira, balançou por um segundo e desapareceu. Ele acrescentou:
— Crianças e animaizinhos também.
— Vão zofrer pelo progrezo. E a noza hora, a gente veio reivindigar o mundo — resmungou o gigante. — Um mundo inteiro de gelo. Zegundo a inevitabilidade da hiztória e o triunfo da termodinâmica.
— E, mas vocês não precisam fazer isso — insistiu Nijel.
— Nós gueremos — rebateu o gigante. — Os deuses ze foram. E derrubamos zuperztizões antigas.
— Congelar o mundo inteiro não me parece nada progressista — argumentou Nijel.
— Nós goztamos.
— Tudo bem, tudo bem — disse Nijel, no tom alucinado de quem tenta ver todos os lados da questão e está certo de que é possível chegar a uma solução desde que pessoas de boa vontade se disponham a sentar à mesa e discutir o assunto racionalmente, como seres humanos sensatos. — Mas seria a melhor hora? O mundo está pronto para o triunfo do gelo?
— E melhor gue ezteja — concluiu o gigante, e brandiu a aguilhada para Nijel.
A vara atingiu o rapaz no peito, arrancando-o da sela e jogando-o na própria geleira. Ele rodopiou, caiu de braços e pernas abertas sobre a neve e rolou por uma das ladeiras em meio ao gelo e à lama.
Conseguiu se pôr de pé e tentou enxergar na névoa fria. Outra geleira vinha em sua direção.
Conina também. Ela se inclinou quando o cavalo atravessou a névoa, pegou Nijel pela roupa bárbara de couro e jogou-o à frente do animal.
Enquanto os dois alçavam vôo novamente, ele vociferou:
— Sujeito frio, desgraçado! Por um instante, achei que estivesse conseguindo alguma coisa. Não dá para conversar com certa gente.
O rebanho atingiu outra colina, desbastando boa parte dela. E, salpicada de cidades, a Planície Sto jazia indefesa adiante.
Rincewind acercou-se da Coisa mais próxima, segurando Coin numa das mãos e balançando a meia de areia na outra.
— Então, nada de magia, não é? — perguntou.
— E — respondeu o menino.
— Aconteça o que acontecer, você não pode fazer mágica?
— Exatamente. Aqui, não. Se não usamos magia, elas não têm muito poder aqui. Agora, quando passam para o outro lado…
A voz se perdeu.
— Um horror — murmurou Rincewind.
— Terrível — concordou Coin.
Rincewind suspirou. Queria estar com o chapéu. Teria de passar sem ele.
— Muito bem — disse. — Quando eu gritar, você corre para a luz. Entendeu? Não olhe para trás. Por nada neste mundo.
— Por nada neste mundo? — perguntou Coin, vacilante.
— Por nada neste mundo — confirmou Rincewind, abrindo um sorriso de bravura. — Por mais terríveis que sejam os ruídos que você escutar.
O mago ficou vagamente encorajado ao ver a boca de Coin virar um “O” de pavor.
— Aí — continuou ele —, quando chegar ao outro lado…
— Eu faço o quê?
Rincewind hesitou.
— Não sei — respondeu. — O que conseguir. As mágicas que quiser. Qualquer coisa. O que for preciso para detê-las. E então… hum…
— O quê?
Rincewind espiou a Coisa, que ainda contemplava a luz.
— Se… sabe… alguém sair dessa, sabe, e tudo ficar bem depois de tudo, eu gostaria que você meio que dissesse às pessoas que eu meio que estive aqui. Talvez pudessem escrever isso em algum lugar. Eu não quero estátua nem nada — acrescentou, com altivez.
Depois de um tempo, emendou:
— Acho que você precisa assoar o nariz.
Coin obedeceu, na bainha do manto, e apertou a mão de Rincewind.
— Se algum dia você… — começou — … quer dizer, você é o primeiro… foi um grande… sabe, eu nunca… — A voz se perdeu, e ele falou: — Eu só queria que você soubesse disso.
— Tem mais uma coisa que eu estava tentando dizer-observou Rincewind, soltando a mão. O mago pareceu indeciso por um instante, e acrescentou: — Ah, sim. E essencial você se lembrar de quem realmente é. Isso é muito importante. Não devemos deixar os outros fazerem isso por nós. Porque sempre acabam escorregando.
— Vou tentar me lembrar disso — prometeu Coin.
— E muito importante — frisou Rincewind, quase para si mesmo. — Agora, acho melhor você correr.
Rincewind aproximou-se da Coisa. A criatura tinha pernas de galinha, mas, por sorte, a maior parte do corpo estava escondida no que pareciam asas dobradas.
Era hora de algumas últimas palavras, pensou ele. O que diria agora seria, provavelmente, muito importante. Talvez fossem palavras a ser lembradas, passadas a gerações futuras e até gravadas em lajes de granito.
Palavras sem muitas letras curvilíneas, portanto.
— Eu queria não estar aqui — murmurou.
Ergueu a meia, girou-a uma ou duas vezes e atingiu o que esperava ser a rótula da Coisa.
Ela soltou um guincho agudo, girou freneticamente com as asas se abrindo, investiu vagamente a cabeça predatória contra Rincewind e recebeu outro golpe da meia.
Quando a Coisa cambaleou para trás, Rincewind correu os olhos ao redor e viu Coin parado no mesmo lugar em que o havia deixado. Horrorizado, notou que o garoto começava a avançar em direção a ele, com as mãos instintivamente erguidas para lançar a magia que, ali, seria a maldição de ambos.
— Fuja, idiota! — gritou o mago, quando a Coisa começou a se recompor para o contra-ataque. Do nada, ocorreram a ele as palavras certas: — Você sabe o que acontece com os meninos que não se comportam.
Coin empalideceu, deu meia-volta e correu para a luz. Avançava com dificuldade, lutando contra a ladeira entrópica. A imagem distorcida do mundo virado às avessas pairava a alguns metros de distância, depois centímetros, sempre oscilando…
Um tentáculo fechou-se em sua perna, fazendo-o tropeçar.
Ele agitou as mãos ao cair, e uma delas tocou neve. Imediatamente, foi agarrada por outra coisa que parecia uma luva de couro quente e macia, mas sob cujo toque suave havia uma força inacreditável, e que o puxou adiante, levando junto o que quer que o havia pegado.
Luz e escuridão se alternaram ao redor, e de repente ele deslizava sobre um chão de pedras coberto de gelo.
O bibliotecário soltou Coin e se levantou, com um grande pedaço de pau na mão. Por um instante, o macaco recuou para o breu. O ombro, o cotovelo e o punho do braço direito estenderam-se com a graça de uma alavanca. E, num movimento tão irrefreável quanto o nascimento da inteligência, ele desferiu o golpe. Ouviu-se o barulho de esmagamento e um guincho de dor, e a pressão sobre a perna de Coin desapareceu.
A coluna escura ondulou. Dela, vinham gritos e baques distorcidos pela distância.
Coin ergueu-se com dificuldade e começou a correr de volta para a escuridão, mas dessa vez o braço do bibliotecário bloqueou o caminho.
— Não podemos deixá-lo lá!
O macaco encolheu os ombros.
Veio outro estalido da escuridão, seguido por um momento de silêncio quase absoluto.
Mas apenas quase absoluto. Ambos imaginaram ouvir a distância, mas muito nitidamente, o ruído cada vez mais longínquo de pés correndo.
O barulho repercutiu no mundo em que se encontravam. O macaco correu os olhos à volta e empurrou Coin para o lado quando um negócio atarracado com centenas de perninhas surgiu correndo pelo jardim em ruína e saltou para a escuridão oscilante, que bruxuleou uma última vez e desapareceu.
Houve uma súbita agitação de neve onde ele estivera.
Coin se soltou do bibliotecário e correu para o círculo, que já se mostrava branco. Os pés do menino tocaram um bocado de areia fina.
— Ele não saiu! — exclamou o garoto.
— Oook — concordou o bibliotecário, de modo filosófico.
— Achei que fosse sair. No último minuto.
— Oook?
Coin olhou fixamente para o chão de pedras, como se pudesse mudar o que viu pela força do pensamento.
— Ele está morto?
— Oook — respondeu o bibliotecário, tentando indicar que Rincewind estava num lugar onde até mesmo coisas como o tempo e o espaço eram um pouco duvidosas, e que não adiantava muito especular sobre seu estado exato àquela altura da vida, se é que ele de fato se encontrava em alguma altura da vida. E que, fosse como fosse, o mago poderia até aparecer no dia seguinte ou, sendo o caso, no dia anterior e, por fim, que, se houvesse a menor chance de sobrevivência, Rincewind seguramente sobreviveria.
— Ah — disse Coin.
Ele observou o bibliotecário caminhar pesadamente de volta à Torre de Arte e sentiu uma solidão terrível.
— Ei! — gritou.
— Oook?
— O que eu faço agora?
— Oook?
Coin agitou os braços, em desespero.
— Talvez eu pudesse fazer alguma coisa — sugeriu, com uma voz que beirava o pânico. — Você não acha que seria boa idéia? Quer dizer, eu poderia ajudar as pessoas. Você, com certeza, gostaria de voltar a ser gente, não gostaria?
O eterno sorriso do bibliotecário ergueu-se o suficiente para revelar os dentes.
— Tudo bem, talvez não — apressou-se em dizer Coin. — Mas tem outras coisas que eu poderia fazer, não tem?
O bibliotecário encarou-o durante algum tempo, então voltou os olhos para a mão do menino. Cheio de culpa, Coin se sobressaltou e abriu os dedos.
O macaco pegou a pequena bola prateada pouco antes de ela atingir o chão e suspendeu-a a altura do olho. Cheirou-a, balançou-a de leve e colocou-a junto ao ouvido.
Depois levantou o braço e atirou-a o mais longe possível.
— O que… — começou Coin, e caiu estirado na neve quando o bibliotecário o empurrou e se jogou sobre ele.
A bolinha girou no ar e tombou no chão. Houve um ruído de corda de harpa se partindo, um breve murmúrio de vozes incompreensíveis, um sopro de vento quente, e os deuses do Disco estavam livres.
Também estavam muito irritados.
— Não tem nada que a gente possa fazer? — perguntou Creosoto.
— Não — respondeu Conina.
— O gelo vai vencer? — perguntou Creosoto.
— Vai — respondeu Conina.
— Não — esbravejou Nijel.
Ele tremia de raiva, ou talvez de frio, e estava quase tão branco quanto as geleiras que passavam trovejando abaixo deles. Conina suspirou.
— Como você acha… — começou ela.
— Ponham-me lá embaixo, alguns minutos à frente deles — exigiu Nijel.
— Não sei como isso ajudaria.
— Não pedi sua opinião — rebateu Nijel, em voz baixa. — Só façam o que eu disse. Ponham-me lá embaixo, um pouco à frente deles, para eu ter tempo de me preparar.
— De se preparar para quê?
Nijel não respondeu.
— Eu perguntei — irritou-se Conina — de se preparar…
— Quieta!
— Não sei por que…
— Olhe aqui — disse Nijel, com a paciência que fica a um passo do assassinato a machadadas. — O gelo vai cobrir o Disco inteiro, certo? Todos vão morrer, não é? Menos a gente, durante algum tempo, até esses cavalos quererem comer, usar o banheiro ou o que for, o que não nos vale de muita coisa, a não ser pelo fato de que Creosoto talvez tenha tempo de escrever um soneto sobre como ficou frio de repente e como a espécie humana está prestes a acabar, e, nessas circunstâncias, eu gostaria de deixar bem claro que não vou tolerar objeções, ficou entendido?
Ele parou para tomar fôlego, tremendo feito corda de harpa.
Conina hesitou. Abriu e fechou a boca algumas vezes, considerando objetar. Pensou melhor.
Eles encontraram uma pequena clareira numa floresta de pinheiros, dois ou três quilômetros à frente do rebanho, embora fosse nítido o barulho das geleiras e houvesse vapor sobre as árvores, sem dizer que o chão tremia como pele de tambor.
Nijel avançou para o centro da clareira e treinou alguns golpes com a espada. Os outros o observavam, pensativos.
— Se você não se importa — sussurrou Creosoto para Conina —, eu vou embora. E nessas horas que a lucidez perde seus atrativos, e tenho certeza de que o fim do mundo vai parecer melhor depois de umas bebidas. Você acredita no Paraíso, ó flor das faces de pêssego?
— Não.
— Ah — lamentou Creosoto. — Bem, nesse caso, provavelmente não vamos nos ver mais. — Ele suspirou. — Que pena! Tudo isso por causa do tal múnus. Hum. É claro que, se por acaso…
— Tchau — cortou Conina.
Com tristeza, Creosoto assentiu, afastou o cavalo e desapareceu sobre as copas das árvores.
Em torno da clareira, caía neve dos galhos. O estrondo das geleiras cada vez mais próximas enchia a atmosfera.
Nijel levou um susto quando ela o cutucou no ombro, e deixou cair a espada.
— O que está fazendo aqui? — perguntou, tateando a neve em desespero.
— Olhe, eu não quero me intrometer nem nada — murmurou Conina. — Mas o que exatamente você tem em mente?
Já era possível avistar o monte de neve e terra impelido pelas geleiras. Ao estrondo da marcha, agora se juntava o ruído dos troncos de árvores se partindo. E, avançando implacavelmente sobre as copas, tão alto que a princípio se confundiam com o céu, divisavam-se as dianteiras verde-azuladas.
— Nada — admitiu Nijel. — Nadinha de nada. Mas temos de opor resistência. É o que há a fazer. É para o que estamos aqui.
— Não vai fazer diferença — argumentou Conina.
— Para mim, vai. Se vamos morrer de qualquer maneira, prefiro morrer assim. Heroicamente.
— E heróico morrer assim? — perguntou Conina.
— Eu acho que é — respondeu ele. — E, quando o assunto é morte, só conta uma opinião.
— Ah.
Dois veados entraram às cegas na clareira, ignoraram os seres humanos amedrontados e fugiram em disparada.
— Você não precisa ficar — disse Nijel. — Eu tenho o meu múnus, entende?
Conina olhou o dorso das próprias mãos.
— Acho que devo, sim — disse. E acrescentou: — Sabe, eu achei que, se a gente pudesse se conhecer melhor…
— Sr. e Sra. Lebremar, era isso o que você tinha em mente? — perguntou ele, com rispidez.
Ela arregalou os olhos.
— Bem… — começou.
— Qual dos dois seria você? — perguntou ele.
A geleira da frente atingiu a clareira, com o cimo perdido numa nuvem de sua própria criação.
No mesmo instante, as árvores do lado oposto se curvaram ao sopro de um vento quente chegado da Borda. O vento vinha carregado de vozes — irritadas, severas — e entrou nas nuvens como ferro quente em água fria.
Conina e Nijel jogaram-se na neve, que logo derreteu. Estourou alguma coisa parecida com uma tempestade, cheia do que, no início, eles imaginaram tratar-se de gritos, mas que depois pareciam discussões acaloradas. Durou um bom tempo, e começou a se dissipar, na direção do Centro.
Água morna enchia a roupa de Nijel. Ele se levantou com cuidado e cutucou Conina.
Juntos, os dois avançaram pela neve derretida até o alto do morro, subiram por um amontoado de pedras e galhos quebrados, e contemplaram o cenário.
As geleiras recuavam sob uma nuvem cheia de luz. Atrás delas, a paisagem era uma rede de lagos interligados.
— Fomos nós que fizemos isso? — perguntou Conina.
— Seria bom acreditar que sim, não seria? — indagou Nijel.
— Seria, mas fomos… — começou ela.
— Provavelmente não. Quem sabe? Vamos procurar um cavalo — propôs ele.
— O apogeu — disse Guerra. — Ou algo assim. Tenho quase certeza.
Eles haviam saído da taverna e estavam sentados num banco, ao sol vespertino. Até Guerra se convencera a tirar parte da armadura.
— Não sei — objetou Fome. — Acho que não.
Peste fechou os olhos incrustados e se recostou nas pedras aquecidas.
— Eu acho — considerou — que era alguma coisa sobre o fim do mundo.
Meditativo, Guerra coçou o queixo. Soltou um soluço.
— Do mundo inteiro? — perguntou.
— Eu acho.
Guerra pensou no assunto.
— Então ficamos de fora — concluiu.
O povo retornava a Ankh-Morpork, que já não era uma cidade vazia, feita de mármore, mas voltara a ser o que sempre fora, estendendo-se aleatória e colorida como uma poça de vômito do lado de fora da lanchonete 24 horas da História.
A Universidade havia sido reconstruída, ou melhor, havia reconstruído a si mesma. Ou, de algum modo, jamais fora destruída: cada fio de hera, cada batente apodrecido de janela estava de volta ao seu lugar. O fonticeiro tinha se oferecido para deixar tudo novo — a madeira brilhando, as pedras imaculadas —, mas o bibliotecário se mantivera firme na decisão. Queria tudo velho.
Os magos chegaram com o alvorecer, sozinhos ou em grupos de dois, e correram para os quartos antigos, tentando evitar olhares alheios, tentando lembrar um passado recente que já se tornava irreal e imaginário.
Conina e Nijel chegaram por volta da hora do café-da-manhã e procuraram uma estrebaria de aluguel para o cavalo de Guerra.[21]
Foi Conina quem insistiu para que procurassem Rincewind na Universidade, e que, portanto, viu os livros antes de todo mundo.
Eles saíam voando da Torre de Arte, contornavam os prédios da Universidade e se precipitavam pela porta da biblioteca reencarnada. Um ou dois volumes mais atrevidos perseguiam pardais ou planavam como águias sobre o pátio.
O bibliotecário estava recostado na porta, observando suas incumbências com olhos benévolos. Ele balançou as sobrancelhas para Conina — o mais perto que já chegara de um cumprimento convencional.
— O Rincewind está aqui? — perguntou ela.
— Oook.
— O quê?
O macaco não respondeu; apenas tomou os dois pela mão e, caminhando entre eles como um saco entre dois postes, conduziu-os à torre.
Havia algumas velas acesas no interior, e eles avistaram Coin, sentado num banco. O bibliotecário levou-os até o menino, como um criado velho na mais antiga das famílias, e retirou-se.
Coin olhou para os dois.
— Ele sabe quando não o entendem — explicou. — Extraordinário, não é?
— Quem é você? — perguntou Conina.
— Coin — respondeu Coin.
— É aluno aqui?
— Acho que estou aprendendo um bocado.
Nijel mantinha-se junto às paredes, tocando-as de vez em quando. Tinha de haver uma boa razão para não terem caído, mas, se houvesse, não se encontrava nos limites de conhecimento da engenharia civil.
— Vocês estão procurando Rincewind? — indagou Coin.
Conina franziu a testa.
— Como adivinhou?
— Ele me disse que algumas pessoas viriam procurá-lo.
Conina relaxou.
— Desculpe — pediu. — Passamos por alguns momentos difíceis. Achei que pudesse ser magia. Ele está bem? O que aconteceu? Ele lutou contra o fonticeiro?
— Ah, lutou. E venceu. Foi muito… interessante. Eu vi tudo. Mas, depois, ele teve de ir embora — disse Coin, como se falasse algo decorado.
— Do nada? — surpreendeu-se Nijel.
— É.
— Eu não acredito — protestou Conina.
Ela estava começando a se agachar, os nós dos dedos embranquecendo.
— É verdade — rebateu Coin. — Tudo que eu digo é verdade. Tem de ser.
— Eu quero… — começou Conina.
Mas Coin se levantou, estendeu o braço e disse:
— Pare.
Ela congelou. Nijel se retesou quando começava a franzir a testa.
— Vocês vão sair daqui — disse Coin, com voz equilibrada e tranqüila. — E não vão mais fazer perguntas. Vão se sentir completamente satisfeitos. Já têm todas as respostas. Vão viver felizes para sempre. Vão se esquecer de ter ouvido essas palavras. Agora saiam.
Os dois se viraram lenta e rigidamente, como marionetes, e avançaram para a porta. O bibliotecário abriu-a, deixou-os passar e fechou-a.
Olhou para Coin, que voltou a se sentar no banco.
— Tudo bem, tudo bem — irritou-se o menino. — Mas foi só um pouquinho de magia. Não tive escolha. Você mesmo disse que as pessoas precisavam esquecer.
— Oook?
— Não consigo evitar! É fácil demais mudar tudo! — Ele pôs as mãos na cabeça. — Só tenho de pensar em alguma coisa! Não posso ficar, tudo em que eu toco dá errado, é como tentar dormir sobre um monte de ovos! Esse mundo é delicado demais! Por favor, me diga o que fazer!
O bibliotecário sentou-se e girou o corpo algumas vezes, sinal evidente de pensamento profundo.
Não se sabe exatamente o que ele disse, mas Coin sorriu, assentiu e apertou a mão do bibliotecário. Depois, abriu as próprias mãos, agitou-as no ar e entrou em outro mundo. Havia um lago e montanhas distantes, e alguns faisões o observavam, desconfiados, debaixo das árvores. Era a magia que todos os fonticeiros acabavam aprendendo.
Os fonticeiros nunca se tornavam parte do mundo. Apenas usavam-no durante algum tempo.
Da metade do gramado, ele olhou para trás e acenou para o bibliotecário. O macaco fez que sim com a cabeça, à guisa de incentivo.
Então a bolha encolheu, e o ultimo fonticeiro partiu deste para um mundo próprio.
Embora não tenha muito a ver com a história, é interessante notar que, a cerca de oitocentos quilômetros dali, um pequeno bando, ou, nesse caso, rebanho, de aves viesse abrindo caminho entre as árvores. Elas tinham cabeça de flamingo, corpo de peru e perna de lutador de sumo. Andavam de maneira espasmódica e bamboleante, como se a cabeça fosse presa aos pés por fitas elásticas. Pertenciam a uma espécie singular mesmo para a fauna do Disco, já que seu principal meio de defesa era fazer o predador rir tanto que conseguiam fugir antes de ele se recuperar.
Rincewind teria ficado ligeiramente satisfeito em saber que se chamavam múnus.
O movimento estava fraco na Tambor Remendado. O troll acorrentado ao batente da porta sentou-se à sombra e tirou alguém dos dentes.
Creosoto cantava baixinho para si mesmo. Ele havia descoberto a cerveja e não estava tendo de pagar pela bebida, porque a moeda forte dos elogios — raramente empregada pelos namorados de Ankh — vinha surtindo um efeito inacreditável na filha do proprietário. Era uma menina grandona, afável, com o corpo da mesma cor e — falando sem rodeios — da mesma forma de um pão cru. Ela estava intrigada. Ninguém jamais dissera que seus seios pareciam melões adornados de jóias.
— Com certeza — disse o xerinfe, escorregando do banco. — Sem dúvida.
Fossem os grandes, amarelos, ou os pequenos verdes com pele rugosa, pensou ele.
— E o que você falou dos meus cabelos? — perguntou ela, trazendo-o de volta ao banco e enchendo o copo.
— Ah — o xerinfe franziu a testa. — São como um rebanho de cabras a pastar nas colinas de Monte Não Sei Quê, sem dúvida alguma. Quanto às suas orelhas — acrescentou ele, às pressas —, são conchas rosadas que adornam as areias beijadas pelo mar de…
— Como assim, um rebanho de cabras? — perguntou ela.
O xerinfe hesitou. Sempre achara aquele um de seus melhores versos. Agora, pela primeira vez, ele se deparava com o famoso caráter prático de Ankh-Morpork. Por incrível que pareça, ficou impressionado.
— Quer dizer, em tamanho, forma ou cheiro? — insistiu a menina.
— Eu acho — respondeu o xerinfe — que a frase que eu tinha em mente era exatamente não são como um rebanho de cabras.
— Ah.
A garota puxou o garrafão para si.
— E acho que aceitaria outro copo — acrescentou ele, de maneira indistinta. — E então… e então… — olhou de esguelha para a garota e decidiu correr o risco. — Você é boa contadora de histórias?
— O quê?
Ele lambeu os lábios, subitamente secos.
— Conhece muitas histórias? — murmurou.
— Ah, conheço. Pencas.
— Pencas? — gemeu Creosoto.
A maioria das concubinas só sabia uma ou duas.
— Centenas. Por que, você quer ouvir uma?
— Agora?
— Se quiser. Não tem muito movimento.
Talvez eu tenha morrido, pensou Creosoto. Talvez isso seja o Paraíso. Ele segurou as mãos dela.
— Sabe — disse —, faz muito tempo que não ouço uma boa narrativa. Mas não quero que você faça nada que não queira.
Ela afagou o braço dele. Que cavalheiro, pensou. Comparado a alguns daqui.
— Tem uma que minha avó costumava contar. Sei até de trás prá frente — disse.
Com calor, Creosoto bebericou a cerveja e encarou a parede. Centenas, pensou ele. E ainda sabe algumas de trás pra frente.
A menina pigarreou e, numa voz cadenciada, que fazia os batimentos cardíacos de Creosoto dispararem, começou:
— Houve um homem, e ele teve oito filhos…
O Patrício estava sentado à janela, escrevendo. As lembranças das duas últimas semanas eram um tanto difusas, e ele não gostava nada disso.
Um empregado havia acendido uma lamparina para dissipar o crepúsculo, e algumas mariposas voavam em torno dela. O Patrício as observava com atenção. Por algum motivo, sentia-se pouco à vontade perto de vidro, mas, ao olhar fixamente para os insetos, notou que não era isso o que o incomodava.
O que o incomodava era o fato de estar contendo uma ânsia terrível de pegá-los com a língua.
Deitado aos pés do dono, Wuffles latia em seus sonhos.
As luzes acendiam-se por toda a cidade, mas os últimos raios do ocaso ainda iluminaram as gárgulas, que ajudavam umas às outras na longa escalada até o telhado.
O bibliotecário observou-as da porta aberta, enquanto se cocava, pensativo. Deu meia-volta e fechou a porta para a noite.
Fazia calor na biblioteca. Sempre fazia calor na biblioteca, porque a magia dispersa que produzia aquele brilho também esquentava o ambiente.
O bibliotecário olhou com satisfação para os livros, fez as últimas rondas dos corredores adormecidos, arrastou o cobertor para debaixo da escrivaninha, comeu a última banana do dia e caiu no sono.
Aos poucos, o silêncio apoderou-se da biblioteca. O silêncio avançou por entre os restos de um chapéu bastante amassado, queimado e gasto, que fora pendurado com certa pompa na parede. Por mais longe que o mago vá, sempre volta para pegar o seu chapéu.
O silêncio tomou conta da Universidade da mesma maneira como o ar toma conta de um buraco. A noite espalhou-se pelo Disco como geléia de ameixa, ou talvez de amora-preta.
Mas chegaria a manhã. Sempre havia outra manhã…