7. O VÔO DO FALCÃO

Gued acordou e, por muito tempo, teve apenas a percepção de que era agradável acordar, pois não esperara voltar a fazê-lo, e era muito agradável ver a luz do dia, a vasta e simples luz do dia a toda a sua volta. Sentiu-se como se estivesse a flutuar nessa luz ou fosse à deriva num barco sobre águas tranqüilas. Por fim, concluiu que estava numa cama, mas nada tinha a ver com qualquer outra em que alguma vez tivesse dormido. Estava feita sobre uma estrutura que se apoiava em quatro pernas altas e trabalhadas e os colchões eram grandes sacos de seda cheios de penas, o que explicava a sensação que tivera de flutuar, e por cima de tudo um dossel carmesim destinado a impedir as correntes de ar. Em dois lados, a cortina estava levantada e presa, permitindo que Gued visse um quarto com paredes e chão de pedra. Através de três janelas altas, avistou a charneca, castanha e nua, com um trecho de neve aqui e além, envolta na tênue luz do Inverno. O quarto devia situar-se bem acima do solo, pois avistava-se uma grande extensão do terreno em volta.

Quando Gued se sentou, uma coberta de cetim também recheada de penas deslizou para o lado e ele viu que envergava uma túnica de seda e passamanaria de prata, como um senhor. Numa cadeira ao lado da cama estavam preparados para ele botas de pelica e um manto debruado a pele de pellauí. Deixou-se ficar sentado por uns momentos, calmo e entorpecido, como alguém presa de um sortilégio, e depois levantou-se, estendendo a mão para pegar no bordão. Mas não tinha bordão.

A sua mão direita, embora tivesse sido tratada e ligada, estava queimada na palma e nos dedos. E nesse momento sentiu a dor que havia nela e o cansaço dorido de todo o corpo.

Uma vez mais, quedou-se sem fazer qualquer movimento. Depois sibilou, não muito alto, não muito esperançoso:

— Hoeg… Hoeg…

Porque também aquela criaturinha feroz e leal, a pequena alma silenciosa que já uma vez o arrancara ao domínio da morte, desaparecera. Estaria ainda com ele na noite passada, quando fugira? E teria sido na noite anterior ou muitas noites atrás? Não sabia. Tudo na sua mente era vago e obscuro, o gebbeth, o bordão em chamas, a fuga, o sussurro, a porta. De nada conseguia lembrar-se claramente. E, mesmo agora, nada era claro. Sussurrou uma vez mais o nome do seu animalzinho, mas sem esperança de obter resposta, e as lágrimas assomaram-lhe aos olhos.

Nalgum lado, longinquamente, soou uma campainha. E uma segunda produziu um tilintar muito doce, mesmo fora do quarto. Uma porta abriu-se atrás dele, do outro lado do quarto, e entrou uma mulher.

— Bem-vindo sejas, Gavião.

Era jovem e alta, vestida de branco e prata, com uma rede de prata a encimar-lhe a cabeleira que caía a direito como uma cascata de água negra.

Rapidamente, Gued inclinou a cabeça.

— Julgo que não te lembras de mim.

— Lembrar-me de ti, Senhora?

Nunca vira uma mulher bonita vestida de modo a fazer justiça à sua beleza senão uma única vez na sua vida. Aquela Senhora de O que viera com o seu Senhor ao Festival do Regresso-do-Sol em Roke. Vira-a como a chama de uma vela, brilhante e esguia, mas esta mulher era como a brancura da lua nova.

— Logo vi que não — prosseguiu ela, sorrindo. — Mas, por muito esquecido que sejas, és aqui acolhido como um velho amigo.

— Que lugar é este? — perguntou Gued, sentindo-se rígido ainda e lento de fala. Verificou que era difícil falar com ela, difícil desviar dela os olhos. As roupas principescas que envergava eram-lhe estranhas, as pedras sobre as quais se erguia não eram familiares e estrangeiro era o próprio ar que respirava. Não era ele próprio, não era o ser que fora.

— Esta fortaleza tem o nome de Corte da Terrenon. O meu Senhor, a quem chamam Benderesk, é soberano desta terra desde o limite das Charnecas de Keksemt até ao Norte, às Montanhas de Os, e guardião da pedra preciosa chamada Terrenon. Quanto a mim, aqui em Osskil chamam-me Serret, prata na língua deles. Quanto a ti, já sei, chamam-te por vezes Gavião e ascendeste a feiticeiro na Ilha dos Sages.

Gued olhou para baixo, para a sua mão queimada, e acabou por dizer:

— Não sei o que sou. Tive poder, em tempos. Perdi-o, penso.

— Não! Tu não o perdeste, ou então foi para o recuperares dez vezes mais forte. Aqui estás a salvo do que te perseguia, meu amigo. Há muralhas poderosas ao redor desta torre e nem todas são de pedra. Aqui poderás repousar e recuperar as tuas forças. E aqui poderás encontrar uma força diferente e um bordão que não se faça em cinzas na tua mão. Afinal, um mau caminho pode conduzir a bom fim. E agora vem comigo, deixa-me mostrar-te o resto do nosso domínio.

E falava com tal doçura que Gued mal lhe ouvia as palavras, tocado apenas pela promessa que havia na sua voz. Seguiu-a.

O quarto ficava realmente muito alto na torre que se erguia como um dente afiado acima do topo da colina. Descendo escadas de mármore em espiral, Gued seguiu Serret, através de ricas salas e salões, passando por janelas que abriam para norte, oeste, sul e leste, por sobre as baixas colinas castanhas que se sucediam, sem casas, sem árvores, sem mudança, claras sob o desbotado céu de Inverno. Só muito longe para norte se erguiam pequenos picos brancos a destacarem-se nitidamente contra o azul, enquanto para sul se adivinhava o brilho do mar.

Servos abriram portas e desviaram-se para o lado perante Gued e a dama, todos eles pálidos e frios osskilianos. Também a pele dela era clara, mas, ao contrário deles, falava bem a língua Hardic e mesmo, pareceu a Gued, com o sotaque de Gont. Mais tarde, nesse mesmo dia, ela levou-o perante o marido, Benderesk, Senhor da Terrenon. Com três vezes a sua idade, branco como um osso e como um osso magro, de olhar turvo, o Senhor Benderesk acolheu Gued com uma fria e severa cortesia, convidando-o a permanecer como hóspede durante o tempo que lhe aprouvesse. Depois pouco mais teve para dizer, nada perguntando a Gued das suas viagens ou do inimigo que o perseguira até ali. E também a Dama Serret nada lhe perguntara de tais coisas.

Se isto era estranho, era apenas parte da estranheza daquele sítio e da sua própria presença nele. A mente de Gued nunca pareceu aclarar-se. Não conseguia ver as coisas distintamente. Viera até esta torre-fortaleza por acaso e, no entanto, todo o acaso era desígnio. Ou viera por desígnio e, contudo, todo o desígnio apenas se devera ao acaso. Dirigira-se para norte. Um estranho em Orrimi dissera-lhe que procurasse ajuda ali. Um navio osskiliano estivera à espera dele. Skiorh guiara-o. Quanto de tudo isto seria obra da sombra que o perseguia? Ou não seria nada? Teriam sido ambos, ele e o seu perseguidor, atraídos ali por algum poder, ele seguindo esse chamariz e a sombra seguindo-o a ele, apoderando-se de Skiorh como sua arma ao surgir a ocasião? Devia ser isso, pois certamente a sombra estava, como dissera Serret, impedida de penetrar na Corte da Terrenon. Desde que acordara na torre, não voltara a sentir sinal ou ameaça da sua abominável presença. Mas então o que o trouxera ali? Porque aquele não era lugar onde se viesse por acaso. Mesmo na lentidão dos seus pensamentos, começava a ver isso. Nenhum outro estranho se acercava daquelas portas. A torre erguia-se, isolada e remota, de costas voltadas para o caminho de Neshum, que era a cidade mais próxima. Ninguém vinha até à fortaleza, ninguém dela saía. Das suas janelas só se avistava a desolação. E dessas janelas olhava Gued, permanecendo sozinho no seu alto quarto, dia após dia, lento de idéias, dorido de coração e frio. Fazia sempre frio na torre, apesar de todos os tapetes e tapeçarias e rico vestuário forrado a pele e vastas lareiras de mármore que ali havia. Era um frio que penetrava até aos ossos, até à medula, e não se deixava desalojar. E, no coração de Gued, também uma vergonha fria penetrou e não se deixava desalojar, à medida que ele ia constantemente pensando no modo como enfrentara o seu inimigo e fora derrotado e fugira. No seu espírito, reuniram-se todos os Mestres de Roke, com Guencher, o Arquimago, franzindo o cenho no meio deles, e juntou-se ainda Nemmerle, e Óguion, e até a bruxa que lhe ensinara o seu primeiro conjuro. Todos o olhavam e ele sabia que tinha desiludido a confiança que nele depositavam. Argumentava, dizendo: «Se não fosse eu fugir, a sombra ter-me-ia possuído. Tinha já toda a força de Skiorh, parte da minha, e eu não podia combatê-la. Sabia o meu nome. Tive de fugir. Um feiticeiro-gebbeth teria sido um terrível poder para o mal e para a ruína. Tive de fugir.» Mas nenhum dos que o escutavam no seu espírito lhe respondia. E ele observava a neve a cair, fina e incessante, sobre as terras desoladas por baixo da janela, sentindo o frio entorpecedor a crescer dentro dele, até lhe parecer que nenhuma sensação lhe restava, a não ser uma espécie de lassidão.

E assim, por pura angústia, manteve-se isolado durante muitos dias. Mesmo quando saía do quarto, permanecia silencioso e rígido. A beleza da Dama da Fortaleza confundia-lhe o espírito e nesta estranha Corte, rica, decorosa, ordenada, sentia-se um pastor de cabras, nado e criado como tal.

Deixavam-no sozinho quando queria estar sozinho e, quando não podia já suportar os seus pensamentos nem olhar a neve que caía, Serret ia freqüentemente ao seu encontro num dos salões arredondados, com tapeçarias nas paredes e iluminados pelo lume da lareira, nas zonas mais baixas da torre, e ali falavam. Não havia alegria na Dama da Fortaleza — nunca ria, embora sorrisse algumas vezes. No entanto, conseguia pôr Gued à vontade, quase bastando um sorriso. Com ela, começou a deixar para trás a sua rigidez, a sua vergonha. Em breve começaram a encontrar-se diariamente para conversar, longa, calma e ociosamente, um pouco à parte das servas que acompanhavam sempre Serret, junto à lareira ou à janela dos altos quartos da torre.

O velho senhor permanecia quase sempre nos seus próprios aposentos, deles saindo de manhã para ir caminhar de um lado para o outro nos pátios interiores, cobertos de neve, do castelo, como um velho mágico que tivesse passado a noite a tecer esconjuros. Quando se juntava a Gued e a Serret para cear, permanecia silencioso, fitando por vezes a jovem esposa com um olhar duro e ávido. Então Gued sentia pena dela. Era como uma corça branca aprisionada, como uma ave branca de asas presas, como um anel de prata no dedo de um velho. Era uma peça no tesouro de Benderesk. E quando o senhor da fortaleza os deixava, Gued ficava com ela, tentando animar-lhe a solidão como ela animava a dele.

— Que jóia é essa que dá o nome à tua fortaleza? — perguntou-lhe ele certa vez em que estavam a conversar, por sobre os seus pratos de ouro vazios, das suas taças de ouro vazias, na sala de jantar, iluminada a velas, grande como uma caverna.

— Nunca ouviste falar dela? É coisa famosa.

— Não. Sei apenas que os senhores de Osskil têm famosos tesouros.

— Ah, mas esta jóia empalidece todas as outras. Diz, gostavas de vê-la?

E Serret sorriu, com uma expressão de zombaria e temeridade, como se estivesse um pouco assustada com o que ia fazer, e conduziu o jovem para fora da sala, através dos estreitos corredores da base da torre e escadas subterrâneas abaixo, até a uma porta fechada que ele nunca antes vira. Abriu-a com uma chave de prata, erguendo a vista para Gued com o mesmo sorriso, como se o desafiasse a segui-la. Para lá da porta havia uma curta passagem e uma segunda porta, que ela abriu com uma chave de ouro, e para além dessa ainda uma terceira porta, que ela abriu com uma das Grandes Palavras de desligar. Para lá dessa última porta, a luz da vela revelou uma pequena sala, semelhante a uma cela de prisão. Chão, paredes, teto, tudo de pedra por trabalhar, sem qualquer peça de mobília, tudo nu.

— Estás a vê-la? — perguntou Serret.

Enquanto Gued olhava em volta, o seu olhar de feiticeiro isolou uma das pedras que formavam o chão. Era grosseira, úmida e fria como as restantes, apenas mais uma laje pesada e sem forma, e no entanto ele sentiu-lhe o poder como se a pedra lhe tivesse falado em voz alta. A respiração ficou-lhe presa no peito e, por um momento, foi tomado por uma náusea. Aquela era a pedra fundamental da torre. Aquele era o seu ponto central e era frio, frio de gelo. Nada poderia alguma vez aquecer a pequena sala. Era uma coisa muito, muito antiga. Um espírito velho e terrível estava aprisionado naquele bloco de pedra. Não respondeu sim nem não a Serret, permanecendo imóvel. Então, lançando-lhe um rápido e curioso olhar, ela apontou-lhe a pedra.

— Eis a Terrenon. Admiras-te por mantermos uma jóia tão preciosa fechada na nossa mais profunda sala de tesouro?

Mas Gued continuou a não dar resposta, permanecendo mudo e desconfiado. Ela poderia estar a testá-lo, mas achava que não devia ter noção de qual fosse a natureza da pedra, para falar dela com tanta ligeireza. Não sabia o suficiente sobre ela para a temer.

— Fala-me dos seus poderes — disse ele por fim.

— Foi feita antes que Segoy erguesse as ilhas do mundo do Alto Mar. Foi feita quando foi feito o próprio mundo e durará até ao fim do mundo. Para ela, o tempo nada é. Se colocares a tua mão sobre ela e lhe fizeres uma pergunta, ela responderá, de acordo com o poder que houver em ti. Tem voz, se a souberes escutar. Falará de coisas que foram, que são e que hão de ser. Falou da tua vinda, muito antes que chegasses a estas terras. E agora, queres fazer-lhe uma pergunta?

— Não.

— Ela responde-te.

— Não existe pergunta que eu queira fazer-lhe.

— Poderia dizer-te — insistiu Serret na sua voz mais doce — como derrotar o teu inimigo.

Gued permaneceu em silêncio.

— Temes a pedra? — perguntou ela como se não pudesse acreditar em tal, mas Gued respondeu:

— Temo.

No frio mortal e no silêncio da sala rodeada por parede sobre parede de encantamentos e de pedra, à luz da vela que segurava, Serret, de olhos brilhantes, voltou a fitá-lo.

— Gavião — disse —, tu não tens medo.

— Mas não falarei com aquele espírito — retorquiu Gued e, olhando diretamente para ela, falou com grave ousadia: — Senhora, aquele espírito está selado numa pedra, e a pedra está fechada com encantamentos de ligar e de cegar e esconjuro de fechar e sob guarda e com uma fortaleza de tripla muralha à sua volta, no meio de uma terra estéril, não por ser preciosa, mas porque pode trazer grande mal. Não sei o que dela te terão dito quando aqui chegaste. Mas tu, que és jovem e meiga de coração, nunca deverias tocá-la ou sequer olhá-la. Nada de bom te poderá trazer.

— Mas já lhe toquei. Falei-lhe e ouvi-a falar. Não me faz mal algum.

Voltou costas e saíram dali, voltando a atravessar as portas e as passagens, até que, chegados à larga escadaria iluminada por archotes, ela apagou a vela. Despediram-se com poucas palavras.

Nessa noite, Gued pouco dormiu. Não foi a recordação da sombra que o manteve acordado. Pelo contrário, esse pensamento fora quase eliminado da sua mente pela imagem, a que constantemente regressava, da Pedra sobre a qual aquela torre fora fundada e do rosto de Serret, a um tempo brilhante e ensombrado pela luz da vela, voltado para ele. Uma vez e outra sentiu o seu olhar sobre si, e tentava decidir que expressão se desenhara nele quando se recusara a tocar a pedra, se fora desdém ou dor. Quando finalmente se acomodou para dormir, os lençóis de seda da cama estavam frios como gelo e, no escuro da noite, Gued acordava constantemente pensando na Pedra e nos olhos de Serret. No dia seguinte encontrou-a no salão arredondado de mármore cinzento, iluminado agora pelo sol que declinava para ocidente e onde ela passava freqüentemente as tardes, jogando ou tecendo com as suas aias. Gued disse-lhe:

— Dama Serret, ofendi-te. Lamento-o.

— Não — disse ela, meditativamente. E repetiu: — Não… — Mandou embora as servas que estavam com ela e, quando ficaram sós, voltou-se para Gued.

— Meu hóspede, meu amigo — disse —, tens uma visão muito clara, mas talvez não vejas tudo o que há a ver. Em Gont e em Roke ensinam-se feitiçarias. Mas não todas as feitiçarias. Aqui é Osskil, Terra-do-Corvo. Não é uma terra Hardic e nela os magos não dominam, nem têm dela muito conhecimento. Há coisas que acontecem aqui que escapam aos sábios do Sul, coisas que não são nomeadas nas listas do Mestre dos Nomes. Aquilo que não se conhece, teme-se. Mas tu não tens nada a temer aqui na Corte da Terrenon. Alguém mais fraco que tu teria, sem dúvida. Tu não. Tu és alguém que nasceu com o poder de controlar aquilo que está na sala selada. Isso eu sei. E é por isso que aqui estás.

— Não compreendo.

— Isso é porque o meu senhor Benderesk não foi inteiramente franco contigo. Mas eu sê-lo-ei. Vem sentar-te ao pé de mim.

E Gued sentou-se junto dela, no fundo banco almofadado da janela. A luz do poente entrava a direito pela janela, envolvendo-os num brilho em que não havia calor. Na charneca, lá em baixo, mergulhando já nas sombras, a neve da noite anterior permanecia intacta, como um pálio de um branco sujo, amorta-lhando o mundo. Serret falou suavemente.

— Benderesk é Senhor e Herdeiro da Pedra Terrenon, mas não pode usá-la, não consegue forçá-la a cumprir totalmente os seus desígnios. Nem eu o consigo, sozinha ou com ele. Nem ele nem eu temos a mestria ou o poder. Tu tens ambos.

— Como sabes isso?

— Pela própria Pedra! Eu disse-te que ela falou da tua vinda. Ela conhece o seu senhor. Tem esperado a tua chegada. Ainda antes que nascesses já ela te esperava, aquele que a podia dominar. E aquele que pode obrigar Terrenon a responder ao que ele pergunta, fazer o que ele deseja, terá poder sobre o seu próprio destino, força para esmagar qualquer inimigo, mortal ou do outro mundo. Terá visão do futuro, saber, riqueza, domínio e feitiçaria às suas ordens capazes de se sobrepor ao próprio Arquimago! De tudo isto, tanto ou tão pouco que queiras é teu. Basta pedires. Uma vez mais, Serret ergueu para ele o estranho brilho dos seus olhos e esse olhar trespassou-o de tal modo que ele estremeceu como de frio. E, no entanto, havia um temor no rosto dela, como se ansiasse por auxílio mas fosse demasiado orgulhosa para lho pedir. Gued sentia-se desnorteado. Ao falar, ela pousara a mão na sua. O seu toque era suave, a sua mão parecia estreita e clara na mão dele, escura, forte. Quase numa súplica, disse:

— Serret! Não tenho tanto poder como crês. Aquele que tive lancei-o fora. Não posso ajudar-te, não tenho utilidade alguma para ti. Mas uma coisa sei. Os Velhos Poderes da terra não são para uso dos homens. Nunca foram depostos nas nossas mãos e, nas nossas mãos, só podem trazer ruína. Maus meios, maus fins. Não fui atraído aqui, mas sim conduzido, e a força que me conduziu pretende a minha perda. Não posso ajudar-te.

— Aquele que lança fora o seu poder recebe por vezes um poder infinitamente superior — retorquiu ela sorrindo, como se os seus temores e escrúpulos fossem pueris. — Talvez saiba mais que tu acerca do que aqui te trouxe. Não houve um homem que se dirigiu a ti nas ruas de Orrimi? Era um mensageiro, um servo de Terrenon. Em tempos, ele próprio foi um feiticeiro, mas lançou fora o bordão para servir um poder maior que o de qualquer mago. E tu vieste a Osskil, mas, na charneca, tentaste defrontar uma sombra com o teu bordão de madeira. Quase não pudemos salvar-te porque essa coisa que te segue é mais astuciosa do que julgamos e já extraíra muita força de ti… Só a sombra pode defrontar a sombra. Só a escuridão pode derrotar a treva. Ouve, Gavião! Que precisas tu então para derrotares essa sombra que espera por ti fora destas muralhas?

— Preciso daquilo que não posso saber. O seu nome.

— A Pedra Terrenon, que sabe de todos os nascimentos e falecimentos e de todos os seres antes e depois da morte, dos que não nasceram e dos que não morrem, do mundo da luz e do mundo das trevas, dir-te-á esse nome.

— E o preço a pagar?

— Não há preço a pagar. Digo-te que te obedecerá, que te servirá como um escravo.

Vacilante e angustiado, Gued não respondeu. Então ela segurou-lhe a mão entre as suas, perscrutando-lhe o rosto. O Sol mergulhara na névoa que escurecia o horizonte e também o ar se tornara pesado, mas o rosto dela animou-se numa expressão de louvor e triunfo, ao observá-lo e verificar que a vontade do jovem fora abalada dentro dele. Suavemente, sussurrou:

— Serás mais poderoso que todos os homens, um rei entre eles. Reinarás e eu reinarei contigo…

Subitamente, Gued ergueu-se e um passo em frente levou-o onde pôde ver, logo após a curva da parede da longa sala, o Senhor da Terrenon que escutava, com um ligeiro sorriso.

Os olhos de Gued clarearam e também a sua mente. Baixou a vista para Serret.

— A luz é que derrota as trevas — disse, com a voz presa —, a luz.

E ao mesmo tempo que falava viu, tão claramente como se as suas palavras fossem a luz que lhe iluminava a visão, como na realidade fora conduzido ali, ali levado ao engano, como tinham usado o seu temor para o guiar e como, uma vez que se tivessem assenhoreado dele, o manteriam ali. Tinham-no salvo da sombra, realmente, porque não queriam que a sombra o possuísse antes de se tornar escravo da Pedra. Mas logo que a sua vontade tivesse sido aprisionada pela Pedra, então deixariam que a sombra penetrasse nas muralhas, porque um gebbeth seria ainda melhor escravo que um homem. Se alguma vez tivesse tocado a Pedra, ou se lhe tivesse falado, estaria totalmente perdido. Porém, tal como a sombra não fora capaz, embora por pouco, de o alcançar e prender, também a Pedra não fora capaz de o usar… por pouco. Quase cedera, mas, por pouco, não chegara a ceder. Ele não aquiescera. E é muito difícil para o mal apoderar-se da alma que não aquiesce.

E estava agora entre aqueles dois que tinham cedido, que tinham aquiescido, olhando de um para o outro, enquanto Benderesk se aproximava.

— Eu avisei-te — disse o Senhor da Terrenon à sua dama, secamente — de que ele se esgueiraria das tuas mãos, Serret. São uns idiotas ladinos, esses teus feiticeiros de Gont. E idiota és tu também, mulher de Gont, quando pensaste em enganar tanto a ele como a mim, e em os governar a ambos pela tua beleza, e em usar a Pedra da Terrenon para os teus próprios fins. Mas eu sou o Senhor da Pedra, eu, e isto é o que faço à esposa desleal. Ekavroe ai oeluantar…

Era um esconjuro de Mudança e as longas mãos de Benderesk erguiam-se a dar à mulher que se encolhia perante ele a forma de qualquer coisa hedionda — porca, cadela ou velha abjeta.

Gued deu um passo em frente e golpeou a mão do senhor, com a sua, forçando-a a baixar, ao mesmo tempo que pronunciava uma única e curta palavra. E embora não tivesse bordão, e estivesse em terreno alheio e maléfico, domínio de um poder tenebroso, mesmo assim a sua vontade prevaleceu. Benderesk imobilizou-se, os olhos enevoados fixos, cheios de ódio e cegos, sobre Serret.

— Vem — disse ela em voz que tremia —, vem, Gavião, depressa, antes que ele consiga invocar os Servos da Pedra…

Como um eco, um sussurro correu através da torre, por dentro das pedras de paredes e chão, um murmúrio tremente e seco, como se a própria terra pudesse falar.

Agarrando na mão de Gued, Serret fugiu com ele ao longo de corredores e salas, pelas altas escadas em espiral abaixo. Saíram por fim para o pátio, onde um resto de luz prateada do dia permanecia ainda sobre a neve pisada e suja. Três dos servos do castelo lhes barraram o caminho, com expressão sombria e interrogativa, como se suspeitassem de alguma conspiração entre aqueles dois contra o seu amo.

— Está a escurecer, Senhora — disse um deles. E logo outro: — Não podes sair agora.

— Saiam do meu caminho, vermes! — bradou Serret, e disse algumas palavras na sibilante língua de Osskil. Os homens afastaram-se dela, dobraram-se até ao chão, aos estremeções, e um deles gritou alto.

— Temos de ir pela porta grande, não há mais nenhuma saída. Consegues vê-la? Consegues encontrá-la, Gavião?

Puxou-lhe a mão, mas Gued hesitava ainda.

— Que esconjuro lhes lançaste? — quis saber.

— Fiz-lhes correr chumbo derretido pelo tutano dos ossos e disso vão morrer. Depressa, digo-te eu, ou ele lançará sobre nós os Servos da Pedra. E eu não consigo encontrar a porta… Há um grande sortilégio sobre ela. Depressa!

Gued não entendia o que ela queria dizer porque, para ele, a porta encantada era tão obviamente visível como as pedras da passagem em abóbada que a ela conduziam a partir do pátio e através da qual a via. Conduziu Serret através da passagem, por sobre a neve virgem de pegadas da entrada para o pátio e logo, tendo pronunciado uma palavra de Abrir, atravessaram ambos a porta da muralha de sortilégios.

Ao passarem através daquela entrada para fora do crepúsculo prateado da Corte da Terrenon, Serret modificou-se. Não que fosse menos bela à luz triste da charneca, mas havia na sua beleza um ar feroz de feiticeira. E Gued reconheceu-a por fim. Era a filha do Senhor de Re Albi, filha de uma mágica de Osskil, a que troçara dele nos verdes prados acima da casa de Óguion, havia tanto tempo, e o levara a ler aquele esconjuro que libertara a sombra. Mas pouco demorou os pensamentos nisso, porque olhava agora em seu redor com todos os sentidos em alerta, procurando esse inimigo, a sombra, que estaria à sua espera nalgum lado, fora das paredes mágicas. Poderia ser ainda um gebbeth, revestido com a morte de Skiorh, ou poderia ocultar-se na escuridão crescente, esperando para o agarrar e fundir o seu vulto informe com o corpo vivo de Gued. Sentia-lhe a proximidade e, no entanto, não o via. Mas, ao perscrutar o espaço em volta, deu com uma coisa pequena e escura meia mergulhada na neve, a poucos passos da porta. Baixou-se e depois, muito suavemente, levantou-a em ambas as mãos. Era o otaque, o pêlo fino e curto todo pegajoso de sangue, o pequeno corpo leve, hirto e frio nas suas mãos.

— Transforma-te! Transforma-te depressa, eles vêm aí! — gritou agudamente Serret, agarrando-lhe o braço e apontando para a torre, erguendo-se atrás deles como um grande dente branco no escuro crepuscular. Das seteiras próximas da base saíam escuras criaturas, abrindo longas asas, batendo-as lentamente e erguendo-se era espiral por sobre as muralhas e em direção a Gued e Serret, sós e desprotegidos na encosta do monte. O sussurro estrepitoso que tinham ouvido dentro da fortaleza aumentara, soando agora como um tremor e um gemer dentro da terra, sob os seus pés.

A ira ergueu-se como uma vaga no coração de Gued, uma cólera ardente contra todas as coisas cruéis e mortíferas que o tinham iludido, armando-lhe laços, perseguindo-o sem descanso.

— Transforma-te! — bradou-lhe uma vez mais Serret e, com um esconjuro dito rapidamente e em voz ofegante, ela própria se transformou numa gaivota cinzenta e levantou vôo. Mas Gued inclinou-se para o chão e arrancou uma folha de erva bravia que saía, seca e frágil, da neve onde o otaque jazera morto. Ergueu essa folha e, enquanto lhe falava em voz alta na Fala Verdadeira, ela cresceu, espessou-se e, quando Gued acabou, segurava na mão um grande bordão, um bordão de feiticeiro. Nenhum fogo de maldição o percorreu com a sua cor vermelha quando as criaturas negras e adejantes da Corte da Terrenon picaram sobre ele e lhes golpeou as asas. Flamejou apenas com o branco fogo mágico que não queima mas afugenta a escuridão.

As criaturas voltaram ao ataque. Bestas feras, aleijões vindos de eras anteriores aos pássaros, aos dragões, aos homens, há muito esquecidas pela luz do dia, mas de novo invocadas pelo poder antigo, maligno, o poder que nada esquecia, da Pedra. Sem lhe dar tréguas, caíam sobre Gued e ele sentia o silvo das suas garras como foices ao redor dele, o nauseante cheiro a morte que delas se desprendia. Ferozmente, aparava os golpes e devolvia-os, mantendo-os à distância com o bordão flamejante, feito da sua cólera e de um fio de erva brava. E, subitamente, todas as criaturas se ergueram no ar como corvos afugentados de cima de algum cadáver decomposto e rondaram para longe, batendo as asas, silenciosas, na direção que Serret tomara na sua forma de gaivota. As suas vastas asas pareciam lentas, mas voavam rapidamente, porque cada impulso as fazia avançar poderosamente através do ar. Não havia gaivota que pudesse escapar por muito tempo àquela pesada velocidade.

Tão rápido como já uma vez o fizera em Roke, Gued tomou a forma de um grande falcão. Não da pequena ave rapace por cujo nome o tratavam, Gavião, mas do Falcão-Peregrino que voa como uma flecha, como o pensamento. E com as suas asas listradas, cortantes e potentes, perseguindo os perseguidores, voou célere. Os ares iam escurecendo e, por entre as nuvens, o brilho das estrelas ia-se tornando mais nítido. Lá à frente, avistou o bando negro e irregular das criaturas que se lançavam sobre um único ponto pairando no ar. Para além daquele borrão negro, estendia-se o mar, palidamente iluminado pela derradeira e acinzentada claridade do dia. Veloz e em linha reta, o falcão-Gued lançou-se contra as criaturas da Pedra que se dispersaram quando penetrou no meio delas, como se dispersam as gotas da água ferida por uma pedra. Mas tinham alcançado a sua presa. Via-se sangue no bico de uma, penas brancas estavam presas às garras de outra e não havia qualquer gaivota a pairar para além delas, sobre a extensão pálida do mar.

Já as criaturas se voltavam de novo contra Gued, rápida e pesadamente, os bicos de aço a abrirem-se, a estenderem-se para ele. E Gued, rondando uma só vez por sobre elas, lançou o grito do falcão, o grito de raiva e desafio, antes de atravessar célere por sobre as praias baixas de Osskil e, ultrapassando os recifes, voar para o mar largo.

As criaturas da Pedra voaram por algum tempo em círculos, crocitando, para depois, uma a uma, regressarem no seu vôo poderoso ao interior da ilha, por sobre a charneca. Os Velhos Poderes não atravessam o mar, pois cada um está ligado a uma ilha, a um determinado lugar, gruta ou pedra ou nascente. E assim voltaram as negras emanações à fortaleza, onde o Senhor da Terrenon, Benderesk, terá talvez chorado ao seu regresso, ou talvez rido. Mas Gued prosseguiu, com suas asas de falcão, sua fúria de falcão, tal flecha que não mais caísse, tal pensamento que não mais esquecesse, sobrevoando o Mar de Osskil e, para leste, integrando-se no vento do Inverno e na noite.

Óguion, o Silencioso, voltara tarde à sua casa em Re Albi, do seu vaguear outonal. Com o passar dos anos, tornara-se mais silencioso, mais solitário do que nunca. O novo Senhor de Gont, que habitava a cidade lá em baixo, nunca conseguira arrancar-lhe uma palavra, embora tivesse trepado até mesmo ao cimo do Ninho de Falcão, a rogar o auxílio do mago num certo empreendimento de pirataria para o lado das Andrades. Óguion, que falava com as aranhas nas suas teias e já fora visto a cumprimentar árvores com toda a cortesia, não disse uma única palavra ao Senhor da Ilha, que acabou por partir, descontente. Haveria também talvez algum descontentamento ou inquietação no espírito de Óguion, pois passara todo o Verão e todo o Outono sozinho, no alto da montanha, e só agora, perto do Regresso-do-Sol, voltara ao seu lar. Na manhã seguinte ao seu regresso, levantou-se tarde e, apetecendo-lhe uma chávena de chá de junquilho, saiu a buscar água à fonte que brotava um pouco abaixo na encosta. As margens da pequena lagoa que rodeava a nascente estavam geladas e o musgo entre as pedras salpicado com flores de geada. Era dia claro, mas o Sol só passaria o poderoso rebordo da montanha dentro de uma hora. Toda a parte ocidental de Gont, desde a costa até ao cume, se apresentava sem sol, silenciosa e límpida naquela manhã de Inverno. Estava o mago junto à nascente, espraiando o olhar por sobre as terras em declive e o porto e a distância cinzenta do mar, quando ouviu acima dele um bater de asas. Olhou para cima, erguendo um pouco o braço direito. Um grande falcão veio descendo com um bater ruidoso de asas e pousou-lhe no pulso. Ali se aquietou como ave treinada para a caça, mas não ostentava trela quebrada, nem venda ou sino. As garras apertavam com força o pulso de Óguion, as asas listradas estremeciam e o olho, redondo e dourado, era vago e bravio.

— És mensageiro ou mensagem? — perguntou Óguion suavemente ao falcão. — Vem daí comigo…

Ao falar-lhe, o falcão olhou-o. Óguion ficou por um momento em silêncio.

— Em tempos dei-te o nome, creio eu — disse o mago. Depois encaminhou-se para casa e entrou, continuando a manter a ave no pulso. Colocou o falcão a um canto da lareira, ao calor, e ofereceu-lhe água. Mas a ave não bebeu. Então Óguion começou a lançar um encantamento, muito calmamente, formando a teia de magia, mais com as suas mãos do que com palavras. Quando o sortilégio ficou completo e bem tecido, disse suavemente «Gued», sem olhar o falcão. Esperou mais um pouco, depois voltou-se, ergueu-se e dirigiu-se ao jovem que estava de pé, tremendo e de olhar vago, diante do fogo.

Gued envergava roupas ricas e exóticas, de peles, seda e prata, mas apresentavam-se cheias de rasgões e rígidas cora sal do mar, e ele próprio permanecia desolado e de costas curvadas, o cabelo a cair-lhe, corredio, pelos lados do rosto marcado de cicatrizes.

Óguion tirou-lhe dos ombros o manto manchado e principesco, conduziu-o até à alcova onde em tempos o seu aprendiz dormira, obrigando-o a deitar-se na enxerga, e deixou-o, depois de murmurar uma encantamento de dormir. Não lhe dirigira a palavra, pois sabia que não havia agora em Gued discurso humano.

Em rapaz, como todos os rapazes, Óguion pensara como devia ser agradável brincadeira tomar, por artes mágicas, qualquer forma que uma pessoa quisesse, homem ou animal, árvore ou nuvem, e brincar assim a ser mil coisas diferentes. Mas, como feiticeiro, aprendera o preço de tal jogo e que é o perigo de perder o próprio ser, perdendo a verdade nesse jogo. Quanto mais tempo um homem permanece sob uma forma que não é a sua, tanto maior é esse perigo. Todo o aprendiz de feiticeiro aprende a história do feiticeiro Bordger de Way que adorava tomar a forma de urso, e foi-o fazendo cada vez com mais freqüência, até que o urso cresceu nele, o homem foi desaparecendo e por fim tornou-se um urso e, encontrando na floresta o seu próprio filho, ainda criança, matou-o, pelo que foi perseguido e abatido. E ninguém sabe quantos dos golfinhos que saltam nas águas do Mar Interior foram em tempos homens, homens sábios, que esqueceram a sua sabedoria e o seu nome na alegria do mar irrequieto.

Gued tomara a forma de falcão cheio de aflição e raiva. Ao voar para longe de Osskil, um único pensamento ocupara o seu espírito: afastar-se tanto da Pedra como da sombra, escapar àquelas terras gélidas e traiçoeiras, voltar a casa. A ira e a selvajaria do falcão eram como as suas e suas se tinham tornado, o seu desejo de fuga tornara-se o desejo do falcão. E assim ele passara sobre Enlad, descendo para beber numa lagoa isolada da floresta, mas logo erguendo vôo de novo, impelido pelo medo da sombra que vinha atrás dele. Atravessara, pois, a grande extensão de mar a que chamam as Fauces de Enlad e continuara sempre em frente, na direção de sudeste, com os montes indistintos de Oranéa para a sua direita e, mais indistintos ainda, os de Andrad para a esquerda e, em frente dele, apenas o mar. Até que por fim, na sua frente, se ergueu das ondas uma outra onda que não se modificava, erguendo-se cada vez mais alto — o branco pico de Gont. Em todos os momentos, iluminados de sol ou escurecidos de noite, daquele vasto vôo, ele usara as asas do falcão, olhara através dos olhos do falcão e, esquecendo os seus próprios pensamentos, ficara por fim a conhecer apenas aquilo que o falcão conhece, a fome, o vento, o modo como voa.

E voou para o abrigo certo. Poucos havia em Roke, e apenas um em Gont, capazes de o tornar de novo um homem.

Ao acordar, permaneceu bravio e silencioso. Óguion não tentou falar-lhe, mas deu-lhe carne e água e deixou-o sentar-se, Corcovado, junto ao lume, soturno como um grande falcão, exausto e enfadado. Vinda a noite, dormiu. Na terceira manhã, veio até junto do fogo, onde o mago estava sentado, fitando as chamas, e disse:

— Mestre…

— Sê bem-vindo, rapaz — disse Óguion.

— Volto para junto de ti tal como parti, um tolo — disse o jovem, a voz rouca e empastada.

O mago sorriu ligeiramente e indicou a Gued que se sentasse do outro lado do lume, dedicando-se depois à tarefa de fazer chá para ambos.

A neve caía, a primeira do Inverno, nas encostas inferiores de Gont. As janelas de Óguion estavam firmemente cerradas, mas mesmo assim ouviam a neve úmida cair suavemente no telhado e sentiam a profunda quietude da neve que rodeava a casa. Por longo tempo permaneceram sentados junto ao fogo e Gued narrou ao seu velho mestre a história dos anos decorridos desde que ele deixara Gont a bordo do navio chamado Sombra. Óguion não fez quaisquer perguntas e, quando Gued terminou, manteve ainda por longo tempo o silêncio, calmo, ponderando. Depois ergueu-se, colocou pão, queijo e vinho sobre a mesa, e comeram juntos. Acabada a refeição e arrumada a sala, Óguion falou:

— São bem amargas essas cicatrizes que trazes, rapaz.

— Não tenho força que prevaleça contra aquela coisa — respondeu Gued.

Óguion sacudiu a cabeça, mas nada mais disse durante algum tempo. Por fim, voltou a quebrar o silêncio.

— Estranho — disse. — Tiveste força suficiente para sobrepor os teus sortilégios aos de um bruxo, no seu próprio domínio, lá em Osskil. Tiveste força suficiente para resistir às tentações e desviar o ataque dos servos de um Velho Poder da Terra. E em Pendor tiveste força suficiente para enfrentar um dragão.

— O que tive em Osskil foi sorte, não força — retorquiu Gued, estremecendo de novo ao recordar o frio entorpecedor, mortal, da Corte da Terrenon. — Quanto ao dragão, sabia-lhe o nome. A coisa maléfica, a sombra que me persegue, não tem nome.

Todas as coisas têm um nome — disse Óguion, com tanta certeza que Gued não se atreveu a repetir o que o Arquimago Guencher lhe dissera, que essas forças maléficas como a que ele libertara não tinham nomes. É certo que o Dragão de Pendor se oferecera para lhe dizer o nome da sombra, mas ele pouca fé punha na verdade de tal oferta, assim como não acreditava na promessa feita por Serret de que a pedra lhe diria o que ele necessitava saber.

— Se a sombra tiver um nome — disse por fim —, não creio que vá parar e dizer-me…

— Não — respondeu Óguion. — Tal como tu não paraste nem lhe disseste o teu. E, no entanto, ela sabia-o. Na charneca de Osskil ela chamou-te pelo teu nome, pelo nome que eu te dei. É estranho, muito estranho…

E remeteu-se uma vez mais ao seu pensativo silêncio. Por fim, Gued disse:

— Vim aqui em busca de conselho e não de refúgio, Mestre. Não atrairei esta sombra sobre ti e em breve aqui estará se eu ficar. Já uma vez a expulsaste desta mesma sala…

— Não, essa era apenas o seu presságio, a sombra de uma sombra. Não a conseguiria expulsar agora. Só tu o poderias fazer.

— Mas eu sou impotente perante ela. Haverá algum lugar… Mas a voz faltou-lhe antes que terminasse a pergunta.

— Não há lugar seguro algum — disse Óguion suavemente. — Não te voltes a transformar Gued. A sombra pretende destruir o teu ser verdadeiro. Quase o conseguiu, levando-te a tomar o ser do falcão. Não, não sei onde deverás dirigir-te. Porém, tenho uma idéia do que deves fazer. É uma coisa difícil de te dizer.

O silêncio de Gued exigia a verdade e, por fim, Óguion falou de novo:

— Deves voltar-te para trás.

— Voltar-me para trás?

— Sim. Se seguires em frente, se continuares a fugir, para onde quer que corras encontrarás o perigo e o mal, porque são eles que te conduzem, que escolhem o caminho que segues. Tens de ser tu a escolher. Tens de buscar o que te busca. Tens de caçar o caçador.

Gued nada disse.

— Na fonte do rio Ar te dei o nome — prosseguiu o mago —, uma corrente que desce da montanha até ao mar. Um homem deveria saber a que fim se destina, mas nunca o saberá se não voltar atrás, regressando ao seu início e guardando esse início no seu ser. Se não quiser ser como um madeiro mergulhado e arrastado na corrente, terá de ser a própria corrente, toda ela, desde a nascente até mergulhar no mar. Tu regressaste a Gont, regressaste para junto de mim, Gued. Volta-te agora decididamente para trás, busca a tua própria nascente e o que jaz para trás dela. Aí reside a esperança de encontrares forças.

— Aí, mestre? — disse Gued, o terror presente na sua voz. — Onde?

Óguion não respondeu.

— Se me voltar — disse Gued, decorrido algum tempo —, se, como dizes, der caça ao caçador, penso que a caçada não durará muito. Tudo o que a sombra deseja é encontrar-me frente a frente. E já por duas vezes o fez, e por duas vezes me venceu.

— Às três é de vez — fez notar Óguion.

Gued pôs-se a caminhar na sala de um lado para o outro, da lareira até à porta, da porta até à lareira.

— E se ela me derrotar totalmente — disse, argumentando talvez com Óguion, talvez consigo próprio —, apoderar-se-á do meu saber e da minha força para os usar. Agora é apenas a mim que ameaça. Mas se entrar em mim e me possuir, será grande o mal que poderá realizar através de mim.

— Isso é verdade. Se te derrotar.

— No entanto, se eu voltar a fugir, é mais seguro que voltará a encontrar-me… E toda a minha resistência se terá gasto na fuga.

Durante algum tempo ainda continuou Gued a andar de um lado para o outro. Depois, subitamente, estacou, virou-se e, ajoelhando perante o mago, disse:

— Acompanhei com grandes feiticeiros e vivi na Ilha dos Sages, mas tu, Óguion, és o meu verdadeiro Mestre.

— Falara com amor e uma jovialidade sombria.

— Bom — disse Óguion. — Agora já o sabes. E antes tarde que nunca. Mas, no fim, serás tu o meu Mestre.

Levantou-se, espevitou o lume até obter uma boa chama e pendurou a chaleira sobre ele para ferver água. Depois, vestindo o seu casaco de pele de ovelha, disse:

— Tenho de ir tratar das minhas cabras. Toma tu conta da chaleira por mim, rapaz.

Ao voltar, a neve sobre ele como um pó branco e batendo os pés para retirar mais neve ainda das suas botas de couro de cabra, trazia uma haste, comprida e rugosa, de teixo. Durante todo o final da curta tarde e ainda depois da ceia, esteve a trabalhar a madeira à luz da candeia, com faca, pedra-pomes e artes de encantamento. Muitas vezes passou as mãos ao longo da madeira, como se procurasse algum defeito. Muitas vezes, enquanto trabalhava, se pôs a cantar suavemente. Gued, ainda fatigado, ouvia-o e, à medida que ia ficando ensonado, via-se como criança na cabana da bruxa, na aldeia de Dez Amieiros, numa noite de neve, no escuro cortado pelo luzir do fogo, o ar pesado do aroma das ervas e do fumo, e a sua mente vogando ao sabor de sonhos, enquanto escutava o longo e suave canto em que se entrecruzavam sortilégios e feitos de heróis que lutaram contra os poderes da treva e venceram, ou foram derrotados, em ilhas distantes, muito tempo atrás.

— Pronto — disse Óguion, entregando-lhe o bordão acabado. — O Arquimago deu-te madeira de teixo, uma boa escolha, e eu ative-me a ela. Trouxe a haste a pensar em fazer um arco, mas assim é melhor. Boa noite, meu filho.

E enquanto Gued, que não encontrara palavras para lhe agradecer, se encaminhava para a sua alcova, Óguion ficou a observá-lo e, demasiado baixo para que Gued o pudesse ouvir, murmurou:

— Voa bem, ó meu jovem falcão!

No frio do amanhecer, quando Óguion acordou, Gued partira. Mas deixara, à maneira dos feiticeiros, uma mensagem em runas prateadas, riscadas na pedra do lar, mensagem que se desvaneceu ao ser lida e que dizia: «Mestre, vou à caça.»

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