2. A SOMBRA

Gued pensara que, como aprendiz de um grande mago, teria de imediato acesso ao mistério e domínio do poder. Iria compreender a linguagem dos animais e o discurso das folhas da floresta, pensava, e mandar nos ventos com a sua palavra e aprender a tomar qualquer forma que quisesse. Talvez o seu mestre e ele corressem juntos como veados, ou voassem até Re Albi, por sobre a montanha, na asas das águias.

Mas não foi de modo algum assim. Foram vagueando, primeiro descendo o vale e depois, gradualmente, inflectindo para sul e ocidente, ao redor da montanha, recebendo alojamento em pequenas aldeias ou passando a noite ao relento, nos campos incultos, como pobres bruxos trabalhando à jorna, ou latoeiros, ou mendigos. Não penetraram em qualquer misterioso domínio. Nada acontecia. O bordão de carvalho do mago, que Gued começara por olhar com um temor ávido, não passava afinal de um apoio resistente para a caminhada. Passaram-se três dias e passaram-se quatro e Óguion ainda não formulara uma única encantamento aos ouvidos de Gued, nem lhe ensinara um só nome, ou runa, ou esconjuro.

Embora extremamente calado, era tão brando e calmo que Gued em breve deixou de o temer e, passados mais um ou dois dias, sentiu-se suficientemente arrojado para perguntar:

— Senhor, o meu aprendizado quando começa?

— Já começou — retorquiu Óguion.

Fez-se um silêncio, como se Gued estivesse a conter palavras que precisava de pronunciar. E por fim disse-as:

— Mas se até agora ainda não aprendi nada!

— Porque ainda não descobriste o que te estou a ensinar — replicou o mago, prosseguindo, nas passadas regulares das suas longas pernas, pela estrada que constituía a passagem elevada entre Ovark e Uíss. Era um homem de pele escura, como quase todos os gontianos, de um castanho brônzeo, de cabelo grisalho, magro e rijo como um galgo, incansável. Raramente falava, pouco comia, dormia ainda menos. A sua vista e ouvido eram muito apurados e no seu rosto surgia com freqüência uma expressão de quem escuta atentamente.

Gued não teve resposta para lhe dar. Nem sempre é fácil responder a um feiticeiro.

— Tu queres lançar feitiços — prosseguiu finalmente Óguion, sempre caminhando. — Já tiraste demasiada água desse poço. Espera. Chegar a homem adulto requer paciência. Chegar a mestre requer nove vezes mais paciência. Que erva é aquela, à beira do caminho?

— Centáurea-azul.

— E aquela?

— Não sei.

— Quadrifólio é o nome que lhe dão.

Óguion estacara, com a ponteira de cobre do seu bastão junto à pequena erva, de modo que Gued olhou a planta de perto, arrancou-lhe uma vagem seca e, por fim, já que Óguion se remetera ao silêncio, perguntou:

— E que utilidade tem, Mestre?

— Que eu saiba, nenhuma.

Enquanto seguiam caminho, Gued guardou a vagem durante um bocado, mas acabou por deitá-la fora.

— Quando conheceres o quadrifólio em todas as suas estações, a sua raiz, folha e flores, pela vista, pelo aroma e pela semente, então poderás aprender o seu nome-verdadeiro, conhecendo o seu ser. E esse é bem mais que a sua utilidade. Ao fim e ao cabo, que utilidade tens tu? Ou eu? A Montanha de Gont é útil, ou o Alto-Mar?

Óguion continuou a caminhar durante cerca de um quilômetro e lá acabou por voltar a falar.

— Para ouvir, temos de estar em silêncio.

O rapaz franziu a testa. Não lhe agradava que o fizessem sentir-se idiota. Mas dominou o seu ressentimento, a sua impaciência, e tentou ser obediente na esperança de que Óguion consentisse enfim em lhe ensinar alguma coisa. Porque ele estava sedento de aprender, de alcançar poder. Porém, começou a afigurar-se-lhe que teria aprendido mais se acompanhasse algum herbanário ou bruxo de aldeia e, enquanto davam a volta à montanha pelo oeste e em direção às solitárias florestas para lá de Uíss, ia perguntando cada vez mais freqüentemente a si próprio qual seria a grandeza e a magia daquele grande Mago Óguion. Porque nem mesmo quando choveu Óguion se decidiu a dizer o esconjuro, bem conhecido por todos os fazedores de tempo, para desviar a tempestade. Numa terra onde os feiticeiros são em chusma, como Gont ou as Enlades, podemos ver uma nuvem de chuva a vaguear lentamente de um lado para o outro e de aldeia em aldeia, à medida que cada esconjuro a faz desviar para o seguinte, até que por fim é impelida para o largo, sobre o mar, onde pode chover em paz. Mas Óguion deixou que a chuva caísse onde muito bem lhe parecia. Procurou um abeto bem desenvolvido e deitou-se debaixo. Quanto a Gued, agachou-se entre os arbustos que escorriam água, molhado e macambúzio, pensando o que haveria de bom em ter poder se se era demasiado assisado para o usar e desejando ter ido antes para aprendiz do velho fazedor de tempo do vale, com quem ao menos teria dormido seco. Mas não exprimiu em voz alta nenhum dos seus pensamentos. Aliás, não pronunciou nem uma palavra. O seu mestre sorriu e adormeceu ao som da chuva.

Mais próximo já do Regresso-do-Sol, quando os primeiros grandes nevões começavam a cair no cumes de Gont, chegaram a Re Albi, a terra de Óguion. E uma povoação na orla dos cumes rochosos de Overfell e o seu nome significa Ninho de Falcão. Dali avista-se, muito abaixo, o abrigo profundo e as torres do Porto de Gont, os barcos que entram e saem da baía entre os Braços da Falésia e, mais longe ainda, para ocidente, além do mar, era possível distinguir os montes azulados de Oranéa, a mais oriental das Ilhas Interiores.

A casa do mago, embora grande e totalmente construída em madeira, com lareira e chaminé em vez do buraco no chão para o fogo, era idêntica às cabanas da aldeia de Dez Amieiros, com uma única divisão e um curral de cabras encostado a um dos lados. Na parede oeste da divisão havia uma espécie de alcova onde dormia Gued. Sobre a sua enxerga abria-se uma janela que dava para o mar, mas, na maior parte do tempo, as portadas tinham de ficar fechadas por causa dos fortes ventos que sopravam durante todo o Inverno de ocidente e de norte. Foi na penumbra quente dessa casa que Gued passou o Inverno, ouvindo as arremetidas da chuva e do vento ou o silêncio dos nevões, aprendendo a escrever e a ler as Seis Centenas de Runas de Hardic. E bem contente ficou de adquirir esse conhecimento porque, sem ele, não é o mero aprender de cor de encantamentos e esconjuros que pode dar acesso à verdadeira mestria. A língua Hardic do arquipélago, se bem que não haja nela mais poder mágico que em qualquer outra língua humana, tem as suas raízes na Antiga Fala, essa linguagem em que as coisas são chamadas pelos seus nomes-verdadeiros. E a via para a compreensão dessa língua inicia-se com as Runas, que foram escritas quando as ilhas do mundo pela primeira vez se ergueram do mar.

Mas ainda não houvera nem sinais de maravilhas ou encantamentos. Todo o Inverno nada mais ocorreu para além do voltar das pesadas páginas do Livro das Runas, e da chuva e da neve caindo. Óguion regressava do seu vaguear pelas florestas gélidas, ou de olhar pelas cabras, batia com os pés no chão para sacudir a neve das botas e sentava-se, em silêncio, junto ao fogo. E o longo, o atento silêncio do mago enchia toda a casa, enchia a mente de Gued, até que por vezes parecia ao rapaz que se esquecera de qual era o som das palavras. E quando Óguion finalmente falava, era como se, precisamente nesse instante e pela primeira vez, tivesse inventado a fala. E, no entanto, as palavras que pronunciava não diziam respeito a assuntos de vulto, tendo apenas a ver com coisas mais simples, com o pão e a água, com o tempo e o sono.

Quando, rápida e luminosa, a Primavera chegou, Óguion passou a enviar freqüentemente Gued aos prados acima de Re Albi, a colher ervas. Disse-lhe que demorasse o tempo que lhe apetecesse a tratar da tarefa, dando-lhe assim liberdade para passar todo o dia a caminhar sem destino junto aos rios cheios com a água das chuvas e através dos bosques e pelos campos verdes e úmidos, ao sol. Era sempre com profundo prazer que Gued saía e se deixava ficar por fora até ser noite, mas nunca se esquecia totalmente das ervas. Mantinha-se atento a elas, ao mesmo tempo que trepava, vagueava, passava rios a vau e explorava, trazendo sempre algumas para casa. Certa vez, chegou a um prado entre dois rios onde a flor a que chamam halos-brancos crescia em profusão e, sendo essas flores raras e tidas em alto valor pelos curandeiros, voltou ali no dia seguinte. Alguém lá chegara antes dele, uma rapariga que conhecia de vista, filha do velho Senhor de Re Albi. Por ele não lhe teria falado, mas a rapariga acercou-se e cumprimentou-o com modos agradáveis.

— Conheço-te — disse. — És o Gavião, o discípulo do nosso mago. Quem dera que me falasses de feitiçaria.

O rapaz olhou para as flores que lhe roçavam a saia branca e, a princípio, acanhado e sorumbático, mal lhe respondeu. Porém, ela continuou a falar de um modo aberto, descuidado e veemente que, pouco a pouco, o pôs à vontade. A rapariga era alta, praticamente da idade dele e muito pálida, quase branca. Dizia-se na aldeia que a mãe era de Osskil ou qualquer outra região longínqua. O longo cabelo caía a direito, como uma cascata de água negra. Gued achou-a muito feia, mas sentia o desejo de lhe agradar, de lhe conquistar a admiração, desejo que ia crescendo enquanto falavam. A rapariga levou-o a contar toda a história dos truques com o nevoeiro que tinham derrotado os guerreiros karguianos, ouvindo-o como se o achasse maravilhoso e admirável, mas não teve uma palavra de louvor. E em breve encaminhava a conversa noutro sentido.

— Consegues fazer os animais e as aves vir junto de ti? — perguntou.

— Consigo — respondeu Gued.

Sabia que havia um ninho de falcão nas escarpas acima do prado e invocou a ave, chamando-a pelo seu nome-verdadeiro. O falcão veio mas não lhe pousou no pulso, sem dúvida afugentado pela presença da rapariga. Gritou, bateu o ar com as suas largas asas estriadas e subiu no vento.

— Como chamas a esse tipo de encantamento, essa que fez vir o falcão?

— Um esconjuro de Invocação.

— E também és capaz de invocar os espíritos dos mortos? Pensou que ela estivesse a troçar dele ao fazer aquela pergunta porque o falcão não obedecera totalmente ao seu chamado.

— Seria, se escolhesse fazê-lo — disse em tom calmo.

— Mas não é muito difícil, muito perigoso, invocar um espírito?

— Difícil, sim. Mas perigoso? — Gued encolheu os ombros. Desta vez estava quase certo de que havia admiração nos olhos dela.

— Sabes fazer um sortilégio de amor?

— Isso não é mestria.

— Dizes bem — comentou ela —, qualquer bruxa de aldeia o pode fazer. E podes fazer encantamentos de mudança? Consegues mudar a tua própria forma, como dizem que os feiticeiros fazem?

Uma vez mais, Gued não estava muito seguro de que ela não tivesse feito a pergunta por troça, de modo que, de novo, replicou:

— Conseguia, se escolhesse fazê-lo.

Ela pôs-se então a pedir-lhe que se transformasse em qualquer coisa que lhe apetecesse: um falcão, um touro, um fogo, uma árvore. Desencorajou-a usando frases curtas e reservadas, como o seu mestre costumava fazer, mas não foi capaz de se recusar abertamente quando ela começou a adulá-lo. Além disso, nem sabia se ele próprio acreditava ou não na sua bazófia. Deixou-a com o pretexto de que o seu mestre, o mago, o esperava em casa e, no dia seguinte, não voltou ao prado. Mas no outro dia foi lá, dizendo para consigo que tinha de colher mais daquelas flores, enquanto estavam abertas. A rapariga estava ali e, juntos, passearam de pés descalços pela terra encharcada do prado, colhendo as pesadas flores brancas. Brilhava o sol da Primavera e ela falava-lhe tão alegremente como qualquer pastorita de cabras da sua própria aldeia. Depois, voltou a fazer-lhe perguntas sobre feitiçaria, ouvindo tudo o que ele dizia com olhos abertos de espanto, o que o levou uma vez mais a gabar-se. E então ela pediu-lhe que fizesse um encantamento de Mudança e, quando ele se negou, olhou para ele, desviando do rosto o longo cabelo negro, e disse:

— Tens medo de o fazer?

— Não, não tenho medo.

Ela sorriu algo desdenhosamente e continuou:

— Talvez ainda sejas muito novo.

Isso é que ele não ia permitir. Não falou muito, mas intimamente decidiu que lhe mostraria o seu valor. Disse à rapariga que voltasse ao prado no dia seguinte, se quisesse, e regressou a casa enquanto o mestre andava ainda por fora. Foi direito à prateleira e tirou os dois Livros do Saber, que Óguion nunca abrira ainda na sua presença.

Procurou um encantamento de Automudança, mas, lento como ainda era a ler as runas e pouco entendendo do que lia, não conseguiu encontrar o que pretendia. Aqueles eram uns livros muito antigos. Óguion recebera-os do seu próprio mestre, Heleth, o Longividente, e Heleth do seu mestre, o Mago de Perregal, e sempre assim até aos tempos do mito. A escrita era pequena e estranha, com palavras traçadas por cima ou entre as linhas em muitas letras diferentes, e as mãos que as haviam escrito eram já pó. No entanto, aqui e além, Gued foi conseguindo compreender um pouco do que tentava ler e, sempre com as perguntas e a troça da rapariga a ocuparem-lhe o espírito, parou numa página onde constava um encantamento para invocar os espíritos dos mortos.

Ao lê-la, decifrando, um a um, runas e símbolos, foi tomado de horror. Os seus olhos fixaram-se involuntariamente nas folhas e não conseguiu levantá-los enquanto não acabou de ler o esconjuro inteiro.

Depois, ao levantar a cabeça, viu que fazia escuro na casa. Tinha estado a ler sem a mínima luz, na escuridão. Agora, ao baixar os olhos para o livro, já não conseguia distinguir as runas. Mas, mesmo assim, o horror voltou a crescer dentro dele, parecendo que o deixava preso à cadeira. Sentia-se frio. Olhando por cima do ombro, viu qualquer coisa que se agachava junto à porta fechada, um coágulo informe de sombra, mais escuro que a escuridão. Parecia querer alcançá-lo e segredar e chamá-lo num sussurro, mas não conseguia entender as palavras.

A porta foi aberta de par em par. Um homem entrou e uma luz branca flamejava ao seu redor. Era uma figura luminosa que, de súbito, fez ouvir a sua voz, alta e feroz. E a escuridão e o segredar cessaram e foram dissipados.

O horror abandonou então Gued, mas permanecia mortalmente temeroso, porque era Óguion, o Mago, que ali estava na entrada, com aquela luminosidade ao seu redor, o bordão de carvalho ardendo na sua mão com branco esplendor.

Sem uma palavra, o mago passou por Gued, foi acender a lâmpada e arrumou os livros na prateleira. Depois voltou-se para o rapaz e disse:

— Nunca farás aquele esconjuro, a não ser em perigo do teu poder ou da tua vida. Foi por ele que abriste os livros?

— Não, Mestre — murmurou o rapaz. E, envergonhadamente, contou a Óguion o que quisera procurar e porquê.

— Não te lembraste do que te disse? Que a mãe dessa rapariga, a mulher do Senhor, é uma tecedora de encantamentos?

Na realidade, Óguion dissera-lho certa vez, mas Gued pouca atenção lhe prestara, embora soubesse agora que Óguion nunca lhe dizia nada sem ter uma boa razão para o fazer.

— A própria filha já é meia feiticeira. Pode bem ter sido a mãe quem mandou a rapariga falar contigo. Pode ter sido ela a abrir o livro na página que leste. Os poderes que ela serve não são aqueles que eu sirvo. Não sei o que ela quer, mas sei que não quer o meu bem. Gued, ouve-me agora com atenção. Nunca pensaste que o perigo rodeia forçosamente o poder, tal como a sombra rodeia a luz? A feitiçaria não é um jogo a que nos entreguemos pelo prazer ou pelos louvores. Pensa nisto. Cada palavra e cada ato da nossa Arte é dita e é feito ou para o bem ou para o mal. Antes de falares ou agires, tens de saber qual o preço a pagar!

Impelido pela vergonha que sentia, Gued bradou:

— Mas como hei de eu saber essas coisas se não me ensinas nada? Desde que estou contigo, nunca fiz nada, nunca vi nada…

— Mas agora já viste alguma coisa — interrompeu o mago. — Junto à porta, no escuro, quando eu entrei.

Gued ficou calado.

Óguion ajoelhou-se junto à lareira, preparou a lenha e acendeu-a, porque a casa estava fria. Depois, ainda ajoelhado, disse no seu brando tom de voz:

— Gued, meu jovem falcão, nada te prende a mim ou ao meu serviço. Não foste tu que vieste ao meu encontro, mas eu ao teu. És muito jovem ainda para fazer essa escolha, mas não posso fazê-la por ti. Se assim quiseres, posso mandar-te para a Ilha de Roke, onde se ensinam todas as artes maiores. Qualquer uma a que te queiras dedicar, aprendê-la-ás, pois o teu poder é grande. Maior até, espero eu, que o teu orgulho. Gostaria de manter-te aqui comigo, porque o que eu tenho é o que te falta, mas não o farei contra tua vontade. Agora, escolhe entre Re Albi e Roke.

Gued ficou mudo, o coração em tumulto. Acabara por ter amor àquele homem, Óguion, que com um toque da sua mão o curara e em quem não havia ira. Amava-o e não o soubera até àquele momento. Olhou o bordão encostado ao canto da chaminé, recordando o esplendor que libertara e como consumira o mal que viera das trevas. Ansiava por permanecer com Óguion e com ele vaguear através das florestas, por muito tempo e até muito longe, aprendendo a manter o silêncio. Mas havia nele outras ânsias que não podiam ser apaziguadas, o desejo de glória, o desejo de agir. Óguion parecia-lhe uma longa estrada até ao domínio da mestria, um lento caminho secundário por onde seguir, quando ele podia navegar levado pelos ventos marinhos até ao Mar Interior, à ilha dos Sages, onde o próprio ar vibrava de encantamentos e o Arquimago caminhava entre maravilhas.

— Mestre — disse —, irei para Roke.

E assim, poucos dias mais tarde, numa soalheira manhã de Primavera, Óguion percorreu a seu lado a íngreme estrada desde Overfell e ao longo de vinte quilômetros até ao Grande Porto de Gont. Ali, às portas da povoação e entre dragões esculpidos, os guardas da Cidade de Gont, ao verem o mago, ajoelharam apresentando-lhe as espadas nuas e dando-lhe as boas-vindas. Conheciam-no e faziam-lhe honras não só por ordem do Príncipe, mas também por sua própria vontade, pois dez anos antes Óguion salvara a cidade do tremor de terra que teria sacudido e lançado por terra as torres dos ricos e fechado o canal entre os Braços da Falésia com uma terrível avalanche. O mago falara à Montanha de Gont, acalmando-a, e sossegara os (Tementes precipícios de Overfell como quem aquieta um animal assustado. Gued ouvira algo sobre isso e agora, maravilhando-se ao ver aqueles guardas armados ajoelhando perante o seu brando mestre, recordou essa história. Relanceou os olhos, quase com medo, para aquele homem que fizera parar um terremoto. Mas o rosto de Óguion estava tão calmo como sempre.

Desceram depois até às docas, onde o Mestre do Porto se apressou a vir acolher Óguion e inquirir qual o serviço que poderia prestar-lhe. O mago disse-lho logo e ele nomeou um navio com destino ao Mar Interior, a bordo do qual Gued poderia seguir como passageiro.

— Ou poderão acolhê-lo como propiciador de vento — acrescentou —, se possuir a arte. Não têm fazedor de tempo a bordo.

— Ele tem algum domínio sobre brumas e nevoeiros, mas nenhum sobre ventos marinhos — informou o mago, pousando ligeiramente a mão no ombro de Gued. — Não tentes quaisquer truques com o mar e os ventos do mar, Gavião. Ainda és um homem de terra. Mestre do Porto, qual é o nome do navio?

Sombra, vindo das Andrades e com destino à Cidade de Hort com peles e marfim. É um bom navio, Mestre Óguion.

O rosto do mago toldou-se ao ouvir o nome da embarcação, mas disse:

— Pois seja. Dá esta mensagem ao guardião da escola em Roke, Gavião. Bons ventos te levem. Até um dia!

E não houve mais despedidas. O mago voltou costas e meteu rua acima, em largas passadas, afastando-se das docas. Gued, vendo o mestre afastar-se, sentiu-se desamparado.

— Vem daí, rapaz — disse o Mestre do Porto, e levou-o pela margem até ao pontão onde o Sombra se aprestava para partir.

Poderá parecer estranho que, numa ilha com uma largura de oitenta quilômetros, numa aldeia no sopé de penhascos que desde sempre olham o mar, uma criança possa crescer e fazer-se homem sem nunca ter posto o pé num barco nem molhado os dedos na água salgada, mas é assim. Lavrador, pastor de cabras, ou de vacas, caçador ou artífice, o homem de terra encara o mar como um domínio instável e salgado que não tem absolutamente nada a ver consigo. A aldeia a dois dias de caminho da sua própria aldeia é terra estrangeira, a ilha a um dia de navegação da sua ilha apenas um boato, colinas de neblina que se avistam para lá do mar e não um chão sólido como aquele sobre o qual caminha.

Assim, para Gued, que nunca descera das altas montanhas, o Porto de Gont era um lugar de admiração e maravilha, com as grandes casas e torres de pedra talhada, a margem de pontões e cais e bacias e cabeços de amarração, o grande porto de mar onde meia centena de veleiros e galés balançavam junto ao paredão ou jaziam retirados da água e virados para reparações ou permaneciam ancorados na angra de velas colhidas e as escotilhas dos remos fechadas, os marinheiros gritando em estranhos dialetos e os estivadores correndo com as suas cargas por entre barris, caixotes, rolos de corda e pilhas de remos, os mercadores, barbudos e de vestes guarnecidas de pele, conversando calmamente enquanto prosseguiam caminho ao longo das pedras limosas acima da água, os pescadores descarregando a sua pescaria, os tanoeiros martelando, os calafates pregando, os vendedores de moluscos cantando e os patrões de bordo berrando e, para lá de tudo isto, a baía, silenciosa, brilhante. De olhos, ouvidos e espírito desorientados, Gued seguiu o Mestre do Porto até ao largo pontão onde o Sombra estava amarrado, e o Mestre do Porto levou-o ao mestre do navio.

Sem desperdício de palavras, o mestre concordou em aceitar Gued como passageiro até Roke, dado que fora um mago a pedi-lo, e o Mestre do Porto deixou o rapaz com ele. O mestre do Sombra era um homem grande e gordo, envergando um capote vermelho debruado com pele de pelaui como costumam usar os mercadores das Andrades. Nem sequer olhou para Gued, mas perguntou em voz tonitruante:

— Sabes mudar o tempo, rapaz?

— Sei.

— E trazer o vento?

A isto teve de responder que não, pelo que o mestre lhe disse para procurar um sítio onde não incomodasse ninguém e ficar lá.

Os remadores entravam já a bordo, pois a nave tinha de se deslocar para a angra antes do cair da noite e fazer-se ao mar com a maré vazante, perto da alvorada. Não havia lugar algum no tombadilho onde não se incomodasse ninguém, mas Gued lá trepou conforme pôde para cima da carga enfardada, firmemente amarrada e coberta de couros curtidos à popa do veleiro e, ali seguro, observou tudo o que se passava. Os remadores foram saltando para bordo, homens robustos e de longos braços, enquanto os estivadores faziam rolar barricas de água com grande estrondo do pontão para o barco, arrumando-as debaixo dos bancos dos remadores. O navio, bem construído, deslocava-se com a amurada baixa por causa da carga, mas mesmo assim dançando um pouco na rebentação, pronto a partir. Então o homem do leme ocupou o seu lugar à direita do mastro da popa, olhando em frente para o mestre, que se mantinha sobre um estrado inserido na junção entre a quilha e o talha-mar, trabalhado com as formas da Velha Serpente de Andrad. O mestre rugiu as suas ordens em voz retumbante e o Sombra foi desamarrado e rebocado para lá das docas por dois laboriosos barcos a remos. Então o rugido do mestre soou — «Abrir escotilhas!» — e os grandes remos saíram ruidosamente, quinze de cada lado. Os remadores inclinaram os dorsos poderosos enquanto, acima deles e junto ao mestre, um rapaz batia o ritmo num tambor.

Com a facilidade de uma gaivota que tivesse os remos por asas, o navio tomou enfim velocidade e, subitamente, o ruído e o burburinho da cidade ficaram para trás. Saíram para o silêncio das águas da baía e acima deles erguia-se o pico branco da Montanha, que parecia suspenso sobre o mar. Numa enseada de águas pouco profundas, a sotavento do Braço da Falésia sul, largaram âncora e ali passaram a noite.

Dos setenta homens que formavam a equipagem do navio alguns eram, como Gued, ainda jovens em anos, embora todos tivessem feito a passagem à idade adulta. Esses rapazes chamaram-no para junto deles para compartilhar da comida e bebida, e mostraram-se amigáveis, ainda que fossem gente grosseira, dada a gracejos e zombarias. Como seria de esperar, chamaram-lhe cabreiro por ser gontiano, mas não foram mais longe do que isso. Gued era tão alto e forte como os de quinze anos, e pronto a dar resposta condigna tanto a uma boa palavra como a uma troça, pelo que foi bem acolhido e, logo nessa primeira noite, começou a viver como um deles e a aprender o trabalho que faziam. Isso agradou aos oficiais do navio, porque não tinham lugar a bordo para passageiros desocupados.

Pouco espaço havia para a tripulação e nenhum conforto naquela galera sem convés, apinhada de homens, aprestos e carga. Mas o que era o conforto para Gued? Nessa noite, deitou-se entre couros atados em rolos vindos das ilhas setentrionais, observando as estrelas da Primavera acima das águas do porto de abrigo e as luzinhas amareladas da cidade para o lado da popa, e adormeceu e voltou a acordar cheio de uma funda impressão de prazer. Antes do nascer do Sol, a maré virou. Levantaram ferro e singraram suavemente, à força de remos, em direção ao mar alto, entre os Braços da Falésia. E quando o Sol nascente avermelhou a montanha de Gont, por trás deles, ergueram a vela maior e seguiram velozes para sudoeste, sulcando o Mar de Gont.

Entre Barnisk e Torheven tiveram vento fraco e, no segundo dia, chegaram à vista de Havnor, a Ilha Grande, coração e lar do Arquipélago. Durante três dias permaneceram à vista das verdes colinas de Havnor, enquanto bordejavam a costa leste, mas não foram a terra. E muitos anos decorreram antes que Gued pusesse o pé naquela terra ou visse as alvas torres do Grande Porto de Havnor, no centro do mundo.

Fundearam durante uma noite em Foz-do-Kember, o porto mais a norte da Ilha de Way, e na seguinte, numa pequena cidade à entrada da Baía de Felkway, passando no dia seguinte o cabo norte de O e entrando nos Estreitos de Ebavnor. Ali, baixaram a vela e prosseguiram à força de remos, sempre com terra de ambos os lados, sempre ao alcance de voz de outros navios, grandes e pequenos, mercadores e comerciantes, alguns regressando das Extremas Exteriores com carregamentos estranhos e após uma viagem de anos, outros saltitando como pardais, de ilha em ilha, no Mar Interior. Voltando para sul ao sair dos Estreitos cheios de tráfego, deixaram para trás Havnor e navegaram entre as duas belas ilhas de Ark e Ilien, salpicadas com as torres e os terraços de muitas cidades, e, logo, através da chuva e do vento que se tornava mais forte, iniciaram a travessia do Mar Interior, em direção à Ilha de Roke.

Durante a noite, quando o vento se tornou muito forte, soprando em rajadas, baixaram vela e mastro e, no dia seguinte, durante todo o dia, remaram. O longo navio mantinha-se firme nas ondas e prosseguia valorosamente, mas o timoneiro, ao comprido remo que servia de leme, à popa, perscrutava a chuva que fustigava o mar e nada mais via para além da chuva. Navegaram para sudoeste, guiando-se pela bússola, e sabiam para onde iam mas não através de que águas. Gued ouviu os homens falar dos baixios a norte de Roke e das Rochas Borilosas para leste. Outros contestavam que deviam estar já muito fora da rota, nas águas sem ilhas a sul de Kamery. E sempre o vento a tornar-se mais forte, desfazendo em farrapos de espuma esvoaçante os cumes das grandes vagas, e eles sempre remando para sudoeste, com o vento por trás. Os turnos aos remos foram encurtados porque a tarefa se tornara demasiado árdua. Os mais novos eram colocados a dois por remo e Gued fez os seus turnos com os outros, tal como fizera desde que haviam deixado Gont. Quando não estavam a remar, escoavam a água do barco, pois o mar rebentava violentamente contra o navio. E assim se afadigaram entre as ondas que corriam como montanhas fumegantes sob o vento, enquanto a chuva fria e forte lhes açoitava as costas e o tambor ressoava por entre o ruído da tempestade, como o bater de um coração.

A certa altura, veio um homem tomar o lugar de Gued ao remo, dizendo-lhe que fosse ter com o mestre do navio, à proa.

A chuva escorria da bainha do capote do mestre, mas ele permanecia firme e rotundo como um barril de vinho no seu estrado e, olhando para baixo, para Gued, perguntou:

— És capaz de amainar este vento, rapaz?

— Não, senhor.

— Tens algum poder sobre o ferro?

E com isto pretendia ele saber se Gued era capaz de obrigar a agulha magnética a apontar, não o Norte, mas aquilo que a necessidade exigia, a rota para Roke. Mas esse talento é um segredo dos Mestres do Mar e, uma vez mais, Gued teve de responder que não.

— Bem, então — bramiu o mestre através do vento e da chuva — tens de arranjar algum navio que te leve da cidade de Hort de regresso a Roke. Roke deve estar agora para ocidente de nós e só usando feitiçaria poderíamos lá chegar com um mar assim. Temos de continuar a navegar para sul.

Aquilo não agradou a Gued, pois ouvira os marinheiros falar da cidade de Hort como sendo um lugar sem lei, cheio de um tráfego maléfico, onde os homens eram muitas vezes feitos prisioneiros e vendidos como escravos na Estrema Sul. Regressando à sua tarefa ao remo, lá se foi esforçando juntamente com o seu companheiro, um vigoroso rapaz andradiano, vendo a lanterna suspensa na popa balouçar e tremeluzir ao vento que a agitava, uma réstia atormentada de luz no negrume chicoteado pela chuva. Foi olhando para ocidente tanto quanto pôde sob o pesado ritmo de empurrar e puxar o remo. E quando o navio se ergueu numa onda mais alta, viu por um momento, sobre a água escura e fumegante, uma luz entre nuvens, como que um último raio do Sol poente. Mas aquela era uma luz clara, não avermelhada.

O companheiro ao remo não a vira, mas Gued bradou o aviso. O timoneiro ficou atento, procurando avistar a luz em cada vaga mais alterosa, e viu-a tal como Gued a viu de novo, porém bradou-lhe que era apenas o pôr do Sol. Então Gued gritou a um dos rapazes que escoavam água que o substituísse ao remo por um minuto e voltou a percorrer o caminho até à proa, ao longo da atravancada coxia entre os bancos e, agarrando-se à proa trabalhada para não ser lançado borda fora, gritou para o mestre:

— Senhor! Aquela luz para ocidente é a Ilha de Roke!

— Não vi luz nenhuma — bradou o mestre, mas nesse preciso instante Gued estendeu o braço, apontando, e todos viram o brilho claro da luz a ocidente, para além da agitação da espuma e do tumulto do mar.

Não por atenção para com o seu passageiro, mas para salvar o navio dos perigos da tempestade, o mestre gritou imediatamente ao timoneiro que se dirigisse para oeste, na direção da luz. Mas, a Gued, disse:

— Rapaz, tu falas como um Mestre do Mar, mas só te digo que se nos conduzes mal num tempo como este, deito-te à água e deixo-te ir a nado até Roke!

Agora, em vez de irem impelidos pela tempestade, eram forçados a remar perpendicularmente à direção do vento, e isso era difícil. As ondas, chocando de través contra o navio, constantemente o empurravam para sul do seu novo curso, enchiam-no de água tornando o trabalho de a escoar incessante, faziam-no gingar, e os remadores eram obrigados a redobrar de atenção, não fosse o gingar do navio erguer os remos fora de água quando os puxavam, fazendo-os cair entre os bancos. A escuridão era quase completa sob as nuvens de tempestade, mas de quando em vez lá conseguiam avistar a luz a ocidente, o bastante para poderem orientar a rota, animando-os a prosseguir no esforço. Por fim, o vento amainou um pouco e a luz aumentou em frente deles. Continuando a remar, foi como se atravessassem uma cortina, entre uma remada e outra, saindo da tempestade para um ar límpido, onde a luz que restava do crepúsculo iluminava céu e mar. Por sobre as ondas coroadas de espuma viram, não muito longe, um monte verde, alto e arredondado, e no seu sopé uma cidade erigida numa pequena baía onde havia barcos, todos pacificamente ancorados.

O timoneiro, apoiando-se no seu longo leme, virou a cabeça e bradou:

— Mestre! Isto é terra verdadeira ou alguma feitiçaria?

Mas o mestre de bordo limitou-se a rugir:

— Mantém a rota, seu cabeça de abóbora! Remem, seus filhos de escravos! Ali é a baía de Thwil e o Cabeço de Roke, como qualquer idiota pode ver! Remem!

Assim, ao ritmo do tambor, exaustos, entraram remando na baía. Ali, a calma era tal que conseguiam ouvir as vozes das pessoas lá em cima na cidade, um sino a tocar e, muito ao longe, o silvo e o rugido da tempestade. Para norte, leste e sul, a quilômetro e meio em toda a volta da ilha, pairavam nuvens negras. Mas sobre Roke as estrelas surgiam uma a uma num céu límpido e calmo.

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