Amanhecer[1]

28

A primeira coisa de que Theremon tomou consciência, depois de um longo tempo sem ter consciência de nada, foi que havia uma coisa grande e amarela no céu.

Era uma imensa bola dourada, tão brilhante que era impossível olhar para ela por mais que uma fração de segundo. Um calor abrasador emanava da bola em ondas pulsantes.

Agachou-se, baixou a cabeça e colocou as mãos na frente dos olhos para se proteger da luz e do calor. Não sei o que a mantém lá em cima, pensou. Por que simplesmente não cai? Se cair, pensou, vai cair em cima de mim.

Onde posso me esconder? Como posso me proteger? Ficou onde estava por alguns momentos, sem coragem de pensar. Depois, com muito cuidado, abriu ligeiramente os olhos.

A bola gigantesca ainda estava no céu. Não havia se movido nem um milímetro. Não estava caindo em cima dele. Começou a tremer, apesar do calor. Sentiu um cheiro acre de fumaça. Havia alguma coisa queimando, não muito longe dali.

Era o céu, pensou. O céu estava queimando. A coisa dourada está incendiando o mundo. Não. Não. Havia outro motivo para a fumaça. Iria se lembrar da razão assim que sua mente se desanuviasse um pouco. A coisa dourada não havia provocado os incêndios.

Ela não estava no céu quando os incêndios começaram. Tinham sido aquelas outras coisas, aqueles pontinhos brilhantes que enchiam o céu de ponta a ponta… foram elas que mandaram o Fogo…

Como se chamavam? Estrelas. Isto mesmo, pensou. As Estrelas.

Começou a recordar, pouco a pouco, e estremeceu de novo, um tremor convulsivo. Lembrou-se do momento em que as Estrelas apareceram, seu cérebro se tornara uma bola de gude, seus pulmões se recusaram a funcionar e sua alma gritara no mais profundo terror…

Agora, porém, as Estrelas não estavam mais no céu. Tinham sido substituídas por uma coisa dourada.

Uma coisa dourada?

Onos. Era esse o nome da coisa dourada. Onos, o sol.

O sol principal. Um dos… um dos seis sóis. Isto mesmo. Theremon sorriu. As coisas estavam começando de novo a fazer sentido.

O lugar de Onos era no céu. O das Estrelas, não. O sol, o bondoso sol, o velho e tépido Onos. Onos estava de volta. Isto queria dizer que estava tudo bem com o mundo, mesmo que parte do mundo parecesse estar em chamas.

Seis sóis? Nesse caso, onde estariam os outros cinco? Ele ainda lembrava dos nomes. Dovim, Trey, Patru, Tano, Sitha. com Onos, eram seis. Podia ver Onos… estava bem acima dele, parecia ocupar metade do céu. E os outros? Levantou-se, trêmulo, ainda um pouco assustado com a coisa dourada lá em cima, imaginando que se esticasse um pouco poderia encostar nela e queimar-se. Não, não, isto não fazia sentido. Onos era bom. Onos era gentil. Sorriu.

Olhou em torno. Mais algum sol?

Havia um. Muito distante, muito pequeno. Nada assustador, aquele sol… como as Estrelas foram, como este sol no céu não era. Apenas um pontinho branco no céu, nada mais. Pequeno o suficiente para guardar no bolso, se pudesse alcançá-lo.

Trey, pensou. Aquele é Trey. Nesse caso, a irmã Patru deve estar por perto…

Sim. Sim, lá está ela. Lá em baixo, no canto do céu, à esquerda de Trey. A menos que aquele seja Trey e esta seja Patru.

Ora, pensou, os nomes não importam. Não interessa quem é quem. Os dois são Trey e Patru. E o grandão é Onos. E os outros três sóis devem estar em outro lugar, porque não consigo vê-los. E meu nome é…

Theremon. Isto mesmo. Meu nome é Theremon.

Há um número, também. Franziu a testa, tentando lembrar-se. O número da família, era isso. Um número muito conhecido. Qual era mesmo? Qual… era… mesmo? 762. Isso mesmo.

Meu nome é Theremon 762.

Outro pensamento, mais complexo, logo se seguiu: sou Theremon 762, da Crônica, e moro na cidade de Saro.

A lembrança o fez sentir-se melhor, embora não soubesse bem por quê.

Cidade de Saro? A Crônica?

Ele quase sabia o que essas palavras significavam. Quase. Repetiu-as várias vezes. Cidade cidade cidade. Saro saro saro. Crônica crônica crônica. Crônica cidade de Saro.

Acho melhor eu andar um pouco, pensou. Deu um passo tímido, depois outro e mais outro. Estava um pouco trôpego. Olhando em volta, verificou que se encontrava na encosta de uma colina, fora da cidade. Viu uma estrada, arbustos, árvores, um lago distante, à esquerda. Algumas das árvores e arbustos pareciam ter sido arrancados e quebrados, com galhos pendendo em ângulos estranhos ou caídos no solo, como se tivessem acabado de ser pisoteados por gigantes.

Atrás dele, havia um grande edifício de teto arredondado, do qual saía uma coluna de fumaça por um furo no teto.

O lado de fora da construção estava enegrecido; a impressão era de que tinha sido envolvido pelas chamas, embora as paredes de pedra tivessem resistido bem ao fogo. Viu algumas pessoas deitadas nas escadas do prédio, em posições grotescas, como se fossem bonecos descartáveis. Havia outras caídas no meio dos arbustos e ainda outras na estrada que descia a colina. Algumas se mexiam levemente, mas a maioria estava imóvel.

Olhou na direção oposta. No horizonte apareciam as torres de uma grande cidade, coberta por uma espessa nuvem de fumaça. Quando semicerrou os olhos, julgou ver línguas de fogo saindo das janelas dos edifícios mais altos, embora o que lhe restava de razão dizia-lhe que era impossível ver detalhes a uma distância tão grande. A cidade tinha que estar a quilômetros de distância.

A cidade de Saro, pensou subitamente. Onde a Crônica é publicada.

Onde eu trabalho. Onde eu moro.

E meu nome é Theremon. Isto mesmo. Theremon 762. Trabalho na Crônica e moro na cidade de Saro.

Sacudiu a cabeça lentamente de um lado para outro, como teria feito um animal ferido, tentando afastar a confusão e o torpor. Era horrível não poder pensar direito, não poder consultar à vontade as próprias memórias. A luz cintilante das Estrelas estendia-se como uma cortina dentro do seu cérebro, isolando-o das próprias recordações.

Mas as coisas estavam começando a transpor a barreira. Fragmentos coloridos do passado, muito nítidos, vibrantes de energia, serpenteavam em sua mente. Fez força para que ficassem quietos tempo suficiente para que pudesse analisá-los.

Entreviu a imagem de um aposento. A sua sala, cheia de papéis, revistas, dois terminais de computador, uma caixa de cartas para serem respondidas. Outro aposento: uma cama. A pequena cozinha que raramente usava. Este, pensou, é o apartamento de Theremon 762, um conhecido colunista da Crônica. Theremon não está em casa no momento, senhoras e senhores. Neste exato momento, Theremon está do lado de fora das ruínas do Observatório da Universidade de Saro, tentando compreender…

As ruínas…

O Observatório da Universidade de Saro…

— Siferra? — chamou. — Siferra, onde é que você está Nenhuma resposta. Imaginou quem seria Siferra. Alguém que conhecera antes de as ruínas serem ruínas, provavelmente.

O nome lhe ocorrera de repente, surgido das profundezas de sua mente perturbada. Deu mais alguns passos incertos. Havia um homem deitado à sombra de um arbusto, na encosta da colina. Theremon aproximou-se. Os olhos do homem estavam fechados.

Segurava na mão uma tocha apagada. Sua veste estava rasgada.

Adormecido? Ou estaria morto? Theremon cutucou-o com o pé. Sim, estava morto. Era estranho, todos aqueles cadáveres em volta. Não era comum ver gente morta por toda parte, era? E aquele carro ali, de pernas para o ar… também parecia morto, com o chassi pateticamente à mostra, espirais de fumaça saindo lentamente do interior.

— Siferra? — chamou, novamente.

Alguma coisa terrível acontecera. Isso era uma das poucas coisas que estavam claras em sua mente. Agachou-se mais uma vez e colocou a cabeça entre as mãos. Os fragmentos de memória agora estavam se movendo mais devagar, não mais envolvidos em uma dança frenética; tinham começado a flutuar majestosamente, como se fossem icebergs à deriva no Grande Oceano do Sul. Se ao menos pudesse juntar esses fragmentos… formar com eles uma imagem que fizesse sentido…

Repassou mentalmente o que já conseguira reconstituir. Seu nome. O nome da cidade.

O nome dos seis sóis. O jornal. Seu apartamento.

A noite passada … As Estrelas…

Siferra… Beenay … Sheerin… Athor… nomes…

De repente, as coisas começaram a se ligar em sua mente. Os fragmentos de memória do seu passado imediato tinham finalmente começado a se juntar. A princípio, porém, nada fazia sentido, porque cada pequeno aglomerado de memórias tinha existência independente e ele não conseguia ordená-los em um todo coerente. Quanto mais se esforçava, mais confusas as coisas se tornavam. Depois que compreendeu esse fato, desistiu da ideia de tentar forçar alguma coisa.

Vá com calma, disse Theremon para si próprio. Deixe acontecer naturalmente.

Era óbvio que sua mente sofrera um grande traumatismo. Embora não tivesse nenhum hematoma, nenhum galo na cabeça, sabia que havia sido ferido de alguma forma. Suas memórias tinham sido partidas em mil pedaços, e esses pedaços tinham sido misturados ao acaso, como as peças de um quebra-cabeça. Mas parecia estar se recuperando rapidamente. A cada momento, seu cérebro, o cérebro da entidade que era Theremon 762, que trabalhava na Crônica e morava na cidade de Saro, parecia mais íntegro.

Fique calmo. Espere. Deixe acontecer naturalmente. Inspirou profundamente, prendeu a respiração, soltou o ar devagar. Inspirou de novo. Prendeu o ar, soltou. Inspirou, prendeu, soltou. Inspirou, prendeu, soltou.

A imagem do interior do Observatório lhe veio à mente. Estava se lembrando agora. Era noite. Apenas o pequeno sol vermelho estava no céu.

O nome do sol era Dovim. Uma mulher alta: Siferra. Aquele homem gordo era Sheerin. O rapaz magro e sério era Beenay. O velho austero de cabelos brancos, com ar de patriarca, era um astrônomo famoso, o diretor do Observatório… Ithor? Uthor? Athor! Isso mesmo. Athor.

Estava quase na hora do eclipse. Da Escuridão. Das Estrelas.

Isso mesmo. Isso mesmo. As coisas estavam começando a fazer sentido. As memórias estavam voltando. A multidão do lado de fora do Observatório, liderada por fanáticos usando vestes negras: os Apóstolos do Fogo. Era assim que se chamavam. E um dos fanáticos estava dentro do Observatório. O nome dele era Folimun. Folimun 66. Ele se lembrava.

O momento da totalidade. O cair da noite. A entrada na Caverna da Escuridão.

As Estrelas… loucura… os gritos… a multidão… recordação fez Theremon estremecer. As hordas de pessoas assustadas, enlouquecidas, derrubando as pesadas portas, invadindo o Observatório, pisoteando umas às outras no afã de destruir os instrumentos científicos sacrílegos e os cientistas sacrílegos que negavam a realidade dos deuses…

Quase preferia que sua memória não tivesse voltado. O choque que sentira ao ver a luz fria das Estrelas pela primeira vez… a dor que irrompera no interior do seu crânio… os estranhos surtos de energia atravessando o seu campo visual. E depois a chegada da multidão… aquele momento de pavor… a luta para escapar… Siferra a seu lado, Bennay logo atrás, e depois a multidão caindo sobre eles como um rio caudaloso, separando-os, empurrando-os em,direções opostas…

Teve um último lampejo do velho Athor, com os olhos brilhantes e uma expressão tresloucada no rosto, de pé em uma cadeira, ordenando furiosamente que os intrusos se retirassem, como se não fosse apenas o diretor do Observatório, mas o seu rei. E Beenay ao lado de Athor, puxando-o pelo braço, implorando que fugisse enquanto podia. De repente, a cena se dissolveu. Não estava mais na sala, e sim em um corredor, correndo para a escada, olhando em volta à procura de Siferra, à procura de algum conhecido…

O Apóstolo, o fanático, Folimun 66, apareceu à sua frente, barrando-lhe a passagem no meio do caos. Rindo, estendendo a mão para ele em um gesto de falsa amizade.

Depois, Folimun desapareceu também e Theremon continuou sua fuga frenética, descendo a escada em espiral, cambaleando e tropeçando, pisando nos invasores, que estavam tão aglomerados no andar térreo que não conseguiam se mover. Saindo pela porta arrombada. Sentindo o frio da noite. Olhando, trêmulo, para a Escuridão que não era mais Escuridão, porque tudo estava iluminado pela luz fria, hedionda, implacável das milhares e milhares de Estrelas que enchiam o céu.

Não havia como se esconder das Estrelas. Mesmo de olhos fechados, continuava a vê-las. A simples Escuridão não era nada comparada com a pressão implacável daquela muralha gigantesca de luz, uma luz tão forte que ressoava no céu como um trovão.

Theremon se lembrou da impressão de que o céu, com Estrelas e tudo, estava prestes a desabar sobre ele. Ajoelhara-se e cobrira a cabeça com as mãos, por mais inútil que fosse o gesto. Lembrou-se, também, do terror à sua volta, as pessoas correndo sem rumo, chorando e gritando. Do horizonte iluminado pela cidade em chamas. Acima de tudo, das ondas opressivas de medo descendo do céu, das Estrelas impiedosas invadindo seu mundo.

Aquilo era tudo. Tudo, depois disso, era um vazio, totalmente vazio, até o momento em que acordara, descobrira que Onos estava de volta no céu e começara a pôr em ordem os fragmentos que lhe povoavam o cérebro.

Meu nome é Theremon 762, repetiu para si próprio. Moro na cidade de Saro e trabalho em um jornal.

Não havia mais cidade de Saro. Não havia mais jornal. O mundo havia terminado. Mas ele ainda estava vivo, e sua sanidade estava voltando. Pelo menos, era o que parecia. E agora? O que fazer? Para onde ir?

— Siferra? — chamou.

Não houve resposta. Começou a descer a colina, passando pelas árvores caídas, pelos carros incendiados, pelos cadáveres espalhados por toda parte. Se a coisa está assim aqui, pensou, como estará na cidade?

Muito pior, sem dúvida.

Que foi que os deuses fizeram conosco?

29

Às vezes, ser covarde tem as suas vantagens, disse Sheerin para si próprio, ao sair do quartinho de depósito, no porão do Observatório, no qual passara todo o período de Escuridão. Ainda estava um pouco abalado, mas sentia-se perfeitamente lúcido. Pelo menos, tão lúcido quanto antes do eclipse.

As coisas pareciam calmas do lado de fora. Embora o quartinho não tivesse janelas, a luz que entrava por uma abertura de ventilação era suficiente para mostrar que a manhã havia chegado, que os sóis estavam de novo no céu. Talvez a loucura desta vez tivesse poupado os habitantes do planeta. Talvez fosse seguro sair do esconderijo.

Colocou a cabeça do lado de fora e olhou com cautela para o corredor.

O cheiro de fumaça foi a primeira coisa que percebeu. Mas era um cheiro rançoso, úmido, desagradável, o cheiro de um fogo que já se apagou. Não só o Observatório tinha paredes de pedra, mas também contava com um sistema muito eficiente de sprinkIers, que deve ter entrado em ação automaticamente no momento em que a multidão tentara incendiar o prédio.

A multidão! A lembrança fez Sheerin estremecer.

O rotundo psicólogo jamais se esqueceria do momento em que a multidão invadiu o Observatório. Seria perseguido por aquela visão enquanto vivesse: aqueles rostos contorcidos, aqueles olhos esbugalhados, aqueles gritos insanos. Eram pessoas que haviam perdido o frágil contato que mantinham com a realidade antes mesmo de o eclipse se tornar total. A proximidade da Escuridão tinha sido suficiente para fazê-los perder o juízo. Isso, e a doutrinação hábil dos Apóstolos de Fogo, radiantes por verem suas profecias se concretizarem. Assim, a multidão tinha ido até o Observatório, com a intenção de atacar os cientistas em seu covil; e ali estavam, brandindo tochas, pedaços de pau, vassouras, tudo que pudessem usar para quebrar, esmagar, destruir.

Paradoxalmente, a chegada da multidão fizera bem a Sheerin. Ele passara por um mau momento, na ocasião em que ele e Theremon desceram para reforçar as portas. Sentia-se bem, até estranhamente eufórico, ao iniciar a aventura. Logo depois, entretanto, a realidade da Escuridão o atingira, como um sopro de gás venenoso, e ele sucumbira por completo. Ficara ali sentado, no meio da escada, gelado de medo, lembrando-se da viagem ao Túnel do Mistério e sabendo muito bem que daquela vez a viagem não iria durar apenas alguns minutos, e sim várias horas.

Theremon viera em seu socorro, e Sheerin recuperara um pouco do autocontrole enquanto subiam para a cúpula. Logo depois, porém, viera a totalidade… acompanhada pelas Estrelas. Embora Sheerin tivesse virado a cabeça quando aquela luz fria e diabólica começou a entrar pelo buraco no teto do Observatório, não conseguira evitar totalmente a visão. Por um instante, sentira a sua sanidade mental sendo minada…

Nesse momento, chegara a multidão, e Sheerin percebera que não era a sua sanidade mental que estava em jogo, mas sua própria vida. Para sobreviver àquela noite, teria que encontrar algum lugar para se esconder. O plano ingênuo de observar o fenômeno da Escuridão como o cientista frio e distante que fingia ser era coisa do passado. Que outros observassem o fenômeno da Escuridão. Para ele, a única saída possível era se esconder.

Assim, de alguma forma, conseguira chegar ao porão, àquele simpático quartinho, com uma lâmpada alimentada por baterias, que produzia uma luz fraca mas reconfortante.

Trancara a porta e ficara esperando. Chegara mesmo a cochilar.

Agora, era de manhã. Ou de tarde, talvez. Uma coisa, porém, era certa: a noite terrível havia passado e estava tudo calmo, pelo menos nas vizinhanças do Observatório.

Sheerin saiu do quartinho, pé ante pé, parou, escutou, começou a subir a escada. Silêncio, por toda parte. Poças de água suja, dos sprinklers. Cheiro de fumaça velha.

Interrompeu a subida para pegar um machado de incêndio que estava pendurado na parede. Era muito pouco provável que tivesse coragem de golpear outro ser humano com um machado, mesmo assim, precisava de alguma coisa que impusesse respeito, se as condições do lado de fora fossem tão caóticas como imaginava.

Chegando ao térreo, Sheerin abriu a porta de acesso ao porão, a mesma que usara para chegar ao esconderijo, depois de descer correndo as escadas na noite anterior, e olhou para fora.

A cena que viu era aterrorizante.

O grande saguão do Observatório estava cheio de gente, gente espalhada pelo chão, como se houvessem perdido os sentidos depois de uma gigantesca orgia. Entretanto, aquelas pessoas não estavam bêbadas. Muitas jaziam contorcidas em ângulos impossíveis, posturas apropriadas somente para um cadáver. Outras estavam de bruços, empilhadas como tapetes velhos, em pilhas de até três pessoas de altura. Essas também pareciam mortas ou moribundas. Outras, ainda, conservavam sinais de vida, mas se limitavam a gemer e soluçar como crianças.

Os instrumentos científicos, os retratos dos grandes astrônomos do passado, os mapas astronômicos elaborados, todas as peças, enfim, que estavam em exibição no saguão principal do Observatório, tinham sido empilhadas e queimadas ou simplesmente reduzidas a pedaços pela multidão enfurecida. Sheerin podia ver os restos quebrados e calcinados misturados aqui e ali com os corpos.

A porta principal estava aberta. Os raios tépidos e confortadores do sol entravam por ela. Com cuidado, Sheerin dirigiu-se para a saída, caminhando pelo meio dos cadáveres.

— Dr. Sheerin? — chamou uma voz, inesperadamente.

O psicólogo se voltou, brandindo o machado de forma tão decidida que teve que rir da própria beligerância.

— Quem está aí?

— Eu. Yimot.

— Quem?

— Yimot. Sabe quem eu sou, não sabe?

— Yimot… sim, eu sei. — O jovem estudante de astronomia, vindo de uma província do interior. Agora Sheerin podia ver o rapaz, meio escondido em uma alcova. Tinha o rosto sujo de fuligem e as roupas rasgadas, parecia atordoado, mas aparentemente não havia sofrido nada de sério. Na verdade, quando se aproximou, seu jeito de andar era menos cômico do que de costume; os maneirismos estavam ausentes. Nada de movimentos súbitos dos braços ou meneares espasmódicos da cabeça. O medo faz coisas estranhas com as pessoas, pensou Sheerin. — Passou a noite inteira escondido aqui?

— Tentei sair do edifício quando as Estrelas chegaram, mas não consegui. Sabe onde está Faro, Dr. Sheerin?

— O seu amigo? Não. Não sei. Não vi ninguém.

— Estávamos juntos, mas com tanto tumulto, tantos empurrões, tanta confusão… — Yimot deu um sorriso esquisito. — Achei que eles iam incendiar o prédio. De repente, os sprinklers começaram a funcionar. — Fez um gesto circular.

— Acha que estão todos mortos?

— Alguns estão apenas loucos. Eles viram as Estrelas.

— Eu também vi, por um momento — declarou Yimot. — Apenas por um momento.

— Como eram elas? — perguntou Sheerin.

— O senhor não chegou a vê-las, Dr. Sheerin? Ou não se lembra?

— Eu estava no porão. Em toda a segurança.

Yimot olhou para cima, como se as Estrelas ainda estivessem brilhando no teto do saguão.

— Elas são… apavorantes — murmurou. — Sei que isso não explica nada, mas é a única palavra que as descreve. Depois de vê-las durante dois segundos, talvez três, minha cabeça começou a girar. Senti que estava perdendo a razão e desviei os olhos. Não sou muito valente, Dr. Sheerin.

— Nem eu.

— Mas não me arrependi de haver olhado durante aqueles dois ou três segundos. As Estrelas podem ser assustadoras, mas também são bonitas. Pelo menos, para um astrônomo. Não se parecem em nada com os ridículos pontinhos de luz que eu e Faro criamos naquela experiência na cidade. Devemos estar bem no meio de um gigantesco aglomerado de Estrelas. Existem seis sóis nas proximidades do nosso planeta, e, um pouco mais longe, a cinco ou dez anos-luz de distância, existe uma imensa esfera de Estrelas, que são sóis, milhares de sóis, um monstruoso globo de sóis que nos envolve totalmente, mas que não podemos ver em condições normais por causa da luz de nossos sóis. Exatamente como Beenay suspeitava. Beenay é um astrônomo de primeira, o senhor sabe. Um dia, vai ser ainda mais famoso do que o Dr. Athor… Quer dizer que o senhor não viu as Estrelas?

— Só um pouquinho — disse Sheerin, em tom pesaroso. — Depois, saí correndo e me escondi… Escute, rapaz, temos que sair daqui.

— Primeiro, preciso tentar encontrar Faro.

— Se ele sobreviveu, já deu o fora daqui. Se não, não há nada que você possa fazer.

— E se estiver debaixo de uma dessas pilhas de corpos?

— Não pense nisso — disse Sheerin. — Você não pode sair por aí remexendo as pessoas. As que estão vivas ainda estão atordoadas, mas se você provocá-las é impossível adivinhar o que farão. O mais seguro é sair daqui o mais depressa possível. Vou tentar chegar ao Abrigo. Se você for esperto, virá comigo.

— Mas Faro…

— Está bem — disse Sheerin, com um suspiro. — Vamos procurar Faro. Vamos procurar também Beenay, Athor, Theremon e os outros.

Mas era inútil. Durante dez minutos, examinaram as pessoas mortas, inconscientes e semiconscientes que se amontoavam no saguão; nenhuma delas, porém, tinha qualquer ligação com a universidade. Quase todas tinham as feições horrivelmente distorcidas pelo medo e pela loucura. Algumas davam sinais de vida quando eram tocadas e começavam a babar e revirar os olhos. Uma tentou agarrar o machado de Sheerin, o psicólogo teve que empurrá-la com o cabo para livrar-se. Era impossível subir a escada para examinar o primeiro andar; a escada estava bloqueada pelos corpos inertes, e havia pedaços de reboco em toda parte.

O chão estava cheio de poças de água lamacenta. O cheiro de fumaça era insuportável.

— O senhor tinha razão — disse Yimot, afinal. — Vamos embora.

Sheerin foi o primeiro a sair do prédio, para a luz do sol. Depois de tudo que havia passado, o dourado Onos era a visão mais linda do universo, embora os olhos do psicólogo não estivessem preparados para tanta luz depois de passarem horas na Escuridão. Teve que parar e esperar que seus olhos se acomodassem. Depois de algum tempo, sua visão voltou, e o que viu o deixou perplexo.

— É horrível! — exclamou Yimot, a seu lado.

Mais cadáveres. Loucos vagando em círculos, murmurando palavras desconexas. Veículos queimados e abandonados no acostamento da estrada. Árvores e arbustos arrancados. Ao longe, uma grossa nuvem de fumaça marrom pairando sobre as torres da cidade de Saro.

Caos, caos, caos.

— Então é assim que é o fim do mundo! — disse Sheerin. — E aqui estamos, eu e você. Sobreviventes. — Começou a rir com amargura. — Formamos uma bela dupla! Eu, com cinquenta quilos a mais, você, com cinquenta quilos a menos. Mas ainda estamos vivos. Será que Theremon também escapou? Se eu tivesse que apostar em alguém para sobreviver, apostaria nele, e não em mim ou em você. O Abrigo fica a meio caminho entre o Observatório e a cidade de Saro. Se não houver nenhum problema no caminho, poderemos chegar lá, a pé, em menos de meia hora. Tome, leve isto corri você.

Pegou um grosso porrete que estava no chão, ao lado de um dos cadáveres, e jogou-o para Yimot, que o segurou meio sem jeito e ficou olhando para ele, como se não soubesse o que era.

— Que espera que eu faça com isso? — perguntou, afinal.

— Finja que vai usá-lo no crânio de qualquer um que nos tente assaltar. Assim como estou fingindo que usaria este machado para me defender. Sabe de uma coisa? Usarei, se for preciso. O mundo mudou, Yimot. Venha comigo. E tenha cuidado.

30

A Escuridão ainda envolvia o mundo, as Estrelas ainda inundavam Kalgash com seus diabólicos raios de luz quando Siferra 89 saiu, cambaleante, do devastado prédio do Observatório. Entretanto, uma leve luminosidade cor-de-rosa começava a aparecer, a leste, no horizonte; o primeiro sinal esperançoso de que os sóis estavam voltando ao céu.

Ficou parada no jardim do Observatório, com as pernas bem afastadas, a cabeça jogada para trás, respirando fundo. Sentia-se confusa. Não fazia ideia de quantas horas tinham se passado desde que o céu ficara escuro e as Estrelas nele irromperam, como uma salva de um milhão de clarins. Vagara a noite inteira pelos corredores do Observatório, sem conseguir encontrar a saída, tropeçando nos malucos que apareciam de todos os lados. Não parara para pensar que talvez também tivesse perdido o juízo. Estava preocupada apenas em sobreviver, em desvencilhar-se das mãos que tentavam agarrá-la, em defender-se de golpes de porrete com um porrete que arrancara das mãos de um homem caído, em esquivar-se do tropel de maníacos que atravessavam os corredores em grupos de seis ou oito, derrubando tudo que encontravam no caminho.

Tinha a impressão de que havia mais de um milhão de estranhos à solta no interior do Observatório. Para qualquer lugar que olhasse, via rostos contorcidos, olhos esbugalhados, bocas abertas, mãos crispadas de monstruosas garras.

Estavam quebrando tudo. Não fazia ideia de onde estava Beenay, de onde estava Theremon. Lembrava-se vagamente de ter visto Athor no meio de dez ou vinte histéricos encapuzados, sua vasta cabeleira branca acima deles. Depois, o diretor fora derrubado no chão e ela o perdera de vista.

Fora isso, Siferra não se lembrava mais de nada com clareza. Durante o resto do eclipse, correra para cá e para lá pelos corredores, como um rato em um labirinto. Não conhecia bem o interior do Observatório, mas mesmo assim teria saído do edifício sem muita dificuldade, se estivesse normal. Naquele momento, porém, com as Estrelas espreitando sem piedade em cada janela, era como se uma picareta tivesse sido cravada em seu cérebro. Não conseguia pensar. Não conseguia pensar. Não conseguia pensar.

Tudo que podia fazer era correr sem destino, abrindo caminho entre os invasores tresloucados, em uma busca inútil e desesperada de uma das saídas principais. Isso se prolongou por várias horas, como se estivesse sendo vítima de um pesadelo interminável.

Agora, finalmente, estava do lado de fora. Não sabia como havia chegado lá. De repente, estava diante de uma porta, em um corredor que, com certeza, havia explorado mil vezes nas últimas horas. Empurrou a porta, a porta cedeu, uma brisa de ar fresco acariciou a sua pele, e ela saiu do prédio, cambaleante.

A cidade estava em chamas. Podia ver o fogo à distância, uma furiosa mancha vermelha no horizonte.

Ouviu gritos, soluços, risos histéricos, vindo de todos os lados.

Um pouco abaixo de onde se encontrava, na encosta da colina, alguns homens estavam derrubando uma árvore, puxando-a pelos galhos, arrancando as raízes do solo. Não via nenhum motivo para aquele ato de destruição. Provavelmente nem eles sabiam por que estavam fazendo aquilo.

No estacionamento do Observatório, outros intrusos estavam virando os carros de rodas para o ar. Siferra imaginou se algum daqueles carros seria o dela. Não se lembrava. Não se lembrava de muita coisa. Até para se lembrar do próprio nome, tinha que se concentrar.

— Siferra — disse, em voz alta. — Siferra 89. Siferra 89. Gostou do som. Era um nome bonito. Tinha sido o nome da mãe… ou o nome da avó, talvez. Não tinha certeza.

— Siferra 89 — repetiu. — Meu nome é Siferra 89. Tentou lembrar-se do endereço de sua residência. Nada feito. Um monte de números sem sentido.

— Olhe para as Estrelas! — gritou uma mulher que passou correndo. — Olhe para as Estrelas e morra!

— Não — respondeu Siferra, calmamente. — Não quero morrer.

Assim mesmo, olhou para as Estrelas. Estava quase se acostumando com elas. Eram como luzes intensas, muito intensas, tão próximas no céu que pareciam se misturar, formando uma massa brilhante, uma espécie de manto prateado que ia de horizonte a horizonte. Quando olhava por mais que um segundo ou dois, conseguia ver alguns pontos luminosos, mais fortes do que os outros, pulsando com estranho vigor. Mas o melhor que conseguia era observá-las por cinco ou seis segundos; depois, a força de toda aquela luz pulsante a subjugava, fazendo seu cabelo ficar em pé e o sangue lhe subir ao rosto. Era então forçada a baixar os olhos e esfregar com força o ponto dolorido entre os olhos.

Atravessou o estacionamento, ignorando o que se passava em torno, e foi sair do outro lado, onde uma estrada pavimentada se afastava do Observatório. De alguma região remota de sua mente chegou a informação de que aquela estrada ligava o Observatório ao campus da universidade. Alguns dos edifícios mais altos eram visíveis dali.

Havia chamas nos tetos de alguns deles. O campanário, o cinema e o edifício da administração estavam pegando fogo. Você deve salvar as tabuinhas, disse uma voz que ela reconheceu como sendo a sua.

Tabuinhas? Que tabuinhas? As tabuinhas de Thombo.

Oh! Sim, é claro. Ela era uma arqueóloga, não era? Sim. Sim. E o que os arqueólogos faziam era procurar objetos antigos. Estivera cavando em um lugar muito distante.

Sagimot? Beklikan? Um nome assim. Encontrara tabuinhas, textos pré-históricos. Coisas antigas e valiosas. Em um lugar chamado Thombo. Como estou me saindo? perguntou a si mesma. Muito bem, foi a resposta.

Siferra sorriu. Estava se sentindo melhor a cada momento que passava. Era o clarão rosado do alvorecer que a estava curando, pensou. A manhã chegava: Onos, o sol, começava a aparecer no céu. Com o nascer de Onos, as Estrelas ficaram menos brilhantes, menos assustadoras. Estavam se apagando depressa. As que ficavam a leste já tinham sido ofuscadas pela luz de Onos. Mesmo na extremidade oposta do céu, onde ainda reinava a Escuridão e as Estrelas cintilavam como peixinhos em um aquário, a intensidade do seu brilho não era mais a mesma. Já podia olhar para o céu por mais de um minuto sem sentir dor de cabeça. Além disso, estava se sentindo menos confusa. Já sabia onde morava, onde trabalhava, o que havia feito na noite anterior.

Na noite anterior, estava no Observatório, com os amigos, os astrônomos que haviam previsto o eclipse.

O eclipse…

Era isso que estava fazendo na noite anterior, pensou. Esperando o eclipse. Esperando a Escuridão. Esperando as Estrelas.

Esperando o Fogo, pensou Siferra. E o fogo havia chegado. Tudo acontecera de acordo com as previsões.

O mundo estava queimando, como havia queimado várias vezes no passado, incendiado não pela mão dos deuses, não pelo poder das Estrelas, mas por pessoas comuns, enlouquecidas pelas estrelas, dispostas a qualquer coisa para restaurar a luz do dia.

A despeito do caos que a cercava, porém, permaneceu calma. Sua mente traumatizada, entorpecida, quase insensibilizada, era incapaz de assimilar o cataclismo trazido pela Escuridão. Continuou a caminhar pela estrada e chegou à praça principal do campus, passando por cenas de terrível devastação e destruição, sem sentir nenhum choque, nenhuma pena pelo que tinha sido perdido, nem temor pelos tempos difíceis que estavam por vir. Ainda não estava preparada para tais emoções. Era uma mera observadora, tranquila, indiferente.

O edifício em chamas à sua frente, sabia muito bem, era a nova biblioteca da universidade, que ajudara a planejar. Entretanto, a visão não lhe trouxe nenhuma emoção.

Era como se estivesse passando pelas ruínas de uma construção abandonada há milhares de anos. Nunca lhe ocorreria chorar por uma ruína milenar. Não lhe ocorria chorar agora, quando a universidade era consumida pelas chamas, à sua volta.

Estava no meio do campus, percorrendo caminhos familiares. Alguns dos edifícios estavam em chamas, mas nem todos. Caminhando como uma sonâmbula, dobrou à esquerda depois de passar pelo edifício da administração, à direita antes de chegar ao ginásio, à esquerda de novo antes de chegar à Matemática e passou entre a Geologia e a Antropologia para chegar ao seu escritório, que ficava no edifício da Arqueologia. A porta da frente do edifício estava escancarada. Entrou.

O prédio parecia quase intacto. Algumas vitrines no saguão estavam quebradas, mas não por saqueadores, pois nenhum artefato tinha sido roubado. A porta do elevador tinha sido arrancada das dobradiças. O quadro de avisos, ao lado da escada, estava no chão. Fora isso, estava tudo no lugar.

O silêncio era completo. Não havia ninguém à vista.

O escritório de Siferra ficava no segundo andar. Enquanto subia as escadas, encontrou um velho deitado de costas, no primeiro piso.

— Acho que conheço você — disse Siferra. — Como se chama? — Não houve resposta. — Você está morto? Responda: sim ou não? — Os olhos do velho estavam abertos, mas não havia neles nenhuma luz. Siferra encostou o dedo no rosto dele. — Mudrin. Você se chama Mudrin. Ou se chamava. Não importa; já estava na hora mesmo de você morrer.

Deu de ombros e continuou a subir.

A porta do escritório estava destrancada. No interior, havia um homem.

Siferra também conhecia este homem. Ao contrário de Mudrin, ainda estava vivo, agachado em um canto, atrás de um armário de aço. Era um homem corpulento, musculoso, de peito largo e rosto redondo. Sua testa estava coberta de suor, e os olhos tinham um brilho febril.

— Siferra? Você aqui?

— Vim buscar as tabuinhas — explicou. — As tabuinhas são muito importantes. Preciso salvá-las.

O homem se levantou e se aproximou da arqueóloga com passos incertos.

— As tabuinhas? As tabuinhas não estão mais aqui, Siferra! Foram roubadas pelos Apóstolos, lembra-se?

— Roubadas?

— Roubadas. Como a sua mente. Sua mente foi roubada, não foi? Seu rosto está sem expressão. Não há ninguém por trás dos seus olhos. Posso ver isso. Você nem ao menos sabe quem eu sou.

— Você é Balik — disse a arqueóloga, sem hesitação.

— Então você ainda se lembra.

— Balik. Isto mesmo. E Mudrin está na escada. Mudrin está morto, você sabia?

Balik deu de ombros.

— Não me admiro. Estaremos todos mortos em pouco tempo. O mundo inteiro lá fora enlouqueceu. Mas por que me dou ao trabalho de lhe dizer isso? Você enlouqueceu, também. — Seus lábios tremiam. Suas mãos tremiam. Começou a rir, um riso histérico, e rangeu os dentes, como se estivesse tentando se controlar. — Estou aqui desde que começou a Escuridão. Estava trabalhando até tarde, e de repente as luzes se apagaram… meu Deus! As Estrelas, as Estrelas. Uma olhada rápida foi o bastante. Escondi-me debaixo da mesa e fiquei lá até poucos momentos atrás. — Foi até a janela. — Mas agora Onos está nascendo. O pior deve ter passado. Lá fora está tudo em chamas, Siferra?

— Vim buscar as tabuinhas — repetiu a arqueóloga.

— Elas não estão aqui — ele soletrou a palavra para ela.

— Não entende? Foram roubadas.

— Então vou levar os mapas que fizemos — disse Siferra. — Preciso proteger o conhecimento.

— Você está totalmente louca! Onde estava, no Observatório? Deu para ver bem as Estrelas? — Ele riu de novo e atravessou o escritório em diagonal, aproximando-se da arqueóloga. Siferra fez uma careta. Agora podia sentir o cheiro de suor, acre e desagradável. Ele estava fedendo, como se não tomasse banho há uma semana. Sua aparência era a de quem não dormia há um mês.

— Venha cá — disse, quando a moça recuou. — Não vou machucar você.

— Preciso dos mapas, Balik.

— Está bem. Eu lhe dou os mapas. As fotografias, também. O que quiser. Mas antes vou lhe dar outra coisa. Venha cá, Siferra.

Segurou-a e abraçou-a. Siferra sentiu as mãos de Balik nos seus seios e a aspereza do rosto dele de encontro ao seu. O cheiro era insuportável. Ficou furiosa. Como ousava tratá-la daquela forma? Empurrou-o com violência.

— Ei, não faça isso, Siferra. Seja boazinha! Pelo que sabemos, somos os únicos sobreviventes. Eu e você. Vamos viver na floresta, caçar pequenos animais, colher sementes e frutas. Mais tarde, inventaremos a agricultura. — Ele riu. Seus olhos pareciam amarelos, naquela luz estranha. Sua pele também. Abraçou-a de novo, com sofreguidão, uma das mãos empalmando-lhe o seio, a outra escorregando pelas costas até a base da espinha. Encostou o nariz no pescoço da arqueóloga e começou a fungar como se fosse um animal. Seus quadris se moviam de encontro ao corpo da moça, de modo repugnante. Ao mesmo tempo, começou a empurrá-la para um canto do escritório.

De repente, Siferra lembrou-se do porrete que havia apanhado na noite anterior, em algum lugar do Observatório. Ainda o segurava frouxamente. Levantou-o, com um movimento rápido, atingindo com força a ponta do queixo de Balik. A cabeça dele foi jogada para cima e para trás. Ele a largou e recuou alguns passos, os olhos arregalados de surpresa e dor.

O lábio estava partido no lugar onde o mordera, e um filete de sangue escorria pelo canto da boca.

— Ei, sua cadela! Por que me bateu?

— Você me agarrou.

— Claro que agarrei! Já era tempo. — Ele esfregou o queixo. — Escute, Siferra, largue esse pedaço de pau e pare de olhar para mim desse jeito. Sou seu amigo. Seu aliado. O mundo se transformou em uma selva. Só restamos nós dois. Precisamos um do outro. Não é seguro andar por aí sozinha. Não deve se arriscar.

De novo, ele se aproximou de Siferra, as mãos levantadas, e segurou-a.

Ela o golpeou de novo.

Desta vez, fez um movimento circular e atingiu-o em cheio no rosto. Houve um ruído de ossos quebrados e a força do impacto fez Balik cambalear. Entretanto, ele continuou de pé. Siferra golpeou-o uma terceira vez, acima do ouvido, com toda a força. Quando ele caiu, atingiu-o de novo, no mesmo lugar, e sentiu o crânio se partir. Ele fechou os olhos e fez um ruído estranho, como um balão inflado, deixando o ar escapar. Ficou sentado no chão, com as costas apoiadas na parede, a cabeça para um lado, os ombros para o outro.

— Nunca mais me agarre desse jeito — disse Siferra, cutucando-o com a ponta do porrete. Balik não respondeu. Também não se mexeu.

A arqueóloga não precisava mais se preocupar com Balik. Agora vou pegar as tabuinhas, pensou, sentindo uma calma deslumbrante.

Não. As tabuinhas tinham sido roubadas, dissera Balik. Era verdade. Agora se lembrava. Tinham desaparecido pouco antes do eclipse. Muito bem, nesse caso vamos pegar os mapas. Todos aqueles desenhos da colina de Thombo. As paredes de pedra, as cinzas deixadas pelos sucessivos incêndios. Incêndios como aqueles que estavam consumindo a cidade de Saro naquele exato momento.

Onde estariam?

Oh. Ali. No armário de mapas, que era o seu lugar. Siferra abriu a porta do armário, pegou um maço de mapas, enrolou-os, colocou-os debaixo do braço. De repente, lembrou-se do homem caído e olhou para ele. Balik continuava imóvel e parecia que assim ia permanecer.

Saiu do escritório e desceu as escadas. Mudrin continuava no mesmo lugar, esparramado nos degraus. Siferra passou por cima dele e continuou a descida.

Lá fora, Onos brilhava no céu e as Estrelas quase haviam desaparecido.

O ar parecia mais fresco e mais limpo, embora o cheiro de fumaça ainda fosse forte. Um bando de homens estava quebrando as janelas do edifício da Matemática. Eles a viram e gritaram para ela palavras ásperas, incoerentes. Alguns correram em sua direção.

O seio doía no lugar onde Balik havia apertado. Não queria que mais ninguém a tocasse. Siferra fez meia-volta e contornou o edifício da Arqueologia, passou a cerca viva que ladeava o caminho, atravessou um gramado em diagonal e se viu em frente a um prédio cinzento, que reconheceu como o da Botânica. Havia um pequeno jardim botânico nos fundos, e um arvoredo experimental na colina ao lado, na orla da floresta que envolvia o campus.

Olhando para trás, Siferra teve a impressão de que os homens ainda a perseguiam. Passou correndo pelo edifício da Botânica e pulou a cerca que dava para o jardim botânico.

Um homem que dirigia uma máquina de cortar grama acenou para ela. Usava o uniforme verde-oliva dos jardineiros da universidade e estava cortando metodicamente os arbustos, abrindo uma trilha de destruição no meio do jardim, rindo baixinho enquanto trabalhava.

Siferra desviou-se dele. Logo depois, chegou ao arvoredo. Será que ainda a perseguiam? Não queria perder tempo olhando para trás. Era melhor correr, correr, correr.

As pernas compridas a conduziam com facilidade por entre as filas de árvores plantadas. Sentia-se bem, correndo assim. Correndo. Correndo.

De repente, chegou a uma parte mais cerrada do arvoredo, toda cipós e espinhos. Siferra continuou em frente, sabendo que ninguém a seguiria. Os galhos arranharam-lhe o rosto, rasgaram-lhe a roupa. Enquanto usava os braços para abrir caminho em uma densa moita, deixou cair o rolo de mapas, e emergiu sem eles do outro lado.

Não tem importância, pensou. Eles não significam mais nada para ninguém.

Mas agora tinha que descansar. Ofegante, tossindo de exaustão, atravessou um pequeno regato na extremidade do arvoredo e deixou-se cair em uma clareira coberta de musgo. Ninguém a seguira. Estava só.

Olhou para cima, para além da copa das árvores. A luz dourada de Onos inundava o céu. As Estrelas haviam desaparecido. A noite finalmente chegara ao fim, e com ela o pesadelo.

Não, pensou. O pesadelo está apenas começando. Ondas de choque e náusea a fizeram estremecer.

O estranho torpor que dela se apossara durante toda a noite começava a se dissipar. Depois de várias horas de dissociação mental, era de novo capaz de juntar as coisas, de observar vários eventos e compreender o que significavam.

Pensou no campus em ruínas e nas chamas que envolviam a cidade distante. Pensou nos loucos que vagavam pelas ruas, no caos, na devastação.

Balik. O sorriso lúbrico no seu rosto quando tentou agarrá-la. O seu olhar de surpresa quando o golpeou com o porrete.

Hoje matei um homem, pensou Siferra, consternada. Eu. Como pude fazer uma coisa dessas?

Começou a soluçar. A memória terrível queimava-lhe a mente como ferro em brasa. O som que o porrete havia feito quando o atingira, o modo como Balik cambaleara para trás, os outros golpes, o sangue, o ângulo pouco natural de sua cabeça.

O homem com quem trabalhara durante um ano e meio, escavando pacientemente as ruínas de Beklimot, caindo como uma fera abatida sob os seus golpes mortais. E a calma com que se aproximara dele, depois.

O alívio que sentira ao constatar que ele não a molestaria nunca mais. Aquela era talvez a parte mais chocante. Siferra disse a si mesma que o homem que matara não era Balik, mas um louco que se apossara do corpo de Balik e tentava violentá-la. Assim como ela não era Siferra no momento em que brandira o porrete, mas uma Siferra-fantasma, uma Siferra-pesadelo, uma sonâmbula que vagava pelos horrores da alvorada.

Agora, porém, a sanidade estava voltando. Agora, começava a sentir o impacto dos acontecimentos da noite. Não apenas da morte de Balik (recusava-se a se sentir culpada por isso), mas da morte de toda uma civilização.

Ouviu vozes à distância, vindas da direção do campus. Vozes roucas, bestiais, vozes de pessoas cujas mentes tinham sido destruídas pelas Estrelas. Procurou pelo porrete. Será que o deixara cair, também, durante a fuga? Não, não, ali estava. Apanhou-o e levantou-se.

A floresta parecia chamá-la. Internou-se no meio das árvores e decidiu correr enquanto seu fôlego agüentasse. Que mais havia a fazer? Correr. Correr.

31

Era o entardecer do terceiro dia depois do eclipse. Beenay desceu, mancando, a estrada secundária que levava ao Abrigo, caminhando devagar, cautelosamente, olhando em todas as direções. Havia três sóis brilhando no céu, e as Estrelas tinham voltado há muito tempo à sua obscuridade milenar.

Entretanto, o mundo havia mudado muito naqueles três dias. E Beenay, também.

Menos de um dia se havia passado desde que o jovem astrônomo recuperara as faculdades mentais. Não se recordava com clareza do que acontecera nos dois dias anteriores.

Aquele período para ele era apenas uma vaga lembrança, pontuada pelo nascimento e ocaso de Onos, com outros sóis passando pelo céu de vez em quando. Se alguém lhe dissesse que aquele era o quarto dia depois da catástrofe, ou o quinto ou o sexto, Beenay não poderia discordar.

Suas costas estavam doloridas, a perna esquerda estava toda arranhada, e o lado do rosto estava coberto de sangue coagulado. A dor generalizada que sentira nas primeiras horas dera lugar a dores localizadas que se irradiavam de uma dúzia de lugares diferentes no seu corpo.

Que acontecera? Onde estivera?

Lembrava-se da batalha no Observatório. Gostaria de poder esquecer. Aquela horda de indivíduos tresloucados, arrombando a porta… havia alguns Apóstolos com eles, mas a maioria eram pessoas normais, gente simples e generosa, que havia passado a vida fazendo as coisas simples e generosas, que mantinham a civilização funcionando. Agora, de repente, a civilização deixara de funcionar e todas aquelas pessoas comuns se haviam transformado, em um piscar de olhos, em maníacos homicidas.

O momento em que invadiram o Observatório tinha sido horrível. Destruíram as câmaras que acabavam de registrar o eclipse, arrancaram o tubo do grande solarscópio do teto do edifício, jogaram no chão os terminais de computador…

Athor subiu em uma cadeira, como um semideus, e ordenou-lhes que se retirassem! Era como tentar deter as vagas do oceano.

Beenay lembrava de implorar a Athor que fosse com ele, que fugisse enquanto ainda era possível. “ Largue-me, rapaz!”, dissera Athor, como se mal o conhecesse. “Tire as mãos de mim! “ Foi então que Beenay se deu conta de que o diretor perdera a razão, e que a pequena parte da mente de Athor que ainda funcionava racionalmente ansiava pela morte. O que restava de Athor havia perdido toda a vontade de sobreviver, de entrar no mundo inóspito do barbarismo pós-eclipse. Era o mais trágico de tudo, pensou Beenay: a destruição da vontade de viver de Athor, a rendição do grande astrônomo diante do holocausto da civilização.

Em seguida, a fuga do Observatório. Era a última coisa de que Beenay se lembrava claramente. Depois de ver Athor desaparecer no meio de um bando de invasores, ganhara o corredor, conseguira chegar à saída de emergência, chegara ao estacionamento nos fundos do prédio… Onde as Estrelas esperavam por ele com toda a sua terrível majestade. com extrema inocência, ou talvez uma autoconfiança que beirava a arrogância, Beenay havia subestimado totalmente o poder das Estrelas. No momento em que apareceram, estava ocupado demais com seus instrumentos para se deixar afetar, limitara-se a registrá-las como um fenômeno notável, a ser examinado com detalhes quando as circunstâncias permitissem, e continuara a fazer o que estava fazendo. Ali, porém, ao ar livre, a visão das Estrelas o atingiu com todo o seu impacto.

Ficou boquiaberto. A luz fria e implacável daqueles milhares de sóis desceu sobre ele, fazendo-o cair de joelhos. Arrastou-se pelo chão, trêmulo de medo, respirando com dificuldade. As mãos se crisparam, o coração começou a palpitar, o rosto afogueado ficou coberto de suor. Quando algum vestígio do cientista que havia sido o compeliu a voltar a cabeça para a colossal massa prateada, para que pudesse examiná-la, analisá-la e registrá-la, não conseguiu manter os olhos abertos por mais que um ou dois segundos.

Lembrava-se do esforço que fizera para observar as Estrelas, e também da derrota que sofrera. Depois disso, era tudo muito vago. Passara um dia ou dois vagando na floresta. Vozes à distância, risos, gente cantando. Um clarão avermelhado no horizonte, o cheiro de fumaça em toda parte. Ajoelhara-se para lavar o rosto em um regato. Lembrava-se do contato da água fria com a pele. Tinha sido cercado por um bando de pequenos animais. Não deviam ser selvagens, e, sim, animais de estimação que haviam fugido da cidade. Rugiam para ele como se quisessem fazê-lo em pedaços.

Arrancara frutinhas silvestres de um arbusto. Subira em uma árvore para colher frutos dourados, mas perdera o equilíbrio e desabara no chão, com um baque desastroso.

Levara algumas horas para se levantar.

Uma briga inesperada, na parte mais escura da floresta: punhos cerrados, cotovelos ossudos, pontapés a esmo, gritos bestiais, o rosto de um homem muito próximo do seu, os olhos vermelhos, os dois rolando pelo chão. Suas mãos encontrando uma pedra providencial, desferindo um único e certeiro golpe.

Horas. Dias. Um torpor febril.

Depois, na manhã do terceiro dia, a memória de quem ele era, do que acontecera. A preocupação com Raissta, sua companheira oficial. A lembrança de que prometera procurá-la no Abrigo logo que terminasse o trabalho no Observatório.

O Abrigo… onde ficava o Abrigo?

A mente de Beenay já estava recuperada o bastante para que ele se lembrasse de que o refúgio dos funcionários da universidade ficava a meio caminho entre o campus e a cidade de Saro, em uma região descampada. O velho acelerador de partículas do departamento de física ficava ali, em uma grande câmara subterrânea, que tinha sido abandonada alguns anos antes, quando construíram o novo centro de pesquisa em outro local. Não tinha sido difícil adaptar as instalações para que servissem de habitação temporária para algumas centenas de pessoas. Como o prédio do acelerador era todo fechado, por razões de segurança, não havia perigo de que fosse invadido por habitantes da cidade enlouquecidos por causa do eclipse.

Entretanto, para poder chegar ao Abrigo, Beenay tinha que descobrir primeiro onde ele estava. Fazia mais ou menos dois dias que vagava sem rumo, talvez mais. Podia estar em qualquer lugar.

Algum tempo depois, encontrou a saída da floresta, quase por acidente, e se viu no que havia sido um elegante bairro residencial. Estava deserto agora, mas os sinais de tumulto eram evidentes: carros abandonados no meio da rua, corpos estirados no chão, cercados por enxames de moscas. Não havia nenhum sinal de vida.

Passou a manhã caminhando por uma comprida rua de subúrbio, ladeada por casas enegrecidas e abandonadas, sem descobrir nenhum indício que revelasse a sua localização.

Ao meio-dia, quando Trey e Patru nasceram, entrou em uma casa que estava com a porta escancarada e se serviu da comida que ainda não havia estragado. Não saía água da torneira da cozinha, mas encontrou garrafas de água mineral no porão e bebeu à vontade. Usou a água que sobrou para se lavar.

À tarde, subiu por uma rua tortuosa até uma colina coberta por mansões, todas elas queimadas até os alicerces. Não restava nada da casa que ficava no alto da colina, a não ser uma varanda decorada com lajotas azuis e cor-de-rosa, que na certa devia ter sido muito bonita, mas agora estava cheia de detritos negros espalhados por sua superfície lustrosa. Chegou com dificuldade ao parapeito da varanda e olhou para o vale lá embaixo.

O ar estava parado. Não havia aviões no céu, nem automóveis nas ruas. Um silêncio sepulcral tomara conta de tudo. De repente, Beenay percebeu onde estava, e tudo começou a fazer sentido.

A universidade estava visível à esquerda, um aglomerado de construções de tijolo aparente, muitas delas agora manchadas de preto e algumas também destruídas. Mais além, em um promontório, ficava o Observatório. Beenay olhou para ele rapidamente e desviou os olhos, grato pelo fato de os estragos não serem visíveis àquela distância.

À direita, ao longe, estava a cidade de Saro, brilhando à luz do sol. A olho nu, parecia quase intacta. Beenay sabia, porém, que se dispusesse de um par de binóculos, poderia ver as janelas quebradas, as casas incendiadas, os destroços ainda fumegantes, todas as cicatrizes da conflagração provocada pelo Cair da Noite.

Bem abaixo de onde se encontrava, entre a cidade e o campus, estava a floresta na qual vagara durante os dois dias de delírio. O Abrigo ficava exatamente na outra extremidade da floresta, talvez tivesse passado, sem saber, quase pela porta.

A ideia de atravessar de novo a floresta não lhe agradava nem um pouco. com certeza, ainda estava cheia de loucos furiosos, animais famintos e outros perigos. Dali de cima, porém, podia ver a estrada que cortava a floresta e as ruas que levavam à estrada. Não saia das ruas pavimentadas, disse para si mesmo, e tudo estará bem.

Tinha razão. Onos ainda estava no céu quando Beenay acabou de atravessar a floresta e entrou na pequena estrada que levava ao Abrigo. Sombras da tarde começavam a aparecer. Chegou ao portão externo. Dali, uma estrada de terra levava ao segundo portão, que ficava a uma curta distância de um par de construções baixas e da entrada do Abrigo subterrâneo.

O portão externo, feito de tela, estava aberto quando ele chegou. Era uma visão inesperada e nada animadora. Será que a multidão tinha estado ali, também?

Entretanto, não havia nenhum sinal de destruição. Estava tudo no lugar. A única coisa estranha era o portão aberto. Atravessou-o e caminhou pela estrada de terra. O segundo portão, pelo menos, estava fechado.

— Beenay 25 — disse, diante do portão. Nada aconteceu. A câmara de televisão parecia estar funcionando (ele podia vê-la girar de um lado para outro), mas talvez os computadores que a operavam estivessem com defeito. Esperou mais um pouco. — Beenay 25 — repetiu, afinal. — Estou autorizado a entrar aqui.

De repente, lembrou-se de que não bastava dar o nome; havia também uma senha.

Qual era a senha? Uma sensação de pânico o invadiu. Não se lembrava da senha. Que absurdo! Chegar onde chegara e não poder entrar por causa de uma senha!

Qual era a senha?

Tinha alguma coisa a ver com a catástrofe, era isso.

— Eclipse? — Não, não era isso. Sua cabeça estava começando a doer. — Kalgash Dois? — Não, não soava bem. Dovim? Onos? Estrelas? Estava chegando perto. De repente, lembrou-se.

— Noite — disse, triunfante.

De novo, nada aconteceu, pelo menos pelo que lhe pareceu um longo tempo. Depois, o portão se abriu para admiti-lo.

Passou pelos prédios e se viu diante da porta oval de metal que dava para o Abrigo. A porta fazia um ângulo de 45 graus com a superfície. Outra câmara de televisão o examinava. Teria que se identificar de novo? Claro que sim.

— Beenay 25 — disse, preparando-se para outra longa demora.

Entretanto, a porta se abriu na mesma hora. Olhou para a antessala do Abrigo. Raissta 717 estava ali, à sua espera, a menos de dez metros de distância.

— Beenay! — exclamou, correndo em sua direção. — Oh, Beenay, Beenay…

Desde que haviam se tornado companheiros oficiais, há dois anos, nunca haviam passado mais que dezoito horas separados. Agora, não se viam há vários dias. Abraçou com força o corpo esguio da moça. Levou algum tempo para se dar conta de que estavam na entrada do Abrigo, que continuava aberta.

— Não devemos entrar e fechar a porta? — perguntou. — Pode ser que eu tenha sido seguido. Acho que não, mas…

— Não importa. Não há mais ninguém aqui.

— O quê?

— Foram todos embora ontem — explicou Raissta. Assim que Onos nasceu. Queriam que eu fosse também, mas eu disse que preferia ficar aqui à sua espera, e foi o que fiz.

Beenay olhou para ela, sem compreender. Percebia agora que a moça estava magra, pálida e abatida. O cabelo, antes lustroso, estava sujo e desgrenhado, o rosto estava muito pálido, os olhos vermelhos e inchados. Parecia ter envelhecido cinco ou dez anos.

— Raissta, há quanto tempo foi o eclipse?

— Hoje é o terceiro dia.

— Três dias. É mais ou menos o que eu calculava. — Sua voz ecoava estranhamente. Olhou para o Abrigo deserto atrás da moça. A grande câmara subterrânea era iluminada por lâmpadas no teto. Não viu ninguém até onde a vista podia alcançar. Não esperava por aquilo, em absoluto. O plano era que todos permanecessem escondidos até que o perigo passasse.

— Para onde eles foram? — perguntou à moça.

— Para Aragando — respondeu Raissta.

— Para o Parque Nacional de Aragando? Mas ele fica a centenas de quilômetros daqui! Que loucura foi essa? Por que saíram do Abrigo no segundo dia? Por que foram para um lugar que fica do outro lado do país? Você faz ideia de como estão as coisas lá fora, Raissta?

O Parque de Aragando era uma reserva natural, situada no sul do país, um lugar onde havia animais selvagens, um lugar onde as plantas nativas eram protegidas por lei. Beenay tinha visitado o parque uma vez, com o pai, quando era criança. Não dispunha de instalações modernas, mas apenas de picadas abertas no mato.

— Acharam que seria mais seguro se fossem logo para lá — disse ela.

— Mais seguro?

— Ficamos sabendo que todas as pessoas que não enlouqueceram, todas as pessoas que querem participar da reconstrução da sociedade, estão se reunindo em Aragando. Parece que milhares de pessoas estão indo para lá. Gente de outras universidades. Gente do governo, também.

— Muito bonito! Um bando de professores e políticos se reunindo no parque. Já que tudo mais neste planeta foi estragado, por que não estragar também nossa maior reserva natural?

— Isso não importa, Beenay. O importante é que o Parque Aragando está nas mãos de pessoas sérias, é um enclave de civilização no meio da loucura geral. E eles souberam a nosso respeito e pediram que nos juntássemos a eles. Houve uma votação, e uma maioria de dois para um foi a favor da partida imediata.

— Uma maioria de dois para um — repetiu Beenay, em tom sombrio. — Vocês não viram as Estrelas, mas mesmo assim ficaram loucos! Imagine! Deixar a segurança do Abrigo para um passeio de quinhentos quilômetros… ou são oitocentos?… no meio do caos que reina lá fora. Por que não esperaram um mês, ou seis meses, ou o que fosse? Vocês tinham comida e água para um ano.

— Dissemos a mesma coisa — explicou Raissta. — Mas o que eles nos disseram, os organizadores de Aragando, foi que era agora ou nunca mais. Se esperássemos algumas semanas, os bandos de loucos que existem lá fora se transformariam em exércitos organizados, comandados por líderes locais, e teríamos que enfrentá-los quando saíssemos. E se esperássemos mais que algumas semanas, os Apóstolos do Fogo provavelmente já teriam estabelecido um novo governo, com uma polícia e um exército, e seriamos presos no momento em que deixássemos o Abrigo. É agora ou nunca, disseram os organizadores de Aragando. Melhor enfrentar loucos isolados do que exércitos inteiros. De modo que resolvemos partir.

— Todos, menos você.

— Eu tinha que esperar você.

Beenay segurou a mão da moça.

— Como sabia que eu viria?

— Você disse que viria. Assim que acabasse de fotografar o eclipse. Você sempre cumpre o que promete, Beenay.

— E verdade — concordou Beenay, distraído. Ainda não se recuperara do choque de encontrar o Abrigo vazio. Seu plano era ficar ali por algum tempo, descansando, até que seu corpo machucado recuperasse as forças e sua mente abalada pela visão das Estrelas voltasse totalmente ao normal. Que deveriam fazer agora? Ficar ali, sozinhos, naquela imensa câmara de concreto? Ou tentar chegar a Aragando? A decisão de deixar o Abrigo fazia um certo sentido, pensou Beenay. Se realmente pretendiam se reunir aos outros em Aragando, era melhor fazê-lo já, enquanto o país se encontrava em total desordem, do que esperar até que novas organizações políticas, como os Apóstolos ou piratas locais, tornassem as viagens impossíveis. Mas estava frustrado por não encontrar os amigos, por não poder repousar por alguns dias na companhia de gente de confiança. Afinal, disse para a moça: — Você faz ideia do que está acontecendo lá fora, Raissta?

— Acompanhamos os acontecimentos pelo rádio, até as estações saírem do ar. Soubemos que a cidade foi totalmente destruída pelo fogo e a universidade também sofreu grandes danos. É verdade, não é?

Beenay assentiu.

— É, sim. Escapei do Observatório no momento em que foi invadido por uma multidão. Athor foi assassinado, tenho quase certeza. Todo o equipamento foi destruído… todas as nossas observações do eclipse foram perdidas…

— Oh, Beenay! Que pena!

— Consegui escapar pela porta dos fundos. No momento em que pus os pés do lado de fora, as Estrelas caíram sobre mim como uma pilha de tijolos. Não faz ideia de como é ver as Estrelas, Raissta. Ainda bem que não faz ideia. Passei dois dias fora de mim, vagando pela floresta. Não existem mais leis. É cada um por si. Posso ter matado um homem numa briga. Os animais domésticos estão soltos nas ruas, atacando as pessoas. Parece que também foram afetados pelas Estrelas. É assustador.

— Beenay, Beenay…

— Todas as casas foram queimadas. Esta manhã, estive em um bairro de luxo na colina ao sul da floresta… Ponto Onos, é este o nome?… e a destruição era indescritível. Não vi viva alma. Carros capotados, corpos nas ruas, as casas em ruínas… meu Deus, Raissta, que noite de loucura! E a loucura continua!

— Você parece bem — disse Raissta. — Um pouco abalado, mas não está…

— Louco? Não, mas estive. Desde o momento em que saí do Observatório até hoje de manhã. De repente, as coisas voltaram ao lugar dentro da minha cabeça. Acho que para a maioria das pessoas foi muito pior. Aquelas que não estavam preparadas emocionalmente, que simplesmente olharam para cima e… bam! Os sóis haviam sumido, as Estrelas estavam brilhando. Como disse o seu tio Sheerin, vai haver uma grande variedade de sintomas, desde a desorientação momentânea até a insanidade permanente.

— Sheerin estava com você no Observatório, não estava? — perguntou Raissta.

— Estava.

— E depois?

— Não sei. Estava ocupado supervisionando as observações do eclipse. Não sei o que foi feito dele. Não estava à vista quando o Observatório foi invadido.

— Talvez tenha escapado na confusão — sugeriu Raissta, com um leve sorriso. — O titio é assim… pode correr muito depressa, quando há algum problema. Eu ficaria muito triste se alguma coisa acontecesse com ele.

— Raissta, alguma coisa ruim aconteceu com o mundo inteiro. Talvez Athor estivesse certo. Melhor morrer de uma vez do que ter que conviver com o caos.

— Não deve falar assim, Beenay.

— Não. Não, não devo. — Ele se aproximou da moça e abraçou-a. — Raissta, que vamos fazer?

— Acabo de ter uma boa ideia.

Apesar de tudo, ele riu.

— Depois, quero dizer.

— Depois nós pensamos nisso — propôs Raissta.

32

Theremon jamais gostara muito do campo. Sempre se considerara um homem da cidade. Mato, árvores, ar fresco, espaços abertos… essas coisas não o incomodavam, propriamente, mas também não tinham nenhum atrativo especial para ele. Há muitos anos que sua vida orbitava em torno de três lugares: um pequeno apartamento de solteiro, o escritório da Crônica e o Clube Seis Sóis.

Agora, de repente, tinha que viver em uma floresta. O engraçado era que estava quase gostando da experiência. O que os moradores da cidade de Saro chamavam de “floresta” era, na verdade, um bosque que começava a sudeste da cidade e se estendia por uns vinte quilômetros ao longo da margem do rio Seppitan. No passado, a zona arborizada tinha sido muito maior, cortando a província em diagonal e chegando quase até a costa, mas a maior parte cedera lugar a agricultura, outra parte tinha sido loteada e transformada em distritos urbanos residenciais, e a universidade ficara com um bom quinhão, cinquenta anos antes, para a construção do novo campus. Com medo de ser engolida pela especulação imobiliária, a universidade começara então uma campanha para preservar o que restara da mata. E como há muitos anos a cidade de Saro costumava atender a todos os desejos da universidade, aquele trecho tinha sido transformado em um parque. Era ali que Theremon estava vivendo.

Os primeiros dois dias tinham sido muito desagradáveis. Seu cérebro ainda estava sofrendo os efeitos da visão das Estrelas, e não conseguiu formular nenhum plano coerente. O importante era permanecer vivo.

A cidade estava em chamas. Havia fumaça em toda parte, o ar estava insuportavelmente quente, do alto dava para ver o fogo nos telhados. De modo que voltar para a cidade estava fora de questão. Terminado o eclipse, quando o caos em sua mente começara a melhorar um pouco, o repórter simplesmente continuara a descer a colina até chegar à floresta.

Era óbvio que muitas outras pessoas tinham feito a mesma coisa. Alguns pareciam funcionários da universidade, outros deviam ser remanescentes do grupo que invadira o Observatório na noite do eclipse, e o resto, pensou Theremon, era provavelmente moradores dos subúrbios, expulsos de suas casas pelo fogo.

Todas as pessoas que via pareciam tão perturbadas mentalmente quanto ele. A maioria estava em muito pior estado, algumas totalmente insanas.

Ainda não haviam se organizado. Quase todos vagavam, solitários, pelas trilhas da floresta, ou formavam grupos de duas ou três pessoas; o maior bando que Theremon viu tinha oito pessoas, que, pela aparência e modo de vestir, deviam pertencer a mesma família.

Era horrível encontrar os que estavam realmente loucos, olhar para aqueles olhos vazios, aqueles rostos inexpressivos, aquelas roupas sujas de excrementos. Caminhavam pela floresta como zumbis, falando consigo mesmos, cantando, ajoelhando-se de vez em quando para arrancar tufos de capim e colocá-los na boca. Estavam por toda parte. O lugar se transformara em um grande asilo de loucos, pensou o repórter. Provavelmente, a mesma coisa tinha acontecido no mundo inteiro.

Os que tinham sido mais afetados pela visão das Estrelas eram os mais inofensivos, pelo menos para os outros. Estavam desligados demais da realidade para serem violentos, e sua coordenação motora tinha sido tão prejudicada que não poderiam machucar ninguém, mesmo que quisessem.

Havia outros, porém, que não estavam tão loucos, que à primeira vista poderiam passar até por pessoas normais, e que por isso mesmo eram muito mais perigosos.

Estes, como Theremon logo percebeu, podiam ser divididos em duas categorias. Na primeira, estavam aqueles que não queriam mal a ninguém, mas estavam apavorados com a possibilidade de que a Escuridão voltasse, e com ela as Estrelas. Eram eles que provocavam os incêndios.

Provavelmente, eram pessoas que tinham uma vida pacata, organizada, antes da catástrofe: gente de família, trabalhadora, simpática. Enquanto Onos estava no céu, sentiam-se muito bem, mas no momento em que o sol principal começava a se pôr, o medo da Escuridão era mais forte e olhavam em torno em busca de alguma coisa para queimar. Qualquer coisa. Dois ou três dos outros sóis podiam estar no céu, mas a luz desses sóis menores parecia não ser suficiente para aplacar o medo da Escuridão que essas pessoas sentiam.

Estas pessoas tinham sido as responsáveis pela destruição da cidade de Saro. Tinham sido elas que, em desespero, haviam queimado livros, papéis, móveis, os telhados das casas. Agora, expulsas para a floresta pelo holocausto na cidade, estavam tentando queimá-la também. Isso, porém, era bem mais difícil. A floresta era densa e úmida, cortada por vários regatos que desaguavam em um rio que passava nas proximidades. Os galhos verdes não pegavam fogo com facilidade. Quanto aos galhos secos e folhas caídas que forravam o solo, tinham sido encharcados pelos recentes temporais. Os poucos materiais combustíveis foram usados para fazer pequenas fogueiras, mas, no segundo dia, o suprimento desses materiais já começava a escassear.

Assim, os incendiários, prejudicados pelas condições da floresta e pelo estado de confusão em que se encontravam, não tinham conseguido fazer muita coisa até o momento.

Mesmo assim, haviam ateado alguns incêndios de bom tamanho na floresta, que, felizmente, haviam se extinguido em poucas horas por falta de combustível. Mas se houvesse alguns dias de tempo quente e sem chuva, eles poderiam queimar a floresta inteira, como haviam feito com a cidade de Saro.

Para Theremon, o segundo grupo de pessoas levemente desequilibradas que vagavam na floresta constituía uma ameaça bem mais urgente. Eram aqueles que se haviam libertado de todas as barreiras sociais. Eram os bandidos, os assaltantes, os psicopatas, os maníacos homicidas: aqueles que se esgueiravam com facas desembainhadas pelas veredas silenciosas da floresta, atacando quando sentiam vontade, roubando o que queriam, matando os que tinham a desventura de irritá-los.

Como todos estavam com um brilho estranho nos olhos, fosse de cansaço, de tristeza ou de loucura, era difícil avaliar, apenas olhando para uma pessoa, se ela era perigosa ou não. Ao cruzar com alguém, não havia meio de saber se ela pertencia à classe dos loucos deprimidos ou abobalhados e, portanto, inofensivos, ou do tipo que estava possuído por uma fúria assassina e, portanto, seria capaz de atacar, sem nenhuma razão, a primeira pessoa que encontrasse.

Assim, era preciso tomar cuidado com encontros fortuitos na floresta. Qualquer estranho podia ser uma ameaça. Você podia estar conversando amigavelmente com alguém sobre o que ambos haviam sentido na noite do eclipse, e, de repente, ele se ofendia com algum comentário inocente, se interessava por uma peça do seu vestuário ou simplesmente chegava à conclusão de que não ia com a sua cara… e, soltando um rugido animal, pulava no seu pescoço, com uma fúria insana.

Alguns desses indivíduos, com certeza, já eram criminosos antes do eclipse. O colapso da sociedade apenas os deixara livres para agir. Outros, porém, pensava o jornalista, deviam ter sido cidadãos pacatos até suas mentes serem afetadas pelas Estrelas. Então, de repente, perderam todas as inibições da vida civilizada. Esqueceram as próprias regras que tomavam possível a vida civilizada. Eram como crianças pequenas de novo, egoístas, preocupadas apenas com as próprias necessidades… mas com a força de adultos e a persistência dos insanos.

A única saída era evitar todas as pessoas suspeitas. A única saída era rezar para que os maníacos homicidas se aniquilassem mutuamente nos primeiros dias, deixando o mundo seguro para os menos predatórios.

Theremon teve três encontros com os loucos desta segunda terrível categoria nos primeiros dois dias. O primeiro, um homem alto e magro, com um sorriso diabólico, que estava parado na margem de um regato que Theremon pretendia atravessar, exigiu que o jornalista pagasse pedágio.

— Seus sapatos, digamos. Ou que tal o relógio?

— Que tal você sair da frente? — sugeriu Theremon. Foi o suficiente para deixar o homem possesso.

Brandindo um porrete que Theremon não havia notado até o momento, ele soltou uma espécie de grito de guerra e investiu sobre o repórter. Não havia tempo para recuar, tudo que Theremon pôde fazer foi se abaixar no momento em que o homem desferia um golpe violentíssimo na direção de sua cabeça.

Theremon ouviu o porrete passar zunindo a milímetros de sua cabeça. A arma se chocou com uma árvore. O impacto foi tão forte que machucou o braço do atacante, e ele ofegou em pânico, enquanto o porrete escapava de seus dedos nervosos.

Antes que o homem tivesse tempo de se recuperar, o jornalista torceu-lhe o braço machucado com toda a força, fazendo-o cair de joelhos, gemendo. Theremon empurrou a cabeça do homem até mergulhá-la no regato e esperou. Esperou. Esperou.

Como seria simples, pensou Theremon, admirado, manter a cabeça do homem debaixo d’água até que ele se afogasse. Na verdade, uma parte do seu ser era francamente a favor da ideia. Ele teria matado você sem pestanejar. Livre-se dele. Que vai fazer, se o soltar? Brigar com ele de novo? E se ele começar a segui-lo para tentar vingar-se?

Acabe o serviço, Theremon. Acabe o serviço.

Era uma forte tentação. Entretanto, apenas uma parte de Theremon se havia adaptado à nova moralidade da selva.

A outra parte se sentia repugnada com a ideia. Afinal, ele soltou o homem e recuou. Apanhou o porrete e ficou esperando. O homem, porém, parecia ter desistido totalmente da briga. Endireitou o corpo, tossindo, com a água escorrendo da boca e das narinas, e sentou-se, trêmulo, na margem do córrego, lutando para respirar. Olhou para o repórter com uma mistura de raiva e medo, mas não fez menção de se levantar, e muito menos de atacá-lo.

Theremon atravessou o regato e se internou na floresta, andando rápido, sem olhar para trás.

Os efeitos do que quase havia feito levaram quase dez minutos para se manifestar. De repente, parou, suando frio, e foi sacudido por um ataque de vômitos tão violento que levou muito tempo para seguir caminho.

Naquela mesma tarde, descobriu que suas andanças o tinham levado à orla da floresta. Quando olhou por entre as árvores, viu uma estrada, totalmente sem movimento, e, do outro lado da estrada, as ruínas de uma construção de tijolo, no meio de uma praça.

Reconheceu o edifício. Era o Panteão, a Catedral de Todos os Deuses.

Não havia restado muita coisa. Atravessou a estrada e ficou olhando para os destroços, admirado. Parecia que o incêndio tinha começado no coração do edifício (que é que eles haviam feito, posto fogo nos bancos da igreja?) e subido pela torre estreita que ficava acima do altar, consumindo as vigas de madeira. A torre havia desabado, levando com ela as paredes. Os tijolos estavam espalhados por toda a praça. Theremon viu alguns cadáveres no meio dos escombros.

O repórter nunca tinha sido um homem religioso. Como todo mundo, às vezes dizia coisas como “Meu Deus” ou “Céus!” ou “Deus do céu!”, mas a ideia de que pudesse haver um deus, ou vários deuses, sempre lhe parecera totalmente irrelevante. A religião, para ele, era uma coisa arcaica. Uma vez ou outra, entrava em uma igreja para assistir ao casamento de um amigo (tão incrédulo quanto ele, é claro) ou para fazer a cobertura de algum rito oficial para a Crônica, mas não entrava em uma igreja para rezar desde a sua crisma, quando tinha dez anos de idade.

Mesmo assim, a visão da catedral destruída o deixou profundamente abalado. Estivera presente à inauguração da igreja, fazia uns doze anos, quando era um repórter novato. Sabia quantos milhões de créditos custara aquele edifício, conhecia as admiráveis obras de arte que abrigava; a execução do Hino aos Deuses, de Ghissimal, naquela majestosa nave, o deixara arrepiado. Embora não acreditasse no sobrenatural, tinha que admitir que se havia um lugar em Kalgash que os deuses frequentariam, este lugar era a catedral.

E os deuses haviam deixado que aquele lugar fosse destruído! Os deuses haviam enviado as Estrelas, sabendo que a loucura provocada por elas causaria a destruição do Panteão!

O que significava aquilo? Que era impossível compreender os desígnios dos deuses… supondo, é claro, que eles existissem?

— Socorro — chamou uma voz.

O débil apelo interrompeu a meditação de Theremon. Ele olhou em torno.

— Aqui. Aqui.

À esquerda. Isso mesmo. Theremon viu um homem da veste dourada, iluminada pelo sol. Um homem meio enterrado nos escombros, perto da lateral da igreja. Um dos sacerdotes, a julgar pelos trajes. Estava preso pela cintura por uma pesada viga e gesticulava para o repórter com visível esforço, Theremon caminhou naquela direção. Antes, porém, que tivesse tempo de dar mais do que uma dúzia de passos, uma segunda pessoa apareceu nos fundos da igreja e se aproximou. Era um homem magro, que pulava por cima dos tijolos com muita agilidade e corria na direção do padre.

Ótimo, pensou Theremon. Juntos, talvez consigamos levantar aquela viga.

Entretanto, quando o repórter chegou a uns dez metros de distância, parou, horrorizado. O homenzinho ágil tinha alcançado primeiro o local onde estava o sacerdote.

Curvando-se, cortou-lhe a garganta com uma pequena faca, tão casualmente como se estivesse abrindo um envelope, depois, começou a cortar as cordas que seguravam a rica veste no lugar.

Levantou os olhos para encarar Theremon. Seus olhos eram coléricos e medonhos.

— É minha! — rugiu, como um animal selvagem. — Minha! — repetiu, mostrando a faca.

O jornalista estremeceu. Ficou parado onde estava por alguns momentos, observando, fascinado, a forma eficiente como o saqueador estava despindo o corpo do sacerdote.

Depois, com tristeza, deu meia-volta e se encaminhou para a estrada. Não havia mais nada a fazer.

Naquela noite, quando Tano, Sitha e Dovim iluminaram o céu com sua luz melancólica, Theremon se permitiu umas poucas horas de sono em uma moita, entretanto, acordou várias vezes, imaginando que algum maníaco com uma faca estava se aproximando furtivamente para lhe roubar os sapatos. Perdeu o sono muito antes de Onos nascer. Sentiu-se quase surpreso por ainda estar vivo quando a manhã finalmente chegou.

Era meio-dia quando teve seu terceiro encontro com um membro da nova classe de assassinos. Desta vez, estava atravessando um descampado, perto de um dos braços do rio, quando viu dois homens sentados à beira da trilha, jogando dados. Pareciam calmos e tranquilos. Quando Theremon chegou mais perto, porém, percebeu que havia começado uma discussão. De repente, um dos homens pegou uma faca que estava sobre o cobertor a seu lado e cravou-a no peito do outro homem, ferindo-o mortalmente. Depois, olhou para Theremon e sorriu.

— Ele estava roubando. Sabe como é. Isso me deixa furioso. Detesto quando alguém tenta me roubar no jogo. Parecia que não havia feito nada de mais. Sacudiu os dados e perguntou: — Quer jogar comigo?

— Desculpe — disse Theremon, no tom mais casual que conseguiu. — Estou procurando minha namorada. Continuou a andar.

— Ora, você pode procurar depois! Vamos jogar!

— Acho que ela está logo ali — disse o repórter, afastando-se sem olhar para trás.

Depois disso, passou a tomar mais cuidado em suas andanças pela floresta. Encontrou um recanto protegido em uma clareira aparentemente deserta e construiu um pequeno abrigo. Havia um arbusto próximo carregado de frutinhas vermelhas, comestíveis, e quando sacudia a árvore ao lado do abrigo, caíam nozes amarelas, arredondadas, que continham sementes escuras muito saborosas.

Examinou um regato que passava logo adiante, na esperança de encontrar algum animal aquático que pudesse comer; entretanto, não havia nada a não ser peixinhos minúsculos, e Theremon se deu conta que mesmo que conseguisse capturá-los, teria que comê-los crus, já que não dispunha nem de combustível nem de fósforos para acender uma fogueira.

Viver de sementes e frutinhas não era a ideia que o jornalista fazia de uma boa vida, mas poderia sobreviver por alguns dias com este regime. A sua cintura já estava visivelmente mais estreita, talvez fosse o único efeito favorável de toda aquela calamidade. Era melhor continuar escondido ali até que as coisas se acalmassem um pouco.

Estava razoavelmente seguro de que as coisas iriam se acalmar. Mais cedo ou mais tarde, as pessoas recobrariam a razão. Pelo menos, era o que Theremon esperava.

Sabia que ele próprio levara algum tempo para se refazer do choque causado pela visão das Estrelas.

A cada dia que passava, sentia-se mais estável, mais seguro. Tinha a impressão de que era quase o mesmo de antes, ainda um pouco abalado, talvez, um pouco nervoso, mas isso era natural. Pelo menos, sentia-se mentalmente são. Sabia que provavelmente tinha sido menos afetado do que a maioria durante o eclipse, por ser uma pessoa mais adaptável, mais equilibrada, mais capaz de suportar o terrível impacto daquela experiência devastadora. Entretanto, talvez os outros também acabassem voltando ao normal, mesmo àqueles que tinham sido mais profundamente afetados. Depois disso, seria seguro sair do esconderijo e ver o que era possível fazer para reconstruir o mundo.

O melhor, no momento, disse para si mesmo, é ficar onde estou, para não ser morto por um daqueles psicopatas que estão vagando pela floresta. Eles que se matem. Daqui a alguns dias, posso dar uma olhada por aí, com muito cuidado, para ver o que está acontecendo. Não era um plano particularmente corajoso, mas parecia ser o mais sensato.

Imaginou o que teria acontecido aos outros que estavam no Observatório com ele no momento do eclipse. Beenay, Sheerin, Athor. Siferra.

Especialmente Siferra.

De tempos em tempos, Theremon pensava em sair à procura da arqueóloga. A ideia lhe agradava muito. Durante as longas horas de solidão, pensava em como seria bom encontrá-la em algum lugar da floresta. Pensava nos dois, viajando juntos naquele mundo transformado e assustador, formando uma aliança para proteção mútua…

Sentira-se atraído por ela desde o primeiro dia, é claro. Não que isso adiantasse alguma coisa. Bonita e elegante como era, parecia ser uma mulher autossuficiente, sem necessidade de companhia masculina ou feminina. Conseguira sair com ela algumas vezes, mas ela sempre o mantivera a uma distância segura, de forma muito tranquila e eficiente.

Theremon tinha experiência suficiente com o sexo oposto para saber que não havia lábia capaz de romper uma barreira mantida com tanta determinação. Há muito tempo chegara à conclusão de que nenhuma mulher que valesse a pena se deixava seduzir; você podia acenar com a possibilidade, mas a sedução, em última análise, ficava por conta da mulher, e se ela não estivesse afim, não havia nada que se pudesse fazer. No caso de Siferra, as coisas há muito tempo estavam caminhando na direção errada. Ela se voltara contra ele (e com certa razão, tinha que admitir) depois que começara a ridicularizar as previsões de Athor e seus companheiros.

Nos últimos dias antes do eclipse, tivera a impressão de que Siferra estava fraquejando, de que apesar de tudo ainda se sentia atraída por ele. Se não fosse assim, por que o convidaria, desobedecendo às ordens expressas de Athor, para comparecer ao Observatório na noite do eclipse? Naquela noite, por alguns momentos, chegara a parecer que alguma coisa entre eles estava para desabrochar.

Então vieram a Escuridão, as Estrelas, a multidão, o caos. Uma confusão total. Mas se conseguisse encontrá-la, quem sabe se…

Nós faremos uma boa dupla, pensou. Somos ambos teimosos, competentes, vencedores. Seja qual for o tipo de civilização que está para surgir, haverá um lugar para nós.

E se houve uma pequena barreira psicológica nos separando no passado, certamente ela agora perdeu toda a importância. Estamos em um novo mundo, no qual novas atitudes são necessárias para a sobrevivência.

Mas como encontrar Siferra? Pelo que ele sabia, não havia nenhum circuito de comunicações funcionando. A arqueóloga era uma entre milhões de pessoas vagando nas vizinhanças da cidade. Só a floresta devia abrigar no momento uma população de milhares de pessoas; entretanto, não tinha nenhuma razão para acreditar que Siferra estivesse na floresta. Ela podia estar a cem quilômetros dali. Podia estar morta. Era inútil procurar por Siferra; pior do que tentar encontrar a proverbial agulha no palheiro. Aquele palheiro era do tamanho de vários municípios, e a agulha podia estar se afastando dali naquele exato momento. Apenas por uma incrível coincidência voltaria a ver Siferra ou qualquer outra pessoa conhecida.

Quanto mais Theremon pensava a respeito da probabilidade de encontrar a moça, porém, menos impossível lhe parecia a tarefa. Depois de algum tempo, começou a achar que talvez não fosse tão difícil assim.

Talvez esse otimismo fosse consequência de sua vida reclusa. Não tinha nada a fazer, a não ser passar horas sentado à beira do regato, olhando os peixes passarem… e pensando. E à medida que analisava os fatos, a busca de Siferra foi passando de inútil para difícil, de difícil para complexa, de complexa para trabalhosa e de trabalhosa para relativamente simples.

Tudo que tinha a fazer, disse para si mesmo, era voltar para a floresta e solicitar a ajuda dos que não tinham sido muito afetados pela Escuridão. Dizer a eles quem estava tentando encontrar, fornecer-lhes uma descrição da moça. Espalhar a notícia. Usar os seus dotes jornalísticos. “Meu nome é Theremon 762” diria. “Vocês sabem, o repórter da Crônica. Ajudem-me e serão bem recompensados. Querem aparecer no jornal? Querem ficar famosos? Posso ajudá-los. O jornal não está sendo publicado no momento, mas isso não importa. Mais cedo ou mais tarde, ele vai sair de novo, e eu vou ter minha coluna de volta, e vocês vão aparecer na primeira página. Palavra de honra. É só me ajudarem a localizar a mulher que estou procurando e…”

— Theremon?

Uma voz familiar, aguda, alegre. Parou onde estava, semicerrou os olhos para se proteger da claridade do sol do meio-dia, que se filtrava através das árvores, e olhou em todas as direções, tentando localizar quem havia falado.

Estava andando há duas horas, à procura de pessoas que se dispusessem a ajudar o famoso Theremon 762, repórter da Crônica. Até o momento, porém, encontrara apenas seis pessoas. Duas delas saíram correndo no momento em que o viram. A terceira ficou sentada onde estava, cantando baixinho e olhando para os dedões dos pés descalços.

Outra, agachada na forquilha de uma árvore, esfregava metodicamente duas facas de cozinha. As outras duas se limitaram a olhar para ele enquanto explicava o que queria, uma pareceu não haver compreendido absolutamente nada, e a outra começou a rir às gargalhadas. Era inútil esperar ajuda de qualquer uma delas. Agora, parecia que alguém o havia encontrado.

— Theremon? Estou aqui. Estou aqui, Theremon. Aqui. Não está me vendo, homem? Aqui!

33

Theremon olhou para a esquerda, onde havia uma moita de arbustos com folhas em forma de guarda-chuva. A princípio, não viu nada. De repente, as folhas se separaram e um homem gorducho apareceu.

— Sheerin? — exclamou, surpreso.

— Estou vendo que, pelo menos, você não esqueceu o meu nome.

O psicólogo estava um pouco mais magro e se vestia de forma incongruente, com um macacão e um suéter rasgado. Uma machadinha com a lâmina rachada pendia casualmente de sua mão esquerda. Aquilo era talvez a coisa mais incongruente de todas: Sheerin carregando uma machadinha. Não ficaria mais admirado se o visse com duas cabeças ou com dois pares de braços.

— Como tem passado, Theremon? — disse Sheerin. — Puxa, você está parecendo um mendigo, e não faz nem uma semana! Mas acho que o meu aspecto também não deve estar essas coisas. — Olhou para o próprio abdome. — Já me viu tão magro? É o que uma dieta de folhas e frutinhas pode fazer!

— Ainda falta muito para alguém chamar você de magro — disse Theremon. — Mas que perdeu peso, perdeu. Como foi que me encontrou?

— Deixando de procurá-lo. É a única maneira, já que o caos é total. Estive no Abrigo, mas não havia ninguém lá. Agora, vou para o Parque Aragando. Comecei a atravessar a floresta e deparei com você. — O psicólogo se aproximou, estendendo a mão. — Puxa, Theremon, é uma alegria ver um rosto amigo! Você continua meu amigo, não é? Ou se transformou em um maníaco homicida?

— Acho que não.

— Nesta cidade existem mais malucos por metro quadrado do que em qualquer manicômio. — Sheerin sacudiu a cabeça e suspirou. — Céus! Nunca sonhei que seria tão ruim. Mesmo com toda a minha experiência profissional. Pensei que seria ruim, sim, muito ruim, mas não tão ruim.

— Você previu a loucura universal — lembrou Theremon. — Eu estava lá. Ouvi o que você disse. Você previu o colapso total da civilização.

— Uma coisa é prever um fenômeno, Theremon, outra é estar bem no meio dele. É uma coisa chocante, para um acadêmico como eu, ver uma teoria abstrata se transformar em realidade. Minha atitude era tão superior, tão despreocupada… “Amanhã, não haverá uma única cidade intacta em Kalgash”, eu disse, e, para mim, eram apenas palavras. Sério. Era um simples exercício filosófico. Algo totalmente abstrato. “O fim do mundo como o conhecemos.” — Sheerin estremeceu. — Tudo aconteceu exatamente como eu havia previsto. Mas acho que eu mesmo não acreditava nas minhas previsões, até que o mundo desabou em minha volta.

— Foram as Estrelas — disse Theremon. — Você não contava com as Estrelas. Foram elas que causaram o maior estrago. Talvez tivéssemos suportado a Escuridão, a maioria de nós, sem ficarmos totalmente loucos. Um pouco abalados, talvez. Mas as Estrelas… as Estrelas…

— Como foi o efeito sobre você?

— No princípio, senti-me desnorteado. Agora estou melhor. E você?

— Fiquei escondido no porão do Observatório durante todo o eclipse. Praticamente não fui afetado. Quando saí, no dia seguinte, o Observatório estava de pernas para o ar. Você nem imagina.

— Maldito Folimun! — exclamou Theremon. — Os Apóstolos…

— Eles despejaram gasolina no fogo, é verdade. Mas o fogo estava lá…

— E o pessoal do Observatório? Athor, Beenay e os outros? Siferra?

— Não vi nenhum deles. Mas os corpos deles também não estavam lá. Talvez tenham escapado. A única pessoa que encontrei foi Yimot. Lembra-se dele? Um dos alunos, aquele que era muito alto e desajeitado? Ele também se escondeu.

— O rosto de Sheerin assumiu uma expressão de tristeza. Depois do eclipse, passamos alguns dias juntos… até que ele foi assassinado.

— Assassinado?

— Por uma garotinha de dez, doze anos no máximo com uma faca. Uma menina muito simpática. Aproximou-se dele, rindo, e esfaqueou-o de surpresa. Depois, foi embora, rindo mais ainda.

— Deuses!

— Os deuses não estão mais nos ouvindo, Theremon. Se é que um dia nos ouviram.

— Acho que tem razão. Onde passou os últimos dias, Sheerin?

Seu olhar era vago.

— Aqui. Ali. Primeiro fui ao meu apartamento, mas todo o conjunto residencial tinha sido incendiado. Não sobrou nada. Aquela noite, dormi ali mesmo, no meio das ruínas. Yimot estava comigo. No dia seguinte, resolvemos ir até o Abrigo, mas não havia meio de chegar lá. A estrada estava bloqueada. Havia incêndios em toda parte.

Nos lugares onde o fogo já havia apagado, havia montanhas intransponíveis de destroços. Parecia uma zona de guerra. Assim, viemos para a floresta, com a intenção de pegar a Estrada do Arvoredo e tentar chegar ao Abrigo desta forma. Foi então que a menina matou Yimot. Muitos loucos devem ter vindo para cá.

— Loucos e não loucos — disse Theremon. — A floresta é mais difícil de pegar fogo do que a cidade. Eu ouvi você dizer que quando finalmente chegou ao Abrigo não encontrou ninguém?

— Isso mesmo. Cheguei lá ontem à tarde. O portão de fora e o portão de dentro estavam escancarados. A porta do Abrigo estava destrancada. Não havia ninguém no interior. Entretanto, havia um bilhete de Beenay pregado na porta.

— De Beenay! Então ele conseguiu chegar ao Abrigo!

— Parece que sim. Um dia ou dois antes de mim, provavelmente. O bilhete dizia que todos tinham decidido deixar o Abrigo e ir para o Parque Aragando, onde algumas pessoas dos distritos do sul estavam tentando formar um governo temporário. Quando ele chegou ao Abrigo, só encontrou minha sobrinha Raissta, que devia estar à sua espera. Agora eles foram para Aragando. Vou para lá, também. Minha amiga Liliath estava no Abrigo, você sabe. Deve estar a caminho de Aragando, com os outros.

— Parece loucura — disse Theremon. — Eles estavam seguros no Abrigo. Por que haveriam de enfrentar o caos aqui de fora e uma marcha de centenas de quilômetros para chegar a Aragando?

— Não sei. Devem ter tido um bom motivo. Seja como for, nós não temos muita escolha, não é? Todo mundo que não perdeu a razão está indo para lá. Podemos ficar aqui e esperar que algum maluco faça conosco o que aquela garotinha fez com Yimot, ou podemos tentar chegar a Aragando. Se ficarmos aqui, estaremos perdidos, mais cedo ou mais tarde. Se chegarmos a Aragando, talvez fique tudo bem.

— Tem alguma notícia de Siferra? — perguntou Theremon.

— Não. Por quê?

— Gostaria de encontrá-la.

— Deve ter ido para Aragando, também. Se ela se encontrou com Beenay, ele contou a ela para onde todos estão indo e…

— Tem alguma razão para pensar que isso aconteceu?

— É apenas um palpite.

— Pois o meu palpite é que ela ainda está aqui. Vou tentar encontrá-la.

— Vai ser muito difícil…

— Você me encontrou, não encontrou?

— Totalmente por acaso. A probabilidade de que você consiga localizá-la da mesma forma…

— É relativamente alta — disse Theremon. — Ou pelo menos é o que eu gostaria de acreditar. Seja como for, estou disposto a tentar. Posso ir para Aragando mais tarde, com Siferra.

Sheerin olhou para ele com uma expressão engraçada, mas não disse nada.

— Acha que estou maluco? — perguntou Theremon. — Talvez eu esteja mesmo.

— Eu não disse isso. Só acho que está arriscando o pescoço por nada. Este lugar está se transformando em uma selva pré-histórica. Pelo que vi, as coisas só tendem a piorar. Vamos juntos para o sul, Theremon. Podemos estar fora da cidade em duas ou três horas, e a estrada para Aragando é…

— Primeiro vou procurar Siferra — declarou Theremon, com obstinação.

— Esqueça Siferra.

— Não posso. Vou ficar aqui e procurá-la.

Sheerin deu de ombros.

— Pois fique. Eu vou dar o fora. Vi aquela menininha matar Yimot diante dos meus olhos, a menos de duzentos metros daqui. Este lugar é perigoso demais para o meu gosto.

— E acha que fazer uma viagem a pé de quinhentos ou seiscentos quilômetros não é perigoso?

O psicólogo sopesou a machadinha.

— Pelo menos, tenho isto para me defender. Theremon teve que fazer força para não rir. Sheerin era uma pessoa tão absurdamente pacífica, que era impossível imaginá-lo usando uma arma como aquela, mesmo que em legítima defesa. Depois de um momento, disse:

— Desejo-lhe boa sorte.

— Vai mesmo ficar?

— Até encontrar Siferra.

Sheerin olhou para ele com uma expressão triste.

— Neste caso, fique com a boa sorte que acaba de me oferecer. Acho que vai precisar mais dela do que eu.

Deu as costas e afastou-se sem dizer mais nada.

34

Durante três dias (ou talvez quatro; era difícil calcular direito a passagem do tempo), Siferra caminhou pela floresta em direção ao sul. Não tinha nenhum plano em mente, a não ser se manter viva.

Não adiantava tentar chegar ao apartamento. A cidade ainda estava em chamas. Uma grossa nuvem de fumaça cobria os edifícios, e, de vez em quando, uma língua sinuosa de fogo subia na direção do céu. Tinha a impressão de que novos focos de incêndio estavam surgindo a cada dia, o que queria dizer que muitos continuavam loucos.

Ela própria sentia que estava voltando gradualmente ao normal. Seus pensamentos ficavam mais claros a cada momento, como se estivesse despertando de alguma febre terrível. Tinha consciência de que ainda não era totalmente ela mesma; encontrava ainda alguma dificuldade para organizar as ideias. Mas que estava melhorando, disso não havia a menor dúvida.

Aparentemente, muitos dos outros moradores da floresta não estavam melhorando nem um pouco. Embora Siferra tentasse se manter afastada, encontrava pessoas de tempos em tempos, e quase todas pareciam em péssimo estado: desgrenhadas, soluçando, gemendo, rindo loucamente, rolando no chão. Se Sheerin estava certo, algumas haviam sofrido um trauma irreversível por ocasião do eclipse. Uma boa parcela da população parecia ter revertido ao barbarismo ou pior, pensou Siferra. Deviam estar pondo fogo nas coisas só para se divertir. Ou matando pessoas pela mesma razão.

Por isso, caminhava com cuidado. Sem nenhum destino em particular, atravessou a floresta mais ou menos de norte para sul, acampando sempre que encontrava água para beber.

O porrete que havia pego na noite do eclipse estava sempre ao alcance da mão. Comia qualquer coisa que não lhe parecesse venenosa: sementes, frutinhas, até mesmo folhas e casca de árvore. Não era uma dieta muito nutritiva. Sabia que era forte o suficiente para resistir a uma semana ou duas de privações, mas depois disso começaria a sofrer. Já podia sentir as reservas de gordura serem consumidas e a resistência física diminuir. E o suprimento de frutas também estava diminuindo rapidamente, à medida que eram colhidas pelos milhares de novos habitantes da floresta.

Então, no que acreditava ser o quarto dia, Siferra lembrou-se do Abrigo.

Enrubesceu ao se dar conta de que não precisava ter passado a semana inteira como se fosse uma mulher das cavernas. Naturalmente! Como pudera ser tão estúpida? A poucos quilômetros dali, naquele exato momento, centenas de universitários estavam alojados com toda a segurança no velho edifício do acelerador de partículas, bebendo água mineral e comendo comida enlatada que eles haviam estocado nos últimos meses. Como era ridículo ficar vagando por aquela floresta cheia de malucos, de estômago vazio, olhando, com a boca cheia d’água, para as pequenas criaturas da floresta que cabriolavam, fora do seu alcance, nos galhos das árvores!

Iria para o Abrigo. Teriam que deixá-la entrar. Só podia ser culpa da desorientação causada pelas estrelas, disse para si mesma, o fato de ter levado tanto tempo para se lembrar do Abrigo.

Era uma pena, pensou, a ideia não ter lhe ocorrido antes. Agora percebia que havia passado os últimos dias viajando exatamente na direção errada.

Bem à sua frente, estavam as colinas que demarcavam a extremidade sul da floresta. Levantando os olhos, podia ver os restos calcinados do luxuoso bairro de Ponto Onos, no alto de uma das colinas. O Abrigo, se a memória não lhe falhava, ficava do lado oposto, a meio caminho entre o campus e a cidade de Saro, na estrada que contornava o lado norte da floresta.

Levou um dia e meio para chegar à extremidade norte da floresta. Durante a viagem, teve que usar o porrete duas vezes para se defender. Além disso, por três vezes sustentou os olhares de rapazes que avaliavam se valia a pena atacá-la ou não. E uma vez surpreendeu um grupo de cinco homens muito magros, de olhos esgazeados, armados com facas, que espreitavam uns aos outros em um círculo, como dançarinos envolvidos em um estranho ritual arcaico. Saiu dali o mais depressa que pôde.

Finalmente, deparou com a larga via expressa que era a Estrada da Universidade, bem à sua frente, logo além do limite da floresta. Era dessa estrada que saía a discreta estrada secundária que levava ao Abrigo.

Sim, ali estava. Escondida, insignificante, com os dois acostamentos tomados por moitas de capim.

Era fim de tarde. Onos estava quase se pondo, e a luz fantasmagórica de Tano e Sitha projetava sombras na terra que davam ao dia uma aparência de inverno, embora a temperatura estivesse amena. O pequeno ponto vermelho que era Dovim estava alto no céu, muito distante.

Siferra imaginou por onde andaria o invisível Kalgash Dois. Depois de fazer o seu trabalho de destruição, seguira caminho e devia estar a milhões de quilômetros dali, em um ponto qualquer da órbita alongada, que só o traria de volta depois de passados 2049 anos. Melhor seria, pensou Siferra, se ele não voltasse nunca mais.

Um cartaz apareceu na estrada, à sua frente:

PROPRIEDADE PARTICULAR

ENTRADA PROIBIDA UNIVERSIDADE DE SARO

Depois, um segundo cartaz, em letras vermelhas:

PERIGO !!!

LABORATÓRIO DE ALTAS ENERGIAS

NÃO ENTRE

Ótimo. Devia estar no caminho certo.

Siferra nunca estivera no Abrigo, mesmo na época em que era um laboratório de física, mas sabia o que esperar: uma série de portões e depois uma espécie de posto de guarda para controlar a passagem das pessoas que chegassem até aquele ponto. Minutos depois, chegou ao primeiro portão. Era feito de tela, tinha talvez o dobro da sua altura, e de um lado e do outro havia uma respeitável cerca de arame farpado, que se estendia até perder de vista.

O portão estava aberto.

A arqueóloga examinou-o, surpresa. Uma ilusão de ótica? Um engano de sua mente confusa? Não. Não, o portão estava mesmo aberto. E era o portão que estava procurando.

Podia ver o logotipo da Universidade de Saro. Mas por que estaria aberto? Não havia nenhum sinal de que tivesse sido arrombado.

Siferra continuou em frente, mas preocupada.

Do lado de dentro do portão, a estrada estava em péssimo estado, toda esburacada e tomada pelo mato. Siferra caminhou pelo acostamento e pouco depois encontrou outra barreira, não uma simples cerca de arame farpado, mas um muro de concreto, sólido, inexpugnável, interrompido apenas por um enorme portão de metal, acima do qual havia uma câmara de televisão.

Este segundo portão também estava aberto.

Cada vez mais estranho! Onde estavam todas as supostas medidas de proteção que deveriam ter isolado o Abrigo do mundo exterior, protegendo-o contra a loucura que tomaria conta do mundo depois do eclipse?

Atravessou o segundo portão. Não havia nenhum sinal de vida. Bem à frente, viu algumas construções de madeira, que pareciam celeiros e depósitos. Talvez a entrada do Abrigo (a boca de um túnel subterrâneo, Siferra sabia) ficasse logo adiante. A arqueóloga contornou as construções.

Sim, ali estava a entrada do Abrigo, uma porta oval no chão, que dava para um corredor estreito.

E havia pessoas, também, mais ou menos uma dúzia, reunidas do lado de fora da entrada, observando-a com uma curiosidade gélida, desagradável. Todas tinham uma tira de pano verde amarrada no pescoço, como se fosse um lenço. Não reconheceu ninguém. Não pareciam ser professores ou alunos da universidade.

Uma pequena fogueira tinha sido acesa à esquerda da porta. Ao lado, havia uma pilha de lenha, arrumada com capricho, cada pedaço de madeira posicionado de acordo com o seu comprimento e espessura, com admirável precisão e meticulosidade. Parecia mais um modelo arquitetônico do que uma pilha de combustível para a fogueira.

Siferra sentiu um arrepio. Que lugar era aquele? Seria mesmo o Abrigo? Quem eram aquelas pessoas?

— Fique onde está — disse o homem que estava à frente do grupo. Falava sem gritar, mas em tom extremamente autoritário. — Levante as mãos.

Tinha na mão direita uma pequena pistola. A pistola estava apontada para o estômago de Siferra. A arqueóloga obedeceu sem dizer uma palavra.

O homem parecia ter uns cinquenta anos de idade. Era forte e bem-apessoado. Devia ser o líder do grupo. Suas roupas pareciam dispendiosas e tinha uma atitude calma e confiante. O lenço verde que usava no pescoço era de seda pura.

— Quem é você? — perguntou, mantendo a arma apontada para a moça.

— Siferra 89, professora de arqueologia da Universidade de Saro.

— Que ótimo! Pretende fazer alguma pesquisa arqueológica nestas vizinhanças, professora?

Os outros começaram a rir, como se ele tivesse dito alguma coisa muito engraçada.

— Estou tentando encontrar o Abrigo da universidade — explicou Siferra. — Sabe onde fica?

— Acho que ficava aqui mesmo — respondeu o homem.

— O pessoal da universidade foi todo embora faz alguns dias. Agora aqui é o quartel-general do Corpo de Bombeiros. Está carregando algum objeto proibido, professora?

— Como assim?

— Fósforos, isqueiro, um gerador de bolso, qualquer coisa que possa ser usada para começar um incêndio.

Siferra sacudiu a cabeça.

— Nenhuma dessas coisas.

— Esses objetos são proibidos de acordo com o artigo primeiro do Código de Emergência. As infrações ao artigo primeiro são punidas severamente.

Siferra ficou olhando para ele, espantada. Que significava toda aquela conversa? Um homem muito magro, de rosto encovado, que estava ao lado do líder, observou:

— Não confio nela, Altinol. Foram os professores que começaram toda esta confusão. Aposto que tem alguma coisa escondida nas roupas, fora de vista.

— Já disse que não tenho fósforos, isqueiro, nem nada parecido! — protestou Siferra, com irritação.

Altinol fez que sim com a cabeça.

— Pode ser que sim, pode ser que não. Não podemos correr o risco, professora. Dispa-se.

A arqueóloga olhou para ele, surpresa.

— Que foi que disse?

— Dispa-se. Tire a roupa. Mostre que não carrega nenhum objeto proibido.

Siferra sopesou o porrete, passando a mão no cabo, nervosamente. Disse para o homem:

— Espere aí. Você não pode estar falando sério.

— Artigo segundo do Código de Emergência. O Corpo de Bombeiros pode tomar as providências que considerar necessárias para impedir que novos incêndios sejam iniciados. Artigo terceiro, essas providências podem incluir a execução sumária de qualquer um que desobedeça às ordens de um membro do Corpo de Bombeiros. Tire a roupa, professora. Já.

Fez um gesto com a pistola. Um gesto de quem não hesitaria em puxar o gatilho. Siferra, porém, continuou olhando para ele, sem fazer menção de se despir.

— Quem é você? Que história é essa de Corpo de Bombeiros?

— Defesa civil, professora. Estamos tentando restaurar a lei e a ordem à cidade de Saro depois da Catástrofe. A cidade foi quase toda destruída, você sabe. Ou talvez não saiba. Os incêndios continuam, e o Corpo de Bombeiros oficial deixou de existir. Talvez você não tenha notado, mas a província inteira está cheia de gente maluca que acha que a situação ainda não está suficientemente ruim, de modo que trata de começar novos incêndios. Isso não pode continuar. Pretendemos deter os incendiários, custe o que custar. Suspeitamos de que esteja carregando fósforos. A acusação foi feita e você tem sessenta segundos para provar sua inocência. Se eu fosse você, começaria a tirar a roupa, professora.

Siferra pôde ver que ele havia começado a contar os segundos.

Despir-se, na frente de uma dúzia de estranhos? Sentiu o sangue subir-lhe à cabeça quando pensou no desaforo. A maioria daquelas pessoas eram homens. Não estavam se dando nem ao trabalho de esconder sua impaciência. Aquilo não era uma precaução de rotina, apesar de Altinol haver citado solenemente um Código de Emergência. Eles queriam mesmo era ver o seu corpo e estavam em posição de obrigá-la a submeter-se. Era intolerável.

De repente, porém, sua indignação desapareceu como que por encanto.

Pensando melhor, que importava? O mundo havia acabado. O recato era um luxo a que apenas as pessoas civilizadas podiam se permitir, e a civilização era um conceito obsoleto.

Além do mais, havia recebido uma ordem expressa, reforçada pelo cano de uma pistola. Estava em um lugar isolado. Ninguém apareceria para socorrê-la. O tempo estava passando. Altinol não parecia estar blefando.

Não valia a pena morrer apenas para impedir que aqueles homens vissem o seu corpo. Jogou o porrete no chão.

Depois, com o coração aos pulos, mas sem nenhuma demonstração visível de raiva, começou a despir-se metodicamente, jogando no chão as peças do vestuário.

— A roupa de baixo, também? — perguntou, em tom sardônico.

— Tudo.

— Já não dá para ver que não tenho nenhum isqueiro?

— Restam apenas vinte segundos, professora.

Siferra amarrou a cara e tirou a roupa de baixo sem dizer mais nada.

Era surpreendentemente fácil, agora que tomara a decisão, ficar nua na frente daqueles estranhos. Ela não se importava. Isso era uma consequência interessante do fim do mundo, pensou. Ela não se importava. Ficou ali parada, em uma postura altiva, quase desafiadora, esperando para ver o que fariam em seguida. Os olhos de Altinol percorreram o seu corpo sem nenhuma pressa. Mesmo assim, Siferra não se importou. Uma espécie de indiferença dolorosa tomara conta do seu ser.

— Muito bonito, professora — disse Altinol, afinal.

— Obrigada. Posso me vestir agora? — perguntou Siferra, em tom gélido.

— Claro, claro — disse Altinol, com um gesto condescendente. — Desculpe o incômodo. É que não podemos correr nenhum risco. — Enfiou a pistola em uma faixa que trazia amarrada na cintura, cruzou os braços e ficou olhando a arqueóloga se vestir. — Deve estar achando que veio parar no meio de selvagens, não é, professora?

— Está mesmo interessado em saber o que eu penso?

— Deve ter reparado que nenhum de nós ficou babando ou sujou as calças enquanto você estava… hum… mostrando que não tinha nenhum isqueiro escondido. Além disso, ninguém tentou molestá-la.

— Fico grata por isso.

— Estou chamando sua atenção para essas coisas, embora tenha consciência de que não fazem muita diferença para você no momento, já que está zangada conosco, porque quero que saiba que somos talvez o último bastião de civilização neste planeta abandonado pelos deuses. Não sei onde foram parar nossos queridos governantes e certamente não considero os Apóstolos do Fogo como gente civilizada, e os seus amigos da universidade, que estavam escondidos aqui, arrumaram suas coisas e foram embora. Os outros, pelo que sei, estão completamente loucos. Isto é, exceto nós e você, professora.

— Está sendo gentil em me incluir.

— Estou sendo objetivo. Você parece ter resistido melhor à Escuridão e às Estrelas do que a maioria. O que quero saber é se está interessada em ficar e se juntar ao nosso grupo. Precisamos de pessoas como você.

— Para fazer o quê? Cozinhar? Esfregar o chão?

Altinol parecia imune ao sarcasmo.

— Para ajudar a manter viva a civilização, professora. Temos diante de nós uma missão sagrada. Dia após dia, estamos tentando administrar aquela casa de loucos lá fora, desarmando os irresponsáveis, impedindo que iniciem novos incêndios. Esta é a nossa missão, professora. Estamos tentando recuperar o controle do fogo. É o primeiro passo para fazer o mundo voltar à normalidade. Quer se juntar a nós, professora? Ou prefere tentar a sorte lá na floresta?

35

A manhã era fria e nevoenta. Grossos rolos de neblina pairavam sobre as ruas devastadas, uma neblina tão espessa que Sheerin não poderia dizer quais os sóis que estavam no céu. Um deles era Onos, certamente. Entretanto, sua luz dourada estava quase totalmente escondida pela névoa. E aquela claridade a sudoeste provavelmente indicava a presença de um dos pares de sóis gêmeos, mas era impossível dizer se tratava de Sitha e Tano ou de Patru e Trey.

O psicólogo estava muito cansado. Estava ficando cada vez mais óbvio que aquela ideia de transpor sozinho, a pé, as centenas de quilômetros que separavam a cidade de Saro do Parque Nacional de Aragando era uma fantasia impossível.

Maldito Theremon! Juntos, pelo menos, talvez tivessem uma chance. Mas o repórter se mantivera inabalável em sua decisão de procurar Siferra na floresta. Aquilo é que era fantasia!

Sheerin olhou para a frente, procurando enxergar através da neblina. Precisava de um lugar para descansar um pouco. Precisava encontrar alguma coisa para comer.

Gostaria de trocar de roupa, ou pelo menos tomar um banho. Nunca se sentira tão sujo em toda a sua vida. Ou tão faminto. Ou tão cansado. Ou tão desanimado.

Durante todo o longo episódio da chegada da Escuridão, desde o primeiro momento em que ouvira de Beenay e Athor que um acontecimento daqueles era provável, Sheerin havia oscilado entre as duas extremidades do espectro psicológico, passando do pessimismo para o otimismo e de volta para o pessimismo, da esperança para o desânimo e de volta para a esperança. A sua inteligência e experiência lhe diziam uma coisa, sua personalidade naturalmente flexível lhe dizia outra.

Talvez Beenay e Athor estejam enganados e o cataclismo astronômico não passe de uma especulação sem fundamento. Não, o cataclismo certamente vai acontecer.

A despeito de seus próprios distúrbios causados pela sua experiência com a Escuridão, no Túnel do Mistério, dois anos atrás, talvez os efeitos da Escuridão não sejam tão sérios assim.

Errado.

A Escuridão vai produzir uma loucura coletiva.

A loucura será apenas temporária, um breve período de desorientação.

A loucura será permanente, para a maioria das pessoas.

O mundo sofrerá um abalo temporário, mas logo as coisas voltarão ao normal. O mundo será destruído no caos produzido pelo eclipse. Para lá e para cá, para cima e para baixo. Dois Sheerin diferentes, envolvidos em uma disputa interminável.

Agora, porém, tinha chegado ao fundo do poço e parecia ter parado ali, sentindo-se cansado e deprimido. As coisas que vira nos últimos dias tinham feito seu otimismo desaparecer. Seriam necessárias várias décadas, talvez mais de um século, para que as coisas voltassem ao normal. As cicatrizes produzidas pelo trauma mental era muito fundas, o abalo sofrido pela estrutura social tinha sido muito violento. O mundo que ele havia amado fora tragado pela Escuridão e não havia retorno possível.

Aquela era a sua opinião profissional e não via razão para duvidar dela.

Aquele era o terceiro dia desde que Sheerin se separara de Theremon na floresta e iniciara, lepidamente, a jornada em direção a Aragando. Era difícil agora recapturar o clima jovial do início da viagem. Conseguira sair inteiro da floresta, embora para isso tivesse que exibir algumas vezes a machadinha, com ar ameaçador, um blefe completo de sua parte, mas que dera certo. Fazia mais ou menos um dia que estava atravessando os bairros elegantes ao sul da cidade.

Por ali, estava tudo queimado. Quarteirões inteiros tinham sido destruídos e abandonados. Muitos dos edifícios ainda estavam queimando.

A estrada principal que levava às províncias do sul começava a poucos quilômetros do parque. De carro, levaria alguns minutos para chegar lá. Acontece que não estava de carro. Depois de sair da floresta, tivera que subir a pé a colina de Ponto Onos, pelo meio do mato. Levara quase um dia inteiro para chegar ao cume.

Quando terminou a escalada, Sheerin constatou que a colina era mais um platô, que se estendia interminavelmente à sua frente. Por mais que andasse, não chegava à estrada. Seria aquela a direção certa?

Sim. Sim, de vez em quando via uma placa em uma esquina que dizia que aquele era o caminho para a Grande Estrada do Sul. Faltava muito para chegar? As placas não diziam. A cada dez ou doze quarteirões havia uma placa, e era tudo. Continuou a andar. Não tinha escolha.

Encontrar a estrada, porém, era apenas o primeiro passo para chegar a Aragando. Na prática, ainda estaria na cidade de Saro. Que fazer, então? Continuar a pé? E havia outra opção? Seria impossível pegar uma carona. Não havia nenhum veículo circulando. O estoque dos postos de gasolina que não tinham sido incendiados já devia ter se esgotado há muito tempo. Quanto tempo levaria para chegar a Aragando viajando a pé? Semanas? Meses? Não… levaria o resto da vida. Morreria de fome muito antes de completar a jornada.

Mesmo assim, tinha que continuar. Precisava de uma razão concreta para continuar lutando pela sobrevivência, e sabia disso.

Havia se passado uma semana depois do eclipse, talvez mais, Estava começando a perder a noção do tempo. Não comia nem dormia regularmente, o que era contra os seus hábitos. Os sóis iam e vinham no céu; o ar ficava mais quente e mais frio, o tempo passava; entretanto, sem a progressão de café da manhã, almoço, jantar, sono, Sheerin não fazia ideia de como o tempo estava passando. Sabia apenas que estava perdendo rapidamente as forças.

Não fazia uma refeição decente desde a chegada da Escuridão. Daquele momento em diante, vivera de migalhas, nada mais… frutinhas, sementes, folhas, qualquer coisa.

Felizmente, não comera nada que lhe fizesse mal, mas se sentia muito fraco. O valor nutritivo da sua dieta atual era próximo de zero. As roupas, em frangalhos, pendiam do seu corpo como uma mortalha. Não tinha coragem de olhar debaixo delas. Imaginava que sua pele devia estar se derramando em pregas sobre os ossos. Sentia a garganta seca, a língua inchada, a cabeça pesada. E aquela sensação de vazio no estômago era muito desagradável.

Nos momentos de descontração, dizia a si mesmo que estava descobrindo agora por que razão dedicara tantos anos de sua vida a acumular uma respeitável camada de gordura.

Os momentos de descontração, porém, se tornavam mais raros a cada dia que passava. A fome estava minando o seu otimismo. Não podia continuar vivendo daquele jeito. Seu corpo era grande, estava acostumado a refeições regulares e substanciais, as reservas estavam se esgotando.

Talvez fosse mais simples deitar-se debaixo de um arbusto e descansar… descansar… descansar…

Tinha que encontrar comida de verdade. Depressa.

O bairro que estava atravessando no momento, embora deserto como os outros, parecia ter sofrido menos do que os que deixara para trás. Tinha havido incêndios, também, mas algumas casas pareciam ter sido poupadas. Sheerin experimentou, com paciência, as portas de todas as casas que ainda estavam de pé. Trancadas. Todas trancadas.

Que gente organizada!, pensou. Que presença de espírito! O mundo está mergulhado no caos; eles estão abandonando suas residências, aterrorizados, fugindo para a floresta, para o campus, para a cidade, para deus sabe onde… e se dão ao trabalho de trancar a porta antes de sair! Como se tivessem a intenção de passar alguns dias fora, até passar o caos, e depois voltar para seus livros, seus armários cheios de roupas bonitas, seus jardins. Será que não haviam percebido que o caos não iria passar?

Talvez, pensou Sheerin, eles não tenham fugido. Talvez estejam escondidos atrás dessas portas fechadas, encolhidos no porão, esperando que as coisas voltem ao normal.

Ou então olhando para mim da janela do segundo andar, torcendo para que eu vá embora logo. Experimentou outra porta. Outra. Outra. Todas trancadas. Nenhuma resposta.

— Ei! Alguém em casa? Deixe-me entrar!

Silêncio.

Ficou olhando para a grossa porta de madeira à sua frente, a imaginar os tesouros que esconderia, os alimentos à espera de serem comidos, a banheira, a cama macia.

E ali estava ele, do lado de fora, sem poder entrar. Sentia-se um pouco como o garotinho da fábula, que recebera a chave mágica para o jardim dos deuses, onde havia árvores de jujuba e fontes de mel, mas era pequeno demais para enfiá-la na fechadura. Teve vontade de chorar.

Lembrou-se, então, de que estava carregando uma machadinha. Começou a rir. A fome devia tê-lo deixado de miolo mole! O garotinho da história insiste, oferecendo as luvas, as botas e o gorro a vários animais que passam, para que o ajudem. Eles sobem nas costas uns dos outros, o menino trepa nas costas do último e, finalmente, consegue alcançar a fechadura. E ali está Sheerin, já bem grandinho, olhando para uma porta trancada, com uma machadinha na mão!

Arrombar a porta? Simplesmente arrombar a porta? Era totalmente contra os princípios que Sheerin sempre havia defendido. Olhou para a machadinha como se esta tivesse se transformado em uma serpente em sua mão. Arrombar a porta… não, isso era ilegal! Como podia ele, Sheerin 501, professor de psicologia da Universidade de Saro, derrubar uma porta a machadadas, invadir a casa de um cidadão honesto e servir-se à vontade do que encontrasse lá dentro?

Com toda a facilidade, disse para si mesmo, rindo. Os tempos são outros.

Levantou a machadinha.

Entretanto, não era tão fácil assim. Os músculos enfraquecidos pela fome protestaram. Ainda era capaz de levantar a machadinha, é claro, mas o golpe lhe pareceu pateticamente fraco e sentiu uma dor aguda nos braços quando a lâmina fez contato com a resistente porta de madeira. Tinha conseguido rachar a porta? Não. Tirar uma lasca? Talvez. Uma lasca pequena. Tentou de novo, com mais força. É isso aí, Sheerin. Você está pegando o jeito. Mais forte! Mais forte!

Depois de algumas tentativas, parou de sentir dor. Fechou os olhos, respirou fundo, levantou de novo a machadinha. A porta estava começando a rachar. Havia uma fenda perceptível. Mais um golpe. Mais um. Com mais uns cinco ou seis golpes bem aplicados, ela se racharia ao meio.

Comida. Banho. Cama. Força! Força!

De repente, a porta se abriu. Sheerin ficou tão surpreso que quase perdeu o equilíbrio. Cambaleou para frente, apoiou-se no umbral da porta com o cabo do machado e olhou para dentro.

Meia dúzia de pessoas o encaravam com olhos esgazeados.

— O senhor bateu? — disse um homem, fazendo os outros rirem histericamente.

Agarraram-no pelos braços e puxaram-no para dentro.

— Não vai precisar disto — disse alguém, arrancando a machadinha com facilidade das mãos de Sheerin. — Estas coisas podem machucar, sabia?

Mais risos. Empurraram-no para o centro da sala e fizeram um círculo à sua volta.

Havia sete, oito, talvez nove deles. Homens, mulheres e um adolescente. Sheerin pôde ver de um relance que não eram os legítimos donos da casa, que devia ter sido limpa e bem arrumada. Agora havia manchas na parede, metade dos móveis estava de pernas para o ar, havia uma poça de alguma coisa (vinho?) no tapete.

Sabia quem eram aquelas pessoas. Eram invasores, invasores sujos e maltrapilhos. Tinham chegado e ocupado a casa depois da fuga dos donos. Um dos homens estava usando apenas uma camisa. Uma das mulheres, pouco mais que uma menina, vestia apenas shorts. Tinham todos um cheiro acre, desagradável. Os olhos apresentavam a mesma expressão vaga, distante, que observara em milhares de pessoas nos últimos dias. Não era preciso ser um especialista para saber que estavam todos loucos.

Misturado ao fedor dos corpos dos invasores, porém, havia um outro cheiro, muito mais agradável, que quase fez Sheerin também perder o juízo: o cheiro de comida no fogo. Estavam preparando uma refeição na cozinha. Sopa? Ensopado? Alguma coisa estava fervendo lá dentro. A fome e a esperança súbita de saciá-la o fizeram cambalear.

— Não sabia que a casa estava ocupada — disse, com todo o tato. — Se me deixarem ficar esta noite, irei embora amanhã de manhã.

— Você é bombeiro? — perguntou, desconfiado, um homem barbudo, que parecia ser o líder.

— Bombeiro? Não, não sou bombeiro — respondeu Sheerin. — Meu nome é Sheerin 501, e trabalho na…

— Bombeiro! Bombeiro! Bombeiro! — começaram todos a gritar.

— …Universidade de Saro — concluiu o psicólogo. Foi como se tivesse dito uma palavra mágica. Eles pararam de gritar e ficaram olhando, assustados, para Sheerin.

— Está dizendo que trabalha na universidade? — perguntou o líder, afinal, em tom estranho.

— Isso mesmo. No departamento de psicologia. Dou aulas e também trabalho no hospital. Escute, não quero atrapalhar a vida de vocês. Só estou pedindo um lugar para descansar algumas horas e um pouco de comida, se não for fazer falta. Só um pouquinho. Não como desde…

— Universidade! — gritou uma mulher. Do jeito que falou, parecia um nome feio, quase uma blasfêmia. Sheerin tinha ouvido Folimun 66 falar da mesma forma na noite do eclipse, referindo-se aos cientistas. Era de dar medo.

— Universidade! Universidade! Universidade! Começaram a circular de novo em torno dele, cantando, apontando para ele, fazendo estranhos sinais com os dedos. Ele não podia mais compreender o que diziam. Era uma estranha ladainha de sílabas sem sentido.

Será que aquelas pessoas pertenciam a uma filial dos Apóstolos do Fogo e estavam reunidas ali para praticar algum ritual secreto? Não, era pouco provável. Estavam muito sujas, eram muito desorganizadas. Os Apóstolos, pelo menos os poucos que conhecia, tinham sempre uma aparência impecável. Além do mais, todos os Apóstolos pareciam haver desaparecido depois do eclipse. Sheerin desconfiava que tinham se retirado para um abrigo, para comemorar em particular a confirmação de suas previsões.

Aquelas pessoas, pensou, eram apenas malucos comuns. E Sheerin teve a impressão de ver a morte nos olhos deles.

— Escutem — disse, em tom cauteloso -, se interrompi alguma cerimônia de vocês, peço desculpas. Se quiserem que eu vá embora agora mesmo, não há problema. Só tentei entrar aqui porque pensei que a casa estivesse desocupada e estava com muita fome. Não tinha intenção de…

— Universidade! Universidade!

Nunca tinha visto olhares de ódio tão intensos como os que aquelas pessoas estavam lhe lançando. Mas havia medo naqueles olhos, também. Eles se mantinham à distância, tensos, trêmulos, como se temessem que ele lhes fizesse mal.

Sheerin levantou as mãos, suplicante. Se ao menos parassem de dançar e de cantar, nem que fosse por um momento! O cheiro de comida na cozinha o estava deixando desesperado.

Agarrou uma das mulheres pelo braço, com a intenção de lhe pedir um pedaço de pão, um prato de sopa, qualquer coisa. Mas ela se desvencilhou, gemendo como se Sheerin a tivesse queimado com o seu toque, e esfregou o lugar onde os dedos do psicólogo haviam repousado por um instante.

— Por favor — disse Sheerin. — Não tive intenção de machucá-la. Sou perfeitamente inofensivo, acredite.

— Inofensivo! — exclamou o líder, fazendo cara de nojo. — Você? Você, da universidade? É pior do que os bombeiros. Os bombeiros só incomodam a gente um pouco. Mas vocês destruíram o mundo.

— Nós fizemos o quê?

— Tome cuidado, Tasibar — disse uma mulher. — É melhor tirá-lo daqui antes que faça uma mágica contra nós.

— Uma mágica? Eu? — disse Sheerin.

Estavam apontando de novo para ele, gesticulando com veemência. Alguns começaram a cantar baixinho, um canto monótono que parecia o ruído de um motor ganhando velocidade e prestes a sair de controle. A garota que usava apenas shorts disse:

— Foi a universidade que trouxe a Escuridão.

— E as Estrelas — acrescentou o homem que vestia apenas uma camisa. — Eles trouxeram as Estrelas.

— E este aqui pode trazê-las de volta — disse a mulher que havia falado antes. — Tire-o daqui! Tire-o daqui! Sheerin olhou para ela, incrédulo. Entretanto, não era de todo inesperado. Os sobreviventes da noite de terror deviam compartilhar de uma desconfiança mórbida de todos os cientistas, de todas as pessoas cultas, uma fobia sem razão, que agora crescia como um vírus entre os sobreviventes daquela noite de terror.

— Acha que posso chamar as Estrelas de volta com um estalar de dedos? E isso que você teme?

— Você é da universidade — disse o homem chamado Tasibar. — Você conhecia os segredos. Foi a universidade que trouxe a Escuridão. Foi a universidade que trouxe as Estrelas, Foi a universidade que trouxe o desastre.

Era demais.

Já bastava ser arrastado para dentro daquela casa e forçado a inalar o perfume inebriante da comida sem ter permissão para prová-la. Mas ser responsabilizado pela catástrofe?

Ser considerado por essas pessoas como uma espécie de bruxo malvado? Alguma coisa cedeu dentro de Sheerin .

— E isso que vocês pensam? — gritou, descontrolado. — Seus idiotas! Seus tolos supersticiosos! A culpa é da universidade? Fomos nós que trouxemos a Escuridão? Pelos deuses, quanta estupidez! Tudo que fizemos foi tentar avisá-los!

Cerrou os punhos vigorosamente, em um gesto de irritação.

— Ele está chamando a Escuridão, Tasibar! Faça-o parar! Faça-o parar!

Estavam se aproximando, tentando agarrá-lo.

Sheerin levantou os braços e ficou quieto. Estava arrependido por haver insultado aquela gente, não porque isso colocara sua vida em risco (provavelmente nem haviam prestado atenção no que ele dissera), mas porque sabia que não eram culpados por estarem procedendo daquela forma. Se havia algum culpado, era ele, por não ter se esforçado o suficiente para protegê-los da Escuridão iminente. Aqueles artigos de Theremon haviam causado um mal irreparável. Se tivesse falado com o repórter…

Se tivesse pedido a ele para parar de ridicularizar o pessoal do Observatório…

Sim, estava arrependido agora.

Estava arrependido de muitas coisas que havia feito e de muitas coisas que deixara de fazer. Mas era tarde demais. Alguém o esmurrou. Deu um grito de surpresa e dor.

— Liliath! — teve tempo de exclamar, antes que o derrubassem no chão.

36

Havia quatro sóis no céu: Onos, Dovim, Patru e Trey. Os dias de quatro sóis eram considerados dias de sorte, lembrou-se Theremon. Aquele dia era com certeza um dia de sorte.

Carne! Carne de verdade, finalmente! Que visão gloriosa!

Era comida que ele conseguira por mero acaso, mas não tinha importância. Os recém-descobertos atrativos da vida ao ar livre tinham ficado cada vez menos interessantes à medida que sua fome aumentava. Àquela altura, aceitaria com prazer um pedaço de carne, fosse qual fosse a sua origem.

A floresta estava cheia de animais selvagens de todos os tipos, a maioria pequenos, muito poucos deles perigosos, e todos impossíveis de pegar, pelo menos à unha.

E Theremon não sabia fazer armadilhas; mesmo que soubesse, não dispunha nem de ferramentas nem de matéria-prima.

Aquelas histórias para crianças sobre pessoas perdidas na selva que logo se adaptavam à vida ao ar livre, transformando-se instantaneamente em caçadores e construtores de abrigos, eram apenas isso: histórias. Theremon se considerava um homem de razoável competência, para um morador da cidade, entretanto, sabia que a probabilidade de caçar um animal da floresta era a mesma que fazer funcionar de novo os geradores da usina de eletricidade. Quanto a construir um abrigo, o melhor que conseguira fazer tinha sido uma cobertura simples de galhos e folhas, que pelo menos o mantinha razoavelmente seco nos dias de chuva.

Agora, porém, o tempo havia melhorado, e ele tinha carne de verdade para o jantar. O único problema era cozinhá-la. Nem lhe passava pela cabeça comê-la crua.

Era irônico que em uma cidade que acabara de ser quase toda destruída pelo fogo estivesse pensando agora em como iria cozinhar um pedaço de carne. Entretanto, àquela altura, os incêndios maiores já haviam consumido todo o combustível, e a chuva fizera o resto do serviço. E embora nos primeiros dias depois da catástrofe tivesse a impressão de que novos incêndios estavam sendo iniciados, aquilo parecia ter acabado.

Preciso dar um jeito, pensou Theremon. Esfregar dois pauzinhos? Bater em uma pedra com um pedaço de metal, para produzir fagulhas?

Alguns meninos na outra margem do lago, perto do lugar onde estava acampado, tinham matado o animal para ele. Naturalmente, não sabiam que estavam lhe fazendo um favor. Era provável que pretendessem comê-lo eles mesmos, a menos que estivessem tão loucos que estavam perseguindo a criatura apenas por esporte. Theremon não achava que esta explicação fizesse sentido. Haviam perseguido a presa com uma perseverança que só a fome poderia explicar.

O animal era um graben, uma daquelas feias criaturas peludas, de focinho comprido e cauda fina e pelada, que às vezes revolviam as latas de lixo das casas depois que Onos se punha. No momento, a beleza era o que menos importava. Os garotos haviam expulsado o graben da toca onde este se escondia durante o dia e encurralado o pobre animalzinho em uma pequena ravina.

Enquanto Theremon observava do outro lado do lago, com uma mistura de nojo e inveja, eles o seguiam incansáveis para cima e para baixo, bombardeando-o com uma chuva de pedras. O animal revelou uma agilidade surpreendente, correndo para cá e para lá, em uma tentativa desesperada de escapar aos atacantes. Afinal, porém, uma pedrada certeira atingiu-o na cabeça, matando-o na mesma hora.

O repórter pensou que fossem comê-lo no ato. Naquele momento, porém, uma figura desgrenhada apareceu acima deles, na parte superior da ravina, e começou a descer em direção ao lago.

— Corram! É Garpik, o Estripador! — gritou um dos meninos. — Garpik! Garpik!

Em um instante, os meninos se espalharam, deixando o graben morto para trás.

Theremon, ainda olhando, se escondera nas sombras do outro lado do lago. Ele também conhecia aquele Garpik, embora não de nome. Era um dos mais temidos moradores da floresta, um homem atarracado, quase um gorila, que não usava nada a não ser um cinturão cheio de facas de todos os tamanhos. Era um assassino sem motivo, um psicopata irresponsável, um puro predador.

Garpik ficou por alguns instantes na boca da ravina, cantarolando baixinho e acariciando uma de suas facas. Se viu o animal morto, não se importou. Talvez estivesse esperando os meninos voltarem. Era óbvio, porém, que eles não tinham a menor intenção de fazer isso, e depois de algum tempo Garpik deu de ombros e voltou para a floresta, provavelmente em busca de algo interessante para fazer com suas facas.

Theremon resolveu esperar até ter certeza de que Garpik não pretendia voltar e surpreendê-lo.

Quando não agüentou mais a visão do graben estirado ali à margem do lago, onde outro predador poderia chegar a qualquer momento para pegá-lo, Theremon correu, deu a volta no lago, agarrou o animal e carregou-o para o seu esconderijo.

Ele pesava tanto quanto uma criança pequena. Seria suficiente para duas ou três refeições… ou mais, se conseguisse controlar sua fome e a carne não se estragasse muito depressa.

A fome fazia sua cabeça girar. Há vários dias que não comia nada, a não ser frutas e sementes. Seu corpo era pele e osso, as pequenas reservas de gordura tinham sido absorvidas há muito tempo, e agora ele estava consumindo os próprios músculos na luta para permanecer vivo. Naquela noite, porém, teria um banquete.

Churrasco de graben! Que delícia!, pensou, com ironia. Depois, pensou: não seja ingrato, Theremon.

Antes, porém, tinha que acender uma fogueira… Primeiro, o combustível. Atrás de seu abrigo havia uma grande pedra com uma rachadura onde cresciam plantinhas. Quase todas estavam mortas há muito tempo e haviam secado desde a última chuva. Theremon percorreu rapidamente a parede de pedra, arrancando as folhas e caules amarelados e fazendo um pequeno monte de material semelhante a palha, que pegaria fogo com facilidade.

Agora precisava de galhos secos. Foram mais difíceis de encontrar, mas ele explorou as vizinhanças à procura de arbustos mortos ou pelo menos arbustos com galhos mortos. Quando conseguiu juntar lenha suficiente, a tarde já estava adiantada. Dovim havia desaparecido do céu, e Trey e Patru, que estavam nascendo no momento em que os meninos caçaram o graben, já haviam chegado ao zênite e pareciam um par de olhos, observando a tragédia que se desenrolava em Kalgash. Com todo o cuidado, Theremon arrumou os galhos secos por cima das plantinhas, montando uma fogueira como imaginava que um profissional faria, com os galhos maiores na parte externa e os galhos mais finos entrelaçados no meio, com alguma dificuldade, trespassou o graben com um espeto que havia improvisado a partir de um galho reto e posicionou-o acima da pilha.

Até aqui, tudo bem. Só falta uma coisa. Fogo!

Evitara pensar no problema enquanto preparava a fogueira, na esperança de que a solução aparecesse de repente. Agora, porém, tinha que fazer alguma coisa. Precisava de uma fagulha. Theremon tinha certeza de que o velho truque que aparecia nos livros, de esfregar dois pauzinhos, não passava de um mito. Tinha lido que algumas tribos primitivas acendiam o fogo fazendo girar um pedaço de pau em uma tábua com um pequeno furo, mas desconfiava de que o processo não era simples, que provavelmente exigia grande destreza e um bocado de paciência. Provavelmente, os indígenas aprendiam a técnica ainda crianças, com os mais velhos.

E se usasse duas pedras? Conseguiria produzir uma fagulha esfregando uma pedra na outra?

Não acreditava que funcionasse. Mesmo assim, decidiu tentar, à falta de uma ideia melhor. Havia uma pedra chata no chão, e depois de procurar um pouco encontrou uma outra pedra, de forma triangular, que cabia confortavelmente na palma da sua mão. Ajoelhou-se ao lado da pequena fogueira e começou a golpear metodicamente a pedra chata na pontuda.

Nada aconteceu.

Uma sensação de impotência começou a tomar conta de seu ser. Aqui estou eu, pensou, um homem adulto, que sabe ler e escrever, que sabe dirigir automóvel, que sabe até mesmo operar um computador, mais ou menos. Sou capaz de escrever em duas horas uma coluna que todo mundo vai ter vontade de ler e posso fazê-lo todos os dias, faça chuva ou faça sol, por vinte anos. Entretanto, não sou capaz de acender uma maldita fogueira.

Por outro lado, pensou, eu não vou comer este graben cru, a menos que não haja outro jeito. Não vou. Não vou. Não. Não. Não!

Esfregou de novo as pedras, furioso.

Vamos! Acenda! Queime! Cozinhe este maldito animal para mim!

De novo. De novo. De novo.

— Que está tentando fazer? — perguntou uma voz pouco amistosa, de um ponto logo atrás do seu ombro direito.

Theremon levantou a cabeça, assustado, recriminando a si mesmo. A primeira regra de sobrevivência na floresta dizia que você jamais devia se distrair com alguma coisa, a ponto de permitir que estranhos se aproximassem sem serem vistos.

Eles eram cinco. Homens, mais ou menos de sua idade. Estavam tão desgrenhados quanto os outros habitantes da floresta. Não pareciam especialmente loucos, não tanto quanto a maioria: os olhos estavam em foco, as bocas não babavam, os rostos tinham uma expressão séria, determinada. Aparentemente, as únicas armas que levavam eram porretes, mas sua atitude era decididamente hostil.

Cinco contra um. Muito bem, pensou, fiquem com o maldito graben e morram entalados. Não faria a tolice de tentar resistir.

— Eu perguntei: “Que está tentando fazer?” — repetiu o primeiro homem, mais friamente do que antes. Theremon olhou para ele de cara feia.

— Que é que você acha? Estou tentando acender uma fogueira.

— Foi isto mesmo que pensei.

O estranho deu um passo à frente. De forma fria, deliberada, deu um pontapé na pequena fogueira. Os galhos tão penosamente reunidos saíram voando em todas as direções e o graben caiu no chão.

— Ei, espere um momento…

— Nada de fogueiras, moço. É a lei — disse o homem, com firmeza. — É proibido carregar e utilizar material combustível. Esta madeira iria ser usada em uma fogueira. Isto é óbvio. Além do mais, você admitiu sua culpa.

— Culpa? — repetiu Theremon, em tom incrédulo.

— Você disse que estava tentando acender uma fogueira. Pretendia usar estas pedras, certo? Pois a lei é clara. É proibido.

A um sinal dos líderes, dois dos outros se aproximaram. Um deles agarrou Theremon pelo pescoço e pelo peito, o outro arrancou-lhe das mãos as pedras e jogou-as no lago. Theremon, vendo-as desaparecer, sentiu-se da mesma forma como imaginava que Beenay tinha se sentido quando seus telescópios foram destruídos pela multidão.

— Larguem-me! — murmurou Theremon, debatendo-se.

— Podem largá-lo — disse o líder. Ele enfiou o pé mais uma vez na fogueira de Theremon, misturando as plantinhas com a terra. — As fogueiras não são mais permitidas — disse para Theremon. — Chega de fogo. O risco é muito grande, você não compreende? Se tentar acender outra fogueira, vamos voltar e quebrar a sua cabeça, está me entendendo?

— Foi o fogo que acabou com o mundo — disse um dos outros.

— Foi o fogo que nos fez sair de casa.

— O fogo é o inimigo. O fogo é proibido. O fogo é mau.

Theremon. olhou para ele, surpreso. Fogo mau? Fogo proibido? Então eles eram malucos, no final das contas!

— A pena por acender uma fogueira, da primeira vez, é uma multa — disse o líder. — Vamos ficar com este animal. Isto lhe ensinará a não colocar em perigo a vida de pessoas inocentes. Pegue-o, Listigon. É uma boa lição para ele. Da próxima vez que pegar alguma coisa, se lembrará de que não deve tentar conjurar o inimigo só porque está com vontade de comer carne assada.

— Não! — gritou Theremon, com voz estrangulada, quando Listigon se curvou para pegar o graben. — Ele é meu, seus débeis mentais! Meu! Meu!

Avançou contra eles às cegas, louco de raiva e frustração. Alguém lhe deu um soco no estômago, com toda a força. Ele deixou o ar escapar e se dobrou em dois, segurando o abdome com as duas mãos. Outro dos estranhos golpeou-o nas costas, fazendo-o cambalear. Desta vez, porém, ele teve tempo de dar uma cotovelada no atacante e ouviu, satisfeito, um grito de dor.

Fazia muito anos que não se envolvia em uma briga. Além disso, tinha certeza de que nunca lutara contra cinco homens ao mesmo tempo. Não havia, porém, alternativa.

O que tinha a fazer, disse para si mesmo, era se manter de pé e procurar chegar à parede de pedra, onde pelo menos não poderiam atacá-lo pela retaguarda. Em seguida, trataria de mantê-los à distância, chutando, socando e mordendo, se necessário, até que resolvessem deixá-lo em paz.

Uma voz dentro dele disse: Estão todos completamente malucos. É bem possível que não desistam até matá-lo de pancada. Entretanto, não havia nada que pudesse fazer além de tentar mantê-los à distância, agora.

Manteve a cabeça baixa e se defendeu com os braços, tentando ao mesmo tempo aproximar-se da pedra. Eles o cercaram, golpeando-o de todos os lados. Mesmo assim, ele não caiu. A vantagem numérica não era tão esmagadora quanto esperava. Naquele espaço limitado, os cinco não conseguiam atacá-lo ao mesmo tempo, e Theremon podia tirar proveito da confusão, esquivando-se dos socos e mudando de posição enquanto eles paravam os golpes no ar com medo de atingir os próprios companheiros.

Mesmo assim, sabia que não poderia resistir por muito tempo. O lábio estava sangrando, um dos olhos começou a inchar e sentiu que estava perdendo o fôlego. Mais um soco bem dado e desabaria no chão. Manteve um dos braços na frente do rosto e atacou com o outro, continuando a recuar na direção da parede de pedra. Deu um pontapé em alguém e ouviu uma praga. Alguém o chutou de volta. Theremon sentiu uma dor aguda na coxa.

Cambaleou. Lutou desesperadamente para respirar. Era difícil saber o que estava acontecendo. Estavam todos em cima dele agora, socando-o sem parar. Não conseguiria chegar à pedra. Não conseguiria continuar de pé por muito tempo. Quando caísse, seria pisoteado. Seria o fim…

Seria a morte…

De repente, percebeu que havia uma confusão dentro da confusão. Gritos de vozes diferentes, caras novas se misturando com as antigas, um exército de pessoas por toda a parte. Só faltava esta, pensou. Um outro bando de malucos para se divertir comigo. Mas talvez eu consiga escapar enquanto os dois bandos se estranham…

— Parem, em nome do Corpo de Bombeiros! — gritou alto uma mulher, em tom autoritário. — É uma ordem! Parem, todos vocês! Afastem-se dele! Já!

Theremon piscou os olhos e esfregou a testa. Olhou em torno, surpreso.

Havia quatro recém-chegados na clareira. Pareciam limpos e descansados, e estavam usando roupas em bom estado. Todos tinham lenços verdes amarrados no pescoço. Estavam armados com pistolas.

A mulher, que parecia ser a chefe, fez um gesto rápido com a arma e os cinco homens que haviam atacado Theremon se afastaram dele e se colocaram em forma.

— Que aconteceu aqui? — perguntou a mulher ao líder dos cinco homens, em tom glacial.

— Ele estava acendendo uma fogueira. Pretendia assar um animal, mas nós chegamos a tempo…

— Está certo. Não vejo nenhum fogo aqui. As leis foram respeitadas. Podem ir.

O homem fez que sim com a cabeça. Curvou-se para pegar o graben.

— Ei! Isto é meu! — protestou Theremon.

— Não — disse o outro. — Vamos levá-lo como multa por você ter infringido a lei.

— Deixe o castigo por minha conta — disse a mulher. — Largue o animal e vá embora! Já!

— Mas…

— Vão embora, ou vou pedir a Altinol para punir vocês. Vamos! Andem!

Os cinco homens se afastaram com relutância. Theremon continuou onde estava. A mulher de lenço verde no pescoço se aproximou dele:

— Acho que cheguei bem na hora, não é, Theremon?

— Siferra! — exclamou o repórter. — Siferra!

37

Seu corpo doía em centenas de lugares. Provavelmente estava com alguns ossos quebrados. O olho, de tão inchado, estava quase fechado. Mesmo assim, percebeu que iria sobreviver. Encostou-se na parede de pedra, esperando que a dor diminuísse um pouco.

— Temos uma garrafa de conhaque de Jonglor no quartel-general — disse Siferra. — Posso autorizá-lo a tomar um drinque, suponho. Como remédio, é claro.

— Conhaque? Quartel-general? Que quartel-general? De que está falando, Siferra? Você está mesmo aqui?

— Acha que sou uma alucinação? — Ela riu e segurou-lhe o braço de leve. — Acha que isto é uma alucinação?

O repórter fez uma careta de dor.

— Vá com calma. Estou todo dolorido. Você simplesmente caiu do céu?

— Estava passando pela floresta, a serviço do Corpo de Bombeiros, quando ouvi o barulho de luta. Resolvemos investigar. Eu não fazia ideia de que você estava envolvido até chegar aqui. Estamos tentando restabelecer a ordem.

— Estamos?

— Agora faço parte do Corpo de Bombeiros. É o novo governo local. O quartel-general fica no Abrigo da universidade, e o chefão é um homem chamado Altinol, que era uma espécie de executivo antes do eclipse. Sou um dos seus auxiliares diretos. Na verdade, trata-se de um grupo particular, que defende a tese de que o uso do fogo deve ser controlado e apenas os membros do Corpo de Bombeiros têm o privilégio de…

Theremon levantou a mão.

— Calma, Siferra. Mais devagar, está bem? Está dizendo que os funcionários da universidade que estavam no Abrigo formaram um grupo particular? Que eles saíram por aí apagando incêndios? Como isso é possível? Sheerin contou-me que eles todos tinham ido embora, que estavam a caminho do Parque Nacional de Aragando.

— Sheerin? Ele está aqui?

— Estava. Resolveu ir também para Aragando. Eu… eu preferi continuar aqui por mais alguns dias. — Teve vergonha de dizer a ela que havia ficado para se dedicar à tarefa impossível de localizá-la.

Siferra assentiu.

— O que Sheerin lhe contou é verdade. Todo o pessoal da universidade deixou o Abrigo um dia depois do eclipse. Devem estar em Aragando, mas ainda não tive notícias deles. Deixaram o Abrigo aberto, e Altinol e seu bando o estão usando como quartel-general. O Corpo de Bombeiros tem quinze ou vinte membros, todos mentalmente sãos. Conseguiram fazer valer sua autoridade sobre mais ou menos metade da floresta e parte da cidade, onde algumas pessoas ainda estão morando.

— E você? — quis saber Theremon. — Como se envolveu com eles?

— Logo que as Estrelas desapareceram, fui para a floresta. Entretanto, ela me pareceu muito perigosa, e foi então que me lembrei do Abrigo. Fui até lá. Descobri que estava ocupado por Altinol e seus homens. Eles me convidaram para juntar-me a eles. — Siferra sorriu ironicamente. — Na verdade, não foi bem um convite. Eles não primam pela delicadeza.

— A época não é favorável para delicadezas.

— Tem razão. De modo que eu disse para mim mesma: melhor com eles do que sozinha. Eles me deram este lenço verde, que todo mundo por aqui aprendeu a respeitar. Ganhei também uma pistola. É uma coisa que as pessoas também respeitam.

— Quer dizer que você entrou para o Corpo de Bombeiros — disse Theremon, em tom de admiração. — Não sabia que você dava para esse tipo de coisa.

— Nem eu.

— Mas você acha mesmo que esse Altinol e seu bando são gente decente, trabalhando para restabelecer a lei e a ordem?

A arqueóloga sorriu de novo, e novamente não foi uma expressão de alegria.

— Gente decente? Eles acham que são.

— E você, não acha?

Siferra deu de ombros.

— Eles se colocam acima dos outros, quanto a isso não há dúvida. No momento, existe um vácuo de poder, e eles querem preenchê-lo. Mas talvez não sejam as piores pessoas para termos no governo. Pelo menos, são mais razoáveis do que algumas outras organizações que conheço.

— Como os Apóstolos do Fogo? Eles também estão tentando formar um governo?

— É provável que sim. Não sei o que foi feito deles depois do eclipse. Altinol acha que ainda estão escondidos em algum abrigo subterrâneo ou que Mondior os levou para algum lugar do interior, onde vão fundar uma nova nação. Mas temos alguns novos grupos de fanáticos que são umas gracinhas, Theremon. Você acaba de se defrontar com um deles, e, como sabe, teve muita sorte em escapar vivo. Eles acreditam que a única salvação para a humanidade é renunciar totalmente ao uso do fogo, já que o fogo foi a ruína do mundo. Por isso, saem por aí destruindo fósforos e isqueiros e matando as pessoas acusadas de acenderem fogueiras.

— Eu estava só tentando assar um pedaço de carne disse Theremon, de cara feia.

— Para eles, não interessa se você estava cozinhando ou bancando o incendiário. Fogo é fogo, e eles o abominam. Sua sorte foi eu ter chegado a tempo. Eles aceitam a autoridade do Corpo de Bombeiros. Somos a elite, os únicos que têm permissão para usar o fogo sem serem punidos.

— O únicos que têm pistolas — observou Theremon. É por isso que respeitam vocês. — Esfregou um ponto dolorido no braço e olhou em torno, com ar pensativo. – Você disse que existem outros grupos de fanáticos?

— Existem os que acreditam que foram os astrônomos que fizeram as Estrelas aparecerem. Eles colocam a culpa do que aconteceu em Athor, Beenay & Cia. É o velho ódio pelos intelectuais, que se manifesta sempre que as emoções primitivas são liberadas.

— Céus! E existe muita gente que pensa assim?

— Até demais. Só os deuses sabem o que eles fariam se encontrassem o pessoal da universidade que ainda não chegou a Aragando. Provavelmente, tratariam de enforcá-los no poste mais próximo.

— E eu seria o responsável — declarou Theremon, lentamente.

— Você?

— Tudo que aconteceu é minha culpa, Siferra. Não é culpa de Athor, nem de Folimun, nem dos deuses. É minha. Aquela vez que você me chamou de irresponsável, estava sendo muito benevolente. Não fui apenas irresponsável. Fui criminosamente negligente.

— Pare, Theremon. Que adianta…

O repórter não lhe deu ouvidos.

— Eu devia ter escrito artigos diários prevenindo a população a respeito do que estava para acontecer, defendendo um programa de emergência para a construção de abrigos, para a instalação de geradores de emergência, para o tratamento dos desequilibrados mentais, para fazer mil outras coisas… Em vez disso, que foi que fiz? Levei tudo na brincadeira. Ridicularizei os astrônomos em sua torre de marfim! Tornei politicamente impossível alguém do governo levar a sério as advertências de Athor.

— Theremon…

— Você devia ter deixado aqueles malucos me espancarem até a morte, Siferra.

Os olhos da arqueóloga encontraram os seus. Ela parecia zangada.

— Não seja tolo. Todo o planejamento do mundo não teria feito a menor diferença. Eu também gostaria que você não tivesse escrito aqueles artigos, Theremon. Sabe que eles me deixaram furiosa. Mas que importa isso agora? Você estava sendo sincero quando os escreveu. Podia estar errado, mas foi sincero. De qualquer maneira, não adianta especular agora sobre o que poderia ter acontecido. A situação é esta, e está acabado. — Acrescentou, em tom mais suave: — Agora chega de conversa. Você está em condições de andar? Quero que vá comigo para o Abrigo. Que acha de um banho, uma muda de roupa, uma refeição decente…

— Refeição?

— O pessoal da universidade deixou a maior parte das provisões.

Theremon riu e apontou para o graben.

— Quer dizer que eu não vou ter que comer isso, afinal?

— Não, a menos que faça questão. Por que não oferece essa carcaça a alguém mais necessitado, quando estivermos saindo da floresta?

— Boa ideia.

Ele se pôs de pé, devagar, gemendo. Deuses, o corpo todo estava dolorido! Deu um passo, com todo cuidado: nada mau, nada mau. Parecia que, no final das contas, não tinha quebrado nenhum osso. A ideia de um banho quente e uma refeição nutritiva já o fazia sentir-se melhor.

Deu uma última olhada no seu pequeno abrigo, seu regato, seus arbustos. Seu lar, nos últimos dias. Não sentiria falta daquele lugar, mas também não se esqueceria dele tão cedo. Pegou o graben e colocou-o no ombro.

— Mostre o caminho — disse para Siferra.

Não tinham andado mais do que 10O metros, quando Theremon viu um grupo de meninos à espreita atrás das árvores. Eram os mesmos que haviam tirado o graben da toca e o abatido a pedradas. Com certeza haviam voltado para procurá-lo. Agora, observavam-no de longe, certamente frustrados com o fato de Theremon estar indo embora com sua presa. O respeito que sentiam pelos lenços verdes do Corpo de Bombeiros (ou, talvez, pelas pistolas) os impedia de tentar recuperar o animal.

— Ei! — gritou Theremon. — Isto é de vocês, não é? Jogou a carcaça do graben na direção dos meninos. Ela foi cair bem perto do lugar onde estavam, e eles recuaram, assustados. Era evidente que estavam ansiosos para pegar o animal, mas ao mesmo tempo não tinham coragem de se adiantar.

— Assim é a vida da era pós-eclipse — observou o repórter, em tom penalizado. — Estão famintos, mas o medo é mais forte. Acham que pode ser uma armadilha. Pensam que se saírem de trás daquelas árvores, nós vamos atirar neles só para nos divertirmos.

— Quem pode culpá-los? — disse Siferra. — Hoje em dia, todo mundo tem medo de todo mundo. Vamos andando. Quando eles tiverem certeza de que fomos embora, perderão o medo.

A arqueóloga foi na frente e Theremon a seguiu, mancando.

Siferra e os outros membros do Corpo de Bombeiros se deslocavam com confiança pela floresta, como se fossem imunes aos perigos que espreitavam em toda parte. E, na verdade, não houve nenhum incidente enquanto o grupo se dirigia, tão rapidamente quanto os ferimentos de Theremon permitiam, para a estrada que cruzava a floresta.

Era interessante, pensou o jornalista, o modo como a sociedade estava começando a se reconstituir. Em apenas alguns dias, uma organização irregular como aquele Corpo de Bombeiros tinha começado a assumir uma espécie de autoridade governamental. A menos que fossem apenas as pistolas e o ar de segurança que mantinham os loucos à distância.

Finalmente, chegaram à orla da floresta. A temperatura estava caindo e o dia havia ficado desagradavelmente escuro, agora que Patru e Trey eram os únicos sóis no céu. No passado, Theremon jamais se preocupara com o nível relativamente baixo de iluminação que era típico das ocasiões em que apenas um dos pares de sóis se encontrava no céu. Desde o eclipse, porém, as noites de dois sóis o deixavam com a impressão (que sabia ser falsa) de que a Escuridão poderia voltar a qualquer momento. As feridas psíquicas do Cair da Noite levariam muito tempo para sarar, mesmo para os indivíduos mais equilibrados do planeta.

— O Abrigo fica logo no final desta estrada — disse Siferra. — Como está se sentindo?

— Mais ou menos — disse Theremon. — Eles não conseguiram me aleijar.

Mesmo assim, era preciso um esforço considerável para fazer as pernas machucadas funcionarem. Sentiu um imenso alívio quando finalmente chegaram à entrada do Abrigo.

O lugar parecia um grande labirinto. Cavernas e corredores se espalhavam em todas as direções. À distância, viu os tubos e fios de equipamentos científicos, misteriosos e indecifráveis, correndo ao longo das paredes e do teto. Lembrou-se de que ali havia funcionado o acelerador de partículas da universidade até ser inaugurado o novo laboratório. Aparentemente, os físicos haviam deixado para trás as máquinas obsoletas.

Um homem alto apareceu, irradiando autoridade.

— É Altinol 111 — disse Siferra. — Altinol, quero lhe apresentar Theremon 762.

— O jornalista da Crônica? — disse Altinol. Ele não parecia surpreso nem impressionado, parecia apenas estar registrando o fato.

— Ex-jornalista — disse Theremon.

Os dois se encararam friamente. Altinol parecia um osso duro de roer, pensou Theremon. Era um homem de meia-idade, em excelente forma física. Estava bem vestido e tinha o ar de uma pessoa que está acostumada a ser obedecida. Depois de examinar sua fisionomia por alguns instantes, Theremon vasculhou os escaninhos da memória, e, de repente, seu rosto se iluminou.

— Indústrias Morthaine? O mesmo Altinol?

Um lampejo de… interesse — seria aborrecimento? apareceu nos olhos de Altinol.

— O mesmo Altinol.

— Os jornais diziam que seu sonho era ser o Primeiro Executivo. Agora parece que conseguiu o que queria. Pelo menos, para o que restou da cidade de Saro, se não para a República Federal.

— Uma coisa de cada vez — disse Altinol, com voz contida. — Primeiro, vamos tentar sair da anarquia. Depois, será a hora de colocar o país de novo em ordem e decidir quem vai ser o novo Primeiro Executivo. Temos o problema dos Apóstolos, por exemplo, que assumiram o controle de toda a parte norte da cidade e terrenos vizinhos. Não vai ser fácil tirá-los de lá. — Altinol sorriu friamente. — Uma coisa de cada vez, meu amigo.

— Quanto a Theremon — interveio Siferra — a primeira coisa de que ele precisa é de um banho. Depois, uma refeição decente. Ele está vivendo na floresta desde o Cair da Noite. Venha comigo — disse para o repórter.

Haviam levantado tabiques ao longo do túnel do acelerador de partículas, dividindo-o em uma série de cubículos. Siferra levou-o até um deles, no qual canos de cobre montados no teto levavam água para um tanque de porcelana.

— A água não vai estar muito quente — preveniu a arqueóloga. — Só ligamos a caldeira alguma horas por dia, para economizar combustível. Mas deve ser melhor do que tomar banho em um rio gelado da floresta. Que é que você sabe a respeito de Altinol?

— Ele é presidente das Indústrias Morthaine, uma grande companhia de transportes. O nome dele esteve nas manchetes faz uns dois anos, por causa de um contrato supostamente irregular para desenvolver um grande projeto imobiliário em terras do governo, na província de Nibro.

— Que é que uma companhia de transportes tem a ver com projetos imobiliários? — perguntou Siferra.

— E exatamente essa a questão. Nada a ver. Ele foi acusado de tentar manipular os congressistas. Se não me engano, ofereceu passagens de graça em seus navios para os senadores, se eles aprovassem o projeto. — Theremon deu de ombros. — Na verdade, nada disso importa. A companhia deixou de existir. O projeto imobiliário não tem mais razão de ser. Não existem mais senadores para serem subornados. Provavelmente, ele não gostou de ter sido reconhecido.

— Provavelmente, ele não se importou nem um pouco. No momento, a única coisa que lhe interessa é dirigir o Corpo de Bombeiros.

— Por enquanto — declarou Theremon. — Hoje o Corpo de Bombeiros da cidade de Saro, amanhã o mundo. Viu como ele falou em tirar os Apóstolos da parte norte da cidade. Mas acho que alguém tem que fazer essas coisas. E ele é o tipo de pessoa que gosta de mandar nos outros.

Siferra saiu. Theremon entrou no tanque de porcelana. Não era uma instalação luxuosa, mas depois de tudo que havia passado recentemente, sentiu-se no paraíso. Deitou-se, fechou os olhos e relaxou o corpo.

Depois do banho, Siferra levou-o ao refeitório do Abrigo, um aposento simples, com teto de metal, e o deixou sozinho, alegando que tinha que fazer o relatório do dia para Altinol. Havia uma refeição à espera do repórter, uma das bandejas de comida congelada que tinham sido armazenadas ali nos meses que precederam o eclipse.

Carne com legumes. Como complemento, um refrigerante verde. Para Theremon, estava tudo delicioso.

Forçou-se a comer devagar, sabendo que, depois de tanto tempo na floresta, seu corpo não estava mais acostumado a comida de verdade. Seu primeiro impulso era engolir tudo de uma vez e pedir mais, mas mastigou cada bocado.

Depois de terminar a refeição, Theremon ficou olhando para as feias paredes de metal. Não estava mais com fome, e seu estado de espírito estava começando a mudar para pior. Apesar do banho, apesar da comida, apesar da tranquilidade de saber que estava em segurança naquele Abrigo bem defendido, surpreendeu-se ao se ver envolvido pela mais profunda depressão.

Sentia-se cansado, sem esperanças e cheio de melancolia. Tinha sido um bom mundo, pensou. Não um mundo perfeito, longe disso, mas um mundo agradável. As pessoas eram razoavelmente felizes. Estavam fazendo progresso em todas as frentes. O conhecimento científico aumentava a cada dia, a distribuição de renda estava se tornando mais justa, as disputas entre os países eram resolvidas cada vez mais através da negociação. As guerras estavam praticamente ultrapassadas, e os preconceitos religiosos eram coisa do passado.

Agora, estava tudo terminado. Em questão de horas, a Escuridão se encarregara de destruir toda uma civilização. Um novo mundo nasceria das cinzas do antigo, é claro.

Era sempre assim, como as escavações de Siferra haviam demonstrado.

Mas que tipo de mundo seria?, pensou Theremon. A resposta estava diante dos seus olhos. Seria um mundo no qual as pessoas eram capazes de matar por um pedaço de carne, porque alguém havia violado uma superstição a respeito do fogo, ou apenas porque matar parecia ser uma coisa divertida. Um mundo no qual pessoas como Altinol se aproveitavam do caos para chegar ao poder. O mundo no qual pessoas como Folimun e Mondior estavam se preparando para se tornar ditadores do pensamento, provavelmente com a cumplicidade de pessoas como Altinol. Um mundo no qual…

Não. Sacudiu a cabeça. Que adiantava ficar se lamentando daquele jeito?

Siferra estava certa, disse para si próprio. Não era hora de ficar especulando sobre o que poderia ter acontecido. Pelo menos, estava vivo, seu cérebro estava funcionando de novo, e tinha escapado da aventura na floresta com apenas alguns arranhões que logo estariam curados. A depressão era uma emoção inútil; pior do que isso, era um luxo a que não podia se permitir, da mesma forma que Siferra não podia se permitir o luxo de continuar zangada com ele por causa dos artigos que escrevera.

O que estava feito, estava feito. Agora, era hora de continuar em frente, reagrupar, reconstruir, começar de novo. Olhar para trás era tolice. Olhar para a frente, com pessimismo e desesperança, era covardia.

— Terminou? — perguntou Siferra, entrando no refeitório. — Sei que a comida não é nenhuma maravilha, mas é melhor do que comer graben.

— Eu não posso julgar. Nunca comi graben.

— Pois não perdeu grande coisa. Venha. Vou mostrar o seu quarto.

Era um cubículo com o teto muito baixo e com mobília escassa: uma cama, uma pia, uma lâmpada no teto e outra no chão. Espalhados no chão, em um canto do quarto, estavam alguns livros e jornais, deixados pela pessoa que ocupara o aposento na noite do eclipse. Theremon viu um exemplar da Crônica aberto na página de sua coluna e fez uma careta. Era um dos seus últimos trabalhos, um artigo particularmente virulento contra Athor e seu grupo. Enrubesceu e empurrou o jornal com o pé para baixo da cama.

— Que é que você vai fazer agora, Theremon? — perguntou Siferra.

— Fazer?

— Depois que você descansar um pouco, quero dizer.

— Ainda não tive tempo de pensar no assunto. Por quê?

— Altinol quer saber se você pretende fazer parte do Corpo de Bombeiros.

— Isto é um convite?

— Ele concordaria em aceitá-lo. Você é o tipo de homem que pode ser útil para ele, um homem forte, acostumado a lidar com as pessoas.

— Pode ser — disse Theremon. — Eu faria bem aqui, não faria.

— Apenas uma coisa o preocupa. Só há lugar para um chefe no Corpo de Bombeiros, e este chefe é Altinol. Se você juntar-se a nós, terá que compreender logo de saída que o que Altinol decide deve ser aceito sem discussão. Ele não tem certeza de que você seja capaz de cumprir ordens.

— Disso nem eu tenho certeza — declarou Theremon. — Mas posso compreender o ponto de vista de Altinol.

— Concorda, então, em juntar-se a nós? Sei que nossa organização tem muitos defeitos, mas ao menos estamos defendendo a ordem, que é uma coisa de extrema necessidade nos dias de hoje. Altinol pode ser muito autoritário, mas ele está bem-intencionado. Tenho certeza disso. Ele simplesmente acha que a situação exige uma liderança firme e medidas de emergência. Que ele é capaz de tomar.

— Não tenho dúvida disso.

— Pense no assunto esta noite — disse Siferra. — Se quiser entrar para o Corpo de Bombeiros, fale com ele amanhã. Seja franco com ele. Ele vai ser franco com você, pode ter certeza. Contanto que você consiga convencê-lo de que não é uma ameaça direta à sua autoridade, vocês dois vão se dar…

— Não! — exclamou Theremon, de repente.

— Não o quê?

O repórter ficou em silêncio por alguns instantes. Depois, disse:

— Não preciso passar a noite inteira pensando no assunto. Acho que já sei qual vai ser a minha resposta.

Siferra olhou para ele, curiosa.

— Não quero competir com Altinol — explicou Theremon. — Sei o tipo de homem que ele é e não sou capaz de conviver por muito tempo com pessoas assim. Também sei que, a curto prazo, organizações como o Corpo de Bombeiros podem ser necessárias, mas, a longo prazo, elas tendem a fazer mais mal do que bem, e depois que se consolidam é muito difícil a sociedade livrar-se delas. Pessoas como Altinol não abrem mão do poder espontaneamente. Os pequenos ditadores jamais o fazem. E não quero que a ideia de que ajudei a colocá-lo no poder venha a me atormentar durante o resto da minha vida. Reinventar o sistema feudal não me parece a solução ideal para os problemas que estamos enfrentando no momento. De modo que a resposta é não, Siferra. Não vou usar o lenço verde de Altinol. Não há futuro para mim aqui.

— Que vai fazer, então?

— Sheerin disse-me que há um governo provisório de verdade sendo formado no parque Aragando. Gente da universidade, talvez alguns membros do governo antigo, líderes de todo o país pretendem se reunir lá. Assim que me sentir forte o suficiente para viajar, pretendo ir para Aragando.

Siferra ficou olhando para ele, sem dizer nada. Theremon respirou fundo. Depois, disse, em tom de súplica:

— Venha comigo, Siferra. — Estendeu a mão para ela. — Fique comigo esta noite, neste humilde cubículo. Amanhã de manhã, vamos juntos para o sul. Seu lugar não é aqui. Além disso, temos muito mais chance de chegar a Aragando se viajarmos juntos.

Siferra não disse nada. Theremon não retirou a mão.

— Então. Que é que você acha?

O repórter viu que Siferra estava sendo assaltada por emoções contraditórias. Era evidente que travava uma luta consigo mesma. De repente, porém, a luta chegou ao fim.

— Está bem. Está bem. Vamos fazer isso, Theremon. Tomou a mão do jornalista e apagou a luz do teto, deixando acesa apenas a lâmpada que estava no chão, ao lado da cama.

38

— Sabe em que bairro estamos? — perguntou Siferra. Estava olhando, consternada, para o cenário de desolação: casas em ruínas, veículos abandonados. Passava um pouco do meio-dia. Fazia três dias que haviam deixado o Abrigo. A. luz implacável de Onos iluminava cada parede enegrecida, cada janela estilhaçada.

Theremon sacudiu a cabeça.

— Tinha um nome bobo, disso você pode ter certeza. Jardim Primavera, Terra do Sol, alguma coisa assim. Mas o nome não importa. Isto aqui não é mais um bairro, Siferra. Está a caminho de tornar-se um sítio arqueológico. Um dos Subúrbios Perdidos de Saro.

Tinham chegado a um ponto bem ao sul da floresta, quase no perímetro urbano da cidade de Saro. Mais além, ficavam as plantações, pequenas cidades e, longe muito longe, o Parque Nacional de Aragando.

A travessia da floresta levara dois dias. Tinham passado a primeira noite no abrigo improvisado de Theremon e a segunda na encosta da colina de Ponto Onos. Durante todo esse tempo, não houvera nenhuma indicação de que o Corpo de Bombeiros estivesse no seu encalço. Aparentemente, Altinol não tentara segui-los, embora tivessem levado com eles armas e duas mochilas cheias de provisões. Agora, pensou Siferra, o perigo havia passado. Ela disse para o repórter:

— A estrada para Aragando começa aqui perto, não é?

— Daqui a quatro ou cinco quilômetros. Se tivermos sorte, não haverá nenhum incêndio para bloquear o nosso caminho.

— Vamos ter sorte. Pode contar com isso.

Ele riu.

— Sempre otimista, não é?

— Não custa mais do que ser pessimista — disse ela. De uma forma ou de outra, vamos passar.

— Certo. De uma forma ou de outra.

Estavam conseguindo manter um bom ritmo. Theremon parecia quase recuperado da surra que recebera na floresta e dos dias que passara praticamente sem comer. Forte como era, Siferra tinha dificuldade para acompanhar seu passo. A arqueóloga estava se esforçando para não cair em depressão. Desde o momento da partida, procurara mostrar-se confiante, afirmando constantemente que chegariam a Aragando e encontrariam pessoas como eles já ocupadas no planejamento da reconstrução do mundo.

Na verdade, porém, Siferra não se sentia tão segura. E quanto mais ela e Theremon se internavam naqueles bairros outrora elegantes, mais difícil se tornava resistir ao horror, ao choque, ao desespero, a uma sensação de derrota total. Era um mundo de pesadelo.

Não havia como negar a gravidade do que acontecera. Para qualquer lugar que olhasse, só via destruição.

Veja!, pensou. Veja! A desolação… as cicatrizes… os edifícios em ruínas, com as paredes já tomadas pelas primeiras plantas, já ocupados pelas primeiras levas de lagartos. Em toda parte, as marcas daquela noite terrível em que os deuses haviam mais uma vez amaldiçoado o planeta. O cheiro acre da fumaça negra que subia dos restos dos incêndios que as chuvas recentes haviam apagado… a outra fumaça, branca e penetrante, que saía dos porões ainda em chamas… a fuligem que cobria tudo… os corpos nas ruas, retorcidos em sua agonia final… a expressão de loucura nos rostos das poucas pessoas que de vez em quando espreitavam dos escombros de suas casas…

O fim de toda a glória. O colapso de toda a grandeza. Tudo em ruínas, tudo… , como se o oceano tivesse se levantado, pensou Siferra, e varrido todas as nossas realizações. Siferra estava acostumada com ruínas. Passara toda a vida profissional escavando ruínas. Entretanto, as ruínas que costumava escavar eram antigas, misteriosas e românticas. O que via ali era real demais, próximo demais, e não tinha nada de romântico. Tinha sido fácil para ela conviver com a queda das civilizações do passado, já que não estava envolvida emocionalmente. Agora, porém, sua própria época tinha sido varrida para a lata de lixo da história, e isso era difícil de aceitar.

Por que isso tinha que acontecer?, perguntou-se a arqueóloga. Por quê? Por quê? Por quê?

Será que fomos tão maus assim? Será que nos desviamos tanto do caminho dos deuses que tivemos que ser punidos desta forma?

Não. Não! Não existem deuses; não existiu punição.

Não, sobre isso Siferra estava certa. Ela não tinha dúvida que o que acontecera fora simplesmente um fenômeno natural, causado pelos movimentos impessoais de astros inanimados e abandonados, que a cada dois mil anos assumiam uma configuração particularmente funesta.

Isso era tudo. Um acidente.

Um acidente que Kalgash fora forçado a suportar várias vezes durante sua história. De tempos em tempos, as Estrelas apareciam com toda a sua assustadora majestade e em uma agonia desesperada, alimentada pelo terror, o homem se voltava contra suas próprias obras. Enlouquecido pela Escuridão, enlouquecido pela luz fria das Estrelas. Era um ciclo interminável. As cinzas de Thombo haviam contado toda a história.

Agora, estava começando tudo de novo. Como Theremon dissera: Este lugar está a caminho de se tornar um sítio arqueológico. Exatamente.

O mundo que haviam conhecido não existia mais. Mas ainda estamos aqui, pensou Siferra.

Que vamos fazer? Que vamos fazer?

O único consolo que conseguia encontrar no meio da desolação era a lembrança daquela primeira noite com Theremon, no Abrigo: tão súbita, tão inesperada, tão maravilhosa.

De vez em quando, revivia a cena em sua memória. O sorriso tímido de Theremon quando lhe pedira para passar a noite com ele… não era um matreiro truque de sedução. O seu olhar.

O toque dos seus dedos em sua pele. Seu abraço. A respiração dele se misturando à sua…

Há quanto tempo não estava com um homem! Quase se havia esquecido de como era… quase. E sempre, nas outras vezes, tinha havido aquela sensação de que estava cometendo um engano, de que havia escolhido o caminho errado, de que não devia ter iniciado aquela viagem. Com Theremon, havia sido diferente: simplesmente uma queda das barreiras, dos temores e das aparências, uma rendição, uma admissão, afinal, de que não estava mais sozinha naquele mundo hostil, de que estava disposta a formar uma aliança, de que Theremon, um homem direto, decidido, até mesmo um pouco grosseiro, forte, determinado e confiável, era o aliado que ela queria.

E Siferra se entregara afinal, sem hesitação e sem arrependimento. Que ironia, pensou. Foi necessário o fim do mundo para eu me apaixonar! Mas pelo menos tinha aquele amor. Podia ter perdido muita coisa, mas pelo menos tinha aquele amor.

— Olhe ali — disse ela, apontando. — Uma placa. Era uma placa de metal verde, pendurada meio torta em um poste de luz, com a superfície enegrecida em vários pontos.

Estava furada em três ou quadro lugares; pareciam buracos de bala. Entretanto, as letras amarelas ainda estavam bem legíveis: GRANDE ESTRADA DO SUL. Logo abaixo, uma seta mandava seguir em frente.

— Não pode ficar a mais de dois ou três quilômetros daqui — disse Theremon. — Devemos chegar lá em… Houve um zumbido súbito no ar e depois um ruído seco e penetrante. Siferra cobriu os ouvidos com as mãos. Theremon segurou-a pelo braço e fez com que se abaixasse.

— Fique abaixada! — sussurrou. — Alguém está atirando em nós!

— Quem? Onde?

O repórter já estava com a pistola na mão. Siferra também sacou a sua arma. Olhando para cima, viu que o projétil atingira a placa: havia um novo furo entre as primeiras duas palavras, obliterando algumas letras.

Theremon estava correndo, agachado, na direção do edifício mais próximo. Siferra o seguiu, sentindo-se vergonhosamente exposta. Aquilo era pior do que ficar nua na frente de Altinol e seus asseclas. Mil vezes pior. O tiro seguinte podia ser disparado a qualquer momento, de qualquer direção, e ela não tinha como se proteger. Mesmo quando dobrou a esquina e se encolheu ao lado de Theremon na sombra do beco, ofegante, o coração aos pulos, não se sentiu segura.

O jornalista fez um gesto com a cabeça em direção a um grupo de casas incendiadas do outro lado da rua. Duas ou três delas estavam intactas, perto da esquina oposta.

Agora, a moça podia ver rostos mal-encarados olhando por uma janela do segundo andar da casa mais afastada.

— Tem gente ali. Invasores, aposto. Malucos.

— Estou vendo.

— Não têm medo dos nossos lenços verdes. Talvez não conheçam o Corpo de Bombeiros, deste lado da cidade. Ou talvez estejam atirando em nós por causa dos lenços.

— Será possível?

— Tudo é possível. — Theremon chegou um pouco para a frente. — Minha dúvida é a seguinte: será que estavam tentando nos acertar e têm uma péssima pontaria, ou apenas queriam nos assustar? Se tentaram atirar em nós e acertaram na placa, então podemos tentar sair correndo. Mas se foi apenas uma advertência…

— Acredito mais na segunda possibilidade. Seria muita coincidência um tiro perdido acertar a placa.

— Tem razão — disse Theremon. Ele fez uma careta. Acho que vou mostrar a eles que estamos armados. Só para desencorajá-los de mandar alguém contornar as casas e nos atacar pela retaguarda.

Ajustou a pistola para o feixe mais largo e a máxima distância, levantou-a e disparou um único tiro. Uma bola de luz vermelha atravessou o ar e atingiu o chão bem à frente do edifício onde estavam os atacantes. Uma feia mancha negra apareceu no gramado, acompanhada por uma pequena nuvem de fumaça.

— Acha que eles viram? — perguntou Siferra.

— Acho que sim, a menos que estejam tão loucos que são incapazes de prestar atenção nas coisas. Mas tenho impressão de que viram, sim, e não gostaram nem um pouco.

Os rostos estavam de volta à janela.

— Continue abaixada — advertiu Theremon. — Eles têm uma espécie de rifle de caça. Estou vendo o cano.

Houve um novo zumbido, seguido por um estrondo ensurdecedor. A placa caiu no chão, despedaçada.

— Podem ser malucos — observou Siferra -, mas têm uma pontaria e tanto!

— É verdade. Estavam apenas brincando conosco quando deram o primeiro tiro. Rindo de nós. Estão nos avisando que se pusermos o nariz de fora, ficaremos sem ele. Estamos encurralados, e isso os diverte.

— Não podemos sair daqui pela outra extremidade do beco?

— Ali atrás está tudo bloqueado por destroços. E pode haver outros invasores do outro lado.

— Então que vamos fazer?

— Incendiar aquela casa — disse Theremon. – Obrigá-los a sair. E matá-los, se não quiserem se render.

Siferra arregalou os olhos.

— Matá-los?

— Se não nos deixarem outra opção. Quer chegar a Aragando ou passar o resto da vida escondida neste beco?

— Mas não se pode matar as pessoas, mesmo que você… mesmo que elas…

Interrompeu o que estava dizendo. Não sabia exatamente o que estava tentando dizer.

— Mesmo que elas estejam tentando matar você, Siferra? Mesmo que achem divertido atirar em você?

A moça não respondeu. Chegara a pensar que estava começando a compreender como as coisas funcionavam no monstruoso novo mundo que começara a existir depois do eclipse. Agora, porém, percebia que não compreendia nada, absolutamente nada.

Theremon tinha chegado mais um pouco para a frente. Estava fazendo pontaria com a pistola.

A bola incandescente atingiu a fachada branca da casa. Na mesma hora, a madeira começou a ficar preta. Pequenas chamas apareceram. Ele desenhou uma linha de fogo na frente da casa, parou por um momento, atirou de novo, traçando uma nova linha sobre a primeira.

— Passe a sua pistola para cá — disse para Siferra. A minha está ficando superaquecida.

A moça entregou-lhe a arma. Theremon ajustou-a e disparou pela terceira vez. Uma boa parte da frente da casa já estava em chamas. O feixe já começava a penetrar no interior dos aposentos.

Não fazia muito tempo, pensou Siferra, aquela casa branca de madeira tinha pertencido a alguém. Pessoas moravam ali, uma família, orgulhosa de sua casa, do seu bairro… cuidando do gramado, regando as plantas, brincando com os cachorros, recebendo os amigos para jantar, bebendo drinques na varanda enquanto viam os sóis se porem.

Agora, nada disso significava mais nada. Agora Theremon estava deitado de bruços em um beco cheio de detritos, incendiando, de forma eficiente e sistemática, uma casa branca de madeira. Porque era a única maneira de poder sair dali e continuar a viagem para o Parque de Aragando.

Um mundo de pesadelo, sim.

Uma grossa coluna de fumaça estava saindo da casa. Todo o lado esquerdo da fachada estava em chamas.

E os ocupantes estavam pulando da janela do segundo andar.

Três, quatro, cinco deles, tossindo, lutando para respirar. Duas mulheres e três homens. Caíram no jardim e ficaram parados por um momento, como se estivessem tontos.

As roupas estavam em farrapos, os cabelos desgrenhados. Malucos. Tinham sido alguma coisa diferente, antes do Cair da Noite, mas agora eram parte daquela grande horda de infelizes, cujas mentes tinham sido perturbadas, talvez para sempre, pela súbita rajada de luz fria que as Estrelas haviam submetido seus sentidos despreparados.

— Levantem-se! — gritou Theremon. — Mãos para cima! Já! Vamos, levantem as mãos!

Levantou-se, com uma pistola em cada mão, e atravessou a rua. Siferra acompanhou-o. A casa agora estava envolvida pela fumaça, e dentro daquele manto negro grandes labaredas lambiam todos os lados da estrutura, como se fossem flâmulas escarlates. Será que ainda havia pessoas lá dentro? Que importava?

— Façam fila! — ordenou Theremon. — Isso mesmo! Virados para a esquerda! — Eles ficaram em posição de sentido. Um dos homens parecia um pouco relutante, e Theremon atirou por cima da sua cabeça para apressá-lo. — Agora comecem a correr. Pelo meio da rua! Mais depressa! Mais depressa!

Um dos lados da casa desabou, com um grande estrondo, deixando à vista os quartos, os armários, a mobília, como uma grande casa de bonecas. Estava tudo em chamas.

Os invasores já tinham chegado à esquina. Theremon continuou a gritar e a ameaçá-los, atirando de vez em quando. Depois, voltou-se para Siferra.

— Tudo bem. Vamos dar o fora daqui!

Colocaram as pistolas nos coldres e saíram correndo na direção oposta, à procura da Grande Estrada do Sul.

— E se eles tivessem saído atirando? — perguntou Siferra mais tarde, quando já podiam ver à distância o começo da estrada. — Teria coragem de matá-los, Theremon?

O jornalista olhou para ela, muito sério.

— Se fosse a única maneira de sairmos daquele beco? Acho que já respondi a esta pergunta. Claro que teria coragem. Que mais poderia fazer?

— Nada, suponho — observou Siferra, com um fio de voz.

A imagem da casa em chamas ainda estava bem viva na sua memória. E a visão daquelas pessoas esfarrapadas, correndo pela rua. Eles haviam atirado primeiro, disse para si mesma. A culpa era deles. Era impossível dizer de que seriam capazes, se Theremon não tivesse tido a ideia de incendiar a casa… casa… a casa de alguém… casa de ninguém, corrigiu.

— Ali está — disse Theremon. — A Grande Estrada do Sul. Daqui até Aragando, são cinco horas de carro. Poderíamos chegar lá na hora do jantar.

— Se tivéssemos um carro — disse Siferra.

— Se tivéssemos um carro.

39

Mesmo depois de tudo que havia visto no caminho, o estado da Grande Estrada do Sul pegou Theremon de surpresa. Era como se o pior pesadelo de um engenheiro de estradas se transformasse em realidade.

Enquanto estavam atravessando os subúrbios ao sul da cidade, Theremon e Siferra haviam encontrado muitos veículos abandonados nas ruas. Era evidente que muitos motoristas, tomados pelo pânico no momento do eclipse, haviam saltado dos carros e fugido a pé, na esperança de encontrar algum lugar para se esconderem do brilho aterrorizante das Estrelas.

Entretanto, os carros abandonados nas ruas dos bairros residenciais pelos quais ele e Siferra haviam passado estavam espalhados de forma mais ou menos esparsa, aqui e ali, com grandes espaços vazios entre eles. Naqueles bairros, o tráfego na hora do eclipse, depois do final do expediente, deve ter sido relativamente leve.

A Grande Estrada do Sul, porém, que àquela hora ainda estava com o tráfego pesado dos motoristas que voltavam para casa do trabalho, deve ter se transformado instantaneamente em um hospício no momento em que a catástrofe se abateu sobre o planeta.

— Olhe para isso! — sussurrou Theremon, horrorizado. — Olhe para isso, Siferra!

A arqueóloga sacudiu a cabeça.

— É incrível. Incrível!

Havia carros em toda parte, nas mais estranhas posições, alguns empilhados por cima dos outros. A estrada de várias pistas estava quase totalmente bloqueada pelos veículos, que formavam uma parede de destroços. Estavam voltados em todas as direções. Alguns estavam de rodas para cima. Muitos não passavam de esqueletos calcinados.

Poças de gasolina derramada brilhavam como lagos cristalinos. Trilhas de cacos de vidro faziam o piso cintilar. Carros mortos. Motoristas mortos.

Era a pior cena que os dois já haviam visto. Um enorme exército de cadáveres se estendia diante deles. Havia corpos ao volante dos carros, corpos imprensados entre os veículos que haviam colidido, corpos debaixo das rodas dos carros. E centenas de corpos simplesmente espalhados como bonecas velhas ao longo do acostamento da estrada, os membros congelados nas posições grotescas da morte.

— Provavelmente alguns motoristas pararam logo que as Estrelas apareceram — disse Siferra. — Outros, porém, aceleraram, tentando chegar em casa, e se chocaram com os que haviam parado. Outros, ainda, ficaram tão assustados que não conseguiram mais controlar os seus carros. Olhe, um deles saiu da estrada bem ali, e aquele deve ter dado meia-volta e tentado voltar pela contramão…

Theremon estremeceu.

— Um engavetamento colossal. Carros chegando de todos os lados ao mesmo tempo. Girando sobre si mesmos, capotando, passando para a outra pista. As pessoas saltando, correndo sem destino, sendo atropeladas por outros carros que ainda não haviam parado. Todos perdendo a razão de mil maneiras diferentes.

O jornalista começou a rir com amargura.

— Como você tem coragem de achar graça de uma coisa dessas?

— Estou rindo da minha inocência — explicou Theremon. — Sabe, Siferra, há uma hora, quando estávamos nos aproximando da estrada, pensei que, com um pouco de sorte, poderíamos encontrar um carro abandonado com um pouco de combustível no tanque e simplesmente dirigir até Aragando. Seria muito conveniente, não acha? Só que não parei para pensar que a estrada estaria totalmente bloqueada, que mesmo que tivéssemos a sorte de achar um carro em bom estado, não conseguiríamos andar nem cem metros com ele…

— No estado em que está a estrada, até a pé vai ser difícil.

— É verdade. Mas não existe outro caminho. Sombrios, começaram a longa jornada para o sul. Iluminados pela luz quentes de Onos, caminharam pelo acostamento da rodovia, desviando-se dos carros amassados, tentando ignorar os corpos calcinados e mutilados, as poças de sangue seco, o cheiro de morte, o horror daquilo tudo.

Theremon percebeu que estava ficando rapidamente insensível a tudo aquilo. Talvez fosse esta a maior tragédia de todas. Depois de algum tempo, simplesmente deixou de notar o sangue coagulado, os olhos arregalados dos cadáveres, a imensidão do desastre que havia ocorrido ali.

O trabalho de escalar as pilhas de metal retorcido e se esgueirar por entre os veículos acidentados era tão difícil que exigia toda a sua concentração, e logo ele deixou de prestar atenção às vítimas da tragédia. Já sabia que era inútil procurar sobreviventes. Qualquer um que tivesse passado tanto tempo preso nos escombros com certeza já teria morrido de sede e de fome.

Siferra também parecia ter se adaptado rapidamente ao pesadelo que era a Grande Estrada do Sul. Praticamente em silêncio, procurava o melhor caminho por entre os obstáculos, ora se detendo para apontar uma passagem no meio dos destroços, ora se agachando para passar por baixo de uma massa de metais retorcidos.

Havia muito poucas pessoas usando a estrada. Uma vez ou outra, viam outros viajantes rumando para o sul ou cruzavam com pedestres que se dirigiam para a cidade de Saro. Em todos os casos, os caminhantes tratavam de se esconder no meio dos destroços ou saíam correndo até desaparecerem. De que tinham medo?, pensou Theremon.

De serem atacados por nós. Agora é todo mundo contra todo mundo…

Uma vez, cerca de uma hora depois que começaram a caminhar, viram um homem imundo indo de carro em carro, parando para remexer nos bolsos dos mortos. Levava um grande saco nas costas, tão pesado que o fazia cambalear. Theremon praguejou e sacou a pistola.

— Olhe para esse sujeito! Olhe para ele!

— Não, Theremon!

Siferra empurrou o braço do repórter no momento em que este puxou o gatilho. O tiro acertou em um carro próximo ao saqueador, fazendo-o brilhar por um momento com a energia refletida.

— Por que fez isso? — perguntou Theremon. — Eu só estava querendo assustá-lo.

— Pensei… que você…

Theremon sacudiu a cabeça.

— Não. Ainda não. Veja… veja como ele corre!

O ruído do tiro fizera o saqueador se voltar, olhando espantado para Theremon e Siferra. Seus olhos estavam esgazeados, um filete de saliva escorria do canto dos seus lábios. De repente, largou o saco no chão e saiu correndo por cima dos carros, até desaparecer na distância.

Seguiram caminho.

A marcha era lenta e penosa. As placas indicadoras pareciam zombar do seu progresso, revelando que haviam coberto uma distância ridiculamente pequena desde o início da jornada. Quando Onos se pôs, tinham andado apenas dois quilômetros e meio.

— Desse jeito — disse Theremon, desanimado — vamos levar mais de um ano para chegar a Aragando.

— Depois de pegarmos o jeito, vamos andar mais depressa — observou Siferra, sem muita convicção.

Se ao menos pudessem usar uma rua paralela à estrada, em vez de andarem pelo acostamento, tudo seria bem mais fácil. Entretanto, isso era impossível. Boa parte da Grande Estrada do Sul era um elevado que passava por cima de florestas, pântanos e uma ou outra zona industrial. Havia também pontes sobre minas abandonadas, rios e lagos. Assim, em grande parte da distância, seriam forçados a usar a própria estrada, apesar dos obstáculos infinitos.

Permaneciam no acostamento sempre que possível, já que a concentração de veículos acidentados era menor do que no meio da estrada. Olhando para as cidades por onde passavam, podiam ver os sinais do desastre contínuo.

Casas incendiadas. Fogos ainda acesos depois de tanto tempo, estendendo-se até o horizonte. Pequenos bandos de refugiados, movendo-se rapidamente pelas ruas cobertas de escombros, em uma migração inútil, desesperada. Às vezes, um grupo maior, de mil pessoas ou mais, acampado em algum lugar aberto, as pessoas encolhidas, paralisadas, apáticas.

Siferra apontou para uma igreja incendiada no alto de uma colina, à beira da estrada. Um pequeno grupo de maltrapilhos estava trabalhando nas paredes, removendo os blocos de pedra com pés de cabra e espalhando-os no pátio da igreja.

— Parece que estão demolindo a igreja — observou. Para que fariam isso?

— Estão fazendo isso porque odeiam os deuses — explicou Theremon. — Eles acham que os deuses são responsáveis por tudo o que aconteceu. Conhece o Panteão, a grande Catedral de Todos os Deuses, na beira da floresta, com os famosos murais Thamilandi? Estive lá alguns dias depois do eclipse. Tinha sido incendiada. Reduzida a escombros. Ainda havia um padre no meio dos tijolos. Agora percebo que o incêndio não foi nenhum acidente. O incêndio foi proposital. E o padre… o padre foi morto por um louco diante dos meus olhos. Pensei que ele estivesse querendo roubar a roupa do padre. Talvez não tenha sido essa a verdadeira razão. Talvez a verdadeira razão tenha sido o ódio.

— Mas os padres não tiveram culpa…

— Já se esqueceu dos Apóstolos? Mondior, afirmando durante meses a fio que o que estava para acontecer era uma vingança dos deuses? Os sacerdotes são a voz dos deuses, não é verdade, Siferra? E se trilhamos o caminho do mal, a ponto de sermos punidos, os próprios padres devem ser os responsáveis pela chegada das Estrelas. Pelo menos, é o que as pessoas devem pensar.

— Os Apóstolos! — exclamou Siferra, com ar contrariado. — Gostaria de poder esquecê-los. Que acha que estão fazendo no momento?

— Devem ter escapado dos efeitos da Escuridão em sua torre.

— É verdade. Estavam preparados para tudo. Que foi que Altinoi disse? Que já estavam organizando um governo provisório ao norte da cidade de Saro?

Theremon olhou para a igreja na colina e disse, em tom desanimado:

— Posso imaginar que tipo de governo vai ser. Virtude por decreto. Mondior anunciando um novo mandamento por dia, Todas as formas de prazer proibidas por lei. Os pecadores executados em público. — Cuspiu no chão. — Pela Escuridão! Pensar que tive Folimun em minhas mãos aquela noite e o deixei escapar, quando podia esganá-lo com toda a facilidade…

— Theremon!

— Eu sei. De que adiantaria? Um Apóstolo a mais ou a menos? Melhor deixá-lo viver. Melhor deixá-los organizar um governo, e dizer aos infelizes que moram ao norte da cidade de Saro o que devem fazer e o que devem pensar. Que é que nós temos com isso? Estamos indo para o sul, não estamos? O que os Apóstolos fizerem não nos afetará. Eles vão ser apenas um entre cinquenta governos rivais, quando as coisas se acalmarem. Um entre cinco mil, talvez. Cada distrito terá o seu ditador, o seu imperador. — A voz de Theremon assumiu um tom sombrio. — Oh, Siferra, Siferra…

A arqueóloga segurou-lhe a mão. Em tom suave, perguntou:

— Está se culpando de novo, não está?

— Como é que você sabe?

— Sua expressão não deixa margem a dúvidas. Theremon, convença-se de que não tem culpa de nada! Isto teria acontecido mesmo que você não escrevesse nada no jornal. Um homem sozinho não poderia mudar o que aconteceu. Era o destino do nosso mundo, algo que não podia ser evitado, algo que…

— Destino? — repetiu o repórter. — Que palavra estranha para você usar! A vingança dos deuses, é isso que quer dizer?

— Não falei em deuses. Quis dizer apenas que Kalgash Dois estava destinado a aparecer, não por causa dos deuses, mas das leis da astronomia, e que o eclipse estava destinado a acontecer, e o Cair da Noite, e as Estrelas…

— Acho que tem razão — disse Theremon, com indiferença.

Continuaram a caminhar, passando por um trecho da estrada onde havia poucos carros abandonados. Onos já havia se posto e os sóis da noite, Sitha, Tano e Dovim, estavam no céu. Um vento gelado soprava do oeste. Theremon estava começando a ficar com fome. Tinham passado o dia inteiro sem comer. Resolveram acampar entre dois carros e abrir um dos pacotes de comida que tinham trazido do Abrigo.

Entretanto, embora estivesse com fome, Theremon descobriu que não tinha apetite e teve que se forçar a engolir a comida. Os rostos rígidos dos mortos o encaravam dos carros próximos. Enquanto estava em movimento, conseguira ignorá-los, agora, porém, sentado ali, no que havia sido a melhor rodovia da província de Saro, não podia tirá-los da cabeça. Havia momentos em que tinha a impressão de que os havia assassinado pessoalmente.

Fizeram uma cama com assentos de automóveis acidentados e dormiram juntos, um sono leve, entrecortado, que não teria sido muito pior se tentassem dormir no piso duro de concreto da estrada.

Durante a noite, ouviram gritos, risos, o som distante de vozes cantando. Theremon acordou uma vez e olhou por cima da cerca da rodovia elevada. Havia várias fogueiras espalhadas no campo, a uns vinte minutos de marcha na direção leste. Será que ninguém mais dormia dentro de casa? O impacto das Estrelas tinha sido tão universal, pensou, que a população só se sentia segura ao ar livre, à luz familiar dos sóis eternos?

De madrugada, finalmente conseguiu cochilar. Mal conciliara o sono, porém, quando Onos nasceu, a luz dourada do sol arrancando-o dos seus pesadelos. Siferra já estava acordada. Seu rosto estava pálido, os olhos vermelhos e inchados.

Theremon forçou-se a sorrir.

— Você está linda — disse para a moça.

— Oh, isto não é nada. Precisava me ver quando passei duas semanas sem tomar banho.

— O que eu queria dizer era…

— Sei o que você queria dizer. Obrigada.

Naquele dia, conseguiram progredir seis quilômetros e meio, com muito esforço.

— Precisamos de água — disse Siferra, quando o vento da tarde começou a soprar. — Vamos pegar a próxima rampa de saída e procurar uma fonte.

— Acho que não temos escolha — disse o repórter. Theremon não gostava da ideia de deixar a estrada. Desde o começo da viagem, a rodovia tinha sido quase que exclusivamente deles, àquela altura, começava a se sentir quase em casa, no meio dos veículos despedaçados. Lá em baixo, nos campos, onde os bandos de refugiados estavam vagando (É estranho, pensou, eu chamá-los de refugiados, como se eu mesmo estivesse em viagem de férias), poderiam se envolver em todo o tipo de problemas.

Mas Siferra estava certa. Precisavam de água. O suprimento que levavam estava quase se esgotando. E, talvez, passar algum tempo longe dos carros e dos cadáveres, antes de retomar a marcha para Aragando, fizesse bem a eles.

Apontou para uma placa bem à frente:

— Há uma saída a um quilômetro e meio daqui.

— Chegaremos lá em mais ou menos uma hora.

— Menos — disse Theremon. — A estrada está menos congestionada neste trecho. Vamos sair da estrada, fazer o que temos de fazer o mais depressa que pudermos e voltar para dormir aqui em cima. É mais seguro descansar no meio dos carros do que em campo aberto.

Siferra concordou. Naquele pedaço relativamente vazio da rodovia, a marcha foi bem mais rápida do que haviam previsto. Em um piscar de olhos, estavam diante de outra placa, segundo a qual faltavam apenas quinhentos metros para a saída.

De repente, porém, tudo mudou. Descobriram que naquele ponto a estrada estava bloqueada por um engavetamento de proporções tão grandes, que Theremon receou por um momento que não pudessem passar.

Devia ter havido uma série monstruosa de choques neste ponto da estrada, uma coisa assustadora mesmo diante de tudo que ele e Siferra já haviam visto. Dois grandes caminhões pareciam estar no centro de tudo, com as cabines esmagadas uma contra a outra, como duas feras em combate; e parecia que dezenas de carros de passeio tinham se chocado com eles, virando de lado, capotando, formando uma gigantesca barreira que ocupava toda a largura da estrada e mais os acostamentos. Portas e para-choques retorcidos, afiados como navalhas, se projetavam dos destroços, e o vidro quebrado retinia sinistramente quando era agitado pelo vento.

— Ali — disse Theremon. — Acho que estou vendo uma passagem. Por dentro desta abertura, depois por cima do caminhão da esquerda… não, não, não vai dar certo, teremos que passar por baixo do…

Siferra aproximou-se. O repórter mostrou-lhe a causa do problema, um aglomerado de carros batidos que estava à espera deles do outro lado, e ela fez que sim com a cabeça. Tiveram que passar por baixo dos veículos acidentados, rastejando por entre os cacos de vidro e as poças de gasolina. Pararam uma vez para descansar, a meio caminho. Afinal, chegaram ao final do engavetamento. Theremon foi o primeiro a emergir.

— Deuses! — murmurou, olhando, surpreso, para a cena diante dos seus olhos. — Que é isso?

Do outro lado da pilha de destroços, a estrada estava desimpedida por uns vinte metros. Depois desse espaço vazio, havia um segundo obstáculo, que atravessava a estrada de lado a lado. Ao contrário do primeiro, porém, este bloqueio era proposital: uma barricada de portas e rodas de automóveis, empilhadas até uma altura de três ou quatro metros.

à frente da barricada, Theremon viu umas trinta pessoas, que haviam acampado na rodovia. Tinha estado tão preocupado em atravessar o primeiro bloqueio que não ouvira os ruídos do outro lado. Siferra apareceu atrás dele. O repórter ouviu sua exclamação de surpresa e medo.

— Fique com a mão na pistola — disse Theremon, em voz baixa. — Mas mantenha-a no coldre e nem pense em usá-la. Eles são muitos.

Alguns dos estranhos estavam passeando na estrada, perto de onde eles estavam. Eram seis ou sete homens musculosos. Theremon esperou, imóvel, que se aproximassem.

Sabia que não havia como evitar o confronto, nenhuma esperança de escapar através do perigoso labirinto que acabavam de transpor. Ele e Siferra estavam presos naquela clareira entre os dois bloqueios. Tudo que podiam fazer era esperar para ver o que acontecia e torcer para que aquelas pessoas não tivessem perdido o juízo.

Um homem alto, de ombros caídos e olhos gelados, se aproximou sem pressa de Theremon. Quando os dois estavam a quase um palmo de distância, disse:

— Muito bem, amigo, Este é um posto de Busca. — Ele disse a palavra Busca de um jeito todo especial.

— Posto de busca? — repetiu Theremon. — Que é que vocês estão procurando?

— Não se meta a engraçadinho ou será pior. Sabe muito bem o que estamos procurando. Não crie problemas para você. Chamou os outros com um gesto. Eles se aproximaram e começaram a apalpar as roupas de Theremon e Siferra. Theremon empurrou, irritado, as mãos que o revistavam.

— Deixe-nos passar! — disse tenso.

— Ninguém passa por aqui sem ser revistado.

— Por ordem de quem?

— Por minha ordem. Vai ficar quieto por bem, ou vamos ter que obrigá-lo?

— Theremon… — sussurrou Siferra, preocupada.

Ele não lhe deu ouvidos. Sentiu o sangue subir à cabeça. A razão lhe dizia que era tolice tentar resistir, que eles eram muitos, que o homem falava sério quando dizia que seria pior se ele não se submetesse à busca. Essas pessoas não pareciam exatamente bandidos. Havia alguma coisa de oficial nas palavras do homem alto, como se ali fosse uma espécie de fronteira, um posto de alfândega, talvez. O que procuravam? Comida? Armas? Será que aqueles homens tomariam as pistolas que estavam carregando? Melhor entregar a eles tudo que levavam, disse Theremon para si mesmo, do que serem mortos em uma tentativa heroica e inútil de defender o seu direito de passagem.

Mesmo assim… ser humilhado daquela forma… ser forçado a se submeter a uma revista, em uma rodovia pública… E não podiam abrir mão das pistolas nem dos mantimentos. Ainda estavam a centenas de quílômetros de Aragando.

— Estou lhe avisando — começou o homem alto.

— E eu estou lhe avisando, tire as mãos de mim. Sou um cidadão da República Federal de Saro e esta é ainda uma estrada livremente aberta a todos os cidadãos. Você não tem autoridade sobre mim.

— Ele fala como um professor — observou um dos outros homens, rindo. — Acha que tem direitos.

O homem alto deu de ombros.

— Já temos o nosso professor. Não precisamos de outro. Chega de conversa. Agarrem-nos e façam a Busca. Da cabeça aos pés.

— Fique longe de mim…

Uma mão agarrou Theremon pelo braço. Ele cerrou o punho e golpeou alguém nas costelas. Aquela cena já lhe parecia familiar. Outra briga, outra surra, na certa. Mesmo assim, estava decidido a resistir. Alguém o acertou no rosto, outro homem segurou-o pelo cotovelo e ouviu Siferra gritar de raiva e de medo. Tentou desvencilhar-se, acertou alguém, foi acertado de novo, esquivou-se, levou um soco no rosto…

— Hei, esperem! — gritou uma nova voz. — Calma! Butella, largue esse homem! Fridnor! Talpin! Parem!

Era uma voz familiar. A quem pertenceria?

Os homens recuaram. Theremon, um pouco tonto, lutou para manter o equilíbrio enquanto se voltava para o recém chegado.

Era um homem magro, rijo, com uma expressão inteligente, que estava rindo para ele, os olhos penetrantes se destacando em um rosto sujo de fuligem…

Alguém que ele conhecia, sim.

— Beenay!

— Theremon! Siferra!

40

Na mesma hora, tudo mudou. Beenay levou Theremon e Siferra para um pequeno abrigo surpreendentemente acolhedor que ficava do outro lado do bloqueio: almofadas, cortinas, uma pilha de latas que pareciam conter alimentos. Uma mulher jovem estava deitada ali, com a perna esquerda envolta em bandagens. Parecia fraca e febril, mas sorriu debilmente quando os outros entraram.

— Você se lembra de Raissta 717, não se lembra, Theremon? Raissta, esta é Siferra 89, do departamento de arqueologia. Eu lhe falei sobre ela. Foi quem descobriu que aquela cidade tinha sido incendiada várias vezes. Raissta é minha companheira oficial — disse para Siferra.

Theremon se encontrara com Raissta algumas vezes nos últimos anos, por causa de sua amizade com Beenay. Mas isso havia acontecido em outra era, em um mundo que estava morto e enterrado. Mas podia reconhecê-la. Lembrava-se da moça como uma jovem bonita, bem vestida, que parecia sempre arrumada, sempre de bom humor. Mas agora… agora! Aquela mulher pálida, macilenta, desgrenhada… parecia uma sombra da Raissta que conhecera!

Fazia mesmo apenas algumas semanas que ocorrera o eclipse? De repente, parecia que anos tinham se passado. Anos, não, milênios… eras geológicas…

— Tenho uma garrafa de conhaque, Theremon — disse Beenay.

Theremon arregalou os olhos.

— Está falando sério? Sabe quanto tempo faz que eu não bebo? Que ironia, Beenay. Você, o abstêmio que eu tive que convencer a tomar o primeiro gole de Tano Especial… você é o dono da última garrafa de conhaque deste planeta!

— Siferra? — perguntou Beenay.

— Por favor. Só um pouquinho.

— Só tenho um pouquinho — disse Beenay, servindo três doses minúsculas de conhaque.

Quando a bebida começou a esquentá-lo, Theremon perguntou:

— Beenay, que está acontecendo por aqui? Que história é essa de Busca?

— Você não ouviu falar da Busca?

— Eu, não.

— Onde vocês dois estiveram desde o eclipse?

— A maior parte do tempo, na floresta. Siferra ajudou-me depois que alguns vagabundos me deram uma surra e me levou para o Abrigo da universidade, onde me recuperei dos ferimentos. Depois, nós dois pegamos esta estrada, na esperança de chegarmos a Aragando.

— Então você sabe a respeito de Aragando?

— Sei, e graças a você — disse Theremon. – Encontrei-me com Sheerin na floresta. Ele esteve no Abrigo logo depois que vocês partiram e encontrou o bilhete em que você falava de Aragando. Ele me contou e contei para Siferra. Resolvemos ir juntos para lá.

— E Sheerin? — quis saber Beenay. — Onde está?

— Não está conosco. Nós nos separamos faz alguns dias. Ele partiu na direção de Aragando, e eu fiquei em Saro para procurar Siferra. Não sei o que foi feito dele. Será que eu podia tomar mais um gole de conhaque, Beenay? Se não for fazer falta. Você estava começando a me contar a respeito da Busca.

Beenay serviu outra dose para Theremon. Olhou para Siferra, que fez que não com a cabeça.

— Se Sheerin estava viajando sozinho, deve ter enfrentado sérios problemas — disse, em tom preocupado. — Tenho certeza de que não passou por aqui desde que cheguei, e a Grande Estrada do Sul é a única ligação entre a cidade de Saro e o parque de Aragando. Vamos ter que mandar um grupo de salvamento à procura dele. Quanto à Busca, é uma das coisas novas que as pessoas fazem. Este é um posto oficial de Busca. Existe um posto na divisa de cada província que a Grande Estrada do Sul atravessa.

— Estamos a apenas alguns quilômetros de cidade de Saro — protestou Theremon. — Esta ainda é a província de Saro, Beenay.

— Não é mais. Todos os velhos governos provinciais desapareceram. O que resta da cidade de Saro foi dividido em várias partes. Ouvi dizer que os Apóstolos do Fogo ficaram com a parte norte, e a região da floresta e da universidade está sendo controlada por um homem chamado Altinol, que comanda um grupo paramilitar chamado Corpo de Bombeiros. Talvez vocês tenham cruzado com eles.

— Trabalhei para o Corpo de Bombeiros por alguns dias — disse Siferra. — Este lenço verde que estou usando é a marca registrada deles.

— Então você sabe o que aconteceu — disse Beenay. — O velho sistema se fragmentou. Estão surgindo pequenos governos em toda parte. Vocês estão na divisa da província da Restauração. Ela se estende por mais dez quilômetros ao longo da rodovia. Quando chegarem à próxima estação de Busca, estarão entrando na província dos Seis Sóis. Depois vem a Terra dos Deuses, depois a Luz do Dia, e depois… esqueci. As coisas estão mudando muito depressa…

— E a Busca? — quis saber Theremon.

— É a nova paranoia. Todos têm medo dos incendiários. Sabe o que são. Malucos que acharam o que aconteceu no dia do eclipse muito divertido. Saem por aí pondo fogo nas coisas. Parece que um terço da cidade de Saro foi destruído na noite do eclipse por pessoas assustadas que tentaram afugentar as Estrelas com fogo, mas outro terço foi destruído mais tarde, muito depois de as Estrelas terem ido embora. Assim, as pessoas que conservaram a sanidade mental… eu e meus companheiros estamos entre elas… revistam todo mundo em busca de qualquer coisa capaz de provocar incêndios. É proibido carregar fósforos, isqueiros, pistolas de raios ou qualquer outro…

— A mesma coisa está acontecendo na cidade — interrompeu Siferra. — E assim que funciona o Corpo de Bombeiros. Altinol e seus capangas se consideram as únicas pessoas em Saro autorizadas a usar o fogo.

— E eu fui atacado na floresta só porque estava tentando cozinhar um pedaço de carne — disse Theremon. — Teria sido espancado até a morte se Siferra não tivesse aparecido no último momento para me salvar. Foi mais ou menos o que você fez hoje comigo.

— Não sei quem atacou você na floresta — disse Beenay — mas a Busca tem o mesmo objetivo. Está acontecendo em toda parte, todo mundo revistando todo mundo. A suspeita é universal, ninguém escapa. É como uma febre… uma febre de medo. Apenas pequenas elites, como o Corpo de Bombeiros de Altinol, podem transportar equipamentos proibidos. Nas barreiras, todos são obrigados a entregar esses equipamentos às autoridades locais. É melhor você deixar estas pistolas comigo, Theremon. Nunca chegará a Aragando com elas.

— Nunca chegarei sem elas — disse Theremon.

Beenay deu de ombros.

— Talvez sim, talvez não. Mas se continuar a viagem, logo ficará sem elas. Da próxima vez que chegar a um posto de Busca, não estarei lá para ajudá-lo.

Theremon pensou um pouco.

— Como foi que os convenceu a me deixarem em paz? Você é o chefe das buscas?

— O chefe das buscas? Não, não… — disse Beenay, rindo. — Mas eles me respeitam. Sou o professor oficial deles. Existem lugares em que os professores universitários são odiados, sabia? Os malucos costumam caçá-los como bichos, porque acham que foram os responsáveis pelo eclipse e estão preparando outro. Mas aqui, não. Sou considerado útil por causa da minha inteligência. Sei escrever mensagens diplomáticas para as províncias próximas, consigo consertar alguns equipamentos e fazê-los funcionar de novo, posso até explicar por que a Escuridão não vai voltar e ninguém terá que ver as Estrelas durante os próximos dois mil anos. Eles acham essa ideia muito reconfortante. De modo que me juntei a eles. Eles nos dão comida e cuidam de Raissta, e eu penso para eles. É uma bela relação simbiótica.

— Sheerin contou-me que você pretendia ir para Aragando — disse Theremon.

— Pretendia — disse Beenay. — Aragando é o lugar onde pessoas como você e eu devíamos estar. Acontece que Raissta e eu encontramos alguns problemas no caminho. Não disse a você que alguns malucos estão tentando matar todos os professores universitários? Quase fomos apanhados quando estávamos passando pelos subúrbios ao sul da cidade. Todos os bairros daquela região estão ocupados por invasores.

— Encontramos alguns deles — disse Theremon.

— Então vocês sabem. Fomos cercados por um bando deles. Pela nossa maneira de falar, viram logo que éramos pessoas instruídas. Além disso, alguém me reconheceu. Por causa de um retrato no jornal, Theremon, em uma de suas colunas, quando você me entrevistou sobre o eclipse, lembra-se? E ele disse que eu era do Observatório, que eu era o homem que tinha feito as Estrelas aparecerem. — Beenay ficou pensativo por um momento. — Mais dois minutos e nos enforcariam no poste mais próximo, penso eu. Foi então que houve uma interrupção providencial. Outro bando apareceu. Disputando o território com eles, suponho. Começaram a jogar garrafas, a gritar, a ameaçá-los com facas de cozinha. Na confusão, eu e Raissta conseguimos escapar. Eles são como crianças, não conseguem se concentrar por muito tempo na mesma coisa. Quando atravessávamos um beco estreito entre dois edifícios incendiados, Raissta cortou a perna em um caco de vidro. Quando chegamos neste ponto da estrada, o ferimento estava tão infeccionado que ela não podia mais andar.

— Entendo.

Por isso a moça estava tão abatida, pensou Theremon.

— Felizmente para nós, os guardas da divisa da província da Restauração estavam precisando de um professor. Eles nos acolheram. Estamos aqui há uma semana e pouco. Calculo que Raissta esteja em condições de seguir viagem daqui a mais uma semana, se tudo correr bem. Vou pedir ao chefe da província para nos dar um passaporte que nos permita atravessar sem problemas o território das províncias mais próximas, pelo menos, e partiremos em direção a Aragando. Vocês podem ficar aqui conosco até lá, e, se quiserem, iremos todos juntos para o sul. Certamente estaremos mais seguros desta forma. Quer falar comigo, Butella?

O homem alto que tentara revistar Theremon na clareira tinha enfiado a cabeça por entre as cortinas do pequeno abrigo de Beenay.

— Acaba de chegar um mensageiro, professor. Trouxe notícias da cidade, através da província Imperial. Só que não conseguimos entender quase nada.

— Deixe-me ver — disse Beenay, tirando a folha de papel das mãos do homem. Disse para Theremon: — Agora as comunicações são feitas através de mensageiros. A província Imperial fica ao norte e a leste da estrada e chega até perto da cidade de Saro. A maioria destes meus companheiros não sabem ler muito bem. Pode ser que a exposição às Estrelas tenha prejudicado seus centros de leitura, ou coisa parecida.

Beenay parou de falar enquanto lia a mensagem. Fez uma careta, franziu a testa, murmurou alguma coisa a respeito da caligrafia e da ortografia pós-eclipse. De repente, seu rosto assumiu uma expressão preocupada.

— Meu Deus! — exclamou. — Aqueles miseráveis… Sua mão tremia. Olhou para Theremon, com um brilho estranho nos olhos.

— Beenay! Que foi?

— Os Apóstolos do Fogo estão vindo para cá — explicou Beenay, em tom sombrio. — Eles formaram um exército e vão marchar até Aragando, liquidando todos os novos governos provinciais que se formaram ao longo da rodovia. E quando chegarem a Aragando, vão esmagar qualquer governo provisório que tenha sido formado lá e se proclamar ditadores de toda a República.

Theremon sentiu os dedos de Siferra apertarem o seu braço. Olhou para a moça e viu o horror estampado no seu rosto. Ele próprio devia estar com uma expressão parecida.

— Estão vindo para cá — repetiu, devagar. — Um exército de Apóstolos.

— Theremon, Siferra… vocês têm que sair daqui — disse Beenay. — Imediatamente. Se ainda estiverem aqui quando os Apóstolos chegarem, tudo estará perdido.

— Está sugerindo que a gente vá para Aragando? — perguntou Theremon.

— Isso mesmo. Sem perder um minuto. Toda a comunidade universitária que estava no Abrigo foi para lá, juntamente com intelectuais de toda a República. Você e Siferra têm que dizer a eles para se dispersarem, e depressa. Se ainda estiverem em Aragando quando os Apóstolos chegarem lá, Mondior poderá capturar a nata da nossa nova sociedade, de um golpe só. É possível até que mande executar todos eles. Vou preparar logo os passaportes de vocês. Mas quando estiverem fora de nossa jurisdição, terão que se submeter à Busca e deixar que eles tomem o que quiserem de vocês. O importante agora é concluírem a viagem. Não se deixem distrair por questões secundárias. Nossos amigos em Aragando têm que ser avisados, Theremon!

— E quanto a você? Vai ficar aqui mesmo?

Beenay parecia surpreso.

— Que mais posso fazer?

— Mas… quando os Apóstolos chegarem…

— Quando os Apóstolos chegarem, vão fazer o que quiserem comigo. Está sugerindo que eu abandone Raissta e fuja para Aragando com vocês?

— Não…

— Então não tenho escolha. Certo? Certo? Vou ficar aqui, com Raissta.

A cabeça de Theremon começou a latejar. Colocou as mãos na frente dos olhos.

— Não há outro jeito, Theremon — disse Siferra.

— Eu sei. Eu sei. Mesmo assim, não posso imaginar Mondior e seus capangas capturando um homem valoroso como Beenay…. executando-o, talvez…

Beenay sorriu e pousou a mão por um momento no antebraço do repórter.

— Quem sabe? Talvez Mondior decida manter alguns professores em volta dele como animais de estimação. Seja como for, o que vai acontecer comigo não é importante agora. Meu lugar é ao lado de Raissta. O lugar de vocês é na estrada, a caminho de Aragando. Venham comigo. Vou arranjar alguma coisa para vocês comerem e preparar os passaportes. Depois, caiam fora. Espere. Você vai precisar disto, também. Despejou o que restava do conhaque no copo vazio de Theremon. — Para a viagem — disse.

41

Na divisa entre a província da Restauração e a província dos Seis Sóis, não tiveram nenhum problema para passar pela Busca. Um oficial de fronteira, que pela aparência devia ter sido um contador ou um advogado no mundo que não mais existia, deu uma olhada rápida no passaporte, fez que sim com a cabeça quando viu a assinatura “Beenay 25” e mandou-os passar.

Dois dias depois, quando estavam passando da província dos Seis Sóis para a Terra de Deus, não foi tão fácil. Ali, a patrulha de fronteira mais parecia um bando de assassinos. Houve um momento de tensão quando Theremon ficou ali parado, brandindo o passaporte como se fosse uma vara de condão. Afinal, a mágica funcionou, mais ou menos.

— Esta coisa é um salvo-conduto? — perguntou o chefe da patrulha.

— É um passaporte. Estamos isentos da Busca.

— Expedido por quem?

— Beenay 25, administrador da Busca da província da Restauração. Fica duas províncias naquela direção.

— Sei onde fica a província da Restauração. Leia para mim.

— A Quem Possa Interessar. Certifico que os portadores deste documento, Theremon 762 e Siferra 89, são emissários oficiais do Corpo de Bombeiros da cidade de Saro e têm direito a…

— Corpo de Bombeiros? Que é isso?

— O bando de Altinol — murmurou um dos homens.

— Ah — O chefe apontou para as pistolas que Theremon e Siferra levavam ostensivamente na cintura, — Então Altinol quer que vocês transitem por outros países carregando armas que poderiam provocar grandes incêndios?

— Estamos a caminho do Parque Nacional de Aragando, em uma missão urgente — disse Siferra. — Precisamos chegar lá o quanto antes. — Ela apontou para o lenço verde.

— Sabe o que significa isto? Nós fazemos tudo para evitar que as pessoas provoquem novos incêndios. E se não chegarmos a tempo a Aragando, os Apóstolos do Fogo vão aparecer e destruir tudo que vocês estão tentando criar.

As palavras de Siferra não faziam muito sentido, pensou Theremon. O fato de chegarem a Aragando, na extremidade sul do continente, não ajudaria a salvar aquelas pequenas repúblicas dos Apóstolos. Entretanto, Siferra colocara a dose exata de convicção e emoção no seu pequeno discurso, de forma a fazê-lo parecer autêntico, embora confuso.

Houve alguns momentos de silêncio, enquanto o guarda da fronteira tentava entender o que ela estava querendo dizer. De repente, ele falou, quase em um rompante:

— Está bem! Podem passar! Sumam daqui e não tornem a pôr os pés na província dos Seis Sóis, ou vão se arrepender. Apóstolos! Aragando!

— Muito obrigado — disse Theremon, com uma delicadeza tão próxima do sarcasmo que Siferra o puxou pelo braço antes que o guarda mudasse de ideia.

Naquele trecho da estrada, relativamente desimpedido, o progresso dos dois tomou-se mais rápido. Passaram a cobrir vinte quilômetros por dia, às vezes mais. Os cidadãos das províncias dos Seis Sóis, Terra de Deus e Luz do Dia estavam trabalhando duro, removendo os destroços que bloqueavam a Grande Estrada do Sul desde o dia do eclipse.

Barricadas tinham sido construídas a intervalos regulares (nenhum motorista usaria a Grande Estrada do Sul por um longo tempo, pensou Theremon), mas, entre as barreiras, era possível agora caminhar em ritmo normal, sem necessidade de se desviar dos carros acidentados.

Os cadáveres estavam sendo tirados da estrada e enterrados. Pouco a pouco, as coisas estavam começando a parecer quase civilizadas de novo. Civilizadas, mas não normais. Longe disso.

Havia poucos incêndios à margem da rodovia, mas as cidades queimadas eram uma constante. Campos de refugiados haviam sido instalados a cada dois ou três quilômetros, e enquanto caminhavam pela estrada elevada, Theremon e Siferra podiam olhar para baixo e ver as pessoas tristes e desorientadas vagando pelos campos, como se todas elas tivessem envelhecido cinquenta anos em uma única noite fatídica.

As novas províncias, percebeu Theremon, eram simplesmente grupos daqueles campos, ligados pela linha reta da Grande Estrada do Sul. Em cada distrito, haviam emergido homens fortes locais que se encarregaram de fundar pequenos reinos que cobriam dez a vinte quilômetros da estrada e se estendiam até uns dois quilômetros para fora da rodovia.

O que se passava além desses limites era impossível dizer. As comunicações por rádio e televisão tinham sido totalmente interrompidas.

— Não houve nenhum tipo de preparação para o eclipse? — perguntou Theremon, falando mais para o ar do que para Siferra.

Entretanto, foi Siferra que respondeu.

— As previsões de Athor eram fantásticas demais para serem levadas a sério pelo governo. Além disso, estariam dando razão a Mondior, se admitissem a possibilidade de a civilização entrar em colapso em consequência de um curto período de Escuridão, em especial um período que podia ser previsto com tanta precisão.

— Mas o eclipse…

— Sim, talvez alguns altos funcionários pudessem olhar para os gráficos e acreditar que de fato iria ocorrer um eclipse. E um período de Escuridão como consequência. Mas como poderiam prever as Estrelas? As Estrelas não passavam de uma fantasia dos Apóstolos do Fogo, lembra-se? Mesmo que o governo soubesse que alguma coisa como as Estrelas estava para acontecer, ninguém podia prever o impacto que as Estrelas teriam sobre as pessoas.

— Sheerin podia — declarou Theremon.

— Nem mesmo Sheerin. Ele não fazia a menor ideia do que eram as Estrelas. A especialidade de Sheerin era a Escuridão, e não uma luz fria ocupando todo o céu.

— Mesmo assim — disse Theremon -, é duro olhar para toda esta devastação e pensar que podia ter sido evitada…

— A verdade é que não foi evitada.

— Talvez da próxima vez…

Siferra riu:

— A próxima vez vai ser daqui a 2049 anos. Vamos tentar deixar para os nossos descendentes algum tipo de advertência que seja mais convincente do que o Livro das Revelações conseguiu ser para a nossa geração.

A arqueóloga olhou por cima do ombro, apreensiva, para a extensão que haviam coberto nos últimos dias de marcha forçada.

— Está com medo de ver os Apóstolos aparecerem no nosso encalço? — perguntou Theremon.

— Você não está? Ainda nos encontramos a centenas de quilômetros de Aragando. E se eles nos alcançarem, Theremon?

— Isso não vai acontecer. Um exército inteiro não pode se deslocar tão depressa quanto duas pessoas saudáveis e decididas. Os meios de transporte de que dispõem não são melhores do que os nossos. Um par de pernas por soldado, e ponto final. Além disso, existem várias considerações de ordem logística que só podem contribuir para retardá-los.

— Acho que tem razão.

— Não esqueça também que a mensagem dizia que os Apóstolos pretendiam parar em cada província ao longo da estrada para fazer valer sua autoridade. Vão levar muito tempo para subjugar aqueles pequenos reinos. Se não tivermos nenhum problema inesperado, provavelmente chegaremos a Aragando com uma dianteira de várias semanas.

— Que acha que vai acontecer com Beenay e Raissta? perguntou Siferra, depois de algum tempo.

— Beenay é um sujeito muito esperto. Aposto que descobrirá um meio de se tornar útil para Mondior.

— E se não descobrir?

— Siferra, será que temos mesmo que gastar energia nos preocupando com as coisas horríveis que podem acontecer ao nosso amigo, quando não há nada que a gente possa fazer por ele?

— Desculpe. Não pensei que você estivesse tão nervoso.

— Siferra…

— Esqueça. Talvez eu é que esteja nervosa.

— Tudo vai dar certo — disse Theremon. — Beenay e Raissta vão conseguir sobreviver. Chegaremos a Aragando a tempo de dar o alerta geral. Os Apóstolos do Fogo não vão conquistar o mundo.

— E os mortos vão sair dos túmulos e andar de novo. Oh, Theremon, Theremon…

— Eu sei.

— Que vamos fazer?

— Vamos andar o mais depressa que pudermos, é isto que vamos fazer. E sem olhar para trás. Olhar para trás não adianta nada.

— É verdade — concordou Siferra. Sorriu e segurou a mão do jornalista. Os dois caminharam apressados e em silêncio.

Era espantoso, pensou Theremon, como estavam progredindo com rapidez, agora que haviam acertado o ritmo. Nos primeiros dias, quando estavam saindo da cidade e procurando uma passagem na rodovia congestionada, seus corpos haviam protestado violentamente contra o esforço extra que lhes era imposto. Agora, porém, moviam-se como duas máquinas perfeitamente adaptadas à tarefa. As pernas de Siferra eram quase tão compridas quanto as suas, e caminhavam lado a lado, os músculos trabalhando com eficiência, os corações batendo compassadamente, os pulmões se expandindo e se contraindo em um ritmo impecável. Um, dois. Um, dois. Um, dois…

Ainda faltavam algumas centenas de quilômetros, é verdade. Mas nesse ritmo, logo chegariam lá. Mais um mês, talvez. Talvez menos.

Agora que se afastavam das regiões urbanas, a estrada estava quase totalmente desimpedida. Ali o tráfego não havia sido tão intenso, em primeiro lugar, e parecia que muitos motoristas tinham conseguido sair da rodovia, mesmo com as Estrelas brilhando no céu, porque não havia tanto perigo de serem abalroados por outros carros que tinham perdido o controle.

Havia menos barricadas, também. As novas províncias naquela região de população escassa eram bem maiores do que mais ao norte, e os habitantes pareciam bem menos preocupados com coisas como a Busca. Theremon e Siferra foram interrogados seriamente apenas duas vezes nos cinco dias seguintes. Nas outras barreiras, apenas mandaram que passassem, não precisaram nem mostrar o passaporte.

Até o tempo parecia estar colaborando. Os dias eram claros, e a temperatura, amena; uma pancada de chuva uma vez ou outra não era suficiente para causar grandes transtornos. Caminhavam durante quatro horas, paravam para uma refeição ligeira, caminhavam mais quatro horas, comiam de novo, andavam, paravam durante seis horas para dormir (o que faziam por turnos; um dos dois sempre ficava de vigia), depois acordavam e seguiam viagem. Como máquinas. Os sóis nasciam e se punham em seu ritmo milenar, agora Patru, Trey e Dovim, agora Onos, Sitha e Tano, agora Onos e Dovim, agora Trey e Patru, agora quatro sóis ao mesmo tempo… a sucessão interminável, o grande desfile dos céus. Theremon não fazia ideia de quantos dias se passaram desde que deixaram o Abrigo. A própria noção de datas, calendários, dias, semanas, meses, lhe parecia estranha, arcaica, ultrapassada, alguma coisa de um mundo que ficara para trás.

Depois daquela crise de depressão, Siferra voltara a ser a mulher otimista de sempre.

Aquilo seria um passeio. Chegariam a Aragando sem problemas.

Estavam passando por um distrito que agora se chamava Vale da Primavera… ou talvez fosse Jardim Florido, os locais que encontravam à beira da estrada pareciam usar diferentes nomes para a comunidade. Era uma zona rural, com poucos sinais da devastação que atingira as regiões mais urbanizadas: um ou outro celeiro destruído pelo fogo, ou um bando de animais que pareciam sem dono, e era tudo. O ar era fresco e perfumado, a luz dos sóis reconfortante. Se não fosse a estranha ausência de tráfego na rodovia, teriam a impressão de que nada de extraordinário havia acontecido.

— Já passamos do meio do caminho? — perguntou Siferra.

— Ainda não. Há muito tempo que não aparece uma placa, mas acho que…

Interrompeu o que estava dizendo.

— Que foi, Theremon?

— Olhe. Olhe ali, à direita. Naquela estrada secundária que vem do oeste.

Olharam por cima da cerca da estrada. Lá em baixo, a algumas centenas de metros de distância, uma longa fila de caminhões estava estacionada no acostamento da estrada secundária, perto do acesso à rodovia. Ali havia um acampamento movimentado: tendas, uma grande fogueira, alguns homens rachando lenha.

Duzentas ou trezentas pessoas, talvez. Todas usando vestes negras.

Theremon e Siferra trocaram olhares assustados.

— Os Apóstolos! — exclamou a arqueóloga.

— Isso mesmo. Abaixe-se. Vamos nos esconder atrás da cerca.

— Como foi que eles conseguiram chegar aqui tão depressa? A parte inicial da rodovia está totalmente bloqueada! Theremon sacudiu a cabeça.

— Eles não vieram pela rodovia. Observe… eles têm caminhões que funcionam. Agora mesmo está chegando mais um. Deuses, parece estranho, não é, ver um caminhão em movimento? Ouvir o barulho de um motor, depois de tanto tempo! Eles conseguiram de alguma forma pôr as mãos em uma frota de caminhões e em um suprimento de combustível. E é óbvio que vieram de Saro por estradas secundárias. Agora estão se preparando para entrar na rodovia, que provavelmente está aberta daqui até Aragando. Poderão chegar lá esta noite mesmo.

— Esta noite! Theremon, que vamos fazer?

— Não sei. Só me ocorre uma coisa, mas não sei se vai dar certo. Que tal nós roubarmos um daqueles caminhões e partirmos a toda velocidade na direção de Aragando? Mesmo que a gente chegue lá apenas duas horas na frente dos Apóstolos, a maioria do pessoal de Aragando terá tempo de fugir. Certo?

— Sei lá. Parece loucura. Como vamos roubar um caminhão? No momento em que nos virem, vão saber que não somos Apóstolos.

— Eu sei. Eu sei. Deixe-me pensar. — Depois de um momento, o repórter disse: — Talvez a gente possa pegar dois deles longe dos outros e ficar com as roupas deles. Usaremos nossas pistolas, se for necessário. Depois, usando vestes negras, entramos calmamente em um caminhão, ligamos o motor e tomamos a direção da rodovia…

— Eles nos seguiriam depois de dois minutos.

— Talvez. Ou talvez, se agirmos com calma, eles pensem que estamos obedecendo às ordens de alguém… e quando perceberem que não estamos, já estaremos a cem quilômetros de distância. — Olhou para a arqueóloga, ansioso. — Que é que você acha, Siferra? Que outra opção nos resta? Continuar a pé, sabendo que vamos levar semanas para chegar a Aragando e que eles poderão nos ultrapassar em questão de horas?

Siferra olhava para Theremon com se ele tivesse perdido o juízo.

— Dominar dois Apóstolos… roubar um dos caminhões… chegar a Aragando na frente deles… oh, Theremon, não vai dar certo. Você sabe disso.

— Muito bem — disse o repórter, bruscamente. — Você fica aqui. Vou fazer tudo sozinho. É nossa única esperança, Siferra.

Levantou-se e começou a caminhar pelo acostamento em direção à rampa de saída, a algumas centenas de metros de distância.

— Não… espere, Theremon…

O jornalista olhou para trás e riu.

— Vem comigo?

— Vou. Oh, isto é uma loucura!

— Eu sei. Que mais podemos fazer?

Siferra estava certa. Era mesmo um plano louco. Entretanto, não havia alternativa. Agora era evidente que a mensagem que Beenay recebera não correspondia exatamente à realidade. Os Apóstolos nunca tinham pensado em descer a Grande Estrada do Sul, província por província. Em vez disso, pretendiam dirigir-se a Aragando com um grande comboio armado, usando estradas secundárias para contornar os bloqueios existentes na parte norte da rodovia principal.

Aragando estava com os dias contados. Em pouco tempo, o mundo cairia nas mãos de Mondior e de seus homens. A menos… a menos…

Theremon nunca se imaginara como um herói. Heróis eram pessoas a respeito de quem escrevia em sua coluna, pessoas que funcionavam no máximo de sua capacidade em circunstâncias extremas, fazendo coisas estranhas e miraculosas que as pessoas comuns não sonhariam tentar, quanto mais executar. E agora ali estava, naquele mundo estranhamente transformado, falando jovialmente em render os Apóstolos com sua pistola, roubar um caminhão militar e dirigir-se a Aragando para alertar os amigos para o ataque iminente…

Loucura. Mas talvez funcionasse, justamente porque era loucura. Ninguém estaria esperando que dois estranhos surgissem do nada e simplesmente fossem embora com um caminhão.

Começaram a descer a rampa de saída. Theremon ia um pouco à frente. Havia um terreno cheio de mato entre eles e o acampamento dos Apóstolos.

— Talvez possamos nos esconder no meio do mato — sussurrou para Siferra — e esperar até que um ou dois Apóstolos se aproximem o suficiente para que possamos pegá-los de surpresa. Entrou no matagal, seguido por Siferra.

Dez metros. Vinte. Agora espere… espere…

Uma voz disse de repente, bem atrás dele:

— Que é que nós temos aqui? Duas cobras bem esquisitas, não acha?

Theremon virou o corpo, olhou, praguejou.

Deuses! Apóstolos, sete ou oito deles! De onde tinham surgido? Seria um piquenique no mato? Que ele e Siferra haviam interrompido sem querer?

— Corra! — gritou para Siferra. — Vá por ali… eu vou por aqui…

Correu para a esquerda, na direção das pilastras que sustentavam a rodovia. Talvez conseguisse despistá-los… desaparecer na floresta que havia do outro lado da estrada…

Não. Não. Podia ser rápido e forte, mas eles eram mais rápidos e mais fortes ainda. Notou que perdia terreno.

— Siferra! — gritou. — Continue correndo! Continue… correndo!

Talvez Siferra tivesse conseguido escapar. Já não podia mais vê-la. Os Apóstolos o cercaram. Tentou sacar a pistola, mas um deles segurou-lhe o braço e outro lhe deu uma gravata. A arma foi arrancada de sua mão. Uma perna foi enfiada entre as suas, fazendo-o tropeçar. Caiu pesadamente, rolou no chão, olhou para cima. Cinco rostos encapuzados, muito sérios, olharam de volta. Um dos Apóstolos apontou sua própria pistola para o seu peito.

— Levante-se — disse o Apóstolo. — Devagar. Com as mãos para cima.

Theremon levantou-se com dificuldade.

— Quem é você? Que está fazendo aqui? — perguntou o Apóstolo.

— Moro aqui perto. Eu e minha mulher estávamos voltando para casa e resolvemos cortar caminho pelo mato…

— A fazenda mais próxima fica a dez quilômetros de distância. Que atalho comprido! — O Apóstolo fez um gesto com a cabeça em direção ao acampamento. — Venha conosco. Folimun vai querer falar com você.

Folimun! Quer dizer que, afinal, ele sobrevivera à noite do eclipse! E era o chefe da expedição contra Aragando!

Theremon olhou em volta. Nenhum sinal de Siferra. Esperava que ela estivesse de novo na estrada, rumando para Aragando o mais depressa que podia. Uma tênue esperança, mas a única que restava.

Os Apóstolos marcharam com ele até o acampamento. Era uma sensação estranha, estar no meio de tantos vultos encapuzados. Não despertou quase nenhuma atenção no percurso até a maior das tendas.

Folimun estava sentado em um banco perto dos fundos da tenda, examinando um maço de papéis. Levantou os olhos azuis para Theremon, e seu rosto duro e anguloso foi suavizado por um sorriso de surpresa.

— Theremon? Você, aqui? Que está fazendo… uma reportagem para a Crônica?

— Estou viajando para o sul, Folimun. Resolvi tirar umas férias, pois as coisas lá na cidade não estão nada boas. Quer pedir aos seus capangas para me largarem?

— Soltem-no — ordenou Folimun. — Para onde está indo, exatamente?

— Isso não interessa a você.

— Cabe a mim julgar. Está indo para Aragando, não está, Theremon?

Theremon dirigiu um olhar gélido ao Apóstolo.

— Não vejo nenhuma razão para lhe revelar coisa alguma.

— Depois de tudo que lhe contei, quando me entrevistou?

— Muito engraçado.

— Quero saber para onde está indo, Theremon.

Ganhe tempo, pensou Theremon. Ganhe todo o tempo que puder.

— Recuso-me a responder a essa pergunta ou a qualquer outra. Só discutirei minhas intenções com Mondior em pessoa — declarou, em tom decidido.

Folimun ficou em silêncio por alguns instantes. Depois, sorriu de novo. Sem mais nem menos, o sorriso se transformou em gargalhada. Theremon nunca vira Folimun rir.

— Mondior? — repetiu Folimun, com os olhos brilhando. — Não existe nenhum Mondior, meu amigo. Nunca existiu.

42

Era difícil para Siferra acreditar que de fato conseguira escapar, mas era realmente o que parecia ter acontecido.

A maioria dos Apóstolos que os surpreenderam no mato tinham saído correndo atrás de Theremon. Olhando para trás, Siferra viu que os Apóstolos haviam cercado o repórter como cães de caça cercando uma presa. Ele com certeza seria capturado.

Apenas dois dos Apóstolos tinham se separado do grupo para persegui-la. Siferra golpeara um deles no rosto, com a palma da mão, e, na velocidade com que estava correndo, o impacto fez o homem cair no chão. O outro era gordo e lento, em poucos minutos, Siferra o deixara para trás.

A moça refez o caminho que ela e Theremon percorreram, na direção da rodovia elevada, mas resolveu não subir a rampa. A estrada era fácil de bloquear e havia poucas saídas. Se subisse a rampa, correria o risco de cair em uma armadilha. Mesmo que não houvesse barreiras na estrada, os Apóstolos poderiam persegui-la de caminhão e alcançá-la com toda a facilidade.

Não, era melhor internar-se na floresta que havia do outro lado da estrada. Os caminhões dos Apóstolos não poderiam segui-la na floresta. Ficaria escondida no meio das árvores até decidir o que fazer em seguida.

Que vou fazer? perguntou para si mesma.

Tinha que admitir que a ideia de Theremon, por mais louca que parecesse, era a única esperança que restava: roubar um caminhão, dirigir até Aragando e fazer soar o alarme antes que o exército dos Apóstolos chegasse lá.

Entretanto, Siferra sabia que não podia simplesmente entrar em um caminhão, ligar o motor e ir embora. Os Apóstolos não eram tão estúpidos assim. Teria que obrigar um deles a ligar o caminhão e lhe passar os controles. E isso implicava executar toda a manobra de capturar um Apóstolo isolado, roubar-lhe a roupa, entrar no acampamento, encontrar alguém que pudesse abrir um dos caminhões para ela…

O desânimo voltou a tomar conta da moça. Era tudo muito difícil. Talvez fosse melhor tentar libertar Theremon. Invadir o acampamento com a pistola na mão, fazer alguns reféns, exigir que ele fosse solto imediatamente… oh, esse plano mais parecia um sonho melodramático, uma tola fantasia tirada de um livro para crianças…

Que vou fazer? Que vou fazer?

Escondeu-se em uma moita de arbustos de folhas compridas e esperou o tempo passar. Os Apóstolos não davam nenhum sinal de levantar acampamento. Ainda podia ver a fumaça da fogueira no céu da tarde, e os caminhões ainda estavam enfileirados no acostamento.

A noite chegava. Onos já havia se posto. Dovim, pairava no horizonte. Os únicos sóis a pino eram os que Siferra menos apreciava, os indiferentes Tano e Sitha, lançando raios gelados de sua posição distante, nos limites do universo. Ou de onde as pessoas pensavam que eram os limites do universo, antes de as Estrelas aparecerem e revelarem quão imenso o universo realmente era.

As horas se arrastavam interminavelmente. Nenhuma solução lhe agradava. Aragando parecia perdido, a menos que outra pessoa conseguisse alertá-los. Era simplesmente impossível chegar lá antes dos Apóstolos. Salvar Theremon era uma ideia absurda. A ideia de roubar um caminhão e viajar sozinha para Aragando era apenas ligeiramente menos ridícula.

Que fazer, então? Ficar ali sentada, enquanto os Apóstolos assumiam o controle de tudo?

Não parecia haver alternativa.

Houve um momento, no meio da noite em que chegou à conclusão de que o melhor era entrar no acampamento dos Apóstolos, render-se e pedir para ser aprisionada junto com Theremon. Pelo menos, estariam juntos. Ficou surpresa com a falta que ele lhe fazia. Há semanas que não se separava dele, ela que nunca vivera antes com um homem.

E durante toda a longa jornada desde a cidade de Saro, embora discutissem algumas vezes, jamais se cansara de estar com ele. Nem uma vez. Estarem juntos parecia a coisa mais natural do mundo. Agora, estava sozinha de novo.

Vá em frente, disse para si mesma. Entregue-se. Está mesmo tudo perdido, não está?

O tempo estava mudando. Sitha e Tano foram cobertos por nuvens e o céu ficou tão escuro que Siferra teve a impressão de que as Estrelas iriam aparecer de novo.

Que apareçam, pensou, com irritação. Apareçam e brilhem. Façam todos enlouquecerem de novo. Que diferença faz?

O mundo só pode ser destruído uma vez, e isso já aconteceu.

Mas as Estrelas, é claro, não apareceram. Mesmo atenuada pelas nuvens, a luz de Tano e Sitha era suficiente para ocultar o brilho daqueles distantes e misteriosos pontos de luz. E com o passar das horas, Siferra se surpreendeu passando do pessimismo mais extremo para um otimismo quase infantil.

Quando tudo está perdido, disse para si própria, não há mais nada a perder. Oculta pelas sombras da noite, penetraria no acampamento dos Apóstolos e (de alguma forma, de alguma forma) roubaria um dos caminhões. E salvaria Theremon, também, se fosse possível. E os dois iriam para Aragando! Na manhã seguinte, quando Onos nascesse, estariam lá, entre os amigos da universidade, com tempo de sobra para se retirarem antes que o exército inimigo chegasse.

Muito bem, pensou. Vamos.

Devagar… devagar… com mais cautela do que antes, pois é possível que eles tenham sentinelas no mato…

Saiu da floresta. Um momento de incerteza. Sentia-se tremendamente vulnerável, agora que tinha deixado para trás a segurança das árvores. Entretanto, a escuridão ainda a protegia. Agora tinha que passar por baixo da estrada e entrar no matagal onde ela e Theremon foram surpreendidos naquela tarde.

Internou-se no matagal, da mesma forma como fizera feito antes. Olhou para os dois lados, em busca de sentinelas que pudessem estar vigiando o perímetro do acampamento dos Apóstolos…

Estava com a pistola na mão, ajustada para produzir o feixe mais concentrado, mais mortal de que era capaz. Se alguém a tentasse deter agora, sofreria as consequências.

Havia muita coisa em jogo para se preocupar com as sutilezas da moral civilizada. Enquanto estava fora de si, matara Balik no laboratório de arqueologia, sem querer, é verdade, mas não era por isso que ele deixava de estar morto. Agora, surpresa, descobria que seria capaz de matar de novo, desta vez intencionalmente, se as circunstâncias assim exigissem. O importante era conseguir um veículo, sair dali e avisar aos amigos em Aragando que os Apóstolos estavam a caminho. Tudo o mais, incluindo considerações éticas, era secundário.

Tudo.

Aquilo era uma guerra.

Em frente. Cabeça baixa, olhos atentos, corpo curvado. Estava a algumas dezenas de metros do acampamento.

O silêncio era total. Talvez estivessem quase todos dormindo. No lusco-fusco, teve a impressão de que havia dois homens do outro lado da fogueira principal, embora fosse difícil ter certeza por causa da fumaça da fogueira. A coisa a fazer, pensou, era esconder-se nas sombras, atrás de um dos caminhões, e jogar uma pedra em uma árvore. Os sentinelas provavelmente viriam investigar, e caso se separassem, ela poderia esgueirar-se por trás de um deles, enfiar a pistola nas suas costelas, avisá-lo para não gritar, fazê-lo despir a veste…

Não, pensou. Não o avise de nada. Atire nele primeiro, antes que possa dar o alarme, e depois tire a veste. Não se esqueça de que são Apóstolos. Fanáticos.

Estava surpresa com o próprio sangue-frio.

Em frente. Em frente. Estava perto do caminhão mais próximo. Mergulhou na escuridão do lado oposto ao da fogueira. Onde existe uma pedra? Aqui. Aqui, esta vai servir.

Passe a pistola para a mão esquerda. Agora, jogue a pedra naquela árvore grande ali…

Levantou o braço e fez o arremesso. No mesmo instante, alguém segurou-lhe o pulso por trás e um braço forte apertou-lhe o pescoço.

Apanhada! A surpresa, a revolta e a frustração tomaram conta de Siferra. A moça deu um chute para trás com toda a força e ouviu um grito de dor. Mesmo assim, o homem não a largou. Virando o corpo de lado, deu outro pontapé, ao mesmo tempo que tentava passar a pistola para a mão direita. Entretanto, o atacante puxou seu braço para cima, em um golpe rápido que a fez largar a pistola. O outro braço apertou-lhe o pescoço com mais força ainda. Siferra tossiu.

Escuridão! Como fora tola o suficiente para permitir que alguém a pegasse de surpresa? Lágrimas de raiva queimaram-lhe as faces. Continuou a debater-se, desesperada.

— Calma! — murmurou uma voz grave. — Assim, você vai acabar me machucando, Siferra.

— Theremon? — perguntou, atônita.

— Quem você acha que é? Mondior?

A pressão na garganta diminuiu. A mão que segurava o seu pulso relaxou. A moça deu um passo à frente, lutando para respirar, Depois, voltou-se para encará-lo.

— Como conseguiu escapar? — perguntou.

O repórter riu.

— Foi um milagre dos céus. Um verdadeiro milagre. Observei você o tempo todo, desde que saiu da floresta. Gostei muito. Mas estava tão preocupada em chegar aqui sem ser notada que não percebeu que dei a volta e fiquei atrás de você.

— Graças aos deuses que era você, Theremon. Pensei que ia morrer de susto quando você me segurou. Mas por que estamos aqui parados? Vamos pegar um desses caminhões e dar o fora antes que eles nos vejam.

— Não — disse Theremon. — Os planos mudaram.

Siferra olhou para ele, admirada.

— Não estou entendendo.

— Vai entender. — Para surpresa da arqueóloga, bateu palmas e chamou em voz alta. — Aqui, rapazes! Ela está aqui!

— Theremon! Você ficou…

A luz da lanterna atingiu-a no rosto com um impacto quase tão devastador quanto o das Estrelas. Ficou parada, sacudindo a cabeça com ar desolado. Havia vários vultos se movendo à sua volta, mas levou algum tempo para que seus olhos se habituassem à claridade, o suficiente para reconhecê-los.

Apóstolos. Meia dúzia deles.

Olhou acusadoramente para Theremon. Ele parecia calmo e muito satisfeito consigo mesmo. Siferra não conseguia aceitar o fato de que tinha sido traída pelo repórter. Quando tentou falar, só saíram palavras isoladas.

— Mas… por que… que … ?

Theremon sorriu.

— Venha, Siferra. Há alguém que eu quero que você conheça.

43

— Não há necessidade de olhar para mim de cara feia, Dra. Siferra — disse Folimun. — Pode ser difícil de acreditar, mas está entre amigos.

— Amigos? Deve pensar que sou uma mulher muito ingênua.

— Pelo contrário.

— Você invade meu laboratório e rouba relíquias de valor inestimável. Chefia um bando de desordeiros supersticiosos que invade o Observatório e destrói os equipamentos com os quais os astrônomos da universidade estão tentando realizar uma pesquisa importantíssima. Agora hipnotiza Theremon, obrigando-o a me capturar e a me entregar a você como prisioneira. E tem a coragem de dizer que estou entre amigos?

— Não fui hipnotizado — disse Theremon. — E você não é uma prisioneira, Siferra.

— Claro que não. Isto não passa de um pesadelo. O eclipse, os incêndios, o colapso da civilização, tudo. Daqui a uma hora, vou acordar no meu apartamento, na cidade de Saro, e tudo voltará a ser como era antes.

Theremon, olhando para ela do outro lado da tenda de Folimun, pensou que a moça nunca fora tão bonita como naquele momento. Seus olhos brilhavam de raiva. A pele parecia cintilar. Havia uma aura de energia contida em torno da arqueóloga que ele achava irresistível. Mas não era o momento para galanteios.

— Pelo roubo das tabuinhas, Dra. Siferra, só posso pedir mil desculpas. Foi um ato criminoso, que eu jamais teria autorizado se a senhora não me tivesse forçado…

— Eu?

— Isso mesmo. A senhora insistiu em conservá-las sob os seus cuidados, em colocar em risco essas relíquias insubstituíveis do ciclo anterior, no momento em que, pelo que sabíamos, o caos tomaria conta do mundo e os edifícios da universidade seriam destruídos até o último tijolo. Achávamos essencial que elas fossem colocadas em lugar seguro, isto é, sob a nossa custódia, e já que não queria cedê-las por empréstimo, a única solução que encontramos foi roubá-las.

— Fui eu que encontrei as tabuinhas. Vocês nunca saberiam que elas existiam, se eu não as tivesse desenterrado.

— Isso não vem ao caso — disse Folimun. – Quando as tabuinhas foram descobertas, elas se tornaram vitais para os nossos objetivos… para os objetivos da humanidade. Achamos que o futuro de Kalgash era mais importante que o seu direito sobre os artefatos. Como verá, conseguimos traduzir as tabuinhas, com o auxílio de textos antigos que já se encontravam à nossa disposição, e o texto nos permitiu compreender muito melhor os desafios extraordinários que a vida civilizada deste planeta deve enfrentar periodicamente. Infelizmente, as traduções do Dr. Mudrin eram muito superficiais. As tabuinhas contêm uma versão precisa e convincente, não corrompida por séculos de transcrições, das crônicas que chegaram a nós com o nome de Livro das Revelações. O Livro de Revelações, devo admitir, está cheio de misticismos e metáforas, adotados para fins de propaganda. As tabuinhas de Thombo contêm relatos históricos objetivos de duas aparições diferentes das Estrelas há milhares de anos atrás, e das tentativas feitas pelos sacerdotes da época para alertar a população a respeito do que estava para acontecer. Agora podemos demonstrar que durante a história e a pré-história de Kalgash, pequenos grupos de pessoas dedicadas têm lutado para preparar a população para as catástrofes que se abatem periodicamente sobre o nosso mundo. Os métodos usados, porém, têm sido obviamente inadequados. Agora, afinal, ajudados pelo conhecimento dos erros anteriores, estaremos em condições de poupar Kalgash de outra tragédia quando o atual Ano de Divindade chegar ao fim, daqui a dois mil anos.

Siferra voltou-se para Theremon.

— Quanta presunção! Ele justifica o roubo das minhas tabuinhas alegando que elas lhe permitirão estabelecer uma ditadura teocrática ainda mais eficiente! Theremon, Theremon, por que me entregou assim? Por que você nos entregou? A esta altura, poderíamos estar quase chegando a Aragando, se você…

— A senhora estará em Aragando amanhã à tarde, Dra. Siferra. Todos nós estaremos em Aragando amanhã à tarde.

— Que é que vai fazer? — perguntou a moça, indignada. — Obrigar-me a marchar, acorrentada, na retaguarda do seu exército de conquista? Amarrar-me à carruagem de Mondior?

O Apóstolo suspirou.

— Explique a ela, Theremon. Por favor.

— Não! — protestou Siferra, furiosa. — Meu pobre amigo! Não quero ouvir as tolices que este fanático plantou em sua mente! Não quero ouvir nenhum dos dois! Deixem-me em paz. Prendam-me, se quiserem. Ou soltem-me, se não for pedir demais. Sou inofensiva, não sou? Uma mulher sozinha contra um exército inteiro? Não sou capaz nem mesmo de atravessar um matagal sem que alguém me surpreenda pelas costas! Theremon, consternado, estendeu-lhe a mão:

— Não! Fique longe de mim! Você me dá nojo! Mas não é culpa sua, é? Fizeram alguma coisa com a sua mente. Vai fazer a mesma coisa comigo, não é mesmo, Folimun? Vai me transformar em uma marionete. Pelo menos, quero que me faça um favor. Não me obrigue a usar uma veste de Apóstolo. Não suporto a ideia de sair por aí usando um desses trajes ridículos. Fique com minha alma, se quiser, mas deixe-me escolher o que vestir, está bem? Está bem, Folimun?

O Apóstolo riu.

— Talvez seja melhor eu deixar vocês dois sozinhos. Estou vendo que não vamos chegar a lugar nenhum enquanto eu estiver presente.

— Não! — protestou Siferra. — Não quero ficar sozinha com…

Mas Folimun já se levantara e saíra da tenda. Theremon voltou-se para Siferra, que recuou como se ele fosse portador de alguma praga.

— Eu não fui hipnotizado, Siferra. Eles não fizeram coisa alguma com a minha mente.

— Claro que você pensa assim.

— É verdade. Posso provar.

Ela ficou olhando para ele sem dizer nada. Após um momento, ele disse baixinho:

— Siferra, eu amo você.

— Quanto tempo os Apóstolos levaram para programá-lo para dizer isso?

Theremon fez uma careta.

— Pare. Pare. Estou falando sério, Siferra. Não vou tentar fazê-la acreditar que é a primeira vez que digo estas palavras em minha vida. Mas é a primeira vez que digo isto a sério.

— Que falta de originalidade! — exclamou Siferra, com um sorriso de desdém.

— Acho que mereci isso. Theremon, o conquistador. Theremon, o boêmio. Está bem. Esqueça. Não. Não. Não quero que esqueça, Siferra. Viajando com você, nestas últimas semanas… estando com você de manhã, de tarde e de noite… não houve um momento em que não olhasse para você e dissesse para mim mesmo: esta é a mulher que estive esperando durante todos esses anos. Esta é a mulher que não ousei imaginar que encontraria um dia.

— Muito bonito, Theremon. E a melhor forma que encontrou para demonstrar o seu amor foi me agarrar pelas costas, quase me quebrando o braço, e me entregar a Mondior. Certo?

— Mondior não existe, Siferra. Não existe ninguém com esse nome.

Por um instante, a hostilidade da moça se transformou em surpresa e curiosidade.

— O quê?

— Ele é um mito conveniente, sintetizado eletronicamente para fazer discursos pela televisão. Ninguém jamais conseguiu uma audiência com ele, não é mesmo? Nunca foi visto em público. Folimun inventou-o para ser o porta-voz dos Apóstolos. Como Mondior nunca aparece em pessoa, podia estar na televisão em cinco países diferentes ao mesmo tempo. Ninguém sabia onde realmente estava, de modo que ele podia aparecer simultaneamente em vários lugares. Folimun é o verdadeiro líder dos Apóstolos do Fogo. Ele apenas se disfarçou de relações públicas. Quem manda é ele, pelo menos nos últimos dez anos. Antes dele, havia um homem chamado Bazret, já falecido. Bazret foi quem inventou Mondior, mas foi Folimun que o tomou famoso.

— Foi Folimun que lhe contou tudo isto?

— Alguma coisa. Adivinhei o resto, e ele confirmou. Ele vai me mostrar os equipamentos usados para criar Mondior quando voltarmos à cidade de Saro. Os Apóstolos pretendem reiniciar as transmissões de televisão dentro de algumas semanas.

— Muito bem — disse Siferra. — A descoberta de que Mondior era uma farsa deixou você tão impressionado com a esperteza dos Apóstolos que decidiu imediatamente juntar-se a eles. E sua primeira missão foi me entregar. De modo que saiu por aí à minha procura, atacou-me pelas costas e com isto garantiu que o pessoal de Aragando vai cair nas garras de Folimun. Bom trabalho, Theremon.

— Folimun pretende ir para Aragando, sim — disse Theremon. — Mas ele não deseja mal às pessoas que se reuniram lá. O que quer é oferecer um lugar no novo governo para essas pessoas.

— Deuses, Theremon, você acredita mesmo que…

— Acredito. Acredito, Siferra! — Theremon abriu os braços em um gesto agitado. — Posso ser um simples repórter, mas não sou tolo. Vinte anos de jornalismo me tornaram um excelente juiz de caráter. Folimun me impressionou desde o dia em que o conheci. Não parecia nada louco, pelo contrário, dava a impressão de ser uma pessoa sensata, arguta, inteligente. Além disso, passei as últimas oito horas conversando com ele. Ninguém aqui dormiu esta noite. Ele me contou todo o plano. Não deixou nada de fora. Você admite que é possível avaliar corretamente a personalidade de uma pessoa durante uma conversa de oito horas?

— Bem… — disse ela, com relutância.

— Ou ele está sendo totalmente sincero, Siferra, ou é o melhor ator do mundo!

— Pode ser as duas coisas. Isso não o torna uma pessoa digna de confiança.

— Para você pode ser que não. Eu estou disposto a confiar nele.

— Continue.

— Folimun é um homem totalmente pragmático, quase monstruosamente racional, que acredita que a única coisa que de fato importa é a sobrevivência da civilização. Como ele teve acesso, através do seu culto religioso, aos registros históricos dos ciclos anteriores, ficou sabendo, há vários anos, daquilo que só descobrimos da forma mais dolorosa possível: Kalgash estava condenado a ver as Estrelas a cada dois mil anos, uma visão capaz de enlouquecer as pessoas mais fracas e deixar as pessoas mais fortes profundamente abaladas durante vários dias ou semanas. A propósito, ele pretende mostrar a você todos os documentos antigos, quando voltarmos à cidade de Saro.

— A cidade de Saro foi destruída.

— Não a parte controlada pelos Apóstolos. Eles evitaram que qualquer incêndio acontecesse em um raio de dois quilômetros de sua torre.

— Um trabalho muito eficiente — observou Siferra.

— Eles são eficientes. Muito bem: Folimun sabe que a melhor maneira de sairmos do caos em que nos encontramos no momento é através de um totalitarismo religioso. Eu e você podemos achar que os deuses não passam de mitos, Siferra, mais existem milhões e milhões de pessoas aí fora que pensam diferente. Elas sempre se sentiram pouco à vontade ao praticarem atos que consideram pecaminosos, por medo de serem punidas. E agora os deuses lhes inspiram absoluto terror. Acham que as Estrelas podem voltar amanhã ou depois para terminar o trabalho. Bem, aqui estão os Apóstolos, que afirmam dispor de um canal direto de comunicação com os deuses, e apresentam várias passagens do seu livro sagrado para provar isso. Estão em melhor posição para formar um governo mundial do que Altinol, do que os chefes dos governos provinciais, do que os antigos governantes, do que qualquer outro grupo. Eles são nossa única esperança.

— Você está falando sério! — exclamou Siferra, admirada. — Folimun não hipnotizou você, Theremon. Você conseguiu hipnotizar a si mesmo!

— Escute — disse o jornalista. — Folimun trabalhou a vida inteira para este momento, sabendo que pertence à geração dos Apóstolos responsável pela sobrevivência da civilização. Ele tem muitos planos. Está conseguindo o controle de vastos territórios ao norte e a oeste da cidade de Saro, e em seguida vai assumir o governo das novas províncias ao longo da Grande Estrada do Sul.

— E estabelecer uma ditadura teocrática, cuja primeira medida vai ser executar todos os intelectuais ateus, cínicos e materialistas, como eu, Beenay e Sheerin.

— Sheerin está morto. Folimun contou-me que seu corpo foi achado em uma casa em ruínas. Parece que foi assassinado por um bando de loucos anti-intelectuais, algumas semanas atrás.

Siferra desviou os olhos, chocada. Depois, olhou para o repórter, ainda mais irritada do que antes, e disse:

— Aí está. Primeiro, Folimun manda seus homens invadirem o Observatório e depois elimina o pobre Sheerin. Athor também foi assassinado, não foi? Logo vai chegar a nossa vez…

— Ele estava tentando proteger os funcionários do Observatório, Siferra.

— Nesse caso, não fez um bom trabalho, não acha?

— As coisas saíram de controle. O que Folimun pretendia fazer era remover todos os cientistas antes que os tumultos começassem. Acontece que, como estava disfarçado de fanático religioso, não conseguiu convencê-los a ouvirem sua proposta, que era lhes fornecer um salvo-conduto para o Abrigo dos Apóstolos.

— Depois de destruir o Observatório.

— Também não foi ideia dele. O mundo tinha ficado maluco naquela noite. Nem tudo aconteceu de acordo com os planos dele.

— Você é ótimo para arranjar desculpas para ele, Theremon.

— Talvez. Mas deixe-me acabar. Ele quer trabalhar com o pessoal da universidade e outras pessoas inteligentes que se reuniram em Aragando, para constituir a base de conhecimentos da humanidade. Ele, ou melhor, a figura fictícia de Mondior, será o chefe do governo. Os Apóstolos manterão a população instável e supersticiosa sob controle, com o auxílio da religião, pelo menos durante as primeiras duas gerações. Enquanto isso, o pessoal da universidade ajudará os Apóstolos a coletar e classificar os conhecimentos que escaparam da destruição, e juntos guiarão o mundo de volta para um estado racional, como já aconteceu tantas vezes no passado. Desta vez, porém, os preparativos para o próximo eclipse serão iniciados com cem anos ou mais de antecedência, o que permitirá evitar os tumultos, a loucura coletiva, a devastação universal.

— Você acredita mesmo nisto? — perguntou Siferra, asperamente. — Que faz sentido ficar parado, aplaudindo, enquanto os Apóstolos do Fogo espalham seu credo totalitário e irracional pelo mundo? Ou, o que é pior, que faz sentido ajudá-los?

— Detesto a ideia — disse Theremon, de repente.

Siferra arregalou os olhos.

— Nesse caso, por que … ?

— Vamos lá para fora. Está quase amanhecendo. Dê-me sua mão.

— Bem…

— Estava falando sério, quando disse que a amava.

Siferra deu de ombros.

— Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Uma é uma questão pessoal, e a outra é uma questão política, Theremon. Você está usando uma para confundir a outra.

— Venha — insistiu Theremon.

44

Saíram da tenda. Onos era um clarão avermelhado no horizonte. No alto, Iàrio e Sitha tinham emergido das nuvens, e os dois sóis, agora no zênite, tinham um brilho estranho e fascinante.

Havia mais. Ao norte, a pequena esfera vermelha que era Dovim brilhava como um rubi na testa do firmamento.

— Quatro sóis — disse Theremon. — É sinal de sorte. Em volta deles, havia muito movimento no acampamento dos Apóstolos. Os caminhões estavam sendo carregados, as tendas desmontadas. Theremon viu Folimun a uma certa distância, dirigindo um grupo de trabalhadores. O Apóstolo acenou para Theremon, que respondeu cumprimentando-o com a cabeça.

— Você detesta a ideia de que os Apóstolos vão governar o mundo — disse Siferra -, e mesmo assim está disposto a apoiar Folimun? Qual é a lógica?

— Não existe alternativa.

— É isso que você pensa?

O jornalista fez que sim.

— Convenci-me disso, depois de conversar várias horas com Folimun. Meu instinto me diz para não confiar em Folimun e seu bando de fanáticos. Não há dúvida de que ele é uma pessoa sedenta de poder, um homem frio e perigoso. Mas quais são os seus rivais? Altinol? Todos aqueles chefetes ao longo da estrada? As novas províncias levariam um milhão de anos para se unir espontaneamente em uma economia global. Folimun tem autoridade suficiente para fazer com o que o mundo se ajoelhe diante dele… ou melhor, diante de Mondior. Escute, Siferra, a maior parte da humanidade perdeu o juízo. Existem milhões de loucos por aí. Apenas os mais equilibrados, como você, eu e Beenay, conseguiram se recuperar. Os outros, porém, o grosso da humanidade, vão levar muitos anos para conseguirem pensar de novo com clareza. Um profeta carismático como Mondior pode ser a única solução, por mais que eu deteste a ideia.

— Não há outra opção, então?

— Não, Siferra.

— Como pode ter tanta certeza?

— Escute, Siferra, o importante é salvar a civilização. O resto é secundário. O mundo sofreu um golpe terrível e…

— O mundo desferiu um golpe terrível contra si mesmo.

— Não é assim que eu encaro a questão. Os incêndios foram o resultado de uma mudança brusca no ambiente. Nunca teriam acontecido se o eclipse não fizesse as Estrelas aparecerem. Mas os males perduram até hoje. Uma coisa leva a outra. Altinol é um mal. As novas províncias independentes são males. Os loucos se matando na floresta, ou caçando os pobres professores universitários, são males.

— E Folimun? Ele é o maior mal de todos!

— Sim e não. Claro que ele está estimulando o fanatismo e o misticismo. Acontece que estão sendo usados como instrumento de disciplina. As pessoas acreditam no que ele está vendendo, até os malucos, até as pessoas que perderam o juízo. Ele é um mal tão grande que pode engolir todos os outros. Ele pode curar o mundo, Siferra. Depois, trabalhando de dentro, podemos tentar consertar os males que ele causou. Mas só se estivermos trabalhando de dentro. Se nos juntarmos a ele, teremos uma oportunidade. Se nos colocarmos na oposição, seremos esmagados como insetos.

— Que é que você propõe, então?

— Temos que escolher entre nos unirmos a ele e nos tornarmos parte da elite que governará o mundo nos próximos anos ou passarmos o resto da vida como proscritos e fugitivos. Que é que você quer, Siferra?

— Quero uma terceira opção.

— Só existem as que acabei de mencionar. O grupo de Aragando não tem força de vontade suficiente para formar um governo viável. Pessoas como Altinol não têm escrúpulos. Folimun já controla metade da antiga República de Saro. Não vai levar muito tempo para conquistar o resto. O reino da razão ainda vai levar alguns séculos para voltar, Siferra…

— De modo que acha que é melhor apoiá-lo e tentar controlar os rumos da nova sociedade do que combatê-lo apenas porque não gostamos do tipo de fanatismo que representa?

— Exatamente. Exatamente.

— Mas ajudar a entregar o mundo ao fanatismo religioso…

— O mundo já se libertou outras vezes do fanatismo religioso, não é mesmo? O importante agora é descobrir alguma forma de sairmos do caos. Folimun e seu grupo são a nossa única esperança. Pense na fé como uma máquina capaz de mover a civilização, em uma época em que todas as outras máquinas estão quebradas. E a única coisa que importa agora. Primeiro consertar o mundo, depois, esperar que nossos descendentes se cansem dos místicos e suas vestes negras. Entende o que estou dizendo, Siferra? Entende?

A arqueóloga fez que sim com a cabeça, de uma maneira vaga, como se estivesse dormindo. Theremon ficou olhando quando ela se afastou lentamente em direção à clareira onde tinham sido surpreendidos pelos Apóstolos na noite anterior. Parecia que tinha sido há muitos anos.

Ficou parada na clareira por um longo tempo, à luz dos quatro sóis.

Como ela é linda, pensou Theremon. Como eu a amo!

Como este mundo é estranho!

Esperou. A atividade no acampamento dos Apóstolos era quase frenética. Figuras encapuzadas passavam a todo momento para cá e para lá.

Folimun aproximou-se.

— E então?

— Estamos pensando no assunto — disse Theremon.

— Nós? Tive a impressão de que estava do nosso lado. Theremon enfrentou o seu olhar.

— Só ficarei do seu lado se Siferra concordar.

— Como preferir. Entretanto, detestaria perder um homem com a sua capacidade de comunicação. Para não falar na experiência da Dra. Siferra com artefatos do passado.

Theremon sorriu.

— Isto vai ser um teste para a minha capacidade de comunicação, sabia?

Folimun assentiu e se afastou para supervisionar o carregamento dos caminhões. Theremon olhou para Siferra. Estava virada para leste, na direção de Onos, banhada pela luz fria de Sitha e Tano, enquanto, do norte, vinham os raios avermelhados de Dovim.

Quatro sóis. O melhor dos augúrios.

Siferra estava voltando agora, correndo pelos campos. Seus olhos brilhavam. Parecia muito contente.

— E aí? — perguntou Theremon. — Que foi que você decidiu?

Ela tomou as mãos do repórter nas suas.

— Está bem, Theremon. Aceito. O poderoso Folimun é o nosso líder, e eu o seguirei aonde quer que vá, com uma condição.

— Qual é?

— A mesma que mencionei quando estávamos na tenda. Não vou usar a veste. Recuso-me. Se ele insistir para que eu use a veste, o trato está desfeito.

Theremon olhou para a moça, sorrindo. Tudo iria dar certo. Depois do Cair da Noite vinha o Nascer do Dia, o renascimento. Da devastação, surgiria um novo Kalgash, e ele e Siferra ajudariam a criá-lo.

— Acho que pode ser arranjado — respondeu. — Vamos falar com Folimun, e ver o que ele diz.

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