6. PERSEGUIDO

Logo que Pendor se afundou abaixo da linha do horizonte atrás de si, Gued, rumando para leste, sentiu de novo o medo da sombra a entrar-lhe no coração. E era difícil passar do perigo nítido do dragão para aquele horror sem forma e sem esperança. Deixou que o vento mágico parasse de soprar e passou a navegar com o vento do mundo, pois não havia agora nele qualquer desejo de celeridade. Não tinha qualquer plano, nem sequer para o que deveria fazer. Tinha de fugir, como o dragão dissera. Mas para onde? Para Roke, pensou, dado que ao menos ali estaria protegido e poderia obter conselhos entre os Sages.

Contudo, primeiro tinha de ir uma vez mais a Baixo Torning, para fazer o seu relato aos Ilhéus.

Quando se soube que ele regressara, cinco dias depois de partir, os Ilhéus e metade das gentes da administração vieram, remando e correndo, para se reunirem ao seu redor, olhando-o e escutando-o. Contou a sua história e um dos homens disse:

— Mas quem viu essa maravilha de dragões mortos e dragões enganados? Então e se ele…

— Cala-te! — ordenou o Chefe dos Ilhéus, pois sabia, tal como a maioria de entre eles, que um feiticeiro pode ter maneiras subtis de dizer a verdade, pode mesmo guardar a verdade para si próprio, mas se diz alguma coisa, a coisa é como ele diz. Porque essa é a condição da sua mestria. E assim maravilharam-se e começaram a sentir que o medo se retirava deles, e logo começaram a regozijar-se. Comprimiram-se ao redor do seu jovem feiticeiro e pediram que voltasse a contar tudo o que se passara. Vieram mais ilhéus e pediram o mesmo. Ao cair da noite, já não era preciso que fosse ele a contar. Os ilhéus podiam fazê-lo por ele, e melhor. Já os chantres da aldeia tinham adaptado a narrativa a uma antiga melodia e começado a cantar a Canção do Gavião. Havia fogueiras acesas não apenas em Baixo Torning, mas também nas administrações para sul e leste. Os pescadores gritavam as novas de embarcação para embarcação, de ilha em ilha as novas iam correndo: «O mal foi evitado, os dragões nunca virão de Pendor!»

Essa noite, essa única noite, foi alegre para Gued. Não havia sombra que se pudesse aproximar dele através do brilho de todas aquelas fogueiras de agradecimento, ardendo em cada cume e em cada praia, ou através dos círculos de risonhos dançarmos que o cercavam, cantando em seu louvor, agitando os seus archotes no vento da noite outonal, fazendo cora que as fagulhas subissem, múltiplas, brilhantes e breves, levadas pela aragem.

No dia seguinte encontrou Petchvarri que lhe disse:

— Não te sabia tão poderoso, meu Senhor!

Havia temor nas suas palavras, porque se atrevera a encarar Gued como amigo, mas nelas havia também uma censura. Gued não salvara uma criancinha, embora fosse capaz de matar dragões. Depois disso, Gued voltou a sentir o mesmo mal-estar e a mesma impaciência que o haviam impelido para Pendor e o impeliam agora a abandonar Baixo Torning. No dia seguinte, se bem que todos o tivessem querido manter ali até ao fim da sua vida, para o louvarem e se gabarem dele, abandonou a casa na colina, sem mais bagagem que os seus livros, o bordão e o otaque aninhado sobre o ombro.

Partiu num barco a remos com um par de jovens pescadores de Baixo Torning, que pretendiam a honra de serem seus barqueiros. E sempre, enquanto remavam por entre a flotilha que pejava os canais orientais das Noventa Ilhas, sob as janelas e varandas de casas que se inclinam por sobre a água, para lá dos desembarcadouros de Nesh, das pastagens fustigadas pela chuva de Dromgan, dos pestilentos armazéns de óleo de Gueath, novas do seu feito tinham chegado antes dele. Ao vê-lo passar, assobiavam a Canção do Gavião, rivalizavam entre si para o receber durante a noite e o ouvirem contar o seu conto do dragão. Quando finalmente atingiu Serd, o mestre do navio a quem ele pediu passagem até Roke respondeu com uma vênia:

— Será um privilégio para mim, Senhor Feiticeiro, e uma honra para o meu navio!

E assim foi que Gued voltou costas às Noventa Ilhas. Mas, logo que o navio abandonou o Porto Interior de Serd e içou as velas, ergueu-se contra ele um violento vento de leste. Era estranho, pois o céu invernoso estava claro e o tempo nessa manhã parecera calmo e estável. Roke distava de Serd apenas trinta milhas e puseram-se a navegar. E quando o vento se levantou ainda mais, mesmo assim prosseguiram. O pequeno navio, como a maioria dos que fazem comércio no Mar Interior, ostentava a alta vela longitudinal que pode ser voltada para apanhar vento de popa, e o mestre era um marinheiro competente, orgulhoso da sua perícia. Assim, velejando ora para norte, ora para sul, foram progredindo para leste. Depois o vento trouxe nuvens e chuva, ao mesmo tempo que mudava de direção e soprava em rajadas tão violentas que havia um perigo considerável de o navio perder o rumo.

— Senhor Gavião — disse o mestre para o jovem que mantivera a seu lado, no lugar de honra, à popa, se bem que pouca dignidade se pudesse manter debaixo de um vento e de uma chuva que os encharcava a todos até os deixar com mísero aspecto nas suas capas ensopadas. — Senhor Gavião, podias talvez dizer uma palavra a este vento, não?

— Estamos já perto de Roke?

— A mais de meio caminho. Mas não conseguimos avançar nada nesta última hora, Senhor.

Gued falou ao vento. Soprou com menos força e, por algum tempo, progrediram razoavelmente. Depois, inesperadamente, vieram silvando do Sul fortes rajadas e, perante elas, de novo se viram desviados para ocidente. As nuvens desfaziam-se e referviam no céu e o mestre do navio rugiu raivosamente:

— Esta ventania de doidos sopra de todos os lados ao mesmo tempo! Só um vento mágico nos pode valer com este tempo, Senhor.

Gued encarou sombriamente o pedido, mas o navio e os seus homens estavam em perigo por causa dele, de modo que mandou erguer o vento mágico e dirigiu-o para a vela. O navio começou de imediato a sulcar as águas em direção a leste e o mestre começou a ficar novamente de bom humor. Mas pouco a pouco, e embora Gued continuasse a manter a encantamento, o vento mágico abrandou, tornando-se cada vez mais fraco, até que o navio pareceu ficar imóvel sobre as vagas por um minuto, com a vela pendente, no meio de todo aquele tumulto da chuva e da ventania. E então, com um estrondo de trovão, a retranca veio rodando e o navio mudou o rumo e saltou para norte como um gato assustado.

Gued deitou a mão a uma escora, pois o navio ficara quase deitado sobre o flanco, e bradou:

— Regressa a Serd, mestre!

Mas o mestre praguejou e gritou que não faria tal.

— Com um feiticeiro a bordo, eu sendo o melhor marinheiro no mister e este o mais obediente navio em que jamais naveguei… voltar atrás?

Nesse momento, o navio voltou a girar, como se um remoinho lhe tivesse aprisionado a quilha, obrigando também o mestre a agarrar-se ao mastro da popa para se manter a bordo, e Gued disse:

— Deixa-me em Serd e navega para onde te aprouver. Não é contra o teu navio que este vento sopra, é contra mim.

— Contra ti, um feiticeiro de Roke?

— Nunca ouviste falar do vento de Roke, mestre?

— Sim, aquele que mantém os poderes maléficos longe da Ilha dos Sages. Mas que tem isso a ver contigo, um domador de dragões?

— Isso é entre mim e a minha sombra — respondeu Gued laconicamente, como é hábito nos feiticeiros. E nada mais disse enquanto navegavam rapidamente, sob vento constante e céus que se aclaravam, por sobre o mar de volta a Serd.

Ao afastar-se dos embarcadouros de Serd, sentiu o coração oprimido. Os dias iam encurtando, com a aproximação do Inverno, e em breve fazia escuro. Ao crepúsculo, o mal-estar de Gued aumentava sempre e, agora, o virar de cada rua parecia-lhe conter uma ameaça. Além disso, tinha de se conter para não olhar constantemente por cima do ombro, tentando ver o que podia vir atrás de si. Dirigiu-se à Casa do Mar de Serd, onde viajantes e mercadores comiam juntos da boa alimentação fornecida pela administração, podendo ainda dormir na longa sala de teto travejado. Pois tal é a hospitalidade das prósperas ilhas do Mar Interior.

Guardou um pouco da carne do jantar e, junto à cova do lume, atraiu o otaque para fora da dobra do seu capuz, onde se açoitara durante o dia, e tentou convencê-lo a comer, fazendo-lhe festas e sussurrando:

— Hoeg, Hoeg, meu pequenino, meu caladinho…

Mas o animalzinho não quis comer e foi-se esconder no bolso. Por aí, pela sua própria embotada incerteza, pelo próprio aspecto da escuridão nos cantos da grande sala, percebeu que a sombra não estava longe dele.

Naquele lugar, ninguém o conhecia. Eram viajantes, vindos de outras ilhas, que não tinham ouvido a Canção do Gavião. Ninguém lhe dirigiu a palavra. Por fim, escolheu uma enxerga e deitou-se. Mas durante toda a noite ali ficou de olhos abertos, sob o travejamento da sala, no meio do sono de estranhos. Toda a noite forcejou por escolher o seu caminho, por planear onde deveria dirigir-se, o que deveria fazer. Mas cada escolha, cada plano, logo eram bloqueados por um mau presságio de desgraça. Atravessada em cada caminho que ele pudesse tomar estava a sombra. Só Roke permanecia livre dela. E para Roke não podia ir, impedido pelos enormes, emaranhados e antigos sortilégios que mantinham em segurança a perigosa ilha. E o fato de o vento de Roke se ter erguido contra ele era uma prova segura de que a coisa que o perseguia devia estar já bem próxima dele.

Essa coisa era informe e sem corpo, cega para o brilho do Sol, uma criatura de uma região sem luz, sem lugar, sem tempo. Tinha de o procurar tateando, através dos dias e dos mares do mundo que o Sol ilumina, e apenas em sonhos e nas trevas lhe era possível tomar forma visível. Não tinha ainda substância ou ser sobre o qual pudesse brilhar a luz do sol. E é assim que no Feito de Hode se canta: «O raiar do dia faz toda a terra e todo o mar, da sombra gera a forma, afugentando o sonho para o reino da treva.» Mas se alguma vez a sombra conseguisse alcançar Gued, poderia retirar dele todo o poder, e tomar o próprio peso e calor da vida do seu corpo e a vontade que o fazia mover.

Esse era o desastre que ele via perante si em cada estrada. E sabia que podia ser atraído para esse desastre. Porque a sombra, tornando-se mais forte de cada vez que dele se aproximava, podia agora mesmo ter já força suficiente para pôr a seu uso poderes maléficos ou homens maldosos — mostrando-lhe falsos portentos ou falando-lhe com a voz de um estranho. Pois, tanto quanto ele sabia, num desses homens que dormia neste ou naquele canto da sala de teco travejado da Casa do Mar nessa noite, podia acoitar-se a coisa de negrume, encontrando apoio numa alma tenebrosa e ali esperando, observando Gued, alimentando-se, naquele preciso momento, da sua fraqueza, da sua incerteza, do seu medo.

Deixara de ser suportável. Tinha de confiar no acaso e ir para onde o acaso levasse. A primeira fria sugestão da alvorada, levantou-se e, sob a luz das estrelas que ia empalidecendo, apressou-se a descer até aos embarcadouros de Serd, com a única resolução de tomar o primeiro navio prestes a partir que o quisesse levar. Uma galera carregava óleo de túrbio. Iria levantar ferro ao nascer do Sol, em direção ao Grande Porto de Havnor. Gued pediu passagem ao mestre. Na maioria dos navios, um bordão de feiticeiro é passaporte e pagamento suficientes. De boa vontade o tomaram a bordo e, antes de decorrida uma hora, o navio partia. A disposição de espírito de Gued melhorou com o primeiro erguer dos quarenta longos remos e o rufo do tambor que marcava o ritmo era para ele como um hino de coragem.

Contudo, não sabia o que faria em Havnor ou para onde fugiria a partir daí. A direção para norte era tão boa como qualquer outra. Ele próprio era um homem do Norte. Talvez encontrasse em Havnor um navio que o levasse a Gont, onde poderia voltar a ver Óguion. Ou encontrar algum que o levasse para bem longe, até às Estremas, tão longe que a sombra o perdesse e desistisse da caçada. Para lá de idéias tão vagas como estas, não tinha em mente qualquer plano e não via rumo algum que devesse seguir com certeza. Só sabia que tinha de fugir…

Aqueles quarenta remos levaram o navio por sobre cento e cinqüenta milhas do mar de Inverno antes do pôr do Sol do segundo dia a partir de Serd. Chegaram assim a um porto em Orrimi, na costa leste do grande território de Hosk, dado que estas galeras que fazem comércio no Mar Interior se mantêm junto às costas e fundeiam durante a noite ao abrigo sempre que podem. Como ainda houvesse luz do dia, Gued foi a terra e vagueou pelas ruas íngremes da vila, sem destino e imerso nos seus pensamentos.

Orrimi é uma velha vila, pesadamente construída em pedra e tijolo, defendida por muralhas contra os senhores sem lei do interior da Ilha de Hosk. Os armazéns das docas são como fortes e as casas dos mercadores têm torres e são fortificadas. Contudo, para Gued, ao caminhar sem destino ao longo das ruas, aquelas poderosas mansões mais lhe pareciam véus, atrás dos quais se estendesse uma escuridão vazia. E as pessoas que passavam junto dele, entregues aos seus afazeres, não lhe pareciam seres humanos reais, mas apenas sombras de homens, sem voz. Com o pôr do Sol, regressou aos embarcadouros e, mesmo aí, na forte luz avermelhada e sob o vento do final do dia, mar e terra lhe pareceram igualmente esbatidos e silenciosos.

— Para onde vais, Senhor Feiticeiro?

Foi assim que alguém o saudou subitamente, atrás dele. Voltando-se, viu um homem vestido de cinzento que trazia um bordão de uma madeira pesada, mas que não era um bordão de feiticeiro. O rosto do estranho estava oculto da luz vermelha pelo capuz, porém Gued sentiu os olhos invisíveis cruzarem-se com os seus. Recuando em sobressalto, ergueu o seu próprio bordão de teixo entre ambos.

Suavemente, o homem perguntou:

— O que temes?

— O que segue atrás de mim.

— Seja. Mas eu não sou a tua sombra.

Gued permaneceu silencioso. Sabia que, na verdade, aquele homem, fosse ele quem fosse, não era o que temia. Não era sombra, nem fantasma, nem criatura gebbeth. No meio do seco silêncio e da sombra que viera sobre o mundo, mantinha inclusive uma voz e alguma solidez. E então deitou o capuz para trás. Tinha uma cabeça estranha, calva e com costuras, um rosto vincado de rugas. Embora a idade não tivesse transparecido na sua voz, tinha o aspecto de um velho.

— Não te conheço — disse o homem de cinzento — e, no entanto, julgo que talvez não nos tenhamos encontrado por acaso. Ouvi em tempos a história de um jovem, um homem com cicatrizes no rosto, que pela treva veio a alcançar grande domínio, mesmo a realeza. Não sei se será essa a tua história. Mas dir-te-ei o seguinte: se precisas de uma espada com que combater sombras, vai até à Corte da Terrenon. Um bordão de teixo não chega para o que necessitas.

Enquanto escutava, a esperança e a desconfiança lutavam no espírito de Gued. Um homem versado em feitiçaria em breve aprende que, na verdade, muito poucos dos seus encontros são por acaso, seja isso para bem ou para mal.

— Em que ilha fica a Corte da Terrenon?

— Em Osskil.

Ao ouvir aquele nome, e por um artifício da memória, Gued viu por um momento um corvo negro sobre erva verde, um corvo que o olhava de lado com um olho que era como uma pedra polida e que falava. Mas as palavras estavam esquecidas.

— Há algo de tenebroso no nome dessa terra — disse Gued, sempre olhando o homem de cinzento, tentando ajuizar que tipo de homem seria. Tinha uns certos modos que deixavam suspeitar que fosse bruxo, talvez até feiticeiro. E, no entanto, apesar de falar atrevidamente com Gued, havia nele um estranho aspecto de pessoa vencida, quase o aspecto de um doente, ou de um prisioneiro, ou de um escravo.

— Tu és de Roke — foi a resposta dele. — Os feiticeiros de Roke dão um mau nome a escolas de feitiçaria que não sejam a sua.

— Que homem és tu?

— Um viajante. Um agente de comércio de Osskil. Estou aqui em negócios — disse o homem de cinzento. E como Gued nada mais lhe perguntasse, desejou calmamente boa noite ao jovem e foi-se, subindo a estreita rua com degraus, acima do cais.

Gued voltou-se, inseguro se devia atender àquele sinal ou não, e olhou para norte. A luz vermelha estava a desaparecer rapidamente das colinas e do mar encapelado pelo vento. Chegava o lusco-fusco cinzento e, nos seus calcanhares, a noite.

Levado por súbita decisão, Gued apressou os passos ao longo do cais até junto de um pescador que dobrava as redes para dentro do seu bote e perguntou-lhe:

— Sabes de algum barco neste porto que esteja de partida para norte, para Semel ou para as Enlades?

— Aquele navio comprido, ali adiante, é de Osskil. É possível que faça escala nas Enlades.

Sempre apressado, Gued dirigiu-se ao grande navio que o pescador lhe indicara, uma embarcação alongada de sessenta remos, esguia como uma serpente, com a curva e alta proa esculpida e embutida com discos de concha de loto, as coberturas dos orifícios para os remos pintadas de vermelho e com a runa Sifl pintada a preto em cada uma. O seu aspecto dava uma idéia de ameaça e rapidez, e estava preparado para partir, já com toda a tripulação a bordo. Gued procurou o mestre do navio e pediu passagem para Osskil.

— Podes pagar?

— Tenho alguma perícia com ventos.

— Também eu sou um fazedor de tempo. Não tens nada para dar? Dinheiro?

Em Baixo Torning, os Ilhéus tinham pago Gued o melhor que podiam com as moedas de marfim usadas pelos que mercadejavam no Arquipélago. Embora lhe quisessem dar mais, apenas aceitara dez moedas. Ofereceu então essas moedas ao osskiliano, mas este abanou a cabeça.

— Nós não usamos essas fichas de jogo. Se não tens nada com que pagar, não posso tomar-te a bordo.

— Precisas de braços? Já remei numa galera.

— Sim, temos falta de dois homens. Procura então o teu banco — disse o mestre do navio. E não lhe prestou mais atenção.

Assim, pousando o bordão e o saco dos livros debaixo do banco dos remadores, Gued tornou-se durante dez amargos dias um remador a bordo daquele navio do Norte. Largaram de Orrimi ao romper do Sol e, durante esse dia, Gued pensou que não iria ser capaz de dar conta do seu trabalho. Tinha o braço esquerdo um pouco enfraquecido por causa das velhas feridas no ombro e, por muito que tivesse remado nos canais de Baixo Torning, isso não o preparara para puxar, puxar, puxar sem descanso pelo longo remo da galera, ao ritmo do tambor. Cada turno aos remos era de duas ou três horas, após o que um segundo grupo de remadores vinha ocupar os bancos, mas o tempo de repouso só parecia ser suficientemente longo para todos os músculos de Gued ficarem rígidos e logo chegava o momento de voltar aos remos. E o segundo dia foi ainda pior. Mas, depois, o corpo habituou-se ao labor e tudo passou a correr melhor.

Naquele navio não havia camaradagem entre os tripulantes como ele encontrara a bordo do Sombra, quando da sua primeira viagem para Roke. As tripulações dos navios das Andrades e de Gont são parceiros no negócio, trabalhando em conjunto para um proveito comum, ao passo que os mercadores de Osskil usam escravos e servos ou contratam homens para remar, pagando-lhes com pequenas moedas de ouro. O ouro é coisa de grande importância em Osskil. Mas não é origem de boa camaradagem, nem aí nem entre os dragões, que também altamente o prezam. Dado que metade daquela tripulação era formada por servos, forçados a trabalhar, os oficiais do navio eram condutores de escravos, e dos mais duros. Nunca assentavam o chicote nas costas de um remador que trabalhasse a soldo ou para pagar a passagem, mas não pode haver grande amizade numa tripulação em que alguns são chicoteados e outros não. Os companheiros de Gued poucas palavras trocavam entre si e ainda menos com ele. Eram na maioria homens de Osskil, que não falavam a língua Hardic do Arquipélago mas um dialeto próprio e eram homens rígidos, de pele pálida, longos bigodes pretos e cabelo liso. Kelub, o vermelho, era o nome que, entre eles, davam a Gued. Embora soubessem que era um feiticeiro, não tinham por ele qualquer consideração, antes uma espécie de desprezo cauteloso. E o próprio Gued não estava na disposição de travar amizades. Mesmo no seu banco, preso ao poderoso ritmo das remadas, um remador entre sessenta num navio que corria sobre os mares cinzentos e despovoados, ainda assim se sentia exposto, indefeso. Quando chegavam a portos estrangeiros, ao cair da noite, e ele se enrolava no seu manto para dormir, por muito cansado que estivesse sonhava, acordava, voltava a sonhar. Sonhos maléficos de que não era capaz de se recordar quando acordava, mas que pareciam suspensos sobre o navio e os homens do navio, fazendo-o desconfiar de todos eles.

Todos os homens livres de Osskil traziam uma faca comprida à anca e certo dia, quando o seu turno de remadores compartilhava a refeição do meio-dia, um desses homens perguntou-lhe:

— És escravo ou perjuro, Kelub?

— Nem uma coisa nem outra.

— Então por que motivo não tens faca? Tens medo de lutar? — continuou o homem, Skiorh, trocista.

— Não.

— Ou é o teu cachorro que luta por ti?

— Otaque — disse um outro que escutava a troca de palavras. — Cão, não. Aquilo é um otaque — e acrescentou qualquer coisa na língua de Osskil que fez Skiorh franzir o olho e voltar as costas. E, precisamente quando se virou, Gued deu por uma mudança no seu rosto, as feições a ondularem e a tornarem-se indistintas como se, por um instante, algo o tivesse modificado, utilizado, para lançar, através dos seus olhos, um relance de esguelha a Gued. Porém, no instante seguinte, Gued viu-lhe todo o rosto e estava como de costume, pelo que Gued disse para si próprio que o que vira fora o seu próprio receio, o seu próprio temor refletido nos olhos do outro. Mas nessa noite voltou a sonhar e Skiorh caminhou no seu sonho. A partir daí, evitou aquele homem o mais que pôde e dir-se-ia que também Skiorh se mantinha longe dele, pelo que não houve mais palavras trocadas entre ambos.

As montanhas coroadas de neve de Havnor afundaram-se atrás deles no horizonte, para sul, tornadas indistintas pelas névoas de princípio de Inverno. Continuaram remando para lá da entrada do Mar de Éa onde, há tanto tempo, Elfarran fora afogado e ainda para além das Enlades. Aportaram por dois dias a Berila, a Cidade do Marfim, branca acima da sua baía na parte ocidental da Enlad dos muitos mitos. Em todos os portos a que chegavam, os homens eram mantidos a bordo do navio e não podiam pôr pé em terra firme. Depois, sob um Sol que nascia vermelho, entraram no Mar de Osskil, sob os ventos de nordeste que sopram sem obstáculo que os quebre, vindos da vastidão despida de ilhas da Estrema Norte. Através desse mar cruel levaram a sua carga a bom porto, chegando no segundo dia, a partir de Berila, aos cais de Neshum, a cidade comercial de Osskil-Leste.

O que se deparou a Gued foi uma costa baixa açoitada pelo vento e pela chuva, uma vila cinzenta agachada por trás dos longos quebra-mares que formavam o seu porto e, nas costas da vila, montes despidos de árvores sob um céu escurecido por nuvens carregadas de neve. Estavam muito longe da luz brilhante do Mar Interior.

Estivadores da Guilda do Mar de Neshum vieram a bordo fazer a descarga — ouro, prata, pedrarias, sedas finas e tapeçarias do Sul, as coisas preciosas que os senhores de Osskil entesouram — e os homens livres da tripulação foram dispensados. Gued interpelou um deles, para lhe perguntar o caminho. Até aí, a desconfiança que sentia por todos eles impedira-o de dizer para onde se dirigia, mas agora, a pé e sozinho numa terra estranha, forçoso era que pedisse indicações. O homem seguiu caminho impacientemente, dizendo que não sabia, mas Skiorh, que os ouvira, disse:

— A Corte da Terrenon? Nas charnecas de Keksemt. É esse o meu caminho.

Skiorh não era a companhia que Gued escolheria, mas, sem conhecer nem a língua nem o caminho, pouca escolha havia. E de qualquer forma, pensou, não tinha grande importância. Ele também não escolhera vir até ali. Fora conduzido e agora continuava a sê-lo. Puxou o capuz para cima da cabeça, pegou no bordão e no saco e seguiu o osskiliano através das ruas da cidade e depois para cima, em direção aos montes nevados. O pequeno otaque não quis viajar ao ombro, preferindo esconder-se no bolso da sua túnica de pele de carneiro, debaixo do manto, como era seu costume com tempo frio. Os montes deram lugar a charnecas ermas e ondulantes, estendendo-se até onde a vista podia alcançar. Caminhavam em silêncio e o silêncio do Inverno pesava sobre toda aquela terra.

— Quanto falta? — perguntou Gued depois de terem percorrido algumas milhas, não vendo quaisquer vestígios de aldeia ou herdade para onde quer que olhasse e pensando que não traziam alimentos consigo. Skiorh voltou momentaneamente a cabeça para ele, levantando o capuz, e respondeu:

— Pouco.

Era uma cara repulsiva, pálida, grosseira e cruel, mas Gued não temia homem algum, embora pudesse temer o lugar onde esse homem o poderia conduzir. Acenou que sim e prosseguiram. A estrada por onde seguiam não era mais que uma fina cicatriz através da vastidão de neve e arbustos sem folhas. De tempos a tempos, outros trilhos a atravessavam ou derivavam dela. Agora que o fumo das chaminés de Neshum se ocultara por trás dos montes na tarde cada vez mais escura, não havia sinal algum que indicasse por que caminho deveriam seguir, ou tinham seguido. Só o vento soprava constantemente de leste. E depois de terem caminhado por várias horas, Gued julgou avistar, lá longe nos montes, a noroeste, para onde tendia o rumo que seguiam, como que um pequeno rasgão contra o céu, semelhante a um dente, branco. Mas a luz daquele dia curto ia esmorecendo e, quando a estrada voltou a subir mais adiante, não conseguiu discernir melhor aquela coisa, torre, árvore ou o que quer que fosse.

— Vamos para ali? — perguntou, apontando.

Skiorh não deu resposta e seguiu caminho, embiocado na sua capa grosseira, o capuz osskiliano, bicudo e forrado a pele, na cabeça. Gued foi palmilhando atrás dele. Tinham andado muito e ele estava sonolento com as passadas uniformes da marcha e o longo cansaço dos duros dias e noites passados a bordo. Começou a parecer-lhe que vinha a andar desde sempre e continuaria para sempre a andar, junto daquele ser silencioso, através de uma terra silenciosa e cada vez mais escura. Cuidado e vontade tinham-se entorpecido nele. Caminhava como num sonho longo, longo, que não o levava a lado algum.

O otaque agitou-se no bolso, e um ligeiro e vago temor acordou e agitou-se também no seu espírito. Obrigou-se a falar:

— A escuridão está a chegar, e a neve também. Quanto falta ainda, Skiorh?

Após uma pausa, sem se voltar, o outro respondeu:

— Não muito.

Mas a sua voz não soou como voz de homem, antes como a de uma fera, rouca e sem lábios, que tentasse falar.

Gued estacou. Em toda a volta, na luz tardia e fosca, estendiam-se os montes vazios. Uma neve esparsa revoluteava um pouco, caindo.

— Skiorh! — disse. E o outro fez alto e voltou-se. Sob o capuz em bico não havia rosto algum.

E antes que Gued pudesse pronunciar um esconjuro ou invocar o seu poder, o gebbeth falou, dizendo na sua voz rouca:

— Gued!

E então o jovem viu-se impedido de conseguir qualquer transformação, ficando fechado no seu verdadeiro ser e obrigado a enfrentar assim indefeso o gebbeth. Nem podia invocar qualquer auxílio nesta terra estrangeira, onde nada nem ninguém era dele conhecido ou responderia ao seu chamado. Estava só, sem nada entre ele e o seu inimigo a não ser o bordão de teixo na mão direita.

A coisa que devorara a mente de Skiorh e lhe possuíra a carne fez o corpo dar um passo em direção a Gued e os braços acompanharam o movimento, erguendo-se tateantes para ele. Urna raiva toda feita de horror apoderou-se de Gued e ele ergueu e logo fez descer silvando o bordão sobre o capuz que ocultava o rosto de sombra. Capuz e capa desabaram quase até ao chão sob aquela pancada feroz, como se dentro deles nada mais houvesse que vento, mas logo, drapejando e ondulando, se voltaram a erguer. O corpo de um gebbeth foi despojado de verdadeira substância e é algo de semelhante a uma concha ou a um vapor sob a forma de um homem, uma carne irreal servindo de roupagem à sombra que é real. Assim, aos sacões, ondulando, como se soprada por algum vento, a sombra alargou os braços e dirigiu-se a Gued, tentando agarrá-lo como já o agarrara no Cabeço de Roke. E se o fizesse, lançaria fora a casca de Skiorh e entraria em Gued, devorando-o a partir de dentro, apoderando-se dele, como era seu único desejo. Gued atingiu de novo o gebbeth com o seu pesado e fumegante bordão, afastando-o a pancadas, mas aquilo voltou de novo e de novo o golpeou e depois deixou cair o bordão que se inflamara e ardera, queimando-lhe a mão. Recuou e logo, num repente, voltou costas e fugiu.

Corria e o gebbeth seguia-o, a um passo apenas de distância, incapaz de o ultrapassar mas também sem se deixar ficar para trás. Gued nunca se voltou para olhar. Corria, corria, através daquela vasta terra crepuscular, onde não havia sítio para se ocultar. Uma vez, o gebbeth chamou-o na sua voz rouca e sibilada, chamou-o pelo nome-verdadeiro uma vez mais, mas, embora se tivesse assim apoderado do seu poder de feiticeiro, não tinha domínio sobre a força do seu corpo e não conseguiu fazê-lo parar. Gued continuou a correr.

A noite espessou-se em redor de caçador e presa, a neve caía finalmente sobre o caminho que Gued já não conseguia ver. Sentia nos olhos o acelerado do coração, a respiração queimava-lhe a garganta e ele não conseguia agora correr verdadeiramente, seguia apenas em frente tropeçando e cambaleando. Mas nem mesmo assim o perseguidor parecia capaz de o apanhar, vindo sempre mesmo atrás dele. Começara a falar-lhe, segredando e murmurando, chamando-o, e Gued sentia que em toda a sua vida aquele segredar estivera nos seus ouvidos, logo abaixo do limiar da audição, mas agora conseguia ouvi-lo e tinha de ceder, de desistir, de parar. E, contudo prosseguiu ainda naquele esforço, lutando por subir uma ladeira longa e indistinta. Pensou que houvesse uma luz algures na sua frente, julgou ouvir uma voz adiante e acima dele chamando-o: «Vem! Vem!»

Tentou responder mas faltou-lhe a voz. A pálida luz tornou-se mais nítida, brilhando através de uma entrada mesmo à sua frente. Não conseguia ver as paredes, mas viu a porta e, ao vê-la, estacou. Logo o gebbeth lhe tentou agarrar o manto, as mãos tateando desajeitadamente os flancos, tentando assenhorear-se dele por trás. Com as últimas forças que lhe restavam, Gued lançou-se através daquela porta que brilhava levemente. Tentou voltar-se para a fechar atrás de si, travando o gebbeth, mas as suas pernas já não conseguiam mantê-lo. Cambaleou, procurando um apoio. Luzes dançaram e relampejaram em frente dos seus olhos. Sentiu que caía e sentiu que algo o segurava ao cair. Mas a sua mente, totalmente exausta, deslizou para dentro da escuridão.

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