Era uma deslumbrante tarde de quatro sóis. O grande e dourado Onos ia alto no céu, a oeste, e o pequeno e vermelho Dovim despontava rápido no horizonte, abaixo dele.
No lado oposto, os pontos brancos de Trey e Patru se destacavam no céu arroxeado do leste. A luz dos quatro astros banhava as planícies do continente mais setentrional de Kalgash. O escritório de Kelaritan 99, o diretor do Instituto Psiquiátrico Municipal de Jonglor, tinha amplas janelas que permitiam apreciar toda a beleza da paisagem.
Sheerin 501, da Universidade de Saro, que havia chegado a Jonglor fazia algumas horas, atendendo a um chamado urgente de Kelaritan, não sabia por que não estava com melhor humor. Sheerin era uma pessoa basicamente bem-humorada, e os dias de quatro sóis costumavam deixá-lo ainda mais bem disposto. Naquele dia, porém, sentia-se inquieto e apreensivo, embora estivesse fazendo o possível para ocultar o fato. Afinal, tinha sido chamado a Jonglor como especialista em saúde mental.
— Gostaria de conversar com uma das vítimas? — perguntou Kelaritan.
O diretor do hospital psiquiátrico era um homem magro, anguloso, pálido e com o peito para dentro. Sheerin, que era corado e nada tinha de esbelto, desconfiava instintivamente de qualquer um que pesasse menos da metade do que ele. Talvez seja a aparência de Kelaritan que está me deixando nervoso, pensou Sheerin. Ele parece um esqueleto ambulante.
— Ou acha que é melhor experimentar antes, pessoalmente, o Túnel do Mistério, Dr. Sheerin?
Sheerin forçou uma risada.
— Talvez eu deva começar entrevistando uma vítima ou duas — disse para o diretor. — Assim poderia me preparar melhor para os horrores do Túnel.
Os olhos negros e redondos de Kelaritan piscaram, assustados, mas foi Cubello 54, o melífluo advogado da Exposição do Centenário de Jonglor, que falou.
— Ora, vamos, Dr. Sheerin! “Os horrores do Túnel!” Isto é um pouco de exagero, não acha? Afinal de contas, até agora, tudo que temos são notícias de jornal. E chamar os pacientes de “vítimas”…
— Quem usou esse termo foi o Dr. Kelaritan — protestou Sheerin.
— Estou certo de que o Dr. Kelaritan usou a palavra apenas no sentido mais geral. Seu uso, porém, implica uma pressuposição que considero inaceitável.
Sheerin dirigiu ao advogado um olhar que era uma mistura em partes iguais de desagrado e frieza profissional.
— Ao que me consta, a viagem no Túnel do Mistério resultou na morte de várias pessoas. Não é verdade?
— Houve várias mortes no Túnel, é certo. Mas seria prematuro afirmar que essas pessoas morreram por causa do Túnel, doutor.
— Naturalmente, o senhor gostaria muito de chegar à conclusão oposta — disse Sheerin, de cara feia.
Cubello voltou-se, indignado, para o diretor do hospital.
— Dr. Kelaritan! Se é desta forma que a investigação vai ser conduzida, quero registrar imediatamente o meu protesto. O Dr. Sheerin está aqui como um perito imparcial e não como testemunha de acusação!
Sheerin riu.
— Estava dizendo o que penso dos advogados em geral, Dr. Cubello, e não expressando minha opinião a respeito do que aconteceu no Túnel do Mistério.
— Dr. Kelaritan! — exclamou Cubello mais uma vez, enrubescendo.
— Senhores, por favor — disse Kelaritan, olhando rapidamente de Cubello para Sheerin e de Sheerin para Cubello. — Não vamos brigar, está bem? Todos nós temos o mesmo objetivo nesta investigação: descobrir o que de fato aconteceu no Túnel do Mistério, para evitar que os… hum… que os trágicos eventos se repitam
— De acordo — disse Sheerin, em tom amigável. Era perda de tempo antagonizar o advogado daquela forma. Tinha coisas mais importantes a fazer.
Sorriu para Cubello.
— Na verdade, meu interesse não é descobrir de quem é a culpa, mas evitar uma situação em que as pessoas precisem encontrar um culpado de qualquer maneira. Por que não me deixa falar com um de seus pacientes, Dr. Kelaritan? Depois, podemos discutir o que sabemos a respeito do Túnel durante o almoço. Em seguida, eu poderia entrevistar mais um ou dois pacientes…
— Almoço? — repetiu Kelaritan vagamente, como se nunca tivesse ouvido a palavra.
— Almoço, sim. A refeição do meio do dia. Um velho hábito meu, doutor. Mas isto pode esperar. Primeiro, gostaria de falar com um dos pacientes.
Kelaritan fez que sim com a cabeça. Disse para o advogado:
— Acho que podemos começar com Harrim. Hoje ele acordou bem-disposto. O suficiente, pelo menos, para ser interrogado por um estranho.
— Que tal Gistin 190? — perguntou Cubello.
— Não é má ideia, mas ela não é tão forte quanto Harrim. Vamos deixar que Harrim conte a ele a história, e depois poderá conversar com Gistin, e… oh, talvez com Chimmilit. Depois do almoço.
— Obrigado — disse Sheerin.
— Por aqui, Dr. Sheerin.
Kelaritan apontou para o corredor envidraçado que ligava o seu escritório ao hospital. Era uma passagem elevada, com uma vista de 360º do céu e das colinas verde-acinzentadas que cercavam a cidade de Jonglor. Os raios dos quatro sóis penetravam por todos os lados.
Parando por um momento, o diretor do hospital olhou para a direita e depois para a esquerda, apreciando a paisagem. As feições abatidas do homenzinho pareceram adquirir uma nova vitalidade ao serem iluminadas pelos raios quentes de Onos e os raios mais modestos de Dovim, Patru e Trey.
— Que dia esplêndido, senhores! — exclamou Kelaritan, com um entusiasmo que Sheerin achou surpreendente, vindo de uma pessoa tão austera e contida como ele parecia ser. — Que maravilha poder ver quatro sóis no céu ao mesmo tempo! Que bem me faz sentir a sua luz no meu rosto! Ah, onde estaríamos sem os nossos benditos sóis?
— É mesmo — concordou Sheerin.
Na verdade, ele próprio já estava se sentindo um pouco melhor.
A meio mundo de distância, uma das colegas de Sheerin 501 da Universidade de Saro também olhava para o céu. Porém, a única emoção que sentia era medo.
Ela era Siferra 89, do departamento de arqueologia, e há um ano e meio estava executando escavações no sítio arqueológico de Beklimot, na remota península de Sagikan.
No momento, estava rígida de terror, aguardando a catástrofe que se aproximava. O céu não lhe oferecia nenhum consolo. Naquela parte do mundo, os únicos sóis visíveis no momento eram Tano e Sitha, e o brilho frio e cruel desses astros sempre a tinham deixado triste e deprimida. Dovim podia ser visto despontando no horizonte, atrás da serra de Horkkan. A luz mortiça do pequeno sol vermelho, porém, não contribuía em nada para levantar seu ânimo.
Siferra sabia que em pouco tempo a luz quente e amarela de Onos surgiria no horizonte, o que a preocupava era algo muito mais sério do que a ausência temporária do sol principal.
Uma grande tempestade de areia estava se aproximando de Beklimot. Em poucos minutos varreria a região. Ninguém sabia o que podia acontecer. As tendas podiam ser destruídas, as caixas com os espécimes, tão cuidadosamente classificados, podiam ser viradas, e o conteúdo misturado, as câmaras, o material de desenho, os mapas estratigráficos, compilados com tanto sacrifício… tudo em que haviam trabalhado durante tanto tempo podia ser perdido em poucos momentos.
Pior. Podiam todos morrer.
Pior ainda. As próprias ruínas de Beklimot, o berço da civilização, a mais antiga cidade conhecida de Kalgash, corriam perigo. As valas de exploração que Siferra havia cavado na planície aluvial que cercava o sítio ainda estavam abertas. O vento em sua fúria, se fosse bastante forte, levantaria ainda mais areia do que estava carregando e a arremessaria com força indescritível nos frágeis restos de Beklimot, erodindo, soterrando, talvez mesmo derrubando as estruturas expostas e espalhando-as na planície ressequida.
Beklimot era um tesouro histórico que pertencia ao mundo inteiro, Siferra assumira um risco calculado ao iniciar as escavações. Era impossível fazer uma pesquisa arqueológica sem destruir alguma coisa. Era parte do jogo. Mas ser a responsável por isto e ter a má sorte de sofrer a maior tempestade de areia no último século justo no momento em que as ruínas se encontravam mais vulneráveis…
Não. Não, isso era demais. Se Beklimot fosse arrasado pela tempestade em consequência das escavações, o nome de Siferra seria lembrado para sempre com desprezo nos meios científicos.
Talvez o lugar fosse amaldiçoado, como algumas pessoas supersticiosas costumavam afirmar. Siferra 89 nunca acreditara em forças sobrenaturais. Entretanto, aquela escavação, que poderia ter sido o coroamento de sua carreira, só lhe trouxera problemas, desde o início. E agora ameaçava acabar com sua carreira… se não acabasse com sua vida.
Eilis 18, um dos assistentes, chegou correndo. Era um homem magro e franzino, que parecia insignificante diante da figura alta e atlética de Siferra.
— Prendemos no chão tudo que era possível! — exclamou, quase sem fôlego. Agora fica por conta dos deuses!
A arqueóloga franziu a testa e replicou:
— Deuses? Que deuses? Está vendo algum deus nas vizinhanças, Eilis?
— Eu só queria dizer…
— Eu sei o que você queria dizer. Esqueça.
Do outro lado chegou Thuvvik 443, o capataz. Estava com os olhos arregalados de medo.
— Moça, onde vamos nos esconder da tempestade? perguntou. — Não há abrigo!
— Já lhe disse, Thuvvik. Atrás do morro.
— Vamos ser soterrados! Vamos morrer sufocados!
— O morro vai proteger vocês, não se preocupe — disse Siferra, com uma convicção que estava longe de sentir, — Vá para lá! E leve os outros com você!
— E a senhora? Por que não vai também?
Siferra olhou para ele, preocupada. Será que ele estava pensando que ela dispunha de um esconderijo particular, onde estaria mais segura do que os operários?
— Já vou, Thuvvik. Ande! Pare de me amolar!
Do outro lado da estrada, perto da construção de tijolos em forma hexagonal que os primeiros exploradores haviam batizado de Templo dos Sóis, Siferra avistou Balik 338. Apertando os olhos, protegendo-os com a mão contra a luz gélida de Tano e Sitha, olhava para o norte, para a direção de onde vinha a tempestade. A expressão no seu rosto era de angústia.
Balik era especialista em estratigrafia, mas também cuidava dos registros meteorológicos da expedição. Fazia parte do seu trabalho estar atento para a possibilidade de tempestades e outros eventos incomuns.
Normalmente, o tempo na península de Sagikan era bastante previsível. O lugar era de incrível aridez, só chovia uma vez a cada dez ou vinte anos. O único outro evento incomum era uma mudança brusca da circulação do ar, que colocava em ação forças ciclônicas e produzia uma tempestade de areia. Isso, porém, só acontecia algumas vezes por século.
A expressão de desalento no rosto de Balik era um reflexo da culpa que sentia por não haver previsto com maior antecedência a chegada da tempestade? Ou parecia tão horrorizado porque agora era capaz de avaliar toda a extensão da catástrofe que estava para se abater sobre o acampamento?
Tudo teria sido diferente, pensou Siferra, se tivessem um pouco mais de tempo para se preparar. Agora podia compreender que todos os sinais estavam ali, para quem quisesse vê-los: a onda de calor, que tinha sido excessiva, mesmo para os padrões da península de Sagikan, a calmaria súbita que substituíra a brisa do norte, o estranho vento úmido que passara a soprar do sul. Os pássaros khalla, aquelas estranhas aves de rapina que assolavam a região como maus espíritos, tinham todos levantado voo assim que o vento sul começara a soprar, desaparecendo atrás das dunas do deserto, a oeste, como se estivessem sendo perseguidos por demônios.
Devíamos ter prestado mais atenção quando os pássaros khalla fugiram para a região das dunas, pensou Siferra, mas estávamos muito ocupados com as escavações. Preferimos ignorar todos os indícios. Negamos o óbvio. Finja que não viu os sinais de uma tempestade de areia e talvez ela resolva mudar de direção.
Depois, aquela pequena nuvem cinzenta aparecendo no norte, aquela mancha escura quebrando a transparência do céu do deserto, que é sempre tão claro como vidro.
Nuvem? Está vendo uma nuvem? Eu não estou vendo nada.
Negamos o óbvio.
Agora a nuvem era um imenso monstro negro, tomando metade do céu. O vento ainda soprava do sul, mas não era mais úmido — parecia o bafo de uma fornalha — e havia outro vento, ainda mais forte, soprando da direção oposta. Um vento alimentava o outro. E quando se encontrassem…
— Siferra! — gritou Balik. — Está chegando! Vá para o abrigo!
— Já vou! Já vou!
Ela não queria ir para o abrigo. O que queria era correr de uma zona da escavação para outra, cuidando de tudo ao mesmo tempo, fincando melhor no chão as estacas das tendas, verificando se as preciosas placas fotográficas estavam seguras, cobrindo com o corpo a fachada do recém-escavado Palácio Octogonal para proteger os maravilhosos mosaicos que haviam descoberto no mês anterior. Mas Balik estava certo. Siferra tinha feito tudo que era possível, naquela manhã caótica, para salvar as ruínas. Agora, só lhe restava encolher-se atrás do maior morro que havia nas vizinhanças e rezar para que os defendesse da fúria da tempestade.
Siferra saiu correndo. As pernas musculosas a conduziam com facilidade sobre a areia ressequida. A arqueóloga tinha menos de quarenta anos, uma mulher alta, forte, no apogeu de sua forma física. Até aquele dia, não havia sentido nada a não ser otimismo em relação a qualquer aspecto de sua existência. De repente, porém, estava tudo ameaçado: sua carreira, sua saúde, até mesmo sua vida.
Os outros estavam amontoados na base do morro, atrás de uma barreira improvisada com lonas e estacas de madeira.
— Com licença — disse Siferra, abrindo caminho entre eles.
— Moça — gemeu Thuvvik. — Moça, faça a tempestade ir embora!
Como se ela fosse algum tipo de deusa com poderes mágicos. Siferra começou a rir. O capataz fez um gesto estranho para ela. Provavelmente um sinal religioso.
Os outros operários, que viviam todos na pequena aldeia a leste das ruínas, fizeram o mesmo sinal e começaram a murmurar alguma coisa para Siferra. Orações? Para ela? Sentiu um arrepio. Aqueles homens, como os pais e avós, tinham passado a vida cavando em Beklimot, a serviço dos arqueólogos, descobrindo pacientemente as antigas construções e peneirando a areia à procura de minúsculos artefatos, com certeza, já haviam passado por outras tempestades de areia. Será que sempre ficavam tão assustados?
Ou esta tempestade seria pior do que as outras?
— Aí vem ela — disse Balik. — Aí vem ela — repetiu, cobrindo o rosto com as mãos.
A tempestade se abateu sobre eles com toda a sua fúria. Siferra permaneceu de pé a princípio, olhando por uma abertura na lona para a monumental muralha ciclópica da cidade do outro lado da estrada, como se, simplesmente por manter o olhar fixo nas ruínas, pudesse protegê-las da destruição. Momentos depois, porém, isto se tomou impossível. Rajadas de vento incrivelmente quente penetraram no abrigo improvisado. A arqueóloga teve a impressão de que o cabelo e até as sobrancelhas estavam em chamas. Virou-se de costas, levantando uma das mãos para proteger o rosto.
Neste momento, a areia chegou, e tudo ficou invisível. Era como uma chuva, só que mais forte do que a chuva comum. O barulho era insuportável. Não o rugir do trovão, mas o som de milhões de partículas de areia se chocando contra o solo esturricado. Além daquele ruído principal, havia outros: um sibilar constante, um rangido intermitente e um tamborilar delicado. E um uivo de arrepiar. Siferra imaginou toneladas de areia se precipitando do céu, soterrando as muralhas, soterrando os templos, soterrando as construções baixas da zona residencial, soterrando o acampamento. E soterrando toda a equipe de arqueólogos.
Ela se virou de frente para a encosta do morro e esperou pelo fim. Um pouco para sua própria surpresa e humilhação, começou a chorar histericamente, soluços fundos, que vinham das entranhas do seu corpo. Não queria morrer. Claro que não: quem queria? Mas nunca havia percebido, até aquele momento, que podia haver alguma coisa pior do que a morte.
Beklimot, o mais famoso sítio arqueológico do mundo, a mais antiga cidade de que se tinha notícia, o berço da civilização, iria ser destruída — graças, exclusivamente, à sua negligência, Gerações de grandes arqueólogos de Kalgash haviam trabalhado ali no século e meio que se seguira à descoberta de Beklimot. Primeiro, Galdo 221, o maior de todos, e depois Marpin, Stirmupad, SheIbik, Numoin, uma lista de peso… e agora Siferra, que por imprudência deixara o lugar descoberto quando uma tempestade de areia se aproximava.
Beklimot passara muito tempo sob a areia. As ruínas tinham dormido pacificamente durante milhares de anos, preservadas como eram no dia em que os habitantes finalmente se renderam à aridez do clima e abandonaram o local. Todos os arqueólogos que trabalharam ali desde o tempo de Galdo tinham tido o cuidado de expor apenas uma pequena parte da cidade e de levantar cercas e barreiras para proteger da ameaça, pouco provável, mas de extremo perigo, de uma tempestade de areia. Todos, até chegar a vez de Siferra.
Naturalmente, ela também levantara as cercas e barreiras de praxe. Não, porém, na frente das novas escavações, não no setor mais importante, onde concentrara suas investigações. Algumas das construções mais antigas e importantes de Beklimot ficavam ali. E a arqueóloga, impaciente para começar a exploração, levada pelo impulso irresistível de ir cada vez mais longe, deixara de tomar as precauções mais elementares. Não pensara assim na ocasião, é claro. Mas agora, com o ruído demoníaco da tempestade nos ouvidos e o céu negro de destruição…
Talvez seja melhor eu não sobreviver, pensou Siferra. Assim não terei que ler o que na certa dirão a meu respeito em todos os livros de arqueologia a serem publicados nos próximos cinquenta anos. “As famosas ruínas de Beklimot, que forneceram informações inestimáveis a respeito dos primórdios da civilização em Kalgash até serem destruídas em consequência das ações irresponsáveis de uma jovem e ambiciosa arqueóloga, Siferra 89, da Universidade de Saro…”
— Acho que está passando — sussurrou Balik.
— O que é que está passando? — perguntou Siferra.
— A tempestade. Escute! O barulho lá fora diminuiu.
— Devemos estar enterrados debaixo de tanta areia que não dá para ouvirmos mais nada.
— Não, não estamos enterrados, Siferra!
Balik puxou a lona que estava à frente deles e conseguiu levantá-la ligeiramente. Siferra olhou na direção do espaço aberto entre o morro e a muralha da cidade. Não queria acreditar nos próprios olhos.
O que estava vendo era o azul-escuro do céu e o brilho dos sóis. Era apenas a luz branca e fria de Tano e Sitha, mas no momento achou aquela luz a coisa mais bonita que já vira.
A tempestade havia passado. Estava tudo calmo de novo. Onde estava a areia? Por que não estava tudo enterrado na areia?
A cidade ainda estava visível: os grandes blocos da parede de pedra, o brilho dos mosaicos, o telhado pontiagudo do Templo dos Sóis. Até as tendas estavam quase todas de pé, incluindo as mais importantes. Apenas o acampamento dos operários tinha sido afetado, mas os estragos podiam ser consertados em poucas horas.
Surpresa, ainda sem coragem de acreditar, Siferra saiu do abrigo e olhou em torno. Não havia areia solta no chão. O solo duro, de cor escura, cozido pelo sol, que constituía a superfície no local da escavação, ainda estava bem visível. Agora estava um pouco diferente, parecia ter sofrido os efeitos de uma erosão instantânea, mas estava livre de qualquer depósito que a tempestade pudesse trazer.
Balik disse, em tom pensativo:
— Primeiro chegou a areia e depois o vento. O vento pegou toda a areia que foi jogada em cima de nós, pegou-a tão rapidamente quanto havia caído, e carregou-a para o sul. Foi um milagre, Siferra. Não há outro nome para o que aconteceu. Veja… dá para ver onde o solo foi arranhado, onde a camada de areia foi arrastada pelo vento. O equivalente a talvez cinquenta anos de erosão ocorreu em apenas cinco minutos, mas…
Siferra mal estava escutando. Ela segurou Balik pelo braço e virou-o de frente para uma estrutura lateral, longe do lugar principal onde estavam escavando.
— Olhe ali.
— Onde? O quê?
A arqueóloga apontou.
— A colina de Thombo.
O meteorologista improvisado arregalou os olhos.
— Céus! Está rachada ao meio!
A colina de Thombo era uma elevação de forma irregular a uns quinze minutos a pé do lugar onde estavam. Ninguém trabalhava ali há mais de cem anos, desde a segunda expedição do grande pioneiro Galdo 221, e Galdo não encontrara nada de importante ali. Era considerada como o depósito de lixo da antiga cidade de Beklimot, um local interessante, sem dúvida, mas trivial em comparação com as maravilhas que a cidade em si tinha a oferecer.
Parecia, porém, que a colina de Thombo recebera em cheio o impacto da tempestade e o que gerações de arqueólogos não se deram ao trabalho de fazer, a tempestade de areia conseguira em apenas alguns instantes. Uma faixa em ziguezague fora arrancada da encosta, como um ferimento monstruoso, deixando à vista a parte interna da colina. Exploradores experientes como Siferra e Balik precisavam apenas de um olhar para compreender a importância do que tinha sido exposto.
— Existia uma cidade debaixo do monturo — murmurou Balik.
— Mais de uma, ao que parece. Uma série de cidades, provavelmente — disse Siferra.
— Acha mesmo?
— Olhe. Olhe ali, do lado esquerdo.
Balik soltou um longo assovio.
— Não é uma parede no estilo hachurado, debaixo do canto daquele alicerce ciclópico?
— Isso mesmo.
Siferra sentiu um frio na espinha. Olhou para Balik e viu que ele estava tão surpreso quanto ela: rosto pálido, olhos arregalados.
— Minha nossa! — murmurou, com voz rouca. — O que nós temos aqui, Siferra?
— Ainda não sei, mas vou começar a investigar agora mesmo.
A arqueóloga olhou para trás, para o abrigo, onde Thuvvik e os companheiros ainda se encolhiam, assustados, fazendo sinais religiosos e balbuciando preces, como se não compreendessem que o perigo já havia passado.
— Thuvvik! — gritou Siferra, gesticulando vigorosamente, de forma quase agressiva. — Saiam daí, você e seus homens! Temos trabalho para fazer!
Harrim 682 era um homem grande e corpulento, de cinquenta e poucos anos, com músculos proeminentes nos braços e no peito e uma boa camada de gordura por cima. Sheerin, examinando-o pela janela do quarto de hospital, teve certeza de que ele e Harrim se dariam muito bem.
— Sempre simpatizei com pessoas grandes — explicou o psicólogo para Kelaritan e Cubello. — Acho que me identifico com elas. Não que eu seja musculoso, como aquele — emendou Sheerin, com uma risada descontraída. — Sei que não passo de um monte de banha. A não ser aqui — acrescentou, apontando para a própria cabeça. — Qual é a profissão desse tal de Harrim?
— Estivador — respondeu Kelaritan. — Trabalha há trinta e cinco anos no porto de Jonglor. Ganhou uma entrada para a inauguração do Túnel do Mistério em um sorteio. Levou a família inteira. Foram todos afetados, em maior ou menor grau, mas ele foi o pior caso. É embaraçoso para um homem forte como ele vir a sofrer de problemas psicológicos.
— Posso imaginar — disse Sheerin. — vou me lembrar disso. Podemos falar com ele agora?
Entraram no quarto. Harrim estava sentado, olhando sem interesse para um cubo giratório que projetava meia dúzia de raios coloridos na parede em frente a sua cama. Sorriu amistoso quando viu Kelaritan, mas pareceu contrair-se quando percebeu que o advogado Cubello o acompanhava e assumiu uma atitude positivamente hostil quando Sheerin entrou no aposento.
— Quem é ele? — perguntou a Kelaritan. — Outro advogado?
— Nada disso. Quero apresentar-lhe Sheerin 501, da Universidade de Saro. Está aqui para ajudá-lo.
— Hum! — fez Harrim, desdenhoso. — Outro médico de lunáticos! Que bem eles me fizeram até agora?
— Tem toda razão — disse Sheerin. — A única pessoa que pode de fato ajudar Harrim a ficar bom é o próprio Harrim, certo? Você sabe disso, e eu sei disso. Quem sabe eu acabo convencendo os meus colegas desta verdade? — Sentou-se na beira da cama. Ela rangeu com o peso do psicólogo. — Pelo menos, eles têm camas decentes neste lugar. Devem ter uma boa estrutura, para agüentar nós dois ao mesmo tempo… Você não gosta de advogados, não é? Pois somos dois, amigo.
— Eles só servem para infernizar a vida da gente — disse Harrim. — São cheios de truques. Mandam você dizer uma coisa, mesmo que não esteja pensando, dizendo que poderão ajudá-lo se você disser isso assim assim, e acabam usando suas próprias palavras contra você. É assim que vejo a coisa.
Sheerin olhou para Kelaritan.
— É absolutamente necessário que Cubello esteja aqui durante esta entrevista? Acho que nosso amigo se sentiria mais à vontade sem ele.
— Estou autorizado a participar de qualquer… — começou Cubello, muito sério.
— Por favor — disse Kelaritan. — Sheerin está certo. Três visitas ao mesmo tempo pode ser demais para Harrim. E você já ouviu a história dele.
— Bem… — murmurou Cubello, de cara feia. Pensou um pouco e depois foi embora sem dizer mais nada. Sheerin fez um gesto discreto para que Kelaritan se sentasse no canto mais afastado. Depois, voltando-se para o doente, sorriu o seu sorriso mais simpático e disse:
— Está sendo duro para você, não é?
— Ponha duro nisso.
— Há quanto tempo está aqui?
Harrim deu de ombros.
— Uma semana ou duas. Talvez um pouco mais. Não sei. Desde…
Não disse mais nada.
— Desde a Exposição de Jonglor? — perguntou Sheerin.
— Desde que fiz aquela viagem.
— Faz mais tempo do que você pensa.
— É mesmo? — Os olhos de Harrim assumiram um expressão assustada. Ele não queria ouvir há quanto tempo estava no hospital. Mudando de tática, Sheerin disse:
— Aposto que você nunca pensou que um dia se sentiria ansioso para voltar às docas, hein?
— É verdade! — concordou Harrim, com um sorriso. — Puxa, o que eu não daria para amanhã estar carregando aqueles caixotes! — Olhou para as mãos. Eram mãos fortes, calejadas, com dedos grossos, achatados nas pontas, um deles torto por causa de alguma fratura antiga. — Estou ficando mole de tanto não fazer nada. Assim, quando voltar ao trabalho, não vou mais agüentar pegar no pesado.
— Neste caso, o que o prende aqui? Por que você simplesmente não se levanta, veste uma roupa e dá o fora? Kelaritan, do canto do quarto, fez um som de advertência. Sheerin silenciou-o com um gesto.
Harrim olhou para o psicólogo, surpreso.
— Levantar-me e dar o fora?
— Por que não? Ninguém vai impedi-lo.
— Mas se eu fizer isto… se eu fizer isto… Não concluiu a frase.
— Se você fizer isto, o quê? — perguntou Sheerin. Harrim ficou em silêncio por um longo tempo, com uma expressão preocupada, a testa franzida. Várias vezes fez menção de falar, mas se arrependeu. O psicólogo esperou, paciente. Afinal, o estivador declarou, com uma voz tensa, rouca, estrangulada:
— Não posso sair na rua. Por causa da… por causa da… por causa da… — a palavra custou a sair — _por causa da Escuridão.
— Por causa da Escuridão — repetiu Sheerin.
A palavra ficou pairando entre eles, como se fosse um objeto sólido.
Harrim parecia sem jeito, ou mesmo envergonhado. Sheerin lembrou-se de que para as pessoas da sua classe, Escuridão era uma palavra raramente usada na presença de estranhos. Para Harrim, se não era exatamente uma palavra obscena, pelo menos era sacrílega. Ninguém em Kalgash gostava de pensar na Escuridão, quanto menor o nível de instrução, porém, mais perigoso era pensar na possibilidade de que os seis sóis um dia pudessem desaparecer do céu ao mesmo tempo, sujeitando o planeta à escuridão total. A ideia era inconcebível. Literalmente inconcebível.
— Por causa da Escuridão — disse Harrim. — É disso que tenho medo. De que se sair na rua, estarei de novo na Escuridão. É isso. A Escuridão, de novo.
— Houve uma inversão completa dos sintomas nas últimas semanas — observou Kelaritan, em voz baixa. — No princípio, era exatamente o contrário. Ele se recusava a ficar em recintos cobertos, a menos que estivesse sedado, Um caso típico de claustrofobia. Depois de algum tempo, esta mudança para claustrofilia. Achamos que é um sinal de que a cura está próxima.
— Talvez — disse Sheerin. — Mas se não se importa…
Dirigindo-se a Harrim, perguntou:
— Você foi um dos primeiros a andar no Túnel do Mistério, não foi?
— Foi logo no primeiro dia — respondeu Harrim, com um traço de orgulho na voz. — Houve uma loteria na cidade. Cem pessoas ganharam entradas para o brinquedo. Devem ter vendido milhões de bilhetes, e o meu foi o quinto a ser sorteado. Eu, minha mulher, meu filho, minhas duas filhas, nós todos andamos no Túnel. Logo no primeiro dia.
— Se importa de me contar como foi?
— Bem… — começou Harrim. — Foi… eu nunca tinha estado no escuro, você entende. Nem mesmo em um quarto escuro. Nunca. Jamais havia pensado no assunto. Quando eu era criança, tinha sempre uma lâmpada acesa no meu quarto. Quando me casei e tive minha própria casa, era natural que também tivesse uma. Minha mulher pensa como eu. A escuridão não é natural. Não é algo fadado a existir.
— Mesmo assim, você entrou no sorteio.
— Ora, isso era diferente. Era diversão, você entende? Uma coisa especial. Um programa de feriado. A grande exposição era para comemorar os quinhentos anos da fundação da cidade, certo? Todo mundo estava comprando bilhetes. Achei que devia ser um brinquedo diferente, um brinquedo muito bom, para ter essa propaganda toda, certo? Foi por isso que comprei o bilhete. Quando fui sorteado, todos os meus colegas ficaram com inveja. Alguns chegaram a me oferecer dinheiro pelo bilhete. “Não senhor”, disse para eles, “este bilhete é para mim e minha família…”
— Então você estava animado para entrar no Túnel?
— Claro que estava.
— Que aconteceu durante o passeio? Como se sentiu?
— Bem… — começou Harrim. — Passou a língua nos lábios e seus olhos assumiram um ar distante. — Havia aqueles carrinhos, você sabe, com tábuas no interior para a gente sentar, abertos em cima. Havia vaga para seis pessoas em cada carrinho, mas no nosso caso, fomos apenas nós cinco, porque estávamos juntos, e quase dava para encher um carro sem colocar um estranho conosco. Aí uma música começou a tocar, e o carrinho entrou no Túnel. Andava bem devagar, não se parecia nada com um carro andando na estrada, apenas engatinhava. De repente, estávamos dentro do Túnel. Aí… aí…
Sheerin esperou.
— Continue — disse, depois de uns minutos, vendo que Harrim não dava sinal de prosseguir. — Conte o que aconteceu. Estou muito interessado em saber como foi.
— Aí ficou tudo escuro — disse Harrim, com voz rouca. A lembrança fazia suas mãos tremerem. — Caiu em cima da gente com se fosse um peso enorme, entende? Ficou tudo preto. — O estivador começou a tremer convulsivamente. Ouvi as risadas do meu filho Trinit. Ele é um menino inteligente. Aposto que achou que a Escuridão era uma coisa suja. De modo que ria, ria, e eu lhe disse para parar. Uma das minhas filhas ficou com medo, e eu disse a ela que estava tudo bem, que não havia nenhum perigo, que a luz ia voltar em quinze minutos e ela devia pensar naquilo como um brinquedo e não como uma coisa assustadora. Mais aí… aí…
Calou-se novamente. Desta vez, Sheerin não disse nada.
— Aí eu comecei a me sentir mal. Era tudo Escuridão … Escuridão… não pode imaginar como é… não pode imaginar … como é preta… como é preta… a Escuridão… a Escuridão … Harrim começou a soluçar, de repente. — A Escuridão… meu Deus, a Escuridão…
— Calma, homem. Já passou. Olhe pela janela! Hoje temos quatro sóis no céu, Harrim. Calma!
— Deixe comigo — disse Kelaritan. Ele havia se aproximado da cama no momento em que os soluços começaram. Estava com uma agulha de injeção. Espetou-a no braço musculoso de Harrim, e o estivador se acalmou de imediato. Recostou-se no travesseiro, com um sorriso estúpido no rosto.
— Agora temos que ir — disse Kelaritan.
— Mas eu mal comecei a…
— Não vai conseguir que ele diga mais nada coerente. É melhor irmos almoçar.
— Está bem — concordou Sheerin, de má vontade. Para sua surpresa, não estava com fome. Ele mal podia recordar de um dia que tivesse se sentido assim.
— E ele é um dos que estão em melhor estado?
— É verdade.
— Então, como estão os outros?
— Alguns ficaram totalmente catatônicos. Outros precisam ser mantidos a maior parte do tempo sob efeito de sedativos. Na primeira fase, como eu disse, eles têm medo de lugares fechados. Quando saíram do Túnel, não havia nada de errado com eles, exceto o fato de sofrerem de uma forma particularmente grave de claustrofobia. Recusavam-se a entrar em recintos fechados: palácios, mansões, casas, apartamentos, barracos e tendas.
Sheerin estava profundamente chocado. Sua tese de doutorado fora a respeito de doenças causadas pela escuridão. Era por isto que estava ali. Entretanto, nunca tinha ouvido falar de nada parecido.
— Eles se recusavam a entrar em recintos fechados? Onde dormiam?
— Ao ar livre.
— Alguém tentou forçá-los?
— Oh, sim, claro que sim. Acontece que ficavam violentamente histéricos. Alguns chegaram a tentar o suicídio, batendo com a cabeça nas paredes, coisas assim. Era impossível mantê-los em um recinto fechado, a não ser com uma camisa de força ou uma dose maciça de sedativo.
Sheerin olhou para o corpulento estivador, que agora dormia placidamente, e sacudiu a cabeça.
— Pobres-diabos.
— Essa é a primeira fase. Harrim agora está na segunda. A fase claustrofilica. Acostumou-se a ficar aqui, e a síndrome se inverteu por completo. Ele sabe que está seguro no hospital: as luzes ficam acesas o tempo todo. Mas embora possa ver os sóis pela janela, tem medo de sair. Acha que lá fora está escuro.
— Isto é absurdo! — protestou Sheerin . — Nunca está escuro lá fora!
No momento em que disse isto, sentiu-se um tolo. Kelaritan, porém, não pareceu notar.
— Todos nós sabemos disso, Dr. Sheerin. Qualquer pessoa em seu juízo perfeito sabe disso. O problema com as pessoas que sofreram o trauma do Túnel do Mistério é que elas não estão mais em seu juízo perfeito.
— Compreendo — disse Sheerin, um pouco envergonhado.
— Mais tarde, terá oportunidade de conversar com outros pacientes — disse Kelaritan. — Talvez eles lhe permitam enxergar o problema de outro ângulo. Amanhã, vamos levá-lo para conhecer o Túnel. Naturalmente, tivemos que fechá-lo depois que as dificuldades começaram, mas as autoridades estão ansiosas para reabri-lo. O investimento, pelo que ouvi dizer, foi muito grande. Mas agora acho que está na hora de almoçarmos, não é, doutor?
— Está bem, vamos almoçar — concordou Sheerin novamente, ainda com menos entusiasmo do que da primeira vez.
A grande cúpula do Observatório da Universidade de Saro, que, majestosa, dominava as encostas verdes do Morro do Observatório, brilhava à luz da tarde. O pequeno disco avermelhado de Dovim já havia desaparecido no horizonte, mas Onos ainda estava alto a oeste, e Trey e Patru, atravessando o céu a leste em uma diagonal precisa, deixavam trilhas reluzentes na superfície da cúpula.
Beenay 25, um rapaz ágil e esguio, de gestos rápidos e precisos, caminhava para lá e para cá no pequeno apartamento na cidade de Saro que compartilhava com a companheira oficial, Raissta 717, recolhendo livros e anotações. Raissta, instalada com conforto no sofá verde escuro, olhou para ele e franziu a testa.
— Vai a algum lugar, Beenay?
— Ao Observatório.
— Mas ainda é muito cedo! Em geral, você só vai lá depois que Onos se põe.
— Hoje tenho um encontro, Raissta.
Ela lhe dirigiu um olhar sedutor. Os dois eram alunos de pós-graduação e tinham quase trinta anos. Ambos eram professores-assistentes, ele de astronomia, ela de biologia. Fazia apenas sete meses que se haviam tornado companheiros oficiais. A relação era recente, mas os primeiros problemas já começavam a aparecer. Beenay fazia seu trabalho à noite, quando apenas os sóis mais fracos estavam no céu. Raissta se sentia mais animada durante o dia, iluminada pelos raios dourados de Onos.
Nos últimos tempos, ele passava cada vez mais tempo no Observatório, as coisas estavam chegando a tal ponto que raramente os dois estavam acordados ao mesmo tempo.
Beenay sabia que a moça estava passando por maus pedaços. Ele também passava por maus pedaços. Entretanto, o estudo que estava fazendo da órbita de Kalgash era um trabalho de extrema complexidade e muito absorvente. Se Raissta tivesse a paciência de esperar mais algumas semanas… um mês ou dois, talvez..
— Não pode ficar mais um pouco esta noite? — perguntou a moça.
Beenay sentiu um aperto no coração. Raissta estava lhe lançando seu olhar de venha-e-vamos-brincar. Não era fácil resistir e, lá no fundo, ele não queria isso. Entretanto, Yimot e Faro estavam à sua espera.
— Já lhe disse. Tenho um…
— …encontro. Pois eu também tenho. Com você.
— Comigo?
— Ontem você me disse que poderia ter algum tempo livre esta tarde. Eu estava contando com isso, você sabe. De modo que reservei algumas horas para nós. Cheguei a fazer o serviço do laboratório de manhã…
A coisa estava ficando cada vez pior, pensou Beenay. Ele lembrou-se de que realmente havia dito alguma coisa a respeito de passar a tarde com Raissta, esquecendo-se por completo do compromisso com os dois jovens estudantes.
Agora, ela fazia beicinho e sorria ao mesmo tempo, um truque que conseguia executar com perfeição. Beenay estava muito tentado a fazer o que ela queria, mas isto implicaria deixar Faro e Yimot esperando por mais de uma hora, o que não seria justo. Esperando por mais de duas horas, provavelmente. Além disso, tinha que admitir que estava ansioso para saber se os cálculos dos dois estudantes estavam de acordo com os seus.
Era uma decisão difícil: de um lado, o desejo que sentia por Raissta, do outro a necessidade de conhecer o resultado de uma importante questão científica. E embora tivesse obrigação de chegar na hora para o encontro que havia marcado com Faro e Yimot, percebeu, confuso, que também havia, de certa forma, marcado um encontro com Raissta… um encontro que era não só uma obrigação, mas também um prazer.
— Escute — disse, sentando-se no sofá e segurando a mão de Raissta entre as suas -, eu não posso estar em dois lugares ao mesmo tempo, posso? Quando falei com você ontem, não me lembrei que Faro e Yimot iriam me ver hoje no Observatório. Mas vou fazer um trato com você. Deixe-me cuidar logo do assunto com eles e em pouco tempo estarei de volta, e teremos a noite inteira para nós. Que tal?
— Esta noite você vai fotografar aqueles asteroides — disse ela, fazendo beicinho de novo, mas desta vez sem sorrir.
— Droga! Não importa. Posso pedir a Thilanda para me substituir. Ou a Hikkinan. Ou a quem estiver lá. Estarei de volta antes de Onos se pôr. Juro.
— Jura?
Ele apertou a mão de Raissta e lhe dirigiu um sorriso malicioso.
— É um juramento que eu tenho todo o interesse em cumprir. OK? Não está zangada?
— Hum…
— Vou me livrar de Faro e Yimot o mais depressa que puder.
— Acho bom. — Enquanto ele voltava a arrumar os papéis, Raissta perguntou: — Afinal, que há de tão importante nesse trabalho com Faro e Yimot?
— Estamos fazendo um estudo das forças gravitacionais.
— Isso não me parece uma coisa muito importante.
— Espero que não seja importante para ninguém — replicou Beenay. — Mas isto é uma coisa que ainda temos que investigar.
— Gostaria de saber o que você quer dizer com isto. Beenay olhou para o relógio e suspirou fundo. Yimot e Faro podiam esperar um minuto ou dois.
— Sabe que ultimamente venho estudando o movimento de Kalgash em torno de Onos, não sabe?
— Claro que sei.
— Muito bem. Há algumas semanas, descobri uma anomalia. Meus resultados não estavam de acordo com a Teoria da Gravitação Universal. Naturalmente, a primeira coisa que fiz foi refazer os cálculos. Acontece que a anomalia não desapareceu. Fiz todas as contas de novo pela terceira vez. E pela quarta. Sempre a mesma anomalia, qualquer que fosse o método utilizado.
— Oh, Beenay, sinto muito por você. Tem trabalhado tanto nisto e agora descobre que suas conclusões estão erradas…
— E se não estiverem?
— Mas você disse…
— No momento, não sei se meus cálculos estão corretos ou não. Tudo indica que estejam, mas ao mesmo tempo é difícil acreditar que não haja um erro. Verifiquei várias vezes, usando métodos diferentes, e obtive sempre o mesmo resultado, o que me assegura que não houve erro na computação. Entretanto, a resposta que venho obtendo é impossível. A única explicação que me ocorre é que estou partindo de uma hipótese falsa e fazendo tudo certo daí em diante. Neste caso, é claro que vou obter a mesma resposta errada, seja qual for o método que use para verificar os cálculos. Posso não estar vendo uma falha no conjunto inicial de postulados. Se você usar o valor errado para a massa do nosso planeta, por exemplo, acabará com a órbita errada, por mais precisos que sejam os cálculos. Está me acompanhando?
— Até agora, estou.
— Foi por isso que propus o problema a Faro e Yimot, sem a explicação exata do que se trata, e lhes pedi para calcular a coisa toda desde o princípio. Eles são rapazes espertos. Tenho certeza de que posso confiar na sua competência matemática. Se chegarem à mesma conclusão que eu, embora estejam abordando o problema de um ângulo que exclui totalmente os erros que eu possa haver cometido em minha linha de raciocínio, terei que admitir que meus resultados estão corretos, afinal.
— Mas seus resultados não podem estar corretos, Beenay. Você não disse que não estão de acordo com a Lei da Gravitação Universal?
— E se a Lei da Gravitação estiver errada, Raissta?
— O quê? O quê?
Raissta olhou para ele, espantada.
— Entende agora qual é o problema? — perguntou Beenay. — Entende por que estou ansioso para saber qual foi a conclusão de Yimot e Faro?
— Não. Não, não estou entendendo.
— Depois a gente continua a discutir o assunto. Prometo.
— Beenay… — fez Raissta, em tom aflito.
— Agora tenho que ir. Mas estarei de volta o mais cedo possível. Prometo!
Siferra não perdeu tempo. Pegou uma picareta e uma escova na tenda de equipamentos, que tinha sido entortada pela tempestade de areia, mas ainda estava quase intacta, e começou a escalar a colina de Thombo, seguida com esforço por Balik.
O jovem Eilis 18 saiu do abrigo e ficou olhando para cima, boquiaberto. Thuvvik e seus homens estavam um pouco mais distantes, observando a cena e coçando a cabeça, intrigados.
— Fique onde está! — gritou Siferra para Balik, quando chegou à fenda que a tempestade de areia tinha aberto na colina. — vou escavar um pouco para ver o que temos aqui
— Não devíamos fotografá-la primeiro e depois…
— Eu lhe disse para ficar onde está! — exclamou Siferra, de modo cortante, cravando a picareta na encosta, o que provocou uma pequena avalanche de terra que atingiu Balik na cabeça e nos ombros. Balik pulou para o lado, cuspindo terra.
— Desculpe — murmurou Siferra, sem olhar para baixo Ela golpeou a encosta uma segunda vez, alargando a fenda. Sabia muito bem que aquela não era a maneira certa de fazer as coisas. Seu antigo mestre, o grande SheIbik, provavelmente estava se contorcendo no túmulo. E o fundador da ciência, Galdo 221, na certa olhava para ela do seu lugar de honra no panteão dos arqueólogos e balançava com tristeza a cabeça.
Por outro lado, SheIbik e Galdo tinham tido a oportunidade de descobrir o que havia no interior da colina de Thombo e a tinham deixado passar. Se estava nervosa, se sua investigação estava sendo um pouco precipitada, eles simplesmente teriam que desculpá-la. Agora que a aparente tragédia da tempestade de areia se transformara em uma feliz casualidade, agora que o fim prematuro de sua carreira se transformara de forma inesperada em algo que poderia torná-la famosa, Siferra não podia esperar um minuto que fosse para descobrir o que estava enterrado ali. Simplesmente não podia.
— Olhe — comentou Siferra, removendo uma grande massa de entulho e começando a trabalhar com a escova. — Temos uma camada calcinada aqui, bem no nível das fundações da cidade ciclópica. O lugar deve ter sido destruído inteiramente por um incêndio. Mas se você olhar um pouco mais para baixo, verá que a cidade construída no estilo hachurado fica logo abaixo da linha do fogo. O povo ciclópico simplesmente construiu estas monumentais fundações por cima da cidade antiga…
— Siferra… — começou Balik, com timidez.
— Eu sei, eu sei. Mas deixe-me pelo menos ter uma ideia do que está enterrado aqui. Só mais algumas escavações e depois a gente pode voltar a fazer as coisas da maneira certa. Ela se sentia como se estivesse transpirando dos pés à cabeça. Estava olhando com tanta força para as ruínas que seus olhos começaram a doer. — Não entende? Estamos no alto da colina e já encontramos duas cidades. Meu palpite é que se escavarmos um pouco mais abaixo, perto das fundações da cidade hachurada, vamos… Lá está! Lá está! Pela Escuridão, veja, Balik! Veja!
Apontou triunfante com a ponta da picareta.
Havia outra linha enegrecida, perto das fundações da cidade construída no estilo hachurado. Como a cidade ciclópica, ela também tinha sido destruída pelo fogo. E havia indícios de que tinha sido construída sobre as ruínas de uma cidade ainda mais antiga.
Balik deixou-se contagiar pelo entusiasmo da arqueóloga. Os dois, juntos, começaram a escavar na encosta da colina, a meio caminho entre a base e o cume. Eilis gritou perguntando que diabo estavam fazendo, mas não obteve resposta. Trabalhando febrilmente, removeram a areia secular depositada pelo vento, descendo mais dez centímetros, vinte, trinta…
— Está vendo o que eu vejo? — perguntou Siferra, afinal.
— É outra cidade, sim. Mas que estilo de arquitetura é esse?
A arqueóloga deu de ombros.
— É totalmente novo para mim.
— Para mim também. Uma coisa é certa: é um estilo muito arcaico.
— Não há dúvida. Mas acho que vamos encontrar coisas ainda mais arcaicas aqui. — Siferra olhou na direção do distante sopé da colina. — Sabe o que eu acho, Balik? Acho que aqui existem cinco, seis, sete, talvez oito cidades, umas por cima das outras. Eu e você podemos passar o resto de nossas vidas cavando nesta colina!
Olharam um para o outro, impressionados com a extensão da descoberta..
— É melhor eu ir buscar uma câmera — observou Balik, afinal.
— Boa ideia.
De repente, Siferra se sentiu quase calma. Chega desta busca frenética, pensou. Estava na hora de voltar a ser uma profissional. Hora de investigar aquela colina como uma cientista e não como uma jornalista ou uma caçadora de tesouros.
Primeiro, deixar Balik tirar suas fotos, de todos os ângulos. Depois, colher amostras do solo no sopé da colina, colocar as primeiras estacas de balizamento e passar por todas as outras formalidades preliminares.
Em seguida, fazer uma escavação-piloto, um poço atravessando toda a colina, para termos uma ideia do que realmente existe debaixo de todo esse monturo. Depois, disse Siferra para si mesma, vamos descascar esta colina camada por camada. Vamos desmontá-la por inteiro, removendo cada estrato para ver o que existe por baixo, até chegarmos a solo virgem. Quando terminarmos esse trabalho, saberemos mais a respeito da pré-história de Kalgash do que todos os meus predecessores juntos conseguiram descobrir desde que os arqueólogos fizeram as primeiras escavações em Beklimot.
— Está tudo pronto para sua visita ao Túnel do Mistério, Dr. Sheerin — disse Kelaritan. — Por que não desce daqui a uma hora? vou mandar um carro buscá-lo no hotel.
— OK — disse Sheerin. — Até daqui a uma hora.
O psicólogo colocou o fone no gancho e se olhou solenemente no espelho do quarto. O rosto que olhou para ele de volta era o de um estranho. Parecia tão magro e abatido que se beliscou nas bochechas para ter certeza de que elas ainda estavam lá. Sim, ainda estavam lá, aquelas bochechas carnudas. Não perdera sequer um grama. A magreza estava toda em sua imaginação.
Sheerin dormira mal. Na verdade, tinha a impressão de haver passado a noite em claro. Na véspera, mal tocara na comida. Mesmo assim, não estava com fome. A ideia de descer para o café da manhã não o entusiasmava nem um pouco. Era uma sensação estranha para ele, a falta de apetite.
Estaria deprimido por causa das entrevistas da véspera com os pobres pacientes de Kelaritan? Ou simplesmente estava apavorado com a perspectiva de entrar no Túnel do Mistério?
Na realidade, a entrevista com os três pacientes não fora nada agradável. Fazia muito tempo que não clinicava, e o tempo que passara na Universidade de Saro evidentemente diminuíra o desprendimento profissional que permite que os praticantes da arte de curar lidem com os enfermos sem se deixarem abater pela dor e pela compaixão. Sheerin estava surpreso com a constatação de que se tornara uma pessoa muito mais sensível e vulnerável do que no passado.
O primeiro paciente, Harrim, o estivador… parecia tão forte! No entanto, quinze minutos de Escuridão durante a viagem pelo Túnel do Mistério tinham sido suficientes para reduzi-lo a um estado tal que a simples recordação do trauma o deixava histérico. Que tristeza!
Os outros dois pacientes, que visitara depois do almoço, estavam ainda em pior estado. Gistin 190, a professora, uma mulher frágil e bela, de olhos escuros, inteligentes, não parara de soluçar um só instante, e embora fosse capaz de se expressar com clareza e propriedade, pelo menos no começo, sua história -degenerara em meras lamúrias incoerentes depois de apenas algumas frases. E Chinimilit 97, o atleta adolescente, um espécime perfeito… Sheerin levaria muito tempo para esquecer a reação do rapaz quando o psicólogo abriu as cortinas do quarto. Onos estava a oeste no céu, com todo o seu brilho, e tudo que aquele jovem alto e musculoso conseguiu dizer foi: “A Escuridão… a Escuridão… antes de tentar se esconder debaixo da cama!
A Escuridão… a Escuridão…
E agora, pensou Sheerin, preocupado, chegou a minha vez de dar um passeio no Túnel do Mistério. Claro que podia simplesmente se recusar a entrar no Túnel. Não havia nada no contrato de consultoria que assinara com o município de Jonglor que o obrigasse a pôr em risco sua sanidade mental. Poderia preparar um relatório perfeitamente aceitável sem necessidade de arriscar o pescoço.
Algo, porém, dentro dele, se rebelava contra esta manifestação de prudência. O orgulho profissional, entre outras coisas, o empurrava na direção do Túnel. Estava ali para estudar o fenômeno de histeria coletiva e ajudar as autoridades a descobrirem formas não só de curar as vítimas, mas de evitar que a tragédia se repetisse.
Como podia pretender explicar o que acontecera com as vítimas do Túnel sem fazer um estudo acurado das causas de suas perturbações? Ele tinha que ir. Recuar agora seria uma negligência criminosa. Também não queria que ninguém, nem mesmo aqueles estranhos ali em Jonglor, tivesse razões para acusá-lo de covardia. Lembrou-se das palavras cruéis dos colegas de infância: “O Bola é covarde! O Bola é covarde!” Tudo porque se recusara a trepar em uma árvore que estava obviamente acima da capacidade do seu corpo pesado e sem nenhuma agilidade.
Entretanto, o Bola não era nada covarde. Sheerin tinha certeza disto. Estava satisfeito consigo mesmo. Era um homem sensato, equilibrado. Apenas não queria que outras pessoas tirassem conclusões errôneas a respeito dele simplesmente por causa de sua aparência pouco heroica.
Além do mais, menos de uma pessoa em cada dez das que haviam entrado no Túnel do Mistério sofrera qualquer tipo de perturbação emocional. As pessoas afetadas deviam ser vulneráveis de alguma forma. E já que era uma pessoa equilibrada, Sheerin disse para si mesmo, não tinha nada a temer. Nada…
A… Temer… Repetiu essas palavras até se sentir mais calmo.
Mesmo assim, Sheerin não estava exatamente exultante quando desceu para esperar o carro do hospital.
Kelaritan estava no carro, juntamente com Cubello e uma mulher muito atraente chamada Varitta 312, que lhe foi apresentada como uma das pessoas que haviam projetado o Túnel. Sheerin cumprimentou a todos com vigorosos apertos de mão e um largo sorriso que esperava parecer convincente.
— Lindo dia para um passeio ao parque de diversões — disse, procurando parecer jovial.
Kelaritan olhou para ele, desconfiado.
— Ainda bem que pensa assim. Dormiu bem, Dr. Sheerin?
— Muito bem, obrigado. Pelo menos, tão bem quanto seria de se esperar, depois de ver aqueles infelizes ontem.
— Então o senhor não está otimista quanto à recuperação deles? — quis saber Cubello.
— Gostaria de estar — disse Sheerin, enigmático.
O carro descia a rua em marcha regular.
— Vamos levar uns vinte minutos para chegar ao local da Exposição do Centenário — explicou Kelaritan. — A Exposição em si deve estar repleta, como acontece todo dia, mas mandamos isolar uma boa parte do parque de diversões para não sermos perturbados. Como sabe, o Túnel do Mistério foi fechado quando o problema se agravou.
— Quer dizer depois que ocorreram as mortes?
— É claro que depois disto não podíamos manter o brinquedo funcionando — disse Cubello. — Mesmo antes, porém, já estávamos pensando em fechá-lo. Acontece que ainda não sabíamos se as pessoas que pareciam ter sido afetadas pelo passeio no Túnel estavam de fato sofrendo algum tipo de dano ou eram simplesmente vítimas de sugestão.
— É claro — disse Sheerin, secamente. — O Conselho da Cidade não fecharia um brinquedo tão lucrativo a não ser por uma razão realmente muito forte, como o fato de estar matando as pessoas de medo.
De repente, a atmosfera no interior do carro ficou gelada. Depois de algum tempo, Kelaritan quebrou o silêncio:
— O Túnel não era apenas um brinquedo lucrativo, mas uma atração que nenhum dos frequentadores da Exposição queria perder, Dr. Sheerin. Nos primeiros dias, as filas eram quilométricas.
— Mesmo depois que se tomou público que algumas pessoas que passavam pelo Túnel, como Harrim e a família, saíam de lá com perturbações mentais?
— Especialmente depois, doutor — disse Cubello.
— O quê?
— Desculpe-me se parece que estou tentando lhe explicar uma coisa que e da sua especialidade — disse o advogado, em tom melífluo -, mas eu gostaria de lembrar ao senhor que as pessoas gostam de ser assustadas, quando sabem que é de brincadeira. Uma criança nasce com três medos instintivos: de ruídos súbitos, de cair e da ausência de luz. É por isso que é considerado engraçado pular em cima de alguém e gritar “Bu!” É por isso que é divertido andar de montanha-russa. E é por isso que o Túnel do Mistério foi um sucesso. As pessoas saíam da Escuridão de pernas bambas, ofegantes, meio mortas de medo, mas tinham vontade de repetir… O fato de que umas poucas pessoas saíam do brinquedo em estado de choque serviu apenas para torná-lo ainda mais popular.
— Porque a maioria das pessoas achava que elas seriam fortes o bastante para agüentar sem problemas o que havia causado mal àqueles pobres infelizes, não é isso?
— Exatamente, doutor.
— E quando as pessoas começaram a sair, não apenas perturbadas, mas literalmente mortas de susto? Mesmo que os administradores da Exposição hesitassem em fechar o brinquedo, seria natural que os fregueses em potencial começassem a escassear, uma vez que a notícia das mortes se espalhasse.
— Pelo contrário — declarou Cubello, com um sorriso triunfante. — O mesmo mecanismo psicológico continuou em ação, só que ainda mais forte. Afinal de contas, se as pessoas de coração fraco queriam andar no brinquedo, era por sua conta e risco. O Conselho da Cidade discutiu o assunto longamente e decidiu colocar um médico na entrada e submeter todos os frequentadores a um exame médico antes de entrarem no Túnel. Depois disso, as filas aumentaram mais ainda.
— Nesse caso, por que o Túnel não continua aberto até hoje? — perguntou Sheerin. — Pelo que me contou, era de se esperar que os negócios estivessem indo de vento em popa, com as filas se estendendo de Jonglor até Khunabar. Um fluxo constante de fregueses entrando por um lado e um fluxo constante de cadáveres sendo retirado do outro.
— Dr. Sheerin!
— Falando sério: por que o Túnel foi fechado, já que nem as mortes assustaram a população?
— Havia o problema das indenizações — explicou Cubello.
— Ah! É claro!
— Na verdade, as mortes não foram muitas: três, penso eu, ou talvez cinco. As famílias dos falecidos receberam uma certa quantia em dinheiro, e os casos foram encerrados. O que se tornou um problema para nós não foram as mortes, mas os casos de distúrbios traumáticos. Começou a ficar evidente que alguns teriam que ser hospitalizados por períodos prolongados, o que representaria uma despesa permanente para o município.
— Compreendo — concordou Sheerin, de cara feia. Se eles simplesmente caem duros, é uma despesa fixa. Basta comprar os parentes e está tudo resolvido. Mas se ficam penando anos e anos em um hospital ou manicômio públicos, o custo pode se tornar proibitivo.
— Eu não diria isso com estas palavras — afirmou Cubello -, mas o senhor tem razão. Foi esse tipo de cálculo que o Conselho da Cidade se viu forçado a fazer.
— O Dr. Sheerin parece um pouco amargo esta manhã — disse Kelaritan para o advogado. — Talvez esteja com medo de entrar no Túnel.
— Não estou, não! — protestou Sheerin.
— Na verdade, não precisa inspecionar pessoalmente…
— Preciso, sim — declarou Sheerin, com firmeza.
Todos ficaram em silêncio no interior do carro. Sheerin olhou para a paisagem que desfilava do lado de fora, para as árvores estranhas, de casca escamosa, para os arbustos com flores de cores vivas e metálicas, para as casas altas e estreitas, com telhados pontudos. Poucas vezes estivera tão ao norte do equador. Havia alguma coisa de muito desagradável naquela província… e também naquele grupo de pessoas cínicas e fingidas. Seria um alívio quando pudesse voltar para Saro. Antes, porém… o Túnel do Mistério…
A Exposição do Centenário de Jonglor ficava em um grande parque a leste da cidade. Era praticamente uma mini cidade e constituía um espetáculo e tanto, pensou Sheerin.
Ele viu fontes, galerias, torres reluzentes, rosa e turquesa, feitas de plástico iridescente e duro como pedra. Grandes pavilhões mostravam tesouros artísticos de todas as províncias de Kalgash, produtos industriais, as últimas maravilhas científicas. Em cada canto havia alguma coisa interessante e agradável à vista. Milhares de pessoas, talvez centenas de milhares, passeavam pelas largas avenidas.
Sheerin tinha ouvido dizer que a Exposição do Centenário de Jonglor era uma das maravilhas do mundo e agora podia constatar que não havia exagero na afirmação. Poder visitá-la constituía um raro privilégio. Ela só acontecia uma vez a cada cem anos, para comemorar o aniversário da fundação da cidade, e ficava aberta durante três anos. Diziam que aquela, a Exposição do Quinto Centenário de Jonglor, tinha sido a maior de todas. De repente, sentiu uma alegria infantil, que não experimentava há muitos anos, por estar ali. Gostaria de ter tempo, mais tarde, para visitar a Exposição.
Entretanto, seu humor mudou abruptamente quando o carro se desviou da Exposição e entrou em uma estrada lateral que levava ao parque de diversões. Ali, como Kelaritan dissera, havia uma área cercada por cordões de isolamento. Os visitantes olharam de cara feia quando Cubello, Kelaritan e Varitta 312 o conduziram na direção do Túnel do Mistério. Sheerin podia ouvi-los resmungar, zangados, um ruído surdo que o deixou nervoso e mesmo um pouco assustado.
Percebeu que o advogado dissera a verdade: aquelas pessoas estavam aborrecidas porque o Túnel tinha sido fechado. Estão com inveja, pensou Sheerin admirado. Sabem que estamos indo para o Túnel e gostariam de poder ir também. Apesar de tudo que aconteceu.
— Vamos por aqui — disse Varitta.
A entrada do Túnel era uma gigantesca estrutura em forma de pirâmide, afunilada dos lados, em uma perspectiva estranha, estonteante. No centro havia um grande portão sextavado, dramaticamente revestido de vermelho e dourado. Estava fechado. Varitta tirou uma chave do bolso e abriu uma pequena porta lateral. Entraram.
Do lado de dentro, as coisas pareciam muito mais prosaicas. Sheerin viu uma série de cercas de metal, destinadas sem dúvida a orientar a fila dos que esperavam para andar no brinquedo. Mais além, havia uma plataforma parecida com a de uma estação de estrada de ferro, com um comboio de pequenos vagões abertos. E mais além… Escuridão.
— Quer assinar aqui, doutor? — pediu Cubello. Sheerin olhou para o papel que o advogado lhe entregara. Estava cheio de palavras impressas com letra miúda.
— Que é isso?
— Uma declaração isentando-nos de responsabilidade. É o formulário padrão.
— Ah, sim. — Sheerin rabiscou o seu nome, sem nem tentar ler o que estava escrito. Você não está com medo, disse para si mesmo. Não há nada a temer.
Varitta 312 colocou um pequeno aparelho em sua mão.
— É um controle remoto — explicou. — O passeio inteiro leva quinze minutos, mas se o senhor se der por satisfeito com o que já viu ou começar a passar mal, basta apertar este botão verde aqui que as luzes se acenderão na mesma hora. O seu carro irá rapidamente para o final do Túnel, fará meia-volta e retornará à estação.
— Obrigado — disse Sheerin -, mas acho que não vou precisar.
— Leve-o, mesmo assim. Não custa nada.
— Pretendo aproveitar ao máximo o passeio — declarou o psicólogo, divertindo-se com a própria bravata. Mas também não preciso ser imprudente, disse para si mesmo. Não pretendia usar o controle remoto, mas seria tolice recusar-se a levá-lo. Não custava nada.
Entrou na plataforma. Kelaritan e Cubello estavam olhando para ele de forma muito expressiva. Podia praticamente ouvir o que estavam pensando: O gordo idiota vai virar geleia lá dentro. Pois que pensassem o que bem entendessem.
Varitta havia desaparecido. Na certa tinha ido ligar o mecanismo do Túnel. Isto mesmo. Lá estava ela, em uma cabine de controle, à direita da plataforma, fazendo sinal de que estava tudo bem.
— Já pode entrar no carro, doutor — disse Kelaritan.
— Está bem. Está bem.
Menos de um em cada dez foi afetado. Provavelmente, essas pessoas eram mais sensíveis à Escuridão do que a maioria. Eu não sou. Sou um indivíduo muito estável.
Entrou no vagão. Havia um cinto de segurança. Afivelou-o, depois de ajustá-lo à cintura com alguma dificuldade. O vagão começou a andar lentamente, muito lentamente.
A escuridão estava à sua espera.
Menos de um em dez. Menos de um em dez. Compreendia o que era a síndrome da Escuridão. Isto, decerto, o protegeria. Embora toda a humanidade temesse instintivamente a ausência de luz, isso não queria dizer que a ausência de luz fosse necessariamente perigosa.
O perigo, Sheerin sabia muito bem, estava na reação das pessoas à ausência de luz. Era preciso manter-se calmo. A escuridão não era mais do que a ausência de luz, uma mudança nas condições externas. Estamos condicionados a temê-la porque vivemos em um mundo em que a escuridão não é natural, em que sempre existe luz, a luz de muitos sóis. Em certos dias, pode haver até quatro sóis no céu ao mesmo tempo; em geral, eles são três; nunca são menos de dois, e a luz de um só deles é suficiente para afastar a Escuridão.
A Escuridão… A Escuridão… A Escuridão!
Sheerin já havia entrado no Túnel. Atrás dele, o último vestígio de luz desaparecera. Viu-se perscrutando o vazio. Não havia nada à sua frente: nada. Um buraco. Um abismo. Uma zona de total ausência de luz. E estava mergulhando de cabeça nesse vácuo.
Ficou instantaneamente coberto de suor. Os joelhos começaram a tremer. A testa latejava. Colocou a mão diante do rosto, mas não conseguiu vê-la. Desista desista desista desista
Não. Não!
Sentou-se com o corpo ereto, os músculos tensos, os olhos bem abertos fitando teimosamente o mar de escuridão no qual mergulhava cada vez mais fundo. Medos primitivos chiavam e borbulhavam nas profundezas da sua alma, mas ele resistiu. Os sóis ainda estão brilhando fora do Túnel, disse para si próprio. Isto é apenas temporário. Daqui a quatorze minutos e trinta segundos, estarei do lado de fora.
Quatorze minutos e vinte segundos. Quatorze minutos e dez segundos. Quatorze minutos…
Mas será que o vagão estava mesmo se movendo? Era difícil dizer. Talvez tivesse parado. O mecanismo que o movimentava era silencioso; não havia pontos de referência.
E se estiver preso? Sentado aqui, no escuro, sem maneira de saber onde estou, o que está acontecendo, quanto tempo está passando? Quinze minutos, vinte, meia hora?
Até o limite de minha sanidade mental ser ultrapassado, e então…
Ainda bem que eu trouxe o controle remoto.
E se ele não funcionar? E se eu apertar o botão verde e as luzes não se acenderem?
É melhor testá-lo. Só para ter certeza…
O Bola é covarde! O Bola é covarde!
Não. Não. Não toque nisto. Uma vez que você acenda as luzes, não poderá apagá-las de novo. Você não deve usar o controle remoto, ou eles saberão… eles saberão…
O Bola é covarde! O Bola é covarde!
De repente, para sua própria surpresa, arremessou o controle remoto na escuridão. Houve um leve ruído quando ele caiu… em algum lugar. Depois, o silêncio voltou.
Sentiu as mãos terrivelmente vazias.
A Escuridão… A Escuridão…
A Escuridão parecia não ter fim. Estava mergulhando em um abismo infinito. Caindo, caindo, caindo na noite, na noite sem fim, no negro que tudo devora…
Respire fundo. Procure se controlar.
E se os danos mentais forem permanentes?
Procure se controlar, repetiu para si mesmo. Nada vai acontecer. Você tem que agüentar apenas mais onze minutos, na pior das hipóteses. Talvez sejam apenas seis ou sete. Os sóis estão brilhando lá fora. Seis ou sete minutos e nunca mais você terá que suportar a Escuridão, mesmo que viva mil anos.
A Escuridão…
Oh, meu Deus, a Escuridão…
Calma. Calma. Você é um homem muito estável, Sheerin. Tem uma mente excepcionalmente equilibrada. Estava no seu juízo perfeito quando entrou nesta coisa e vai estar no seu juízo perfeito quando sair.
Tic. Tic. Tic. A cada segundo, você está mais próximo da saída. Está mesmo? Pode ser que este passeio jamais termine. Eu poderia ficar aqui para sempre. Tic. Tic. Tic. Estou andando? Quanto tempo me resta? Cinco minutos? Cinco segundos? Ou ainda estou no primeiro minuto? Tic. Tic.
Por que eles não me deixam sair? Não veem que estou sofrendo? Eles não querem deixar você sair. Nunca mais vão deixar você sair. Eles vão…
De repente, uma dor lancinante entre os olhos. Uma explosão de agonia dentro da cabeça.
Que foi isso? Luz!
Será possível? Sim. Sim.
Graças a Deus. É luz, sim! Graças a Deus!
Tinha chegado ao final do Túnel! Estava voltando à estação! Só podia ser isto. Sim. Sim. O coração, que havia disparado, começava a voltar ao normal. Os olhos, agora adaptados à volta das condições normais, se focalizaram em coisas familiares, em coisas abençoadas, nas pilastras, na plataforma, na pequena janela da cabine de controle…
Cubello e Kelaritan estavam olhando para ele.
Agora, sentia vergonha da própria covardia. Aja normalmente, Sheerin. Afinal, não foi tão mau assim. Você está bem. Não está deitado no fundo do vagão, chorando e chupando o dedo. Foi duro, foi aterrorizante, mas não afetou você… não foi nada que você não pudesse agüentar…
— Tudo bem. Estenda sua mão, doutor. Assim… assim… Puseram-no de pé e puxaram-no para fora do carro. Sheerin respirou fundo. Passou a mão na testa, para tirar o suor.
— Acho que perdi o controle remoto — murmurou.
— Como está se sentindo? — perguntou Kelaritan. Como foi?
Sheerin cambaleou. O diretor do hospital segurou-o pelo braço, tentando ampará-lo, mas Sheerin o empurrou, indignado. Não ia deixar que pensassem que uns poucos minutos dentro do Túnel o haviam feito perder a compostura.
Entretanto, não podia negar que tinha sido afetado. Por mais que se esforçasse, era impossível esconder o fato. Nem mesmo de si próprio. De repente, deu-se conta de que nenhuma força do mundo o faria entrar de novo naquele Túnel.
— Doutor? Doutor?
— Está… tudo… bem — murmurou, com voz pastosa.
— Ele disse que está tudo bem — falou o advogado. Recuem. Deixem-no respirar.
— As pernas dele estão tremendo — protestou Kelaritan. — Ele pode cair.
— Não! — exclamou Sheerin. — Não se preocupe! Está tudo bem!
Cambaleou, recuperou o equilíbrio, cambaleou de novo. Estava banhado de suor. Olhando por cima do ombro, viu a boca do Túnel e estremeceu. Dando as costas para aquela caverna negra, levantou os ombros, como se quisesse esconder o rosto entre eles.
— Doutor? — disse Kelaritan, indeciso.
Não adiantava fingir. Era tolice, aquela tentativa inútil e teimosa de bancar o herói. Que pensassem que era um covarde. Que pensassem o que quisessem. Aqueles quinze minutos tinham sido o pior pesadelo de sua vida. O impacto ainda estava penetrando, penetrando, penetrando.
— Foi uma experiência… perturbadora — declarou. — Muito desagradável.
— Mas o senhor se saiu muito bem, não é verdade? — disse o advogado, em tom ansioso. — Ficou um pouco abalado, é claro. Quem não ficaria, depois de passar quinze minutos na Escuridão? Mas não aconteceu nada demais. Como sabíamos que não iria acontecer. São poucas, muito poucas as pessoas que sofrem qualquer tipo de…
— Não é verdade — interrompeu Sheerin. O rosto do advogado era como uma górgona sorridente. Como o rosto de um demônio. Não agüentava olhar para ele. Mas uma boa dose de verdade seria suficiente para exorcizar o demônio. Não havia a menor necessidade de ser diplomático, pensou Sheerin. Não quando estava conversando com demônios.
— É impossível alguém andar naquela coisa sem correr um sério perigo. Agora tenho certeza disto. Mesmo as pessoas mais equilibradas são submetidas a uma tensão terrível, e as mais fracas simplesmente desmoronam. Se abrirem de novo aquele brinquedo, todos os hospícios das quatro províncias estarão lotados em menos de seis meses.
— Pelo contrário, doutor…
— Não me venha com “pelo contrário”! Já entrou no Túnel, Cubello? Não, acho que não. Pois eu entrei. Vocês estão pagando por minha opinião profissional. Pois vão tê-la agora mesmo. O Túnel é extremamente perigoso. É uma simples questão de natureza humana. A Escuridão é mais do que qualquer um de nós consegue suportar, e isto não vai mudar nunca, pelo menos enquanto tivermos um sol brilhando no céu. Fechem de uma vez por todas o Túnel, Cubello! Em nome do bom senso, homem, fechem o Túnel! Acabem com ele!
Depois de estacionar a motoneta no terreno da faculdade, bem sob a cúpula do Observatório, Beenay, a passos largos, tomou o caminho que levava à entrada principal do edifício. Quando começou a subir os amplos degraus de pedra que conduziam ao saguão, teve um sobressalto ao ouvir alguém chamá-lo pelo nome.
— Beenay! Que bom que você apareceu!
O astrônomo levantou os olhos. A silhueta alta, maciça, de seu amigo Theremon 762, do jornal Crônica, se recortava contra a grande porta do Observatório.
— Theremon? Estava à minha procura?
— Estava. Mas disseram-me que você só iria chegar daqui a algumas horas. No momento em que eu estava indo embora, encontro você. Que sorte!
Beenay galgou os últimos degraus, e os dois trocaram um rápido abraço. Ele conhecia o jornalista há três ou quatro anos, desde que Theremon estivera no Observatório para entrevistar algum cientista, qualquer cientista, a respeito do último manifesto dos Apóstolos do Fogo. Aos poucos, ele e Theremon haviam se tornado amigos íntimos, embora Theremon fosse cinco anos mais velho e viesse de um meio mais livre, mais eclético. Beenay gostava da ideia de ter um amigo que não estivesse envolvido na política universitária, e Theremon estava radiante por conhecer alguém que não estava absolutamente interessado em usar de sua influência considerável nos meios jornalísticos.
— Algum problema? — perguntou Beenay.
— Nenhum. Eu apenas gostaria que você representasse de novo o papel de Voz da Ciência. Mondior fez outro de seus famosos discursos na linha de “Arrependam-se, o fim do mundo está próximo!” Agora ele diz que está pronto para revelar a hora exata em que o mundo será destruído. Caso você esteja interessado, isso vai acontecer no ano que vem, no dia 19 de Theptar.
— Que maluco! E perda de tempo publicar as coisas que ele diz. Por que será que as pessoas levam os Apóstolos tão a sério?
Theremon deu de ombros.
— A verdade é que as pessoas acreditam nos Apóstolos. Muita gente, Beenay. E se Mondior diz que o fim está próximo, preciso de alguém que se levante e diga: “Não é verdade, irmãos e irmãs! Não temam! Está tudo bem!” Ou coisas parecidas. Posso contar com você, não posso, Beenay?
— Sabe que pode.
— Esta noite?
— Esta noite? Puxa, Theremon, acho que esta noite não vai dar. De quanto tempo você precisa?
— Meia hora? Quarenta e cinco minutos?
— Escute, tenho um encontro importante daqui a alguns momentos. Foi por isso que vim para cá mais cedo. Depois, jurei a Raissta que vou para casa passar uma hora ou duas com ela. Nos últimos tempos, mal conseguimos nos ver. Mais tarde, vou voltar ao Observatório para supervisionar uma sessão de fotografias e…
— Está bem. Já percebi que escolhi a hora errada. Não há problema, Beenay. Só vou entregar a reportagem amanhã à tarde. Que tal conversarmos de manhã?
— De manhã? — repetiu Beenay, em tom indignado.
— Sei que parece absurdo, mas o que tenho em mente é o seguinte: posso chegar aqui quando Onos estiver nascendo, assim que você estiver terminando seu trabalho noturno. Antes de ir para casa dormir, você me concede uma pequena entrevista. Que tal?
— Bem…
— É para um amigo, Beenay.
Beenay dirigiu ao amigo um olhar impaciente.
— Claro que não vou me negar a lhe dar uma entrevista. Não é esta a questão. O que estou pensando é que vou estar com tanto sono, depois de passar a noite trabalhando, que a entrevista vai ficar uma droga.
Theremon sorriu.
— Isso não me preocupa nem um pouco. Sei muito bem que quando você começa a falar de ciência, seu sono desaparece como que por encanto. Amanhã de manhã, ao nascer de Onos, então? No seu escritório?
— Certo.
— Obrigado, amigo. Fico lhe devendo essa.
— Que é isso!
Theremon cumprimentou o amigo e começou a descer a escadaria.
— Dê lembranças à bela Raissta — disse. — Vejo você amanhã de manhã.
— Amanhã de manhã — repetiu Beenay.
Como aquilo soava estranho! Nunca via ninguém de manhã. Mas faria uma exceção no caso de Theremon. Afinal, era para isso que serviam as amizades, não era?
Beenay voltou-se e entrou no Observatório. Lá dentro, as luzes eram suaves e estava tudo calmo no silêncio familiar do grande palácio da ciência em que passara a maior parte do tempo desde que entrara para a universidade. Mas aquela calma, como bem sabia, era ilusória. Aquele prédio imponente, como os lugares mais mundanos do planeta, era palco de conflitos de todos os tipos, desde as discussões filosóficas mais elevadas até os ciúmes, invejas e intrigas mais triviais. Os astrônomos, como uma classe, não eram mais virtuosos do que os membros de outras profissões.
Mesmo assim, o Observatório era um santuário para Beenay e para a maior parte das pessoas que trabalhavam lá. Era um lugar onde podiam esquecer os problemas do dia a dia e se dedicar à luta sem fim para decifrar os enigmas do universo.
Atravessou com rapidez o saguão principal, tentando, sem sucesso como sempre, disfarçar o ruído das botas no piso de mármore.
Como sempre fazia, olhou para os mostruários nas paredes da direita e da esquerda, onde alguns dos artefatos sagrados da história da astronomia se encontravam em exibição permanente. Ali estavam os telescópios primitivos, quase cômicos, que eram usados por pioneiros como Chekktor e Stanta há quatrocentos ou quinhentos anos. Ali estavam os restos calcinados de meteoritos que haviam caído do céu, testemunhas enigmáticas de mistérios que se escondiam atrás das nuvens. Ali estavam as primeiras edições dos grandes livros de astronomia e mapas celestes, e os originais amarelecidos pelo tempo de alguns dos trabalhos teóricos dos grandes pensadores.
Beenay parou por um momento diante do último desses originais, que, ao contrário dos outros, parecia quase novo. O que era natural, pois tinha apenas uma geração de existência. Era o tratado de Athor 77 a respeito da Teoria da Gravitação Universal, publicado pouco antes de Beenay nascer. Embora não fosse um homem religioso, Beenay olhou para a fina brochura com um sentimento que se aproximava da reverência, e o que pensou poderia ser confundido com uma oração.
Para ele, a Teoria da Gravitação Universal era um dos pilares básicos do cosmo. Talvez o mais importante. Não podia imaginar o que faria se aquele pilar fosse removido. E, no momento, tinha a impressão de que isso estava para acontecer. Na extremidade do saguão, atrás de uma imponente porta de bronze, ficava o escritório do Dr. Athor.
Beenay deu uma olhada rápida para a porta e começou a subir a escada.
O venerável diretor do Observatório, ainda em atividade, era a última pessoa do mundo que Beenay queria ver naquele momento. Faro e Yimot estavam à sua espera no segundo andar, na Sala de Mapas, onde tinham combinado de se encontrar.
— Desculpem o atraso — disse Beenay. — Tive uma tarde muito complicada.
Eles lhe responderam com um sorriso nervoso. Que dupla estranha, pensou, pela milésima vez. Ambos tinham nascido em uma província do interior. Sithin, talvez, ou Gatamber.
Faro 24 era baixinho e gorducho e seus movimentos eram lânguidos, quase indolentes. Tinha um estilo casual e bonachão. O amigo Yimot 7O era incrivelmente alto e magro. Parecia mais uma escada dotada de braços, pernas e uma cabeça que ficava tão longe dos mortais comuns, perdida na estratosfera, que era quase preciso um telescópio para vê-la. Yimot era tão tenso e inquieto quanto o amigo era tranquilo. Mesmo assim, eram inseparáveis, sempre haviam sido. De todos os jovens alunos de pós-graduação, um degrau abaixo de Beenay na hierarquia do Observatório, eram sem dúvida os mais inteligentes.
— Faz pouco tempo que chegamos — disse Yimot.
— Um minuto ou dois, Dr. Beenay — acrescentou Faro.
— Não me chame de “doutor” — protestou Beenay. — Ainda falta defender minha tese. Como foram os cálculos?
— Isso tem a ver com a gravitação, não é? — perguntou Yimot, balançando as pernas impossivelmente longas.
Faro cutucou-o com tanta força com o cotovelo nas costelas que Beenay julgou ouvir o barulho de ossos quebrando.
— Acertou na mosca, Yimot — disse Beenay, com um sorriso amarelo. — Queria que isso fosse para vocês um exercício matemático puramente abstrato. Entretanto, não me surpreende que vocês tenham adivinhado de que se trata. Mas só descobriram a verdade depois de terminarem os cálculos, não é verdade?
— Sim, senhor — concordaram Yimot e Faro em uníssono.
— Fizemos as contas primeiro — começou Faro.
— Depois, na hora de rever os cálculos, a ideia nos ocorreu — concluiu Yimot.
— Ah. Entendo — disse Beenay. — Aqueles rapazes, às vezes, o deixavam assustado. Eram tão jovens! Na verdade, tinham apenas seis ou sete anos a menos que ele, mas ele era professor-assistente, e eles eram estudantes, o que causava uma grande barreira. Jovens como eram, porém, tinham uma compreensão tão profunda das coisas!
Não estava exatamente satisfeito por haverem adivinhado o propósito daqueles cálculos. Para dizer a verdade, não estava nada satisfeito. Em poucos anos, seriam professores como ele, talvez competindo pela mesma cátedra que esperava um dia conquistar, e isso não seria nada agradável. Mas era melhor não pensar nisso.
Estendeu a mão para a listagem de computador.
— Posso ver?
Yimot passou-lhe o papel com mãos trêmulas. Beenay correu os olhos pelos números, calmamente a princípio, depois com agitação crescente.
Durante o ano inteiro estivera pensando em certas implicações da Teoria da Gravitação Universal, que seu mestre Athor ajudara a elevar a tal pináculo de perfeição. O grande triunfo de Athor, o coroamento de sua brilhante carreira, havia sido o cálculo dos movimentos orbitais de Kalgash e de todos os seus seis sóis de acordo com os princípios racionais das forças atrativas.
Beenay usara computadores de última geração para calcular a órbita de Kalgash em torno de Onos, o sol principal, e constatara, horrorizado, que os resultados não estavam de acordo com a Teoria da Gravitação Universal. De acordo com a teoria, no início daquele ano, Kalgash devia estar aqui em relação a Onos, quando, na verdade, os dados experimentais mostravam, sem sombra de dúvida, que o planeta estava ali.
A diferença era pequena (umas poucas casas decimais), mas não podia ser ignorada. A Teoria da Gravitação Universal: era tão precisa, que a maioria das pessoas preferia chamá-la de Lei da Gravitação Universal. Suas bases matemáticas eram consideradas impecáveis. Entretanto, uma teoria que se propõe a explicar os movimentos dos astros no espaço não tem lugar para discrepâncias. Ou é completa ou não é completa; não existe meio-termo. Além disso, Beenay sabia muito bem que uma diferença de algumas casas decimais em um cálculo limitado se transformaria em um erro gigantesco se tentassem fazer cálculos mais ambiciosos. De que serviria toda a Teoria da Gravitação Universal se a posição prevista para Kalgash dali a cem anos divergisse em meia órbita da posição real?
Beenay refizera os seus cálculos até a exaustão. Os resultados eram sempre os mesmos.
Em quem deveria acreditar?
Em si mesmo ou no esquema dominante do mestre Athor? Nos seus modestos conhecimentos de astronomia ou na vasta experiência de Athor, o homem que decifrara a estrutura fundamental do universo?
Imaginava-se de pé na cúpula do Observatório, gritando: “Escutem-me, todos! A teoria de Athor está errada! Posso provar isso!” Certamente, ririam dele às gargalhadas.
Quem era Beenay para desafiar um dos maiores cérebros de Kalgash? Como um reles professor assistente se atrevia a refutar a Lei da Gravitação Universal?
E no entanto… no entanto. .
Continuou a examinar as listagens que Yimot e Faro haviam preparado. Os cálculos nas duas primeiras páginas eram novos para ele. Ao apresentar os dados aos estudantes, tomara cuidado para que as relações a partir das quais os números tinham sido obtidos não ficassem óbvias. Os dois haviam abordado o problema de uma forma que qualquer astrônomo empenhado em calcular a órbita de Kalgash consideraria muito pouco ortodoxa. Mas esta era exatamente sua intenção. A abordagem ortodoxa o levara apenas a conclusões catastróficas. Entretanto, conhecendo o que conhecia, era impossível evitar a abordagem ortodoxa. Faro e Yimot, por outro lado, tinham tido mais liberdade para analisar o problema.
Enquanto tentava reconstituir a linha de raciocínio que os dois estudantes haviam seguido, Beenay pôde perceber que os cálculos se aproximavam gradualmente dos seus.
Ao chegar à terceira página, estava de volta aos seus próprios resultados, que àquela altura conhecia praticamente de cor.
Dali em diante, tudo se seguia de forma impecável, passo a passo, até a mesma conclusão espantosa, estarrecedora, inconcebível.
Beenay olhou, preocupado, para os dois estudantes.
— Será que vocês não cometeram algum erro? Esta série de integrações, por exemplo… parece bem complicada…
— Professor! — exclamou Yimot, com indignação. Seu rosto estava afogueado e os braços se agitavam com se estivessem se movendo por conta própria.
— Acho que a possibilidade de erro é mínima, professor. Conferimos as contas várias vezes — declarou Faro, em tom bem mais tranquilo.
— É. Acho que estão certos — concordou Beenay, muito sério. Não queria revelar a emoção que estava sentindo, mas as mãos tremiam tanto que as folhas de computador começaram a farfalhar. Tentou colocá-las sobre a mesa, mas o pulso fez um movimento incontrolável, parecido com os de Yimot, e elas escaparam por completo de sua mão, espalhando-se no piso.
Faro ajoelhou-se para apanhá-las. Olhou, preocupado, para Beenay.
— Professor, se está aborrecido conosco por alguma razão…
— Não. Não, nada disso. Não dormi bem antes de vir para cá, este é o problema. Vocês fizeram um bom trabalho sem dúvida, excelente. Estou orgulhoso. Pegar um problema como este, que não tem nenhuma relação com a realidade, que na verdade está em total contradição com a verdade científica, e segui-lo metodicamente até a sua conclusão lógica, sem se deixar intimidar pelo fato de que a premissa inicial é de um absurdo patente… Sim, é um trabalho esplêndido, uma demonstração admirável dos poderes da lógica, uma experiência imaginária de primeira ordem…
Observou que os dois se entreolharam. Será que estava conseguindo enganá-los?
— Agora — prosseguiu -, vão ter que me desculpar, porque tenho outro compromisso…
Enrolando em um cilindro apertado as malditas listagens, Beenay colocou-as debaixo do braço, deu meia-volta e saiu da sala. Atravessou o corredor quase correndo, rumando para a segurança e a privacidade de seu pequeno escritório.
Meu Deus, pensou. Meu Deus, meu Deus, meu Deus, que foi que eu fiz? Que vou fazer agora?
Enterrou a cabeça entre as mãos e esperou que ela parasse de latejar. Só que ela se recusou a parar. Depois de alguns momentos, endireitou o corpo e apertou o botão do comunicador.
— Ligue-me com a Crônica — disse para a máquina. Quero falar com Theremon 762.
O comunicador deixou escapar uma longa sequência de estalidos e assovios. De repente, ouviu a voz grave do amigo:
— Mesa de notícias. Theremon 762 falando.
— Aqui é Beenay.
— Quem? Pode falar mais alto?
Beenay percebeu que sua voz estava reduzida a um fiapo.
— Aqui é Beenay! Eu… eu queria mudar a hora da nossa entrevista.
— Rapaz, sei como se sente de manhã,
— Mudar? Escute…
— Mas preciso falar com você antes do meio-dia, senão adeus reportagem .
— Não está entendendo. Quero antecipar a entrevista, Theremon.
— O quê?
— Para esta noite. Às nove e meia, digamos. Ou as dez, se você não puder antes.
— Pensei que você tivesse que tirar fotografias no Observatório.
— Para o inferno com as fotografias! Preciso falar com você.
— Precisa? Beenay, o que houve? Foi alguma coisa com Raissta?
— Raissta não tem nada a ver com isto. Às nove e meia? No Seis Sóis?
— No Seis Sóis, às nove e meia. Combinado — disse Theremon.
Beenay desligou e ficou olhando para o cilindro de papel à sua frente, balançando a cabeça com um ar sombrio. Sentia-se um pouco mais calmo agora, apenas um pouco mais. Seria mais fácil carregar aquele fardo depois que compartilhasse o segredo com Theremon. Confiava cegamente no amigo. Os repórteres não eram famosos pela sua discrição, mas Theremon era em primeiro lugar um amigo, e só depois um jornalista, Jamais traíra a confiança de Beenay.
Mesmo assim, Beenay não tinha a menor ideia do que iria fazer em seguida. Talvez Theremon pensasse em alguma coisa. Talvez.
Deixou o Observatório pela saída dos fundos, esgueirando-se como se fosse um ladrão. Não queria se arriscar a um encontro com Athor. Detestaria ter que encará-lo de frente, agora que sabia o que sabia.
A viagem de volta para casa foi uma verdadeira tortura. Tinha a impressão de que a qualquer momento as leis da gravidade perderiam a validade e sua motoneta se projetaria para fora da estrada. Afinal, chegou ao pequeno apartamento que dividia com Raissta 717.
Ela teve um sobressalto quando o viu.
— Beenay! Você está pálido como um…
— Como um fantasma — completou o astrônomo, tomando-a nos braços. — Abrace-me — disse. — Abrace-me.
— Que foi? Que aconteceu?
— Depois eu explico. Agora, estou precisando mesmo é de um abraço.
Theremon chegou ao Clube dos Seis Sóis pouco depois das nove. Resolveu pedir um drinque antes da chegada do amigo, para lubrificar o cérebro. O astrônomo havia soado horrível ao comunicador, como se estivesse à beira da histeria. Theremon não conseguia imaginar que coisa assustadora poderia ter acontecido com ele, na paz e solidão do Observatório, para transformá-lo em um farrapo humano em tão pouco tempo. O que sabia era que Beenay estava passando por maus pedaços e iria precisar de toda a ajuda que Theremon pudesse de lhe oferecer.
— Traga-me um Tano Especial — disse Theremon para o garçom. — Não, espere… é melhor trazer um duplo. Um Tano Sitha, OK?
— Um Tano Especial duplo — repetiu o garçom. — É para já.
A noite estava muito agradável. Theremon, que era conhecido no lugar e recebia tratamento especial, ocupava uma das mesas do terraço, com vista para a cidade. As luzes do centro brilhavam alegremente. Onos tinha se posto fazia apenas uma hora, e somente Trey e Patru estavam no céu, a leste, projetando uma dupla sombra, enquanto se deslocavam em direção ao horizonte.
Olhando para eles, Theremon imaginou quantos sóis estariam no céu no dia seguinte. Era sempre diferente, um espetáculo brilhante e mutável. Onos certamente… Onos estava sempre visível, pelo menos durante parte do dia, todos os dias do ano. Até ele sabia disso. E depois? Dovim, Tano e Sitha, para tornar o dia seguinte um dia de quatro sóis? Não sabia ao certo. Talvez fossem apenas Tano e Sitha, com Onos visível apenas por algumas horas, por volta do meio-dia. Nesse caso, seria um dia triste. Pensando melhor, não era época para Onos nascer tarde. Era mais provável que fosse um dia de três sóis, a menos que apenas Onos e Dovim estivessem visíveis. Era tão difícil guardar a conta…
Bem, se realmente se importasse, bastaria consultar uma folhinha. A verdade, porém, era que não se importava. Algumas pessoas sempre sabiam quais os sóis que estariam visíveis no dia seguinte (Beenay, com certeza, era uma delas), mas a atitude de Theremon era mais displicente. O que importava era que houvesse pelo menos um sol, fosse qual fosse, para iluminar o planeta no dia seguinte. E sempre havia. Pelo menos um. Às vezes, dois, três ou mesmo quatro. Cinco, em raras ocasiões.
O drinque chegou. Bebeu um gole e estalou a língua, satisfeito. Que coisa maravilhosa era um Tano Especial! O rum aromático das Ilhas VeIkareen, misturado com uma dose da bebida ainda mais forte que era destilada na costa de Bagilar, e apenas uma colherzinha de suco de sgarrino, para quebrar o amargo… ah, perfeito! Theremon não bebia muito, pelo menos não à altura da fama dos repórteres, mas raro era o dia em que não arranjava tempo para um ou dois Tanos Especiais nas horas tranquilas depois que Onos se punha.
— Isso aí parece gostoso, Theremon — disse uma voz familiar atrás dele.
— Beenay! Você está adiantado!
— Cheguei dez minutos mais cedo. Que é que você esta bebendo?
— O de sempre. Um Tano Especial.
— Ótimo. Acho que vou tomar um também.
— Você?
Theremon olhou para o amigo, surpreso. Nunca o vira beber algo mais forte do que suco de frutas. Beenay parecia estranho àquela noite: nervoso, cansado, aflito. Seus olhos tinham um brilho quase febril.
— Garçom! — chamou Theremon.
Ficou assustado ao ver a forma como Beenay bebeu. Ele engasgou depois do primeiro gole, como se o impacto fosse mais forte do que esperava, mas logo partiu para o segundo e o terceiro.
— Calma — advertiu Theremon. — Desse jeito, vai ficar tonto.
— Já estou.
— Andou bebendo antes de vir para cá?
— Não foi bebida. Foi um choque. Uma surpresa. — Pousou o copo e olhou, pensativo, para as luzes da cidade. Depois, pegou o copo de novo, quase distraído, e bebeu o que restava de um gole só. — É melhor eu esperar um pouco antes de pedir outro, não acha, Theremon?
— Concordo plenamente. — Theremon inclinou o corpo para frente e pousou a mão de leve no pulso do amigo.
— Que é que está acontecendo com você, rapaz?
— É… difícil explicar.
Ora, vamos! Como sabe, em minha profissão eu já ouvi de tudo. Você e Raissta…
— Não! Já disse que isso não tem nada a ver com ela. Nada.
— Está bem. Eu acredito.
— Estou com vontade de tomar outro drinque — disse Beenay.
— Daqui a pouco. Vamos, Beenay. O que foi?
O astrônomo suspirou.
— Sabe o que é a Teoria da Gravitação Universal, não sabe, Theremon?
— Claro que sei. Quero dizer, não conheço a teoria. Só existem doze pessoas em Kalgash que conseguem compreendê-la perfeitamente, não é mesmo? Mas acho que posso lhe dizer o que representa para a ciência.
— Então você também acredita nessa balela? — observou Beenay, com um riso irônico. — Pensa que a Teoria da Gravitação é tão complicada que apenas doze pessoas conseguem entendê-la?
— É o que dizem por aí.
— O que dizem por aí é um monte de bobagens. Posso resumir toda a matemática que realmente importa em uma única frase e tenho certeza de que você vai compreender.
— Pode? Vou?
— Tenho certeza. Preste atenção, Theremon: a Lei da Gravitação Universal ou, por outra, a Teoria da Gravitação Universal, afirma que existe uma força de atração entre todos os corpos do universo, tal que a força entre dois corpos quaisquer é proporcional ao produto das massas desses corpos dividida pelo quadrado da distância entre eles. É só isso.
— Só?
— Só! Mas levamos quatrocentos anos para descobri-la.
— Por que tanto tempo? Do jeito que você falou, parece muito simples.
— Porque as grandes leis não são descobertas em um lampejo de inspiração, como talvez você pense. Em geral, é necessário o trabalho combinado de um batalhão de cientistas durante um período de vários séculos. Depois que Genovi 41 descobriu que Kalgash gira em torno de Onos e não o contrário e isso aconteceu há quatrocentos anos, os astrônomos começaram a estudar por que os seis sóis aparecem e desaparecem do céu da forma como fazem. Os complexos movimentos dos seis sóis foram registrados e analisados. Teoria após teoria foi avançada, verificada, reverificada, modificada, abandonada, revivida e transformada em algo diferente. Foi um trabalho de cão.
Theremon assentiu, pensativo, e terminou seu drinque. Fez sinal para o garçom pedindo mais dois. Beenay parecia mais calmo agora que estava falando sobre ciência, pensou.
— Faz trinta anos — prosseguiu o astrônomo — que Athor 77 coroou o empreendimento, demonstrando que a Teoria da Gravitação Universal podia explicar perfeitamente os movimentos das órbitas dos seis sóis. Foi um feito notável. Uma das maiores realizações da história da ciência.
— Sei o quanto você admira o homem — disse Theremon -, mas o que isso tem a ver…
— Já chego lá. — Beenay se levantou e foi até o parapeito do terraço, levando o copo com ele. Ficou em silêncio por alguns instantes, olhando para Trey e Patru.
Theremon teve a impressão de que ele estava ficando agitado de novo, mas não disse nada. Afinal, Beenay bebeu um longo gole e disse, sem se voltar para o repórter:
— O problema é o seguinte. Faz alguns meses, comecei a calcular de novo os movimentos de Kalgash em volta de Onos, usando o novo computador da universidade. Forneci ao computador as posições de Kalgash nas últimas seis semanas e lhe pedi para calcular as posições para o resto do ano. Não esperava surpresas. Acho que, na verdade, estava atrás de um pretexto para mexer no computador. Naturalmente, usei a lei da gravitação nos meus cálculos. — Voltou-se bruscamente para encarar o amigo. Seus olhos tinham uma expressão assustada. — Theremon, os resultados estavam errados!
— Não compreendo.
— A órbita que o computador calculou não correspondia à órbita real. Quero que entenda que eu não estava trabalhando apenas com a interação Kalgash-Onos. Eu levara em conta todas as perturbações causadas pelos outros sóis. E o que eu obtive, o que o computador considerava como a verdadeira órbita de Kalgash, era muito diferente da órbita indicada na Teoria de Gravitação de Athor!
— Mas você disse que havia levado em conta todas as perturbações possíveis.
— E verdade.
— Nesse caso, como… — De repente, os olhos de Theremon se iluminaram. — Minha nossa! Que furo de reportagem! Você está dizendo-me que o supercomputador da Universidade de Saro, que acaba de ser instalado a um custo de não sei quantos milhões de créditos, está fornecendo resultados imprecisos? Que o dinheiro dos contribuintes foi jogado fora? Que…
— Não há nada de errado com o computador, Theremon. Acredite.
— Tem certeza?
— Tenho.
— Então como explica o que aconteceu?
— Talvez eu tivesse fornecido dados errados ao computador. O melhor computador do mundo não pode obter as respostas certas quando os dados são falsos.
— Então é por isso que você está tão aborrecido, Beenay! Escute rapaz, todos nós cometemos erros de vez em quando. Isto apenas mostra que você é humano. Por que não se acalma e…
— Eu tinha que ter absoluta certeza de que havia fornecido os números corretos ao computador, em primeiro lugar, e também de que o havia programado corretamente para processar esses números — prosseguiu Beenay, segurando o copo com tanta força que sua mão começou a tremer. Theremon notou que o copo estava de novo vazio. — Como você disse, todos nós cometemos erros de vez em quando. Por isso, fui falar com dois alunos de pós-graduação que considero muito espertos e lhes pedi para calcularem tudo de novo. Esta noite me mostraram os resultados. Lembra-se de eu ter lhe dito que tinha um encontro importante? Theremon, eles confirmaram meus resultados na íntegra. A órbita teórica é diferente da real.
— Mas se o computador estava certo, então… então… — Theremon sacudiu a cabeça. — Então o quê? A Teoria da Gravitação Universal está errada? É isso que você está tentando me dizer?
— Isto mesmo.
As palavras pareceram sair com grande esforço da boca de Beenay. Ele parecia aturdido, chocado, arrasado. Theremon ficou olhando para o amigo. Não era de admirar que Beenay estivesse confuso. Não entendia, porém, porque a descoberta o deixara tão transtornado.
De repente, compreendeu tudo.
— É Athor! Você está com medo de magoar Athor, não é mesmo?
— Exatamente! — exclamou Beenay, dirigindo a Theremon um olhar de gratidão quase patético por haver entendido a situação. Desabou na cadeira, com os ombros caídos, a cabeça baixa, e disse, com voz embargada: — O velho é capaz de morrer de tristeza quando souber que alguém descobriu uma falha em sua teoria. E que fui eu, logo eu, quem descobriu essa falha. Ele tem sido como um segundo pai para mim, Theremon. Tudo que consegui fazer nos últimos dez anos foi graças à sua orientação, ao seu estímulo, ao… sim, porque não dizer? Ao seu amor. E agora eu o pago dessa forma. Eu não estaria apenas destruindo o trabalho de toda uma vida. Estaria esfaqueando o meu mestre pelas costas, Theremon.
— Já pensou em simplesmente manter sua descoberta em segredo?
Beenay olhou para o amigo, surpreso.
— Sabe que eu não poderia fazer isso!
— Sim. Sim, eu sei. Mas queria saber se você tinha chegado a pensar nesta solução.
— Se eu tinha chegado a pensar no impensável? Não, claro que não. Nem me passou pela cabeça. Que vou fazer, Theremon? Suponho que eu realmente poderia jogar fora todos os papéis e fazer de conta que jamais investiguei o assunto, mas isto seria monstruoso. Na verdade, tenho apenas duas escolhas: violentar a minha consciência ou trair Athor. Arruinar o homem que considero não só como expoente da minha profissão, mas também o meu mestre.
— Nesse caso, ele não deve ter sido um mestre tão bom assim.
O astrônomo fuzilou o amigo com os olhos.
— O que você está dizendo, Theremon!
— Calma, calma — disse Theremon, abrindo os braços em um gesto conciliatório. — Acho que você está fazendo pouco de Athor, Beenay. Se ele é mesmo um grande homem, não vai colocar a própria reputação acima da verdade científica. Entende o que quero dizer? A teoria de Athor não é um dogma de fé. Não existe nenhuma teoria que não possa ser aperfeiçoada. Concorda comigo? A ciência é construída a partir de aproximações sucessivas. Você mesmo me disse isto, faz muito tempo, e nunca mais me esqueci. Ora, isto quer dizer que todas as teorias estão sujeitas a constantes testes e modificações, não é mesmo? E se, no final, ficar patente que não estão próximas o suficiente da verdade, terão que ser substituídas por teorias mais precisas. Certo, Beenay? Certo?
Beenay estava tremendo. Seu rosto estava muito pálido.
— Quer pedir mais um drinque para mim, Theremon?
— Não. Preste atenção, ainda não terminei. Você me disse que está muito preocupado com Athor. Ele está velho; é um pessoa cansada e vulnerável; você não tem coragem de dizer-lhe que encontrou uma falha em sua teoria. Muito bem. É uma atitude digna e decente. Mas vamos usar de bom-senso, está bem? Se o cálculo da órbita de Kalgash é tão importante, mais cedo ou mais tarde, alguém vai tropeçar na mesma falha da teoria de Athor, e essa outra pessoa provavelmente não terá o mesmo tato que você para revelar a verdade a Athor. Pode ser até que se trate de um rival de Athor, ou mesmo um inimigo dele. Os cientistas também têm inimigos, pelo menos é o que você cansa de me dizer. Não seria melhor você procurar Athor e lhe contar, com jeito, o que descobriu, em vez de deixar que ele fique sabendo pelas manchetes da Crônica?
— Tem razão — murmurou Beenay. — Você tem toda razão.
— Vai falar com ele, então?
— Vou. Acho que não me resta outra saída — Beenay mordeu os lábios. — Theremon, estou me sentindo como se fosse um assassino.
— Eu sei. Mas não é Athor que você vai matar, e, sim, uma teoria defeituosa. As teorias defeituosas devem ser eliminadas. Sua obrigação, para com Athor e para com você mesmo, é defender a verdade acima de tudo. — Theremon hesitou. Uma nova ideia lhe ocorrera. — Naturalmente, existe outra possibilidade. Sou apenas um leigo, você sabe, e pode ser que eu esteja dizendo uma bobagem. Existe a possibilidade de que a Teoria da Gravitação esteja correta, apesar de tudo, de que as observações da órbita de Kalgash também estejam corretas, e um fator totalmente desconhecido seja responsável pelas discrepâncias?
— Claro que a possibilidade existe — disse Beenay, em tom desanimado. — Mas no momento em que começamos a invocar misteriosos fatores desconhecidos, deixamos o terreno da ciência para entrar no da fantasia. Vou lhe dar um exemplo. Digamos que exista um sétimo sol, um sol invisível. Ele tem uma certa massa e, portanto, exerce uma força gravitacional, mas não podemos vê-lo. Como não sabemos que existe, não foi incluído nos nossos cálculos, de modo que o resultado que obtivemos não corresponde à situação real. É em uma coisa assim que você está pensando?
— E por que não?
— Por que não imaginarmos que existem cinco sóis invisíveis? Ou cinquenta? Que tal um gigante invisível, que movimenta o planeta de acordo com os seus caprichos? Que acha de um dragão cujo bafo desvia Kalgash da órbita prevista? Não podemos provar que essas hipóteses são falsas, podemos? Quando você começa a especular, Theremon, qualquer coisa é possível e nada mais faz sentido. Para mim, pelo menos, é assim. Estou acostumado a lidar com fatos. Você pode estar certo quando diz que existe um fator desconhecido e, portanto, a lei da gravitação está certa. Espero sinceramente que tenha razão. Mas não posso basear meu trabalho em uma hipótese tão nebulosa. Só me resta procurar Athor, e isto vou fazer, prometo, e contar-lhe o que descobri. Não teria coragem de sugerir a ele nem a ninguém que as discrepâncias podem estar sendo causadas por um “fator desconhecido”. Se fizesse isto, estaria igualando-me aos Apóstolos do Fogo, que alegam haver recebido toda a sorte de revelações místicas. Theremon, estou mesmo precisando de outro drinque agora.
— Está bem. Vou pedir. E por falar nos Apóstolos do Fogo…
— Você queria que eu desse uma declaração a respeito, eu me lembro. — Beenay passou a mão no rosto. — Vamos lá. Não vou desapontá-lo. Esta noite, você já me ajudou muito… Que foi exatamente que os Apóstolos disseram? Eu esqueci.
— Foi Mondior 71 — disse Theremon. — O Sumo Sacerdote em pessoa. O que ele afirmou… deixe-me pensar… foi que está chegando a hora em que os deuses pretendem fazer nosso mundo pagar pelos seus pecados. Ele disse que é capaz de calcular o dia exato, até mesmo a hora exata, em que o castigo chegará do céu.
— E qual é a novidade? Não é isso que eles vêm dizendo há anos?
— É verdade, mas agora estão começando a entrar em detalhes. Os Apóstolos afirmam, você sabe, que esta não será a primeira vez em que o mundo é destruído. Eles ensinam que os deuses, deliberadamente, fizeram o homem imperfeito, como um teste, e nos deram um único ano (um dos seus anos divinos, não dos nossos pequenos anos) para chegarmos à perfeição. É o chamado Ano de Divindade, e corresponde a exatamente 2049 dos nossos anos. Vez após vez, quando o Ano de Divindade termina, os deuses descobrem que ainda somos maus e pecadores, e destroem o mundo fazendo chover fogo de lugares sagrados no céu chamados Estrelas. Assim dizem os Apóstolos.
— Estrelas? Será que eles estão se referindo aos sóis?
— Não. Mondior afirma que as Estrelas não têm nada a ver com os seis sóis. Você não tem lido as últimas declarações de Mondior?
— Não. Por que deveria?
— Seja como for, quando o Ano de Divindade termina e os deuses constatam que não houve nenhum progresso em Kalgash, do ponto de vista moral, as Estrelas soltam algum tipo de fogo sagrado sobre nós e reduzem o planeta a cinzas. Mondior afirma que isso já aconteceu várias vezes. Cada vez que acontece, porém, os deuses são misericordiosos. Pelo menos, alguns deles. Cada vez que o mundo é destruído, os deuses bonzinhos convencem os deuses mais severos a oferecer aos homens mais uma oportunidade. Assim, os mais virtuosos são salvos do holocausto e recebem um novo prazo: a humanidade tem mais 2049 anos para se corrigir. Segundo Mondior, o prazo está quase se esgotando. Faz pouco menos de 2048 anos que ocorreu o último cataclismo. Daqui a quatorze meses, os sóis vão todos desaparecer e as hediondas Estrelas vão despejar fogo do céu negro para destruir os pecadores. Isso vai acontecer no ano que vem, no dia 19 de Theptar.
— Quatorze meses — repetiu Beenay. — Dia 19 de Theptar. Ele está sendo muito preciso, não acha? Será que também sabe a hora exata em que o desastre vai ocorrer?
— Ele diz que sim. É por isso que eu gostaria de publicar uma declaração de alguém ligado ao Observatório, você, de preferência. Mondior acaba de anunciar que a hora exata da catástrofe pode ser determinada cientificamente. Não se trata apenas de um dogma contido no Livro das Revelações, mas de um cálculo semelhante aos que os astrônomos fazem quando… quando…
Theremon vacilou e interrompeu o que estava dizendo.
— Quando calculamos os movimentos dos sóis e de Kalgash? — perguntou Beenay, em tom irônico.
— Isto mesmo — concordou Theremon, meio sem jeito.
— Então talvez o mundo não corra perigo, se os Apóstolos não podem fazer um trabalho melhor do que aquele que fazemos.
— Preciso de uma declaração, Beenay.
— É. Eu entendo. — Os novos drinques haviam chegado. Beenay segurou o copo com força. — Que tal isto? — disse, depois de pensar um pouco. — “O principal objetivo da ciência é separar o que é verdadeiro do que é falso, na esperança de descobrir como o universo de fato funciona. Colocar a verdade para trabalhar a serviço da falsidade não é o que nós, da universidade, consideramos como método científico. Hoje somos capazes de prever os movimentos dos sóis no céu; entretanto, mesmo com ajuda de nossos melhores computadores, não estamos mais próximos de conhecer a vontade dos deuses. Nunca estaremos.” Que tal?
— Perfeito. Vamos ver se eu peguei tudo. “O principal objetivo da ciência é separar o que é verdadeiro do que é falso, na esperança de… de…” O que vem depois, Beenay?
Beenay repetiu o que havia dito, palavra por palavra, como se tivesse sido cuidadosamente ensaiado. Depois, bebeu o terceiro drinque de um gole só. Levantou-se, sorriu pela primeira vez naquela noite, e sentiu-se um lixo.
Athor 77 franziu os olhos e examinou as listagens de computador que haviam sido colocadas sobre sua escrivaninha como se fossem mapas de um continente até então desconhecido. Estava muito calmo. Surpreso por sua calma.
— É muito interessante, Beenay — disse, devagar. — Muito, muito interessante.
— Naturalmente, professor, é possível que eu tenha cometido algum erro nas condições iniciais, e que Yimot e Faro…
— Vocês três se enganarem ao mesmo tempo? Não, Beenay, acho que podemos descartar essa possibilidade.
— Só queria lembrar ao senhor que não somos infalíveis.
— Por favor — disse Athor. — Deixe-me pensar. Era metade da manhã.
Onos, com toda a sua glória, iluminava o céu, que era visível através da ampla janela do escritório do diretor do Observatório. Dovim não passava de uma pequena mancha vermelha transitando alto ao norte.
Athor remexeu nos papéis, passando-os de um lado para outro da mesa. Não entendo por que estou reagindo com tanta tranquilidade, pensou. Beenay parecia muito mais nervoso do que ele. Será que estou em estado de choque?, especulou.
— Aqui, professor, está a órbita de Kalgash, de acordo com nossas observações. E aqui, na listagem, está a órbita calculada pelo novo computador…
— Fique quieto, Beenay. Eu disse que precisava pensar.
Beenay fez que sim com a cabeça. Athor sorriu para ele, o que lhe custou um certo esforço. O respeitado chefe do Observatório, um homem magro, alto, imponente, com uma vasta cabeleira branca, assumira há tanto tempo o papel de Austero Gigante da Ciência que era difícil para ele assumir atitudes tipicamente humanas. Pelo menos, era difícil para ele enquanto se encontrava no Observatório, onde todos o encaravam como uma espécie de semideus.
Em casa, com a esposa, os filhos e especialmente com o barulhento bando de netos, a coisa era diferente.
Quer dizer que a Lei da Gravitação Universal não estava tão correta?
Não! Não, isso era impossível! Todos os seus átomos, de comum acordo, protestaram contra a ideia. Athor estava convencido de que a Lei da Gravitação Universal era básica para qualquer tentativa de compreensão da estrutura do universo. Athor sabia disso. A lei era muito limpa, muito lógica, muito bela para estar errada.
Sem a Lei da Gravitação Universal, toda a lógica do cosmo se dissolveria no caos. Era inconcebível. Inimaginável. Mas aqueles números… aquelas malditas listagens de Beenay…
— Posso ver que ficou zangado, professor. — Beenay não parava de falar! — E quero que saiba que eu compreendo perfeitamente. Deve ter sido um grande choque para o senhor. O trabalho de toda uma vida, posto por terra…
— Beenay…
— Acredite, professor, que daria tudo para não ter que lhe trazer más notícias. Sei que está furioso comigo, mas só posso dizer que pensei muito antes de vir aqui. O que eu realmente queria fazer era queimar tudo e esquecer o que sei. Foi uma infelicidade descobrir o que descobri, e uma terrível ironia do destino ter sido logo eu que…
— Beenay! — repetiu Athor, com impaciência.
— Professor?
— Eu estou furioso com você, sim. Mas não pelo motivo que você pensa.
— Como assim?
— Em primeiro lugar, estou aborrecido porque você não para de falar, quando tudo o que quero é analisar com calma as consequências das informações que você acaba de me trazer. Em segundo lugar, e muito mais importante, estou absolutamente revoltado com o fato de você ter hesitado, mesmo que por um momento, antes de mostrar sua descoberta. Por que levou tanto tempo?
— Professor, só ontem acabei de verificar todos os cálculos.
— Ontem! Então você devia ter vindo aqui ontem! Tem a coragem de dizer-me, Beenay, que você pensou seriamente em ocultar tudo isto? Que você teria coragem de simplesmente jogar fora os resultados e não contar nada a ninguém?
— Não, senhor — disse Beenay, de cabeça baixa. — Eu não teria coragem de fazer isso.
— Ainda bem. Diga-me, rapaz, acha que estou apaixonado pela minha maravilhosa teoria a ponto de preferir que um dos meus discípulos mais brilhantes me oculte o fato desagradável de que a teoria contém uma falha?
— Não, senhor. Claro que não.
— Então por que não veio correndo para cá no momento em que teve certeza de que seus cálculos estavam corretos?
— Porque… porque, professor… — parecia que Beenay queria desaparecer por sob o carpete — porque sabia que o senhor iria ficar aborrecido. Porque achei que… achei que a notícia talvez não fizesse bem à sua saúde. Por isso, esperei um pouco, conversei com alguns amigos, pensei a respeito de minha própria posição em tudo isto e, no final, cheguei à conclusão de que não tinha escolha. Tinha que contar ao senhor que a Teoria da Gravi…
— Então você pensa de fato que eu amo minha teoria mais do que a própria verdade, não é?
— Oh, não, não, senhor!
Athor sorriu novamente, e desta vez sem esforço.
— Acontece que eu amo, sim. Afinal, também sou humano, acredite você ou não. A Teoria da Gravitação Universal trouxe-me todas as honrarias científicas que este planeta tem a oferecer. É o meu passaporte para a imortalidade, Beenay. Você sabe disso. Ter que admitir a possibilidade de que a teoria esteja errada… oh, é um grande choque para mim, Beenay. O suficiente para me deixar arrasado. Pode ter certeza. Entretanto, é que ainda acredito que minha teoria esteja correta.
— Professor? — disse Beenay, imediatamente ofendido. — Eu lhe disse que verifiquei as contas várias vezes…
— Oh, os seus cálculos estão perfeitamente corretos também. Não duvido deles. Além disso, como me disse, Faro e Yimot chegaram à mesma conclusão usando outros métodos, mas o que temos aqui não significa necessariamente que a Lei da Gravitação Universal esteja errada.
Beenay piscou várias vezes.
— Não?
— Claro que não — disse Athor, com ar paternal. Sentia-se muito melhor agora. A calma irreal dos primeiros momentos dera lugar a um tipo muito diferente de tranquilidade de alguém que persegue a verdade. — Que diz a Teoria da Gravitação Universal, afinal de contas? Que cada corpo do universo exerce uma força sobre todos os outros corpos, força esta proporcional à massa e à distância. O que você tentou fazer ao usar a Teoria da Gravitação Universal para calcular a órbita de Kalgash? Simplesmente levar em conta o efeito gravitacional de todos os astros sobre o nosso planeta. Não é verdade?
— Sim, senhor.
— Pois não há necessidade de jogar fora a Teoria da Gravitação Universal, pelo menos ainda não. O que temos a fazer, meu jovem amigo, é simplesmente repensar a imagem que fazemos do universo e verificar se estamos ignorando alguma coisa que devia ter sido incluída em nossos cálculos. Algum fator misterioso, que, sem o nosso conhecimento, esteja exercendo uma força gravitacional suficiente para modificar a órbita de Kalgash.
As sobrancelhas de Beenay levantaram-se alarmadas Ele olhou para Athor com uma expressão de total assombro. Logo depois, começou a rir. Tentou controlar-se, mantendo a boca fechada, mas a gargalhada insistia em escapar, fazendo-o encolher os ombros e emitir sons estrangulados; afinal, viu-se forçado a tapar a boca com as duas mãos para segurar o riso.
Athor observou-o, espantado.
— Um fator desconhecido! — exclamou Beenay, quando recuperou o fôlego. — Um dragão no céu! Um gigante invisível!
— Dragão? Gigante? De que está falando, rapaz?
— Ontem à noite… Theremon 762… desculpe, professor, desculpe… — Beenay esforçou-se para recuperar o controle. Seu rosto se contorceu em um esgar. Ele respirou fundo, deu as costas por um instante ao velho mestre e quando olhou para ele de novo, estava quase normal. Prosseguiu, envergonhado: — Ontem à noite me encontrei com Theremon 762, o jornalista, e desabafei com ele. Contei-lhe que não sabia como revelar ao senhor o que eu havia descoberto.
— Você foi falar com um repórter?
— Uma pessoa de confiança, professor. Um amigo de longa data.
— Os repórteres não prestam, Beenay. Acredite.
— Este é diferente, professor. Sei que jamais faria alguma coisa para me magoar ou ofender. Na verdade, Theremon me deu bons conselhos. Ele me aconselhou a contar tudo ao senhor sem perda de tempo, e foi isso que eu fiz. Mas também, acho que estava tentando me oferecer alguma esperança, sugeriu a mesma coisa que o senhor. Disse que talvez houvesse um “fator desconhecido”, foram essas suas palavras, exatamente, que estava perturbando a órbita de Kalgash. Comecei a rir e disse a ele que não adiantava tentar introduzir fatores desconhecidos nas equações que descreviam o movimento de nosso planeta. Que essa era uma solução muito cômoda. Observei que se nos permitíssemos este tipo de hipótese, então poderíamos imaginar que um gigante invisível estava controlando os movimentos de Kalgash, ou que a órbita do planeta estava sendo alterada pelo bafo de um dragão. E agora aqui está o senhor usando o mesmo tipo de argumento. Não um leigo como Theremon, mas o maior astrônomo o planeta! Compreende como estou me sentindo tolo, professor?
— Acho que sim — disse Athor. Aquilo estava se tornando um pouco cansativo. Passou a mão pela imponente cabeleira branca e olhou para Beenay com uma mistura de pena e irritação. — Você estava certo quando disse ao seu amigo que inventar fantasias não é a maneira certa de resolver um problema. Por outro lado, às vezes as sugestões dos leigos não são tão absurdas quanto parecem. Pelo que sabemos, pode ser que haja mesmo um fator desconhecido modificando a órbita de Kalgash. Devemos investigar esta possibilidade antes de descartar totalmente a Teoria da Gravitação Universal. É uma boa oportunidade para fazermos uso da Espada de Thargola. Sabe o que é isso, Beenay?
— Claro que sei. É o princípio da parcimônia. Foi enunciado pela primeira vez pelo filósofo medieval Thargola 14, que disse: “Qualquer hipótese que não seja estritamente necessária deve ser passada no fio da espada”, ou coisa parecida.
— Muito bem, Beenay. Se bem que a versão que me ensinaram foi: “Quando várias hipóteses nos são oferecidas, devemos começar nossa análise passando as mais complexas no fio da espada.” No caso em questão, temos duas hipóteses: a de que a Teoria da Gravitação Universal esteja errada e a de que algum fator desconhecido esteja perturbando a órbita de Kalgash. Se aceitarmos a primeira hipótese, tudo que sabemos a respeito da estrutura do universo perderá o valor. Se aceitarmos a segunda, bastará localizarmos o fator desconhecido; a ordem fundamental das coisas estará preservada. É muito mais simples tentar descobrir alguma coisa que não levamos em consideração do que encontrar uma nova lei geral para o movimento dos corpos celestes. Assim, a hipótese de que a Teoria da Gravitação Universal está errada não sobrevive à Espada de Thargola e começamos nossas investigações procurando uma solução mais simples para o problema. Que tal, Beenay? Que é que você acha?
Beenay parecia radiante.
— Quer dizer, no final das contas, a Teoria da Gravitação Universal continua de pé!
— Continua, pelo menos por enquanto. Você provavelmente já conquistou um lugar na história da ciência, mas ainda não sabemos se como demolidor ou como criador. Vamos rezar pela segunda possibilidade. E agora precisamos pensar muito, meu jovem. — Athor 77 fechou os olhos e esfregou a testa, que estava começando a doer. Percebeu, surpreso, que fazia tempo que não se dedicava a uma investigação científica. As questões administrativas do Observatório haviam ocupado todo o seu tempo nos últimos oito ou dez anos. Entretanto, a mente que havia descoberto a Teoria da Gravitação Universal seria capaz de outras conquistas, disse para si mesmo. — Primeiro, quero examinar mais de perto esses seus cálculos — disse. — E depois, naturalmente, vou examinar mais de perto minha própria teoria.
O quartel-general dos Apóstolos do Fogo era uma torre fina e majestosa, toda em pedra dourada, que se destacava como um dardo reluzente na margem do Rio Seppitan, no bairro de Birigam, um dos mais exclusivos da cidade de Saro. Aquela torre pensou Theremon, devia ser um dos prédios mais caros de toda a capital.
Ele nunca havia parado para pensar no assunto, mas os Apóstolos tinham que ser uma seita muito rica. Eram donos de estações de rádio e televisão, publicavam revistas e jornais e haviam construído uma torre como aquela. Provavelmente, possuíam muitos outros bens menos visíveis. Imaginou como aquilo era possível. Um bando de monges fanáticos? Como teriam conseguido pôr as mãos em centenas de milhões de créditos?
Por outro lado, industriais conhecidos, como Bottiker 888 e Vivin 99, defendiam abertamente os ensinamentos de Mondior e seus Apóstolos. Não seria surpresa se homens como Bottiker, Vivin e outros como eles houvessem contribuído para o tesouro dos Apóstolos.
E se a organização fosse tão antiga quanto afirmava ser (dez mil anos, era o que diziam!) e tivesse aplicado bem seu dinheiro através dos séculos, não havia o que os Apóstolos não pudessem ter conseguido através do milagre dos juros compostos, pensou Theremon. Sua fortuna podia chegar à casa dos bilhões. Podiam ser donos, secretamente, de metade da cidade de Saro.
Era um assunto que valia a pena investigar, disse para si mesmo.
Entrou no vasto saguão da grande torre e olhou em torno, admirado. Embora nunca tivesse estado ali antes, ouvira dizer que se tratava de um edifício de extremo luxo, tanto dentro como fora. Mas nada do que ouvira o preparara para a realidade que via diante de si.
Um piso de mármore polido, com incrustações em meia dúzia de cores vivas, se estendia até onde a vista podia alcançar. As paredes eram cobertas de mosaicos dourados que formavam figuras abstratas. Candelabros de ouro e prata banhavam a cena com uma iluminação feérica.
No lado oposto ao da entrada, Theremon viu o que parecia ser um modelo do universo, feito, ao que parecia, inteiramente de metais nobres e pedras preciosas: imensos globos suspensos, representando os seis sóis, pendiam do teto, sustentados por fios invisíveis. Cada um deles tinha um brilho diferente. O maior, que devia ser Onos, era dourado, o globo de Dovim era vermelho escuro, o par Tano-Sitha era branco azulado, e Patru e Trey tinham uma luz branca, mais suave. Um sétimo globo, que devia ser Kalgash, movia-se devagar entre eles, como um balão levado pelo vento, mudando de cor a cada instante, de acordo com sua posição em relação aos seis sóis.
Enquanto Theremon observava a cena, fascinado, uma voz, que não vinha de nenhum lugar em particular, perguntou:
— Posso saber o seu nome?
— Theremon 762. Tenho uma entrevista marcada com Mondior.
— Muito bem. Entre, por favor, na câmara à sua esquerda, Theremon 762.
O repórter não via nenhuma câmara do lado esquerdo do saguão. De repente, porém, um segmento da parede coberta de mosaicos deslizou suavemente, revelando uma pequeno compartimento oval, mais uma antessala do que uma câmara. As paredes eram revestidas por tapeçarias de veludo verde, uma única barra de luz âmbar fornecia a iluminação.
Theremon deu de ombros e entrou. A porta se fechou em seguida, e ele teve uma nítida sensação de movimento. Aquilo não era uma sala, era um elevador! Sim, estava subindo, tinha certeza disso. Só que muito devagar. Teve a impressão de que se havia passado uma eternidade antes de o elevador parar e a porta se abrir de novo. Uma figura usando uma veste negra estava à sua espera.
— Quer vir por aqui, por favor?
Um corredor estreito levava a uma espécie de sala de espera, onde um enorme retrato de Mondior 71 ocupava a maior parte de uma das paredes. Quando Theremon entrou, o retrato pareceu acender, tornando-se estranhamente vivo, de modo que os olhos escuros e penetrantes de Mondior olharam diretamente para ele e o rosto severo do Sumo Apóstolo assumiu uma radiância peculiar que o fez parecer quase belo.
Theremon enfrentou com tranquilidade o olhar do retrato. Mesmo o calejado repórter, porém, não podia deixar de se sentir emocionado ao pensar que em pouco tempo estaria entrevistando aquela mesma pessoa. Mondior no rádio ou na televisão era uma coisa, apenas um pregador excêntrico com uma mensagem absurda. Mas Mondior em carne e osso, imponente, hipnótico, misterioso, parecido com aquele retrato, seria uma coisa bem diferente.
— Entre, por favor — disse o monge vestido de preto. A parede à esquerda do retrato se abriu. Apareceu um escritório, tão modestamente mobiliado quanto uma cela.
Não havia nada no interior a não ser uma mesa nua, feita de um único bloco de pedra polida, e um banco baixo de incomum madeira cinza de veios vermelhos colocado em frente a ela. Atrás da mesa estava sentado um homem de evidente autoridade, usando a veste negra dos Apóstolos, com uma orla vermelha no capuz.
Era uma figura impressionante, mas não era Mondior 71. Mondior, a julgar pelas fotografias e pela forma como aparecia na televisão, tinha que ser um homem de 65 ou 7O anos, com uma espécie de intensa força masculina. Seus cabelos eram fartos e ondulados, negros com mechas brancas, e tinha um rosto cheio, carnudo, uma boca larga, nariz bem-feito, sobrancelhas escuras, olhos negros e penetrantes. Mas este homem era moço, não podia ter mais de quarenta anos, e embora também parecesse másculo, o era de forma inteiramente diversa. Era muito magro, com um rosto fino e anguloso e lábios estreitos. O cabelo que aparecia por baixo do capuz tinha uma estranha cor avermelhada, e os olhos eram azuis e frios.
Aquele homem era, sem dúvida, um alto funcionário da organização. Entretanto, a entrevista de Theremon era com Mondior.
Naquela manhã, depois de escrever uma reportagem a respeito das mais recentes previsões dos Apóstolos, o jornalista chegara à conclusão de que precisava conhecer melhor aquele culto misterioso. Tudo que haviam dito até o momento era absurdo, é claro, mas estava começando a parecer um absurdo interessante, digno de uma investigação mais aprofundada. Que forma melhor havia de aprender mais a respeito deles do que entrevistar o seu líder? Isto é, supondo que isso fosse possível. Para sua surpresa, o que lhe disseram, quando telefonou, foi que poderia ter uma audiência com Mondior 71 naquele mesmo dia. Tinha parecido fácil demais.
Agora estava começando a compreender que tinha sido fácil demais.
— Meu nome é Folimun 66 — disse o homem com uma voz leve, suave, que não se parecia nem um pouco com o baixo profundo de Mondior. No entanto, era a voz de alguém que está acostumado a ser obedecido. — Sou o diretor de relações públicas desta organização na cidade de Saro. Terei prazer em responder a suas perguntas.
— Marquei um encontro com Mondior em pessoa — disse Theremon.
Os olhos gelados de Folimun 66 não mostraram nenhum sinal de surpresa.
— Pode me considerar como a voz de Mondior.
— Fui levado a crer que seria uma entrevista pessoal.
— E é. Tudo que me disser será transmitido a Mondior; tudo que lhe disser será a palavra de Mondior.
— Mesmo assim, asseguraram-me que eu poderia conversar com Mondior. Não tenho dúvida de que o senhor está autorizado a falar em nome dele, mas o que procuro não são apenas informações. Gostaria de saber que tipo de pessoa é Mondior, o que pensa de outras coisas além da possível destruição do nosso planeta, quais são suas ideias a respeito…
— Só posso repetir o que já disse — declarou Folimun, interrompendo com suavidade o repórter. — Considere-me como a voz de Mondior. Infelizmente, Sua Serenidade não poderá recebê-lo em pessoa.
— Nesse caso, prefiro voltar outro dia, quando Sua Serenidade estiver…
— Devo informá-lo que Mondior não estará mais disponível para entrevistas pessoais. Nunca mais. O trabalho de Sua Serenidade é muito urgente, agora que restam apenas alguns meses para o Dia do Fogo. — Folimun sorriu de repente, um sorriso inesperadamente humano e gentil, talvez para compensar a recusa e para tirar um pouco do efeito da expressão melodramática “o Dia do Fogo”, Acrescentou, em tom de quem pede desculpas: — Deve ter havido um mal-entendido. O senhor não compreendeu que a entrevista seria com um porta-voz de Mondior, e não com o Sumo Apóstolo em pessoa. Mas é assim que deve ser. Se não quiser falar comigo, sinto muito por ter desperdiçado o seu tempo. Sou a melhor fonte de informação que o senhor encontrará aqui, hoje ou em qualquer outra ocasião.
De novo, o sorriso. Era o sorriso de um homem que estava fechando friamente uma porta na cara de Theremon.
— Muito bem — disse Theremon, depois de pensar um pouco. — Vejo que não tenho muita escolha. É o senhor ou ninguém. Está bem: vamos conversar. De quanto tempo eu disponho?
— De quanto tempo precisar, mas este nosso primeiro encontro terá que ser breve. Além disso — acrescentou, com um sorriso quase irônico — o senhor precisa compreender que nós todos só dispomos de quatorze meses. E tenho outras coisas para fazer durante esse tempo.
— Imagino que sim. Quatorze meses, o senhor disse? E depois?
— Presumo que não tenha lido o Livro das Revelações.
— Pelo menos, não recentemente.
— Permita-me, então. — Folimun retirou um grosso volume de capa vermelha de um compartimento da mesa aparentemente vazia e empurrou-o na direção de Theremon. — É para o senhor. Nele encontrará valiosos ensinamentos, espero. Enquanto isso, posso resumir o tema que mais parece interessá-lo. Muito em breve, daqui a exatamente 418 dias, para ser preciso, no próximo dia 19 de Theptar, nosso mundo passará por uma grande transformação. Os seis sóis vão entrar na Caverna da Escuridão e desaparecer, as Estrelas vão surgir, e Kalgash será consumido pelas chamas.
Falava em tom casual, como se estivesse comentando a respeito da chuva esperada para o dia seguinte ou do desabrochar de uma planta rara no Jardim Botânico Municipal. Kalgash consumido pelas chamas. Os seis sóis entrando na Caverna da Escuridão. As Estrelas.
— As Estrelas — repetiu Theremon, em voz alta. — Que são, na realidade, as Estrelas?
— São instrumentos dos deuses.
— Não pode ser mais específico?
— Saberemos melhor o que são as Estrelas daqui a 418 dias — disse Folimun 66.
— Quando o atual Ano de Divindade terminar — disse Theremon. — No dia 19 de Theptar do ano que vem.
Folimun pareceu agradavelmente surpreso.
— Então o senhor tem estudado nossos ensinamentos!
— Até certo ponto. Escutei alguns dos recentes discursos de Mondior. Sei o que vocês pensam a respeito do ciclo de 2049 anos. E quanto ao evento que chamam de Hora do Fogo? Imagino que também não pode me descrever com detalhes o que vai acontecer.
— Encontrará algumas informações no quinto capítulo do Livro das Revelações. Não, não precisa procurar agora. Posso citar de cor. “Das Estrelas desceu então o Fogo Celestial, que era o mensageiro da vontade dos deuses e onde o fogo tocou, as cidades de Kalgash foram consumidas até a destruição total, de modo que nada restou do homem e das obras do homem.”
Theremon fez que sim com a cabeça.
— Um súbito e terrível cataclismo. Por quê?
— Foi a vontade dos deuses. Eles nos repreenderam por nossa maldade e nos deram um prazo para nos corrigirmos. Este prazo é o que chamamos de Ano de Divindade, um “ano” que, como aparentemente o senhor já sabe, corresponde a 2049 anos dos nossos. O atual Ano de Divindade está prestes a terminar.
— Quando isso acontecer, seremos todos exterminados?
— Nem todos. A maioria. Nossa civilização será destruída, os poucos sobreviventes terão diante de si a imensa tarefa de reconstruí-la. Como o senhor parece ter conhecimento, não é a primeira vez que isso acontece. A humanidade já foi condenada pelos deuses no passado. Fomos castigados mais de uma vez pelos nossos pecados e estamos prestes a ser castigados de novo.
O interessante, pensou Theremon, é que Folimun não parecia de forma alguma um desequilibrado mental com exceção da veste negra, poderia passar por um jovem executivo cuidando de negócios em seu elegante escritório. Um corretor de investimentos, por exemplo. Era, sem dúvida, uma pessoa inteligente. Sabia se expressar. Ia direto ao ponto. No entanto, as coisas que estava dizendo, de forma simples e objetiva, não faziam o menor sentido. O contraste entre as coisas que Folimun dizia e o modo como as dizia era difícil de assimilar.
Agora esperava tranquilo pela pergunta seguinte do jornalista.
— Vou ser franco — disse Theremon, depois de alguns instantes. — Como muitas pessoas, acho difícil aceitar uma história deste vulto apenas com base na palavra de vocês. Preciso de provas concretas. Mas vocês não mostram nenhuma. Tenham fé, dizem vocês. Acreditem em nós, porque foram os deuses que nos contaram tudo isso, e eles não teriam razão para mentir. Acontece que eu não tenho nenhuma razão para acreditar em vocês. Pessoas como eu precisam de provas.
— Quem foi que disse que não temos provas? — perguntou Folimun.
— Vocês têm alguma prova além do Livro das Revelações? Porque, pelo que eu disse, o senhor já deve saber que não considero o livro como prova.
— Somos uma organização muito antiga, o senhor sabe.
— Com dez mil anos de idade, ao que consta.
Um breve sorriso passou pelos lábios finos de Folimun.
— Um número arbitrário, talvez exagerado de propósito para impressionar o povo. Tudo que sabemos com certeza é que nossa organização remonta à era pré-histórica.
— Neste caso, vocês têm pelo menos dois mil anos de idade.
— Um pouco mais que isto, no mínimo. Sabemos que nosso grupo já existia antes do último cataclismo, de modo que temos pelo menos 2049 anos de idade. Provavelmente muito mais, mas não temos nenhuma prova disso. Pelo menos, nenhuma prova do tipo que o senhor aceitaria. Achamos que os Apóstolos podem ter assistido a vários ciclos de destruição, o que significa que nossa organização talvez tenha sido fundada há mais de seis mil anos. O que importa de fato é que já existíamos quando o último cataclismo ocorreu. Somos uma organização ativa por mais de um Ano de Divindade. Assim, estamos de posse de informações detalhadas a respeito do que vai ocorrer. Sabemos o que vai acontecer, porque é uma repetição do que já aconteceu várias vezes no passado.
— Mas vocês não mostraram a ninguém essas informações que alegam possuir.
— Estão todas no Livro das Revelações.
Estavam de volta ao ponto de partida. Aquela conversa não levaria a nada. Theremon começou a se sentir impaciente. Aquilo tudo só podia ser uma grande farsa. Uma gigantesca encenação, sem dúvida, com o objetivo de conseguir polpudas contribuições de trouxas como Bottiker, Vivin e outros magnatas assustados, dispostos a pagar qualquer coisa para escapar do desastre. Apesar de Folimun aparentar sinceridade e inteligência, ele só podia ser sócio de Mondian naquela fantasia fraudulenta. A não ser que não passasse de um reles capanga do líder religioso.
— Muito bem — disse o repórter. — Vamos supor que vá ocorrer no ano que vem algum tipo de catástrofe mundial. O que, exatamente, vocês esperam que a população faça? Que compareça em massa aos templos e peça perdão aos deuses?
— É tarde demais para isso.
— Não há mais esperança? Então, por que se dão ao trabalho de nos prevenir?
Folimun sorriu de novo, desta vez sem ironia.
— Por duas razões. Primeiro, sim, queremos que a população compareça em massa aos nossos templos, não para tentarem influenciar os deuses, mas para escutarem nossos ensinamentos morais. Achamos que a humanidade tem muito que aprender conosco. Segundo, e mais urgente: queremos convencer as pessoas de que o desastre realmente está próximo, porque só assim elas tomarão medidas para se protegerem. A catástrofe é inevitável, mas seus efeitos podem ser minimizados. Ainda é possível evitar a completa destruição de nossa civilização. O Fogo vai varrer o nosso planeta, pois a humanidade não se corrigiu. Os deuses falaram, a hora do castigo está próxima. Entretanto, dentro de toda a loucura e horror, alguns vão sobreviver. Asseguro-lhe que nós, Apóstolos, não seremos afetados. Estaremos aqui, como das vezes anteriores, para ajudar a humanidade a reconstruir a civilização. E oferecemos nossa mão — em caridade, em amor — a quem quiser aceitá-la, a quem quiser se juntar a nós durante os tempos difíceis que estão para chegar. Isto lhe parece loucura, Theremon? Ainda acha que somos farsantes e aproveitadores?
— Se ao menos eu pudesse acreditar na sua premissa básica…
— De que o Fogo vai chegar no ano que vem? Tenho certeza de que um dia vai acreditar. Resta saber se esse dia vai chegar a tempo de que se torne um dos sobreviventes, um dos guardiões de nossa herança, ou se o senhor só vai perceber que estávamos falando a verdade no momento da destruição, quando será tarde demais para fazer alguma coisa.
— Eu também gostaria de saber — disse Theremon.
— Permita-me fazer votos para que esteja ao nosso lado no último dia do Ano de Divindade — disse Folimun. De repente, levantou-se e estendeu a mão para Theremon.
— Agora tenho que ir. Sua Serenidade, o Sumo Apóstolo, está à minha espera. Mas voltaremos a nos ver, estou certo. Avise-me com um dia de antecedência… ou até menos. Gostaria de conversar novamente com o senhor. Estranho como possa parecer, tenho a sensação de que vamos trabalhar juntos. Temos muito em comum.
— Temos?
— Na questão da fé, não. Na questão da vontade de sobreviver, e de ajudar os outros a sobreviver… sim, acredito que sim. Vai chegar o dia em que juntaremos nossas forças para lutar contra a Escuridão que se aproxima. Estou certo disso.
É melhor eu encomendar logo uma veste negra, pensou Theremon.
Mas não havia nenhuma vantagem em ofender Folimun com um comentário irônico. O culto dos Apóstolos estava se tornando muito popular. O assunto daria uma ótima reportagem, e com certeza, gostaria de entrevistar Folimun outras vezes antes de escrevê-la. Theremon guardou o exemplar do Livro das Revelações na sua maleta e levantou-se.
— Vou procurá-lo de novo daqui a algumas semanas disse. — Depois que tiver tempo de estudar este livro com alguma atenção. Na ocasião, certamente terei outras perguntas para lhe fazer. De quanto tempo de antecedência eu preciso para marcar uma entrevista com Mondior 71?
Não era tão fácil pegar Folimun desprevenido.
— Como já expliquei, Sua Serenidade tem tanto trabalho pela frente até o Dia do Fogo que não concederá mais audiências pessoais. Sinto muito. Não há nada que eu possa fazer — Folimun estendeu novamente a mão. — Foi um prazer.
— O prazer foi meu — disse Theremon.
Folimun riu.
— Verdade? Foi um prazer passar meia hora conversando com um louco? Um farsante? Um fanático?
— Não me lembro de haver usado essas palavras.
— Mas eu não me surpreenderia se tivesse pensado nelas — O Apóstolo endereçou a Theremon outro de seus desconcertantes sorrisos. — E o senhor não estaria totalmente errado. Afinal de contas, eu sou um fanático. Mas não sou louco nem farsante. Gostaria de ser.
Fez um gesto para que Theremon se retirasse. O monge que o guiara até ali estava à sua espera do lado de fora para levá-lo ao elevador.
Uma estranha meia hora, pensou o jornalista. E não muito produtiva. De certa forma, sabia ainda menos a respeito dos Apóstolos do que antes da entrevista.
Continuava a achar que a doutrina que pregavam não tinha relação alguma com a realidade. Folimun não lhe oferecera nenhuma prova concreta de que o planeta estava para ser atingido por um gigantesco cataclismo. Entretanto, não saberia dizer se tratava de um bando de tolos supersticiosos ou de espertalhões tentando ganhar dinheiro fácil.
Era tudo muito confuso. Havia um elemento de fanatismo, de puritanismo no movimento que o desagradava profundamente. No entanto, no entanto… aquele Folimun, aquele porta-voz dos Apóstolos, o surpreendera de modo agradável. Ele era inteligente, bem falante… até mesmo racional, à sua moda. O fato de ser dotado de senso de humor era um ponto favorável. Theremon nunca tinha ouvido falar de um maníaco, ou fanático, que fosse capaz de rir de si próprio. A menos que fosse tudo parte de uma representação. Ou que Folimun estivesse, de propósito, se fazendo passar pelo tipo de pessoa que sabia que agradaria a Theremon.
Tome cuidado, disse para si próprio. Folimun pretende usá-lo.
Não tinha importância. Ocupava uma posição de destaque no jornal. Muita gente queria usá-lo.
Vamos ver quem usa quem, pensou Theremon.
O som dos seus passos ecoou, quando atravessou com passos rápidos o saguão de entrada do quartel-general dos Apóstolos e saiu para a luz da tarde de três sóis.
Voltou para a redação da Crônica. Passou duas horas piedosas estudando o Livro das Revelações; depois, chegou a hora de pensar na coluna do dia seguinte.
Na tarde em que Sheerin voltou à cidade de Saro, o tempo estava péssimo. Quando o psicólogo saltou do avião, a pista de pouso mais parecia um lago. Torrentes cinzentas de chuva, impelidas por rajadas de vento, fustigavam quase horizontalmente a aeronave.
Cinzento… cinzento… tudo cinzento…
Os sóis tinham que estar lá em cima, em algum lugar, no meio de todas aquelas nuvens. O fraco brilho a oeste provavelmente assinalava a presença de Onos, e havia indícios da luz fria de Tano e Sitha do outro lado. Entretanto, a cobertura de nuvens era tão densa que o dia estava de uma escuridão desagradável, em particular para Sheerin, que, apesar do que dissera em Jonglor, ainda se ressentia dos efeitos da viagem de quinze minutos no Túnel do Mistério.
Jamais admitiria para Kelaritan, Cubello e o resto daquela gente, mas estivera perigosamente próximo de um colapso nervoso.
Durante três ou quatro dias após a experiência, Sheerin sentira alguns vestígios, apenas vestígios, do tipo de claustrofobia que mandara tantos cidadãos de Jonglor para o hospital psiquiátrico. Estava no quarto do hotel, escrevendo o relatório, e de repente a Escuridão parecia se fechar em torno dele. Uma força irresistível o impelia a ir para a varanda ou mesmo sair do hotel para um longo passeio pelo jardim. Irresistível? Bem, talvez não. Mas se sentia muito melhor depois de obedecer ao impulso.
Em outras ocasiões, estava dormindo quando a Escuridão chegava. Naturalmente, dormia com a luz acesa (não conhecia ninguém que não fizesse isso). Desde o passeio no Túnel, passara a usar uma segunda lâmpada de cabeceira, caso a bateria da primeira falhasse, embora, de acordo com o indicador, a carga devesse durar no mínimo mais seis meses. Mesmo assim, a mente adormecida de Sheerin se convencia de que o quarto estava mergulhado em total Escuridão. Ele acordava, trêmulo, coberto de suor, assustado com a Escuridão, embora a luz das duas lâmpadas, uma de cada lado da cama, continuasse a iluminar o quarto como sempre.
De modo que agora, ao descer do avião no meio daquela paisagem sombria… bem, estava satisfeito em voltar para casa, mas preferia ter chegado em um dia mais alegre. Sentiu um leve desconforto, talvez não tão leve assim, ao entrar no tubo de flexiglass que ligava a aeronave ao terminal. Preferia que não tivessem colocado o tubo.
Antes enfrentar a chuva, pensou Sheerin, do que entrar naquele ambiente confinado. Gostaria de estar lá fora, a céu aberto, sob a luz tranquilizadora dos sóis (mesmo que estivessem escondido pelas nuvens).
Mas a aflição passou. Quando as malas chegaram, a realidade agradável de estar de volta à cidade de Saro vencera os efeitos residuais do seu encontro com a Escuridão.
Liliath 221 estava à sua espera com o carro do lado de fora do setor de bagagem. Isto também o fez sentir-se melhor. Ela era uma mulher esbelta, bonita, de quarenta e tantos anos, sua colega no departamento de psicologia. O trabalho dela era experimental (animais em labirintos) e nada tinha a ver com o dele. Conheciam-se há dez ou quinze anos. Sheerin provavelmente a teria pedido em casamento há muito tempo, se não fosse um solteirão irrecuperável. O mesmo, provavelmente, ocorria com ela. Entretanto, a relação que mantinham parecia satisfazer a ambos.
— Tinha que escolher logo um dia como o de hoje para voltar para casa — observou Sheerin, tomando seu lugar no carro ao lado dela e beijando-a rapidamente.
— Está assim há três dias. Dizem que o mau tempo vai durar até o próximo Dia de Onos. A essa altura, a cidade vai estar debaixo d’água… Ei, você voltou mais magro, Sheerin!
— Verdade? Sabe como é… nunca apreciei muito aquela comida do norte…
Não esperava que fosse tão evidente. Um homem do seu tamanho devia poder perder cinco ou seis quilos sem que ninguém notasse. Mas Liliath sempre fora muito observadora, além disso, talvez tivesse perdido mais do que cinco ou seis quilos. Desde que estivera no Túnel, seu apetite desaparecera por completo. Logo ele! Era difícil acreditar…
— Está com ótimo aspecto — disse ela. — Saudável. Vigoroso.
— É mesmo?
— Não que eu ache que você deva ser magro. É tarde demais para isso. Mas fica melhor com alguns quilos a menos. Como foi a estada em Jonglor?
— Tudo bem…
— Visitou a Exposição?
— Visitei. Está muito bonita — disse Sheerin, sem muito entusiasmo. — Puxa, mas como está chovendo aqui, Liliath!
— Não estava chovendo em Jonglor?
— Só peguei dias ensolarados. No dia em que viajei, o tempo aqui também estava ótimo.
— O tempo muda, Sheerin, com um conjunto diferente de sóis no céu todo dia, ele não pode permanecer o mesmo por muito tempo.
— Não sei se você soa mais como uma meteorologista ou como uma astróloga — observou Sheerin.
— Nada disso. Estou falando como uma psicóloga. Não vai me contar como foi a viagem, Sheerin?
Ele hesitou.
— Gostei de ter visitado a Exposição. Está realmente uma beleza. Mas a maior parte do tempo passei trabalhando. Essa história do Túnel do Mistério é um grande problema para todo mundo.
— É mesmo verdade que houve gente que morreu depois de passar pelo Túnel?
— Uns poucos. Mas muita gente saiu traumatizada, desorientada, com sintomas de claustrofobia. Conversei com algumas das vítimas. Vão levar meses para se recuperar. Alguns talvez jamais se recuperem. Mesmo assim, o Túnel continuou aberto durante várias semanas.
— Depois que os problemas começaram?
— Parece que ninguém deu importância ao fato, muito menos os organizadores da Exposição. Tudo que estavam interessados era em vender ingressos. E os frequentadores estavam curiosos para saber como era a Escuridão. Pode imaginar isso, Liliath? Faziam filas para colocar suas mentes em perigo… Naturalmente, estavam convencidos de que, no caso deles, nada aconteceria. E nada aconteceu, para muitos deles. Mas não todos. Eu mesmo dei uma volta no Túnel.
— É mesmo? — perguntou Liliath, surpresa. — Que tal?
— Foi muito desagradável. Não pretendo repetir a experiência.
— Mas você saiu ileso, é claro.
— É claro — repetiu Sheerin, cauteloso. — Eu sairia ileso se engolisse meia dúzia de peixes vivos, também. Mas não é algo que eu gostaria de repetir. Aconselhei-os a fechar permanentemente o maldito Túnel. Foi a minha opinião profissional, e acho que vão respeitá-la. Simplesmente não fomos concebidos para suportar tanta Escuridão Liliath. Talvez, um ou dois minutos… e logo o sono chega. É uma coisa inata. O resultado de milhões de anos de evolução. A Escuridão é a coisa mais antinatural do mundo. A ideia de vendê-la como diversão… — estremeceu. — Bom, fiz minha viagem a Jonglor e estou de volta. Quais são as novidades na universidade?
— Nada de mais — respondeu Liliath. — Os mexericos de sempre, as reuniões do corpo docente, os protestos dos estudantes contra isso e aquilo … você sabe. — Ficou em silêncio por alguns momentos, segurando o volante com as duas mãos enquanto se desviava das poças d’água. — Ah, parece que o pessoal do Observatório anda muito excitado. Seu amigo Beenay 25 esteve procurando por você. Ele não me contou muita coisa, mas tive a impressão de que eles estão reavaliando uma de suas teorias-chave. O velho Athor em pessoa está comandando as pesquisas, você pode imaginar? Pensei que o cérebro dele já estivesse mumificado. Beenay estava acompanhado por um jornalista. Acho que o nome dele é Theremon. Theremon 762. Não simpatizei muito com ele.
— É um jornalista conhecido. Do tipo que faz reportagens de denúncia. Ele e Beenay são muito amigos.
Sheerin decidiu ligar para o jovem astrônomo assim que acabasse de desarrumar as malas. Há quase um ano Beenay estava vivendo com a filha da irmã de Sheerin, Raissta 717, e Sheerin e ele tinham se tornado amigos íntimos, apesar da diferença de idade de mais de vinte anos que os separava. Sheerin tinha um interesse de amador pela astronomia; esta era uma das coisas que os uniam.
Athor de volta à pesquisa! Imagine! Que poderia ter acontecido? Algum excêntrico publicara um trabalho refutando a Lei da Gravitação Universal? Não, pensou Sheerin, ninguém ousaria fazer isso.
— E você? — perguntou o psicólogo. — Ainda não disse uma palavra sobre o que andou fazendo enquanto eu estava fora.
— Que pensa que andei fazendo, Sheerin? Frequentando as reuniões dos Apóstolos do Fogo? Tomando aulas de voo livre? Estudando ciência política? Li alguns livros. Dei minhas aulas. Executei algumas experiências. Esperei a sua volta. Planejei um jantar especial para o dia em que você voltasse. Tem certeza de que não está de dieta?
— Claro que não. — Deixou sua mão repousar carinhosamente sobre a dela por um momento. — Pensei em você o tempo todo, Liliath.
— Acredito muito.
— E mal posso esperar pelo jantar.
— Isto soa muito mais plausível.
De repente, a chuva ficou ainda mais forte. Grandes bátegas atingiram o para-brisa e Liliath teve que se esforçar para manter o controle do veículo. Estavam passando pelo Panteão, a fabulosa Catedral de Todos os Deuses. Não parecia tão fabulosa no momento, com filetes de água escorrendo pela fachada de tijolos.
O recrudescimento da chuva fez o céu escurecer. Sheerin se encolheu, fugindo da escuridão da rua, e procurou conforto nas luzes do painel de instrumentos. Ele não queria mais ficar dentro do carro. Precisava de espaço aberto, com ou sem tempestade. Mas aquilo era loucura. Ficaria ensopado no instante em que pusesse os pés fora do veículo. As poças eram tão fundas que corria o risco de se afogar.
Pense em coisas alegres, disse para si mesmo. Pense em coisas claras. Pense no sol, no brilho dourado de Onos, na luz cálida de Patru e Trey, ou mesmo na luz fria de Sitha e Tano, na luz avermelhada de Dovim. Pense no jantar desta noite. Liliath preparou um banquete para comemorar a sua volta. Ela é uma excelente cozinheira.
Percebeu que ainda não estava com fome. Não em um dia triste e cinzento como aquele. Lá fora estava tão escuro… tão escuro…
Mas Liliath se orgulhava muito dos seus dotes culinários. Especialmente quando cozinhava para ele. Comeria tudo que ela pusesse em seu prato, decidiu Sheerin. Mesmo que lhe custasse algum esforço. Que ideia estranha, pensou. Sheerin, o grande gourmet, tendo que se forçar a comer!
Seu riso chamou a atenção de Liliath.
— Qual é a graça?
— Eu… hum… acho engraçado ver Athor de volta à pesquisa — disse Sheerin em disparada. — Passou tanto tempo fazendo trabalhos puramente administrativos, satisfeito em sua posição de Imperador da Astronomia! Vou ter que falar logo com Beenay. Que será que está acontecendo no Observatório?
Era o terceiro dia de Siferra 89 desde que voltara à Universidade de Saro, e ainda não parara de chover. Um contraste quase agradável ao clima seco e agressivo da península da Sagikan.
Não via chuva há tanto tempo, que a ideia de que a água podia cair do céu a tomou quase de surpresa.
Em Sagikan, cada gota de água era um tesouro. O uso, do líquido era racionado e sempre que possível a água era reciclada. Agora, ali estava, caindo do céu com se viesse de um imenso reservatório que nunca iria secar. Siferra sentiu vontade de tirar toda a roupa e sair correndo pelo gramado do campus, deixando a água escorrer pelo corpo em uma deliciosa torrente sem fim, removendo os últimos resíduos da areia infernal do deserto.
Os alunos ficariam surpresos. A séria, distante, pouco romântica professora de arqueologia, Siferra 89, correndo nua na chuva! Quase que valia a pena fazer isso, só para ver a cara de surpresa dos estudantes aparecendo em todas as janelas: da universidade para apreciar a cena.
Melhor deixar para lá, pensou Siferra. Não faz o meu gênero.
Além disso, tinha muito que fazer. Não perdera tempo para começar a trabalhar. A maior parte dos artefatos que desenterrara em Beklimot tinham sido despachados em um navio de carga e levariam algumas semanas para chegar. Mas havia mapas para arrumar, esboços para terminar, fotografias de Balik para examinar, amostras de solo para preparar para serem analisadas em laboratório, um milhão de coisas para fazer. Além disso, queria discutir as tabuinhas de Thombo com Mudrin 505, do departamento de paleografia.
As tabuinhas de Thombo! A descoberta das descobertas, o maior achado em um ano e meio de buscas! Pelo menos, esta era a sua opinião. Naturalmente, tudo dependeria do que estivesse escrito nelas. Estava ansiosa para que Mudrin começasse a trabalhar na tradução. As tabuinhas eram, na pior das hipóteses, objetos fascinantes, entretanto, podiam ser muito mais. Se suas suspeitas se concretizassem, elas poderiam revolucionar todo o estudo do mundo pré-histórico. Era por isso que não confiara nos navios cargueiros, e transportara as tabuinhas pessoalmente, na própria bagagem.
Alguém bateu à porta.
— Siferra? Siferra, você está aí?
— Entre, Balik.
O estratigrafo de ombros largos estava ensopado.
— Esta maldita chuva — murmurou, sacudindo-se. Fiquei todo molhado só de vir do quarteirão da Biblioteca Uland até aqui.
— Estou adorando a chuva — disse Siferra. — Espero que não pare tão cedo. Passei meses no deserto, com os olhos sujos de areia o tempo todo, poeira na garganta, morrendo de calor e secura… não, deixe chover, Balik!
— É, mas estou vendo que você não se molhou. É muito mais fácil gostar de chuva quando se está em um lugar abrigado somente observando-a… Brincando de novo com suas tabuinhas, hein?
Ele apontou para as seis grossas tabuinhas de superfície irregular e de barro vermelho que Siferra havia arrumado na escrivaninha em dois grupos de três, as quadradas em uma carreira e as retangulares em outra carreira abaixo.
— Não são lindas? — disse Siferra, exultante. — Não consigo esquecê-las. Tenho a impressão de que se ficar olhando muito tempo, vou acabar compreendendo o que está escrito nelas.
Balik aproximou-se e sacudiu a cabeça.
— Para mim, não passam de arranhões.
— Pare com isso! Já identifiquei distintos padrões de palavras. E não sou nenhuma perita… Está vendo este grupo de seis caracteres? Está repetido ali. E esses três, com os cantos arredondados…
— Já mostrou a Mudrin?
— Ainda não. Pedi a ele para passar aqui daqui a pouco.
— Sabe que andam falando da sua descoberta, não sabe? Das cidades de Thombo, uma por cima da outra?
Siferra olhou para ele, surpresa.
— O quê? Quem…
— Um dos alunos — explicou Balik. — Não sei qual foi. Desconfio de Veloran, mas Eilis acha que foi Sten. Suponho que era inevitável. Você não concorda?
— Pedi-lhes para não dizer nada…
— Claro, mas eles são crianças, Siferra, o mais velho tem dezenove anos, e é sua primeira expedição arqueológica! A expedição descobre uma coisa extraordinária, sete cidades pré-históricas, de que ninguém tinha ouvido falar, uma por cima da outra, a mais velha com milhares de anos de idade…
— São nove cidades, Balik.
— Sete, nove, não faz diferença. E eu acho que são sete — insistiu Balik, com um sorriso.
— Eu sei o que você pensa. E está errado. Mas quem está falando a respeito? No departamento, quero dizer.
— Hilliko. Brangin, também. Ouvi quando conversavam esta manhã, na sala dos professores. Estão muito céticos, é bom que você saiba. Extremamente céticos. Acham impossível que haja uma cidade mais antiga que Beklimot naquela região, quanto mais nove, ou sete, ou seja qual for o número de cidades que você descobriu.
— Eles não viram as fotografias. Não viram os mapas. Não viram as tabuinhas. Não viram nada. E já têm uma opinião formada. — Os olhos de Siferra brilhavam de raiva. — O que é que eles sabem? Algum deles já esteve na península de Sagikan? Algum deles já esteve em Beklimot, mesmo como turista? E têm coragem de pôr em dúvida uma descoberta que ainda não foi publicada, que ainda não foi nem mesmo discutida informalmente dentro do departamento!
— Siferra…
— Sinto vontade de esfolar aqueles dois! E Veloran e Sten, também. Deviam ter mantido a boca fechada! Por que tinham que quebrar o sigilo? Mas eu vou mostrar a eles. Vou chamá-los aqui e descobrir exatamente quem foi que deixou a história vazar. E se um deles pensa que vai conseguir o título de doutor por esta universidade…
— Por favor, Siferra! — protestou Balik. — Você está se aborrecendo à toa.
— À toa! Estragaram tudo! Eu tinha que ser a primeira a…
— Ninguém estragou nada. Tudo vai continuar a ser apenas um boato até você estar preparada para sua exposição preliminar. Quanto a Veloran e Sten, não temos certeza se foi um dos dois, e mesmo que tenha sido, não se esqueça de que você já teve a idade deles.
— É verdade — concordou Siferra. — Três eras geológicas atrás.
— Não diga bobagens. Você é mais moça do que eu, e não me considero nenhum velho.
Siferra fez que sim, com indiferença. Olhou pela janela. De repente, a chuva não parecia agradável. Estava tudo escuro lá fora, opressivamente escuro.
— Mesmo assim, saber que nossa descoberta está sendo contestada, antes mesmo de ser publicada…
— Isso não é de admirar, Siferra. O que encontramos naquela colina vai fazer balançar a vida de muita gente… não só no nosso departamento, mas também nos departamentos de história, filosofia e até mesmo teologia. E pode apostar que eles lutarão até o fim para defender os pontos de vista tradicionais a respeito da história de nossa civilização. Você não faria o mesmo, se alguém aparecesse com uma ideia radical, totalmente em desacordo com tudo em que você sempre acreditou? Seja realista, Siferra. Sabíamos desde o começo que essa coisa daria muito que falar.
— Eu sei. Só que não esperava que acontecesse tão depressa. Ainda nem acabei de desfazer as malas.
— É esse o problema. Você voltou ao trabalho depressa demais. Devia ter descansado um pouco da viagem. Ei, tive uma ideia. Nós dois só começamos a dar aula daqui a duas semanas. Por que não fugimos da chuva e passamos o fim de semana juntos em algum lugar? Que tal ir a Jonglor para ver a Exposição? Ontem eu estava conversando com Sheerin e ele disse-me que está uma verdadeira…
A arqueóloga olhou para Balik, admirada.
— O quê?
— Estou convidando você a passar o fim de semana comigo.
— Isto é algum tipo de proposta amorosa, Balik?
— Você pode considerar assim, se quiser. Que há de tão incrível nisso? Não somos exatamente um par de estranhos. Nós nos conhecemos desde o tempo em que éramos estudantes. Acabamos de passar um ano e meio juntos no deserto.
— Juntos? Estávamos na mesma expedição, mas você tinha a sua tenda e eu, a minha. Nunca houve nada entre nós. E agora, sem mais nem menos…
Balik parecia desapontado.
— Não estou pedindo a você para casar comigo, Siferra. Apenas sugeri uma curta visita à Exposição de Jonglor, cinco ou seis dias, um pouco de sol, um hotel decente em vez de uma tenda no meio do deserto, jantares à luz de velas regados a vinho… — Ele abriu os braços, irritado. — Você está me fazendo sentir como um colegial, Siferra.
— Está agindo como um. Nossa relação sempre foi puramente profissional, Balik. Vamos mantê-la assim, está bem?
Ele abriu a boca para responder, mudou de ideia e ficou olhando para a arqueóloga, de cara amarrada. O silêncio começou a se tornar constrangedor.
A cabeça de Siferra estava latejando. Tudo aquilo era inesperado e desagradável: a notícia de que outros membros do departamento já estavam discutindo a sua descoberta, a tentativa desajeitada de Balik de seduzi-la. Seduzi-la? Bem, pelo menos de criar uma atmosfera romântica. Parecia tão frustrado e surpreso com a sua reação!
Imaginou se teria feito sem querer alguma coisa para encorajá-lo. Não. Não. Era pouco provável. Não tinha nenhum interesse em ir para o norte com Balik, ou a qualquer outro, e beber vinho em restaurantes românticos. Tinha o seu trabalho. Era o bastante. Há mais de vinte anos, desde a juventude, os homens a assediavam, diziam que era bonita, inteligente, fascinante. Devia se sentir grata por isso. Muito melhor do que se a achassem feia e desinteressante. Mas não estava interessada em homens. Nunca havia estado. Não queria estar. Que péssima hora Balik havia escolhido para criar aquele clima de constrangimento entre os dois. Ainda tinham que organizar todo o material recolhido em Beklimot. E tinham que analisá-lo juntos, trabalhando lado a lado…
Alguém bateu na porta. Ela se sentiu imensamente grata pela interrupção.
— Quem é?
— Mudrin 505 — respondeu uma voz trêmula.
— Entre, por favor.
— Já vou indo — disse Balik.
— Não vá. Ele veio para ver as tabuinhas. Elas são suas também.
— Siferra, sinto muito se…
— Esqueça. Esqueça!
Mudrin entrou, caminhando com dificuldade. Era um homem frágil, ressequido, de quase oitenta anos, idade mais do que suficiente para se aposentar, mas que continuava a pertencer ao corpo docente, embora não desse mais aulas, para continuar seus estudos paleográficos. Os olhos verde acinzentados, sempre úmidos depois de uma vida de examinar antigos manuscritos quase ilegíveis, se escondiam atrás de grossos óculos. Entretanto, Siferra sabia que a aparência daqueles olhos era enganadora: eram os olhos mais penetrantes que jamais havia conhecido, pelo menos no que dizia respeito a escritos do passado.
— Então aqui estão as famosas tabuinhas — disse Mudrin. — Desde que você me falou a respeito, não consigo pensar em outra coisa — declarou, mas sem fazer nenhuma menção de examiná-los. — Pode me dizer mais alguma coisa sobre a forma como as encontrou?
— Aqui está a fotografia que Balik tirou do local — disse Siferra, passando-lhe uma ampliação. — A colina de Thombo, o velho depósito de lixo ao sul de Beklimot. Depois que a tempestade de areia passou, foi isso que nós vimos. Fizemos uma escavação que ia daqui até aqui… e depois, até aqui.. e deixamos tudo aberto. Está vendo a linha escura?
— São cinzas? — perguntou Mudrin.
— Exatamente. A cidade inteira deve ter pegado fogo Mais para baixo, podemos ver uma segunda série de alicerces, e uma segunda linha onde o fogo chegou. E se o senhor olhar aqui, e aqui…
Mudrin ficou olhando para a fotografia durante muito tempo.
— Que é que nós temos aqui? Oito ciclos sucessivos de colonização?
— Sete — resmungou Balik.
— Nove, penso eu — corrigiu Siferra, secamente. — Mas concordo que fica muito difícil separar as cidades quando chegamos perto da base da colina. Vamos precisar de análise química e testes radiográficos. É indiscutível, porém, que houve uma série de incêndios, e que os habitantes reconstruíram a cidade depois de cada um deles.
— Neste caso, o lugar deve ser incrivelmente antigo! exclamou Mudrin.
— Tenho a impressão de que foi usado durante pelo menos cinco mil anos. Talvez muito mais. Talvez dez ou quinze mil anos. Não temos maneira de saber até chegarmos ao primeiro nível, e isso terá que esperar até a próxima expedição.
— Cinco mil anos, você disse? Será possível?
— Para construir, reconstruir e reconstruir de novo? Cinco mil anos, no mínimo.
— Mas nenhum outro sítio arqueológico, já escavado em qualquer lugar do mundo, é tão antigo! — protestou Mudrin, com assombro. — A própria cidade de Beklimot tem apenas dois mil anos, não é? E é considerada a cidade mais antiga de que se tem notícia em Kalgash.
— A cidade mais antiga de que se tem notícia — repetiu Siferra. — Mas o que impede que existam outras mais antigas? Muito mais antigas? Mudrin, esta fotografia fala por si mesma. Aqui está um sítio que tem que ser mais antigo que Beklimot. Existem artefatos parecidos com os encontrados em Beklimot no nível mais alto de Thombo, situado muito longe dali! Beklimot deve ser uma cidade relativamente recente, do ponto de vista da história da civilização. A cidade de Thombo, que já era muito antiga antes de Beklimot ser fundada, deve ter pegado fogo e ter sido reconstruída várias vezes, em um intervalo de tempo correspondente a centenas de gerações.
— Um lugar azarado — observou Mudrin. — Perseguido pelos deuses, hein?
— E o que os habitantes finalmente devem ter pensado — disse Balik.
Siferra assentiu.
— Isto mesmo. Devem ter chegado à conclusão de que o lugar era amaldiçoado. Assim, quando a cidade pegou fogo mais uma vez, decidiram mudá-la de lugar e construíram Beklimot. Antes disso, porém, devem ter ocupado Thombo por muito, muito tempo. Conseguimos reconhecer os estilos arquitetônicos das duas cidades mais recentes. Veja, a cidade de cima foi construída no estilo ciclópico de Beklimot e a de baixo no estilo hachurado proto-Beklimot. Mas a terceira cidade para baixo, o que restou dela, não se parece com nada conhecido. A quarta é ainda mais estranha e muito primitiva. Mesmo assim, é sofisticada em comparação com a quinta. Mais abaixo, a mistura é tão grande, que fica quase impossível dizer onde começa uma cidade e termina a outra. Entretanto, cada uma é separada por uma linha cinzenta, ou assim nos parece. E as tabuinhas…
— Sim, as tabuinhas — repetiu Mudrin, ansioso.
— Encontramos este conjunto, as quadradas, no terceiro nível. As retangulares vêm do quinto nível. Não entendo nada do que está escrito, é claro. Não sou especialista no assunto.
— Não seria maravilhoso — interveio Balik — se essas tabuinhas contivessem algum tipo de relato a respeito da destruição e reconstrução das cidades de Thombo, e…
Siferra fuzilou-o com os olhos.
— Seria melhor, Balik, se você se abstivesse de fazer comentários irresponsáveis!
— Desculpe, Siferra — disse ele, em tom glacial. — Faça de conta que eu não disse nada.
Mudrin nem ouviu a discussão. Estava examinando as tabuinhas na mesa de Siferra, com ar de entendido. Afinal, exclamou:
— É espantoso! Absolutamente espantoso!
— Consegue ler o que está escrito aí? — perguntou Siferra.
O velho riu.
— Claro que não! Que esperava, um milagre? Mas consigo distinguir um grupo de palavras aqui.
— Eu também — disse Siferra.
— E chego quase a reconhecer letras. Não nas tabuinhas mais antigas. Nessas, os símbolos são totalmente desconhecidos. Provavelmente se tratava de uma escrita silábica, o número de caracteres diferentes é muito grande para uma escrita alfabética. Mas parece que as tabuinhas quadradas foram escritas em uma forma muito primitiva da escrita de Beklimot. Está vendo este símbolo aqui? Aposto que é um quhas. E isto parece ser uma forma distorcida da letra tifjak. Sim, é um tifjak, não acha? Preciso trabalhar neste material, Siferra. Usando meu próprio equipamento de iluminação, minhas câmeras, minhas lupas. Posso levar as tabuinhas?
— Levá-las? — exclamou Siferra, como se tivesse pedido seus dedos emprestados.
— É a única forma de decifrá-las.
— Acha que tem condição de decifrá-las? — perguntou Balik.
— Não sei. Se este caractere é um tifjak e este aqui um quhas, provavelmente conseguirei encontrar outras letras semelhantes às que existem no alfabeto de Beklimot e preparar pelo menos uma transliteração. Isso não garante, porém, que eu seja capaz de compreender o que está escrito. E duvido que seja capaz de conseguir alguma coisa com as tabuinhas retangulares. Mas deixe-me tentar, Siferra. Deixe-me tentar.
— Está bem. Tome.
Ela recolheu as tabuinhas com todo o cuidado e colocou-as na caixa em que tinham vindo de Sagikan. Era penoso separar-se delas, mas Mudrin tinha razão. Não podia fazer nada sem examiná-las em seu laboratório, só com uma rápida olhada. Observou, com tristeza, o velho paleógrafo se retirar, apertando contra o peito o precioso material. Ela e Balik estavam sozinhos de novo.
— Siferra… a respeito do que eu lhe disse…
— Não lhe pedi para esquecer? Eu já me esqueci. Agora, se me permite, tenho muito que fazer.
— Como foi que ele reagiu? — perguntou Theremon. — Melhor do que você esperava, não foi?
— Maravilhosamente — respondeu Beenay. Estavam no terraço do Clube Seis Sóis. A chuva tinha parado e fazia uma noite bonita, com a estranha claridade da atmosfera que sempre vinha depois de um período prolongado de chuva. Tano e Sitha estavam a oeste, projetando sua fria luz branca com intensidade maior do que a normal, e Dovim do lado oposto do céu, brilhando como um rubi. — Só ficou zangado quando eu disse que me sentira tentado a ocultar minha descoberta para não ferir seus sentimentos. Aí ele me passou uma descompostura com toda razão. Mas o mais engraçado foi… Garçom! Garçom! Um Tano Especial para mim, por favor! E um para o meu amigo. Pode ser duplo!
— Você está se tornando um beberrão, sabia? — observou Theremon.
Beenay deu de ombros.
— Só bebo quando estou aqui. Há alguma coisa neste terraço, na vista da cidade, na atmosfera do lugar…
— É assim que começa. O vício vem aos poucos. Você desenvolve associações agradáveis entre a bebida e um certo ambiente. Depois, resolve beber um drinque ou dois em outro lugar. Logo passa a ser um drinque ou três. Aí…
— Theremon! Você está parecendo um Apóstolo do Fogo! Eles acham que beber é pecado, não acham?
— Eles acham que tudo é pecado. Mas, no caso da bebida, têm toda razão. É por isso que beber é tão gostoso, não é, amigo? — Theremon riu. — Você estava falando do Dr. Athor.
— É mesmo. Aconteceu uma coisa engraçada. Você se lembra daquela sua ideia de que algum fator desconhecido poderia estar modificando a órbita de Kalgash, tornando-a diferente da órbita prevista?
— Claro que eu me lembro. Um gigante invisível. Ou o bafo de um dragão.
— Pois o Dr. Athor pensa igual a você!
— Ele acha que existe um gigante no céu?
Beenay deu uma gargalhada.
— Claro que não! Mas ele atribui a diferença a algum fator desconhecido. Um sol apagado, ou um outro astro localizado em uma posição tal que não podemos vê-lo, mas que mesmo assim exerce uma força gravitacional sobre Kalgash…
— Não acha essa explicação um pouco forçada? — perguntou Theremon.
— Acho sim. Mas o Dr. Athor me fez recordar a velha máxima da Espada de Thargola. É uma espada que usamos, metaforicamente, é claro, para eliminar as premissas mais complexas, quando estamos tentando decidir que hipótese devemos adotar. É mais simples sair à procura de um astro desconhecido do que criar uma nova Teoria da Gravitação Universal. Assim…
— Um sol apagado? Mas isto não é uma contradição? Os sóis são fontes de luz. Se um astro não emite luz, como pode ser um sol?
— Esta é apenas uma das possibilidades sugeridas pelo Dr. Athor. Não é necessariamente a que ele leva mais a sério. O que temos feito nos últimos dias é brincar com todo o tipo de ideias para ver se encontramos alguma que explique os… Olhe, lá está Sheerin! — Beenay acenou para o psicólogo, que acabara de entrar no clube. — Sheerin ! Sheerin! Venha tomar um drinque conosco!
Sheerin aproximou-se dos dois, passando com cuidado pela estreita entrada.
— Arranjando novos vícios, Beenay?
— Nem tanto. Mas Theremon me apresentou ao Tano Especial e acho que foi amor à primeira vista. Você conhece Theremon, não conhece? Ele escreve para a Crônica.
— Acho que nunca fomos apresentados — disse Sheerin, estendendo a mão para o repórter. — Claro que conheço você de nome. Sou tio de Raissta 717.
— E professor de psicologia — disse Theremon. — Esteve há pouco tempo na Exposição de Jonglor, não esteve?
Sheerin pareceu surpreso.
— Você sabe de tudo que acontece?
— Procuro saber. — O garçom estava de volta. — Que vai querer? Um Tano Especial?
— É forte demais para mim — disse Sheerin. — E um pouco doce demais, também. Por acaso vocês têm neltigir?
— O conhaque de Jonglor? Vou ter que verificar. Como vai querer, se eu conseguir encontrar?
— Puro, por favor — disse Sheerin. E voltando-se para Theremon e Beenay: — Eu me acostumei a beber neltigir quando estive no norte. A comida em Jonglor é horrível, mas pelo menos eles têm um conhaque decente.
— Ouvi dizer que estão tendo problemas na Exposição — disse Theremon. — Alguma coisa no parque de diversões… um passeio no escuro que estava deixando as pessoas malucas…
— É o Túnel do Mistério. Foi por isso que eu estive lá. Os administradores do parque me chamaram para opinar como perito.
Theremon inclinou-se para a frente.
— É verdade que algumas pessoas morreram de choque naquele Túnel e mesmo assim ele continuou funcionando?
— Todo mundo me pergunta isso — replicou Sheerin. — Houve algumas mortes, sim. Isto, porém, só serviu para tornar o Túnel ainda mais popular. As pessoas insistiam em correr o risco. Algumas ficaram muito perturbadas. Eu mesmo resolvi fazer o passeio para ver como era — disse, estremecendo. — Seja como for, agora está parado. Eu disse a eles que se não fechassem o brinquedo, teriam que pagar milhões de créditos de indenização. As pessoas simplesmente não podem suportar a Escuridão por tanto tempo. Eles acabaram entendendo.
— Encontrei o neltigir que o senhor pediu — interrompeu o garçom, colocando um copo de conhaque na mesa, à frente de Sheerin. — Mas só temos uma garrafa, de modo que é melhor o senhor ir com calma.
O psicólogo fez que sim com a cabeça, pegou o copo e bebeu metade do conteúdo de um só gole, antes que o garçom se afastasse da mesa.
— Eu disse ao senhor que…
Sheerin sorriu.
— Ouvi o que você disse. Vou tomar o segundo copo mais devagar. — Voltou-se para Beenay. — Soube que o Observatório está em polvorosa. Liliath me contou. Mas ela não soube me explicar direito o que está acontecendo. Tem a ver com uma nova teoria, se não me engano…
— Theremon e eu estávamos conversando justamente sobre isso — disse Beenay, sorrindo. — Não é uma nova teoria, não. São resultados experimentais que não estão de acordo com uma teoria antiga. Eu estava calculando a órbita de Kalgash e…
Sheerin ouviu a história com surpresa crescente.
— A Teoria da Gravitação Universal está errada? — exclamou, quando Beenay chegou na metade. — Puxa vida! Isso quer dizer que seu largar o meu copo, ele pode sair flutuando? Nesse caso, é melhor beber o resto do meu neltigir enquanto posso!
Foi o que fez. Beenay riu.
— A teoria ainda está nos livros. O que estamos tentando fazer, ou por outra, o que o Dr. Athor está tentando fazer, como chefe do projeto, é descobrir uma explicação matemática para o fato de que nossos resultados experimentais não concordam com as previsões teóricas.
— Se não me engano, isto se chama cozinhar os dados acrescentou Theremon.
— A mim, parece suspeito — observou Sheerin . — Quando você não gosta dos dados experimentais, trata de modificá-los, não é, Beenay? O ajuste tem que ser perfeito, por bem ou por mal?
— Não é exatamente isto que…
— Admita! Admita! — Sheerin deu uma gargalhada. Garçom! Mais um neltigir! E mais um Tano Especial para meu jovem amigo aqui! Theremon, posso pedir um para você também?
— Por favor.
— Estou desiludido com você, Beenay — disse Sheerin , no mesmo tom de brincadeira. — Pensei que nós psicólogos éramos os únicos a fazer os dados coincidirem com as teorias e chamar o resultado de “ciência”. Isto parece mais coisa dos Apóstolos do Fogo!
— Sheerin! Pare!
— Os Apóstolos também se consideram cientistas — observou Theremon. Beenay e Sheerin olharam para ele. — Na semana passada, antes da chuva começar, entrevistei um dos chefes da organização. Tinha esperança de falar com Mondior, mas quem me recebeu foi um tal de Folimun 66, uma espécie de relações públicas, um sujeito muito melífluo, muito inteligente, muito prestativo. Passou meia hora explicando-me que os Apóstolos possuem provas científicas de que no dia 19 de Theptar do ano que vem os sóis vão apagar, nosso planeta vai ser mergulhado na Escuridão e todos vão ficar malucos.
— O mundo inteiro vai se transformar em um grande Túnel do Mistério, não é? — disse Sheerin, em tom jovial. — Não temos hospícios suficientes para toda a população, você sabe. Nem psiquiatras suficientes para cuidar de todos. Além disso, os psiquiatras vão ficar malucos, também.
— Já não são? — perguntou Beenay.
— Isto é verdade — concordou Sheerin.
— O pior não é a loucura — disse Theremon. — De acordo com Folimun, o céu vai ficar cheio de coisas chamadas Estrelas, que vão despejar fogo sobre nós, incendiando tudo. Aqui estaremos, um bando de loucos, vagando sem rumo em nossas cidades em chamas. Ainda bem que tudo isso é apenas um pesadelo de Mondior.
— E se não for? — disse Sheerin, subitamente sério. Seu rosto redondo assumiu uma expressão pensativa. — E se houver um fundo de verdade no que dizem os Apóstolos?
— Que ideia apavorante — disse Beenay. — Acho que exige mais um drinque.
— Você ainda não terminou o último — observou Sheerin, olhando para o copo do jovem astrônomo.
— E daí? Sua ideia exige mais um drinque depois que este acabar. Garçom! Garçom!
Athor 77 sentiu a fadiga tomar conta do seu corpo. O diretor do Observatório perdera toda a noção do tempo. Havia realmente trabalhado dezesseis horas sem parar?
Na véspera, tinha sido a mesma coisa. E no dia anterior…
Pelo menos, era disso que Nyilda se queixava. Tinha acabado de conversar com ela. O rosto da esposa na tela refletia a sua preocupação.
— Não vem para casa descansar, Athor? Está trabalhando praticamente sem parar.
— Estou?
— Você não é mais nenhuma criança.
— Mas ainda me resta muita energia, Nyilda. E este trabalho é apaixonante. Depois de dez anos assinando relatórios de pesquisa e lendo artigos escritos por outras pessoas, estou fazendo de novo aquilo que gosto. É muito bom.
Ela pareceu ainda mais preocupada.
— Na sua idade, você não precisa mais fazer pesquisa. Sua reputação está garantida, Athor!
— Está?
— Seu nome tem lugar garantido na história da astronomia.
— Como herói ou como vilão? — replicou, fatal.
— Athor, não entendo o que você…
— Calma, Nyilda. Eu não vou morrer de tanto trabalhar, acredite. Estou me sentindo vinte anos mais jovem. E é um trabalho que só eu posso fazer. Se isso parece pretensão de minha parte, que seja, mas é absolutamente essencial que eu…
Nyilda suspirou.
— Está bem. Você é quem sabe. Mas não exagere, Athor. É tudo que eu peço.
Será que estava exagerando?, perguntou-se Athor. Sim, sim, claro que estava. Não havia outro jeito. Em questões como aquela, não havia meias-medidas. Tinha que se dedicar de corpo e alma ao problema. Quando estava desenvolvendo a Teoria da Gravitação Universal, trabalhara dezesseis, dezoito, vinte horas por dia durante semanas a fio, dormindo apenas quando o sono era inevitável, limitando esse sono a curtos cochilos e acordando ansioso para trabalhar, com a mente ainda borbulhando com as equações que deixara inacabadas alguns momentos antes.
Mas, na época, tinha apenas 35 anos. Agora, estava chegando aos 70. Era impossível ignorar os efeitos da idade. Sua cabeça doía, a garganta estava seca e sentia uma pressão no peito. Embora fizesse calor no escritório, as pontas dos seus dedos estavam geladas. Os joelhos estavam latejando. Todo o seu corpo protestava contra os excessos a que estava sendo submetido. Vou ficar só mais um pouquinho, prometeu a si mesmo, e depois irei para casa.
Só mais um pouquinho. Oitavo Postulado…
— Professor?
— Quem é? — perguntou.
Mas a sua voz devia ter transformado a pergunta em uma espécie de rosnado feroz, porque quando levantou a cabeça, Yimot estava na porta, fazendo uma série de estranhas contorções, como se estivesse pisando em brasas. Havia medo nos olhos do rapaz. A verdade era que Yimot sempre ficava nervoso na presença do diretor do Observatório. Todos ficavam, não apenas os estudantes. Athor já estava acostumado com isso. Aquilo, porém, passava das medidas. Yimot estava olhando para ele com uma mistura de terror e perplexidade. O jovem estudante lutou visivelmente para recuperar a voz e disse, com dificuldade:
— Aqui estão os cálculos que o senhor queria.
— OH. Sim. Sim. Passe para cá.
A mão de Athor tremia violentamente quando ele a estendeu para pegar as listagens. Os dois olharam para ela, fascinados. Os dedos longos e ossudos estavam mortalmente pálidos e se agitavam de uma forma que nem mesmo Yimot, conhecido pela violência de suas reações nervosas, conseguiria igualar. Athor fez força para controlar os movimentos da mão, mas era como se estivesse tentando fazer Onos inverter seu movimento no céu. Tirou com dificuldade os papéis da mão de Yimot e colocou-os sobre a mesa.
— Posso trazer alguma coisa para o senhor? — perguntou Yimot.
— Um remédio? Como se atreve a…
— Estava pensando em alguma coisa para comer, ou talvez um refrigerante — disse Yimot, com um fio de voz. Ele recuou devagar, como se esperasse que Athor soltasse um rugido e pulasse em seu pescoço.
— Ah! Entendo. Não, estou muito bem, Yimot. Muito bem!
— Sim, senhor.
O estudante saiu. Athor fechou os olhos por um momento, respirou fundo três ou quatro vezes e procurou acalmar-se. Estava quase terminando. Aqueles cálculos que havia encomendado a Yimot provavelmente eram a última prova de que precisava. A questão agora era saber se o trabalho iria acabar com ele antes que tivesse tempo de acabar o trabalho.
Olhou para os cálculos de Yimot.
Diante de sua mesa havia três telas. A da esquerda mostrava a órbita de Kalgash calculada de acordo com a Teoria da Gravitação Universal, desenhada em vermelho.
Na tela da direita, em amarelo, estava a órbita que Beenay havia levantado com o auxilio do novo computador da universidade, usando as observações mais recentes da posição de Kalgash. Na tela do meio, as duas órbitas tinham sido superpostas. Nos últimos cinco dias, Athor havia testado várias hipóteses para explicar a diferença entre a órbita teórica e a experimental, e podia colocar qualquer uma dessas sete hipóteses para a tela do meio com o simples apertar de uma tecla.
O problema era que nenhuma das sete fazia sentido, e ele sabia disso. Todas continham um defeito fatal: uma suposição que estava ali não porque fosse natural, mas porque era necessária para que a teoria correspondesse às observações. Nenhuma delas podia ser provada, nenhuma delas podia ser confirmada. Era como se em cada caso ele simplesmente tivesse decidido, em algum ponto da dedução, que uma fada madrinha entrasse em ação e ajustasse as interações gravitacionais para anular a diferença. Na verdade, era exatamente o que Athor estava procurando.
Mas tinha que ser uma fada de verdade. Estava na hora do oitavo postulado…
Começou a digitar os cálculos de Yimot. Várias vezes, os dedos trêmulos o traíram, e ele cometeu um erro. Sua mente, porém, ainda era lúcida o suficiente para informá-lo, na mesma hora, de que apertara a tecla errada, e ele voltou atrás e corrigiu o engano. Duas vezes, enquanto trabalhava, quase perdeu os sentidos com a intensidade do esforço. Entretanto, forçou-se a prosseguir.
Você é a única pessoa no mundo capaz de resolver este problema, disse para si mesmo enquanto trabalhava. Por isso, não pode desistir.
Talvez estivesse procedendo como um tolo vaidoso ou mesmo um pouco insano. Talvez não fosse verdade. Entretanto, no estado de exaustão em que se encontrava, a única coisa que lhe dava forças para prosseguir era se considerar insubstituível. Era o único que tinha na cabeça todos os conceitos básicos do projeto. Tinha que prosseguir até conseguir fechar o último elo da cadeia. Até…
Pronto. Entrara no computador o último dos números de Yimot. Athor apertou a tecla que permitia visualizar ao mesmo tempo as duas órbitas na tela do meio e apertou a outra que integrava o novo número aos padrões existentes.
A elipse vermelha que representava a órbita teórica original, sofreu ondulações e mudanças e desapareceu da tela. O mesmo aconteceu com a elipse amarela da órbita observada. Agora havia uma única curva na tela, uma elipse laranja, gerada pela superposição exata das duas curvas, até o último algarismo significativo.
Athor soltou uma exclamação. Examinou a tela por alguns momentos; depois, fechou os olhos e descansou a cabeça no tampo da mesa. A elipse laranja brilhava como um anel de fogo nas suas pálpebras fechadas.
Sentia uma curiosa mistura de triunfo e apreensão. Conseguira uma resposta agora. Tinha certeza de que a hipótese encontrada resistiria aos testes mais rigorosos. Afinal de contas, a Teoria da Gravitação Universal estava certa A cadeia de deduções que o tornara famoso continuava de pé. Ao mesmo tempo, porém, sabia agora que o modelo do sistema solar com o qual havia trabalhado todo esse tempo estava incompleto. O fator desconhecido que estivera buscando, o gigante invisível, o dragão no céu, era real. Athor achava isso profundamente desagradável, embora salvasse sua teoria. Há muitos anos se convencera de que compreendia perfeitamente o ritmo dos céus; agora tinha consciência de que esse conhecimento era imperfeito, de que existiam coisas estranhas no universo, de que as coisas não eram exatamente como pensava que fossem. Era difícil, na sua idade, aceitar isso.
Depois de algum tempo, Athor levantou a cabeça. A tela continuava igual. Apertou algumas teclas e nada mudou. Via apenas uma órbita, não duas.
Muito bem, disse para si próprio. Então o universo não é exatamente como você pensava. É melhor você tratar de reorganizar seus pensamentos. Porque certamente não pode reorganizar o universo.
— Yimot! — chamou. — Faro! Beenay! Venham todos!
O pequeno gordo Faro foi o primeiro a chegar, seguido de perto por Yimot e o resto do departamento de astronomia: Beenay, Thilanda, Klet, Simbron e outros. Eles se aglomeraram na porta do escritório. Athor percebeu pela expressão de surpresa no rosto dos auxiliares que devia estar com um aspecto assustador, desgrenhado e com a barba por fazer, os cabelos brancos em desalinho, o rosto pálido, com toda a aparência de um velho à beira de um colapso.
Era importante dissipar sem demora os temores de sua equipe. Não era hora para melodramas. Disse para eles, em tom neutro:
— Sim, estou cansado e sei disso. Provavelmente estou com um aspecto horrível. Mas acabei encontrando alguma coisa que funciona.
— A hipótese da lente gravitacional? — quis saber Beenay.
— A hipótese da lente gravitacional não levou a nada respondeu Athor, friamente. — O mesmo se aplica ao sol apagado, à dobra no espaço, à zona de massa negativa e a outras ideias com que estivemos brincando a semana inteira. São todas ideias muito interessantes, mas que não resistem a uma análise mais acurada. Entretanto, encontrei uma que sobreviveu a todos os testes.
Os olhos dos assistentes se arregalaram.
Voltando-se para o terminal, começou de novo a digitar os parâmetros do Oitavo Postulado. Enquanto trabalhava, seu cansaço se dissipou: desta vez, não entrou com nenhum número errado. A cabeça tinha parado de doer. Estava momentaneamente imune à fadiga.
— O que estamos supondo — disse — é que existe um corpo planetário não-luminoso semelhante a Kalgash, que está em órbita, não em torno de Onos, mas em torno de Kalgash. Esse corpo possui uma massa considerável, da mesma ordem de grandeza que a massa de Kalgash, e suficiente para exercer uma força gravitacional sobre nosso planeta capaz de explicar as perturbações descobertas por Beenay.
Athor apertou uma tecla e um diagrama do sistema solar apareceu na tela do terminal: os seis sóis, Kalgash e o suposto satélite de Kalgash. O velho professor olhou para os assistentes. Estavam todos se entreolhando, nervosos. Embora tivessem metade da sua idade, ou menos, deviam estar encontrando tanta dificuldade quanto ele para aceitar a ideia de que havia um outro astro no universo de cuja existência jamais alguém havia suspeitado. Ou então estavam achando que tudo não passava de devaneios de uma mente senil, que, de algum modo, havia deslizado em erros nos cálculos.
— Os dados que apóiam o Oitavo Postulado estão corretos — disse Athor. — E o postulado resistiu a todos os testes que consegui imaginar.
Olhou para eles com ar de desafio, como que para lembrar-lhes que era o mesmo Athor 77 que legara ao mundo a Teoria da Gravitação Universal e que ainda se encontrava no perfeito domínio de suas faculdades.
— Professor, por que não conseguimos observar este satélite? — perguntou Beenay, timidamente.
— É fácil explicar — respondeu Athor. — Como Kalgash, este astro não tem luz própria. Se supusermos que sua superfície contém rochas azuladas, uma hipótese geologicamente plausível, a luz refletida por ele ocuparia uma posição tal no espectro luminoso que o brilho eterno dos seis sóis, combinado com as propriedades de nossa atmosfera, o tornaria totalmente invisível. Em um céu perpetuamente iluminado como o nosso, seria impossível observá-lo.
— Contanto que este satélite gire em torno do nosso planeta a uma distância muito grande, não é mesmo, professor? — disse Faro.
— Isso mesmo. — Athor apertou outra tecla. — Aqui está uma vista mais ampliada. Como podem ver, nosso satélite desconhecido e invisível descreve uma enorme elipse que o leva a enormes distâncias de Kalgash. Não tão grandes que não possamos detectar os seus efeitos gravitacionais, mas suficientes para nos impedir de observá-lo a olho nu e tornar improvável sua observação ao telescópio.
— Agora, que sabemos que ele existe, podemos tentar observá-lo no telescópio — disse Thilanda 191, cuja especialidade era a astrofotografia.
— Claro que vamos fazer isso — disse Athor. Estavam começado a aceitar a ideia, pensou. Todos eles. Conhecia-os suficientemente bem para saber que o estavam levando a sério. — Se bem que a busca pode ser mais difícil do que vocês pensam. Vai ser como procurar uma agulha no palheiro. Mesmo assim, vale a pena tentarmos.
— Professor, eu tenho uma pergunta — disse Beenay.
— Pode falar.
— Se a órbita é tão excêntrica como o senhor supõe, e se este seu satélite, se este… este Kalgash Dois, se é que podemos chamá-lo assim… se Kalgash Dois está muito distante de nós em certos trechos de sua órbita, é evidente que em outros trechos da órbita estará muito mais próximo. Existe uma variação, mesmo na mais perfeita órbita, assim, no caso de órbitas excêntricas, como as deste satélite, é provável que exista uma grande diferença entre os pontos de maior e menor aproximação.
— Isso me parece lógico — concordou Athor.
— Nesse caso, professor — prosseguiu Beenay -, se supusermos que Kalgash Dois tem estado tão afastado de nós durante todo o período da ciência astronômica moderna que não fomos capazes de detectá-lo, a não ser por seus efeitos gravitacionais, não concorda que é provável que ele já tenha passado pelo ponto de máximo afastamento? Que, no momento, ele esteja se aproximando de nosso planeta?
— Não necessariamente — protestou Yimot, agitando os braços. — Não sabemos em que ponto da órbita ele se encontra no momento, nem quanto tempo leva para completar uma volta em torno de Kalgash. Uma órbita pode durar dez mil anos. Nesse caso, talvez Kalgash Dois ainda esteja se afastando de nós, depois de uma aproximação nos tempos pré-históricos que não deixou registros.
— Pode ser — admitiu Beenay. — A verdade é que não sabemos se está indo ou vindo. Não ainda.
— Mas podemos tentar descobrir — sugeriu Faro. — Thilanda está certa. Embora os números tenham sido checados, o que temos a fazer é observá-lo no telescópio. Depois disso, poderemos calcular sua órbita.
— Mesmo que seja impossível observá-lo, podemos calcular sua órbita pela perturbação que está causando na nossa — declarou Klet, que era o melhor matemático do departamento.
— É verdade — concordou Simbron, a cosmógrafa. Também podemos verificar se está se aproximando ou se afastando de nós. Puxa! E se estiver se aproximando? Seria um acontecimento incrível! Um astro sem luz própria, passando entre nós e os sóis! Talvez ocultando a luz de alguns deles por um par de horas!
— Como seria estranho! — cismou Beenay. — Acho que poderíamos chamar esse fenômeno de eclipse. Você sabe: o efeito visual que ocorre quando um objeto se coloca entre um objeto e o observador. Mas poderia isto acontecer? Os sóis são tão grandes… como Kalgash Dois ocultaria um deles?
— Bastaria que passasse muito perto de nós — argumentou Faro. — Ora, posso imaginar uma situação em que…
— Isso, imagine todas as situações possíveis, por que não? — interveio Athor, interrompendo Faro de forma tão abrupta que todos se voltaram para olhar para ele. — Brinquem com a ideia, todos vocês. Imaginem isso e aquilo, e vejam o que acontece.
De repente, não agüentou mais ficar sentado. Tinha que sair dali.
A excitação que vinha sentindo desde que a última peça do quebra-cabeça se encaixara no lugar tinha desaparecido bruscamente. Tudo que sentia era um grande cansaço, como se tivesse mil anos de idade. A dor nas costas era quase insuportável. Sabia que seu corpo estava no limite da resistência. Era hora de deixar aos mais moços a tarefa de completar o trabalho.
Levantando-se da cadeira, Athor deu um passo em direção ao meio da sala, cambaleou, aprumou-se e caminhou devagar, com dignidade, em direção à porta, passando pelo meio dos seus discípulos.
— Vou para casa — declarou. — Preciso dormir um pouco.
— Quer dizer que a cidade foi destruída nove vezes seguidas, Siferra? — observou Beenay, surpreso. — E eles a reconstruíram nove vezes?
— Meu colega Balik acha que só existem as ruínas de sete cidades enterradas na colina de Thombo — respondeu a arqueóloga. — E pode ser que tenha razão. Nos níveis mais baixos, está tudo misturado. Mas sete cidades, nove cidades… seja qual for o número, a ideia central não muda. Olhe para estes mapas. São baseados nas nossas escavações. Naturalmente o que fizemos foi apenas uma sondagem preliminar, um corte rápido em toda a colina, deixando o trabalho detalhado para a próxima expedição. Quando descobrimos o que havia na colina, estava quase na hora de voltar para a civilização. Mas estes mapas lhe darão uma ideia. Não estou aborrecendo você, estou? Está realmente interessado, não está, Beenay?
— Estou fascinado. Acha que estou tão envolvido com a astronomia que não dou valor às outras disciplinas? Além disso, a arqueologia e a astronomia às vezes se complementam. Aprendemos muita coisa a respeito dos movimentos dos sóis estudando os monumentos astronômicos que vocês desenterraram aqui e ali. Deixe-me ver os mapas.
Estavam no escritório de Siferra. Ela havia pedido a Beenay para ir até lá, alegando que gostaria de discutir com ele um problema inesperado que surgira em sua pesquisa. Beenay ficara admirado, pois, apesar do que acabara de dizer, não via como um astrônomo pudesse ajudar uma arqueóloga em seu trabalho. Por outro lado, estava satisfeito por ter a oportunidade de se encontrar com Siferra.
Os dois tinham se conhecido há cinco anos, quando trabalhavam em uma comissão de professores, discutindo a ampliação da biblioteca da universidade. Embora Siferra passasse muito tempo fora da cidade, fazendo trabalho de campo, ela e Beenay almoçavam juntos de vez em quando. Ele a achava combativa, muito inteligente e dotada de um senso crítico aguçado, que, por alguma razão, o fascinava. Não sabia o que Siferra via nele: talvez apenas um rapaz intelectualmente estimulante, que não estava envolvido nas disputas e rivalidades mesquinhas de sua profissão e aparentemente não se sentia atraído por ela como mulher.
Siferra desenrolou os mapas, grandes folhas de papelão nas quais complexos diagramas tinham sido desenhados com capricho a lápis. Ela e Beenay se inclinaram para observá-los de perto.
Beenay dizia a verdade ao se declarar interessado por arqueologia. Desde os tempos de menino, gostava de ler as narrativas dos grandes exploradores da antiguidade, homens como Marpin, SheIbik e, naturalmente, Galdo 221. Achava o passado remoto quase tão fascinante quando as vastidões remotas do espaço. A companheira oficial, Raissta, não via com bons olhos sua amizade com Siferra. Já havia insinuado várias vezes que o que o atraía era a própria Siferra, e não a arqueologia. Mas Beenay considerava absurdo o ciúme de Raissta. Claro que Siferra era uma mulher atraente (seria um absurdo negar o óbvio), mas não se interessava por homens e todo o campus sabia disso. Além disso, era uns dez anos mais velha do que Beenay. Na verdade, o rapaz jamais pensara nela em termos românticos.
— O que temos aqui, em primeiro lugar, é uma secção reta de toda a colina — disse Siferra. — Procurei mostrar, de forma esquemática, a divisão em camadas. A cidade mais recente é a de cima, naturalmente. É caracterizada por grossas paredes de pedra, o que chamamos de estilo ciclópico de arquitetura, característico da cultura de Beklimot em seu período maduro de desenvolvimento. Esta linha aqui, no meio das paredes ciclópicas, representa uma camada de restos carbonizados. Os indícios são de um gigantesco incêndio, que deve ter destruído toda a cidade. Abaixo das paredes ciclópicas, podemos ver a cidade seguinte.
— Que foi construída em um estilo diferente.
— Isso mesmo. Está vendo a forma como desenhei as pedras das paredes? É o chamado estilo hachurado, característico da cultura primitiva de Beklimot, ou talvez da cultura anterior à que construiu Beklimot. Os dois estilos podem ser encontrados nas ruínas de Beklimot, que circundam a colina de Thombo. As ruínas principais são no estilo ciclópico, mas aqui e ali podemos encontrar algumas estruturas no estilo hachurado, que chamamos de proto-Beklimot. Agora olhe aqui, exatamente entre a cidade construída no estilo hachurado e as ruínas ciclópicas acima.
— Outra linha preta? — disse Beenay.
— Outra linha preta. O que temos nesta colina é como um sanduíche de várias camadas: uma camada de construções, uma camada de cinzas, outra camada de construções, outra camada de cinzas. Minha interpretação é a seguinte: durante a época em que a cidade no estilo hachurado foi construída, houve um incêndio que devastou boa parte da península de Sagikan e fez com que a cidade de Thombo e outras cidades próximas fossem abandonadas. Mais tarde, quando os habitantes voltaram e iniciaram a tarefa de reconstrução, usaram um estilo diferente, mais elaborado, que chamamos de estilo ciclópico por causa das grandes pedras usadas nas paredes. Mais tarde, porém, houve outro incêndio que destruiu a cidade ciclópica. Nessa ocasião, os habitantes desistiram de construir cidades na colina de Thombo e mudaram-se para uma localidade próxima, que chamamos Beklimot. Durante muito tempo, pensamos que Beklimot fosse a primeira cidade realmente humana, o resultado da evolução de uma raça que havia construído cidades menores, no estilo hachurado, nas vizinhanças. O que a descoberta de Thombo nos revela é que houve pelo menos uma cidade ciclópica importante na região, antes mesmo de Beklimot ser construída.
— E a cidade de Beklimot não mostra nenhum sinal de incêndio? — perguntou Beenay.
— Não. Isso provavelmente quer dizer que ainda não existia quando a cidade mais recente da colina de Thombo foi destruída. Mais tarde, a cultura de Beklimot entrou em decadência, e Beklimot foi abandonada, mas isso aconteceu por outros motivos, especialmente fatores climáticos. O fogo não teve nada a ver com isso. Beklimot foi abandonada há cerca de mil anos, mas o incêndio que destruiu a última cidade de Thombo parece ter ocorrido muito antes. De acordo com minhas estimativas, mil anos antes. Quando analisarmos as amostras de carvão pela técnica do radio carbono, teremos números mais precisos.
— E a civilização que construiu a cidade no estilo hachurado? É muito antiga?
— A crença arqueológica ortodoxa diz que as ruínas no estilo hachurado que encontramos em sítios esparsos na península de Sagikan são apenas algumas gerações mais antigas do que as de Beklimot. Depois da descoberta de Thombo, não penso mais assim. Em minha opinião, a cidade construída no estilo hachurado é dois mil anos mais antiga que a cidade ciclópica.
— Dois mil… ? E está dizendo que encontrou cidades ainda mais antigas?
— Veja o mapa — disse Siferra. — Aqui está a cidade número três… um estilo de arquitetura totalmente desconhecido, bem diferente do estilo hachurado. Depois, outra linha preta. A cidade número quatro. Outra linha preta. A cidade número cinco. Outra linha preta. Depois, as cidades número seis, sete, oito e nove… se bem que, de acordo com Balik, as duas últimas não existem a não ser na minha imaginação.
— E todas elas destruídas por um grande incêndio! Isso é incrível! Um ciclo de destruição e reconstrução no mesmo lugar.
— O que é ainda mais interessante — observou Siferra em tom sombrio -, é que cada uma dessas cidades parece ter prosperado por um período de tempo semelhante antes de ser destruída pelo fogo. As camadas de ruínas têm todas praticamente a mesma espessura. Ainda não temos os resultados dos testes de laboratório, mas acho que minhas estimativas iniciais não podem estar muito erradas. E as avaliações de Balik são parecidas com as minhas. A menos que estejamos totalmente enganados, estamos diante de pelo menos quatorze mil anos da pré-história. Durante esses quatorze mil anos, a colina de Thombo foi periodicamente varrida por incêndios gigantescos, que arrasaram totalmente as cidades que os habitantes da área haviam construído. Mais ainda: esses incêndios ocorreram com incrível regularidade, um a cada dois mil anos!
— O quê?
Beenay sentiu um arrepio na espinha. Estava chegando a uma conclusão assustadora.
— Espere — disse Siferra. — Ainda não terminei. Abriu uma gaveta e tirou um maço de fotografias.
— Essas são fotografias das tabuinhas de Thombo. Mudrin 505 (o paleógrafo, você sabe) está com os originais. Ele está tentando decifrá-las. São feitas de barro cozido. Encontramos estas três no Terceiro Nível, e estas no Quinto Nível. Mudrin não conseguiu nada com as mais antigas, mas está fazendo algum progresso com as do Terceiro Nível. Parece que foram escritas em uma versão primitiva do alfabeto de Beklimot. Até agora, o que ele pode dizer é que falam da destruição da cidade pelo fogo. Dizem que foi provocada pelos deuses, que periodicamente são obrigados a punir a humanidade por seus pecados.
— Periodicamente?
— Isso mesmo. Está começando a compreender?
— Os Apóstolos do Fogo! Meu Deus, Siferra, que significa isso?
— É o que tenho me perguntado desde que Mudrin me mostrou as primeiras traduções. — A arqueóloga se voltou para encarar Beenay, e o rapaz notou pela primeira vez as suas olheiras, a expressão tensa e preocupada em seu rosto. — Entende agora por que pedi que viesse aqui? Não posso conversar sobre isso com nenhum dos meus colegas de departamento. Beenay, que vou fazer? Se esta descoberta vier a público, Mondior 71 e seu bando de fanáticos vão proclamar aos sete ventos que eu descobri uma prova incontestável de suas teorias!
— E você concorda?
— Tenho alternativa? — Siferra apontou para os mapas. Aqui estão as provas de que várias cidades foram destruídas pelo fogo a intervalos de dois mil anos, aproximadamente, em um período de muitos milhares de anos. E essas tabuinhas… ao que tudo indica… podem ser uma versão pré-histórica do Livro das Revelações. No conjunto, essas descobertas representam, se não uma confirmação das histórias dos Apóstolos, pelo menos uma sólida base histórica para a origem dos seus mitos!
— O fato de um local ter sofrido repetidos incêndios não significa que a devastação tenha sido em escala mundial objetou Beenay.
— É a periodicidade que me preocupa — disse Siferra.
— Corresponde muito de perto às afirmações de Mondior. Dei uma olhada no Livro das Revelações. Você sabia que a península de Sagikan é um lugar sagrado para os Apóstolos? Dizem que é o lugar onde os deuses apareceram para a humanidade. E, portanto, natural… preste atenção, é natural — insistiu, com um sorriso amargo — que os deuses tenham preservado Sagikan como uma advertência para a humanidade do castigo que cairá sobre nós vez após vez se não nos corrigirmos.
Beenay olhou para ela, surpreso.
Na verdade, conhecia muito pouco a respeito dos Apóstolos e seus ensinamentos. Nunca se interessara por aquele tipo de fantasias patológicas, e estivera ocupado demais com seu trabalho científico para prestar atenção nas profecias apocalípticas de Mondior. Agora, porém, a conversa que tivera semanas antes com Theremon 762, no Clube Seis Sóis, adquiria um novo significado. “ … não será a primeira vez em que o mundo é destruído… os deuses deliberadamente fizeram o homem imperfeito e nos deram um único ano (um dos seus anos divinos, não dos nossos pequenos anos) para chegarmos à perfeição. É o chamado Ano de Divindade, e corresponde a exatamente 2049 dos nossos anos. “ Não. Não. Não. Não. Bobagem! Loucura! Havia mais. “ Vez após vez, quando o Ano de Divindade termina, os deuses descobrem que ainda somos maus e pecadores e destroem o mundo fazendo chover fogo de lugares sagrados no céu chamados Estrelas. Assim dizem os Apóstolos. Não! Não!
— Beenay? — disse Siferra. — Tudo bem com você?
— Estou só pensando. Sabe que você está certa? Esta história serviria para confirmar tudo que os Apóstolos sempre pregaram!
— Não necessariamente. As pessoas de bom senso ainda poderiam rejeitar as ideias de Mondior. Afinal, a destruição de Thombo pelo fogo, ou mesmo a destruição repetida de Thombo, a intervalos de aproximadamente dois mil anos, não prova de modo algum que o mundo inteiro tenha sido destruído pelo fogo. Ou que venha a sê-lo no futuro. Por que o passado teria que ser repetido no futuro? Entretanto, as pessoas de bom senso estão em minoria. O resto da população consideraria minhas descobertas como uma confirmação das palavras de Mondior e se deixaria contagiar pelo pânico. Você sabia que, de acordo com os Apóstolos, o próximo grande incêndio vai ocorrer no ano que vem?
— Sabia — disse Beenay, em um tom grave. — Theremon contou-me que eles previram o dia exato em que isso vai acontecer. Na verdade, o ciclo tem 2049 anos, e este é o ano 2048. Daqui a onze ou doze meses, segundo Mondior, o céu vai ficar escuro e o fogo vai descer sobre nós. Acho que o dia fatídico é 19 de Theptar.
— Theremon, você disse? O repórter?
— Isso mesmo. Ele é meu amigo. Está interessado em toda essa questão dos Apóstolos e entrevistou um dos sumos sacerdotes da organização ou coisa parecida. Theremon disse-me que…
Siferra segurou Beenay pelo braço com força surpreendente.
— Você tem que prometer que não contará nada a ele sobre esta nossa conversa, Beenay!
— A Theremon? Claro que não vou contar! Você ainda não publicou suas descobertas. Seria falta de ética comentá-las com outras pessoas. Mas Theremon é um homem de caráter.
A arqueóloga relaxou a pressão, mas só um pouco.
— Às vezes dois amigos trocam comentários confidenciais… mas acredite, Beenay, para pessoas como Theremon, não há nada confidencial. Se achar que um assunto merece ser abordado em suas reportagens, vai abordá-lo, sejam quais forem as circunstâncias em que obteve as informações. Ou por mais caráter que você pense que ele tenha.
— Ora… talvez…
— Acredite em mim. Se Theremon descobrir o que acabo de contar para você, pode apostar que no dia seguinte estará nas páginas da Crônica. E isso me arruinaria profissionalmente, Beenay. Já imaginou, passar para a história como a cientista que forneceu aos Apóstolos as provas de que necessitavam para suas teorias absurdas? Os Apóstolos me repugnam, Beenay. Jamais lhes ofereceria qualquer tipo de ajuda e, com certeza, não quero dar a impressão de que concordo com as loucuras que pregam.
— Não se preocupe — disse Beenay. — Não direi uma palavra.
— Acho bom. Como já disse, isso me arruinaria. Voltei à universidade para tentar conseguir novas verbas para minha pesquisa. As descobertas de Thombo já estão provocando uma grande controvérsia no departamento, porque não estão de acordo com o ponto de vista tradicional de que Beklimot é a comunidade urbana mais antiga. Se, além de tudo, Theremon associar meu nome aos Apóstolos do Fogo…
Beenay tinha deixado de prestar atenção. Ele compreendia o problema de Siferra e certamente não faria nada que pudesse prejudicá-la. Theremon não saberia de nada por seu intermédio. Assim, seus pensamentos se voltaram para outras coisas, coisas aterrorizantes. Algumas frases que, segundo Theremon, faziam parte da doutrina dos Apóstolos, continuavam a lhe martelar a memória:
“Daqui a quatorze meses, os sóis vão todos desaparecer… … as Estrelas vão despejar fogo do céu negro… a hora exata da catástrofe pode ser determinada cientificamente… ”
… céu negro…
… os sóis vão desaparecer…
— A Escuridão! — murmurou Beenay. — Será possível? Siferra tinha continuado a falar, mas o comentário do astrônomo a fez interromper o que estava dizendo.
— Você não está prestando atenção, Beenay!
— Eu… o quê? Oh. Oh. Claro que estou prestando atenção! Você estava dizendo que não podemos deixar que Theremon tome conhecimento do que você descobriu, porque sua reputação poderia sofrer e… escute, Siferra, acha que podemos continuar esta conversa em outra hora? Esta noite, ou amanhã de tarde, ou quando for possível? Está na hora de eu voltar para o Observatório.
— Então não devo prendê-lo por mais tempo — disse ela, friamente.
— Não fique ofendida, Siferra. Sua descoberta é extremamente interessante. Na verdade, pode ter uma importância ainda maior do que você imagina. Mas eu preciso verificar uma coisa. Alguma coisa diretamente relacionada ao que você me contou.
A arqueóloga olhou para ele, desconfiada.
— Você parece excitado. Seus olhos estão brilhando. De repente, ficou estranho. Seus pensamentos parecem estar a milhares de quilômetros daqui. Que está acontecendo?
— Eu lhe conto mais tarde — disse Beenay, a caminho da porta. — Mais tarde! Prometo!
Àquela hora, o Observatório estava praticamente deserto. Não havia ninguém ali, a não ser Faro e Thilanda. Para alívio de Beenay, Athor 77 ainda não havia voltado.
Ótimo, pensou Beenay. O esforço para explicar os desvios na órbita do planeta, que levara a hipótese de Kalgash Dois, deixara o velho astrônomo extenuado, melhor poupar-lhe novas preocupações.
O fato de encontrar Faro e Thilanda havia sido uma feliz coincidência. Faro tinha o tipo de raciocínio rápido, sem preconceitos, de que Beenay estava precisando. E Thilanda, que passara tantos anos esquadrinhando os recantos vazios do céu com seu telescópio e sua câmera, talvez pudesse fornecer as informações de que Beenay necessitava no momento.
— Estive revelando chapas o dia inteiro — disse Thilanda, à guisa de saudação. — Mas não adianta. Agora posso afirmar com convicção: não há nada lá em cima no céu, a não ser os seis sóis. Será que o velho perdeu o juízo?
— Acho que não, Thilanda.
— Como explica, então, os meus resultados? Há vários dias que estou fotografando todos os quadrantes do universo. É um programa meticuloso. Fotografar, desviar alguns graus, fotografar de novo. Uma varredura sistemática de toda a esfera celeste. Veja o resultado, Beenay. Uma pilha de fotografias do vazio!
— Se o satélite desconhecido é invisível, Thilanda, o que a faz pensar que pode ser fotografado?
— Invisível a olho nu, talvez. Mas as fotos deviam mostrar…
— Escute, vamos deixar isso de lado por enquanto. Preciso da ajuda de vocês dois em uma questão puramente teórica. Tem a ver com a nova teoria do Dr. Athor.
— Mas se o satélite desconhecido não existir… — protestou Thilanda.
— Não quero discutir isso agora — Beenay a interrompeu. — E não gostaremos quando ele aparecer de não sei onde, bem na nossa cara. Vai me ajudar ou não?
— Bem…
— Ótimo. O que quero que faça é calcular no computador as posições dos seis sóis em um período 420O anos.
— Você disse quatro mil e duzentos anos? — repetiu Thilanda, surpresa.
— Sei que nossos registros cobrem um período muito menor. O que eu quero, Thilanda, é uma projeção das órbitas, com base nas posições conhecidas. Vocês dispõem de pelo menos cem anos de observações confiáveis, não é mesmo?
— Mais do que isso.
— Melhor ainda. Extrapole as órbitas, a partir desses dados, para o passado e para o futuro. Faça o computador dizer onde estavam os sóis a cada dia durante os últimos 21 séculos e onde estarão durante os próximos 21 séculos. Se não puder fazer isso sozinha, estou certo de que Faro concordará em ajudá-la a escrever o programa.
— Acho que dá para fazer o que você quer — disse Thilanda, em tom glacial. — Mas se importa de explicar do que se trata? O Observatório vai publicar um calendário?
— Depois eu explico a você — disse Beenay. — Prometo.
Ele deixou a jovem astrônoma soltando fumaça e foi até o escritório de Athor, onde se sentou diante das três telas que Athor havia usado para chegar à teoria de Kalgash Dois. Ficou olhando por muito tempo para a tela central, que mostrava a órbita de Kalgash, levando em conta as perturbações causadas pelo hipotético Kalgash Dois.
Depois, apertou uma tecla e a suposta órbita de Kalgash Dois apareceu na tela, uma elipse excêntrica que ocupava um espaço muito maior do que a órbita de Kalgash, mais compacta e quase circular. Examinou-a por alguns instantes; depois, apertou as teclas que faziam os sóis serem mostrados na tela. Passou quase uma hora experimentando diferentes configurações: Onos no céu com Tano e Sitha, Onos com Trey e Patru, Onos e Dovim com Trey e Patru, Dovim com Trey e Patru, Dovim com Tano e Sitha, Patru e Trey sozinhos… Aquelas eram as configurações normais.
E as configurações anormais?
Tano e Sitha sozinhos? Não, isso não podia acontecer. As trajetórias dos astros eram tais que Tano e Sitha nunca podiam aparecer naquele hemisfério, a menos que Onos, Dovim ou ambos estivessem visíveis ao mesmo tempo. Talvez isso fosse possível há centenas ou milhares de anos, pensou, embora fosse pouco provável. No momento, porém, era impossível.
Trey, Patru, Tano e Sitha?
Outra impossibilidade. Os dois pares de sóis ficavam em lados opostos de Kalgash; sempre que um par estava no céu, o outro estava escondido atrás do planeta. Uma vez ou outra, os quatro sóis apareciam juntos no céu, mas Onos estava sempre visível nessas ocasiões. Havia os famosos dias de cinco sóis, que correspondiam aos igualmente famosos dias de um único sol (Dovim) no hemisfério oposto. Eles ocorriam uma vez a cada dois ou três anos.
Trey sem Patru? Tano sem Sitha?
Teoricamente, era possível. Quando um dos pares de sóis estava próximo ao horizonte, durante um breve período, um dos sóis do par podia ficar acima do horizonte e o outro abaixo. Entretanto, isso não era um evento astronômico significativo, mas apenas uma aberração momentânea. Os sóis continuavam a formar um par, ainda que separados temporariamente pela linha do horizonte.
Todos os seis sóis no céu ao mesmo tempo? Impossível!
Pior do que isso… impensável!
No entanto, tinha acabado de pensar nesta possibilidade. A ideia o fez estremecer. Se os seis sóis estivessem ao mesmo tempo acima do horizonte, não restaria nenhum sol para iluminar o hemisfério oposto. Escuridão! Escuridão! Mas a Escuridão era desconhecida em Kalgash, a não ser como um conceito abstrato. Não era possível que os seis sóis se reunissem em uma região do céu, deixando metade do planeta mergulhada em total Escuridão. Isso era inconcebível. Era mesmo?
Beenay parou para pensar. Ouviu mais uma vez a voz grave de Theremon repetindo as previsões dos Apóstolos: “… os sóis vão desaparecer… as Estrelas vão despejar fogo do céu negro…” Sacudiu a cabeça. Tudo que conhecia a respeito dos movimentos dos sóis no céu ia contra a ideia de que os seis se reunissem de um lado de Kalgash ao mesmo tempo. Aquilo simplesmente não podia acontecer, a não ser por milagre. Beenay não acreditava em milagres. Da forma como os sóis se moviam no céu, qualquer ponto da superfície de Kalgash tinha que ser iluminado, a cada instante, por pelo menos um sol.
Esqueça a hipótese dos seis sóis aqui, Escuridão ali. Que restava?
Dovim sozinho, pensou. O pequeno sol vermelho sozinho no céu?
Sim, isso acontecia, se bem que raramente. Nos dias de cinco sóis, em que Tano, Sitha, Trey, Patru e Onos eram vistos no mesmo hemisfério, restava apenas Dovim para iluminar o outro lado do mundo. Beenay imaginou se aquela seria a Escuridão anunciada pelos Apóstolos.
Seria possível? Dovim era um sol relativamente fraco, com uma luz vermelho-arroxeada que as pessoas poderiam confundir com a Escuridão.
Não, não fazia nenhum sentido. Mesmo o pequeno Dovim fornecia iluminação suficiente para que as pessoas não se assustassem com a falta de luz. Além do mais, Dovim aparecia sozinho no céu uma vez a cada dois ou três anos. Era um evento incomum, mas não chegava a ser extraordinário. Se os efeitos psicológicos de ver apenas um sol vermelho no céu fossem sérios, todos na certa estariam aguardando com apreensão a próxima ocorrência do fenômeno, que estava prevista para dali a um ano e pouco.
A verdade, porém, é que ninguém estava preocupado com o assunto.
Por outro lado, se Dovim estivesse sozinho no céu e alguma coisa acontecesse, alguma coisa realmente rara, para bloquear a luz do pequeno sol…
Thilanda apareceu a seu lado e disse, secamente:
— Beenay, seu programa está pronto. Não foi preciso limitar as projeções a um período finito. Faro me ajudou e montamos o programa de tal forma que você pode calcular as posições dos sóis desde a criação do universo até o final dos tempos.
— Ótimo. Transfira o programa para o computador que estou usando, está bem? E peça a Faro para vir aqui.
O pequeno e gorducho aluno de pós-graduação se aproximou com os olhos brilhando de curiosidade. Era evidente que gostaria de fazer mil perguntas acerca do que Beenay estava fazendo. Entretanto, em respeito à relação professor-aluno, ficou em silêncio, esperando que Beenay se pronunciasse.
— O que tenho aqui na tela — começou Beenay — é a órbita proposta pelo Dr. Athor para Kalgash Dois. Vou supor que se trata da órbita correta, já que o Dr. Athor disse-nos que explica perfeitamente as perturbações na órbita do nosso planeta. Tenho também aqui, ou por outra, terei quando Thilanda terminar a transferência, o programa que você e ela acabaram de escrever, que calcula as posições dos sóis a qualquer instante. O que vou fazer agora é verificar se existem ocasiões em que a presença de apenas um sol no céu coincide com a maior aproximação de Kalgash Dois, de modo que…
— De modo que talvez torne possível calcular a frequência de eclipses? — perguntou Faro. — É isso, professor?
A pergunta era tão pertinente que deixou Beenay desconcertado.
— Na verdade, era nisso que eu estava pensando. Você também se interessa por eclipses?
— Comecei a me interessar no dia em que o Dr. Athor nos falou pela primeira vez a respeito de Kalgash Dois. Simbron, como o senhor talvez se lembre, mencionou o fato de que o estranho satélite poderia esconder por algum tempo a luz de alguns dos sóis. O senhor disse que esse fenômeno seria chamado de eclipse. Comecei então a pensar em algumas das possibilidades. Mas o Dr. Athor interrompeu-me antes que eu pudesse dizer alguma coisa, declarando que estava cansado e precisava dormir um pouco.
— E desde aquele dia você não investigou mais o assunto?
— Não — disse Faro.
— Pois agora chegou a sua oportunidade. Vou transferir tudo que está na memória do meu computador para o seu. Nós dois vamos trabalhar separadamente, mas com o mesmo objetivo. O que procuramos é um momento muito especial, em que Kalgash Dois está passando pelo ponto de máxima aproximação do nosso planeta, e ao mesmo tempo só existe um sol no céu.
Faro assentiu e correu para o seu computador. Beenay nunca o vira se dedicar a um problema com tanta sofreguidão. Beenay não esperava ser o primeiro a terminar os cálculos. Faro era um ás em matéria de computadores. A ideia, porém, era duplicar os resultados, para reduzir a possibilidade de erro. Assim, algum tempo depois, quando Faro deixou escapar uma exclamação de triunfo e começou a dizer alguma coisa, Beenay silenciou-o com um gesto e continuou a trabalhar. Os embaraçosos dez minutos a mais que levou lhe pareceram uma eternidade.
Depois, os números começaram a aparecer na tela. Se todos os dados que colocara no computador estavam corretos (a órbita do satélite invisível, os movimentos dos seis sóis no céu), não era provável que houvesse jamais um dia de Escuridão. A única possibilidade era a de ocorrer um eclipse em um dia em que apenas Dovim estivesse no céu. Entretanto, a probabilidade de Kalgash Dois vir a eclipsar Dovim parecia remota. Os dias em que Dovim estava sozinho no céu eram tão raros, que a probabilidade de que isso ocorresse e ao mesmo tempo Kalgash Dois estivesse passando pelo ponto de máxima aproximação devia ser infinitamente pequena.
Seria mesmo?
Não. Não era infinitamente pequena.
Pelo contrário. Olhou de novo para os números na tela. Parecia haver uma pequena possibilidade de convergência. Os cálculos ainda não estavam completos, mas as coisas pareciam caminhar na direção certa à medida que o computador determinava as posições dos sóis no instante de máxima aproximação de Kalgash-Kalgash Dois. Duas conjunções no período de 420O anos de investigação. Cada vez que Kalgash Dois completava uma órbita, chegava às proximidades de Kalgash cada vez mais perto de um dia em que apenas Dovim estaria no céu. Os números continuaram a aparecer, enquanto o computador calculava órbita após órbita.
De repente, ali estava. Os três corpos exatamente alinhados. Kalgash, Kalgash Dois, Dovim!
Sim! Kalgash Dois podia eclipsar totalmente Dovim, quando este era o único sol no céu!
A configuração, porém, era extremamente rara. Dovim tinha que estar sozinho em seu hemisfério e à distância máxima de Kalgash, enquanto Kalgash Dois tinha que estar à distância mínima. Nesse caso, o diâmetro aparente de Kalgash Dois seria sete vezes maior do que o de Dovim. Isso era suficiente para esconder a luz de Dovim por mais de meio dia, de modo que nenhum ponto da superfície do planeta escaparia aos efeitos da Escuridão. De acordo com o computador, aquela combinação muito especial de circunstâncias ocorria uma vez a cada…
Beenay soltou uma exclamação de assombro. Não queria acreditar.
Voltou-se para Faro. O rosto rechonchudo do estudante estava pálido.
Beenay disse a ele, com voz rouca:
— Muito bem. Terminei. Já tenho o meu resultado, mas primeiro quero ouvir o seu.
— Eclipse de Dovim por Kalgash Dois: periodicidade, 2049 anos.
— Isso mesmo — repetiu Beenay, devagar. — É exatamente o que eu calculei. Uma vez a cada 2049 anos.
Sentiu-se tonto. O universo inteiro parecia estar girando. Uma vez a cada 2049 anos. A duração exata de um Ano de Divindade, segundo os Apóstolos do Fogo. O mesmo número que aparecia no Livro das Revelações.
… os sóis vão todos desaparecer…
… as Estrelas vão despejar fogo do céu negro…
Beenay não sabia o que eram as Estrelas. Entretanto, Siferra descobrira uma colina na península de Sagikan em que cidades tinham sido destruídas por incêndios com uma regularidade impressionante, aproximadamente uma vez a cada dois mil anos. Quando os testes de carbono-14 estivessem prontos, saberiam o intervalo exato entre os cataclismos… seria 2049 anos?
… do céu negro…
Beenay olhou para Faro.
— Quando vai ocorrer o próximo dia em que apenas Dovim estará no céu? — perguntou.
— Daqui a onze meses e quatro dias — respondeu Faro. — Dia 19 de Theptar.
— Já desconfiava — disse Beenay. — É o mesmo dia em que, de acordo com Mondior 71, o céu vai ficar negro e o fogo dos deuses vai destruir a nossa civilização.
— Pela primeira vez na vida, chego a rezar para que meus cálculos estejam errados — disse Athor. — Temo, porém, que os deuses não me atendam. A lógica me conduz inexoravelmente a uma terrível conclusão.
Olhou em torno, detendo-se por alguns momentos em cada uma das pessoas que havia chamado para aquela reunião. Beenay 25, é claro. Sheerin 501, do departamento de psicologia. Siferra 89, a arqueóloga.
Custava-lhe um grande esforço dissimular a fadiga que estava sentindo, a desesperança, o impacto esmagador de tudo que descobrira nas últimas semanas. Tentava ocultar todas essas coisas até de si próprio. Nos últimos tempos, dera para surpreender-se pensando que já vivera demais, que talvez tivesse sido melhor se o repouso eterno lhe tivesse sido concedido um ou dois anos antes. Entretanto, procurava tirar da ideia esses pensamentos negativos. Uma vontade férrea e uma grande fortaleza de espírito tinham sido sempre a marca registrada de Athor. Mesmo agora, que o peso da idade começava a se fazer sentir, recusava-se a desistir desses traços de caráter.
Voltando-se para Sheerin, perguntou:
— Seu campo de estudos, pelo que fui informado, é sobre os efeitos da Escuridão?
O psicólogo pareceu achar graça.
— Suponho que é uma forma de descrever o que eu faço. Minha tese de doutorado foi sobre doenças causadas pela Escuridão, mas a pesquisa sobre a Escuridão é apenas uma das facetas do meu trabalho. Eu me interesso por todos os tipos de histeria em massa; pelas respostas irracionais da mente humana a estímulos os mais variados. Toda a gama de loucuras humanas, é isso que me garante o salário no final do mês.
— Muito bem — disse Athor, friamente. — Que seja assim. Beenay 25 disse-me que você é a pessoa que mais entende de Escuridão em toda a universidade. Acaba de ver nossa pequena demonstração de astronomia na tela do computador. Imagino que seja capaz de compreender as implicações daquilo que acabamos de descobrir.
O velho astrônomo parecia ser incapaz de dizer alguma coisa sem assumir um ar superior. Sheerin, porém, não parecia ofendido.
— Acho que compreendo, sim — disse, calmamente. — O senhor está dizendo que existe um misterioso astro invisível, mais ou menos do tamanho do nosso planeta, que gira em órbita em torno de Kalgash, a uma certa distância, e cuja força de atração explica perfeitamente certos desvios da órbita de Kalgash em relação à teoria, que meu amigo Beenay descobriu faz algum tempo. Estou certo até agora?
— Está — concordou Athor. — É isso mesmo.
— Pois bem — prosseguiu Sheerin. — Acontece que, às vezes, este astro passa entre nós e um dos nossos sóis. Este fenômeno é chamado de eclipse. Apenas um dos sóis pode sofrer eclipses, esse sol é Dovim. O eclipse ocorre apenas quando — Sheerin franziu a testa — quando Dovim é o único sol no céu, e tanto ele quanto o chamado Kalgash Dois estão alinhados de tal forma que Kalgash Dois cobre totalmente o disco de Dovim, fazendo com que nenhuma luz chegue até nós. Que tal?
Athor fez que sim com a cabeça.
— Acho que compreendeu perfeitamente o problema. É pena. Tinha esperança de ter entendido errado. Fale agora dos efeitos do eclipse — ordenou Athor. Sheerin respirou fundo.
— OK. O eclipse, que ocorre apenas uma vez a cada 2049 anos, graças a Deus!, resulta em total Escuridão na superfície de Kalgash. Em consequência do movimento de rotação de nosso planeta, todos os continentes ficam nas trevas por um período que pode variar… o que foi que o senhor disse?… que pode variar de nove a quatorze horas, dependendo da latitude.
— Muito bem. Agora me responda, por favor — disse Athor. — Em sua opinião, como psicólogo, qual será o efeito dessa Escuridão sobre os seres humanos?
— O efeito será a loucura — respondeu Sheerin, sem hesitar.
De repente, todos ficaram muito quietos. Afinal, Athor perguntou:
— Loucura universal? É isso que está prevendo?
— Exatamente. Escuridão universal, loucura universal. Tenho a impressão de que as pessoas serão afetadas de várias formas e em vários graus. Algumas ficarão apenas deprimidas e desorientadas; outras sofrerão uma destruição completa e permanente das faculdades mentais. Naturalmente, quanto maior a estabilidade psicológica do indivíduo, menor a probabilidade de que a ausência de luz produza danos irreversíveis. Na minha opinião, porém, ninguém será totalmente poupado.
— Não compreendo — disse Beenay. — Por que a Escuridão faria as pessoas perderem o juízo?
Sheerin sorriu.
— Simplesmente não estamos preparados para a ausência de luz. Imagine, se puder, um mundo com apenas um sol. Se esse mundo girasse em torno de si próprio, cada hemisfério ficaria iluminado metade do tempo e passaria a outra metade do tempo totalmente às escuras.
Beenay fez um gesto involuntário de medo.
— Está vendo? — exclamou Sheerin. — Você não pode nem ouvir falar nisso! Mas os habitantes desse planeta assim estariam acostumados a uma dose diária de Escuridão. Provavelmente, achariam as horas em que o sol estivesse no céu mais agradáveis, mas considerariam a Escuridão como uma coisa normal. Simplesmente iriam dormir e esperariam que o sol voltasse a aparecer. Nós, porém, somos diferentes. Nossa espécie se desenvolveu à luz dos sóis, o tempo todo, o ano inteiro. Quando Onos não está no céu, temos Tano, Sitha e Dovim, ou Patru e Trey, e assim por diante. Nossa mente e até o nosso corpo estão acostumados a uma iluminação constante. Não concebemos sequer um breve momento sem ela. Você dorme com uma luz acesa no quarto, não dorme?
— É claro — disse Beenay.
— É claro? Por que “é claro”?
— Porque… ? Ora, todo mundo dorme com uma luz acesa no quarto!
— É o que estou querendo mostrar. Diga-me uma coisa: já experimentou a Escuridão, meu caro Beenay?
Beenay encostou-se na parede, ao lado da janela panorâmica, e pensou um pouco.
— Não. Acho que não. Mas sei como é. Apenas… hum… — fez um gesto vago, mas de repente sua fisionomia se iluminou. — Apenas a falta de luz. Como no interior de uma caverna.
— Já entrou em uma caverna?
— Em uma caverna? Claro que nunca entrei em uma caverna!
— Eu já desconfiava. Pois eu já entrei em uma caverna, há muito tempo, quando estava começando a estudar as doenças produzidas pela Escuridão. Mas não fiquei muito tempo lá dentro. Entrei até a boca da caverna se reduzir a uma pequena mancha luminosa. O resto estava totalmente negro. Sheerin deu uma risada. — Nunca pensei que uma pessoa gorda como eu pudesse correr tanto!
— Pois acho que, se fosse eu, não teria corrido — declarou Beenay, em tom desafiador.
O psicólogo sorriu para o rapaz.
— Bravo! Admiro sua coragem, amigo.
Voltando-se para Athor, Sheerin disse:
— O senhor me permite realizar uma pequena experiência de psicologia?
— Como quiser.
— Obrigado.
Sheerin olhou de novo para Beenay.
— Incomoda-se de fechar a cortina, Beenay?
Beenay parecia surpreso.
— Para quê?
— Faça o que estou pedindo. Depois, venha cá e sente-se ao meu lado.
— Já que insiste…
A janela tinha grossas cortinas vermelhas. Athor não se lembrava de vê-las fechadas, e aquela sala tinha sido seu escritório nos últimos quarenta anos. Beenay deu de ombros e puxou a cortina. Ela deslizou no trilho. Por um momento, a luz avermelhada de Dovim ainda podia ser vista. Depois, só restaram sombras, e mesmo as sombras ficaram indistintas.
Os passos de Beenay ressoaram quando ele se dirigiu para a mesa, mas ele parou no meio do caminho.
— Não posso vê-lo — sussurrou, em tom queixoso.
— Continue assim mesmo — ordenou Sheerin, com voz tensa.
— Mas não consigo vê-lo! — insistiu o jovem astrônomo, ofegante. — Não consigo ver nada!
— Que esperava? A Escuridão é assim mesmo. — Sheerin esperou alguns instantes. — Vamos! Você pode chegar aqui mesmo sem enxergar. Venha cá e sente-se.
Os passos soaram novamente, hesitantes. Ouviu-se o ruído de alguém puxando uma cadeira. Afinal, Beenay falou, baixinho:
— Estou aqui.
— Como se sente?
— Estou… gulp… estou bem.
— Gostou da sensação?
Um longo silêncio.
— Não.
— Não gostou, Beenay?
— Detestei. É horrível. E como se as paredes… — fez outra pausa… — é como se as paredes estivessem se fechando em torno de mim. Sinto vontade de empurrá-las para longe. Mas não estou perdendo o juízo. Na verdade, acho que estou começando a me acostumar.
— Muito bem. E você, Siferra?
— Um pouco de Escuridão não me incomoda. Na minha profissão, de vez em quando tenho que usar passagens subterrâneas. Mas não posso dizer que seja agradável.
— Dr. Athor?
— Acho que sobrevivi ileso. Mas o senhor provou que estava certo, Dr. Sheerin — disse o diretor do Observatório, com mordacidade.
— Muito bem. Beenay, pode abrir a cortina.
Ouviram-se passos cautelosos no escuro, o roçar do corpo de Beenay na cortina enquanto ele procurava a corda, e depois o barulho triunfante da cortina sendo aberta. A luz vermelha de Dovim inundou a sala, e Beenay olhou para o menor dos seis sóis com um grito de alegria. Sheerin enxugou o suor da testa com as costas da mão e disse, com voz trêmula:
— E foram apenas alguns minutos em um quarto escuro.
— A sensação é suportável — afirmou Beenay.
— Pode ser, no caso de um quarto escuro. Pelo menos, por um tempo limitado. Mas você sabe o que aconteceu na Exposição do Centenário de Jonglor, não sabe? Lembra-se do escândalo do Túnel do Mistério? Beenay, eu lhe contei a história uma noite, no verão passado, no Clube Seis Sóis, quando você estava com aquele jornalista, como é o nome dele? Theremon?
— Ah, sim! Eu me lembro! As pessoas que experimentaram a Escuridão em um brinquedo do parque e perderam o juízo.
— Era um túnel de um quilômetro e meio de comprimento, sem nenhuma iluminação. Você entrava em um pequeno vagão aberto e passava quinze minutos na Escuridão. Algumas pessoas simplesmente morreram de pavor. Outras saíram de lá com a saúde mental comprometida para o resto da vida.
— Por quê? Que foi que as afetou?
— A mesma coisa que fez você se sentir mal quando fechou a cortina e teve a impressão de que as paredes estavam tentando esmagá-lo. Existe um nome na psicologia para o medo instintivo da ausência de luz. Nós o chamamos de “claustrofobia”, porque a falta de luz está sempre associada a lugares fechados, de modo que o medo de um é o medo do outro. Entende?
— Está bem, mas por que só algumas pessoas piraram?
— As pessoas que… que “piraram”, para usar a sua expressão, foram aqueles infelizes que não tinham uma estrutura psicológica sólida o suficiente para resistir à claustrofobia que as acometeu ao serem submetidas à Escuridão. É uma sensação muito desagradável, acredite. Eu sei, porque estive no Túnel. Você passou dois ou três minutos no escuro e pude ver como ficou nervoso. Imagine quinze minutos!
— Mas eles não se recuperaram depois de saírem do Túnel?
— Alguns, sim. Outros, porém, vão sofrer os efeitos durante anos, ou talvez para toda a vida. Ficaram claustrofóbicos. O medo da Escuridão e de lugares fechados se cristalizou e se tornou, ao que tudo indica, permanente. E ainda houve alguns, como eu já disse, que morreram de choque. Esses, nós temos certeza de que não vão se recuperar, hein? Aí está o que quinze minutos no escuro podem fazer!
— Nem todos são afetados — insistiu Beenay. — Ainda não acredito que os efeitos sejam tão drásticos para a maioria de nós. Certamente não para mim.
Sheerin deu um suspiro de impaciência.
— Imagine a Escuridão… em toda parte. Nenhuma luz. As casas, as árvores, os campos, a terra, o céu… pretos! A não ser pelas Estrelas, se formos nos fiar nas palavras dos Apóstolos. A não ser pelas Estrelas, sejam elas o que forem. Você pode imaginar nosso planeta totalmente às escuras?
— Posso, sim — declarou Beenay, de forma ainda mais truculenta.
— Não! Não, você não pode! — Sheerin deu um soco na mesa, irritado. — Está enganando a si próprio! Você não pode imaginar. Seu cérebro não está em condições de apreender essa ideia, mais do que… escute, Beenay, você estudou matemática, não estudou? O seu cérebro consegue apreender realmente a ideia de infinito? Ou a ideia de eternidade? Você pode somente falar a respeito desses conceitos. Reduzi-los a equações e fazer de conta que os números abstratos são a realidade, quando de fato não passam de marcas no papel. Mas quando se esforça a sério para compreender a noção de infinito, fica tonto bem depressa, estou certo disso. Uma fração da realidade é suficiente para perturbá-lo. O mesmo se pode dizer da pequena amostra de Escuridão que acaba de provar. Quando a Escuridão tomar conta de tudo, você será colocado diante de um fenômeno que está além da sua compreensão. Você vai ficar louco, Beenay. De forma total e irreversível. É isso que, vai acontecer!
Mais uma vez, um silêncio opressivo tomou conta da sala. Afinal, Athor perguntou:
— Então é esta a sua conclusão final, Dr. Sheerin ? Insanidade em massa?
— Pelo menos setenta e cinco por cento da população vão se tornar irracionais. Talvez oitenta e cinco por cento. Talvez mesmo cem por cento.
Athor sacudiu a cabeça.
— É monstruoso. Assustador. Uma calamidade inacreditável. Devo confessar que penso parecido com Beenay: vamos dar um jeito de enfrentar o problema. Os efeitos serão menos cataclísmicos do que suas previsões levam a crer. Velho como sou, não posso deixar de sentir um certo otimismo, uma certa esperança…
— Posso falar, Dr. Athor? — perguntou Siferra.
— Claro. Claro! É para isso que você está aqui.
A arqueóloga se levantou e foi até o centro da sala.
— De certa forma, minha presença aqui é inesperada. Quando discuti pela primeira vez com Beenay minhas descobertas na península de Sagikan, pedi-lhe para guardar segredo. Temia que minha reputação profissional ficasse comprometida, porque sabia que os indícios que encontrara podiam ser facilmente apontados como comprovação das teses defendidas pelo movimento religioso mais irracional, mais perigoso, mais ameaçador que existe no seio de nossa sociedade. Estou me referindo, é claro, aos Apóstolos do Fogo.
— Mais tarde, porém, quando Beenay me procurou com as suas descobertas, com a notícia de que Dovim estava sujeito a eclipses periódicos, compreendi que não podia manter mais em segredo o que sei. Tenho comigo mapas e fotografias das escavações que fizemos na colina de Thombo, perto do sítio arqueológico de Beklimot, na península de Sagikan. Beenay, você já viu esse material, mas se tiver a bondade de passá-lo ao Dr. Athor e ao Dr. Sheerin…
Siferra esperou até que tivessem visto os mapas e fotografias. Depois, prosseguiu.
— Será mais fácil compreender os mapas se os senhores pensarem na colina de Thombo como um gigantesco bolo em camadas de sítio antigos. Cada cidade foi construída sobre os restos da cidade anterior. A mais recente está no topo, é claro. É uma cidade típica do que chamamos a cultura de Beklimot. Abaixo dela está uma cidade construída pelo mesmo povo, ao que tudo indica, em um estágio mais primitivo de sua civilização. Isso se repete camada após camada, em um total de sete diferentes períodos de colonização, ou talvez até mais. Todos esses períodos, senhores, foram interrompidos bruscamente porque a cidade foi destruída pelo fogo. Podem ver nas fotografias as linhas escuras que separam as camadas. Essas linhas são feitas de restos carbonizados. Minha estimativa inicial, com base no tempo necessário para essas cidades atingirem o tamanho que possuíam na ocasião em que foram queimadas é de aproximadamente dois mil anos. O último deve ter acontecido há cerca de dois mil anos, pouco antes da expansão da cultura de Beklimot, que marca o início do período histórico.
— Entretanto, o carvão se presta muito bem à datação por radiocarbono, que permite determinar a idade de um sitio arqueológico com boa precisão. Desde que o material recolhido em Thombo chegou à Cidade de Saro, o laboratório de nosso departamento vem se dedicando à análise do radiocarbono, e agora os resultados ficaram prontos. Posso citá-los de cor. A mais recente das cidades de Thombo foi destruída pelo fogo há 205O anos, com um erro estatístico de má ou menos vinte anos. O carvão da cidade seguinte tem 410O anos de idade, com um erro de mais ou menos quarenta anos, A terceira foi destruída há 620O anos, com um erro de mais ou menos oitenta anos. A quarta tem 830O anos, com um erro de mais ou menos cem anos. A quinta…
— Minha nossa! — exclamou Sheerin. — Os intervalos são praticamente iguais!
— Exatamente. Os incêndios ocorreram a intervalos de pouco mais de vinte séculos. Se levarmos em conta a pequena imprecisão que é inevitável nesse tipo de medida, todos os dados são compatíveis com a hipótese de que os incêndios ocorreram com um intervalo de exatamente 2049 anos. O que, segundo Beenay, corresponde precisamente ao intervalo entre os eclipses de Dovim. Além disso — acrescentou Siferra, em tom preocupado -, corresponde ao comprimento do que os Apóstolos do Fogo chamam de Ano de Divindade, no fim do qual a humanidade será destruída pelo fogo.
— Em consequência da loucura coletiva — declarou Sheerin, quase gritando. — Quando a Escuridão chegar, as pessoas vão querer luz. Qualquer tipo de luz. Tochas. Fogueiras. Vão queimar qualquer coisa! Vão queimar os móveis. Vão queimar as casas.
— Não — murmurou Beenay.
— Não se esqueça — disse Sheerin — de que essas pessoas vão estar transtornadas. Vão se comportar como crianças pequenas, mas com a força e algumas das habilidades dos adultos. Vão saber, por exemplo, como se usa um fósforo. Mas não vão se dar conta do perigo de acender fogueiras dentro de casa.
— Não — repetiu Beenay. — Não. Não.
Entretanto, suas palavras não eram mais de dúvida, e, sim, de desesperança.
— A princípio, pensamos que os incêndios de Thombo fossem um fenômeno puramente local, uma estranha coincidência — disse Siferra. — A regularidade é realmente impressionante, mas poderia ser atribuída a algum ritual de limpeza praticado periodicamente pelos habitantes, ou coisa parecida. Como não foram encontradas ruínas tão antigas em outros pontos do planeta, não havia como verificar esta hipótese. Os cálculos de Beenay, porém, mudaram tudo. Agora sabemos que, a cada 2049 anos, nosso planeta mergulha na Escuridão. Como Sheerin explicou, a população vai acender fogueiras. E o fogo vai escapar do controle. As cidades que existiam em outras regiões na época dos incêndios de Thombo devem ter sido também destruídas, e pela mesma razão. Entretanto, Thombo é tudo que nos resta da era pré-histórica. Como dizem os Apóstolos do Fogo, é um lugar sagrado, um lugar onde os deuses se manifestaram à humanidade.
— E talvez estejam se manifestando de novo — disse Athor, em tom sombrio -, mostrando-nos os restos de antigas catástrofes.
Beenay olhou para ele.
— O senhor está começando a acreditar nos ensinamentos dos Apóstolos?
Para Athor, a pergunta de Beenay era extremamente ofensiva. Levou alguns momentos para conseguir responder. Quando o fez, foi com deliberada calma.
— Acreditar neles? Não, acho que não. Mas me interesso por eles, Beenay. Fico horrorizado com a mera necessidade de fazer a seguinte pergunta: e se os Apóstolos estiverem certos? Temos indicações seguras de que a Escuridão ocorre a intervalos de 2049 anos, exatamente o intervalo citado no Livro das Revelações. O Dr. Sheerin afirma que todos perderiam o juízo se isso acontecesse, e agora Siferra garante-nos que isso realmente aconteceu, que, pelo menos em uma pequena região do mundo, cidades inteiras foram destruídas pelo fogo a intervalos de 2049 anos.
— Que é que o senhor propõe? — perguntou Beenay. Que a gente se junte aos Apóstolos?
Athor teve novamente que se esforçar para se controlar.
— Não, Beenay. Apenas que a gente estude melhor a doutrina deles para ver se encontra alguma coisa aproveitável!
— Aproveitável? — repetiram Sheerin e Siferra, quase ao mesmo tempo.
— Isso mesmo! Aproveitável! — Athor juntou as mãos macilentas e voltou-se para encará-los. — Não compreendem que a sobrevivência da civilização depende unicamente de nós quatro? Tudo se resume a isso, não é mesmo? Pode soar melodramático, mas a verdade é que nós quatro estamos de posse de informações seguras de que o fim do mundo se aproxima. A Escuridão Universal trazendo loucura universal, incêndio universal. As cidades em chamas. A sociedade destruída. Existe, porém, outro grupo que vem prevendo, com base sabe lá em que tipo informações, o mesmo tipo de calamidade. E para um dia específico.
— Dia 19 de Theptar — murmurou Beenay.
— Sim, dia 19 de Theptar. O dia em que apenas Dovim estará no céu. Dia também em que, de acordo com nossos cálculos, Kalgash Dois vai chegar, bloqueando a luz do sol, deixando nosso planeta nas trevas. Nesse dia, de acordo com os Apóstolos, nossas cidades serão devoradas pelo fogo. Como é que eles sabem? É um simples palpite? Uma previsão baseada em antigas lendas?
— Muita coisa que eles dizem não faz o menor sentido — observou Beenay. — Eles afirmam, por exemplo, que as Estrelas vão aparecer no céu. Que são Estrelas? De onde elas vêm?
Athor deu de ombros.
— Não faço a menor ideia. Essa parte da doutrina dos Apóstolos pode não ter nenhuma ligação com a realidade. Seja como for, parece que eles tiveram acesso aos registros de alguns eclipses anteriores e que esta foi a base de suas previsões. Precisamos conhecer melhor esses registros.
— Por que nós? — perguntou Beenay.
— Porque, como cientistas, devemos agir como líderes, figuras de autoridade, na luta para salvar a civilização dos perigos que a aguardam no futuro próximo – respondeu Athor.
— A sociedade só poderá se proteger se conhecer o mais cedo possível a natureza desses perigos. No momento, apenas as pessoas crédulas e ignorantes dão atenção ao que dizem os Apóstolos. A opinião da maioria das pessoas inteligentes e esclarecidas é a mesma que a nossa. Para eles, os Apóstolos são fanáticos, irracionais, talvez mesmo aproveitadores. O que precisamos fazer é convencer os Apóstolos a compartilhar conosco seus dados astronômicos e arqueológicos. Depois, dirigimo-nos ao público em geral. Revelamos nossas descobertas, suplementando-as com o material fornecido pelos Apóstolos. Em suma: fazemos uma aliança com os Apóstolos para salvar a humanidade do desastre que tanto nós quanto eles sabemos que vai se abater sobre este planeta no ano que vem. Dessa forma, poderemos atrair a atenção de todas as camadas da sociedade, desde os mais crédulos até os mais céticos.
— O senhor está nos aconselhando a abandonar a ciência e entrar para a política? — perguntou Siferra. — Não gosto da ideia. Não é o nosso campo. Acho que devemos comunicar nossas descobertas ao governo e deixar que eles…
— O governo! — repetiu Beenay, com um muxoxo.
— Beenay tem razão — disse Sheerin. — Sei como é o pessoal do governo. Vão formar uma comissão, preparar um relatório (não sei depois de quantas reuniões) e arquivar o relatório. Mais tarde, formarão outra comissão para discutir as conclusões do primeiro relatório, que vai se reunir não sei quantas vezes e… não, não há tempo para tudo isso. Temos obrigação de fazer alguma coisa pessoalmente. Sei de primeira mão o que a Escuridão pode fazer com a mente das pessoas, Athor e Beenay, vocês têm provas matemáticas de que a Escuridão vai ocorrer no ano que vem. Você, Siferra, viu o que a Escuridão causou no passado.
— Mas se procurarmos os Apóstolos — objetou Beenay — não estaremos colocando em risco nossa reputação como cientistas?
— É isso mesmo — concordou Siferra. — Não quero que o meu nome seja associado ao deles!
Athor franziu a testa.
— Talvez vocês estejam certos. Posso ter sido ingênuo ao sugerir qualquer forma de associação com aquela gente. Retiro o que disse.
— Espere — protestou Beenay. — Tenho um amigo… você o conhece, Sheerin, é um repórter chamado Theremon… que entrevistou um dos líderes dos Apóstolos. Talvez ele possa conseguir um encontro secreto entre o Dr. Athor e esse líder. O senhor poderia sondar os Apóstolos e verificar se eles sabem de alguma coisa que valha a pena… apenas como forma de obter alguma outra evidência. E podemos negar o encontro, se não houver nenhuma.
— É uma possibilidade — concordou Athor. — Por mais desagradável que seja, acho que tenho obrigação de tentar extrair deles o máximo que for possível. Nenhum de vocês, então, discorda do meu ponto de vista? Concordam comigo que nós quatro devemos tomar alguma atitude diante do que sabemos?
— Agora eu concordo — disse Beenay, olhando para Sheerin. — Ainda acho que não serei muito afetado pela Escuridão. Entretanto, por tudo que foi dito, estou convencido de que boa parte da humanidade será afetada. Nesse caso, a civilização como um todo estará em perigo… a menos que a gente faça alguma coisa.
Athor fez que sim com a cabeça.
— Muito bem. Fale com seu amigo Theremon, mas com cuidado. Sabe o que penso dos jornalistas; para mim, eles não são muito melhores do que os Apóstolos. Mas diga ao seu amigo Theremon que eu gostaria de me encontrar secretamente com aquele líder dos Apóstolos que ele entrevistou.
— Sim, senhor.
— Dr. Sheerin, gostaria que me emprestasse alguns artigos sobre os efeitos da exposição prolongada à Escuridão.
— Não há problema.
— E você, Siferra… poderia me fornecer um relatório, em termos acessíveis aos leigos, a respeito do que encontrou em Thombo? Inclua todas as provas que puder com relação à periodicidade dos incêndios.
— Ainda não recebi todos os resultados, Dr. Athor. Coisas que nem cheguei a discutir hoje.
Athor franziu a testa.
— O quê, por exemplo?
— Tabuinhas com inscrições. Encontradas no terceiro e quinto níveis a partir de cima. O Dr. Mudrin está tentando traduzi-las. Sua primeira impressão é de que se
trata de textos religiosos, advertindo o povo para um desastre iminente.
— As primeiras edições do Livro das Revelações! — exclamou Beenay.
— É, pode ser que sejam isso mesmo — concordou Siferra. — Seja como for, espero receber em breve a tradução das tabuinhas. Pretendo incluí-la no meu relatório, Dr. Athor.
— Ótimo — disse Athor. — Vamos precisar de tudo que tivermos. Este será o trabalho mais importante de nossas vidas. — Olhou em torno. — Quero que uma coisa fique bem clara logo de saída: minha disposição de aproximar-me dos apóstolos não significa, de forma alguma, que eu pretenda lhes proporcionar uma aura de respeitabilidade. Simplesmente tenho esperança de que nos ajudem a convencer a população de que uma coisa muito séria está para acontecer. Ponto final. Fora isso, quero distância deles. A questão que nos preocupa não tem nada a ver com misticismo. Não acredito em uma palavra daquelas baboseiras a respeito de castigo dos deuses. Estou interessado, porém, em saber como foi que chegaram à conclusão de que vai haver uma catástrofe no ano que vem. Gostaria que vocês tivessem a mesma cautela ao lidar com os Apóstolos. Estamos entendidos?
— Isto tudo parece um sonho — murmurou Beenay.
— Mais parece um pesadelo — disse Athor. — Gostaria de acreditar que tudo não passa de uma fantasia, que o dia 19 de Theptar vai chegar e passar sem que nada aconteça. Infelizmente, os números estão aqui para provar que não é bem assim. — Olhou pela janela. Onos havia se posto e Dovim era um pontinho no horizonte. Estava na hora do crepúsculo. A única luz visível de verdade era a luz fria de Patru e Trey.
— Não há mais razões para duvidarmos. A Escuridão está próxima. Talvez as Estrelas, sejam o que forem, realmente apareçam. A humanidade vai enlouquecer e atear fogo às cidades.
O fim do mundo como o conhecemos está próximo. O fim do mundo!