Houve um homem, e ele teve oito filhos. Fora isso, não passou de uma vírgula na página da História. E triste, mas é tudo que se pode dizer de algumas pessoas.

O oitavo filho, por sua vez, cresceu, casou-se e teve oito filhos, e, como existe apenas uma profissão apropriada ao oitavo filho de um oitavo filho, ele se tornou um mago. E tornou-se sábio e poderoso, ou pelo menos poderoso, e usava um chapéu pontudo e tudo terminaria aí…

Deveria ter terminado aí…

Mas, contra a Doutrina da Magia e certamente contra toda a razão — salvo as razões do coração, que são cálidas, confusas e, bem, nada razoáveis —, ele abandonou o círculo de magia, apaixonou-se e se casou, não necessariamente nessa ordem.

E teve sete filhos, cada qual, desde o berço, tão poderoso quanto qualquer mago do mundo.

Então, ele teve o oitavo filho…

Mago ao quadrado. Fonte de magia.

Um fonticeiro.

Raios de verão irrompiam por entre os penhascos de areia. Bem abaixo, o mar sugava as rochas fazendo tanto barulho quanto um velho com um único dente que ganhasse um pé de moleque. Algumas gaivotas pairavam nas alturas, esperando que algo acontecesse.


E o pai dos magos estava sentado em meio a plantas inquietas, na beira do penhasco, embalando o filho nos braços e mirando o oceano.

Havia uma nuvem negra sobre o mar, avançando em direção a terra, e a luz que ela filtrava possuía a textura aveludada que prenuncia uma grande tempestade.

Ele se virou, ao sentir um súbito silêncio que lhe chegou por trás, e ergueu os olhos vermelhos de choro para o vulto alto e encapuzado, vestido com um manto negro.

— IPSLORE, O VERMELHO? — perguntou o vulto.

A voz era cavernosa como uma gruta, densa como uma estrela de nêutrons.

Ipslore abriu o sorriso medonho dos subitamente enlouquecidos e suspendeu o filho à inspeção de Morte.

— Meu filho — disse. — Vou chamá-lo Coin.

— NOME TÃO BOM QUANTO QUALQUER OUTRO — considerou Morte, educadamente.

As órbitas oculares vazias se voltaram para baixo e fitaram o rostinho redondo, envolto em sono. Apesar dos boatos, Morte não é cruel — apenas terrivelmente, terrivelmente bom no que faz.

— Você levou a mãe dele — disse Ipslore.

Era uma constatação, sem nenhum rancor aparente. No vale, atrás dos penhascos, a propriedade de Ipslore resumia-se, agora, a escombros fumegantes, com o vento nascente espalhando as delicadas cinzas pelas dunas uivantes.

— FOI ATAQUE CARDÍACO — observou Morte. — EXISTEM MANEIRAS PIORES DE MORRER. VÁ POR MIM.

Ipslore olhou o mar.

— Nem toda a minha magia pôde salvá-la — lamentou.

— HÁ LUGARES AONDE NEM A MAGIA PODE IR.

— Agora você veio pelo menino?

— NÃO. O MENINO TEM SEU PRÓPRIO DESTINO. VIM BUSCAR VOCÊ.

— Ah.

O mago se levantou, cuidadosamente depositou o bebê adormecido na grama rala e pegou a vara comprida que estava ali.


O bastão era feito de metal preto, com uma malha de prata e inscrições douradas que lhe conferiam um mau gosto suntuoso e sinistro. O metal era octirona, intrinsecamente mágico.

— Fui eu que fiz, sabia? — disse. — Todos diziam que não se pode fazer vara de metal, que precisa ser de madeira. Mas estavam errados. Botei muito de mim mesmo nisso. Vou dar a vara para o meu filho.

Ele correu as mãos afetuosamente pelo bastão, que soltou um tinido leve. E, quase para si mesmo, repetiu:

— Botei muito de mim mesmo nisso aqui.

— É UMA BOA VARA — notou Morte.

Ipslore suspendeu-a no ar e fitou o oitavo filho, que ressonava.

— Ela queria uma menina — comentou.

Morte encolheu os ombros. Ipslore dirigiu-lhe um olhar que misturava perplexidade e raiva.

— O que ele é?

— O OITAVO FILHO DE UM OITAVO FILHO DE UM OITAVO FILHO — respondeu Morte, sem ajudar muito.

O vento lhe agitou o manto, levando as nuvens negras para cima.

— O que isso quer dizer?

— UM FONTICEIRO, COMO VOCÊ BEM SABE.

Um trovão ecoou no momento certo.

— Qual é o destino dele? — gritou Ipslore, mais alto que o barulho crescente do vento.

Morte encolheu os ombros outra vez. Era bom no negócio.

— OS FONTICEIROS TRAÇAM SEU PRÓPRIO DESTINO. TOCAM O MUNDO DE LEVE.

Ipslore apoiou-se na vara, tamborilando os dedos no metal, aparentemente perdido no labirinto de seus pensamentos. A sobrancelha esquerda se franziu.

— Não — murmurou. — Eu vou traçar o destino dele.

— NÃO RECOMENDO.

— Cale-se! Eles me expulsaram, com seus livros, rituais e doutrinas! Consideram-se magos, mas possuem menos magia naqueles corpos gordos do que eu tenho no dedo mindinho! Expulso! Eu! Por mostrar que sou humano? E o que seriam os seres humanos sem amor?

— RAROS — respondeu Morte. — TODAVIA…

— Escute! Eles nos obrigaram a vir para cá, para este fim de mundo, e isso matou minha mulher! Tentaram ficar com a minha vara! — Ipslore gritava acima do barulho do vento. — Bem, ainda me resta algum poder — continuou. — E digo que meu filho vai para a Universidade Invisível, usará o chapéu de arqui-reitor, e todos os magos do mundo se curvarão aos seus pés! Ele vai mostrar a todos o que existe no fundo do coração de cada um. Covardes e gananciosos corações. Vai mostrar ao mundo seu verdadeiro destino, e não haverá magia maior que a sua.

— NÃO.

E o estranho no modo silencioso de Morte dizer a palavra foi o seguinte: ela saiu mais alto que o bramido da tempestade. O que fez com que Ipslore recobrasse momentaneamente a sanidade.

Então ele oscilou para frente e para trás, incerto.

— O quê? — perguntou.

— EU DISSE NÃO. NADA É ABSOLUTO. NADA É DEFINITIVO. A NÃO SER EU, É CLARO. ESSA MANIPULAÇÃO DO DESTINO PODERIA SIGNIFICAR A RUÍNA DO MUNDO. PRECISA HAVER UMA CHANCE DE ESCAPE, POR MENOR QUE SEJA. OS ADVOGADOS DO DESTINO EXIGEM UMA BRECHA EM TODA PROFECIA.


Ipslore olhou para o rosto implacável de Morte.

— Preciso dar uma chance a eles?

— PRECISA.

Toc, toc, toc, faziam os dedos do mago no metal da vara.

— Então terão sua chance — decidiu ele — quando o inferno congelar.

— NÃO. MESMO À REVELIA, NÃO POSSO INFORMÁ-LO SOBRE A TEMPERATURA GERAL DOS OUTROS MUNDOS.

— Então… — vacilou Ipslore — terão sua chance quando meu filho jogar fora a vara.

— NENHUM MAGO JOGARIA FORA SUA VARA — protestou Morte. — A LIGAÇÃO É FORTE DEMAIS.

— Ainda assim, é possível, você tem de admitir.

Morte considerou a afirmativa. “Ter de” não era urna expressão que ele estivesse acostumado a ouvir, mas pareceu levar em conta o argumento.

— DE ACORDO.

— Essa pequena chance lhe basta?

— É SUFICIENTEMENTE MOLECULAR.

Ipslore relaxou um pouco. Numa voz que beirava a normalidade, disse:

— Eu não me arrependo. Faria tudo de novo. Crianças são a esperança para o futuro.

— NÃO EXISTE ESPERANÇA PARA O FUTURO — retrucou Morte.

— Então existe o quê?

— EU.

— Além de você!

Morte lhe dirigiu um olhar confuso.

— COMO ASSIM?

A tempestade alcançou seu ápice uivante. Uma gaivota passou voando de trás para frente.

— Eu quero saber — gritou Ipslore, irritado — o que existe neste mundo que faça a vida valer a pena.

Morte pensou no assunto.

— GATOS — respondeu, afinal. — GATOS SÃO LEGAIS.

— Maldito seja você!

— NÃO É O PRIMEIRO A DIZER ISSO — rebateu Morte, com calma.

— Quanto tempo ainda tenho?

Morte retirou uma ampulheta grande dos recônditos do manto. Os dois bulbos que a compunham eram cobertos de traços pretos e dourados, e a areia estava quase toda no recipiente de baixo.

— AH, CERCA DE NOVE SEGUNDOS.

Ipslore ficou de pé e estendeu a vara de metal brilhante em direção ao filho. Uma pequenina mão semelhante a um caranguejo rosado saiu de baixo do cobertor e segurou-a.

— Então, deixe-me ser o primeiro e último mago na história do mundo a passar a vara ao oitavo filho — começou ele, lenta e sonoramente. — E eu o encarrego de usá-la…

— EU ME APRESSARIA, SE FOSSE VOCÊ…

— … ao máximo — continuou Ipslore —, tornando-se o mais poderoso…

Um raio estourou no meio da nuvem, atingiu Ipslore na ponta do chapéu, desceu pelo braço, passou cintilando pela vara e acertou a criança.

O mago desapareceu num fio de fumaça. A vara brilhou em tom verde, depois branco e, em seguida, somente afogueado. A criança sorriu no sonho.

Quando o raio se foi, Morte estendeu os braços e pegou o menino, que abriu os olhos. Eles tinham um fulgor dourado. Pela primeira vez no que, por falta de palavra melhor, deve ser chamado de “sua vida”, Morte se pegou fitando um olhar que achou difícil retribuir. Os olhos pareciam voltar-se para um ponto no interior de sua caveira.

Não era minha intenção que isso acontecesse, soou, no ar, a voz de Ipslore. Ele está ferido?

— NÃO.

Morte desviou os olhos daquele sorriso ao mesmo tempo tenro e sagaz.

— ELE TEM O PODER. É FONTICEIRO. SEM DÚVIDA, VAI SOBREVIVER A COISAS PIORES. E AGORA… VOCÊ VEM COMIGO.

Não.

— SIM. VOCÊ ESTÁ MORTO.

Morte correu as órbitas oculares à volta, em busca da sombra oscilante de Ipslore, mas não conseguiu achá-la.

— ONDE ESTÁ VOCÊ?

— Na vara.

Morte apoiou-se na foice e suspirou.

— IDIOTA. NÃO ME CUSTA NADA TIRÁ-LO DAÍ.

Não sem destruir a vara, irrompeu a voz de Ipslore, parecendo a Morte que ele agora possuía certo ar de triunfo. E, agora que o menino aceitou a vara, você não pode destruí-la sem destruir a ele também. E isso você não pode fazer sem perturbar o destino. Minha última mágica. Caprichada.

Morte cutucou a vara. Ela estalou, e centelhas correram obscenamente em toda a sua extensão.

Por estranho que pareça, ele não estava com muita raiva. A raiva é urna emoção e, para sentir emoção, são necessárias glândulas. Morte nem sequer sabia de glândulas, e precisava de um bom motivo para ficar com raiva. Mas estava ligeiramente irritado. Suspirou outra vez. As pessoas sempre tentavam esse tipo de coisa. Por outro lado, era algo até interessante de se observar, e esta tentativa, pelo menos, era um pouco mais original do que o clássico e simbólico jogo de xadrez, que Morte detestava porque nunca se lembrava de como o cavalo se movia.

— VOCÊ SÓ ESTÁ ADIANDO O INEVITÁVEL — argumentou.

— Viver é isso.

— MAS O QUE, EXATAMENTE, VOCÊ PRETENDE?

— Quero ficar ao lado do meu filho. Quero ensiná-lo, mesmo que ele não o saiba. Vou guiar sua mente. E, quando estiver pronto, conduzirei seus passos.

— ENTÃO, ME DIGA — disse Morte — COMO FOI QUE VOCÊ CONDUZIU 0S PASS0S DE SEUS OUTROS FILHOS.

— Dirigi-os para fora de casa. Eles discutiam comigo, não queriam ouvir o que eu tinha a ensinar. Mas este aqui vai.

— VOCÊ ACHA UMA BOA IDÉIA?

A vara ficou quieta. Ao lado dela, o menino sorriu ao som da voz que somente ele escutava.


Não havia nenhuma analogia possível para o modo como Grande A’Tuin, a tartaruga estelar, avançava na noite galáctica. Quando temos 16 mil quilômetros de comprimento e uma carapaça cheia de crateras meteóricas, coberta por gelo de cometas, não existe absolutamente nada com que possamos realmente nos parecer, a não ser nós mesmos.

Portanto, Grande A’Tuin nadava devagar pelo abismo interestelar, simplesmente como a maior tartaruga que já existiu, levando em sua carapaça os quatro elefantes enormes que sustentavam em seu lombo o vasto e brilhante círculo, contornado pela queda d’água, do Discworld. Que existe por causa de um desvio impossível na curva da probabilidade, ou porque os deuses gostam mesmo de uma boa piada, como todo mundo.

Na verdade, a grande maioria das pessoas.

Próximo às margens do Mar Círculo, na antiga e desordenada cidade de Ankh-Morpork, numa almofada de veludo, sobre uma prateleira na Universidade Invisível, havia um chapéu.

Era um bom chapéu. Um chapéu magnífico.

Era pontudo, evidentemente, e tinha a aba mole e larga, mas, depois de conceber esses detalhes básicos, o designer havia realmente se dedicado com afinco ao trabalho. Havia rendas douradas, pérolas, peles dos melhores crudelarminhos[1], seixos brilhantes do Ankh lantejoulas de inacreditável mau gosto e — pista certeira, é claro — um círculo de octarinas [2].

Como naquele momento elas não se encontravam num campo de magia intensa, não estavam brilhando e pareciam apenas diamantes inferiores.

A primavera havia chegado a Ankh-Morpork. Não era perceptível de imediato, mas havia sinais óbvios para os entendidos. Por exemplo, a espuma do Rio Ankh — esse grande canal de águas lentas que servia à cidade gêmea como represa, esgoto e, freqüentemente, necrotério — havia ganhado um tom esverdeado iridescente. Os embriagados telhados da cidade revelavam colchões e travesseiros, já que a roupa de cama de inverno era colocada para arejar à luz fraca do sol, e, nas profundezas de porões bolorentos, vigas estalavam à medida que a seiva seca reagia ao chamado primitivo da floresta. Os pássaros aninhavam-se entre as calhas e os beirais da Universidade, embora fosse visível que, por maior que fosse a aglomeração em algumas áreas, eles jamais faziam ninho nas convidativas bocas abertas das gárgulas alinhadas nos telhados, para decepção delas.

Uma espécie de primavera havia chegado até mesmo à própria Universidade. Aquela era a Noite dos Pequenos Deuses, e um novo arqui-reitor seria eleito.

Bem, não exatamente eleito, porque os magos não queriam nem saber dessa história indigna de eleição e era fato conhecido de todos que o arqui-reitor se fazia escolher pela vontade dos deuses. Naquele ano, tudo indicava que os deuses conseguiriam escolher Virrid que era um sujeito decente e, havia anos, vinha esperando pacientemente a sua vez.

O arqui-reitor da Universidade Invisível era o líder oficial de todos os magos do Disco. Em outra época, isso teria significado que era o mais poderoso no manejo da magia, mas os tempos agora eram outros e, para ser sincero, os magos seniores costumavam achar que a magia, em seu estágio atual, era pouco para eles. Preferiam a administração, que se mostrava mais segura e igualmente divertida, contando, inclusive, com grandes jantares.

E assim passava a longa tarde. O chapéu continuava sobre a almofada desbotada, nos aposentos de Wayzyganso, enquanto o velho mago ensaboava a barba, sentado na banheira de frente para a lareira. Outros magos cochilavam em seus gabinetes ou caminhavam pelos jardins a fim de abrir o apetite para o banquete noturno. Em geral, cerca de doze passos eram considerados suficientes.

No salão principal, sob os olhares esculpidos e pintados dos duzentos arqui-reitores prévios, a equipe do serviço alimentar dispunha cadeiras e mesas compridas. No labirinto arqueado das cozinhas… bem, a imaginação não deve precisar de auxílio. Deve incluir muita gordura, calor e gritaria, barris de caviar, bois inteiros assados, tiras de lingüiça penduradas de parede a parede, o próprio chefe entregue ao trabalho num dos compartimentos, terminando os retoques de uma grande maquete da Universidade moldada em manteiga. Ele fazia isso sempre que havia banquete — cisnes de manteiga, prédios de manteiga, toda uma fauna de animais selvagens gordurosos, rançosos e amarelos —, e gostava tanto do negócio que ninguém tinha coragem de pedir que parasse.

No labirinto particular de adegas, o chefe do serviço alimentar vagava por entre barris, decantando e experimentando.

A atmosfera de expectativa havia chegado até aos corvos que habitavam a Torre de Arte, construção de 250 metros de altura, supostamente a mais antiga do mundo. Suas pedras desgastadas sustentavam viçosas florestas em miniatura, bem acima dos telhados da cidade. Espécies inteiras de besouros e pequenos mamíferos haviam desenvolvido ali, e, como era raro que as pessoas fossem ao topo, por causa da perturbadora tendência de a torre balançar ao vento, os corvos tinham tudo para si. Naquele instante, estavam voando em estado de grande agitação, como mosquitos antes da chuva. Talvez fosse boa idéia alguém lá de baixo notá-los.

Algo terrível estava para acontecer.

Você já sentiu, não sentiu?

Você não é o único.

— O que deu neles? — gritou Rincewind, mais alto que a barulheira.

O bibliotecário agachou quando um livro mágico de capa de couro saltou da prateleira e parou em pleno ar, preso pela corrente. Então, o funcionário deu um pulo, rolou no chão e debruçou-se sobre uma cópia de A Descobherta de Maleficio sobre Dhemonologia, que vinha diligentemente golpeando a própria estante.

— Oook! — exclamou.

Rincewind tinha o ombro apoiado numa estante e empurrava com os joelhos os livros agitados de volta a seus lugares. O barulho era infernal.

Os livros de magia têm uma espécie de vida própria. Alguns têm em excesso: por exemplo, a primeira edição do Necrotelicomicon precisa ser mantida em armadura de ferro, A Verdadeira Arte de Levitatione passou os últimos 1 50 anos nos caibros do telhado, e o Compêndhio de Magia Sehxual de Ge Fordge é conservado em uma cuba de gelo, sozinho numa sala. Existe uma norma rígida de que ele só pode ser lido por magos que estejam com mais de 80 anos e, se possível, mortos.

Mas mesmo os incunábulos e livros mágicos do dia-a-dia que ficavam nas prateleiras principais estavam inquietos e nervosos feito galinha ao ouvir o som de arranhões na porta do galinheiro. Das capas fechadas, vinha o som abafado de garras.

— O que você disse? — berrou Rincewind.

— Oook![3].

— Certo!

Rincewind, como bibliotecário-assistente honorário, não havia progredido muito além da classificação básica e da arte de pegar bananas, e admirava-se com a desenvoltura do bibliotecário ao andar por entre as estantes trepidantes, ora correndo a mão negra por uma capa estremecida, ora reconfortando a enciclopédia assustada com suaves murmúrios simiescos.

Depois de um tempo, a biblioteca começou a se acalmar, e Rincewind sentiu os músculos do ombro relaxarem.

Era uma paz frágil, porém. Aqui e ali, uma página se agitava. De prateleiras distantes, surgia o estalido ameaçador de uma lombada. Depois do pânico inicial, a biblioteca agora se encontrava alerta e irrequieta como gato de rabo comprido em fábrica de cadeira de balanço.

O bibliotecário retornou vagarosamente pelo corredor. Ele tinha um rosto que só uma roda de caminhão saberia amar e exibia permanentemente um sorriso vago, mas, pela maneira como o macaco rastejou para debaixo da mesa e escondeu a cabeça no cobertor, Rincewind teve a impressão de que ele estava terrivelmente preocupado.

Observe Rincewind espiando as prateleiras sombrias. Existem oito níveis de magia no Disco. Depois de dezesseis anos, Rincewind não conseguiu chegar nem ao primeiro. Na verdade, alguns mestres consideram-no incapaz até mesmo de alcançar o nível zero, no qual nasce a maioria das pessoas. Em outras palavras, já foi sugerido que, quando Rincewind morrer, a capacidade sobrenatural média da raça humana vai subir um ponto.

Ele é alto, magro e tem aquele tipo de barba disforme usado por homens que não foram feitos para usar barba. Está vestido com um manto vermelho-escuro que já viu dias melhores, possivelmente décadas melhores. Mas sabemos que é mago porque tem o chapéu pontudo de aba mole, com a palavra “Maggo” bordada em grandes letras prateadas por alguém cujo talento em bordar consegue ser pior que o talento em soletrar. Há uma estrela na ponta. A maior parte das lantejoulas se perdeu.

Firmando o chapéu na cabeça, Rincewind abriu a grande porta antiga da biblioteca e saiu para a luz dourada da tarde. Tudo era silêncio, quebrado apenas pela grasnada histérica dos corvos que rondavam a Torre de Arte.

Rincewind observou-os durante algum tempo. Os corvos da Universidade eram um bando de aves duronas. Não era qualquer coisa que os perturbava.

Todavia…

… o céu estava azul, com raios dourados e algumas nuvens fofas no alto, brilhando rosadas sob a luz crescente. No pátio, os velhos castanheiros encontravam-se em flor. Da janela aberta, vinha o som de algum aluno de magia treinando violino, sem muito êxito. Não era o que se poderia chamar de tempo sinistro.

Rincewind apoiou-se na parede de pedras. E gritou.

O prédio estava tremendo. Ele sentiu o tremor entrar pela mão e percorrer o braço — uma leve sensação rítmica na freqüência exata para sugerir terror incontrolável. As próprias pedras estavam com medo.

Apavorado, olhou para baixo ao ouvir um tinido. O bueiro caiu para trás e um dos ratos da Universidade enfiou os bigodes para fora. O bicho dirigiu um olhar assustado para Rincewind e passou correndo por ele, seguido por dezenas de sua espécie. Alguns vestiam roupa, mas isso não era incomum na Universidade, onde o alto nível de magia faz maravilhas com os genes.

Correndo os olhos ao redor, Rincewind viu procissões de corpos cinzentos abandonando a Universidade de todos os outros bueiros. A hera próxima ao seu ouvido farfalhou, e então um grupo de ratos executou uma série de saltos mortais até seus ombros e desceu escorregando pelo manto. Ignoraram-no por completo, mas, novamente, isso não era incomum. A maioria dos seres vivos costumava ignorar Rincewind.

Ele se virou e correu para a Universidade, com o manto esvoaçando em torno dos joelhos, até alcançar o gabinete do tesoureiro. Bateu à porta, que se abriu rangendo.

— Ah, é o, hum, Rincewind, não é? Perguntou o tesoureiro, sem muito entusiasmo. — Qual é o problema?

— Estamos afundando!

Por alguns instantes, o tesoureiro limitou-se a encará-lo. Seu nome era Lingote. Era alto, magro e parecia ter sido um cavalo em vidas passadas. Sempre dava a impressão de estar olhando para a pessoa por meio dos dentes.

— Afundando?

— É. Os ratos estão fugindo!

O tesoureiro encarou-o outra vez.

— Entre, Rincewind — convidou, com gentileza.

Rincewind seguiu-o pela sala baixa e escura até a janela. Ela dava vista para os jardins e o rio, a fluir tranqüilamente em direção ao mar.

— Você não está, hum, exagerando? — perguntou o tesoureiro.

— Exagerando em quê? — indagou Rincewind, com a consciência pesada.

— Isso aqui é um prédio, entende? — disse o tesoureiro. Como a maioria dos magos, quando confrontados com um problema, ele começou a enrolar um cigarro. — Não é um navio. Tem algumas diferenças. Ausência de golfinhos brincando em volta da proa, falta de quilha, esse tipo de coisa. As chances de afundar são remotas. Senão, hum, teríamos de encher os porões e remar até a praia. Hum?

— Mas os ratos…

— Algum navio de cereal no porto. Uma espécie de, hum, ritual primaveril.

— Tenho certeza de que também senti a Universidade tremer — arriscou Rincewind, ligeiramente incerto.

Naquela sala silenciosa, com o fogo crepitando na lareira, nada daquilo parecia real.

— Um tremor passageiro. Grande A’Tuin com soluço, hum, talvez. O que você precisa é se controlar. Tem bebido?

— Não!

— Hum. Gostaria?

Lingote dirigiu-se ao armário de madeira escura e tirou duas taças, que encheu com o jarro de água.

— Prefiro xerez a essa hora do dia — disse, abrindo as mãos sobre as taças. — Diga, hum, seco ou suave?

— Hã, não — recusou Rincewind. — Talvez o senhor esteja certo. Acho que vou descansar um pouco.

— Boa idéia.

Rincewind atravessou os frios corredores de pedra. De vez em quando, tocava a parede e aguçava os ouvidos, então sacudia a cabeça.

Ao cruzar o pátio novamente, viu um bando de camundongos galgar a varanda e correr em direção ao rio. O chão em que pisavam também parecia se mover. Quando Rincewind se aproximou, notou que era porque estava coberto de formigas.

Aquelas não eram formigas comuns. Séculos de infiltração mágica nas paredes da Universidade haviam feito coisas estranhas a elas. Algumas puxavam pequenos carrinhos, outras seguiam montadas em besouros, mas todas abandonavam a Universidade o mais rápido possível. A grama ondulava a medida que passavam. Ele ergueu os olhos quando um velho colchão listrado foi lançado da janela e despencou no chão de pedras. Depois de uma pausa, aparentemente para tomar fôlego, o objeto levantou-se um pouco do chão. Depois, começou a avançar decidido pelo gramado e partiu para cima de Rincewind, que conseguiu sair do caminho na hora certa. Ele ouviu um chiado agudo e avistou milhares de perninhas determinadas debaixo da estrutura. Até os percevejos estavam de mudança e, para o caso de não acharem alojamento confortável em nenhum outro lugar, usavam de precaução. Um deles acenou para o mago e chiou em saudação.

Rincewind recuou, até alguma coisa lhe tocar a parte de trás das pernas e lhe congelar a espinha. Era apenas um banco de pedra. Ele observou-o durante algum tempo. O banco não parecia com pressa de fugir para lugar nenhum. Rincewind se sentou, agradecido.

Provavelmente existe urna explicação lógica para tudo isso, pensou. Ou, pelo menos, uma explicação ilógica perfeitamente normal.

Um ruído de pedras fez com que olhasse para o outro lado do jardim.

Não havia nenhuma explicação lógica para aquilo. Com inacreditável lentidão, descendo por parapeitos e canos de escoamento em silêncio absoluto, afora o ocasional rangido de pedra sobre pedra, as gárgulas vinham deixando o telhado.

É pena que Rincewind jamais houvesse assistido a filmes de baixa qualidade em câmera lenta, porque ele, então, saberia descrever exatamente o que estava vendo. As criaturas pareciam não se mexer, mas conseguiam avançar, numa série de quadros em alta velocidade, e passaram por ele num longo desfile de bicos, jubas, asas, garras e cocô de pombo.

— o que está acontecendo? — sussurrou ele.

Um negócio com rosto de duende, corpo de harpia e pernas de galinha virou a cabeça, numa série de movimentos súbitos, e falou, com voz semelhante à peristalse das montanhas (embora o efeito grave saísse prejudicado, porque, evidentemente, não podia fechar a boca). Disse:

— Um ondizero izdá bindo bara gá! Uja!

Rincewind perguntou “O quê?”, mas a coisa já havia partido e agora cambaleava pelo antigo gramado.[4]

Rincewind ficou olhando para o nada durante dez segundos exatos, até soltar um grito e sair correndo o mais rápido que podia.

Só parou quando chegou ao quarto. Não era exatamente um quarto, destinado principalmente a guardar móveis velhos, mas era seu lar.

Contra uma parede sombria, ficava o armário. Não se trata de um desses armários modernos, convenientes apenas a amantes nervosos que se enfiam ali dentro quando o marido volta para casa cedo, mas de uma velha estrutura de madeira, escura como a noite, em cujas profundezas empoeiradas cabides se reproduziam e sapatos velhos vagavam pelo fundo. Era bem possível que houvesse uma passagem secreta para mundos fabulosos, mas ninguém jamais tentara descobrir por causa do cheiro medonho de naftalina.

E no alto do armário, envolta em pedaços de papel amarelado e lençóis velhos, havia uma grande arca rematada em bronze. Seu nome era Bagagem. O motivo de ela ter concordado em ser de propriedade de Rincewind era algo que só a Bagagem sabia e nunca nos contaria, mas, provavelmente, nenhum outro artigo em toda a história dos acessórios de viagem tinha um passado de tamanho mistério e males corporais. Ela já havia sido descrita como meio arca, meio maníaca homicida. Possuía muitas características que podem ou não se manifestar em breve, mas, no momento, só havia uma que a distinguia de qualquer outra arca rematada em bronze. Ela estava roncando, com o ruído semelhante ao de serra em madeira.

A Bagagem podia ser mágica. Podia ser terrível. Mas, em sua enigmática alma, parecia-se com todas as outras peças de viagem do multiverso e preferia passar os invernos hibernando no alto do armário.

Rincewind deu-lhe vassouradas até fazer parar a serração, encheu os bolsos com as quinquilharias da caixa de bananas que usava como mesa-de-cabeceira e dirigiu-se até a porta. Não pôde deixar de notar que o colchão havia sumido, mas isso não tinha importância, porque ele estava certo de que nunca mais voltaria a dormir em colchão.

A Bagagem caiu no chão com um baque surdo. Depois de alguns segundos, e com extremo cuidado, estendeu centenas de perninhas rosadas. Oscilou um pouco para frente e para trás, alongando cada uma das pernas, abriu a tampa e bocejou.

— Você vem ou não vem?

A tampa se fechou com um estalo. A Bagagem movimentou as pernas num arranjo complicado, até se encontrar de frente para a porta, e seguiu o dono.

A atmosfera da biblioteca ainda estava carregada, com o ocasional tinido de uma corrente ou o ruído abafado de uma folha[5]. Rincewind estendeu o braço sob a mesa e agarrou o bibliotecário, que ainda se encontrava curvado debaixo do cobertor.

— Vamos!

— Oook.

— Eu pago uma bebida — ofereceu Rincewind, em desespero.

O bibliotecário desenroscou-se feito uma aranha de quatro patas.

— Oook?

Rincewind meio que arrastou o macaco porta afora. Não se dirigiu ao portão principal, mas ao trecho do muro onde, havia 2 mil anos, algumas pedras soltas ofereciam aos alunos uma entrada bastante discreta depois que as luzes da Universidade se apagavam. Então, parou tão subitamente que o bibliotecário se chocou com ele e a Bagagem colidiu com ambos.

— Oook!

— Ah, meus deuses! — exclamou o mago. — Olhe só!

— Oook?

Havia uma onda negra e brilhosa fluindo de uma grade próxima às cozinhas. O luar prematuro iluminava milhões de dorsos pretos.

Mas não era a visão das baratas que se fazia perturbadora. Era o fato de que elas estavam marchando em cadência, em fileiras de cem. E claro que, como qualquer habitante informal da Universidade, as baratas eram um pouco fora do comum, mas havia algo particularmente desagradável no som de bilhões de patinhas minúsculas pisando o chão ao mesmo tempo.

Com cuidado, Rincewind esticou a perna e passou por cima da tropa em marcha. O bibliotecário também saltou para o outro lado.

A Bagagem, evidentemente, seguiu-os produzindo o barulho de alguém que sapateasse num saco de batatas fritas.

E assim, obrigando a Bagagem a percorrer todo o caminho até o portão, porque, do contrário, ela apenas abriria um buraco no muro, Rincewind deixou a Universidade, junto com todos os outros insetos e roedores assustados, e decidiu que, se algumas cervejas não o ajudassem a ver as coisas sob um ângulo diferente, então mais algumas o fariam. Com certeza, valia a pena tentar.

Foi por esse motivo que ele não estava presente no salão principal à hora do jantar. Aquela acabaria sendo a refeição perdida mais importante de sua vida.

Mais adiante, no muro da Universidade, houve um tinido leve quando um gancho de ferro se prendeu a uma das puas alinhadas no topo. Alguns instantes mais tarde, um vulto esguio, vestido de preto, descia com leveza ao jardim da Universidade e corria em silêncio para o salão principal, onde logo se perdeu nas sombras.

Ninguém o teria notado, mesmo. Do outro lado do campus, o fonticeiro avançava em direção ao portão da Universidade. Quando os pés dele pisavam o chão de pedras, faíscas azuis espocavam e faziam evaporar o orvalho noturno.

Fazia muito calor. A enorme lareira do salão principal estava quase incandescente. Os magos são muito friorentos: o mero sopro de calor proveniente das lenhas crepitantes derretia velas a seis metros de distância e formava bolhas no verniz das longas mesas. O ar que pairava sobre o banquete estava azul por causa da fumaça de tabaco, a traçar formas curiosas impulsionadas por correntes aleatórias de magia. Na mesa central, o porco assado parecia ligeiramente irritado com o fato de terem-no matado antes que pudesse terminar a maçã, e a maquete da Universidade, feita de manteiga, afundava suavemente num mar de gordura.

Havia muita cerveja. Aqui e ali magos de rosto vermelho cantavam alegremente músicas antigas, dando tapas nos joelhos e gritos de “Rá!” A única desculpa cabível para esse tipo de coisa é que os magos são celibatários e precisam achar diversão onde podem.

Outro motivo para o bom humor geral era o fato de que ninguém estava tentando matar ninguém. Essa não era uma situação comum nos círculos mágicos.

Os níveis mais elevados de magia são posições perigosas. Todo mago está sempre tentando derrubar quem está acima, ao mesmo tempo que pisa nos dedos de quem se encontra abaixo. Dizer que o mago é saudavelmente competitivo por natureza é como dizer que a piranha é um peixe naturalmente esfomeado. No entanto, desde que as grandes Guerras Mágicas deixaram inabitáveis regiões inteiras do Disco[6], os magos estavam proibidos de resolver suas diferenças por meios mágicos, porque isso gerava muitos problemas para a população e porque, de qualquer modo, era difícil saber qual dos montinhos de gordura fumegante que sobravam havia sido o vencedor. Dessa forma, eles tradicionalmente recorriam a facas, venenos secretos, escorpiões no sapato e hilariantes armadilhas com pêndulos de lâmina afiada.

Na Noite dos Pequenos Deuses, porém, considerava-se de extremo mau gosto matar um colega, e os magos ficavam à vontade para deitar os cabelos sem medo de serem estrangulados com eles.

A cadeira do arqui-reitor achava-se vazia. Wayzyganso jantava sozinho no gabinete, como convém ao homem escolhido pelos deuses depois de um debate sério com magos seniores sensatos. Apesar de seus 80 anos, estava um pouco nervoso e mal tocou a segunda galinha.

Dentro de poucos minutos, ele teria de fazer um discurso. Na juventude, Wayzyganso buscara o poder em lugares estranhos. Havia lutado com demônios em octogramas chamejantes, visto dimensões das quais o homem não deveria nem sequer ter notícia e até afrontado o comitê de concessões da Universidade Invisível. Mas nada nos oito círculos do vazio era tão terrível quanto duzentos rostos atentos fitando-o através da fumaça de cigarro.

Os mensageiros logo viriam chamá-lo. Ele suspirou, afastou o prato intocado de pudim, atravessou o quarto, ficou de frente para o grande espelho e vasculhou o bolso do manto à procura de suas anotações.

Depois de um tempo, conseguiu arrumá-las numa espécie de ordem e pigarreou.

— Irmãos de ofício — começou —, não posso nem dizer o quanto estou, hã, o quanto… belas tradições desta antiga Universidade… hã… quando olho à volta e vejo o retrato de todos os arqui-reitores…

Ele parou, rearranjou as anotações e prosseguiu, com mais firmeza.

— Estar aqui, hoje, me faz lembrar a história do vendedor ambulante de três pernas e das, hã, filhas do lojista. Parece que o lojista…

Alguém bateu à porta.

— Entre — resmungou Wayzyganso, estudando as anotações com atenção.

— Esse lojista — sussurrou —, esse lojista, sim, esse lojista tinha três filhas. Acho que eram. Isso. Eram três. Parece…

Ele olhou o espelho e se virou. Começou a perguntar “Quem e v…

E descobriu que, afinal de contas, existe coisa pior do que falar em público.

O pequeno vulto de preto, avançando pelos corredores desertos, ouviu um barulho, mas não lhe deu muita atenção. Barulhos estranhos não eram raros em áreas onde se praticava magia. O vulto procurava alguma coisa. Não sabia exatamente o quê, apenas que saberia quando achasse.

Depois de alguns minutos, a busca conduziu-o ao quarto de Wayzyganso. O ambiente estava cheio de espirais de gordura. Pequenas partículas de fuligem flutuavam suavemente em correntes de ar, e havia diversas pegadas queimadas no chão.

O vulto encolheu os ombros. Não há explicação para o tipo de coisa que se encontra em quarto de mago. Viu o próprio reflexo multifacetado no espelho partido, arrumou o capuz e deu prosseguimento à busca.

Movimentando-se como quem obedece a ordens internas, atravessou o quarto em silêncio até alcançar a mesa onde estava a caixa de couro alta, redonda e desgastada. O vulto aproximou-se dela e abriu a tampa com cuidado.

A voz que saiu de dentro parecia atravessar várias camadas de tapete ao dizer:

Até que enfim. Por que demorou tanto?

— Quer dizer, como é que começaram com isso? Antigamente, havia magos de verdade, não tinha nada desse negócio de níveis. Eles chegavam e… aconteciam. Bum!

Um ou dois clientes, sentados ao balcão sombrio da Taverna Tambor Remendado, olharam à volta ao ouvir o barulho. Eram novos na cidade. Os fregueses regulares nunca reparavam em nenhum barulho estranho, como gemidos ou desagradáveis ruídos cartilaginosos. Era muito mais saudável. Em algumas partes da cidade, a curiosidade não só matava o gato, como o jogava no rio, com pesos de chumbo atados às patas.

As mãos de Rincewind agitaram-se, vacilantes, sobre a coleção de copos vazios na mesa em frente. Ele quase havia conseguido esquecer as baratas. Depois de mais uma bebida, talvez conseguisse também esquecer o colchão.

— Vapt! Uma bola de fogo! Zum! Desaparecia como fumaça! Vapt!… Desculpe.

Com cuidado, o bibliotecário afastou o que restava da cerveja para longe dos braços nervosos de Rincewind.

— Magia de verdade.

Rincewind conteve um arroto.

— Oook.

Rincewind mirou os restos espumantes da última cerveja e, com extremo cuidado para que o topo da cabeça não caísse, agachou-se e serviu um pouco no pires da Bagagem. Ela estava escondida debaixo da mesa, o que era um alívio. Em geral, deixava-o constrangido, aterrorizando os clientes até que lhe dessem batatas fritas.

Confuso, ele tentou lembrar em que buraco havia perdido o fio da meada.

— Onde é que eu estava?

— Oook — respondeu o bibliotecário.

— Ah, é! _ animou-se Rincewind. — Não tinha todo esse negócio de níveis e classes, entende? Havia fonticeiros naquela época. Eles caíam no mundo e descobriam novos feitiços, viviam aventuras…

Ele meteu o dedo numa pequena poça de cerveja e rabiscou um desenho na madeira manchada e arranhada da mesa.

Um dos professores de Rincewind havia dito que “chamar seu conhecimento sobre teoria mágica de péssimo é não deixar nenhuma palavra adequada para qualificar seu domínio da prática”. Aquilo sempre o havia deixado perplexo. Ele se opunha à idéia de que o indivíduo precisava ser bom em magia para ser mago. Ele sabia que era mago, no fundo de sua alma. Ser bom em magia não tinha nada a ver com isso. Era apenas um complemento, não definia ninguém.

— Quando eu era pequeno — lembrou, nostálgico —, vi o retrato de um fonticeiro num livro. Ele estava no alto de uma montanha, acenando os braços, e as ondas subiam, sabe?, como quando venta na Baía Ankh, e tinha relâmpagos em volta…

— Oook?

— Não sei, talvez estivesse usando bota de borracha — rebateu Rincewind, e prosseguiu, sonhador: — Ele tinha uma vara e um chapéu, igual ao meu, e os olhos meio que brilhavam, e saía um monte de purpurina dos dedos, e eu pensei “um dia vou fazer isso”, e…

— Oook?

— Só metade, então.

— Oook.

— Como você paga por isso? Sempre que lhe dão dinheiro, você come.

— Oook.

— Incrível.

Rincewind terminou o desenho na cerveja. Havia um bonequinho numa montanha. Não parecia muito com ele — desenho em cerveja não é uma arte precisa —, mas era para parecer.

— E o que eu queria ser — disse ele. — Bum! Não essa embromação. Esses livros todos, não é assim que deveria ser. O que precisamos é de magia de verdade.

Esse último comentário teria ganhado o prêmio de declaração mais incorreta do dia se Rincewind não tivesse, então, acrescentado:

— E uma pena que não haja mais fonticeiros.


Lingote bateu na mesa com a colher.

Era uma figura imponente, vestindo o manto cerimonial, com o capuz de crudelarminho do Conselho Venerável dos Videntes e a faixa amarela própria aos magos de quinto nível. Ele alcançara esse nível havia três anos e aguardava que um dos 64 magos do sexto nível abrisse uma vaga, morrendo. Mas agora estava de bom humor. Não apenas terminara um excelente jantar, como também tinha em seus aposentos um pequeno frasco de veneno sem sabor que, usado corretamente, seria garantia de promoção nos meses seguintes. A vida parecia boa.

O grande relógio no fim do salão estremeceu ao soarem as 9 horas.

A colher não havia surtido efeito. Lingote pegou uma caneca de estanho e bateu com força na mesa.

— Irmãos! — gritou, e ficou mais satisfeito quando a algazarra chegou ao fim. — Obrigado. Levantem-se, por favor, para o ritual das, hum, chaves.

Ouviu-se um burburinho à medida que os magos se punham de pé, vacilantes.

As portas duplas do salão encontravam-se fechadas à chave e vedadas com três trancas. O novo arqui-reitor precisaria pedir três vezes para entrar, e só então as portas seriam destrancadas, mostrando que havia sido nomeado com o consentimento de todos. Ou qualquer coisa assim. As origens do costume haviam se perdido nas raias do tempo, o que era uma razão tão boa quanto qualquer outra para mantê-lo.

As conversas cessaram. Os homens fitaram as portas.

Ouviu-se uma batida de leve.

— Vá embora! — gritaram os magos, alguns dos quais rindo até cair com a sutileza da piada.

Lingote pegou a grande argola de ferro que continha as chaves da Universidade. Nem todas eram de metal. Nem todas eram visíveis. Algumas pareciam bem estranhas.

— Quem bate? — perguntou.

— Eu.

O estranho na resposta era o seguinte: parecia que a pessoa que respondera estava atrás de quem ouvia. A maioria dos magos se flagrou olhando por cima do ombro.

Nesse instante de silêncio e terror, houve um estalido agudo na fechadura. Fascinados, eles viram os ferrolhos se abrirem por conta própria. As grandes vigas de madeira, transformadas pelo Tempo num negócio duro feito pedra, saíram de seus encaixes. As dobradiças passaram do vermelho para o amarelo, até chegarem ao branco, e então explodiram. Devagar, com terrível inevitabilidade, as portas despencaram no salão.

Havia um vulto em meio à fumaça das dobradiças em chamas.

— Nossa senhora, Virrid — disse um dos magos. — Essa foi muito boa!

Quando o vulto avançou para a luz, todos puderam ver que, afinal de contas, não se tratava de Virrid Wayzyganso.

O indivíduo que ali se encontrava era pelo menos uma cabeça mais baixo que qualquer outro mago e vestia um simples manto branco. Também era várias décadas mais novo. Parecia ter 10 anos, e trazia na mão uma vara consideravelmente maior que seu próprio tamanho.

— Ele não é mago…

— Onde está o capuz?

— Cadê o chapéu?

O desconhecido passou pela fileira de magos espantados, até se encontrar diante da mesa mais alta. Lingote olhou o rosto jovem e magro emoldurado por madeixas louras, mas se prendeu, sobretudo, aos olhos dourados de brilho interno. Achou, porém, que não o fitavam. Os olhos pareciam mirar um ponto quinze centímetros além de sua nuca. Lingote teve a sensação de que iria explodir.

Então, reuniu toda a sua dignidade e se projetou à altura de sua posição.

— O que significa, hum, isso? — perguntou.

Foi péssimo, ele tinha de admitir, mas a intensidade daquele brilho incandescente parecia lhe arrancar todas as palavras da memória.

— Eu cheguei — disse o desconhecido.

— Chegou? Chegou para quê?

— Tomar o meu lugar. Qual é a minha cadeira?

— Você é aluno? — inquiriu Lingote, branco de raiva. — Qual é o seu nome, menino?

O garoto o ignorou e correu os olhos pelos magos ali reunidos.

— Quem é o mago mais poderoso aqui? — indagou. — Quero conhecê-lo.

Lingote balançou a cabeça. Dois seguranças da Universidade, que nos minutos anteriores haviam se aproximado sorrateiramente do recém-chegado, surgiram, cada qual a um lado dele.

— Peguem-no e joguem-no na rua — ordenou Lingote.

Os seguranças — homens enormes, compactos e sisudos — assentiram. Agarraram os braços finos do garoto com mãos que pareciam cachos de banana.

— Seu pai vai ficar sabendo disso — avisou Lingote, com severidade.

— Ele já sabe — rebateu o menino.

Em seguida, olhou para os dois homens e encolheu os ombros.

— O que está acontecendo aqui?

Lingote deu meia volta e se deparou com Skarmer Billias, chefe da Ordem da Estrela Prateada. Enquanto Lingote tendia para magro, Billias era corpulento, mais parecendo um pequeno balão cativo que, por alguma razão, tinha sido forrado com veludo azul e pele de crudelarminho. Tirando a média de ambos, teríamos duas pessoas normais.


Infelizmente, Billias era o tipo de adulto que se orgulhava de ser bom para as crianças. Inclinou-se tanto quanto seu jantar permitia e voltou o rosto vermelho e barbado para o menino.

— Qual é o problema, rapaz? — perguntou.

— Essa criança entrou aqui à força porque diz que quer conhecer um mago poderoso — adiantou Lingote. Ele detestava crianças, o que talvez fosse o motivo de elas o acharem tão fascinante. Até o momento, havia conseguido evitar qualquer pensamento a respeito da porta.

— Não há nada de errado nisso — considerou Billias. — Qualquer rapaz que se preze quer ser mago. Eu queria ser mago, quando era jovem. Não é mesmo, rapaz?

— Você é pujante? — indagou o menino.

— Hã?

— Perguntei se é pujante. Poderoso.


— Poderoso? — iluminou-se Billias. Ele se levantou, tocou a faixa de oitavo nível e piscou para Lingote. — Ah, muito poderoso. Tão poderoso quanto um mago pode ser.

— Ótimo. Eu o desafio. Mostre sua mágica mais perfeita. E, quando vencê-lo, serei o arqui-reitor.

— Ora, seu petulante… — começou Lingote, mas o protesto se perdeu no estrondo de gargalhadas dos outros magos.

Billias bateu as mãos nos joelhos, ou o mais perto deles que conseguiu alcançar.

— Um duelo? — perguntou. — Ótimo!

— Como você bem sabe, é proibido duelar — objetou Lingote.-De qualquer maneira, é ridículo! Eu não sei quem abriu a porta para ele, mas não vou ficar aqui vendo você desperdiçar nosso tempo…

— Ora, ora — cortou Billias. — Qual é o seu nome, rapaz?

— Coin.

— Coin, senhor — grunhiu Lingote.

— Pois bem, Coin — disse Billias. — Você quer ver o que posso fazer de melhor, é isso?

— Sim.

— Sim, senhor — resmungou Lingote.


Coin dirigiu-lhe o olhar firmemente. Um olhar antigo como o tempo, o tipo de olhar que se aquece em rochas de ilhas vulcânicas e não se cansa nunca. Lingote sentiu a boca secar.

Billias ergueu as mãos, em pedido de silêncio. Então, com um gesto teatral, arregaçou a manga do braço esquerdo e abriu a mão.

Todos observavam com atenção. Os magos de oitavo nível encontravam-se acima da magia. Em geral, passavam a maior parte do tempo em contemplação — normalmente do cardápio seguinte — e, é claro, evitando as atenções de magos ambiciosos do sétimo nível. Valia a pena ver aquilo.

Billias sorriu para o garoto, que retribuiu com um olhar centrado em algum ponto vários centímetros além de sua nuca.

Desconcertado, Billias dobrou os dedos. Aquele não era exatamente o jogo que ele tinha em mente. Sentiu, então, uma vontade irresistível de impressionar. Depois, veio a irritação consigo próprio, proveniente da estupidez de estar nervoso.

— Vou mostrar a você — disse, tomando fôlego — o Maravilhoso Jardim de Maligree.

Ouviu-se um grande murmúrio. Em toda a história da Universidade, somente quatro magos haviam conseguido executar o jardim completo. A maioria dos magos conseguia criar as árvores e flores, e alguns tinham formado os pássaros. Não era o feitiço mais poderoso — não movia montanhas —, mas, para alcançar os detalhes sutis produzidos nas complexas sílabas de Maligree, era preciso muito talento.

— Observe — acrescentou Billias. — Não tenho nada nas mangas.

Os lábios começaram a se mexer. As mãos agitaram-se no ar. Uma poça de centelhas douradas surgiu na palma de sua mão, girou, formou uma esfera indistinta, começou a definir os detalhes…

Dizia a lenda que Maligree, um dos últimos verdadeiros fonticeiros, criou o jardim como um pequeno universo particular, atemporal, onde podia se trancar, fumar ou meditar sossegado, enquanto fugia às ansiedades do mundo. O que, por si só, já era um enigma, porque nenhum mago conseguia entender como uma criatura tão poderosa quanto um fonticeiro poderia ter ansiedade.


Fosse qual fosse o motivo, Maligree se fechou cada vez mais no seu mundo, até que, um dia, trancou definitivamente a porta de entrada.

O jardim era uma bola brilhante nas mãos de Billias. Os magos mais próximos esticaram o pescoço sobre o ombro dele e puderam admirar a esfera de 60 centímetros, que exibia uma delicada paisagem cheia de flores. Havia um lago em plano médio, perfeito em cada ondulação, e montanhas roxas por trás de uma floresta fascinante. Passarinhos do tamanho de abelhas voavam de uma árvore para outra, e dois veados menores que camundongos ergueram os olhos do pasto e fitaram Coin.

Que opinou:

— É bem legal. Passe para mim.

Ele tirou o globo impalpável das mãos do mago e suspendeu-o.

— Por que não é maior? — perguntou.

Billias enxugou a testa com o lenço de borda rendada.

— Bem — respondeu, sem forças, tão perplexo com o tom de Coin que não teve como se sentir afrontado. — Há muito tempo, a eficácia do feitiço é…

Por um instante, Coin manteve a cabeça inclinada, como se ouvisse algo. Então, sussurrou algumas sílabas e alisou a superfície da esfera.

Ela cresceu. Em um momento, era um brinquedo nas mãos do garoto. No momento seguinte…

… os magos estavam no gramado frio, num campo sombreado que se estendia até o lago. Uma brisa suave soprava das montanhas. Tinha cheiro de tomilho e capim. O céu era de um azul intenso, tendendo para o roxo no zênite.

No pasto, sob as árvores, os veados olhavam os recém-chegados com desconfiança.

Horrorizado, Lingote baixou as vistas. Um pavão lhe bicava o cadarço…-começou Billias, e parou.

Coin ainda segurava a esfera, uma esfera de ar. Dentro dela, distorcido como se olhado através de lentes de 180 graus, ou de fundo de garrafa, estava o salão principal da Universidade Invisível.

O menino correu os olhos pelas árvores, fitou, pensativo, as distantes montanhas cobertas de neve e balançou a cabeça para os homens abismados.

— Nada mau — considerou. — Eu gostaria de voltar aqui.

Ele mexeu as mãos num gesto complicado que, de algum modo inexplicável, parecia virá-las pelo avesso.

De repente, os magos estavam de volta ao salão, e o menino segurava o jardim encolhido com a palma da mão aberta. No silêncio opressivo, devolveu a esfera a Billias e disse:

— Foi interessante. Agora é minha vez de executar um pouco de magia.

Ele ergueu as mãos, encarou Billias e fez com que o mago desaparecesse.

Houve certa confusão, como é costume nessas situações. No centro da balbúrdia estava Coin, completamente tranqüilo, em meio a uma nuvem crescente de fumaça.

Ignorando o tumulto, Lingote se abaixou devagar e, com extremo cuidado, pegou uma pena de pavão no chão. Passou-a nos lábios, pensativo, enquanto olhava, do vão da porta, para o menino, depois para a cadeira vaga do arqui-reitor. A boca, então, estreitou-se, e ele começou a sorrir.

Uma hora mais tarde, quando os raios começavam a fulgurar no céu da cidade, e Rincewind passava a cantar baixinho e esquecer tudo sobre baratas, e um colchão solitário vagueava pelas ruas, Lingote fechou a porta do gabinete do arqui-reitor e virou-se para os colegas magos.

Havia seis deles, e estavam todos muito preocupados. Tão preocupados, percebeu Lingote, que vinham dando ouvidos a ele, um mero mago de quinto grau.

— Ele foi para a cama — informou. — Com um copo de leite quente.

— Leite? — surpreendeu-se um dos magos, com verdadeiro horror expresso na voz.

— E novo demais para bebidas alcoólicas — explicou o tesoureiro.

— Ah, sim. Que tolice, a minha!

O mago de olhos encovados à frente perguntou:

— Vocês viram o que ele fez com a porta?

— Eu sei o que ele fez com o Billias!

— O quê?

— Nem quero saber!

— Irmãos, irmãos — chamou Lingote, de maneira apaziguadora.

O tesoureiro mirou as faces preocupadas e pensou: jantares demais. Muitas tardes esperando a criadagem levar o chá. Tempo demais gasto em quartos abafados, lendo livros antigos escritos por homens mortos. Brocados de ouro e cerimônias demais. Gordura demais. A Universidade inteira é como um fruto maduro, pronto para um bom puxão…

Ou um bom empurrão…

— Eu me pergunto se realmente temos um problema — disse ele.

Gravie Derment, um dos Sábios da Sombra Desconhecida, esmurrou a mesa.

— Cruz-credo, homem dos deuses! — gritou. — Um menino aparece no meio da noite, derruba dois dos nossos melhores homens, senta na cadeira do arqui-reitor, e você se pergunta se temos um problema? O garoto tem talento! Pelo que vimos hoje à noite, não existe mago no Disco que possa enfrentá-lo!

— E por que temos de enfrentá-lo? — insistiu Lingote, num tom de voz lúcido.

— Porque é mais poderoso do que nós!

— E…?

A voz de Lingote faria folha de vidro parecer campo arado, faria mel parecer pedra.

— E evidente… — Gravie hesitou. Lingote abriu um sorriso, à guisa de incentivo.

— Aham.

Quem chamava era Marmaric Carding, chefe da Irmandade do Logro. Levantou os dedos cheios de anéis e encarou Lingote por cima deles. O tesoureiro o detestava. Desconfiava imensamente da inteligência do homem. Suspeitava que poderia ser muito grande e que, por trás daquelas bochechas cobertas de veias, havia uma mente cheia de pequenas rodas lustradas girando ensandecidas.

— Ele não parece disposto a usar esse poder — considerou Carding.

— E quanto a Billias e Virrid?

— Birra de criança.

Os outros magos alternavam o olhar entre ele e o tesoureiro. Tinham a sensação de que alguma coisa estava acontecendo, mas não conseguiam entender exatamente o quê.

O motivo de os magos não governarem o Disco era bem simples. Se entregássemos um pedaço de corda a dois magos, eles puxariam em direções opostas. Algo em sua genética ou em sua formação lhes conferia uma postura, em relação à cooperação mútua, que fazia um velho elefante com dor de dente terminal parecer formiguinha trabalhadeira.

Lingote abriu os braços.

— Irmãos — disse, mais uma vez, — não vêem o que está acontecendo? Temos aqui um jovem habilidoso, talvez criado no isolamento dos campos, hum, incultos, que, sentindo a antiga chamada da magia no corpo, viajou por estradas tortuosas, passando por sabe-se lá que perigos e, por fim, atingiu o destino da viagem, sozinho e amedrontado, querendo de nós, seus mestres, apenas disciplina para ajustar e guiar seus talentos. Quem somos nós para jogá-lo ao, hum, relento invernal, negando…

O discurso foi interrompido por Gravie, que assoava o nariz:

— Não é inverno — rebateu o mago. — A noite está bem quente.

— Ao clima traiçoeiro e inconstante da primavera — grunhiu Lingote. — E maldito seria o homem que não cedesse, hum, nessa época…

— É quase verão — Carding, pensativo, coçou o nariz. — O menino tem uma vara — observou. — Quem a deu a ele? Você perguntou?

— Não — respondeu Lingote, ainda olhando furiosamente para o interruptivo defensor do calendário.

Carding começou a olhar para as unhas, o que Lingote considerou um trejeito sugestivo.

— Bem, qualquer que seja o problema, tenho certeza de que pode esperar até amanhã — disse, numa voz que Lingote considerou ofensivamente entediada.

— Minha nossa, ele deu sumiço em Billias! — exclamou Gravie.

E dizem que não tem nada além de fuligem no quarto de Virrid!

— Talvez os dois tenham sido um pouco insensatos — argumentou Carding, com tranqüilidade. — Meu bom irmão, estou certo de que você não seria derrotado nos assuntos da Arte por um simples garoto.

— Bem, qualquer que seja o problema, tenho certeza de que pode esperar até amanhã — disse, numa voz que Lingote considerou ostensivamente entediada.

— Minha nossa, ele deu sumiço em Billias! — exclamou Gravie.

— E dizem que não tem nada além de fuligem no quarto de Virrid!

Gravie hesitou.

— Bem, hã — disse. — Não. Claro que não. — Olhou o sorriso inocente de Carding e tossiu alto: — Certamente não. Billias foi muito insensato. Mas, com certeza, um pouco de cautela…

— Então sejamos cautelosos amanhã de manhã — decretou Carding, animado. — Irmãos, suspendamos a reunião. O menino está dormindo e, pelo menos nisso, deve nos servir de exemplo. Tudo vai parecer melhor à luz do dia.

— Já vi coisas que não pareciam — advertiu, com voz sombria, Gravie, que não confiava na juventude. Achava que isso jamais trazia algo de bom.

Os magos seniores voltaram ao salão principal, onde o jantar havia chegado ao nono prato e estava começando a entrar no ritmo. E preciso mais que um pouco de magia e alguém virando fumaça para tirar o apetite de um mago.

Por algum motivo inexplicável, Lingote e Carding foram os últimos a sair. Permaneceram sentados nas duas extremidades da mesa, olhando um para o outro, como gatos. Gatos podem ficar nas extremidades de uma rua e olhar um para o outro por horas a fio, realizando um tipo de manobra mental que faria um mestre no jogo de xadrez parecer impulsivo. Mas os gatos não chegam nem perto dos magos. Os dois só se sentiam prontos para avançar depois de imaginarem todo o diálogo seguinte e saberem se permitiria uma nova jogada.

Lingote cedeu primeiro:

— Todos os magos são irmãos — disse. — Devemos confiar uns nos outros. Tenho informações.

— Eu sei — afirmou Carding. — Você sabe quem é o menino.

Os lábios de Lingote mexeram-se em silêncio enquanto ele tentava prever o trecho seguinte da conversa.

— Você não pode ter certeza disso — arriscou, afinal.

— Meu caro Lingote, você cora quando inadvertidamente fala a verdade.

— Eu não corei!

— Exatamente — concluiu Carding. — É o que estou querendo dizer.

— Tudo bem — admitiu Lingote. — Mas você sabe alguma outra coisa.

O mago gordo encolheu os ombros.

— Um simples palpite — alegou. — Mas por que eu deveria me aliar — ele enrolou a língua na palavra pouco familiar — a você, um mero mago de quinto grau? Seria mais correto se eu obtivesse as informações derretendo o seu cérebro. Entenda, não estou querendo ofender, só gostaria de saber.

Os acontecimentos dos instantes seguintes ocorreram rápido demais para se deixarem compreender por quem não é mago, mas foram mais ou menos assim:

Lingote vinha desenhando os signos do Acelerador de Megrim no ar, debaixo da mesa. Ele murmurou as sílabas e atirou o feitiço ao longo da mesa, onde deixou um rastro de fumaça no verniz e, na metade do caminho, deparou-se com as cobras prateadas do Poderoso Áspide-Spray de Irmão Mestrecalado, que saíram dos dedos de Carding.

Os dois feitiços se engalfinharam, viraram uma bola de fogo verde e explodiram, enchendo o gabinete de cristais amarelos.

Os magos trocaram aquele tipo de olhar arrastado em que se poderiam assar amendoins.

De repente, Carding estava surpreso. Não deveria estar. Magos de oitavo nível raramente se vêem diante de desafios de habilidade mágica. Em tese, existiam apenas sete outros magos de igual poder, e todo mago inferior seria, por definição… bem, inferior. Isso os deixa servis. Mas Lingote, por sua vez, estava no quinto nível. Pode ser duro estar no topo, e provavelmente é ainda mais duro lá embaixo, mas o meio do caminho é tão duro que dá para usá-lo como ferradura. A essa altura, todos os desiludidos, preguiçosos, idiotas e azarados já foram eliminados, a área está limpa e os magos encontram-se sozinhos, cercados de inimigos mortais por todos os lados. Abaixo, existem os hostis do nível quatro, esperando para lhe passarem a perna. Acima, há os arrogantes do sexto grau, ansiosos por esmagar qualquer ambição possível. E, evidentemente, à volta estão os colegas de nível cinco, prontos para a primeira oportunidade de diminuir um pouco a competição. E não há brecha. Os magos de quinto nível são cruéis e inflexíveis, têm reflexos de aço, e os olhos são estreitos por estarem sempre fitando aquele quilômetro metafórico ao fim do qual fica o prêmio dos prêmios: o chapéu de arqui-reitor.

A idéia de cooperação começou a exercer algum fascínio sobre Carding. Havia poder verdadeiro ali, que poderia ser útil até quando se fizesse necessário. Depois, é claro, ele talvez tivesse de ser… desencorajado…

Lingote pensou: pistolão. Já havia escutado o termo, embora jamais dentro da Universidade, e sabia que significava conseguir que aqueles que estão acima nos dêem uma mãozinha. Normalmente, nenhum mago jamais sonharia em dar uma mãozinha a um colega, a menos que fosse para esbofeteá-lo. A mera idéia de incentivar um adversário… Por outro lado, aquele velho idiota talvez pudesse ser de valia durante algum tempo, e depois, bem…

Eles se entreolharam com rancorosa admiração mútua e desconfiança ilimitada, mas, pelo menos, era uma desconfiança com a qual ambos sentiam que podiam contar. Até depois.

— O nome dele é Coin — confidenciou Lingote. — Disse que o pai se chamava Ipslore.

— Fico imaginando quantos irmãos ele tem — disse Carding.

— O quê?

— Há séculos não existe mágica assim na Universidade — considerou Carding. — Há milhares de anos. Eu mesmo só li a respeito.

— Expulsamos um Ipslore trinta anos atrás — observou Lingote.

— De acordo com os registros, ele havia se casado. Se teve filhos, todos seriam magos, mas não consigo entender como…

— Aquilo não era magia de mago. Era fonticeria — advertiu Carding, recostando-se na cadeira.

Lingote encarou-o por sobre o verniz borbulhante da mesa.

— Fonticeria?

— O oitavo filho de um mago torna-se um fonticeiro.

— Eu não sabia!

— Não é muito divulgado.

— Tudo bem, mas… os fonticeiros viveram muito tempo atrás. Quer dizer, a magia era muito mais forte naquela época, hum, o homem era diferente… não tinha nada a ver com procriação —

Lingote estava pensando: ter oito filhos significa que ele fez aquilo oito vezes. Pelo menos. Nossa! — Os fonticeiros podiam tudo — continuou. — Eram quase tão poderosos quanto os deuses. Hum.

Não havia fim para os problemas. Os deuses não permitiriam mais esse tipo de coisa, confiar nisso.

— Bem, havia problemas porque os fonticeiros brigavam entre si — explicou Carding. — Mas um fonticeiro só não seria problema. Isto é, um fonticeiro bem-assessorado. Por magos mais velhos e inteligentes.

— Mas ele quer o chapéu de arqui-reitor!

— Por que não?

Lingote ficou boquiaberto. Aquilo já era demais, até para ele. Carding sorriu, cordial.

— Mas o chapéu…

— É só um símbolo — disse Carding. — Nada de especial. Se ele quer, pode ter. É besteira. Um símbolo, nada mais. Um chapéu-de-ferro.

— Chapéu-de-ferro?

— Usado por um testa-de-ferro.

— Mas os deuses escolhem o arqui-reitor!

Carding ergueu uma sobrancelha.

— Escolhem? — perguntou, e tossiu.

— Bem, escolhem. Imagino que sim. Em certo sentido.

— Em certo sentido?

Carding levantou-se e ajeitou o manto.

— Eu acho — disse — que você ainda tem muito que aprender. Aliás, onde está o chapéu?

— Não sei — respondeu Lingote, ainda um tanto perturbado. — Por aí, hum, nos aposentos de Virrid.

— É melhor pegá-lo — sugeriu Carding.

Ele se deteve à porta e alisou a barba, pensativo.

— Lembro-me bem de Ipslore — comentou. — Fomos colegas nas aulas. Sujeito impossível. Hábitos estranhos. Um mago excelente, é claro, até ir para o mau caminho. Tinha um jeito engraçado de mexer a sobrancelha quando ficava animado — Carding regrediu quarenta anos na memória e estremeceu. — O chapéu — lembrou, então. — Vamos procurá-lo. Seria terrível se algo lhe acontecesse.

Na verdade, o chapéu não tinha a menor intenção de deixar que algo lhe acontecesse e, naquele momento, corria em direção à Tambor Remendado, sob o braço do desorientado ladrão vestido de preto.

O ladrão, como logo ficará claro, era um tipo especial de ladrão. Um artista do roubo. Outros ladrões apenas roubavam tudo que não estivesse pregado. Esse ladrão, no entanto, roubava também os pregos. Ele havia escandalizado Ankh por nutrir particular interesse em roubar, com assombroso sucesso, objetos que não só se encontravam pregados, mas também vigiados por guardas atentos, em casas-fortes inacessíveis. Existem artistas que pintam o teto inteiro de uma capela. Esse era o tipo de ladrão que poderia roubá-lo.

A esse ladrão, em especial, atribuíam o roubo da preciosa faca estripadora do Templo de Offler, o Deus Crocodilo, em plena oração vespertina, e das ferraduras de prata do melhor cavalo do Patrício, durante uma corrida. Quando Gritoller Mimpsey, superintendente do Grêmio dos Ladrões, foi empurrado no mercado e depois, ao voltar para casa, descobriu que um punhado de diamantes recém-roubados havia desaparecido de onde estava, soube a quem culpar (isso porque Gritoller havia engolido as pedras para guardá-las em lugar seguro). Esse era o tipo de ladrão que podia nos roubar a iniciativa, o momento e as palavras. Entretanto, era a primeira vez que roubava um objeto que não apenas lhe pedira isso — em voz baixa, porém autoritária —, mas também lhe dera indicações, de certo modo incontestáveis, sobre como deveria proceder.

Agora, era aquele momento crucial do dia útil ankh-morporkiano, quando quem ganha a vida debaixo do sol está descansando, depois do serviço, e quem trabalha ao luar gélido está juntando energias para começar. Na verdade, o dia havia alcançado aquele ponto em que fica tarde demais para o arrombamento de portas e cedo demais para o assalto à mão armada.

Rincewind estava sentado sozinho no bar cheio e enfumaçado. Por isso não prestou muita atenção quando uma sombra passou pela mesa, e um vulto sinistro sentou-se de frente para ele. Não havia nada de extraordinário em vultos sinistros naquele lugar. A Tambor acalentava a reputação de taverna mais infame de Ankh-Morpork, e o grande troll que agora vigiava a porta examinava os fregueses à procura de traços condizentes, como capas negras, olhos brilhantes, espadas mágicas e assim por diante. Rincewind nunca soube o que ele fazia com os indivíduos que não se encaixavam no perfil. Talvez os comesse.

Quando o vulto falou, a voz rouca surgiu das profundezas do capuz de veludo preto, forrado com pele de animal.

— Psiu! — chamou. — Estou à procura de um mago.

A voz parecia simular a rouquidão, mas, novamente, isso não era novidade na Tambor.

— Algum mago em particular? — perguntou Rincewind, com cautela. Qualquer um poderia se meter em apuros, num caso desses.

— Um que guarde o sentido da tradição e não se importe em assumir riscos em troca de uma boa recompensa — disse outra voz. Ela parecia vir da caixa arredondada, de couro preto, debaixo do braço do desconhecido.

— Ah — soltou Rincewind. — Isso limita um pouco as coisas. Envolve alguma viagem arriscada a terras desconhecidas e provavelmente perigosas?

— Envolve.

— Encontro com criaturas exóticas? — indagou Rincewind, sorrindo.

— Talvez.

— Morte quase certa?

— Quase certo que sim.

Rincewind balançou a cabeça e pegou o chapéu.

— Bem, eu lhe desejo sorte em sua busca — disse. — Eu mesmo poderia ajudá-lo, mas não vou.

— O quê?

— Sinto muito. Não sei por que, mas a idéia de morte certa, em terras desconhecidas, sob a garra de monstros exóticos, não me agrada. Já tentei e não me adaptei. Cada um na sua, é o que dizem, e eu nasci para o tédio.

Enfiou o chapéu na cabeça e levantou-se, vacilante. Havia chegado ao pé da escada que conduzia à rua quando uma voz logo atrás dele se fez ouvir:

— Um mago de verdade teria aceitado.

Ele poderia ter seguido adiante. Poderia ter subido a escada, alcançado a rua, comprado uma pizza no restaurante klatchiano de Beco dos Golpes e ido dormir. A história teria sido totalmente diferente — na verdade, bem mais curta —, e ele teria aproveitado uma boa noite de sono, embora no chão.

O Futuro prendeu a respiração, esperando que Rincewind se fosse.

Ele não se foi por três motivos. O primeiro era o álcool. O segundo era a minúscula chama de orgulho que flameja mesmo no coração do maior dos covardes. E o terceiro era a voz. Era linda. Parecia aveludada.

O assunto “magos e sexo” é complicado. Mas como já foi sugerido, em essência, resume-se ao seguinte: quando se trata de vinho, mulher e música, os magos podem beber e dançar à vontade.

O motivo apresentado aos magos jovens era que a prática da magia era difícil, absorvente e incompatível com atividades complicadas e secretas. Muito mais sensato, advertiam-lhes, seria que parassem de se preocupar com aquele tipo de coisa e realmente dominassem a Cartilha Oculta de Woddeley, por exemplo.

Por estranho que pareça, a justificativa não parecia satisfizê-los, e os magos jovens desconfiavam de que o verdadeiro motivo residia no fato de que as regras eram feitas por magos velhos. Com memória fraca. Os alunos estavam enganados, embora a verdadeira razão tivesse, havia muito tempo, sido esquecida: se os magos pudessem sair por aí procriando, haveria risco de fonticeria.

Evidentemente, Rincewind sabia um pouco das coisas e havia levado seu aprendizado a tal ponto que conseguia passar várias horas seguidas em companhia de uma mulher sem precisar sair para tomar uma chuveirada e se deitar. Mas aquela voz faria até estátua descer do pedestal para correr em volta do campo e executar flexões. Era uma voz que poderia fazer “bom dia” parecer convite para a cama.

A desconhecida tirou o capuz e sacudiu a cabeleira. Os fios eram louros, quase brancos. Como a pele estava bronzeada, o efeito geral era calculado para atingir a libido masculina feito chumbo grosso.

Rincewind hesitou e perdeu uma excelente oportunidade de ficar na sua. Do alto da escada, veio a voz grossa do troll:

— Ei, eu dixe que voxê não podia entrar…

Ela deu um salto para a frente e botou a caixa redonda de couro nos braços de Rincewind.

— Rápido, você tem de vir comigo — disse. — Está correndo grande perigo!

— Por quê?

— Porque, se não vier, vou matá-lo.

— Tudo bem, mas, espere um instante, nesse caso… — protestou Rincewind, sem forças.

Três membros da guarda pessoal do Patrício apareceram no alto da escada. O líder abriu um sorriso. O sorriso sugeria que ele pretendia ser o único a se divertir com a piada.

— Ninguém se mexa — ordenou.

Rincewind ouviu o barulho de outros guardas surgindo na porta dos fundos. Os outros fregueses da Tambor se detiveram empunhando armas variadas. Aqueles não eram os vigilantes municipais, sempre precavidos e jovialmente corruptos. Aquilo eram toras ambulantes de puro músculo, que não se deixavam subornar, mesmo porque o Patrício podia pagar mais que qualquer pessoa. Fosse como fosse, eles não pareciam estar à procura de ninguém, além da mulher. O resto da clientela relaxou e preparou-se para assistir ao espetáculo. Eventualmente, talvez decidissem participar, uma vez que era óbvio o lado vencedor.

Rincewind sentiu a pressão aumentar em torno do pulso.

— Você está doida? — sussurrou. — Isso é desafiar o Homem!

Ouviu-se um zunido e, no ombro do sargento, de repente brotou um cabo de faca. A garota deu meia volta e, com precisão cirúrgica, acertou o pezinho entre as pernas do primeiro guarda à porta. Vinte pares de olhos lacrimejaram por compaixão.

Rincewind segurou o chapéu e tentou mergulhar debaixo da mesa mais próxima, mas a mão que o agarrava era de aço. O segundo guarda a se aproximar levou uma facada na coxa. Depois, a garota sacou uma espada comprida feito agulha e ergueu-a ameaçadoramente.

— Mais alguém? — perguntou.

Um dos guardas suspendeu uma balista. O bibliotecário, que estava sentado, debruçado sobre sua bebida, estendeu um braço que parecia dois cabos de vassoura amarrados com elástico e deu-lhe um tapa. O dardo ricocheteou na estrela do chapéu de Rincewind e acertou a parede, ao lado de um respeitado alcoviteiro, sentado a duas mesas dali. O guarda-costas dele lançou outra faca, que quase atingiu um ladrão do outro lado do bar, que ergueu uma cadeira e acertou dois guardas, que espancaram quem estava mais perto deles, bebendo. Depois disso, uma coisa meio que levou a outra, e logo todos lutavam para tentar algo — ou fugir, ou revidar.

Rincewind se viu arrastado para trás do balcão. O proprietário estava ali debaixo, sentado nos sacos de dinheiro, com dois facões cruzados sobre os joelhos, aproveitando um drinque tranqüilo. De vez em quando, o barulho de móveis se quebrando o fazia encolher.

A última coisa que Rincewind viu antes de ser arrastado dali foi o bibliotecário. Apesar de parecer um saco peludo cheio de água, o orangotango tinha o peso e o tino de qualquer homem do bar e estava, agora, sentado nos ombros de um guarda, tentando, com relativo sucesso, desparafusar sua cabeça.

Mais preocupante para Rincewind era o fato de ele estar sendo levado para o andar de cima.

— Minha cara senhorita — disse, em desespero. — O que você pretende?

— Existe uma passagem para o telhado?

— Existe. O que há nessa caixa?

— Psiu!

Ela se deteve numa curva do sujo corredor, vasculhou a pochette e espalhou um punhado de pequenos objetos de metal pelo chão. Cada qual consistia em quatro pregos soldados, de maneira que não importava o modo como as peças caíam: um deles sempre apontava para cima.

A garota analisou o vão de porta mais próximo.

— Você não teria um metro de corda aí? — perguntou, esperançosa.

Ela havia sacado outra faca e estava brincando com ela.

— Acho que não — respondeu Rincewind, com voz sumida.

— Que pena! A minha acabou. Tudo bem, vamos lá.

— Por quê? Eu não fiz nada!

Ela se dirigiu à janela mais próxima, abriu as persianas e parou com uma perna sobre o peitoril.

— Tudo bem — falou. — Fique aí e explique aos guardas.

— Por que estão seguindo você?

— Não sei.

— Ah, qual é! Deve haver um motivo!

— Ah, são vários motivos. Só não sei por qual deles. Você vem?

Rincewind hesitou. A guarda pessoal do Patrício não era conhecida por oferecer um policiamento comunitário solidário, preferindo sair cortando pedaços. Entre as coisas das quais os guardas não gostavam, estavam, bem, basicamente pessoas que se encontravam no mesmo universo. Era provável que fugir deles fosse crime capital.

— Acho que vou com você — disse Rincewind, galante. — Mulher sozinha pode acabar em apuros nessa cidade.

Uma neblina gelada enchia as ruas de Ankh-Morpork. Os letreiros luminosos dos vendedores de rua produziam pequenos halos amarelados na névoa densa. Da esquina, a menina espiou o movimento.

— Nós os despistamos — informou. — Pare de tremer. Você está seguro agora.

— O quê?! Agora que estou sozinho com uma maníaca assassina? — disse Rincewind. — Ótimo.

Ela se acalmou e riu dele.

— Estive observando você — comentou. — Uma hora atrás, estava com medo de que o futuro pudesse ser monótono e desinteressante.

— Eu quero que seja monótono e desinteressante — rebateu Rincewind, com azedume. — Meu medo é que seja curto.

— Vire-se — ela pediu, entrando num beco.

— Nem por decreto — ele objetou.

— Vou tirar a roupa.

Rincewind deu meia-volta, o rosto vermelho. Ouviu um leve ruge-ruge e sentiu um sopro de perfume. Depois de um tempo, ela disse:

— Pode olhar.

Não olhou.

— Não se preocupe. Vesti outra.

Ele abriu os olhos. A menina usava um recatado vestido branco de renda, com mangas encantadoramente bufantes. Ele abriu a boca. Notou com grande clareza que, até então, o problema havia sido simples e modesto. Nada de que não pudesse escapar, se tivesse uma boa chance, ou, se isso não acontecesse, com uma boa corrida. O cérebro começou a enviar mensagens urgentes a correr pelos músculos, mas, antes que eles pudessem reagir, a garota já tinha lhe agarrado o braço outra vez.

— Você realmente não deveria ficar tão nervoso — observou com doçura. — Agora, vamos dar uma olhada nisso.

Ela removeu a tampa da caixa redonda, que se encontrava nos braços de Rincewind, e retirou o chapéu de arqui-reitor.

As octarinas em torno da copa cintilavam nas oito cores do espectro, criando, no beco enevoado, o tipo de efeito que demandaria um diretor de efeitos especiais muito talentoso e toda uma série de filtros para que fosse realizado por meios que não envolvessem mágica. Quando ela o suspendeu no ar, o objeto criou uma nebulosa de cores própria que muito poucas pessoas chegam a ver em circunstâncias lícitas.

Rincewind caiu de joelhos.

Ela o fitou, intrigada.

— Cansaço nas pernas?

— E… é o chapéu! O chapéu de arqui-reitor! — exclamou Rincewind, com a voz rouca. Os olhos se comprimiam. — Você o roubou! — gritou, voltando a se levantar e tentando pegar a aba brilhante.

— É só um chapéu.

— Passe para mim, agora mesmo! Mulher não pode encostar nele! Pertence aos magos!

— Por que você está tão nervoso? — surpreendeu-se.

Rincewind abriu a boca. Rincewind fechou a boca. Ele queria dizer: “É o chapéu de arqui-reitor, entende? É usado pelo cabeça de todos os magos, bem, na cabeça do cabeça de todos os magos, não, metaforicamente é usado por todos os magos, pelo menos em tese, e é ao que todo mago aspira, é o símbolo da magia organizada, o ponto alto da carreira, um símbolo, que significa para todos os magos…”

E assim por diante. Rincewind fora avisado sobre o chapéu no primeiro dia de Universidade, e aquilo havia se afundado em sua mente impressionável feito peso de chumbo em gelatina. Ele não tinha certeza de muita coisa nesse mundo, mas estava certo de que o chapéu de arqui-reitor era importante. Talvez até os magos precisassem de um pouco de magia na vida.

Rincewind, chamou o chapéu.

Ele encarou a garota.

— Falou comigo!

— Como uma voz na sua cabeça?

— É.

— Também falou comigo.

— Mas sabia meu nome!

É claro, idiota. Afinal de contas, somos um chapéu mágico.

A voz do chapéu não era apenas aveludada. Tinha, também, um estranho efeito de coral, como se diversas vozes falassem ao mesmo tempo, em uníssono quase perfeito.

Rincewind se aprumou.

— Ó grande e maravilhoso chapéu — disse, cheio de pompa —, acabe com essa menina insolente, que teve a audácia, mais que isso, a…

Ah, cale a boca. Ela nos roubou porque ordenamos que o fizesse. E foi coisa rápida.

— Mas ela é… — começou Rincewind, e então vacilou. — Ela é do sexo feminino… — sussurrou.

Sua mãe também.

— E, bem, mas ela fugiu antes de eu nascer — murmurou Rincewind.

De todas as tavernas infames da cidade, você tinha de entrar na dele, reclamou o chapéu.

— Foi o único mago que achei — respondeu a garota. — Parecia direito. Tinha “Mago” escrito no chapéu e tudo o mais.

Não acredite em tudo que lê. Bem ou mal, agora é tarde. Não temos muito tempo.

— Espere aí, espere aí — apressou-se em intervir Rincewind. — O que está acontecendo? Você quis que ela o roubasse? Por que não temos muito tempo? — Ele apontou um dedo acusatório para o chapéu. — De qualquer maneira, você não pode sair por aí se deixando roubar, deveria estar na… na cabeça do arqui-reitor! A cerimônia era hoje à noite, eu deveria estar lá…


Vem acontecendo algo terrível na Universidade. E vital que não voltemos para lá, entende? Vocês precisam nos levar para Klatch, onde existe alguém digno de nos usar.

— Por quê?

Havia algo muito estranho na voz, decidiu Rincewind. Parecia impossível desobedecê-la, como se fosse o próprio destino. Se ela o mandasse atravessar um despenhadeiro, ele estaria a meio caminho do chão quando lhe ocorresse desobedecer.

A morte de todos os magos está próxima.

Rincewind olhou à volta, a consciência pesada.

— Por quê? — indagou.

O mundo vai acabar.

— De novo?

Estou falando sério, irritou-se o chapéu. A vitória dos Gigantes do Gelo, o Apocralipse, a Hora do Chá dos Deuses, essa coisa toda.

— Podemos impedir?

O futuro é incerto nesse ponto.

A fisionomia horrorizada de Rincewind serenou aos poucos.

— É um enigma? — perguntou ele.

Talvez fosse mais fácil se você apenas fizesse o que estamos pedindo e não tentasse entender tudo, sugeriu o chapéu. Moça, por favor, coloque-nos de volta à caixa. Em breve muita gente estará nos procurando.

— Ei, espere aí — insistiu Rincewind. — Há anos eu o vejo por aí, e você nunca falou.

Não havia nada a ser dito. Rincewind assentiu. Parecia razoável.

— Ponha isso logo na caixa e vamos dar o fora — propôs a garota.

— Senhorita, um pouco mais de respeito — pediu Rincewind, cheio de orgulho ferido. — Você está falando do símbolo da magia dos magos.

— Então você leva — decidiu ela.

— Ei — chamou Rincewind, arrastando-se atrás da menina, que só se deteve depois de atravessar algumas vielas, cruzar uma rua estreita e entrar num beco entre duas casas de tal modo inclinadas que os andares superiores chegavam a se tocar.

— O quê? — perguntou ela, afinal.

— Você é o ladrão misterioso, não é? — quis saber. — Todos andam falando de você, de como roubou coisas de lugares impossíveis e tal. Você é diferente do que imaginei…

— Ah — soltou ela. — Como?

— Bem, é… mais baixa.

— Ora, vamos.

Os lampiões de rua, não exatamente comuns naquela parte da cidade, ali acabavam por completo. Não havia nada adiante, além da escuridão absoluta.

— Eu disse vamos — repetiu. — De que está com medo?

Rincewind respirou fundo.

— Assassinos, assaltantes, bandidos, malfeitores, ladrões, facínoras, espancadores, estupradores, duelistas e vândalos — respondeu ele. — Você está entrando nas Sombras![7]

— E, mas ninguém vai entrar aqui para nos procurar — ela argumentou.

— Ah, vão entrar, sim, só não vão sair — respondeu Rincewind. — Nem nós. Quer dizer, mulher bonita como você… nem é bom pensar… as pessoas daqui…

— Mas eu terei você para me proteger — alegou.

Rincewind imaginou ouvir barulho de passos algumas ruas distante.

— Eu sabia que você ia dizer isso — observou.

Homem que é homem deve andar em ruas perigosas, pensou ele. E, em algumas delas, correr.

Naquela noite nublada de primavera, o breu era tão grande nas Sombras que estava escuro demais para percebermos o avanço de Rincewind pelas ruas soturnas, de modo que o trecho descritivo subirá para além dos telhados decorados e do mar de chaminés e se deterá nas poucas estrelas tremeluzentes que conseguiam se infiltrar nas nuvens revoltas. Tentaremos ignorar os ruídos que vêm de baixo — os passos, as corridas, os gemidos, o som cartilaginoso, os gritos abafados. Pode ser que algum animal selvagem esteja andando pelas Sombras, após duas semanas de fome. Em algum lugar próximo ao centro das Sombras — o distrito nunca foi propriamente mapeado —, há um pequeno jardim. Ali, existem ao menos tochas nos muros, mas a luz emanada é a luz das próprias Sombras: medíocre, avermelhada e negra no meio.

Rincewind cambaleou para o jardim e apoiou-se no muro. A menina surgiu à luz rubra da tocha ao lado, cantarolando.

— Você está bem? — perguntou.

— Uuuurrrgh — respondeu Rincewind.

— O quê?

— Aqueles homens… — murmurou ele. — A maneira como você os chutou no… quando você os segurou pelo… quando socou aquele outro bem no… quem é você?

— Meu nome é Conina.

Impassível, Rincewind encarou-a durante algum tempo.

— Desculpe — ele disse. — Não me diz nada.

— Faz pouco tempo que cheguei aqui — justificou.

— É, imaginei que você não fosse dessas bandas — notou. — Eu teria ouvido falar.

— Estou hospedada na cidade. Vamos entrar? Rincewind viu o poste encardido, visível apenas à luz enfumaçada das tochas acesas. Indicava que a pensão por trás da portinha escura se chamava Cabeça de Troll.

Pode-se imaginar que a Tambor Remendado, cenário de brigas virtuosas apenas uma hora antes, seja uma taverna indecorosa. Na verdade, ela era uma taverna decorosamente indecorosa. Os fregueses possuíam traços de respeitabilidade — podiam tranquilamente matar uns aos outros, como iguais, mas não o faziam por vingança. Qualquer criança poderia entrar ali para tomar limonada e estar certa de que não levaria nada além de um tapa na orelha quando a mãe ouvisse seu vocabulário expandido. Em noites tranqüilas, e quando tinha certeza de que o bibliotecário não apareceria, o proprietário chegava até a botar tigelas de amendoim no balcão. Cabeça de Troll era uma fossa de cheiro diferente. Os fregueses, caso se aprumassem e melhorassem de imagem a ponto de não se deixarem reconhecer, talvez, quem sabe, poderiam aspirar a ser considerados a escória da humanidade. E, nas Sombras, escória é escória.

Por sinal, o negócio preso no poste não é uma placa. Quando decidiram chamar o lugar de Cabeça de Troll, não hesitaram.

Sentindo-se mal, e segurando a chapeleira junto ao peito, Rincewind entrou na pensão.

Silêncio. O silêncio envolveu-os quase tão espesso quanto a fumaça de uma dezena de substâncias que, seguramente, fariam derreter qualquer cérebro normal. Olhos desconfiados os fitavam através da fumaça.

Dois dados retiniram até parar sobre a mesa. O som ecoou alto, e os cubinhos provavelmente não mostravam o número da sorte de Rincewind.

Ao seguir taverna adentro a figura recatada e surpreendentemente pequena de Conina, ele estava ciente do olhar das dezenas de clientes. Então, mirou de esguelha o rosto de homens que o matariam sem pestanejar, e que acabariam descobrindo ser bem mais fácil do que imaginavam.

No local onde qualquer taverna de respeito teria o balcão, só havia uma fileira de garrafas negras atarracadas e dois grandes barris em cavaletes contra a parede.

O silêncio fechou-se como um torniquete. “Agora, a qualquer instante”, pensou Rincewind.

Um homem grandalhão, vestido apenas com um colete de pele de animal e uma tanga de couro, levantou-se e piscou maliciosamente para os colegas. Quando a boca se abriu, parecia um buraco com bainha.

— Procurando homem, mocinha? — perguntou. Ela o encarou.

— Por favor, me deixe em paz.

Risos espocaram no salão. A boca de Conina fechou-se como uma caixa de correio.

— Ah — disse o grandalhão. — Isso mesmo, adoro mulher geniosa…

A mão de Conina agitou-se. Foi um movimento rápido, detendo-se apenas aqui e aqui: depois de alguns segundos de incredulidade, o homem soltou um grunhido e se curvou, bem devagar.

Rincewind encolheu-se quando todos os outros homens da taverna se inclinaram para frente. O instinto era correr, mas ele sabia se tratar de um instinto que o faria instantaneamente morto. Aquilo ali eram as Sombras. O que quer que acontecesse em seguida, aconteceria ali. Era animador.

Uma mão tapou-lhe a boca. Duas outras arrancaram a caixa de seus braços.

Conina rodopiou, erguendo a saia para depositar o pé num alvo perfeito, ao lado da cintura de Rincewind. Alguém gemeu ao ouvido dele e caiu. Com uma pirueta, a menina pegou duas garrafas, quebrou os fundos na prateleira e pousou com as extremidades pontudas erguidas à frente. Punhais de Morpork, como eram chamados na gíria das ruas.

Diante deles, a clientela da Cabeça de Troll perdeu o interesse.

— Alguém pegou o chapéu — murmurou Rincewind, por entre os lábios secos. — Saíram pelos fundos.

Ela o fitou e correu até a porta. Os fregueses da Cabeça de Troll instantaneamente debandaram, como tubarões reconhecendo outro tubarão, e Rincewind disparou atrás dela antes que tirassem qualquer conclusão a seu respeito.

Os dois atravessaram outro beco. Rincewind tentava acompanhar os passos da menina. Quem a seguia costumava pisar em objetos pontudos, e ele não tinha certeza de que ela lembraria que ele estava do seu lado, qualquer que fosse esse lado.

Caía uma garoa fina. E no fim do beco havia um leve fulgor azul.

— Espere!

O horror na voz de Rincewind bastou para fazê-la afrouxar o passo.

— O que aconteceu?

— Por que ele parou?

— Vou perguntar — disse Conina, inabalável.

— Por que está coberto de neve?

Ela se deteve e deu meia-volta, com os braços estendidos ao longo do corpo e um dos pés batendo impacientemente no chão molhado de pedras.

— Rincewind, conheço você há uma hora e estou chocada que tenha conseguido sobreviver até agora!

— É, mas consegui, não consegui? Tenho talento para o negócio. Pergunte a qualquer um. Sou viciado.

— Viciado em quê?

— Em vida. Fiquei ligado a ela desde muito cedo e não quero abrir mão. Então, vá por mim, aquilo ali não está me parecendo nada bom!

Conina voltou a olhar para o homem envolto na resplandecente aura azul. Ele parecia olhar para algo nas mãos.

A neve caía em seus ombros feito caspa. Caspa em fase terminal. Rincewind tinha tino para essas coisas e desconfiava de que o homem havia passado do ponto em que xampu teria alguma serventia.

Os dois avançaram de lado, junto ao muro.

— Tem alguma coisa muito estranha nele — admitiu ela.

— Você está falando do fato de ele ter uma nevasca particular?

— Não parece incomodá-lo. Ele está sorrindo.

— Um sorriso congelado.

As mãos do homem haviam congelado abrindo a tampa da caixa, e o brilho das octarinas do chapéu reluzia nos dois olhos cobiçosos, já cobertos de gelo.

— Você o conhece? — perguntou Conina.

Rincewind encolheu os ombros.

— De vista — respondeu. — Chama-se Larry, o Raposa, ou Fezzy, o Arminho. Sei lá. Enfim, um roedor. Ele só rouba, é inofensivo.

— Parece estar morrendo de frio — penalizou-se Conina.

— Espero que tenha ido para um lugar mais quente. Não acha melhor fecharmos a caixa?

É perfeitamente seguro agora, garantiu a voz do chapéu, em meio ao fulgor. E que assim acabem todos os inimigos da magia.

Rincewind não parecia disposto a confiar nas palavras de um chapéu.

— Precisamos de alguma coisa para fechar a tampa — sussurrou.

— Uma faca, talvez. Você tem uma?

— Olhe para lá — pediu Conina.

Novamente, Rincewind ouviu o ruge-ruge e sentiu o sopro de perfume.

— Pode olhar agora.

Conina passou-lhe uma faca de 30 centímetros. Ele pegou-a com tato. Pequenas partículas de metal cintilavam na ponta.

— Obrigado — disse ele, virando-se. — Vai ficar sem nenhuma?

— Tenho outras.

— Aposto que sim.

Rincewind estendeu a faca com cuidado. Quando o objeto se aproximou da caixa de couro, a lâmina ficou branca e começou a desprender vapor. Ele soltou um gemido quando o frio lhe atingiu a mão — um frio abrasador e penetrante, que lhe subiu pelo braço e lhe atacou a mente. O mago forçou os dedos dormentes a se moverem e, com grande esforço, cutucou a beira da tampa com a ponta da lâmina.

O brilho sumiu. A neve virou garoa.

Com delicadeza, Conina empurrou-o de lado e tirou a caixa dos braços congelados.

— Você bem poderia fazer alguma coisa por esse homem. Parece errado simplesmente deixá-lo aí.

— Ele não vai se incomodar — argumentou Rincewind com convicção.

— É, mas você poderia ao menos encostá-lo no muro. Ou sei lá.

Rincewind pegou pelo braço o bandido congelado. O homem escorregou e caiu no chão. Onde se espatifou. Conina olhou para os cacos.

— Eca! — soltou.

Ouviu-se um tumulto mais adiante, vindo da porta dos fundos da Cabeça de Troll. Rincewind sentiu a faca escapar-lhe da mão e passar zunindo pelo seu ouvido, num trajeto horizontal que culminou no batente da porta, a vinte metros de distância. A cabeça que ali estava se encolheu às pressas.

— E melhor sairmos daqui — sugeriu Conina, correndo pelo beco. — Tem algum lugar onde a gente possa se esconder? Sua casa?

— Geralmente durmo na Universidade — desculpou-se Rincewind, trotando no encalço dela.

Você não deve voltar a Universidade, resmungou o chapéu, das profundezas da caixa. Distraído, Rincewind assentiu. A idéia certamente não o atraía.

— De qualquer forma, mulheres não podem entrar lá durante a noite — disse Rincewind.

— E de dia?

— Também não.

Conina suspirou.

— Que idiotice. Que problema os magos têm com as mulheres?

Rincewind franziu a testa.

— Não podemos ter nada com elas — explicou. — Esse é o problema.

A funesta névoa cinzenta enredava-se nas docas de Morpork, escorregando pelo cordame, enovelando os telhados molhados, escondendo-se nos becos. Muitas pessoas achavam que, à noite, o cais era ainda mais perigoso do que as Sombras. Dois assaltantes, um arruaceiro e um indivíduo que havia apenas cutucado o ombro de Conina, a fim de lhe perguntar as horas, já haviam descoberto isso.

— Posso fazer uma pergunta? — pediu Rincewind a Conina, dando um passo por cima do infeliz que se encontrava deitado às voltas com sua própria dor.

— Sim?

— Não quero ofender.

— Sim?

— Só que não pude deixar de notar…

— O que é?

— Você tem um jeito especial de lidar com estranhos. — Rincewind agachou, mas nada aconteceu.

— O que está fazendo aí embaixo? — perguntou Conina, irritada.

— Desculpe.

— Sei o que está pensando. Não posso evitar, puxei a meu pai.

— Mas quem era ele? Cohen, o Bárbaro?

Rincewind sorriu para mostrar que se tratava de brincadeira. Os lábios abriram-se num desespero crescente.

— Não precisa me gozar.

— O quê?

— Não é minha culpa.

Os lábios de Rincewind moveram-se sem produzir qualquer som.

— Desculpe — disse, afinal. — Entendi direito? Seu pai realmente é Cohen, o Bárbaro?

— É — respondeu a garota, lançando um olhar mal-humorado para Rincewind. — Todo mundo tem pai — acrescentou. — Imagino que até você.

Da esquina, ela espiou a rua.

— Está vazia. Vamos — chamou e, quando os dois já avançavam pelo chão de pedras, prosseguiu: — Imagino que seu pai tenha sido mago.

— Acho que não — objetou Rincewind. — Magia não pode passar de pai para filho.

Ele se deteve. Conhecia Cohen e havia até sido convidado para um de seus casamentos, quando o bárbaro esposou uma garota da idade de Conina. Podia-se dizer o seguinte de Cohen: ele enchia todas as horas de minutos.

— Muita gente adoraria puxar a Cohen. Quer dizer, ele era o melhor lutador, o melhor ladrão, o…

— Muitos homens gostariam — rebateu Conina.

Ela encostou-se num muro e fitou-o.

— Escute aqui — disse. — Existe uma palavra comprida… Uma bruxa velha me ensinou… mas não consigo lembrar… Vocês, magos, conhecem palavras compridas.

Rincewind pensou em palavras longas.

— Marmelada? — arriscou.

Ela sacudiu a cabeça.

— Significa que passa de pai para filho.

Rincewind franziu as sobrancelhas. Não era muito bom no quesito “pais”.

— Cleptomania? Reincidente? — sugeriu.

— Começa com H.

— Hedonismo? — propôs, em desespero.

— Heridiatário — lembrou Conina. — Essa bruxa me explicou. Minha mãe era dançarina do templo de algum deus ensandecido, e meu pai a salvou… Eles ficaram juntos durante algum tempo. Dizem que herdei a aparência dela.

— E também é maravilhosa — elogiou Rincewind, com incorrigível gentileza.

Ela corou.

— É… bem… mas dele eu herdei tendões com os quais se pode atracar um navio, reflexos de cobra, uma ânsia terrível de roubar e, sempre que conheço alguém, essa sensação medonha de que deveria atirar uma faca em seu olho, a trinta metros de distância. E eu consigo — acrescentou ela, com uma sombra de orgulho.

— Nossa.

— Isso costuma afastar os homens.

— Imagino que sim — concordou.

— Quer dizer, quando descobrem, fica difícil segurar o namorado.

— A não ser pela garganta.

— Não é o ideal para quem pretende construir uma relação.

— Não — reconheceu Rincewind. — Por outro lado, é ótimo, se você quer ser uma ladra famosa.

— Mas não é — disse Conina —, se eu quiser ser uma cabeleireira.

— Ah.

Eles olharam a névoa.

— Cabeleireira mesmo? — perguntou Rincewind.

Conina suspirou.

— Imagino que não haja muita demanda de cabeleireira bárbara — considerou o mago. — Ninguém quer corte de cabeça.

— Só que, toda vez que vejo um estojo de manicure, sinto uma vontade louca de usar e abusar do alicate de unha — confessou Conina.

Rincewind suspirou.

— Sei como é — adiantou. — Eu queria ser mago.

— Mas você é mago!

— Ali. Bem, claro, mas…

— Silêncio!

Rincewind foi jogado contra o muro, onde um pingo de névoa condensada começou, inexplicavelmente, a lhe descer pelo pescoço. Uma faca larga havia surgido na mão de Conina, e ela estava agachada como um animal selvagem, ou, ainda pior, como um ser humano selvagem.

— O que… — começou Rincewind.

— Quieto! — sussurrou a moça. — Tem alguma coisa vindo! Ela se ergueu num movimento suave, girou numa das pernas e atirou a faca. Ouviu-se um único baque surdo de madeira. Conina levantou-se e observou. Pela primeira vez, o sangue heróico que corria em suas veias — e minava qualquer possibilidade de levar uma vida atrás de um avental cor-de-rosa — pareceu perder o rumo.

— Acabei de matar uma arca — lamentou ela.

Da esquina, Rincewind foi espiar. A Bagagem estava parada no meio da rua gotejante, com a faca ainda a vibrar na tampa, e olhava a garota. Depois mudou ligeiramente de posição, as pernas movendo-se num intrincado passo de tango, e encarou Rincewind. A Bagagem não tinha fisionomia nenhuma, além da fechadura e de duas dobradiças, mas conseguia sustentar o olhar melhor que um bando de iguanas. Ela poderia até mesmo sustentar o olhar em direção a uma estátua com globos oculares de vidro. Quando se tratava de um olhar que manifestasse traição, a Bagagem deixava no chinelo qualquer cocker spaniel chutado. Trazia várias flechas e espadas fincadas na madeira.

— O que é isso? — sussurrou Conina.

— É só a Bagagem.

— É sua?

— Não exatamente. Mais ou menos.

— Perigosa?

A Bagagem mudou de posição para encará-la novamente.

— Existem duas escolas de pensamento a esse respeito — explicou Rincewind. — Tem as pessoas que dizem que ela é perigosa e as pessoas que dizem que ela é muito perigosa. O que você acha?

A Bagagem abriu um pouco a tampa.

Ela era feita da sábia madeira de pereira, planta de tal modo mágica que quase se extinguira no Disco: só crescia em um ou dois lugares. Era uma espécie de epilóbio, só que, em vez de locais bombardeados, nascia em áreas que haviam testemunhado vasto consumo de magia. A vara dos magos era tradicionalmente feita com ela; a Bagagem também.

Entre suas qualidades mágicas, havia uma bem simples e exata: ela seguiria o dono adotado a qualquer lugar. Não a qualquer lugar restrito a determinado quadro de dimensões, país, universo ou tempo de vida. A qualquer lugar. Era tão difícil de se livrar quanto dor de cabeça e consideravelmente mais desagradável.

A Bagagem também protegia o dono. Seria difícil descrever sua postura em relação ao resto do mundo, mas poderíamos começar com a expressão “malevolência nata” e continuar a partir daí.

Conina mirou a tampa. Parecia uma boca.

— Acho que eu votaria por “extremamente perigosa” — disse.

— Ela gosta de batatas fritas — observou Rincewind, e acrescentou: — Bem, isso ficou um pouco forte. Ela come batatas fritas.

— E gente?

— Ah, e gente. Acho que umas quinze pessoas, até agora.

— Boas ou más?

— Mortas. Também lava nossas roupas. A gente bota as peças ali, e saem lavadas e passadas.

— Cobertas de sangue?

— Sabe, isso é que é engraçado — notou Rincewind.

— Engraçado? — repetiu Conina, sem despregar os olhos da Bagagem.

— E, porque o interior nem sempre está igual, parece meio multidimensional e…

— O que ela acha das mulheres?

— Ah, não é seletiva. Ano passado, comeu um livro de feitiços. Ficou amuada durante três dias e então cuspiu.

— É horrível — avaliou Conina, afastando-se.

— Ah, é — concordou o mago. — Completamente.

— Quer dizer, o jeito como ela encara…

— É ótima nisso, não é?

Devemos partir para Klatch, irrompeu a voz na chapeleira. Esses navios servem. Apropriem-se de um.

Rincewind olhou as formas sombrias e anuviadas que pairavam sob o mar de cordames. Aqui e ali, as luzes de ancoragem criavam um pequeno clarão difuso no breu.

— Difícil desobedecer, não é? — perguntou Conina.

— Estou tentando — confirmou Rincewind.

O suor lhe brotou da testa.

Embarquem agora, ordenou o chapéu.

Os pés de Rincewind começaram a avançar por conta própria.

— Por que está fazendo isso comigo? — resmungou.

Porque não tenho escolha. Pode acreditar, se eu pudesse, teria encontrado um mago de oitavo nível. Eu não posso ser usado!

— Por que não? Você é o chapéu de arqui-reitor!

E, através de mim, falam todos os arqui-reitores que já viveram. Sou a Universidade. Sou a doutrina. Sou o símbolo da magia controlada pelo homem… e não serei usado por nenhum fonticeiro! Não pode mais haver fonticeiros! O mundo está gasto demais para a fonticeria!

Conina tossiu.

— Entendeu alguma coisa? — perguntou, com cautela.

— Entendi em parte, mas não acreditei — respondeu Rincewind.

Seus pés continuavam plantados no chão de pedras.

Ousaram me chamar de chapéu-de-ferro, a ser usado por um testa-de-ferro! A voz exalava sarcasmo. Magos gordos, que traem tudo que a Universidade representa… e ainda me chamam de chapéu-de-ferro! Rincewind, eu prometo. E à senhorita. Sirvam-me bem, e concederei seu maior desejo.

— Como pode conceder meu maior desejo se o mundo vai acabar?

0 chapéu pareceu pensar no assunto.

Bem, você tem um maior desejo que só leve dois minutos?

— Olhe aqui, como pode fazer magia? Você não passa de um…

A voz de Rincewind se perdeu.

Eu SOU a magia. Magia de verdade. Além disso, ninguém é usado pelos melhores magos do mundo, durante 2 mil anos, sem aprender alguma coisa. Agora, devemos partir. Mas com dignidade, é claro.

Rincewind encarou Conina, que encolheu os ombros novamente.

— Não pergunte a mim — disse ela. — Está cheirando a aventura. Estou fadada a isso. É genético.[8]

— Mas eu sou péssimo nisso! Pode acreditar, passei por dezenas de aventuras! — explicou.

Ah, experiência, exclamou o chapéu.

— Não exatamente. Sou um tremendo covarde. Sempre fujo — argumentou Rincewind. — O perigo só me vê de costas!

Não quero que você se meta em perigo.

— Ótimo!

Quero que você fique LONGE do perigo. Rincewind fraquejou:

— Por que eu?

Pela Universidade. Pela honra dos magos. Por amor ao mundo. Pela vontade do seu coração. E porque vou deixá-lo congelado, se não for.

O mago suspirou de alívio. Ele não era nada bom em aceitar subornos, adulações ou apelos à boa índole. Mas ameaças eram familiares. Ele sabia lidar com ameaças.

No Dia dos Pequenos Deuses, o sol raiou como um ovo mal escaldado. A névoa havia se fechado sobre Ankh-Morpork em faixas de ouro e prata: úmida, quente e silenciosa. Das planícies, vinha o murmúrio distante de trovões primaveris. Fazia mais calor do que deveria.

Os magos normalmente dormem tarde. Naquela manhã, porém, muitos haviam se levantado cedo e encontravam-se vagando ao acaso pelos corredores. Era possível sentir a mudança no ar.

A Universidade estava se enchendo de magia.

Em geral, é claro, ela já era cheia de magia mesmo, mas se tratava de magia velha e tranqüila, tão estimulante e perigosa quanto um par de chinelos. Agora, atravessando esse tecido antigo havia uma nova magia, aguçada e vibrante, clara e fria como fogo de cometa. Ela transpunha as pedras e estalava nas arestas feito eletricidade estática no tapete de nylon da Criação. Zumbia e chiava. Enrolava a barba dos magos e brotava, em fiapos de fumaça octarina, de dedos que havia três décadas não tinham feito nada mais místico do que uma pequena ilusão passageira. Como descrever o resultado com gosto e delicadeza? Para a maioria dos magos, era como ser o homem de idade avançada que, subitamente confrontado com uma jovem bonita, descobre, entre o espanto, o deleite e a perplexidade, que a carne, subitamente, está tão bem-disposta quanto o espírito.

E nos corredores da Universidade a palavra se fazia ouvir, sussurrada: Fonticeria!

Sorrateiramente, alguns magos tentaram feitiços que havia anos não conseguiam realizar e, espantados, observaram sua execução perfeita. A princípio, com timidez; depois, com confiança; e, então, com gritos e clamores, lançavam bolas de fogo uns nos outros, tiravam pombos dos chapéus ou faziam purpurinas multicoloridas caírem do céu.


Fonticeria! Um ou dois magos, homens nobres que até então não haviam praticado nada mais censurável do que comer ostras vivas, ficaram invisíveis e puseram-se a perseguir empregadas corredor afora.

Fonticeria! Algumas almas corajosas haviam experimentado antigos feitiços de vôo e agora pairavam vacilantes entre os caibros. Fonticeria!

Apenas o bibliotecário não tomou o café da manhã. Observou as caretas durante algum tempo, franzindo os lábios preensores, e, então, retirou-se em direção à biblioteca. Se alguém estivesse preocupado em dispensar alguma atenção, teria ouvido o ruído de porta se trancando.

Fazia silêncio na biblioteca. Os livros já não estavam mais agitados. Haviam passado do medo às águas calmas do terror absoluto e encontravam-se dispostos nas prateleiras como coelhos hipnotizados.

Um braço comprido e peludo se estendeu e pegou o Diccionário Completto de Maghia com Preceittos para os Sábios, de Casplock. Antes que o livro conseguisse se afastar, tranqüilizou-o com a mão de dedos longos e abriu-o na letra F. O bibliotecário acalmou a página estremecida e correu a unha dura pelos verbetes até chegar a:

Fonticeiro. S.m. (mittico). Protomagho, canal por onde a maghia nova pode entrar no mundo, magho que não é limitado pelas cappacidades físicas do corpo, pelo Desttino ou pela Mortte. Está escrito que havia fonticeiros nos primórdios do mundho, mas não pode haver hoje. E que assim seja, porque a fonticeria não se desttina aos homens. Portanto, a voltta da fonticeria seria o Fim do Mundo…Se o Criaddor quisesse que o homem fosse igual aos deuses, teria lhe dado asas. CONSULTE TAMBÉM: Apocralipse, Lenda dos Gighantes do Gelo e Hora do Chá dos Deuses.

O bibliotecário leu os verbetes sugeridos, voltou ao primeiro e fitou-o, com olhos sombrios, durante algum tempo. Devolveu cuidadosamente o livro à estante, arrastou-se para debaixo da mesa e cobriu a cabeça com o cobertor.

Mas, na tribuna dos trovadores do salão principal, Carding e Lingote observavam a cena com sentimentos totalmente diversos. Parados lado a lado, os dois pareciam formar o número 10.

— O que está acontecendo? — perguntou Lingote. Ele não havia dormido à noite e não vinha conseguindo pensar direito.

— A magia está fluindo para dentro da Universidade — explicou Carding. — Fonticeiro é isso. Um canal para a magia. Magia de verdade, meu filho. Não o troço antigo e enfraquecido de que vínhamos nos valendo nos últimos séculos. Esse é o alvorecer de uma… de uma…

— Nova, hum, aurora?

— Exatamente. Um tempo de milagres, um… um…

— Ânus mirabilis?

Carding franziu a testa.

— É — disse, afinal. — Algo assim, imagino. Você é bom com as palavras, sabia?

— Obrigado, irmão.

O mago sênior pareceu ignorar o grau de intimidade. Deu meia-volta e apoiou-se na cerca talhada, assistindo às exibições mágicas. As mãos automaticamente dirigiram-se ao bolso, em busca do saco de tabaco, e depois pararam. Ele sorriu e estalou os dedos. Um cigarro aceso surgiu em sua boca.

— Há anos não conseguia fazer isso — comentou. — Grandes mudanças, meu filho. Eles ainda não se deram conta, mas é o fim das ordens e dos níveis. Isso tudo não passava de um… sistema de racionamento. Não há mais necessidade. Onde está o garoto?

— Na cama… — começou Lingote.

— Estou aqui — disse Coin.

Ele estava parado sob o arco que levava aos aposentos do mago sênior, segurando a vara de octirona que tinha o dobro de seu tamanho. Pequenos veios de fogo amarelo cintilavam em sua superfície negra e fosca, escura a ponto de parecer uma fenda no mundo.


Lingote sentiu os olhos dourados atravessarem-no, como se seus pensamentos mais íntimos viessem se desenrolando no fundo do cérebro.

— Ah — o soltou, numa voz que acreditava alegre e afetuosa, mas que, de fato, parecia o estertor da morte. Depois de um começo desses, sua contribuição só poderia piorar, e foi o que aconteceu: — Estou vendo que você, hum, levantou — disse.

— Meu filho — animou-se Carding.

Coin dirigiu-lhe um olhar frio e demorado.

— Vi você ontem à noite — notou o menino. — É poderoso?

— Só um pouco — respondeu Carding, lembrando rapidamente a tendência que o menino tinha de tratar magia como queda-de-braço. — Mas não tão poderoso quanto você.

— Preciso ser arqui-reitor, como é o meu destino.

— Ah, claro — confirmou Carding. — Sem dúvida. Posso dar uma olhada na vara? Que desenho interessante…

Ele estendeu a mão rechonchuda.

Era uma tremenda falta de educação. Nenhum mago jamais pensaria em tocar o bastão de outro mago sem permissão manifesta. Mas tem gente que não acredita que criança seja completamente humana e acha que bons modos não se aplicam a ela.

Os dedos de Carding fecharam-se na vara negra.

Houve um barulho, que Lingote mais sentiu do que ouviu. Carding saiu quicando pela galeria e bateu na parede oposta, com um ruído de saco de banha de porco caindo no chão.

— Não faça isso — pediu Coin.

O menino deu meia-volta, encarou Lingote, que estava pálido, e acrescentou:

— Vá ajudá-lo. Ele não deve ter se machucado muito.

O tesoureiro cruzou a galeria e inclinou-se para Carding, que respirava com dificuldade e exibia uma coloração estranha. Bateu na mão inerte até que o mago sênior abrisse um dos olhos.

— Viu o que aconteceu? — cochichou.

— Não tenho certeza. Hum. O que aconteceu? — sussurrou Lingote.

— Ela me mordeu.

— Na próxima vez que tocar a vara — falou Coin, distraído —, você morre. Entendido?

Carding levantou a cabeça devagar, para impedir que algum pedaço caísse.

— Entendido — respondeu.

— E, agora, eu gostaria de conhecer a Universidade — anunciou o garoto. — Já ouvi falar muito a respeito…

Lingote ajudou Carding a se levantar e escorou o colega ao avançarem, obedientemente, atrás do menino.

— Não toque na vara — advertiu Carding.

— Vou me lembrar, hum, disso — garantiu Lingote. — Qual é a sensação?

— Já foi mordido por víbora?

— Não.

— Então vai saber exatamente a sensação.

— Hummm?

— Não parecia nem um pouco mordida de cobra.

Eles seguiram o vulto determinado de Coin, que desceu os degraus da escada e atravessou o destruído vão de porta do salão principal.

Lingote adiantou-se, ansioso por causar boa impressão.

— Este é o salão principal — entusiasmou-se. Coin voltou-lhe o olhar dourado, e o mago sentiu a boca secar. — Tem esse nome porque é um salão, entende? E é o principal.

Ele engoliu em seco.

— E um salão importante — continuou, esforçando — se para impedir que o resto de coerência fosse consumido pelo projetor daquele olhar.

— Um salão importante, que é o motivo de ser chamado…

— Quem é essa gente? — cortou Coin.

Ele apontou com a vara. Os magos ali reunidos, que haviam se virado para vê-lo entrar, recuaram, como se o bastão fosse um lança-chamas.

Lingote acompanhou o olhar do fonticeiro. Coin apontava para os retratos e as estátuas dos arqui-reitores, que decoravam as paredes. De barba e chapéu pontudo, segurando pergaminhos ornamentais ou misteriosas peças simbólicas de equipamentos astrológicos, eles olhavam para baixo com soberba extrema ou, possivelmente, constipação crônica.

— Dessas paredes — informou Carding —, duzentos magos supremos nos observam.

— Não gostei deles — considerou Coin, e a vara desprendeu chamas octarinas.

Os arqui-reitores sumiram.

— E as janelas são pequenas demais…

— O teto é alto demais…

— Tudo é velho demais…

Os magos se jogavam no chão à medida que a vara chispava. Lingote cobriu os olhos com o chapéu e rolou para debaixo de uma mesa quando o próprio tecido da Universidade começou a brotar ao redor. A madeira estalava, as pedras gemiam.

Alguém lhe cutucou a cabeça. Ele gritou.

— Pare com isso! — berrou Carding, acima do vozerio. — E ponha o chapéu! Mostre um pouco de dignidade!

— Então por que você está debaixo da mesa? — perguntou Lingote, irritado.

— Devemos aproveitar a oportunidade!

— Pegamos a vara?

— Siga-me!

Lingote emergiu num mundo novo e claro, terrivelmente claro.

Não mais as paredes toscas de pedra. Não mais os escuros caibros habitados por corujas. Não mais o chão de ladrilhos, com seu desenho em preto e branco. Não mais, tampouco, as pequenas janelas altas, com a suave pátina de gordura antiga. Pela primeira vez, a luz do sol entrava no salão.

Boquiabertos, os magos se entreolharam, e o que viram não era o que sempre achavam ter visto. Os implacáveis raios de sol transformavam os pomposos ornamentos de ouro num empoeirado brilho artificial, mostravam que os tecidos luxuriantes eram de veludo puído e sujo, convertiam as belas barbas esvoaçantes em maçarocas manchadas de nicotina, revelavam que os esplêndidos diamantes eram, antes, pedras inferiores. A luz fresca avançava, despindo as sombras reconfortantes.

E — Lingote tinha de admitir — o que sobrou não inspirava confiança. Ele de repente se deu conta de que, por baixo do manto — do manto esfarrapado e encardido, o que notou com um acesso adicional de culpa, do manto com furo de ratos —, ainda usava chinelos.

O salão passara a ser quase todo de vidro. O que não era vidro era mármore. Tudo parecia tão esplêndido que Lingote não se sentia à altura.

Virou-se para Carding e viu que o colega fitava Coin com brilho nos olhos.

A maioria dos outros magos trazia a mesma fisionomia. Se um mago não se deixasse atrair por poder, não seria mago, e aquilo era poder de verdade. A vara os hipnotizara como a uma naja.

Carding estendeu o braço para tocar o ombro do menino, mas pensou duas vezes.

— Magnífico — exclamou.

Virou-se para os outros magos e ergueu as mãos.

— Irmãos — anunciou —, temos entre nós um mago de grande poder!

Lingote puxou-lhe o manto.

— Ele quase matou você — sussurrou.

Carding o ignorou.

— E eu o recomendo… — continuou ele, engolindo em seco. — Eu o recomendo para arqui-reitor.

Houve um instante de silêncio, depois uma salva de palmas e gritos de discordância. Estouraram diversas brigas no fundo do salão. Os magos da frente não se encontravam tão preparados para discutir. Enxergavam o sorriso de Coin. Era frio e radiante, como o sorriso da lua.

Houve tumulto, e um mago mais velho abriu caminho até a frente da multidão.

Lingote reconheceu Ovin Hakardly, mago de sétimo nível e professor da doutrina. Ele estava vermelho de raiva, a não ser onde se mostrava branco de ódio. Quando falou, as palavras cortaram o ar como facas, aparadas como planta de topiaria, quebradiças como biscoito.

— Você enlouqueceu? — perguntou. — Só magos de oitavo nível podem ser arqui-reitor! E ele deve ser eleito pelos outros magos sêniores, em sessão solene! (Devidamente conduzida pelos deuses, é claro.) É a doutrina! (Que idéia!).

Hakardly havia estudado a doutrina mágica durante muitos anos e, como a magia costuma ser um processo de mão dupla, ela havia deixado sua marca. O homem dava a impressão de ser frágil como palha e, de alguma forma inexplicável, a intensidade de seus esforços havia lhe dado a capacidade de pronunciar os sinais de pontuação.

Ele permaneceu ali, parado, tremendo de indignação e cada vez mais solitário. Na verdade, era o centro de um crescente círculo de chão margeado por magos subitamente prontos para jurar jamais terem deitado olhos nele.

Coin havia levantado a vara.

Hakardly ergueu um dedo acusador.

— Rapaz, você não me assusta — rebateu. — Pode ter talento, mas só talento mágico não basta. Existem outras qualidades necessárias ao grande mago. Capacidade administrativa, por exemplo, sabedoria e…

Coin baixou a vara.

— A doutrina se aplica a todos os magos, não é? — perguntou.

— Claro! Ela foi criada…

— Mas eu não sou mago, lorde Hakardly.

O mago hesitou.

— Ah — soltou, e hesitou novamente. — Bom argumento — considerou, afinal.

— Mas sei da necessidade de sabedoria, precaução e bons conselhos, e ficaria honrado se o senhor me oferecesse esses bens tão estimados. Por exemplo… por que os magos não governam o mundo?

— O quê?

— É uma pergunta simples. Existem nessa sala… — os lábios os lábios de Coin mexeram-se por uma fração de segundo — … 472 magos, versados na mais requintada das artes. Ainda assim, tudo que governam são esses poucos hectares de má arquitetura. Por quê?

Os magos mais velhos trocaram olhares sugestivos.

— Pode parecer assim — respondeu Hakardly, por fim. — Mas, meu filho, temos domínios que fogem ao poder temporal. — Os olhos dele brilhavam. — A magia pode nos levar a lugares íntimos de mistério…

— Eu sei, eu sei — irritou-se Coin. — Mas existem muros bem sólidos delimitando a Universidade. Por quê?

Carding passou a língua nos lábios. Era extraordinário. O menino estava dizendo o que ele pensava.

— Vocês brigam pelo poder — prosseguiu Coin, candidamente —, mas, além desses muros, para o lixeiro ou para o comerciante médio, será que existe tanta diferença assim entre o mago de nível e um mero adivinho?

Hakardly fitou-o completamente perplexo.

— Meu filho, é óbvio até para o mais medíocre dos cidadãos — afirmou. — O próprio manto e os acessórios…

— Ah — disse Coin. — O manto e os acessórios. É claro.

Um silêncio pesado tomou conta da sala.

— Ao que me parece — argumentou Coin, afinal — os magos só governam outros magos. Quem governa o mundo lá fora?

— No que diz respeito à cidade, seria lorde Vetinari, o Patrício — respondeu Carding, com cautela.

— E é um governante justo?

Carding pensou na resposta. Dizia-se que a rede de espiões do Patrício era extraordinária.

— Eu diria — arriscou ele, com tato — que ele é injusto, mas escrupulosamente imparcial. É injusto com todos, sem temores ou concessões.

— E vocês estão satisfeitos com isso? — insistiu Coin.

Carding tentava não cruzar com os olhos de Hakardly.

— Não é questão de estar satisfeito — alegou. — Acho que não pensamos muito no assunto. A verdadeira vocação do mago…

— E verdade que os sábios sofrem por se deixarem governar assim?

Carding resmungou:

— Claro que não! Não seja ridículo! Apenas toleramos. É sabedoria, você vai aprender quando crescer, uma questão de aguardar o momento certo…

— Onde está o Patrício? Eu gostaria de vê-lo.

— Podemos arranjar isso — animou-se Carding. — O Patrício está sempre disposto a conceder entrevista aos magos e…

— Agora eu vou lhe conceder uma entrevista — cortou o garoto.

— Ele precisa aprender que os magos aguardam o momento certo há tempo demais. Afastem-se, por favor.

O menino apontou a vara.

O atual governante de Ankh-Morpork estava sentado na cadeira, ao pé da escada que levava ao trono, procurando algum sinal de inteligência nos relatórios da inteligência. O trono encontrava-se vazio havia mais de 2 mil anos, desde a morte do último da estirpe dos reis de Ankh. A lenda dizia que, um dia, a cidade teria rei novamente e mencionava espadas mágicas, marcas de nascença e todas essas coisas de que falam as lendas dessa espécie.

Na realidade, a única qualificação essencial era a capacidade de se manter vivo, por mais de cinco minutos, após revelar a existência de qualquer espada mágica ou marca de nascença, porque as grandes famílias de mercadores de Ankh vinham governando a cidade durante os últimos vinte séculos e se mostravam tão dispostas a renunciar ao poder quanto alguns moluscos a soltar a rocha.

O atual Patrício, chefe da riquíssima e poderosa família Vetinari, era alto, magro e, aparentemente, tinha tanto sangue-frio quanto um pingüim morto. Só de olhar para ele, já dava para afirmar que se tratava do tipo de homem que possui um gato branco, ao qual acaricia indolentemente ao condenar indivíduos a morte em tanques de piranhas. E poderíamos arriscar a dizer que, provavelmente, colecionava porcelanas raras, revirando-as entre os dedos brancos enquanto gritos distantes ecoavam das profundezas dos calabouços. Não deixaríamos de supor que usava a palavra “encantador” e tinha lábios finos. Parecia o tipo de pessoa que, quando pisca, a gente marca no calendário.

Quase nada disso era verdade, embora ele tivesse um pequeno terrier bem velho, de pêlos duros, chamado Wuffles, que cheirava e rosnava para as pessoas. Dizia-se que era a única coisa no mundo com a qual ele realmente se importava. É claro que, às vezes, mandava torturar pessoas até a morte, mas isso era considerado conduta perfeitamente aceitável para o governante municipal e, em geral, ganhava aprovação da maioria esmagadora dos cidadãos[9].

O povo de Ankh era prático e achava que o decreto do Patrício proibindo mímica e teatro de rua compensava uma porção de coisas. Não era um reinado absoluto de terror, havia apenas saraivadas ocasionais.

O Patrício suspirou e depositou o último relatório sobre a imensa pilha, ao lado da cadeira.

Quando era pequeno, havia visto um artista que conseguia manter uma dúzia de pratos girando no ar. Se o homem conseguisse realizar o mesmo truque com uma centena, imaginava Vetinari, ele estaria quase pronto para aprender a arte de governar Ankh-Morpork, cidade já descrita como um formigueiro às avessas, sem sua organização típica.

Olhou para fora da janela, viu a distante Torre de Arte, centro da Universidade Invisível, e se perguntou se aqueles velhos idiotas não conseguiriam inventar uma forma mais fácil de examinar toda aquela papelada. E claro que não conseguiriam… Não se podia esperar que um mago entendesse alguma coisa tão elementar quanto espionagem cívica.

Ele suspirou novamente e pegou a transcrição do que o presidente do Grêmio dos Ladrões havia dito ao assistente, à meia-noite, na sala à prova de som escondida atrás do escritório, na sede do grêmio, e… estava no salão princip…

Não estava no salão principal da Universidade Invisível, onde havia suportado jantares intermináveis, mas havia muitos magos à volta, e pareciam todos…

… diferentes.

Como Morte — com quem alguns cidadãos menos afortunados achavam que ele se parecia bastante —, o Patrício nunca ficava com raiva até ter tempo para pensar no assunto. Só que, às vezes, pensava muito rápido.

Olhou os magos ali reunidos, mas havia qualquer coisa que o fez engasgar com as palavras de indignação. Os homens pareciam ovelhas que, de repente, tivessem encontrado um lobo preso no exato momento em que ouviam falar na idéia de que a união faz a força.

Havia algo estranho em seus olhos.

— O que significa esse absur… — começou, mas hesitou e concluiu: — … isso? Brincadeira do Dia dos Pequenos Deuses?

Seus olhos se encontraram com os do menino que segurava a vara de metal comprida. A criança sorria o sorriso mais antigo que o Patrício já havia visto.

Carding tossiu.

— Meu lorde — disse.

— Fale logo — resmungou lorde Vetinari.

Carding interviera com timidez, mas o tom do Patrício havia sido um pouquinho autoritário demais. Os nós dos dedos do mago ficaram brancos.

— Eu sou mago de oitavo grau — murmurou —, e você não vai falar assim comigo.

— Muito bem — aprovou Coin.

— Levem-no para o calabouço — ordenou Carding.

— Não temos calabouço — objetou Lingote. — Isso aqui é uma Universidade.

— Então levem-no para a adega — decidiu Carding. — E, enquanto estiverem lá embaixo, construam o calabouço.

— Tem alguma idéia do que está fazendo? — perguntou o Patrício. — Eu exijo saber o que significa isso…

— Você não exige nada — rebateu Carding. — E significa que, de hoje em diante, os magos governam, como ficou estabelecido por nós. Agora levem-no…

— Vocês? Governarem Ankh-Morpork? Magos que mal conseguem governar a si mesmos?

— É!

Carding sabia que não era muito bom em termos de respostas espirituosas e já havia se dado conta de que o cachorro Wuffles, que fora transportado com o dono, havia trotado pela sala e, agora, observava de perto suas botas.

— Então, todo homem verdadeiramente sábio vai preferir a segurança de um bom calabouço — concluiu o Patrício. — Agora, parem com essa bobagem e me levem de volta ao palácio. Assim, pode ser que não falemos mais nisso. Ou que, pelo menos, vocês não tenham a oportunidade.

Wuffles desistiu de investigar as botas de Carding e avançou em direção a Coin, soltando pêlos no caminho.

— Essa história já passou dos limites — reclamou o Patrício. — E estou ficando…

Wuffles rosnou. Foi um som forte e primitivo, que tocou a memória racial dos presentes e encheu a todos de uma grande vontade de subir em árvore. Lembrava vultos cinzentos e compridos caçando na aurora dos tempos. Era incrível que um animal tão pequeno encerrasse tanta ameaça, e toda ela se dirigia à vara, na mão de Coin.

O Patrício deu um passo adiante para pegar o animal. Carding ergueu a mão e lançou uma chama de brilho azul e laranja pela sala. O Patrício desapareceu. No lugar em que estava, um pequeno lagarto amarelo piscava, encarando a todos com malevolente estupidez reptiliana.

Abismado, Carding fitou os próprios dedos durante algum tempo.

— Muito bem — sussurrou, com voz rouca.

Os magos olharam o lagarto arfante e miraram a cidade, resplandecente àquela hora da manhã. Lá estavam o conselho dos edis, a vigilância municipal, o Grêmio dos Ladrões, o Grêmio dos Mercadores, os sacerdócios… e ninguém sabia o que estava prestes a acometê-los.

Começou, disse o chapéu, de dentro da caixa, sobre o convés.

— Começou o quê? — perguntou Rincewind.

O domínio da fonticeria.

Rincewind pareceu indiferente.

— Isso é bom?

Você, alguma vez, entende alguma coisa que lhe dizem? Nesse quesito, Rincewind sentia-se em terreno mais firme.

— Não — respondeu. — Não sempre. Não ultimamente. Não muito.

— Tem certeza de que é mago? — quis saber Conina.

— É a única coisa de que sempre tive certeza — afirmou.

— Que estranho.

Rincewind estava sentado ao sol, sobre a Bagagem, na proa do Valsista Oceânico, enquanto o navio avançava tranqüilamente pelas águas esverdeadas do Mar Círculo. Ao redor, homens faziam coisas náuticas que ele tinha certeza de serem importantes, e ele esperava que as viessem fazendo direito, porque, depois de altura, o que mais detestava eram profundezas.

— Parece preocupado — comentou Conina, que estava cortando seu cabelo.

Rincewind tentava encolher a cabeça o máximo que podia quando as lâminas se agitavam à volta.

— E porque estou.

— O que exatamente é o apocralipse?

Rincewind hesitou.

— Bem — disse, afinal. — É o fim do mundo. Mais ou menos.

— Mais ou menos? Mais ou menos o fim do mundo? Quer dizer que vamos ficar na dúvida? Vamos olhar para os lados e perguntar: “Com licença, você ouviu algo?”

— É porque os videntes não concordam entre si. Teve um monte de profecias meio vagas. Algumas louquíssimas. Então, deram o nome de apocralipse — ele parecia constrangido. — Uma espécie de apocalipse apócrifo. Um tipo de trocadilho, entendeu?

— Não é dos melhores.

— Não. Imagino que não.[10]

A tesoura de Conina não parava.

— O capitão pareceu bem feliz por nos ter a bordo — observou ela.

— É porque acham que é bom ter mago a bordo — explicou Rincewind. — Claro que não é.

— Muita gente acredita que seja — rebateu a moça.

— Ah, é bom para as outras pessoas, não para mim. Eu não sei nadar.

— Nem uma braçada?

Rincewind hesitou, mexendo com cuidado na estrela do próprio chapéu.

— Você faz idéia de qual é a profundidade do mar aqui? — perguntou.

— Umas doze braças, talvez.

— Então, devo conseguir nadar umas doze braças, o que quer que seja isso.

— Pare de tremer assim, quase cortei sua orelha — irritou-se Conina. Ela encarou um marinheiro de passagem e agitou a tesoura no ar. — Qual é o problema, nunca viu mulher cortando cabelo de homem?

Alguém no cordame fez um comentário que provocou ondas de risos obscenos no mastaréu do joanete. Ou, talvez, fosse o castelo de proa.

— Vou fingir que não ouvi — decidiu Conina, e deu um puxão violento no pente, desalojando várias criaturinhas indefesas.

— Ai!

— Você não pára quieto!

— E difícil ficar quieto sabendo quem está passando duas lâminas de metal na minha cabeça!

E assim transcorreu a manhã, com ondas de vento, estalos do cordame e um complexo corte de cabelo em camadas. Mais tarde, olhando-se num pedaço de espelho, Rincewind teve de admitir que havia sido uma grande melhora.

O capitão informara que o destino era a cidade de Al Khali, na costa central de Klatch.

— Como Ankh, só que com areia em vez de terra — definiu Rincewind, apoiando-se na amurada. — Mas um excelente mercado escravo.

— A escravidão é imoral — asseverou Conina.

— É? Nossa! — disse Rincewind.

— Quer que eu apare a barba? — perguntou Conina, esperançosa.

Ela parou, com a tesoura na mão, e olhou o mar:

— Existe algum tipo de marujo que use canoa com partes extras nas laterais, uma espécie de olho vermelho pintado na frente e uma vela pequena? — perguntou.

— Já ouvi falar de piratas escravocratas Klatchianos — disse Rincewind. — Mas esse barco aqui é grande. Acho que um desses não ousaria nos atacar.

— Um não — concordou Conina, ainda olhando a área difusa onde o mar e o céu se confundem. — Mas cinco, talvez.

Rincewind fitou a neblina distante e voltou os olhos para o homem de guarda, que sacudiu a cabeça.

— Qual é? — indagou, sorrindo com o humor de um ralo entupido. — Você não está vendo nada. Está?

— Dez homens em cada canoa — assentiu Conina.

— Olhe aqui, brincadeira é brincadeira…

— Com longas espadas recurvas.

— Bem, posso ver que…

— … os cabelos compridos e sujos, soprando ao vento…

— Com pontas duplas, imagino — ironizou Rincewind.

— Está tentando ser engraçado?

— Eu?

— E aqui estou eu, desarmada — lamentou Conina, investigando o convés. — Aposto que não tem nenhuma espada decente neste navio.

— Não se preocupe. Talvez só tenham vindo fazer uma escova rápida.

Enquanto Conina vasculhava a bolsa, Rincewind dirigiu-se à chapeleira e abriu a tampa com cuidado.

— Não tem nada lá, tem? — perguntou.

Como vou saber? Ponha-me.

— O quê? Na cabeça?

Deuses do céu.

— Mas eu não sou arqui-reitor! — alarmou-se Rincewind. — Quer dizer, ouvi falar de sangue-frio, mas…

Preciso usar seus olhos. Agora me ponha. Na cabeça.

— Hum.

Confie em mim.

Rincewind não conseguiu desobedecer. Com cuidado, tirou o próprio chapéu cinza e amarfanhado da cabeça, olhou a estrela capenga na ponta e puxou o chapéu de arqui-reitor para fora da caixa. Era mais pesado do que havia imaginado. As octarinas, em torno da copa, brilhavam de leve.

Ele o colocou, devagar, sobre o novo corte de cabelo, segurando firme a aba para o caso de sentir o primeiro calafrio.

Na verdade, sentiu-se apenas incrivelmente leve. E teve uma sensação de enorme sabedoria e poder — não presentes de fato, mas, mentalmente falando, na ponta de sua língua metafórica.

Estranhos fiapos de lembrança lhe corriam pela mente, e não eram lembranças de que ele recordasse possuir antes. Sondou, com precaução, como se toca dente quebrado com a língua, e eram… duzentos arqui-reitores, enfileirados no passado denso e glacial, um atrás do outro, observavam-no com impassíveis olhos acinzentados.

Por isso é tão frio, disse Rincewind a si mesmo, o calor penetra no mundo dos mortos. Ah, não…

Quando o chapéu falou, ele viu duzentas bocas se mexerem ao mesmo tempo.

Quem é você?

Rincewind, pensou Rincewind. E, nos recantos mais íntimos da mente, tentou pensar apenas para si mesmo… socorro. Sentiu os joelhos começarem a se curvar sob o peso dos séculos.

Qual é a sensação de estar morto? — pensou.

A morte é como o sono, responderam os magos mortos.

Mas qual é a sensação?, insistiu Rincewind.

Você vai ter uma ótima chance de descobrir quando aquelas canoas de guerra chegarem aqui.

Com um grito de horror, ele tirou o chapéu da cabeça. A vida real voltou, mas, como alguém estava batendo um gongo perto de seu ouvido, não chegava a ser uma melhora muito grande. Agora as canoas já se mostravam visíveis, cruzando o mar num silêncio lúgubre. Aqueles remadores vestidos de preto bem poderiam estar aos berros e brados. Não seria menos pior, mas seria mais apropriado. O silêncio acusava um desagradável sentido de determinação.

— Minha nossa, foi horrível — reclamou. — Mas isso aqui também é.

Os membros da tripulação corriam no convés, com alfanjes na mão. Conina cutucou o ombro de Rincewind:

— Vão tentar nos levar vivos — informou.

— Ah — murmurou o mago. — Que bom.

Lembrou-se, então, de outra coisa sobre os traficantes klatchianos de escravos, e a garganta secou.

— Vão… vão querer você — observou. — Ouvi dizer o que fazem…

— Será que quero saber? — perguntou Conina.

Para horror de Rincewind, ela não havia achado nenhuma arma.

— Vão botar você num harém!

Ela encolheu os ombros.

— Podia ser pior.

— Mas você fica pendurada num pau, de cabeça para baixo… — começou Rincewind.

As canoas já estavam perto o bastante para se poder ver a expressão determinada dos remadores.

— Isso não é harém. E pau-de-arara. Você não sabe o que é harém?

— Hum…

Ela explicou. Ele corou.

— De qualquer maneira, vão ter de me pegar primeiro — disse.

— Você é que deveria se preocupar.

— Por que eu?

— E a única outra pessoa, aqui, usando saia.

Rincewind se aprumou.

— É um manto…

— Manto, saia… Melhor torcer para que saibam a diferença.

Uma grande mão, feito um cacho de bananas com anéis, agarrou Rincewind pelo ombro e virou-o. O capitão, natural de Centrolândia, com feições de urso, sorriu para ele, por trás da maçaroca de pêlos faciais.

— Ê! — disse. — Não sabem que tem mago a bordo! Para criar na barriga deles fogo verde! E?

A mata escura das sobrancelhas se franziu quando ficou claro que Rincewind não estava exatamente pronto para lançar feitiços de vingança nos invasores.

— Ê? — insistiu ele, fazendo uma única vogal realizar o trabalho de toda uma seqüência de ameaças medonhas.

— É, bem, já estou tentando… fazendo das tripas coração — alegou Rincewind. — É o que estou fazendo. Das tripas coração. O senhor quer fogo verde?

— Também chumbo quente correr nos ossos — sugeriu o capitão. — Também encher pele de bolhas, e escorpiões, sem dó, comerem cérebros por dentro, e…

A primeira canoa chegou à lateral do navio, e dois arpéus atingiram a amurada. Quando o primeiro pirata apareceu, o capitão saiu, desembainhando a espada. Parou por um instante e se virou para Rincewind:

— Vai logo — ordenou. — Ou nada de tripas nem coração. E?

Rincewind voltou-se para Conina, que estava encostada na amurada, examinando as unhas.

— É melhor começar — disse ela. — São cinqüenta fogos verdes e chumbos quentes para viagem, e uma porção caprichada de bolhas e escorpiões. Suspenda a dó.

— Isso sempre acontece comigo — reclamou ele.

Por sobre a amurada, o mago espiou o que considerava ser o pavimento principal do navio. Os invasores estavam vencendo pelo simples peso dos números, usando redes e cordas para prender a tripulação. Trabalhavam em silêncio absoluto, batendo e não se deixando bater, sempre que possível evitando o uso de espadas.

— Não podem estragar a mercadoria — concluiu Conina.

Em agonia, Rincewind viu o capitão ser derrubado por uma multidão de homens vestidos de preto, enquanto gritava: “Fogo verde! Fogo verde!”

Rincewind recuou. Não era nada bom em mágica, mas havia tido sucesso irrestrito em se manter vivo até então e não estava disposto a estragar o recorde. Apenas precisava aprender a nadar no tempo que se levava para submergir até o fundo do oceano. Valia a pena tentar.

— O que está esperando? Vamos embora enquanto eles estão ocupados — disse para Conina.

— Preciso de uma espada — rebateu ela.

— Daqui a pouco, você vai poder escolher.

— Uma basta.

Rincewind chutou a Bagagem.

— Vamos — chamou. — Você tem muito o que boiar.

A Bagagem estendeu as perninhas com petulância exagerada, virou-se devagar e se assentou ao lado da garota.

— Traidora — resmungou Rincewind para as dobradiças.

A luta parecia ter chegado ao fim. Cinco dos invasores subiram a escada que levava ao convés de ré, deixando que os outros homens arrebanhassem a tripulação. O líder tirou a máscara e olhou com malícia para Conina. Deu meia-volta e olhou com malícia para Rincewind por um período mais longo.

— Isso aqui é manto — tratou de afirmar Rincewind. — E é melhor você tomar cuidado, porque eu sou mago.

Ele respirou fundo, e disse:

— Se encostar um dedo em mim, vai me fazer desejar que não tivesse. Estou avisando.

— Mago? Magos dão péssimos escravos — considerou o líder.

— E a mais pura verdade — concordou Rincewind. — Então, se você puder abrir passagem e me deixar…

O líder se voltou para Conina e acenou para um dos colegas. Apontou o polegar tatuado na direção de Rincewind.

— Não o mate rápido demais. Aliás… — Ele parou e abriu um imenso sorriso para Rincewind. — Talvez… sim! E por que não? Sabe cantar, mago?

— Talvez — respondeu Rincewind, com cautela. — Por quê?

— Pode ser que você seja exatamente o homem de que o xerinfe precisa para um serviço no harém.

Dois dos traficantes riram.

— Pode ser uma oportunidade única — continuou o líder, incentivado pelo apreço da platéia.

Houve mais aprovação lá de trás. Rincewind se afastou.

— Acho que não — disse. — Obrigado, mesmo assim. Não fui talhado para esse tipo de coisa.

— Ah, mas pode ser — insistiu o líder, com os olhos brilhando. — Pode ser.

— Ora, por favor — murmurou Conina.

Ela olhou de esguelha para os homens a cada lado seu, e então as mãos se agitaram. O que foi apunhalado com a tesoura possivelmente não saiu tão mal quanto o que foi golpeado com o pente, dada a catástrofe que um pente de aço pode fazer no rosto de alguém. Depois, ela se agachou, pegou a espada solta por um dos homens atingidos e investiu contra os outros dois.

O líder voltou-se para os gritos e viu a Bagagem de tampa aberta. Rincewind lançou-se contra ele, jogando-o ao que quer que existisse nas profundezas da arca. Ouviu-se um começo de grito, abruptamente interrompido. Em seguida, houve um estalido semelhante ao trinco do portal do Inferno.

Rincewind recuou, tremendo:

— Oportunidade única — rosnou, tendo acabado de entender do que se tratava.

Pelo menos ele teve a oportunidade única de ver Conina lutar. Poucos homens assistiam a isso duas vezes.

Os adversários começaram rindo da audácia da jovem pequenina em atacá-los, para, logo depois, passarem rapidamente por vários estágios de perplexidade, dúvida, preocupação e terror, ao virarem o centro de um círculo fechado e reluzente de aço.

Ela liquidou o último guarda-costas do líder com dois golpes que fizeram os olhos de Rincewind lacrimejarem, e, com um suspiro, saltou a amurada do convés principal. Para irritação de Rincewind, a Bagagem decidiu segui-la, aparando sua queda no corpo de um pirata e aumentando o pânico dos invasores, porque, como se já não fosse terrível o bastante ser atacado com precisão cirúrgica por uma menina bonita de saia branca estampada de flores, era ainda pior para o ego do homem ser pisoteado e mordido por um acessório de viagem. Também fazia mal ao resto do homem.

Rincewind espiou por sobre a amurada.

— Exibida — murmurou.

Uma faca furou a madeira perto de seu queixo e ricocheteou, passando pela orelha. Ele ergueu a mão ao sentir uma dor aguda e olhou-a, horrorizado, antes de desmaiar. Não era sangue em geral que ele não podia ver, apenas o seu próprio sangue.


O mercado da Praça Sator, a grande extensão pavimentada de pedras, em frente ao portão negro da Universidade, estava em barafunda. Dizia-se que, em Ankh-Morpork, tudo se encontrava à venda, com exceção de cerveja e mulher, que apenas se alugavam. A maioria das mercadorias se achava à disposição no mercado da Sator, que, com o passar dos anos, havia crescido, uma barraca após a outra, até os recém-chegados terem de se acomodar junto à própria Universidade. Na verdade, elas formavam uma vitrine providencial para peças de fazenda e amuletos.

Ninguém notou o portão se abrir. Mas um grande silêncio rolou para fora da Universidade, espalhando-se, pela praça barulhenta e abarrotada, como as primeiras ondas frescas da maré correndo sobre o aguaçal. Na realidade, não era silêncio de fato, mas um imenso estrondo de antibarulho. Silêncio não é o contrário de som, apenas a sua ausência. Mas aquele era o som que existe no lado extremo do silêncio, o antibarulho, com seus decibéis soturnos abafando, feito veludo, o vozerio do mercado.

As pessoas corriam os olhos à volta, abrindo a boca como peixes dourados e produzindo mais ou menos o mesmo efeito. Todas se viraram para o portão.

Algo mais rolava para fora da Universidade, além da dissonância de silêncio. As barracas mais próximas ao portão começaram a se arrastar pelo chão, deixando cair as mercadorias.

Os donos saltavam para longe quando as barracas acertavam a fileira de trás e prosseguiam, acumulando-se cada vez mais no canto, até que uma ampla avenida, limpa e vazia, se estendesse por toda a praça. Ardrothy Varalonga, Fornecedor de Tortas Cheias de Personalidade, espiou, por sobre os restos de sua barraca, a tempo de ver os magos surgirem.

Ele conhecia bem os magos, ou, até então, sempre julgara conhecê-los. Eram sujeitos obscuros, inofensivos à sua maneira, vestidos como sofás antigos, fregueses contumazes para qualquer uma de suas mercadorias que estivessem com preço mais baixo por causa do tempo, ou que mostrassem mais personalidade do que a dona-de-casa prudente estaria disposta a aceitar.

Mas aqueles magos eram novidade para Ardrothy. Entraram na Praça Sator como se fossem donos dela. Pequenas faíscas azuis cintilavam em torno dos pés. De algum modo, eles pareciam mais altos.

Ou talvez fosse apenas a maneira de andar. Sim, era isso…

Ardrothy tinha um pouco de magia em sua constituição genética e, ao ver os magos cruzarem a praça, pensou que o melhor a fazer seria guardar as facas e os aparelhos de picar carne na mochila, e sair da cidade dentro dos dez minutos seguintes.

O último mago do grupo havia ficado para trás e olhava a praça com desdém.

— Havia chafarizes aqui — disse ele. — Tratem de dar o fora!

Os mercadores se entreolharam. Os magos costumavam falar com arrogância, já era de se esperar. Mas havia um tom naquela voz que ninguém jamais havia ouvido. Era como se ela tivesse juntas.

Ardrothy olhou para o lado. Surgindo dos escombros da barraca de gelatina de mariscos e estrelas-do-mar, como um anjo, enquanto tirava moluscos da barba e exalava mau humor, vinha Miskin Koble, que diziam ser capaz de abrir ostras com a mão. Anos arrancando moluscos de rochas e pescando amêijoas na baía de Ankh haviam lhe conferido o tipo de desenvolvimento físico normalmente associado a placas tectônicas. Mais do que levantar, ele se desdobrou.

Avançou para o mago e apontou um dedo trêmulo às ruínas da barraca, de onde meia dúzia de lagostas ousadas tentava escapar. Os músculos dos cantos da boca vibravam como enguias nervosas.

— Foi você que fez isso? — perguntou.

— Não amole, idiota — disse o mago. Três palavras que, na opinião de Ardrothy, davam-lhe a expectativa de vida de um sino de vidro.

— Eu detesto magos — irritou-se Koble. — Detesto mesmo. Por isso, vou bater em você, está bem?

Contraiu o punho e começou a desferir o soco.

O mago ergueu uma sobrancelha. Chamas amarelas levantaram-se em torno do vendedor de crustáceos, ouviu-se um barulho de seda rasgando, e Koble desapareceu. Tudo que sobrou foram suas tristes botas no chão, soltando fumaça.

Ninguém sabe por que botas enfumaçadas sempre sobram, independentemente do tamanho da explosão. Deve ser mais uma daquelas coisas.

Aos olhos de Ardrothy, pareceu que o próprio mago tinha ficado tão chocado quanto a multidão, mas ele se recompôs magnanimamente e fez um floreio com a vara.

— Vocês deveriam tirar uma lição disso — sugeriu. — Ninguém levanta a mão para um mago, entenderam? Vão acontecer algumas mudanças por aqui. Sim, o que você quer?

A última pergunta se dirigia a Ardrothy, que tentava passar por ali despercebido. Ele rapidamente suspendeu o tabuleiro de tortas.

— Eu só estava pensando se Vossa Reverência não gostaria de comprar uma dessas tortas deliciosas — apressou-se em dizer. — São nutriti…

— Vendedor de tortas, preste atenção — cortou o mago.

Ele estendeu a mão, fez um gesto estranho com os dedos e criou uma torta, em pleno ar. Era roliça, dourada e lustrosa. Só de olhar para ela, Ardrothy sabia que estava recheada de ponta a ponta com carne de porco sem gordura, de primeira, sem nenhuma daquelas áreas espaçosas, de ar fresco, sob a casca, que representavam sua própria margem de lucro. Era o tipo de torta que os porquinhos querem ser quando crescer.

Ele sentiu o coração apertar. Sua ruína estava diante dos olhos, debaixo de uma leve camada crocante.

— Quer provar? — ofereceu o mago. — Tem muito mais, de onde veio essa.

— De onde quer que tenha vindo — disse Ardrothy.

Ele despregou os olhos da torta reluzente, fitou o rosto do mago e, no fulgor ensandecido daqueles olhos, viu o mundo virando de cabeça para baixo. Afastou-se, um homem arruinado, e partiu para o mais próximo portão da cidade.

Como se já não fosse terrível o bastante que os magos estivessem matando as pessoas, pensou ele com azedume, também estavam tirando seus meios de subsistência.


Um balde de água fria atingiu o rosto de Rincewind, arrancando-o do sonho pavoroso em que uma centena de mulheres mascaradas tentava lhe aparar o cabelo com espadas de folha larga. Depois de ter um pesadelo desses, alguns homens o descartariam, entendendo que significava medo de castração. Mas, quando se deparava com ele, o subconsciente de Rincewind reconhecia o pavor mortal de ser cortado em pedacinhos. E deparava-se com ele o tempo todo. Ele se sentou.

— Você está bem? — perguntou Conina, apreensiva.

Rincewind correu os olhos pelo convés tumultuado.

— Não necessariamente — respondeu, com cuidado.

Não parecia haver nenhum pirata escravocrata vestido de preto ao redor, pelo menos não na vertical. Havia alguns membros da tripulação, todos mantendo respeitosa distância de Conina. Só o capitão ficava razoavelmente perto, com um sorriso idiota estampado na cara.

— Foram embora — informou Conina. — Levaram o que puderam e se foram.

— Os imbecis — reclamou o capitão. — Mas remam rápido! — Conina encolheu-se quando ele lhe deu um tapa nas costas. — Ela luta bem, para mulher — acrescentou. — Ê!

Cambaleante, Rincewind levantou. O navio seguia de vento em popa, na direção de uma mancha distante no horizonte, que deveria ser Klatch Central. O mago estava totalmente incólume. Começou a se animar.

O capitão dirigiu aos dois um olhar camarada e afastou-se para dar ordens relacionadas a velas, cordas e coisas desse tipo. Conina sentou-se na Bagagem, que não pareceu se incomodar.

— Ele disse estar tão agradecido que vai nos levar até Al Khali — comentou.

— Achei que fosse esse o acordo — surpreendeu-se Rincewind. — Vi você dando o dinheiro a ele, e tal.

— É, mas ele pretendia nos dominar e me vender como escrava, ao chegarmos lá.

— E não ia me vender? — indignou-se Rincewind, e bufou. — Claro, é o manto de mago. Ele não se atreveria…

— Hum. Na verdade, falou que teria de dá-lo — disse Conina, passando a mão por uma lasca imaginária na tampa da Bagagem.

— Me dar?

— É. Hum. Tipo: na compra de cada concubina, leve um mago grátis. Hum.

— Não entendi a relação com as flores.

Conina encarou-o durante um longo tempo e, quando se deu conta de que ele não sorriria, suspirou e perguntou:

— Por que os magos ficam sempre tensos perto de mulher?

Rincewind levantou a cabeça.

— Gostei dessa! — exclamou. — Pois fique sabendo que… olhe aqui, enfim, eu me dou muito bem com as mulheres, de uma maneira geral, apenas mulher com espada é que me deixa meio perturbado. — Ele considerou isso durante algum tempo e acrescentou: — Qualquer pessoa com espada me deixa perturbado, se é essa a questão.

Conina continuava passando a mão na lasca. A Bagagem soltou um estalo de satisfação.

— Sei de mais uma coisa que vai deixá-lo perturbado — murmurou.

— Hummm?

— Roubaram o chapéu.

— O quê?

— Não pude fazer nada, carregaram o que puderam…

— Os invasores fugiram com o chapéu?

— Não use esse tom comigo! Não fui eu que fiquei dormindo o tempo todo…

Rincewind agitou as mãos.

— Nãnãnã, não fique exaltada, eu não estava usando tom nenhum… Quero pensar sobre isso…

— O capitão acha que os ladrões provavelmente vão voltar a Al Khali — Rincewind ouviu-a dizer. — Tem um lugar que os criminosos costumam freqüentar, e podemos…

— Não sei por que temos de fazer o que quer que seja — cortou Rincewind. — O chapéu queria ficar longe da Universidade, e tenho certeza de que aqueles piratas não vão, jamais, passar por lá para tomar um xerez rápido.

— Vai deixá-los irem embora com o chapéu? — perguntou Conina, genuinamente perplexa.

— Tudo bem que alguém tenha de ir atrás deles, mas por que eu?

— Você disse que o chapéu é o símbolo da magia! O desejo de todos os magos! Não pode deixá-lo sumir assim!

— Então, veja.

Rincewind recostou-se. Achava-se estranhamente surpreso. Estava tomando uma decisão. Era sua. Pertencia a ele. Ninguém o estava forçando. Às vezes, parecia que a vida inteira consistia em se meter em encrencas porque outras pessoas queriam. Mas, desta vez, ele havia tomado uma decisão, e ponto final. Desembarcaria em Al Khali e acharia um modo de voltar para casa. Outra pessoa poderia salvar o mundo, e ele desejava-lhe sorte. Por que não estava contente?

A testa se franziu. Por que não estava satisfeito?

Porque é a decisão errada, imbecil.

Ah, não, pensou. Já tive vozes suficientes na cabeça. Fora!

Mas meu lugar é aqui.

Você sou eu?

Sua consciência.

Ah.

Não pode deixar o chapéu ser destruído. Ele é o símbolo…

Tudo bem, eu sei…

… o símbolo da magia sob a doutrina. Magia sob o controle dos homens. Você não quer voltar àquela ira…

O quê?…

Ira…

Você quer dizer era?

Exatamente. Era. Voltar a era da magia em estado bruto. A estrutura da realidade tremulava todos os dias. Era terrível, estou me dizendo.

Como é que eu sei?

Memória coletiva.

Nossa. Eu tenho isso?

Bem… parte dela.

Tudo bem, mas por que eu?

No fundo da alma, você sabe que é mago de verdade. A palavra “mago” está escrita no seu coração.

— O problema é que eu não paro de conhecer pessoas que querem conferir — lamentou Rincewind.

— O que você disse? — perguntou Conina.

Rincewind fitou a mancha no horizonte e suspirou.

— Estava pensando alto — desculpou-se.

Carding examinou o chapéu. Contornou a mesa e olhou-o de outro ângulo. Por fim, disse:

— Está ótimo. Onde achou as octarinas?

— São apenas pedras semipreciosas de boa qualidade — respondeu Lingote. — Enganaram você?

Era um chapéu magnífico. Na verdade, e Carding tinha de admitir, a peça parecia bem melhor do que a original. O velho chapéu de arqui-reitor já se mostrava bem surrado, com os fios de ouro soltos e opacos. A réplica era um progresso considerável. Tinha estilo.

— Gosto especialmente das rendas — elogiou Carding.

— Levou um tempão.

— Por que não tentou mágica?

Carding mexeu os dedos e pegou a taça comprida que surgiu no ar. Debaixo do guarda-sol de papel e da salada de frutas, havia uma bebida alcoólica viscosa e cara.

— Não funcionou — explicou Lingote. — Não consegui, hum, acertar. Tive de costurar todas as lantejoulas à mão.

Ele pegou a chapeleira. Carding tossiu dentro da taça.

— Não o guarde ainda — pediu, tirando-o das mãos do tesoureiro. — Sempre quis experimentá-lo…

Ele se virou para o grande espelho na parede do quarto do tesoureiro e pôs o chapéu, reverentemente, sobre os cachos sujos.

Era o fim do primeiro dia de fonticeria, e os magos haviam conseguido mudar tudo, à exceção de si próprios.

Todos haviam tentado, na surdina, quando achavam que ninguém estava olhando. Até Lingote fez uma tentativa, na privacidade de seu gabinete. Havia conseguido ficar vinte anos mais jovem, com um abdômen no qual se poderia quebrar pedras, mas, tão logo deixou de se concentrar, voltou dolorosamente à idade e ao físico já conhecidos. Havia algo elástico na aparência. Quanto mais tentávamos afastá-la, mais rápido ela voltava. E era pior quando nos acertava. Bolas de ferro com espetos, espadas de folha larga e varas enormes, com pregos na ponta, geralmente eram consideradas armas temidas, mas não pareciam nada, se comparadas a vinte anos atirados com força na nossa cabeça.

Isso se dava porque a fonticeria parecia não funcionar em nada que fosse intrinsecamente mágico. Todavia, os magos haviam alcançado alguns progressos importantes. O manto de Carding, por exemplo, tinha virado uma peça de seda e renda, de extremo e requintadíssimo mau gosto, e lhe dava a aparência de uma grande gelatina vermelha, drapejada com sobrecobertas.

— Fica bem em mim, não fica? — perguntou Carding. Ele ajustou a aba do chapéu, conferindo-lhe um ar inapropriadamente libertino.

Lingote não respondeu. Estava olhando para fora da janela. Haviam acontecido algumas modificações, sim. Fora um dia longo.

Os velhos muros de pedra tinham sumido. Agora, havia uma cerca bonita. Para além dela, a cidade reluzia. Uma beleza de mármore branco e ladrilhos vermelhos. O Rio Ankh já não era o esgoto cheio de lodo que ele conhecia, mas a fulgurante faixa transparente onde — um belo remate — carpas roliças nadavam, em águas puras como neve derretida.[11]

Vista do alto, Ankh-Morpork deveria estar ofuscante. Ela brilhava. Detritos milenares haviam sido eliminados.

Isso deixava Lingote estranhamente incomodado. Ele se sentia deslocado, como se estivesse vestindo roupas novas que coçassem. É claro que estava mesmo vestindo roupas novas, e elas de fato coçavam, mas não era esse o problema. O mundo novo mostrava-se todo muito bom, era exatamente como deveria ser, e, todavia… ele queria que tivesse mudado, pensou, ou apenas queria que as coisas tivessem se rearranjado de maneira mais conveniente?

— Perguntei se não ficou bom em mim — disse Carding.

Lingote se voltou, o rosto vago.

— Hum?

— O chapéu, infeliz.

— Ah. Hum. Muito… bom.

Com um suspiro, Carding tirou a peça exuberante da cabeça e meteu-a na chapeleira.

— Melhor levarmos para o garoto — disse. — Ele já está começando a perguntar.

— Ainda estou intrigado com o destino do verdadeiro chapéu — admitiu Lingote.

— Está aqui — afirmou Carding, batendo na tampa.

— Estou falando, hum, do original.

— Esse é o original.

— Estou falando…

— Esse é o chapéu de arqui-reitor — decretou Carding. — Você deveria saber, foi quem o fez.

— É, mas… — começou o tesoureiro, em desalento.

— Afinal de contas, você não faria uma falsificação, faria?

— Não, hum, assim…

— É só um chapéu. É o que quer que as pessoas imaginem. Vêem o arqui-reitor usando, acham que é o original. De certo modo é. As coisas se definem pelo que provocam. E as pessoas também, evidentemente. Essa é a base fundamental da magia dos magos.

Carding fez uma pausa teatral e botou a chapeleira nos braços abertos de Lingote.

— Cogitum fungu chappili, poderíamos dizer.

Lingote havia estudado línguas antigas e fez o melhor que pôde para decifrar a frase:

— Penso, logo sou um chapéu?, — arriscou.

— O quê? — perguntou Carding, ao descerem a escada que levava à nova encarnação do salão principal.

— Achei que eu fosse um chapéu louco? — insistiu Lingote.

— Fique quieto, está bem?

A névoa ainda pairava sobre a cidade, e suas faixas de ouro e prata viravam sangue à luz do sol poente, que se filtrava pelas janelas do salão.

Coin estava sentado num banco, com a vara sobre os joelhos. Ocorreu a Lingote que jamais vira o garoto sem ela, o que era estranho. A maioria dos magos deixava os bastões debaixo da cama ou os pendurava na lareira.

Ele não gostava daquela vara. Era preta. Mas não porque fosse daquela cor, antes porque parecia um vão ambulante para um quadro de dimensões terrível. Ela não tinha olhos, mas parecia fitar Lingote como se soubesse seus pensamentos mais íntimos, o que, naquele momento, era mais do que ele próprio sabia.

Sua pele formigou quando os dois magos cruzaram a sala, e foi possível sentir o sopro de magia em estado bruto subir do vulto ali sentado.

Algumas dezenas de magos sêniores encontravam-se amontoados em torno do banco, olhando embasbacados para o chão.

Lingote esticou o pescoço e viu… o mundo.

Flutuava numa poça de noite escura, estendida no próprio chão, e, com terrível certeza, Lingote se deu conta de que era de fato o mundo, não alguma imagem ou mera projeção. Havia traços de nuvem e tudo o mais. Lá estavam os desertos gelados de Centrolândia, o Continente Contrapeso, o Mar Círculo, a queda-dágua da Beira, tudo minúsculo e em tom pastel, todavia, real… Alguém estava falando com ele.

— Hum? — perguntou, e a súbita queda metafórica de temperatura o trouxe de volta à realidade.

Apavorado, percebeu que Coin havia lhe dirigido um comentário.

— Sim? — emendou. — É só que o mundo… tão bonito…

— Lingote é um esteta — notou Coin, e ouviu-se o riso breve de um ou dois magos que sabiam o significado da palavra. — Mas, quanto ao mundo, pode melhorar. Eu havia dito, Lingote, que por onde andamos vemos maldade, ganância e barbárie, o que nos mostra que o mundo, na verdade, é mal governado, não é?

Lingote sentiu duas dezenas de pares de olhos voltarem-se para ele.

— Hum — respondeu. — Bem, não podemos mudar a natureza humana.

Houve silêncio.

— Podemos? — alarmou-se.

— Isso ainda vamos ver — interveio Carding. — Mas, se alterarmos o mundo, a natureza humana também vai mudar. Não é, irmãos?

— Temos a cidade — disse um dos magos. — Eu mesmo criei um castelo…

— Governamos a cidade, mas quem governa o mundo? — insistiu Carding. — Deve haver mil reis, caciques e imperadores mixurucas por aí.

— Nenhum dos quais sabe ler sem mexer os lábios — salientou outro mago.

— O Patrício sabia ler — lembrou Lingote.

— Não se lhe cortássemos o indicador — objetou Carding. — Aliás, o que aconteceu com o lagarto?… Não importa. A questão é que o mundo certamente deveria ser governado por homens de sabedoria. Ele precisa ser conduzido. Passamos séculos brigando entre nós, mas, juntos, quem sabe o que podemos fazer?

— Hoje a cidade, amanhã o mundo — gritou alguém, lá de trás.

Carding assentiu.

— Amanhã o mundo e… — ele calculou rápido — … Sexta-feira o universo!

Isso deixa o fim de semana livre, pensou Lingote. Lembrou-se, então, da chapeleira em suas mãos e estendeu-a para Coin. Mas Carding avançou para a frente dele, tomou a caixa num movimento delicado e ofereceu-a ao garoto, com um floreio.

— O chapéu de arqui-reitor — anunciou. — Legitimamente seu, todos nós achamos.

Coin pegou-a. Pela primeira vez, Lingote viu a incerteza cruzar-lhe o rosto.

— Não existe uma espécie de cerimônia formal? — perguntou o garoto.

Carding tossiu.

— Eu… hã, não — respondeu. — Acho que não. — Ele olhou para os outros magos sêniores, que sacudiram a cabeça. — Não. Nunca existiu. Afora o banquete, é claro. Hã… veja, não é uma coroação. O arqui-reitor, sabe, ele rege à fraternidade dos magos… — a voz de Carding, aos poucos, minguava à luz daquele olhar dourado — … é o… primeiro… entre… iguais…

Ele recuou quando a vara se ergueu assustadoramente, até apontar em sua direção. Mais uma vez, Coin parecia ouvir uma voz interior.

— Não — disse, afinal, e, quando falou em seguida, a voz apresentava aquela textura grave e ressonante que, se não somos magos, conseguimos apenas com muitos equipamentos caros de áudio. — Vamos fazer uma cerimônia. Tem de haver cerimônia, as pessoas precisam entender que os magos estão dominando. Mas não será aqui. Vou escolher um lugar. E todos os magos que já atravessaram esse portão vão comparecer, entendido?

— Alguns moram muito longe — objetou Carding, com cautela. — Vão levar algum tempo para viajar. Quando você estava pensando em…

— Eles são magos! — gritou Coin. — Podem estar aqui num piscar de olhos! Já dei a eles o poder! Além disso — a voz voltou ao tom normal —, a Universidade acabou. Nunca foi a verdadeira morada da magia, apenas sua prisão. Vou construir outro lugar para nós.

Ele tirou o chapéu da caixa e sorriu. Lingote e Carding prenderam a respiração.

— Mas…

Eles correram os olhos à volta. Hakardly, o professor da doutrina, havia começado a falar e, agora, limitava-se a abrir e fechar a boca. Coin virou-se para ele, uma sobrancelha erguida.

— Você não pretende fechar a Universidade… — disse o velho mago, com a voz trêmula.

— Ela já não é necessária — justificou Coin. — É um lugar de poeira e livros velhos. Faz parte do passado. Não é mesmo… irmãos?

Ouviu-se um coro de murmúrios incertos. Os magos achavam difícil imaginar a vida sem as velhas paredes da UI. Embora, pensando bem, houvesse de fato muita poeira, e os livros estivessem bem velhos…

— Afinal… Irmãos… algum de vocês esteve na biblioteca nesses últimos dias? A magia, agora, encontra-se dentro de vocês, e não aprisionada em capas duras. Não é maravilhoso? Existe alguém aqui que não tenha feito mais mágica, mágica de verdade, nas últimas 24 horas do que em toda a sua vida? Existe alguém aqui que, no fundo do coração, não concorde comigo?

Lingote estremeceu. No fundo de seu coração, um novo Lingote havia despertado e lutava para se fazer ouvir. Era um Lingote que ansiava por aqueles dias tranqüilos de apenas algumas horas antes, quando a magia se mostrava suave, vagava pela Universidade de chinelos velhos, sempre tinha tempo para um xerez, não era como uma espada quente no cérebro e, sobretudo, não matava ninguém.

Quando Lingote sentiu as cordas vocais ressoarem e, contra todos os seus esforços, prepararem-se para discordar, o pânico tomou conta dele. O bastão tentava localizá-lo. Dava para sentir a busca. A vara faria com que ele desaparecesse, exatamente como ao coitado do Billias. Lingote travou a boca, mas sentiu que não adiantaria. O peito se inchou. A boca estalou. Deslocando-se sem jeito, Carding lhe pisou o pé. Lingote soltou um grito.

— Desculpe — pediu Carding.

— Lingote, algum problema? — perguntou Coin.

O tesoureiro saltou numa das pernas, subitamente livre, o corpo tomado de alívio enquanto os dedos do pé ardiam de dor, mais agradecido do que qualquer pessoa, em toda a história do mundo, ficaria porque cem quilos de mago lhe tinham pisado o pé.

O grito pareceu quebrar o feitiço. Coin suspirou e se pôs de pé.

— Foi um ótimo dia — afirmou.


Eram 2 horas da manhã. A neblina fluvial serpenteava pelas ruas de Ankh-Morpork, mas serpenteava sozinha. Os magos não gostavam que as pessoas ficassem acordadas até depois da meia-noite, portanto elas não ficavam. Em vez disso, dormiam o sono agitado dos enfeitiçados.

Na Praça das Luas Partidas, outrora mercado de prazeres secretos — em cujas barracas iluminadas e acortinadas o folião tardio conseguia qualquer coisa, desde um prato de enguias gelatinizadas, até a doença venérea de sua escolha —, a névoa serpenteava e caía no vazio gelado.

As barracas haviam desaparecido, substituídas pelo mármore brilhante e por uma estátua que representava o espírito de qualquer coisa, cercada de chafarizes iluminados. O som monótono da água era o único barulho a quebrar o colesterol de silêncio que dominava o coração da cidade.

O silêncio também reinava na escuridão da Universidade Invisível. Menos…

Lingote avançou pelos corredores sombrios como uma aranha de duas patas, correndo — ou, ao menos, coxeando rapidamente —, até alcançar a porta proibida da biblioteca. Olhou à volta na escuridão e, depois de hesitar um pouco, bateu de leve.

O silêncio vertia da madeira pesada. Mas, ao contrário do silêncio que dominava o resto da cidade, aquele era um silêncio alerta, vigilante. Era o silêncio do gato adormecido que acaba de abrir um olho.

Quando não agüentou mais, Lingote ficou de quatro e tentou espiar por debaixo da porta. Enfim, pôs a boca o mais perto possível da fenda ventosa e empoeirada, sob a última dobradiça, e sussurrou:

— Ei! Hum. Está me ouvindo?

Ele podia jurar que algo havia se mexido bem no fundo do breu. Tentou outra vez, com seu estado de ânimo oscilando entre o pavor e a esperança, a cada batida instável do coração.

— Ei! Sou eu, hum, Lingote. Fale comigo, por favor.

Era possível que grandes pés aveludados viessem se arrastando suavemente pelo chão da biblioteca, ou talvez fosse apenas o estalo dos nervos de Lingote. Ele tentou engolir a secura da garganta, e fez outra tentativa.

— Olhe, tudo bem, mas estão cogitando fechar a Universidade!

O silêncio aumentou. O gato adormecido havia ficado de orelha em pé.

— O que está acontecendo é um erro! — opinou o tesoureiro, e levou a mão à boca pela enormidade do que havia dito.

— Oook?

Foi um ruído muito leve, como um arroto de barata. Subitamente animado, Lingote colou os lábios à fenda.

— O Patrício, hum, está aí?

— Oook.

— E o cachorrinho?

— Oook.

— Ah, ótimo.

Lingote se estendeu no conforto da escuridão e tamborilou os dedos no chão frio.

— Você não quer me, hum, deixar ficar aí também? — arriscou ele.

— Oook!

Lingote fez uma careta.

— Bem, não quer me, hum, deixar entrar por alguns minutos? Precisamos conversar urgentemente, de homem para homem.

— Eeek.

— Quer dizer, macaco.

— Oook.

— Então, por que você não sai?

— Oook.

Lingote suspirou.

— Essa demonstração de lealdade é muito bonita, mas você vai morrer de fome aí dentro.

— Oook, oook.

— Que outra maneira de entrar?

— Oook.

— Ah, faça como quiser.

Lingote suspirou. Mas, de algum modo, sentia-se melhor pela conversa. Todo mundo, na Universidade, parecia viver um sonho, enquanto o bibliotecário não queria nada além de frutas frescas, o fornecimento regular de cartões de catalogação e, mais ou menos uma vez por mês, a oportunidade de pular o muro do zoológico particular do Patrício.[12] Era estranhamente reconfortante.

— Então, você tem bananas suficientes e tudo o mais? — indagou, depois de outra pausa.

— Oook.

— Não deixe ninguém entrar, está bem? Hum. É extremamente importante.

— Oook.

— Ótimo. — Lingote pôs-se de pé e limpou a poeira dos joelhos.

Colou a boca ao buraco da fechadura e acrescentou: — Não confie em ninguém.

— Oook.

Não estava completamente escuro na biblioteca, porque as fileiras seriadas de livros mágicos soltavam um leve brilho octarina, causado pelo vazamento taumatúrgico naquele campo oculto intenso. Havia luz suficiente para iluminar o conjunto de estantes metidas contra a porta.

O Patrício havia sido cuidadosamente colocado num vidro, sobre a escrivaninha do bibliotecário. O próprio bibliotecário estava sentado debaixo da mesa, enrolado na coberta, segurando Wuffles no colo.

De vez em quando, comia uma banana.

Lingote, enquanto isso, atravessava os corredores ecoantes da Universidade, retornando à segurança do quarto. Foi porque seus ouvidos se encontravam apreensivamente atentos ao menor ruído que ele acabou ouvindo, bem no limite possível da audição, o choro.

Aquele não era um barulho comum ali. Nos corredores acarpetados do alojamento dos magos sêniores, havia inúmeros barulhos que se podiam ouvir tarde da noite, tais como ronco, o leve tinido de copos, cantos desafinados e, de vez em quando, o chiado e o zumbido de um feitiço que tinha dado errado. Mas o barulho de alguém chorando baixinho era tamanha novidade que Lingote se viu atravessando a galeria que levava à suíte do arqui-reitor.

A porta estava entreaberta. Dizendo a si mesmo que não deveria, preparando-se para uma corrida rápida, Lingote espiou o quarto.


Rincewind olhou de novo.

— O que é isso? — sussurrou.

— Acho que é um tipo de templo — respondeu Conina.

O mago continuou estudando a construção, enquanto os habitantes de Al Khali passavam à volta, numa espécie de movimento browniano humano. Um templo, pensou ele. Bem, era grande e imponente, e o arquiteto havia usado todos os artifícios de que dispunha para fazê-lo parecer ainda maior e mais imponente, e também para obrigar todas as pessoas que o contemplassem a pensar em como eram pequenas e ordinárias, e que tampouco tinham tantas cúpulas. Era o tipo de lugar que sempre seria exatamente como na memória.

Mas Rincewind conhecia um pouco de arquitetura sacra, e os afrescos das paredes imensas e, naturalmente, imponentes não pareciam nem um pouco religiosos. Em primeiro lugar, os participantes estavam se divertindo. Era quase certo que estivessem se divertindo. Sim, deveriam estar. Seria surpreendente se não estivessem.

— Não estão dançando, estão? — perguntou, numa tentativa desesperada de não acreditar no que via. — Ou talvez seja uma espécie de acrobacia.

Conina mantinha os olhos semicerrados, à luz ofuscante do sol.

— Acho que não — respondeu ela, pensativa.

Rincewind lembrou-se.

— Acho que moça como você não deve olhar esse tipo de coisa — disse ele, rispidamente.

Conina abriu um sorriso.

— Acho que os magos estão expressamente proibidos — rebateu ela, com candura. — Dizem que os deixa cegos.

Rincewind levantou o rosto novamente, pronto a arriscar um olho. Isso já era de se esperar, disse a si mesmo. Países estrangeiros são… bem… países estrangeiros. Fazem as coisas de maneira diferente.

Embora algumas coisas, decidiu ele, fossem feitas do mesmo modo, só que com mais criatividade e, pelo jeito, muito maior freqüência.

— Os afrescos do templo de Al Khali são famosos no mundo inteiro — comentou Conina, enquanto os dois avançavam por entre uma multidão de crianças tentando vender objetos e apresentar parentes a Rincewind.

— Faz sentido — considerou o mago. — Parem de empurrar, está bem? Não, não quero comprar nada. Não, não quero conhecer sua prima. Nem o primo. Nem nada, seu indecente. Saiam daqui, estão ouvindo?

O último grito dirigiu-se ao grupo de crianças tranqüilamente montadas na Bagagem, que se arrastava pacientemente atrás de Rincewind, sem fazer qualquer tentativa de se livrar delas. Talvez estivesse aborrecida por alguma coisa, pensou ele, e se animou um pouco.

— Quantas pessoas você acha que existem neste continente? — perguntou.

— Sei lá — respondeu Conina, sem se virar. — Milhões?

— Se eu fosse inteligente, não estaria aqui — resmungou Rincewind.

Eles estavam em Al Khali, porta de entrada a todo o misterioso continente de Klatch, havia várias horas. O mago começava a padecer.

Qualquer cidade decente deveria ter um pouco de neblina, considerou, e as pessoas deveriam viver dentro de casa, em vez de passar o dia inteiro nas ruas. Não deveria haver tanta areia e calor. Quanto ao vento…

Ankh-Morpork era famosa pelo cheiro, tão cheio de personalidade que poderia reduzir um homem forte às lágrimas. Mas Al Khali tinha o vento, soprando da vastidão dos desertos e continentes próximos à borda. Era uma brisa suave, mas não parava, e acabava surtindo o mesmo efeito nos visitantes que um ralador de queijo num tomate. Depois de um tempo, parecia ter nos arrancado a pele e açoitado os nervos.

Às narinas sensíveis de Conina, trazia mensagens aromáticas do coração do continente, compostas de frio do deserto, fedor de leão, estéreo das selvas e gases de gnus.

Rincewind, evidentemente, não sentia o cheiro de nada. A adaptação é algo maravilhoso, e a maioria dos morporkianos não conseguiria sentir cheiro de colchão de pena queimado a um metro e meio de distância.

— Para onde, agora? — indagou. — Para algum lugar longe do vento?

— Meu pai passou algum tempo em Khali, quando estava em busca da Cidade Perdida de Ee — observou Conina. — E lembro que falou muito bem do soak. E um tipo de bazar.

— Imagino que baste a gente procurar pela barraca de chapéus usados — ironizou Rincewind. — Porque a idéia toda é completamente…

— O que eu esperava é que talvez fôssemos atacados. Parece o plano mais sensato. Meu pai disse que pouquíssimos estrangeiros que entravam no soak saíam. Tem uns tipos assassinos por lá.

O mago refletiu sobre o assunto.

— Você pode repetir, por favor? — pediu. — Depois que falou que deveríamos ser atacados, parecia ter uma campainha no meu ouvido.

— Bem, nós queremos achar os criminosos, não queremos?

— Não exatamente queremos — reagiu Rincewind. — Não é o verbo que eu teria escolhido.

— Como você diria, então?

— Hã… Acho que a expressão “não queremos” resume muito bem a situação.

— Mas você concordou que deveríamos recuperar o chapéu!

— Sem morrer no percurso — protestou. — Não faria bem a ninguém. Pelo menos, não a mim.

— Meu pai sempre disse que morrer não é nada além de dormir — argumentou Conina.

— É, o chapéu falou isso — admitiu Rincewind, ao dobrarem uma rua estreita e abarrotada, entre muros brancos de barro. — Mas, no meu modo de ver, fica bem mais difícil acordar de manhã.

— Olhe aqui — disse Conina. — Não há perigo. Você está comigo.

— E, e você está ansiosa para ir, não está? — perguntou Rincewind acusadoramente, enquanto Conina os conduzia por um beco sombrio, com o séqüito de empreendedores púberes no seu encalço. — E o velho heridiatário em jogo.

— Cale a boca e se finja de vítima.

— Sei fazer isso muito bem — disse, afastando um membro do Conselho Infantil do Comércio particularmente teimoso. — Tenho muita prática. Pela última vez, eu não quero comprar ninguém, menino infeliz!

Desanimado, olhou para os muros à volta. Pelo menos, ali não havia nenhuma daquelas imagens perturbadoras, mas a brisa quente ainda soprava poeira ao redor, e ele já estava farto de ver areia. O que queria mesmo eram duas cervejas geladas, um banho frio e uma muda de roupas limpas. Nada disso, provavelmente, o faria sentir-se melhor, mas ao menos faria com que se sentir péssimo fosse mais agradável. Não que ali houvesse cerveja. Era engraçado, mas, em cidades frias como Ankh-Morpork, a bebida consagrada era a cerveja, que nos gela o corpo, e, em lugares como aquele, onde o céu inteiro era um forno de porta aberta, as pessoas tomavam pequenas bebidas viscosas que deixavam a garganta em brasa. E a arquitetura era toda errada. E havia estátuas nos templos que, bem, simplesmente não convinham. Aquilo não era lugar para um mago. Obviamente, possuíam a alternativa local — encantadores, ou qualquer coisa parecida, mas não o que se pode chamar de boa magia…

Conina seguia na frente, cantarolando para si mesma.

Você gosta dela, não gosta? Dá para sentir, disse uma voz na cabeça dele.

Ah, inferno, pensou Rincewind. Não é minha consciência de novo, é?

Sua libido. Está um pouco entulhado, aqui. Você não limpou, desde minha última visita.

Olhe, vá embora. Eu sou um mago! Os magos são guiados pela cabeça, não pelo coração!

Mas recebi os votos das suas glândulas, e elas dizem que o coração está em minoria.

É, só que ele tem o voto de Minerva.

Ah! E o que você pensa. Seu coração não tem nada a ver com isso. Aliás, não passa de um órgão muscular que aciona a circulação do sangue. Mas, vejamos… Você gosta dela, não gosta?

Bem… titubeou Rincewind. Gosto, pensou, hã…

Ela é ótima companhia, hein? Bela voz…

Bem, claro…

Gostaria de passar mais tempo com ela?

Bom… Com alguma surpresa, Rincewind se deu conta de que sim, gostaria. Não que estivesse completamente desabituado à companhia de mulheres, mas isso sempre parecia trazer problemas, e era fato conhecido de todos que fazia mal à proficiência mágica. Embora ele tivesse de admitir que sua proficiência mágica, equivalendo aproximadamente à de um martelo de borracha, já era tosca o bastante.

Então você não tem nada a perder, salientou a libido, num tom de pensamento meloso.

Foi nesse momento que Rincewind deu falta de uma coisa importante. Levou algum tempo para perceber o que era.

Ninguém tentava lhe vender nada havia vários minutos. Em Al Khali, isso provavelmente significava que a pessoa estava morta.

Ele, Conina e a Bagagem encontravam-se a sós, num beco comprido e escuro. Dava para ouvir a balbúrdia da cidade à distância, mas à volta não havia nada além de um vigilante silêncio.

— Eles saíram correndo — disse Conina.

— Vamos ser atacados?

— Talvez. Três homens vêm nos seguindo pelos telhados.

Rincewind olhou para cima quase no mesmo instante em que três homens, vestidos com mantos negros esvoaçantes, surgiram à frente. Quando olhou ao redor, outros dois apareceram da esquina. Todos os cinco traziam longas espadas recurvas e, embora a metade inferior dos rostos se encontrasse coberta, era quase certo que estivessem rindo com malícia.

Rincewind bateu com força na tampa da Bagagem.

— Mate — ordenou.

A Bagagem permaneceu imóvel durante algum tempo e, depois, arrastou-se para o lado de Conina. Parecia ligeiramente orgulhosa e, Rincewind notou, enciumado, um tanto constrangida.

— Ora, sua… — rosnou, e deu-lhe um chute — … sua maleta.

Rincewind aproximou-se da menina, parada com um sorriso meditativo no rosto.

— E agora? — perguntou. — Vai oferecer a todos um permanente rápido?

Os homens se avizinharam mais. Ele notou que só estavam interessados em Conina.

— Não estou armada — disse ela.

— O que aconteceu com o legendário pente?

— Deixei no navio.

— Não tem nada aí?

Conina mudou ligeiramente de posição, a fim de manter o maior número de homens possível em seu campo de visão.

— Duas presilhas — respondeu, com o canto da boca.

— Servem?

— Não sei. Nunca tentei.

— Você nos meteu nessa!

— Calma. Acho que só vão nos levar como prisioneiros.

— Ah, para você está ótimo. Não vai ser a oferta especial da semana.

A Bagagem fechou a tampa uma ou duas vezes, meio indecisa. Com cuidado, um dos homens estendeu a espada e espetou a nuca de Rincewind.

— Querem nos levar a algum lugar, está vendo? — perguntou Conina. Ela rilhou os dentes. — Ali, não — murmurou.

— Qual é o problema agora?

— Não posso!

— O quê?

Conina pôs as mãos no rosto.

— Não consigo me deixar levar prisioneira sem lutar! Sinto mil ancestrais bárbaros me acusando de traição! — sussurrou, com urgência. — Espere aí, não vai demorar nada.

Houve uma agitação súbita no ar, e o homem mais próximo caiu gorgolejando. Os cotovelos de Conina recuaram, acertando a barriga dos homens que se encontravam na retaguarda. O braço esquerdo ricocheteou, passou pela orelha de Rincewind, com um barulho de seda rasgando, e abateu o homem que estava atrás dele. O quinto surgiu correndo e foi derrubado por um objeto voador, que lhe fez bater com força a cabeça no muro.

Conina rolou no chão e sentou-se, arfante, os olhos brilhando.

— Detesto dizer isso, mas me sinto melhor agora — admitiu. — É horrível saber que fui contra a tradição das cabeleireiras. Ah.

— É — assentiu Rincewind, sério. — Eu estava me perguntando se você já os havia notado.

Conina estudou a fila de arqueiros que surgira no muro oposto. Eles tinham a aparência impassível e inalterável de quem recebeu dinheiro para executar um serviço e não se incomoda muito que o serviço envolva assassinato.

— Hora de usar aquelas presilhas — sugeriu o mago.

Conina não se mexeu.

— Meu pai sempre dizia que não faz sentido atacar o inimigo extensivamente munido de armas impulsoras — advertiu a moça.

Rincewind, que conhecia o modo de Cohen falar, dirigiu a ela o olhar incrédulo.

— Bem, o que ele realmente dizia — corrigiu a menina — era: nunca chute o rabo de um porco-espinho.


Lingote não conseguiu tomar o café-da-manhã.

Ele se perguntava se deveria falar com Carding, mas tinha a terrível sensação de que o velho mago não lhe daria ouvidos e não acreditaria em nada. Na verdade, ele mesmo não tinha certeza se acreditava… Tinha, sim. Jamais esqueceria aquilo, embora pretendesse com todas as forças.

Um dos problemas de viver agora na Universidade era que o prédio em que se dormia provavelmente não seria o mesmo pela manhã. Os quartos haviam criado o hábito de se alterar e mudar de lugar, conseqüência de toda a magia aleatória. Ela se formava no tapete, impregnando os magos de tal modo que apertar a mão de outra pessoa era uma maneira infalível de transformá-la em alguma coisa. A formação de magia, na realidade, estava superando a capacidade da área de manutenção. Se ninguém fizesse nada a respeito, até a gente comum logo seria capaz de usá-la — uma idéia assustadora, mas que, como a mente de Lingote estava tão cheia de idéias assustadoras que dava para usá-la como fôrma de gelo, não seria uma daquelas com que ele passaria muito tempo se preocupando.

Geografia doméstica não era a única dificuldade, porém. A pressão da afluência taumatúrgica estava afetando até os alimentos. O que era uma garfada de arroz, ao sair do prato, poderia muito bem se transformar em outra coisa até entrar na boca. Se a pessoa tinha sorte, não seria comestível. Se não tinha, era comestível, mas provavelmente nada que gostássemos de pensar que estivéssemos prestes a engolir, ou, ainda pior, já tivéssemos engolido pela metade.

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