— Tome cuidado — disse Beenay. Sentia-se tenso. A noite estava chegando. A temida noite do eclipse. — Athor está furioso com você, Theremon. Não sei o que veio fazer aqui. Sabe que sua presença no Observatório não é vista com bons olhos. Especialmente esta noite. E não é de admirar, depois das coisas que andou escrevendo a respeito do chefe…
O jornalista riu.
— Já lhe expliquei. Estou aqui para acalmá-lo.
— Não se confie nisso, Theremon. Você insinuou que ele é um velho gagá, em sua coluna, lembra-se? O chefe é normalmente uma pessoa tranquila, mas vira fera quando se sente ofendido na sua capacidade profissional!
— Olhe, Beenay — disse Theremon, encolhendo os ombros -, antes de me tornar um colunista famoso, eu era um repórter especializado em entrevistas impossíveis. E quero dizer impossíveis. Ás vezes, chegava em casa com manchas roxas pelo corpo. Cheguei a quebrar um osso ou dois, mas sempre consegui minha história. A gente adquire uma certa confiança depois de passar anos deixando as pessoas malucas para conseguir uma reportagem. Posso cuidar muito bem do seu chefe.
— Deixando as pessoas malucas? — Beenay olhou significativamente para o calendário na parede do corredor, que anunciava, em caracteres verde luminosos: THEPTAR 19.
O dia dos dias, a data que não saía da cabeça dos funcionários do Observatório, mês após mês. O último dia de sanidade mental para muitos, talvez todos os habitantes de Kalgash.
— Não foi uma expressão muito feliz para você usar no dia de hoje, não acha?
Theremon sorriu.
— Talvez não. Veremos. — Apontou para a porta fechada do escritório de Athor. — Quem está aí dentro?
— O Dr. Athor, é claro. E minha colega Thilanda, Davnit, Simbron, Hikkinan, todos funcionários do Observatório. Acho que é só.
— E Siferra? Ela me disse que viria.
— Pois ainda não chegou.
Uma expressão de surpresa apareceu no rosto de Theremon.
— Verdade? Quando lhe perguntei outro dia se preferia ficar no Abrigo, praticamente riu na minha cara. Estava firmemente disposta a assistir ao eclipse daqui. Não acredito que tenha mudado de ideia. Aquela mulher não tem medo de nada, Beenay. Bem, talvez esteja resolvendo algumas coisas de última hora no seu escritório.
— É provável.
— E nosso amigo Sheerin? Também não está aqui?
— Não. Sheerin está no Abrigo.
— A coragem não é uma de suas qualidades, hein? Pelo menos ele tem o bom senso de admitir isso. Raissta também está no Abrigo, com Nyilda, a mulher de Athor, e quase todo mundo que eu conheço, exceto os funcionários do Observatório. Se você fosse esperto, também estaria lá, Theremon. Quando a Escuridão chegar, você vai se arrepender de não ter ouvido nossos conselhos.
— Folimun 66, aquele Apóstolo, me disse a mesma coisa há cerca de um ano. Só que o Abrigo que estava me oferecendo era outro. Acontece, amigo, que estou preparado para enfrentar os piores horrores que os deuses tenham reservado para mim. Esta noite, aconteça o que acontecer, vai haver assunto para uma boa reportagem, e eu não poderia fazer uma boa cobertura se estivesse escondido em uma toca debaixo da terra, não é mesmo?
— Não vai haver nenhum jornal amanhã para publicar a sua reportagem, Theremon.
— Você acha mesmo? — Theremon pegou Beenay pelo braço e aproximou-se até que os narizes dos dois quase se tocaram. — Diga-me uma coisa, Beenay. De amigo para amigo. Acha realmente que uma coisa incrível como essa Escuridão vai acontecer daqui a pouco?
— Acho, sim.
— Puxa! Você está falando sério?
— Nunca falei tão sério em minha vida, Theremon.
— Não consigo acreditar. Você parece tão sensato, Beenay. Tão lógico, tão responsável. No entanto, pega um monte de cálculos astronômicos reconhecidamente especulativos, alguns pedaços de carvão escavados em um deserto a milhares de quilômetros daqui, os loucos devaneios de uma seita de fanáticos, mistura tudo e me saí com o mais absurdo coquetel apocalíptico que eu já tive oportunidade de…
— Não é absurdo — insistiu Beenay, tranquilamente. — Faz muito sentido.
— Quer dizer que o mundo realmente vai terminar esta noite.
— O mundo que nós conhecemos e amamos, sim. Theremon largou o braço de Beenay e levantou os braços, exasperado.
— Puxa! Até você! Beenay, há mais de um ano que estou tentando levar esse negócio a sério, mas não consigo. Simplesmente não consigo. Por mais que vocês falem, você, Athor, Siferra, Folimun 66, Mondior e…
— É só esperar — disse Beenay. — Vai acontecer daqui a algumas horas.
— Você está falando sério! — exclamou Theremon, em tom incrédulo. — Sabe de uma coisa? Está se revelando um fanático tão grande quanto o próprio Mondior. Bah! É isso que eu digo, Beenay. Bah! Leve-me à presença de Athor, está bem?
— Ele não vai gostar de ver você aqui. Estou avisando.
— Você já me disse isto. Mesmo assim, quero falar com ele.
Theremon não esperava nunca uma posição contrária à dos cientistas do Observatório. As coisas simplesmente tinham acontecido daquela forma, nos meses que precederam o dia 19 de Theptar.
Era uma questão de integridade jornalística, disse para si próprio. Beenay era um amigo de longa data o Dr. Athor era, sem dúvida, um grande astrônomo e Siferra era… bem, Siferra era uma mulher atraente e interessante, além de arqueóloga de renome. Theremon não tinha interesse em antagonizar aquelas pessoas. Entretanto, tinha que escrever o que pensava. E o que pensava, sem a menor sombra de dúvida, era que o grupo do Observatório estava sendo tão irresponsável quanto os Apóstolos do Fogo, e tão perigoso quanto eles para a estabilidade da sociedade.
Não havia maneira possível de levar a sério o que afirmavam. Quanto mais tempo passava no Observatório, mas absurda lhe parecia toda a situação.
Um planeta invisível e aparentemente impossível de detectar, vagando no céu em uma órbita tal que se aproximava de Kalgash algumas vezes em cada século? Uma configuração especial dos sóis que deixaria Dovim sozinho no céu na próxima vez em que o planeta invisível se aproximasse? A luz de Dovim bloqueada pelo planeta, fazendo com que Kalgash fosse tomado pela Escuridão? A Escuridão provocando uma loucura coletiva? Não, não, era demais.
Para Theremon, tudo aquilo parecia tão ridículo quanto as bobagens que os Apóstolos do Fogo vinham pregando há muitos anos. A única diferença era que os Apóstolos incluíam na história objetos misteriosos chamados Estrelas. O pessoal do Observatório, pelo menos, tinha o bom senso de admitir que não faziam a menor ideia do que eram as Estrelas. De acordo com os Apóstolos, eram outro tipo de corpos celestes invisíveis, que apareceriam de repente no céu quando o Ano de Divindade terminasse e a ira dos deuses se abatesse sobre Kalgash.
— Nisso eu não acredito — dissera Beenay certa noite, quando os dois tomavam um drinque no Clube Seis Sóis. Faltavam ainda seis meses para o eclipse. — No eclipse e na Escuridão, sim. Nas Estrelas, não. Não há nada no universo a não ser o nosso mundo, os seis sóis, alguns asteroides insignificantes… e Kalgash Dois, é claro. Se as Estrelas existem, por que não podemos perceber sua presença? Por que não perturbam a órbita de nosso planeta, como Kalgash Dois? Não, Theremon, se as Estrelas existissem, teria que haver um erro na Teoria da Gravitação Universal. E sabemos que a teoria está certa.
— Sabemos que a teoria está certa — afirmara Beenay. Mas não era a mesma coisa que Folimun declarar: “Sabemos que o Livro das Revelações está dizendo a verdade”?
No começo, quando Beenay e Sheerin contaram-lhe que estava para ocorrer um período de Escuridão que seria catastrófico para a humanidade, Theremon, meio céptico, meio impressionado pelas visões apocalípticas dos dois cientistas, fizera o possível para ajudá-los.
— Athor precisa ter uma conversa com Folimun — dissera Beenay. — Ele quer saber se os Apóstolos dispõem de registros astronômicos antigos que possam confirmar nossas teorias. Você pode conseguir uma entrevista para ele?
— É curioso — dissera Theremon. — O velho e intolerante cientista disposto a trocar ideias com o porta-voz das forças da anticiência. Mas verei o que posso fazer.
Na verdade, tinha sido surpreendentemente fácil marcar o encontro. Theremon tinha combinado entrevistar Folimun mais uma vez. O Apóstolo marcou uma audiência para o dia seguinte.
— Athor? — disse Folimun, quando o jornalista comunicou-lhe que Athor compareceria em seu lugar. — O que ele teria para falar comigo?
— Talvez pretenda se tornar um Apóstolo — sugeriu Theremon, em tom de brincadeira.
Folimun riu.
— Acho pouco provável. Pelo que eu conheço dele, preferiria pintar o corpo de roxo e desfilar sem roupa pela Avenida Saro.
— Quem sabe ele se converteu? — disse Theremon. E acrescentou, depois de uma pausa sugestiva: — O que sei é que ele e seu grupo conseguiram alguns dados que apoiam a crença de vocês de que a Escuridão vai destruir o mundo no próximo dia 19 de Theptar.
Folimun se permitiu uma ligeira demonstração de interesse, um quase imperceptível levantar de sobrancelha.
— Seria fascinante, se fosse verdade — disse, calmamente.
— Terá que conversar pessoalmente com ele Para se convencer de que estou falando sério.
— Pode ser que eu faça isso — declarou o Apóstolo.
E de fato fez. Theremon jamais conseguiu descobrir exatamente como tinha sido a conversa entre Folimun e Athor. Não havia testemunhas do encontro, e os dois foram extremamente evasivos. Beenay, a principal ligação de Theremon com o Observatório, pôde oferecer apenas vagos palpites.
— Teve algo a ver com os velhos registros astronômicos que o chefe acredita que estejam de posse dos Apóstolos afirmou Beenay. — Athor desconfia que eles vêm passando essas informações de geração em geração durante vários séculos, talvez mesmo antes do último eclipse. Alguns trechos do Livro das Revelações foram escritos em uma língua desconhecida, você sabe.
— Quem garante que seja uma língua? Pode ser que não passem de uma série de palavras sem nexo.
— Eu, com certeza, não garanto. Mas alguns filólogos de renome acreditam que as passagens podem ter sido escritas em uma língua antiga — disse Beenay. — E se os Apóstolos souberem traduzir essa língua? Pode ser que eles guardem esse conhecimento em segredo, escondendo assim dos que não estão iniciados os dados astronômicos que podem ter sido registrados no Livro das Revelações. Talvez seja isso que Athor esteja procurando.
Theremon parecia indignado.
— Está querendo dizer que o astrônomo mais famoso do nosso tempo, talvez o mais famoso de todos os tempos, precisa do apoio de um bando de religiosos histéricos para sua teoria científica?
— Tudo que sei, Theremon, é que, como eu e você, Athor não morre de amores pelos Apóstolos e sua doutrina, mas, mesmo assim, gostaria de conversar com seu amigo Folimun.
— Ele não é meu amigo! Minhas relações com ele são puramente profissionais!
— Seja como for… — começou Beenay.
Theremon interrompeu-o. Surpreendeu-se ao se dar conta de que estava realmente ficando irritado.
— Fique sabendo que, na minha opinião, vocês não deviam fazer nenhum tipo de trato com os Apóstolos. Para mim, eles representam a própria Escuridão. São a seita mais reacionária, mais retrógrada, mais obscurantista que conheço. Já basta que psicóticos como eles comecem a espalhar profecias delirantes para perturbar a tranquilidade dos cidadãos comuns. Se um homem com o prestígio de Athor resolver apoiar essas previsões apocalípticas, incorporando parte da doutrina dos Apóstolos a suas teorias científicas, vou começar a encarar com muita suspeita, meu amigo, tudo que sair do seu Observatório daqui em diante.
O rosto de Beenay revelava a sua preocupação.
— Se você soubesse, Theremon, como Athor fala com desprezo dos Apóstolos…
— Nesse caso, por que quer se encontrar com eles?
— Você mesmo não foi falar com Folimun?
— Isso é diferente. Certos ou não, os Apóstolos são notícia. Faz parte do meu trabalho descobrir o que pretendem.
— Pode ser que Athor pense da mesma forma — argumentou Beenay.
Foi nessa altura que decidiram encerrar a discussão. Ela estava ameaçando se transformar em uma briga, coisa que nenhum dos dois queria. Como Beenay de fato não tinha nenhuma ideia do tipo de entendimento a que Athor e Folimun pudessem ter chegado, Theremon não via nenhuma razão para insistir no assunto.
Mais tarde, porém, Theremon se deu conta de que tinha sido depois daquela conversa com Beenay que sua atitude com relação a Beenay, Sheerin e o resto do pessoal do Observatório começara a mudar. De um espectador simpático e curioso, transformara-se em um crítico impiedoso. Embora ele próprio tivesse ajudado a promover o encontro do diretor do Observatório com o Apóstolo, esse encontro agora lhe parecia uma rendição da pior espécie, uma capitulação ingênua por parte de Athor às forças da ignorância cega.
Embora jamais tivesse realmente chegado a acreditar nas teorias dos cientistas, apesar das supostas “provas” que lhe foram oferecidas, Theremon assumira uma posição neutra na sua coluna quando as primeiras notícias a respeito do eclipse começaram a aparecer na Crônica.
“É uma previsão notável”, escrevera ele, “e também assustadora — se verdadeira. Como afirma Athor 77, e com toda razão, uma Escuridão em escala mundial poderia levar a uma catástrofe de dimensões incalculáveis. Esta manhã, porém, do outro lado do mundo, uma voz discordante se fez ouvir. “Com todo o respeito pelo grande Athor 77”, declarou Heranian 1104, Astrônomo Real do Observatório Imperial de Kanipilitiniuk, “ainda não existem provas concretas da existência do astro chamado Kalgash Dois e muito menos de que esse astro seja capaz de causar um eclipse como o que foi previsto pelo grupo de Saro. Não devemos nos esquecer de que os sóis, mesmo um sol pequeno como Dovim, são necessariamente muito maiores do que qualquer corpo sem luz própria, como o suposto satélite. Considero extremamente improvável que um satélite possa bloquear por completo a luz de qualquer dos nossos sóis ……
Pouco depois, porém, veio o discurso de Mondior 71, no dia treze de Umilithar, no qual o Sumo Apóstolo declarou com orgulho que o maior astrônomo do mundo havia confirmado as palavras do Livro das Revelações. “A voz da ciência e a voz do céu agora são uma única voz”, dissera Mondior. “Em verdade eu vos digo: não depositeis vossa esperança em sonhos e milagres. O que tem que ser, será. Nada pode salvar o mundo da ira dos deuses, nada exceto o desejo sincero de renunciar ao pecado e à maldade e voltar ao caminho do bem e da virtude. ”
O pronunciamento bombástico de Mondior pusera fim à neutralidade de Theremon. Em consideração à amizade de Beenay, ele se esforçara para levar a sério a hipótese do eclipse. Agora, porém, começava a vê-la com outros olhos. Parecia que um grupo de cientistas, deixando-se levar pelo próprio entusiasmo e por uma série de coincidências e provas circunstanciais, estava apoiando a teoria mais absurda e sensacionalista da história da ciência.
No dia seguinte, a coluna de Theremon comentava: “O leitor deve estar se perguntando, como eu: como foi que os Apóstolos do Fogo conseguiram o apoio de Athor 77?
De todas as pessoas do mundo, o velho astrônomo deveria ser a última a concordar com as alegações pouco científicas daqueles fanáticos. Será que algum Apóstolo muito persuasivo conseguiu convencer o mestre com seus argumentos? Ou será simplesmente o caso, como andam cochichando atrás dos muros cobertos de hera da Universidade de Saro, de alguém que continuou na ativa quando já devia ter sido aposentado há algum tempo?
E aquilo foi apenas o começo.
Theremon agora sabia qual era o seu dever. Se as pessoas começassem a levar a sério aquela história de eclipse, os casos de colapso nervoso se multiplicariam, mesmo sem a Escuridão para provocá-los.
Se todos acreditassem que o mundo iria realmente acabar no dia 19 de Theptar, haveria pânico nas ruas muito antes daquela data, histeria universal, um colapso da lei e da ordem, um período prolongado de instabilidade e apreensão generalizada, seguidos por sabe lá que tipo de convulsão social, quando o dia temido passasse sem que nada acontecesse. Ele, como jornalista, tinha o dever de neutralizar o medo do Cair da Noite, da Escuridão, do Fim do Mundo, submetendo-o à lança afiada do ridículo.
Assim, quando Mondior vociferou que a vingança dos deuses estava a caminho, Theremon 762 replicou com imagens bem-humoradas de como seria o mundo se os Apóstolos conseguissem “reformar” a sociedade de acordo com sua doutrina: as pessoas indo à praia com trajes de banho até os tornozelos, longas sessões de oração antes dos eventos esportivos, todos os grandes livros e peças clássicas submetidos ao crivo impiedoso da censura para eliminar as passagens consideradas profanas.
E quando Athor e seu grupo divulgaram diagramas mostrando a órbita do invisível Kalgash Dois a caminho do seu encontro fatídico com a luz vermelha de Dovim, Theremon falou de dragões, gigantes invisíveis e outros monstros mitológicos cabriolando pelo céu.
Quando Mondior mencionou a autoridade científica de Athor 77 como argumento em apoio aos ensinamentos dos Apóstolos, Theremon respondeu perguntando como alguém poderia levar a sério as teorias de Athor 77, agora que o velho astrônomo havia perdido totalmente o juízo.
Quando Athor propôs um programa de emergência para armazenar alimentos, informações técnicas e científicas e tudo mais que pudesse ser necessário depois que a insanidade se disseminasse, Theremon observou que, em alguns lugares, a insanidade já se havia disseminado, e publicou uma lista de artigos essenciais a serem guardados no porão de todas as residências (“abridores de latas, percevejos, cópias da tabuada de multiplicar, dois baralhos… Escreva o seu nome em uma etiqueta e amarre-o no pulso direito, porque depois da Escuridão pode ser que você não se lembre mais dele… Amarre no pulso esquerdo uma etiqueta com os dizeres: Para saber qual é o seu nome, consulte a etiqueta que está no outro pulso… “)
Depois que Theremon escreveu vários artigos na mesma linha, ficou difícil para os leitores decidir que grupo era mais absurdo: os fanáticos profetas do desastre dos Apóstolos do Fogo ou os crédulos cientistas da Universidade de Saro. Uma coisa, porém, era certa: graças a Theremon, ninguém acreditava que algo fora do comum fosse ocorrer na noite do dia 19 de Theptar.
Athor olhou, furioso, para o repórter da Crônica. Conseguiu controlar-se com esforço.
— O senhor aqui? Depois de tudo que disse? É muita audácia!
Theremon havia estendido a mão como se realmente esperasse que Athor a apertasse. Logo, porém, recolheu-a e ficou olhando para o diretor do Observatório com surpreendente despreocupação.
Com a voz trêmula de raiva contida, Athor exclamou:
— Sua presença aqui esta noite é uma afronta!
De um canto do quarto, Beenay, depois de passar a língua nos lábios, interveio nervosamente:
— Professor, apesar de tudo…
— Foi você quem o convidou? Não sabe que proibi expressamente…
— Professor, eu…
— Quem me convidou foi a Dra. Siferra — disse Theremon. — Ela insistiu para que eu viesse.
— Siferra? Siferra? Não acredito. Ela disse-me há pouco tempo que o considerava um tolo irresponsável. Falou do senhor usando termos que eu não gostaria de repetir. – Athor olhou em volta. — A propósito: onde está ela? Devia estar aqui, não devia? — Ninguém disse nada. Voltando-se para Beenay, Athor disse: — Foi você que trouxe este jornalista, Beenay. Seu comportamento é inexplicável. Este não é momento para insubordinações. O Observatório está fechado para repórteres esta noite. E faz muito tempo que está fechado para este repórter em particular. Por favor, mostre-lhe a saída.
— Sr. Diretor — disse Theremon -, se me deixar explicar as razões…
— Nada do que tem a dizer poderia compensar o que escreveu diariamente em sua coluna durante os últimos dois meses. O senhor comandou uma vasta campanha jornalística com o objetivo de impedir que eu e meus colegas preparássemos o mundo para o perigo que teremos que enfrentar daqui a pouco. Fez o que pôde, com seus ataques altamente pessoais, para ridicularizar os funcionários deste Observatório.
Pegou na mesa um exemplar da Crônica e o brandiu, furioso, na direção de Theremon.
— Mesmo uma pessoa com a sua conhecida desfaçatez deveria hesitar antes de vir aqui pedir permissão para cobrir os acontecimentos de hoje para o seu jornal. De todos os repórteres, logo o senhor!
Athor jogou o jornal no chão, aproximou-se da janela e colocou os braços atrás das costas.
— Beenay, tire-o daqui.
A cabeça de Athor estava latejando. Era importante, ele sabia, manter a raiva sob controle. Não podia permitir que nada distraísse sua atenção do evento cataclísmico que estava para ocorrer. Olhou, pensativo, para a silhueta dos edifícios da cidade de Saro e procurou acalmar-se. Onos estava se pondo. Sua luz já era fraca por causa da proximidade do horizonte.
Athor sabia que jamais tornaria a vê-lo, em seu juízo perfeito.
A luz branca e fria de Sitha também era visível, baixa no céu, muito longe da cidade, no lado oposto do horizonte. Tano, o sol gêmeo de Sitha, já havia se posto.
Estava agora iluminando o céu do outro hemisfério, onde em breve ocorreria o fenômeno extraordinário de um dia de cinco sóis. O próprio Sitha estava para se pôr. Mais alguns momentos e desapareceria.
Atrás dele, ouviu Beenay e Theremon conversando em voz baixa.
— Esse homem ainda está aí? — perguntou, em tom ameaçador.
— Professor, acho que deveria ouvir o que ele tem a dizer — argumentou Beenay.
— Acha mesmo? Acha que eu deveria ouvi-lo? — Athor voltou-se para encarar o assistente. Seus olhos brilhavam de raiva. — Oh, não, Beenay. Não, é ele que vai me escutar! Fez um gesto peremptório para o jornalista, que não havia feito nenhuma menção de se retirar. — Venha cá, rapaz! Vai ter a sua reportagem.
Theremon aproximou-se devagar. Athor apontou para fora.
— Sitha vai se pôr a qualquer momento. Não, já se pôs. Onos também vai desaparecer em breve. Dos seis sóis, vai ficar apenas Dovim. Está vendo Dovim?
A pergunta era desnecessária. O pequeno sol vermelho parecia ainda menor naquela noite. Entretanto, estava quase no zênite, e sua luz rubra inundava a paisagem, produzindo um efeito extraordinário, enquanto os raios brilhantes de Onos desapareciam. O rosto de Athor refletia a luz de Dovim.
— Em pouco menos de quatro horas, a civilização, como a conhecemos, vai desaparecer — disse para o repórter. — Isto porque, como está vendo, Dovim será o único sol no céu. — Olhou para o horizonte com os olhos semicerrados. Os últimos raios amarelos de Onos haviam desaparecido. — Pronto. Dovim está só! Temos quatro horas, apenas, até tudo terminar. Escreva isto! Infelizmente, não haverá ninguém para ler.
— E se as quatro horas se passarem… e outras quatro… e nada acontecer? — perguntou Theremon, tranquilamente.
— Não se preocupe. Vai acontecer muita coisa, eu lhe asseguro.
— Talvez. E se não acontecer?
Athor parecia a ponto de perder a paciência.
— Se não for embora agora, e se Beenay se recusar a tirá-lo daqui, vou chamar os guardas da universidade e… Não. Na última noite de civilização, devemos agir de maneira civilizada. Tem cinco minutos, rapaz, para dizer o que deseja. Depois de ouvi-lo, caberá a mim decidir se pode ficar para ver o eclipse. Se eu decidir que não, irá embora na mesma hora. Entendeu?
Theremon hesitou apenas por um momento.
— É justo.
Athor tirou o relógio do bolso.
— Cinco minutos.
— Ótimo! Primeira coisa: que diferença faria se o senhor me permitisse assistir pessoalmente ao que está para acontecer? Se sua previsão se concretizar, minha presença não causará mal algum, pois, nesse caso, minha coluna jamais será escrita. Por outro lado, se nada acontecer, o senhor será forçosamente exposto ao ridículo ou coisa pior. Seria mais sábio deixar esse ridículo em mãos amigas.
Athor fez um muxoxo.
— Você quer dizer as suas?
— Claro que sim! — respondeu Theremon, sentando-se na cadeira mais confortável da sala e cruzando as pernas. Meus artigos podem ter sido um pouco agressivos, mas, sempre que possível, concedi à sua equipe o benefício da dúvida. Afinal de contas, Beenay é meu amigo. Foi através dele que fiquei sabendo o que estão fazendo aqui. O senhor deve lembrar-se que no começo encarei a pesquisa deste Observatório com muita simpatia. O que não compreendo, Dr. Athor, é como o senhor, um dos maiores cientistas de nossa história, pode voltar as costas ao fato de que o século atual representa o triunfo da razão sobre a superstição, dos fatos sobre as fantasias, do conhecimento sobre o medo. Os Apóstolos do Fogo são um anacronismo absurdo. O Livro das Revelações é um amontoado de bobagens infantis. Todas as pessoas inteligentes, todas as pessoas modernas, sabem disso. Por isso, as pessoas ficam surpresas, e até mesmo irritadas, quando os cientistas mudam de ideia e declaram que o que esses fanáticos estão pregando é verdade. Eles…
— Não me venha com essa — protestou Athor. — Embora parte dos nossos dados tenha sido fornecida pelos Apóstolos, nossas conclusões nada têm a ver com o seu misticismo. Fatos são fatos, e a chamada mitologia dos Apóstolos realmente se baseia em certos fatos. Não pense que esta descoberta nos trouxe prazer. Mas procuramos colocar as coisas nas devidas proporções e fizemos o possível para separar as advertências dos Apóstolos quanto a um desastre iminente, que consideramos legítimas, de seu programa absurdo para transformar e “reformar” a sociedade. Asseguro-lhe que os Apóstolos me odeiam ainda mais do que o senhor.
— Não odeio o senhor. Estou apenas tentando explicar-lhe que o público está de mau humor. Eles estão zangados.
Athor torceu a boca em um esgar de desdém.
— Que fiquem zangados!
— Está bem, mas e amanhã?
— Não haverá amanhã!
— E se houver? Imagine que haja, só para argumentar. Esse aborrecimento pode se transformar em algo mais sério. Afinal de contas, o senhor sabe, os negócios despencaram nos últimos dois meses. A bolsa de valores quebrou três vezes. Os investidores mais sensíveis não acreditam que o mundo esteja chegando ao fim, pensam que outros investidores podem começar a pensar assim, e os mais espertos vendam antes do pânico ter início… embora eles próprios desencadeiem esse início. Então eles compram de volta para vender de novo tão logo o mercado dê sinais de recuperação, reiniciando assim todo o ciclo. E o que acha que está ocorrendo com os negócios? O público também não acredita no senhor, mas a nova mobília também pode esperar alguns meses, por via das dúvidas. O senhor está vendo onde quero chegar. Assim que tudo estiver terminado, os comerciantes vão querer a sua pele. Vão alegar que se qualquer maluco, com o perdão da palavra, pode pôr em risco a economia da nação na hora que quiser, simplesmente fazendo uma previsão extravagante, está na hora de as autoridades tomarem alguma providência a respeito. A coisa vai ficar feia, diretor.
Athor olhou para o repórter com indiferença. Os cinco minutos estavam quase acabando.
— E o que o senhor propõe para remediar a situação?
— Bem… — Theremon sorriu -…o que tenho em mente é o seguinte: a partir de amanhã, serei o seu relações públicas extraoficial. Em outras palavras, farei o que estiver ao meu alcance para aplacar a ira do público, assim como tenho feito o que posso para aliviar a tensão que tomou conta do nosso povo nos últimos tempos. Se for necessário, cuidarei para que apenas o lado ridículo, o lado do humor apareça. Vai ser difícil de agüentar, reconheço, porque terei que fazer com que vocês todos fiquem parecendo um bando de idiotas, mas se eu conseguir que as pessoas riam, pode ser que esqueçam de ficar zangadas. Tudo que peço em troca é o direito de cobrir com exclusividade o que se passar no Observatório esta noite.
Athor não disse nada. Beenay fez que sim com a cabeça e desabafou:
— Professor, é uma proposta justa. Sei que consideramos todas as possibilidades, mas há sempre uma probabilidade de um em um milhão, de um em um bilhão, de que haja um erro em nossa teoria ou em nossos cálculos. E se houver…
Houve um murmúrio entre os funcionários reunidos na sala, e Athor teve a impressão de que concordavam com a opinião de Beenay. Será que todo o departamento se havia voltado contra ele? A expressão de Athor foi a de um homem que está com a boca cheia de uma substância amarga e não consegue se livrar dela.
— Deixá-lo ficar para que amanhã nos exponha ao ridículo? Deve estar pensando que fiquei senil, rapaz.
— Já expliquei ao senhor que minha presença aqui não fará a menor diferença — argumentou Theremon. — Se houver um eclipse, se a Escuridão realmente vier, darei a mão à palmatória e farei o que puder para ajudá-los a superar os momentos de crise que na certa se seguirão. E se nada acontecer, sou a pessoa mais indicada para protegê-los da ira popular…
— Por favor, deixe-o ficar, Dr. Athor — disse uma nova voz.
Athor virou a cabeça, surpreso. Siferra havia entrado sem ser notada.
— Desculpe o atraso. Tivemos um probleminha de última hora no departamento de arqueologia e… — Ela e Theremon trocaram olhares. — Por favor, não se ofenda — disse para Athor. — Sei que ele nos atacou de forma impiedosa. Mesmo assim, pedi-lhe para vir aqui esta noite, para constatar pessoalmente que estávamos com a razão. Ele é… ele é meu convidado, Dr. Athor.
Athor fechou os olhos por um momento. Convidado de Siferra! Era demais. Por que não convidar Folimun, também? E por que não, Mondior?
Mas ele tinha perdido a vontade de discutir. O tempo estava passando, e os outros pareciam não se incomodar com a presença de Theremon. Que importava?
Que importava qualquer coisa, agora?
Athor disse para o repórter, em tom resignado:
— Está bem. Fique, se é isso que quer. Fica entendido, porém, que sua presença não deve prejudicar de nenhuma forma nossas atividades normais. Lembre-se também de que sou o diretor deste Observatório, a despeito de sua opinião a meu respeito, que deixou tão clara em seus artigos, espero total cooperação e respeito…
Siferra aproximou-se de Theremon e disse:
— Na verdade, não esperava que viesse aqui esta noite.
— Por que não? Estava falando sério quando me convidou, não estava?
— É claro que sim. Mas você nos atacou com tanta veemência em seus artigos… de forma tão… cruel…
— “Irresponsável” foi a palavra que você usou — declarou Theremon.
Siferra enrubesceu.
— Irresponsável, também. Não imaginei que tivesse coragem de encarar o Dr. Athor depois das coisas horríveis que andou dizendo a respeito dele.
— Se as sombrias previsões do diretor se cumprirem, vou fazer mais do que encará-lo. vou ajoelhar-me diante dele e pedir perdão com toda a humildade.
— E se as previsões do Dr. Athor não se cumprirem?
— Nesse caso, ele vai precisar de mim — disse Theremon.
— Vocês todos vão. Este é o lugar certo para mim, esta noite.
Siferra olhou surpresa para o jornalista. Ele estava sempre dizendo coisas inesperadas. Ainda não sabia ao certo o que pensar dele. Não simpatizava com Theremon, é claro… e isto bastava. Sua profissão, sua maneira de falar, as roupas espalhafatosas que usava, tudo lhe parecia superficial e vulgar. Para ela, o repórter era um símbolo do mundo rude, grosseiro, árido, ordinário, repelente que havia do lado de fora dos muros da universidade e que sempre detestara.
No entanto, no entanto…
Havia algumas coisas em Theremon que era forçada a admirar, apesar de tudo. Por exemplo: o jornalista não descansava enquanto não conseguia o que queria. Isso agradava a Siferra. Era sincero a ponto de ser grosseiro, muito diferente dos intelectuais melífluos, hipócritas, sequiosos de poder com os quais estava habituada a conviver no campus. Era inteligente, também, quanto a isso não havia a menor dúvida, embora tivesse aplicado sua inteligência viva, especulativa, a um campo trivial como o jornalismo de escândalo. E respeitava seu vigor físico. Theremon era alto, forte e parecia estar em ótima forma. A arqueóloga jamais apreciara tipos franzinos.
Ela própria sempre praticara exercícios.
Na verdade, tinha que reconhecer (por mais estranho que fosse, por mais que isso a incomodasse) que sentia uma certa atração pelo jornalista. Uma atração de opostos? pensou. Sim, sim, talvez fosse isso. Mas não inteiramente. Por trás das diferenças superficiais, Siferra sabia que ela e Theremon tinham muita coisa em comum, mais do que estava disposta a admitir. Olhou pela janela, nervosa.
— Está ficando escuro. Não me lembro de um dia tão escuro.
— Está com medo? — perguntou Theremon.
— Medo da Escuridão? Oh, não. Mas estou com medo do que pode acontecer. Você devia estar, também.
— O que vai acontecer é que Onos vai nascer e depois os outros sóis, e tudo voltará a ser como antes.
— Você parece muito confiante.
Theremon riu.
— Onos nasceu em todas as manhãs de minha vida. Por que amanhã seria diferente?
Siferra sacudiu a cabeça. A teimosia do repórter estava começando a irritá-la. Era difícil acreditar que há poucos momentos estava dizendo a si própria que o considerava atraente.
— É claro que Onos vai nascer amanhã — disse, em tom glacial. — E seus raios vão iluminar uma cena de devastação que uma pessoa com sua imaginação limitada é evidentemente incapaz de conceber.
— Tudo em chamas, você quer dizer? E as pessoas babando e murmurando palavras sem nexo enquanto as cidades queimam?
— De acordo com os achados arqueológicos…
— Incêndios, sim. Vários holocaustos. Mas apenas em uma região limitada, a milhares de quilômetros daqui e há milhares de anos atrás. — Os olhos de Theremon brilharam com súbita vitalidade. — E onde estão as provas arqueológicas de que tenha havido uma insanidade coletiva? Está extraindo esta conclusão apenas dos incêndios? Como pode estar certa de que não se tratava de fogueiras rituais, acendidas por homens e mulheres em seu juízo perfeito, na esperança de que expulsassem a Escuridão e trouxessem os sóis de volta? Fogueiras que talvez tenham escapado de controle e causado grandes incêndios, sim, mas sem que isso implicasse em nenhuma perturbação mental dos habitantes…
Siferra olhou-o nos olhos.
— Nós temos as provas arqueológicas que você está reclamando. De que os habitantes sofreram algum tipo de perturbação mental, quero dizer.
— Têm?
— Estão nas tabuinhas. Esta manhã, conseguimos traduzir algumas delas, com o auxílio dos Apóstolos do Fogo, e…
Theremon deu uma gargalhada.
— Com o auxílio dos Apóstolos do Fogo! Excelente! Quer dizer que você também se tornou uma deles! É uma pena, Siferra. Uma mulher com um corpo como o seu, e de agora em diante terá que se esconder por baixo daquelas vestes horrorosas…
— Theremon! — exclamou a arqueóloga, furiosa. — Você não leva nada a sério, não é? Está tão convencido de que é o dono da verdade que, ao ser confrontado com alguma coisa que não lhe agrada, arranja jeito de fazer uma piada sem graça! Você é mesmo impossível!
Deu-lhe as costas e foi para o outro lado da sala.
— Siferra… Siferra, espere…
Ela o ignorou. Estava tremendo de raiva. Agora compreendia que fora um erro convidar alguém como Theremon para estar com eles na noite do eclipse. Na verdade, fora um erro ter qualquer coisa a ver com o repórter.
A culpa era de Beenay, pensou. Era tudo culpa de Beenay. Afinal, tinha sido Beenay que a apresentara a Theremon, no Clube Universitário, alguns meses antes. Aparentemente, o astrônomo e o jornalista se conheciam há muito tempo, e Theremon consultava Beenay a respeito de questões científicas que se tornavam notícia.
O que estava nas manchetes dos jornais na ocasião era a previsão de Mondior 71 de que o mundo acabaria no dia 19 de Theptar, dali a aproximadamente um ano. É claro que ninguém na universidade sentia a menor simpatia por Mondior e seus Apóstolos, mas tinha sido mais ou menos na mesma ocasião que Beenay observara irregularidades na órbita de Kalgash e Siferra encontrara, na colina de Thombo, indícios de incêndios que ocorriam a intervalos de dois mil anos. As duas descobertas, infelizmente, apoiavam as alegações dos Apóstolos.
Theremon parecia conhecer de perto o trabalho de Siferra em Beklimot. Quando o jornalista entrou no Clube Universitário (Siferra e Beenay já estavam lá, por mera casualidade), Beenay teve apenas que dizer:
— Theremon, esta é minha amiga, a Dra. Siferra, do departamento de arqueologia.
E Theremon respondeu em seguida:
— Sim. A pilha de cidades incendiadas naquela colina.
Siferra sorriu friamente.
— O senhor ouviu falar?
— Fui eu que contei — Beenay apressou-se a explicar. — Sei que prometi não comentar com ele, mas depois que você revelou tudo a Athor, Sheerin e os outros, achei que não havia mal em contar a Theremon, contanto que ele se comprometesse a guardar segredo. Eu confio neste homem, Siferra. Tenho certeza de que…
— Tudo bem, Beenay — disse Siferra, esforçando-se para não demonstrar o aborrecimento que sentia. — Você realmente não devia ter dito nada. Mas eu perdôo você.
— Não se preocupe — disse Theremon. — Beenay fez-me jurar solenemente que não publicarei uma única palavra respeito. Mas é fascinante! Fascinante! Quantos anos tem cidade mais antiga? Cinquenta mil anos?
— Não mais que quinze mil — corrigiu Siferra. — O que, mesmo assim, é muito, considerando que Beklimot… já ouviu falar de Beklimot, não é? Pois é. Beklimot tem apenas dois mil e poucos anos de idade, e era considerada até agora a cidade mais antiga do planeta. O senhor não está pretendendo escrever uma reportagem a respeito das minhas descobertas, está?
— Na verdade, não estava. Como disse, dei minha palavra a Beenay. Além disso, a questão me parecia um pouco remota para os leitores da Crônica. Agora, porém, acho que talvez valha a pena aprofundar o assunto. Gostaria de me encontrar de novo com a senhora para discutir os detalhes de sua descoberta.
— Isso não será possível — declarou Siferra.
— O quê? Encontrar-se comigo ou discutir os detalhes de sua descoberta?
A observação fez a arqueóloga encarar toda a conversa por um novo prisma. Percebeu, surpresa e levemente irritada, que o repórter se sentia atraído por ela como mulher. E se deu conta de que, nos últimos minutos, Theremon devia estar imaginando se havia alguma coisa entre ela e Beenay, já que estavam juntos quando ele entrara no clube. Devia ter chegado à conclusão de que eram apenas amigos e aproveitara a primeira oportunidade para demonstrar seu interesse.
Ora, o problema era dele, pensou Siferra. Respondeu, em tom deliberadamente neutro:
— Ainda não publiquei minha descoberta em nenhuma revista científica. Até que o faça, não seria ético permitir que ela seja divulgada pela imprensa.
— Compreendo perfeitamente. E se eu prometer que a reportagem só será publicada quando a senhora autorizar? Concordaria em me revelar mais detalhes sobre o que descobriu?
— Bem.
Olhou para Beenay. Não estava acostumada a acreditar em promessas de repórteres.
— Pode confiar em Theremon — assegurou Beenay. — Já lhe disse: é o jornalista mais honrado que conheço.
— O que não quer dizer muita coisa — observou Theremon, com um sorriso. — Mas eu jamais quebraria minha palavra em um caso como este, que envolve a questão de prioridade em uma descoberta científica. Se eu publicasse sua história imediatamente, Beenay faria com que a universidade me colocasse na lista negra. E muitas das minhas reportagens mais interessantes são conseguidas através dos meus contatos na universidade. Posso, então, contar com uma entrevista com a senhora? Depois de amanhã, digamos?
Foi assim que tudo começou.
Theremon era muito persuasivo. Siferra finalmente concordou em almoçar com ele e, pouco a pouco, sem pressa, ele conseguiu extrair todos os detalhes da descoberta de Thombo. Depois, a moça ficou preocupada — esperava encontrar uma reportagem sensacionalista na Crônica logo no dia seguinte — mas Theremon manteve a palavra e não escreveu uma única linha a respeito. Entretanto, pediu para visitar o laboratório da arqueóloga. Mais uma vez, ela concordou, deixando que o jornalista examinasse os mapas, as fotografias, as amostras de cinzas. Ele fez algumas perguntas inteligentes.
— Você não vai publicar isso amanhã, vai? — perguntou Siferra, preocupada.
— Nós temos um trato, não temos? Não vou publicar nada até você dizer-me que o seu artigo foi aceito por uma revisa científica. Que acha de jantarmos juntos amanhã no Clube Seis Sóis?
— Bem…
— Ou depois de amanhã?
Siferra não costumava frequentar lugares como o Clube Seis Sóis. Detestaria dar a alguém a falsa impressão de que estava interessada em aparecer nas colunas sociais. Entretanto, não era fácil recusar um convite de Theremon com habilidade e persistência, praticamente obrigou-a a concordar em sair com ele, dali a dez dias. E daí?, pensou a arqueóloga. Tinha boa aparência. Estava mesmo precisando se distrair um pouco, depois de tanto trabalho. Encontrou-se com ele no Seis Sóis, onde todos pareciam conhecê-lo. Pediram aperitivos e depois um jantar regado a vinho, um vinho excelente da província de Thamian. Ele conduziu a conversa para cá e para lá, com muita habilidade: um pouco sobre a vida de Siferra, sua paixão pela arqueologia, suas escavações em Beklimot. O repórter descobriu que ela nunca se casara nem pensara em se casar. Falou com ela sobre os Apóstolos, suas fantásticas profecias, a surpreendente relação que havia entre as descobertas de Thombo e as previsões de Mondior. Tudo que ele dizia era razoável, sensato, interessante. Era um homem encantador… e também muito seguro de si, pensou a moça.
No final da noite, perguntou-lhe (com toda a gentileza, elegância e simplicidade) se podia acompanhá-la até em casa. Siferra disse que não.
Ele não pareceu ficar aborrecido, limitou-se a convidá-la para sair de novo.
Tinham saído mais duas ou três vezes, em um período de cerca de dois meses. O formato era sempre o mesmo: jantar em um bom restaurante, uma conversa agradável e no final, um convite sutil para dormirem juntos. A arqueóloga recusou-se todas as vezes. Aquele assédio bem-humorado estava se tornando um jogo agradável para ela.
Imaginou quanto tempo duraria. Ainda não sentia vontade de ir para a cama com o jornalista, mas o engraçado é que a ideia também não lhe desagradava totalmente.
Há muito tempo que não se sentia assim em relação a um homem.
Foi então que saiu o primeiro da série de artigos em que Theremon. questionava as teorias do Observatório, punha em dúvida a sanidade mental de Athor e comparava a previsão do eclipse às ridículas profecias dos Apóstolos do Fogo.
A princípio, Siferra recusou-se a acreditar. Aquilo seria algum tipo de piada?
O amigo de Beenay, ou por outra, o seu amigo, atacando os cientistas de forma tão impiedosa?
Passaram-se dois meses. Os ataques continuaram. Theremon não voltou a procurá-la. Afinal, não agüentou mais.
Telefonou para ele na redação do jornal.
— Siferra! Que prazer! Acredite ou não, ia telefonar para você esta tarde, para perguntar se estava interessada em ir comigo ao…
— Não estou — disse ela. — Theremon, que é que você está fazendo?
— Fazendo?
— As coisas que anda escrevendo sobre Athor e o Observatório. Houve um silêncio prolongado do outro lado da linha. Afinal, ele disse:
— Ah! Você não gostou!
— Não gostei? Estou revoltada!
— Acha que estou sendo muito agressivo. Escute, Siferra, quando você escreve para um público simplório, tem que colocar as coisas muito claras, ou corre o risco de não ser compreendido. Não posso somente dizer que acho que Athor e Beenay estão errados. Tenho que dizer que eles são malucos. Está me entendendo?
— Desde quando você acha que eles estão errados? Conversou com Beenay a respeito?
— Bem…
— Você está investigando este assunto há vários meses. De repente, dá uma reviravolta de 18O graus. A julgar pelo que você diz, todos no campus são discípulos de Mondior. Se precisava de um bode expiatório para suas brincadeiras, por que não foi procurá-los em outro lugar?
— Isto não é brincadeira, Siferra.
— Você acredita no que vem escrevendo?
— Acredito. Sinceramente. Acho que não vai haver nenhum cataclismo. Para mim, Athor está fazendo soar o alarme contra incêndio em um cinema lotado, sem que haja nenhum perigo que justifique uma medida tão arriscada. Através das minhas piadas, estou tentando mostrar às pessoas que não precisam levá-lo a sério. Minha intenção é evitar o pânico, a perturbação da ordem…
— O quê? Mas o perigo é real, Theremon! Ridicularizando os cientistas, você está pondo por terra nossa única esperança de sobrevivência. Preste atenção: eu vi as cinzas de antigas cidades, com milhares de anos de idade. Eu sei o que vai acontecer. O Fogo vai chegar. Quanto a isto, não há a. menor dúvida. Você mesmo viu as provas. A posição que assumiu é a mais destrutiva possível. Você está sendo cruel, insensato, desumano. E irresponsável, também.
— Siferra…
— Pensei que você fosse um homem inteligente. Compreendo agora que é exatamente como os outros.
— Sifer…
Ela desligou. E se recusou a falar de novo com o repórter, até faltarem poucas semanas para o dia fatídico. No início do mês de Theptar, Theremon tornou a telefonar, e Siferra atendeu sem saber quem era.
— Não desligue! — apressou-se a dizer o repórter. – Dê-me um minuto!
— Não vai adiantar nada.
— Escute, Siferra. Pode me odiar à vontade, mas quero que saiba de uma coisa: não sou insensato e não sou irresponsável.
— Quem disse que era?
— Você mesma, faz alguns meses, na última vez que falou comigo. Mas não é verdade. Tudo que escrevi sobre o eclipse corresponde exatamente ao que eu penso.
— Nesse caso, você é tolo. Ou, pelo menos, estúpido. O que pode ser um pouco diferente, mas não é melhor.
— Examinei as provas. Acho que vocês estão tirando conclusões apressadas.
— Saberemos a verdade no dia 19, não é mesmo? — disse Siferra, friamente.
— Eu gostaria de acreditar em vocês. Afinal, você, Beenay e os outros são pessoas simpáticas, inteligentes, dedicadas, preparadas etc. Infelizmente, não posso. Sou cético por natureza. Sempre fui assim. Não aceito nenhum tipo de dogma que as pessoas tentem me impingir. Talvez seja uma falha de caráter, que me faz parecer uma pessoa frívola. Talvez eu seja frívolo. Mas pelo menos sou honesto. Simplesmente não acredito que vá haver nenhum eclipse, nenhum incêndio, nenhuma loucura coletiva.
— Não se trata de um dogma, Theremon, e sim de uma hipótese.
— Isso não passa de um jogo de palavras. Sinto muito se ficou ofendida com o que eu escrevi, mas é exatamente o que eu penso, Siferra.
A moça ficou em silêncio por um momento. Alguma coisa na voz do repórter mexera com ela. Afinal, disse:
— Dogma, hipótese, seja o que for, ficará tudo esclarecido daqui a algumas semanas. vou passar a noite do dia 19 no Observatório. Vá para lá, também, e ficaremos sabendo quem está com a razão.
— Beenay não lhe contou? Athor me declarou persona non grata no Observatório.
— Ele proibiu a sua entrada?
— Ele se recusa até a falar comigo. Sabe, eu tinha uma proposta para ele. Acho que poderia ajudá-lo a enfrentar a ira da população quando o dia 19 chegar e nada acontecer. Entretanto, Beenay disse-me que o velho não quer nem falar comigo ao telefone, quanto mais permitir que eu esteja presente no dia 19.
— Vá como meu convidado. Como meu acompanhante — disse Siferra, em tom irônico. — Athor vai estar muito ocupado para se importar. Quero que você esteja naquela sala quando o céu ficar escuro e os incêndios começarem. Quero ver a cara que você vai fazer. Quero vê-lo pedir desculpas, Theremon.
Isso tinha acontecido três semanas atrás. Afastando-se, zangada, de Theremon, Siferra foi para o outro lado da sala e viu Athor, solitário, consultando uma listagem de computador. Folheava as páginas, muito sério, como se esperasse encontrar uma salvação para o mundo no meio das colunas de números. O diretor levantou os olhos e a viu.
Siferra enrubesceu.
— Dr. Athor, quero pedir desculpas por ter convidado aquele homem para vir aqui esta noite, depois das coisas que escreveu sobre nós, sobre o senhor, sobre… — sacudiu a cabeça. — Pensei realmente que ele poderia aprender alguma coisa. se estivesse conosco quando… quando… mas agora vejo que estava errada. Ele é ainda mais cínico e insensível do que eu imaginava. Jamais deveria tê-lo convidado.
— O que está feito, está feito, não é mesmo? – replicou Athor. — Contanto que não interfira no meu trabalho, não importa que esteja aqui ou não. Daqui a algumas horas, nada mais vai importar. — Apontou para o céu, visível através da janela. — Está tão escuro! Tão escuro! E, no entanto, vai ficar muito mais escuro ainda. Estou sentindo falta de Faro e Yimot. Sabe onde estão? Não? Quando chegou, Dra. Siferra, a senhora disse que tinha havido um problema de última hora no seu departamento. Espero que não tenha sido nada sério.
— As tabuinhas de Thombo desapareceram.
— Desapareceram?
— Estavam no cofre, é claro. Pouco antes de eu sair para vir para cá, o Dr. Mudrin me procurou. Ele estava a caminho do Abrigo, mas queria verificar um último detalhe de sua tradução, uma ideia nova que lhe ocorrera. De modo que abrimos o cofre e… não encontramos nada. Todas as seis tabuinhas tinham sumido. Temos cópias, naturalmente. Mas os originais, os objetos autênticos…
— Como isso pôde acontecer?
— Não é óbvio? — disse Siferra, em tom amargo. — Foram roubados pelos Apóstolos. Provavelmente para serem usados como talismãs, quando a… quando a Escuridão chegar e fizer o seu trabalho.
— Encontraram alguma pista?
— Não sou detetive, Dr. Athor. Não saberia como iniciar uma investigação. Mas só podem ter sido os Apóstolos. Estão interessados nessas tabuinhas desde que souberam que estavam comigo. Oh, por que fui comentar com eles! Eu não devia ter falado a ninguém sobre as tabuinhas!
Athor segurou-lhe as mãos.
— Não precisa ficar tão nervosa, minha filha.
Minha filha! Olhou para ele, surpresa. Fazia muito tempo que ninguém a chamava assim! Procurou disfarçar sua estranheza. Afinal, ele era bem mais velho do que ela e estava apenas procurando ser gentil.
— Deixe para lá, Siferra — disse Athor. — Não faz diferença. Graças àquele homem ali, nada mais faz diferença, não é mesmo?
A arqueóloga deu de ombros.
— Mesmo assim, detesto pensar que algum ladrão vestido de Apóstolo esteve vasculhando meu escritório, remexendo em meu cofre, levando objetos que desenterrei com minhas próprias mãos. É quase como se violassem o meu corpo. O senhor compreende, Dr. Athor? O roubo dessas tabuinhas, para mim, é quase como um estupro.
— Sei como se sente — disse Athor, em um tom que mostrava que ele absolutamente não sabia. — Olhe… olhe só. Como Dovim está brilhante esta noite! Como tudo vai estar escuro daqui a pouco!
Siferra conseguiu responder com um vago sorriso e afastou-se.
Em volta dela, as pessoas estavam indo para cá e para lá, verificando isto, discutindo aquilo, olhando pela janela, apontando, murmurando. De vez em quando, alguém chegava com notícias recentes da cúpula onde se encontrava o telescópio. Sentia-se como uma completa estranha no meio daqueles astrônomos. E totalmente sem esperanças.
O pessimismo de Athor deve ter passado para mim, pensou. Ele estava tão deprimido, tão distante! Nem parecia a mesma pessoa. Teve vontade de lembrar a ele que não era o mundo que estava para acabar naquela noite, mas apenas um ciclo de civilização.
O mundo seria reconstruído. Os sobreviventes começariam tudo de novo, como já acontecera uma dúzia de vezes (ou uma centena, ou um milhão) desde o começo dos tempos.
Entretanto, dizer isso a Athor era o mesmo que o diretor dizer-lhe que não se preocupasse com a perda das tabuinhas. Athor tivera esperanças de que o mundo se preparasse para a catástrofe. Em vez disso, apenas um grupo minúsculo de pessoas dera importância a suas advertências. Apenas os que tinham ido para o Abrigo da universidade e para outros abrigos de que não tinham conhecimento…
Beenay se aproximou.
— É verdade o que Athor me contou? As tabuinhas foram mesmo roubadas?
— Foram, sim. Eu sabia que não devia ter aceito as propostas dos Apóstolos.
Acha que foram eles que roubaram?
— Tenho certeza — disse ela com amargura. — Quando a existência das tabuinhas de Thombo foi divulgada pela imprensa, eles me procuraram, dizendo que possuíam informações que me poderiam ser úteis. Não lhe contei? Não, acho que não. Eles queriam fazer um trato semelhante ao que Athor havia feito com aquele sacerdote, Folimun 66. “Temos um certo conhecimento da linguagem antiga”, afirmou Folimun. “A linguagem que era falada no Ano de Divindade anterior ao nosso.” E parece que tinham mesmo: alguns textos, dicionários, alfabetos da velha escrita, talvez muito mais.
— E essas informações foram passadas para Athor?
— Algumas, pelo menos. O suficiente para convencer Athor de que os Apóstolos tinham registros astronômicos autênticos do último eclipse. O suficiente para provar que o mundo tinha passado por um cataclismo semelhante pelo menos uma vez.
Athor, explicou a moça a Beenay, tinha emprestado a ela as cópias de alguns textos antigos fornecidos por Folimun. Ela os mostrara a Mudrin, que os considerara de extrema utilidade para a tradução das tabuinhas. Entretanto, Siferra relutara em compartilhar com os Apóstolos as informações contidas nas tabuinhas, pelo menos nas condições propostas por eles. Os Apóstolos alegavam ser capazes de traduzir as tabuinhas mais antigas, e talvez fossem mesmo. Folimun queria, porém, que a arqueóloga lhe cedesse as tabuinhas originais, para que fossem copiadas e traduzidas, em vez de fornecer à moça os dados necessários para a tradução. Ele também não se contentava com transcrições do texto contido nas tabuinhas. Tinham que ser as tabuinhas originais ou nada feito.
— Mas você fez pé firme — disse Beenay.
— É claro. As tabuinhas não podiam sair da universidade. “Forneçam-nos as informações necessárias para a tradução”, eu disse para Folimun, “e nós lhes daremos uma transcrição do texto das tabuinhas. Assim, poderemos traduzí-Ias de forma independente e comparar nossos resultados.”
Folimun não concordara com a proposta. Não estava interessado em transcrições, pois não haveria como comprovar sua autenticidade. Quanto a fornecer à arqueóloga os textos que estavam em poder dos Apóstolos, isto estava fora de questão. Esses textos eram sagrados, explicou, e só podiam ser manuseados por Apóstolos. Se entregasse a ele as tabuinhas, poderia mandar fazer uma tradução, mas nenhum estranho teria acesso aos textos que estavam em poder dos Apóstolos.
— Senti-me realmente tentada a juntar-me aos Apóstolos — disse Siferra — apenas para poder pôr as mãos naqueles textos.
— Você? Entrar para os Apóstolos do Fogo?
— Apenas para ter acesso aos textos. Mas não tive coragem. Recusei a proposta de Folimun. E Mudrin teve que traduzir os textos sem a ajuda dos Apóstolos. Constatou que as tabuinhas de fato falavam de algum castigo terrível que os deuses haviam imposto à humanidade, mas as traduções eram incompletas, claudicantes, insatisfatórias.
Agora parecia que, afinal, os Apóstolos haviam ficado com as tabuinhas. Isso era difícil de aceitar. No caos que os aguardava, estariam exibindo as tabuinhas, as suas tabuinhas, como mais uma prova de sua sabedoria e santidade.
— Sinto muito por suas tabuinhas terem desaparecido, Siferra — disse Beenay -, mas ainda não há provas de que tenham sido os Apóstolos. Talvez elas
tornem a aparecer.
— Não acho provável — disse Siferra, com um sorriso triste, voltando-se para olhar para o céu que escurecia.
O melhor que podia fazer para consolar-se era adotar a postura de Athor: o mundo estava para acabar, de modo que nada mais tinha importância. Tal atitude, porém, não estava de acordo com sua personalidade. Para ela, era importante pensar no dia de amanhã. Pensar em sobrevivência, em reconstrução, em ir à luta. Não estava certo cair em depressão, como acontecera com Athor, aceitar o fim da humanidade, dar de ombros e abandonar toda a esperança.
Uma voz de tenor interrompeu seus pensamentos.
— Olá, pessoal! Olá, olá, olá!
— Sheerin! — exclamou Beenay. — Que está fazendo aqui?
As bochechas gorduchas do recém-chegado se expandiram em um largo sorriso.
— Por que essa atmosfera de cemitério? Ninguém está perdendo a coragem, espero.
Athor olhou para ele, aborrecido, e disse:
— É mesmo, o que está fazendo aqui, Sheerin? Pensei que fosse ficar no Abrigo.
Sheerin riu e deixou cair o corpo atarracado em uma cadeira.
— Abrigo uma ova! Aquele lugar estava me matando de tédio. Prefiro ficar aqui, onde as coisas estão esquentando. Ou acha que também não tenho minha cota de curiosidade? Já estive no Túnel do Mistério. Posso sobreviver a outra dose de Escuridão. E quero ver essas Estrelas de que os Apóstolos tanto falam. — Esfregou as mãos e acrescentou, em tom mais sério: — Lá fora o frio está de rachar. Parece que o vento vai transformar o nariz da gente em picolé. A essa distância, o calor de Dovim não serve para nada, nesta noite.
O idoso diretor rangeu os dentes, exasperado.
— Por que sai do seu caminho para fazer coisas insanas, Sheerin? O que é que você pode fazer de útil aqui?
— Que é que eu posso fazer de útil aqui? — Sheerin abriu os braços, em cômica resignação. — Um psicólogo não serve para nada lá no Abrigo. Não no momento. Não posso fazer nada por eles. Estão todos calmos e seguros, debaixo da terra, a salvo de tudo.
— E se uma multidão invadir o local durante a Escuridão?
Sheerin riu.
— Duvido que alguém que não saiba onde é a entrada do Abrigo consiga encontrá-la à luz do dia, quanto mais no escuro. Mas se isso acontecer, vão precisar de homens de ação para defendê-los. Eu? Sou muito gordo para isso. Por isso, prefiro ficar aqui.
Siferra se sentiu melhor ao ouvir as palavras de Sheerin. Ela também decidira passar a noite da Escuridão no Observatório, e não no Abrigo. Talvez fosse uma pretensão idiota, um excesso de autoconfiança, mas estava certa de que conseguiria sobreviver ao eclipse (e mesmo à chegada das Estrelas, se aquela parte do mito fosse verdadeira), sem perder a razão. Por isso, estava disposta a não deixar passar a experiência.
Agora parecia que Sheerin, que não era nenhum modelo de coragem, tivera a mesma ideia. O que queria dizer que havia chegado à conclusão de que o impacto da Escuridão não seria tão violento assim, apesar das previsões pessimistas que vinha fazendo há meses. Siferra tinha ouvido falar do Túnel do Mistério e seus efeitos sobre as pessoas, incluindo o próprio Sheerin. Mesmo assim, ali estava ele. Devia achar que, no final, as pessoas se revelariam mais resistentes do que julgara a princípio.
Ou talvez sua presença ali fosse simplesmente um ato de desespero. Talvez preferisse perder a razão naquela mesma noite, pensou Siferra, do que conservar a lucidez e ter que enfrentar os problemas terríveis, talvez insolúveis, que aguardavam a humanidade depois do cataclismo.
Não. Não. Estava se entregando mais uma vez ao pessimismo. Procurou pensar em outra coisa.
— Sheerin ! — Era Theremon, atravessando a sala para cumprimentar o psicólogo. — Lembra-se de mim? Theremon?
— Claro que me lembro, Theremon — disse Sheerin, estendendo a mão. — Puxa, rapaz, você tem sido duro conosco nos últimos tempos! Mas o que passou, passou, não é mesmo?
Theremon apertou a mão de Sheerin .
— Que Abrigo é esse onde você devia estar? Ouvi vocês falarem a respeito dele, mas não tenho a menor ideia do que se trata.
— Bem — disse Sheerin -, conseguimos convencer umas poucas pessoas da validade de nossas previsões de… hum… de uma catástrofe, se quisermos ser sensacionalistas e essas pessoas concordaram em tomar medidas preventivas. Entre essas pessoas estão familiares dos funcionários do Observatório, alguns professores da Universidade de Saro e uns poucos de fora. Minha companheira Liliath 221 está lá neste exato momento, e eu também deveria estar, se não fosse minha curiosidade infernal. No total, devem ser mais de trezentos.
— Entendo. Eles estão escondidos em um lugar onde a Escuridão e… hum… as Estrelas não podem alcançá-los. Vão ficar lá enquanto o resto do mundo enlouquece.
— Exatamente. Os Apóstolos também dispõem de algum tipo de esconderijo, você sabe. Não sabemos quantas pessoas estão lá. Apenas umas poucas, se tivermos sorte, mas é mais provável que sejam milhares, esperando para sair e tomar conta do mundo depois da Escuridão.
— Quer dizer que o grupo da universidade representa uma tentativa de resistir à conquista do mundo pelos Apóstolos?
Sheerin assentiu.
— Se conseguirem. Não será fácil, com quase toda a humanidade insana, com as grandes cidades em chamas, com um grupo de Apóstolos disposto a impor sua vontade ao que restar da civilização… não, o ambiente não será favorável à sobrevivência. Mas eles dispõem de comida, água, abrigo e armas…
— E não é só isso — interveio Athor. — Eles também estão com todos os nossos registros, exceto os que vamos colher no dia de hoje. Esses registros serão muito importantes para o próximo ciclo. Na verdade, só a eles importam. O resto pode se danar.
Theremon deu um longo assovio.
— Vocês estão certos, mesmo, de que tudo que previram vai realmente acontecer!
— Que outra atitude poderíamos tomar? — disse Siferra, em tom agressivo. — Quando nos convencemos de que o desastre era inevitável…
— É claro — concordou o jornalista. — Vocês tinham que se preparar. Porque estavam de posse da Verdade. Assim como os Apóstolos do Fogo estão de posse da Verdade. Gostaria de ter metade da convicção de vocês. Esta noite pertence aos donos da verdade.
Siferra olhou para ele, furiosa.
— Gostaria de ver você lá fora esta noite, vagando pelas ruas em chamas! Mas não… não, você estará em segurança aqui dentro! É mais do que merece!
— Calma — disse Sheerin, puxando Theremon pelo braço. — Não diga mais nada, amigo. Vamos conversar em outro lugar.
— Boa ideia — concordou Theremon.
Entretanto, não fez nenhuma menção de deixar a sala. Alguns funcionários haviam começado uma partida de xadrez estocástico, e Theremon os observou por alguns momentos, obviamente sem compreender muita coisa do jogo, enquanto os movimentos eram feitos rapidamente e em silêncio. Parecia admirado com a capacidade dos jogadores de se concentrarem no jogo, em um momento em que o fim do mundo, de acordo com eles próprios, estava para ocorrer dali a algumas horas.
— Vamos — insistiu Sheerin.
— Está bem. Está bem.
Ele e Sheerin saíram para o corredor, seguidos, um instante depois, por Beenay.
Que homem irritante, pensou Siferra.
Olhou para o disco vermelho de Dovim. O céu teria ficado mais escuro nos últimos minutos? Não, não, disse para si própria, isso era impossível. Dovim ainda estava lá. Era apenas sua imaginação. O céu parecia estranho, agora que Dovim estava sozinho. Nunca havia visto uma cor do céu como aquela, de um vermelho escuro, quase roxo. Mas o pequeno sol era suficiente para iluminar a superfície do planeta.
Lembrou-se das tabuinhas perdidas. Era melhor pensar em outra coisa.
Os jogadores de xadrez é que estavam certos. Resolveu sentar-se e relaxar. Se conseguisse.
Sheerin se encaminhou para a sala ao lado. Ali havia várias poltronas macias, grossas cortinas vermelhas nas janelas e um tapete castanho no chão. com a estranha luz avermelhada de Dovim entrando pela janela, era como se houvesse sangue coagulado em toda parte.
Ele ficara surpreso ao encontrar Theremon no Observatório, depois das coisas horríveis que escrevera, depois de tudo que havia feito para sabotar as tentativas de Athor de preparar a nação para a catástrofe. Nas últimas semanas, o diretor ficava quase histérico toda vez que o nome de Theremon era mencionado; mesmo assim, permitira que o repórter ficasse ali durante o eclipse.
Aquilo era estranho e um pouco preocupante. Podia significar que a personalidade do velho astrônomo estava começando a se desintegrar diante do desastre iminente. Na verdade, Sheerin também estava surpreso por ele próprio estar no Observatório. Tinha sido uma decisão de última hora, um impulso irresistível do tipo que raras vezes experimentara em sua vida. Liliath tinha ficado muito preocupada.
Ele também. Não se esquecera das aflições que sofrera no Túnel do Mistério. Mesmo assim, chegara à conclusão de que tinha que estar ali, da mesma forma como se sentira obrigado a entrar no Túnel do Mistério. Para os outros, podia não ser mais do que um professor inconsequente e obeso; considerava-se, porém, um cientista. Durante toda a vida profissional, dedicara-se ao estudo da Escuridão. Como, então, poderia encarar a si próprio no futuro, sabendo que durante o episódio mais importante de Escuridão em mais de dois mil anos decidira permanecer na segurança de um abrigo subterrâneo?
Não, tinha que estar ali. Testemunhando o eclipse. Vendo a Escuridão se apossar do mundo. Quando entraram no quarto, Theremon observou, com franqueza inesperada:
— Estou começando a pensar se o meu ceticismo tinha razão de ser, Sheerin.
— E com razão.
— É o que estou dizendo. Quando olho para Dovim e vejo aquela estranha luz vermelha tomando conta de tudo… Sabe de uma coisa? Daria dez créditos por uma dose decente de luz branca. Um Tano Especial. A propósito, gostaria de ver Tano e Sitha no céu, também. Onos seria ainda melhor.
— Onos vai aparecer amanhã de manhã — observou Beenay, que havia acabado de entrar.
— Sim, mas nós ainda estaremos aqui? — perguntou Sheerin. E sorriu no mesmo instante, para amenizar suas palavras. Disse para Beenay: — Nosso amigo jornalista está precisando de um drinque.
— Athor nos proibiu de beber esta noite. Ele quer todo mundo sóbrio.
— Então vamos ter que nos contentar com água? — disse Sheerin.
— Bem…
— Ora, vamos, Beenay. Athor não vai entrar aqui.
— Acho que não.
Dirigindo-se pé ante pé para a janela mais próxima, Beenay agachou-se e pegou em um armário debaixo da janela uma garrafa com um líquido vermelho que borbulhou sugestivamente quando ele sacudiu a garrafa.
— Eu desconfiava que Athor não sabia a respeito desta garrafa — observou, enquanto trotava de volta para a mesa.
— Pronto! Só temos um copo, de modo que, como convidado, pode ficar com ele, Theremon. Sheerin e eu podemos beber da garrafa. — Começou a encher o pequeno copo com todo o cuidado.
Theremon comentou, rindo:
— Quando nos conhecemos, você detestava bebidas alcoólicas, Beenay.
— Isso faz muito tempo. Agora é diferente. Estou aprendendo, Theremon. Um bom drinque pode ser o melhor calmante em momentos como este.
— Tem toda razão — concordou Theremon. Bebeu um gole. Era vinho tinto, forte e pesado, provavelmente um vinho barato produzido em uma das províncias do sul. O tipo de bebida que um neófito como Beenay compraria, por falta total de conhecimento do assunto. Entretanto, era melhor do que nada.
Beenay se serviu e passou a garrafa para Sheerin. O psicólogo tomou um longo gole. Depois, estalou os lábios e disse para Beenay:
— Athor parece estranho esta noite, mesmo levando em conta as circunstâncias. Que foi que houve?
— Deve estar preocupado com Faro e Yimot.
— Quem?
— Dois alunos de pós-graduação. Eles deviam ter chegado há muito tempo. Athor precisa de toda a ajuda disponível, já que a maior parte dos funcionários foi para o Abrigo.
— Você não acha que os dois desertaram, acha? — perguntou Theremon.
— Quem? Faro e Yimot? Claro que não. Eles dariam tudo para estar aqui esta noite, fazendo medidas, quando o eclipse começar. Entretanto, pode ser que tenham ficado presos em algum engarrafamento na cidade de Saro. — Deu de ombros. — Acho que vão aparecer, mais cedo ou mais tarde. Mas se não chegarem logo, os outros funcionários vão ficar sobrecarregados. Talvez seja isso o que está preocupando Athor.
— Não sei, não — disse Sheerin. — É claro que deve estar pensando nos dois, mas há algo mais. Ele parece tão velho, de repente. Cansado. Derrotado. Da última vez que o vi, estava cheio de entusiasmo, falando na reconstrução da sociedade depois do eclipse… era o Athor de verdade, o homem de ferro. Agora, tudo que vejo é um velho triste, esperando pateticamente o fim que se aproxima. O fato de nem mesmo haver tentado expulsar Theremon…
— Ele tentou — corrigiu o repórter. — Foi Beenay que o convenceu a me deixar ficar. Beenay e Siferra.
— Pois é o que estou dizendo. Beenay, você já viu alguém fazer Athor mudar de ideia?… Quer passar o vinho?
— Pode ser minha culpa — disse Theremon. — Por Ter atacado seus planos de construir abrigos em todo o país. Se ele acredita mesmo que em poucas horas nosso planeta será tomado pela Escuridão e quase todos vão ficar loucos…
— É exatamente o que ele pensa — assegurou Beenay.
— Como todos nós, aliás.
— Nesse caso, o fato de o governo não levar a sério as advertências de Athor pode representar para ele uma trágica derrota. E eu me considero o maior responsável. Se as coisas se passarem como vocês previram, jamais me perdoarei.
— Não se superestime, Theremon — disse Sheerin. Mesmo que tivesse escrito cinco artigos por dia defendendo a posição de Athor, o governo não teria feito coisa alguma para ajudá-lo. Afinal, por que levariam a sério um repórter sensacionalista como você?
— Obrigado — disse Theremon. — Sinto-me aliviado… Ainda sobrou um pouco de vinho? — Olhou para Beenay. Naturalmente, Siferra também não gostou dos artigos. Ela acha que sou o homem mais desprezível deste planeta.
— Houve uma época em que ela realmente parecia interessada em você — disse Beenay. — Cheguei a desconfiar que vocês… hum…
— Não — disse Theremon, sorrindo. — Não chegamos a tanto. E agora, não tenho mais esperanças. Mas fomos bons amigos por uns tempos. Ela é uma mulher fascinante. Que acha daquela sua teoria cíclica da pré-história? Tem algum fundo de verdade?
— A julgar pelos outros professores do departamento, tudo não passa de especulação — disse Sheerin. — Eles atacaram a teoria de todas as formas. É bem verdade que estão todos interessados em defender o ponto de vista oficial, que afirma que Beklimot foi o primeiro centro urbano e que antes disso a humanidade vivia em choupanas no meio da selva.
— Mas como podem explicar as cidades cujas ruínas foram encontradas na colina de Thombo? — quis saber Theremon.
— Um cientista que se julga dono da verdade pode explicar qualquer coisa que contrarie suas crenças — afirmou Sheerin. — Se você examinar de perto um catedrático da velha guarda, verá que, no fundo, se parece muito com um Apóstolo do Fogo. Apenas usa um tipo diferente de veste. — Tirou a garrafa da mão de Theremon e bebeu mais um gole. — Para o inferno com eles. Mesmo um leigo como eu pode ver que as descobertas de Siferra representam uma revolução para a arqueologia. A questão não é saber se houve vários incêndios em um período de milhares de anos. É saber por quê.
— Já ouvi muitas explicações nos últimos tempos, todas mais ou menos fantásticas — afirmou Theremon. — Um professor da Universidade de Kitro declarou que de vez em quando chove fogo do céu. Recebemos uma carta no jornal de um astrônomo amador que afirma ser capaz de “provar” que Kalgash passa por dentro de um dos sóis a cada dois mil anos. Acho que havia ainda sugestões mais estranhas.
— Existe apenas uma ideia que faz sentido — disse Beenay. — Lembre-se da Espada de Thargola. A hipótese mais provável é a mais simples. Não há nenhuma razão para chover fogo do céu, e é obviamente impossível que nosso planeta passe por dentro de um sol. Por outro lado, a hipótese do eclipse é apoiada pelos nossos cálculos da órbita de Kalgash, usando a Teoria da Gravitação Universal.
— A hipótese do eclipse pode ser correta, é claro. Saberemos em breve, não é mesmo? Mas aplique a Espada de Thargola ao que acaba de dizer. Não há nada na teoria dos eclipses que diga que haverá gigantescos incêndios logo depois de cada eclipse.
— É verdade — concordou Sheerin. — Não há nada na teoria que diga isso. Entretanto, é uma questão de bom-senso. O eclipse vai trazer a Escuridão. A Escuridão vai trazer a loucura. E a loucura vai trazer o fogo. Que vai destruir mais dois milênios de civilização. Tudo vai terminar amanhã. Amanhã não haverá uma cidade de pé em nosso planeta.
— Você está falando como os Apóstolos — disse Theremon, irritado. — Folimun 66 me contou uma história parecida, meses atrás. E eu contei para vocês dois, lembro-me bem, no Clube Seis Sóis.
Olhou pela janela para os picos avermelhados dos edifícios da cidade de Saro, que se recortavam no horizonte, do outro lado do bosque. O repórter sentiu a tensão da incerteza crescer dentro de si quando olhou rapidamente para Dovim, que brilhava, sanguinolento, no zênite, como um espírito mau. Theremon insistiu, teimosamente.
— Não consigo aceitar sua linha de raciocínio. Por que eu haveria de pirar só porque não há nenhum sol no céu? E mesmo que eu perca o juízo… está bem, não me esqueci daqueles pobres coitados do Túnel do Mistério. Mesmo assim, mesmo que todos fiquem loucos, em que isso afetará as cidades?
— Eu tinha a mesma dúvida — observou Beenay — antes de parar para pensar. Se você estivesse na Escuridão, o que desejaria mais do que qualquer coisa no mundo? Qual a coisa que todos os seus instintos reclamariam?
— Luz, suponho.
— Claro! — exclamou Sheerin, quase gritando. — Isso mesmo! Luz!
— E daí?
— Como você conseguiria luz?
Theremon apontou para o interruptor na parede.
— Ligaria o interruptor.
— Certo — disse Sheerin, em tom zombeteiro. — E os deuses, em sua infinita bondade, se encarregariam de fornecer a corrente elétrica, porque certamente a companhia de eletricidade não estaria em condições de fazê-lo. Não com os geradores sobrecarregados e todos os operadores fora de ação. Está me acompanhando?
Theremon fez que sim com a cabeça.
— Onde você vai conseguir luz, quando os geradores pararem? Nas lâmpadas de cabeceira? Elas têm baterias de emergência. Mas você pode não ter uma lâmpada de cabeceira à mão. Pode estar na rua, no escuro, e a lâmpada está lá no seu quarto. E você precisa de luz. De modo que você queima alguma coisa, não é, Sr. Theremon? Já viu um incêndio na floresta? Já acampou no mato e cozinhou com lenha? A madeira em chamas não produz apenas calor, você sabe. Ela também produz luz, e as pessoas sabem disso. Quando estiver escuro, elas vão querer luz, e vão fazer tudo para consegui-la.
— Por isso vão queimar madeira? — perguntou Theremon, sem muita convicção.
— Vão queimar o que puderem. Elas vão querer luz. Para isso, terão que queimar alguma coisa, e não existe lenha nas cidades. De modo que vão queimar o que estiver mais próximo. Uma pilha de jornais? Por que não? A Crônica dará uma boa fogueira. Que tal as bancas de jornais? Fogo nelas! As roupas são um bom combustível. Os livros, também. Os telhados das casas. Qualquer coisa. Vão ter a sua luz… mas todas as cidades do planeta serão consumidas pelas chamas! Aí estão os seus incêndios, Sr. Jornalista. Aí está o fim do mundo.
— Se houver o eclipse — observou Theremon, teimosamente.
— E claro — concordou Sheerin. — Se houver o eclipse. Não sou astrônomo. Também não sou Apóstolo. Mas estou apostando no eclipse.
Olhou para Theremon. Os dois se encararam como se aquilo fosse uma questão pessoal, como se estivessem competindo para ver quem tinha mais força de vontade. De repente, Theremon baixou os olhos, vencido. Sua respiração estava ofegante. Levou a mão à testa e apertou com força. De repente, ouviram um burburinho na sala ao lado.
— Acho que ouvi a voz de Yimot — disse Beenay. — Ele e Faro provavelmente estão de volta. Vamos até lá saber por que se atrasaram.
— Boa ideia — murmurou Theremon. Ele respirou fundo e pareceu recuperar o controle.
O momento de tensão havia passado.
A sala estava um pandemônio, com os funcionários reunidos em torno dos dois rapazes, que tentavam tirar os casacos enquanto eram submetidos a uma enxurrada de perguntas.
Athor abriu caminho e se dirigiu, furioso, aos recém chegados.
— Sabem que falta menos de meia hora? Onde estavam?
Faro 24 sentou-se e esfregou as mãos. Seu rosto ainda estava vermelho por causa do frio lá fora. Tinha um sorriso estranho. E parecia curiosamente calmo, quase como se tivesse sido drogado.
— Nunca o vi assim — sussurrou Beenay para Sheerin.
— Ele sempre foi muito tímido, muito respeitoso, como se não passasse de um humilde estudante cercado de grandes astrônomos. Até comigo. Mas agora…
— Psiu! — fez Sheerin. — Vamos escutar o que ele tem a dizer.
— Yimot e eu acabamos de executar uma pequena experiência maluca que nós mesmos inventamos — disse Faro. Queríamos ver se era possível simular a aparência da Escuridão e das Estrelas, para termos uma ideia antecipada de como seria.
Houve um murmúrio confuso entre os ouvintes.
— Estrelas? — repetiu Theremon. — Vocês sabem o que são as Estrelas? Como descobriram?
— Lendo o Livro das Revelações — explicou Faro, com o mesmo sorriso estranho. — O livro explica que as Estrelas são pontos muito brilhantes, parecidos com os sóis, só que menores, que aparecem no céu quando Kalgash entra na Caverna da Escuridão.
— Absurdo! — exclamou alguém.
— Impossível!
— Por que alguém levaria a sério o que diz o Livro das Revelações? É evidente que…
— Silêncio! — ordenou Athor. Havia um súbito olhar de interesse em seus olhos, um toque no velho vigor. — Prossiga, Faro. Como foi essa “experiência” de vocês?
— Eu e Yimot tivemos essa ideia há algum tempo — disse Faro -, e estivemos trabalhando nela em nossas horas de folga. Yimot sabia de uma construção de um andar lá na cidade que tinha um teto em forma de cúpula. Acho que era uma espécie de depósito. Pois nós compramos o imóvel…
— Como? — interrompeu Athor, peremptoriamente. Onde conseguiram o dinheiro?
— Usamos nossas economias — explicou Yimot 70. — Gastamos dois mil créditos. — Prosseguiu, em tom defensivo: — E daí? Amanhã, dois mil créditos não vão valer nada.
— É verdade — concordou Faro. — Compramos a casa e a forramos de veludo negro, de modo a conseguirmos a maior Escuridão possível. Depois, fizemos pequenos furos no teto e no telhado e cobrimos os furos com pequenas placas de metal, que podiam ser removidas todas ao mesmo tempo através de um controle elétrico. Esta parte não fizemos pessoalmente: contratamos um carpinteiro, um eletricista e alguns outros operários. Queríamos que a luz passasse por esses furos no teto, criando um efeito semelhante ao das Estrelas.
— Um efeito semelhante ao que imaginamos que as Estrelas vão criar — corrigiu Yimot.
Ninguém respirou durante a pausa que se seguiu. Athor declarou, em tom formal:
— Vocês não tinham o direito de fazer uma experiência particular sem…
Faro parecia envergonhado.
— Eu sei, professor, mas, francamente, Yimot e eu achamos que a experiência era perigosa. De acordo com o Dr. Sheerin, aqui presente, se o efeito realmente existisse, nós poderíamos muito bem ficar malucos. Decidimos correr o risco sozinhos. Se conservássemos a sanidade, talvez adquiríssemos algum tipo de imunidade. Nesse caso, poderíamos vacinar todos vocês da mesma forma. Mas o resultado foi outro…
— Que aconteceu?
Foi Yimot que respondeu.
— Nós nos trancamos na casa e esperamos até que nossos olhos se acostumassem à falta de luz. É uma sensação muito desagradável, porque a Escuridão total faz com que você tenha a impressão de que as paredes e o teto estão se aproximando para esmagá-lo. Mas superamos este primeiro impacto e acionamos a chave. As placas saíram do lugar e o teto ficou cheio de pequenos pontos de luz.
— E aí?
— Nada aconteceu. Essa é a parte mais estranha. De acordo com o Livro das Revelações, estávamos experimentando o efeito de ver Estrelas contra um fundo de Escuridão. Mas não sentimos nada. Era apenas um teto cheio de furos, e era exatamente assim que parecia. Tentamos várias vezes, foi por isso que nos atrasamos, mas não conseguimos nenhum efeito.
Seguiu-se um silêncio de choque, e todos os olhos se voltaram para Sheerin, que estava sentado, imóvel, com a boca aberta. Theremon foi o primeiro a falar.
— Sabe o que isto significa para a sua teoria, não sabe, Sheerin ? — Ele estava sorrindo de alívio. Mas Sheerin levantou a mão.
— Espere um momento, Theremon. Deixe-me analisar os fatos. Essas “Estrelas” que os rapazes fabricaram… o tempo total que passaram expostos à Escuridão… — Interrompeu o que estava dizendo. Todos olharam para ele. De repente, estalou os dedos e quando levantou a cabeça, não havia nem surpresa nem indecisão nos seus olhos. — Naturalmente…
Não terminou a frase. Thilanda, que estava no andar superior, na cúpula do Observatório, fotografando o céu a intervalos de 1O segundos, entrou correndo, agitando os braços em movimentos circulares dignos de Yimot.
— Dr. Athor! Dr. Athor!
— Que foi?
— Acabamos de encontrar… ele simplesmente foi entrando na cúpula… o senhor não vai acreditar, Dr. Athor…
— Calma, calma. Que aconteceu? Quem foi que entrou? Ouviu-se um ruído de luta no corredor e depois um forte estrondo. Beenay levantou-se de um salto e correu para a porta, gritando:
— Que diabo!
Davnit e Hikkinan, que deviam estar na cúpula com Thilanda, estavam no corredor. Os dois astrônomos seguravam um terceiro homem, um tipo atlético, de quase quarenta anos, cabelos ruivos encaracolados, rosto anguloso, olhos azuis. Arrastaram-no para dentro da sala, mantendo seus braços firmemente seguros atrás das costas.
O estranho usava a veste negra dos Apóstolos do Fogo.
— Folimun 66! — exclamou Athor.
Theremon repetiu:
— Folimun 66! Em nome da Escuridão, o que está fazendo aqui?
— Não estou aqui em nome da Escuridão, e, sim, em nome da luz — respondeu o Apóstolo, em tom calmo e controlado. Athor olhou para Thilanda.
— Onde encontrou este homem?
— Já lhe disse, Dr. Athor. Estávamos tirando as fotos e ouvimos um ruído. Ele havia entrado e estava de pé atrás de nós. “Onde está Athor?”, perguntou. “Preciso falar com Athor. ”
— Chame os guardas de segurança — ordenou Athor, rubro de raiva. — Esta noite, o Observatório não está aberto ao público. Quero saber como este homem conseguiu passar pelos guardas.
— Provavelmente o senhor tem um Apóstolo ou dois na folha de pagamento — sugeriu Theremon, com um sorriso. — Quando Folimun apareceu e ordenou-lhes que abrissem o portão, tiveram que obedecer.
Athor fuzilou-o com os olhos. Entretanto, sua expressão mostrava que o velho astrônomo reconhecia que talvez o palpite de Theremon tivesse um fundo de verdade.
Os ocupantes da sala tinham formado um círculo em torno de Folimun. Todos olhavam para ele, surpresos: Siferra, Theremon, Beenay, Athor e os demais. Folimun declarou, com toda a calma:
— Meu nome é Folimun 66. Sou assessor especial de Sua Serenidade Mondior 71. Vim aqui esta noite, não como um criminoso, mas como um enviado de Sua Serenidade. Quer pedir a esses seus dois assistentes para me largarem, Athor?
— Soltem-no — ordenou Athor, com um gesto impaciente.
— Obrigado — disse Folimun. Esfregou os braços e ajeitou a veste. Depois, fez uma mesura de agradecimento (ou estaria sendo irônico?) para Athor.
O ar em torno do Apóstolo parecia estar eletrizado.
— Que está fazendo aqui? — perguntou Athor. — Que deseja?
— Nada que esteja disposto a me dar voluntariamente.
— Provavelmente tem razão.
— Quando você e eu nos conhecemos, faz alguns meses, Athor, nosso encontro foi muito tenso, um encontro de dois homens que podiam se considerar como representantes de grupos antagônicos. Para você, eu era um perigoso fanático. Para mim, você era o chefe de um bando de pecadores ateus. Entretanto, estávamos de acordo em um ponto, você deve se lembrar. Ambos sabíamos que na noite do dia 19 de Theptar, a Escuridão desceria sobre Kalgash e permaneceria por muitas horas.
Athor fez um muxoxo.
— Diga logo o que quer, Folimun. Não nos resta muito tempo, e a Escuridão está prestes a chegar.
— Para mim — prosseguiu Folimun -, a Escuridão era uma manifestação da vontade dos deuses. Para você, não passava de um efeito do movimento dos astros no céu. Muito bem: embora nossas interpretações fossem diferentes, chegamos a um entendimento. Forneci-lhe certos dados que estavam de posse dos Apóstolos desde o último Ano de Divindade, como tabelas com os movimentos dos sóis e algumas informações ainda mais obscuras. Em troca, você prometeu que provaria o dogma fundamental de nossa fé e divulgaria a verdade para a população.
— Foi exatamente o que fiz — declarou Athor, olhando para o relógio. — Que é que o seu mestre deseja de mim agora? Cumpri minha parte no trato.
Folimun esboçou um sorriso, mas não disse nada. Houve um murmúrio geral de inquietação.
— Pedi a ele alguns dados astronômicos, sim — disse Athor, olhando em torno. — Dados que apenas os Apóstolos possuíam. E recebi esses dados. Sou grato a ele por isto. Em troca, concordei em tornar pública minha confirmação matemática da profecia dos Apóstolos de que a Escuridão desceria sobre Kalgash no dia 19 de Theptar.
— Não havia necessidade de confirmação — declarou Folimun, com orgulho. — As provas estão todas no Livro das Revelações.
— Apenas para os que acreditam cegamente no livro protestou Athor. — Não distorça minhas palavras. Eu me propus a fornecer provas científicas para os dogmas de vocês e cumpri minha promessa!
Os olhos do Apóstolo se estreitaram, zangados.
— Cumpriu, sim, mas da forma errada. A sua suposta explicação apoia os nossos dogmas, mas ao mesmo tempo os torna desnecessários. Você transformou a Escuridão e as Estrelas em fenômenos naturais, despojou-os de todo o significado místico. Isto é uma blasfêmia!
— Se é, a culpa não é minha. Os fatos existem. Como posso deixar de divulgá-los?
— Os seus “fatos” são uma fraude e uma ilusão.
— Como é que você sabe?
A resposta traduzia a certeza de uma fé absoluta.
— Eu sei!
O diretor ficou ainda mais vermelho. Beenay fez menção de se aproximar, mas Athor deteve-o com um gesto.
— E o que é que Mondior 71 quer que a gente faça? Ele ainda pensa, suponho, que ao tentar avisar ao mundo para que tome medidas contra a loucura que se aproxima, estamos interferindo de alguma forma em sua tentativa de assumir o poder depois do eclipse. Pois para seu governo, muito poucas pessoas nos levaram a sério! Espero que isto o faça feliz!
— A tentativa em si já causou mal suficiente. E o que estão tentando fazer aqui esta noite tornará as coisas ainda piores!
— Como sabe o que estamos tentando fazer aqui esta noite? — perguntou Athor.
Suavemente, Folimun disse:
— Sabemos que ainda não desistiu de influenciar a população. Como não conseguiu fazê-lo antes da Escuridão e do Fogo, pretende sair daqui, depois que tudo acabar, munido de fotografias da transição da luz do dia para a Escuridão. Você pretende oferecer aos sobreviventes uma explicação racional do que aconteceu e guardar em lugar seguro as supostas provas de suas teorias, de modo que no final do próximo Ano de Divindade seus sucessores no Observatório convençam a humanidade de que é possível resistir à Escuridão.
— Alguém deu com a língua nos dentes — sussurrou Beenay.
— Tudo isso, é claro, interfere com os nossos propósitos. Mondior 71 é um profeta apontado pelos deuses, o homem destinado a guiar a humanidade durante os tempos difíceis que nos aguardam.
— Vá logo ao que interessa — disse Athor, secamente. Folimun fez que sim com a cabeça.
— A questão é simplesmente a seguinte: a tentativa mal intencionada e sacrílega de conseguir informações através de instrumentos diabólicos deve ser evitada a qualquer custo. Lamento não ter tido a oportunidade de destruir seus aparelhos infernais com minhas próprias mãos.
— Era isso que você pretendia? Não teria adiantado muita coisa. Todos os nossos dados, exceto os que pretendemos colher nos próximos minutos, já estão guardados em lugar seguro.
— Precisa destruí-los.
— O quê?
— Apague todos os dados. Destrua todos os instrumentos. Em troca, prometo proteger todos vocês do caos que certamente tomará conta do país quando a Escuridão chegar.
Alguns começaram a rir.
— Ele é louco — disse uma voz. — Completamente louco.
— Está enganado — protestou Folimun. — Devotado, sim. Dedicado a uma causa que está além de sua compreensão, sim. Mas não sou maluco. Aquele homem ali — apontou para Theremon — é testemunha disso. E olhem que se trata de alguém conhecido pelo seu ceticismo. Mas coloco minha causa acima de tudo. Esta noite é crucial para a história do mundo. Quando o dia nascer, a Divindade deve triunfar. O que lhes trago é um ultimato. Desistam da tentativa sacrílega de encontrar explicações racionais para a chegada da Escuridão e aceitem Sua Serenidade Mondior 71 como o representante legítimo da vontade dos deuses. Quando a luz voltar, trabalhem para divulgar sua mensagem e não voltem a falar em eclipses, órbitas e outras tolices.
— E se nos recusarmos? — disse Athor, que parecia estar achando graça na pretensão de Folimun.
— Nesse caso — disse o Apóstolo, friamente -, um grupo de homens de bem, liderados pelos Apóstolos do Fogo, subirá esta colina e destruirá o Observatório e tudo que contém.
— Agora chega! — exclamou Athor. — Chamem a Segurança. Quero ver este homem fora aqui!
— Vocês têm exatamente uma hora — disse Folimun, imperturbável. — Quando esse prazo expirar, o Exército Sagrado atacará.
— Ele está blefando — disse Sheerin. Athor repetiu, como se não tivesse ouvido:
— Segurança! Quero este homem fora daqui!
— Bolas, Athor, que é que há com você? — exclamou Sheerin. — Se deixar que ele vá, estará criando mais problemas para nós. Não compreende que esses Apóstolos vivem do caos? Folimun é um mestre na arte de arranjar confusão!
— Que é que você sugere?
— Vamos mantê-lo prisioneiro — disse Sheerin. — Por que não o trancamos em um armário até a Escuridão passar? Para ele, é a pior coisa que podemos fazer. Se estiver trancado, não verá a Escuridão nem as Estrelas. Não é preciso conhecer muito da doutrina dos Apóstolos para saber que, para eles, deixar de ver as Estrelas quando elas aparecem significará a perda da alma imortal. Mande prendê-lo, Athor. Não só é mais seguro para nós, mas também é o que ele merece.
— E depois — protestou Folimun -, quando todos ficarem loucos, não vai haver ninguém para me libertar! Esta é uma sentença de morte. Sei tão bem quanto você o que significa a chegada das Estrelas. Na verdade, sei melhor do que você. Todos vão enlouquecer, nem se lembrarão de que eu existo. Querem que eu morra sufocado ou de inanição? É bem o que se poderia esperar de um grupo de… de cientistas. — Ele fez a palavra soar obscena. — Mas não vai dar certo. Tomei a precaução de instruir meus seguidores para atacarem o Observatório daqui a uma hora, a menos que eu volte e cancele minha ordem. Assim, não terão nada a ganhar me mantendo prisioneiro. Estarão apenas decretando a destruição do Observatório. Daqui a uma hora, meus companheiros me libertarão e assistiremos juntos à chegada das Estrelas. — Uma veia pulsou na têmpora de Folimun. — Amanhã, quando vocês todos estiverem reduzidos a pobres dementes, condenados pelos seus pecados, começaremos a construção de um novo mundo.
Sheerin olhou inquisitivo para Athor. O diretor, porém, também parecia em dúvida. Beenay, ao lado de Theremon, murmurou:
— Que é que você acha? Ele está blefando?
O jornalista não respondeu. Estava lívido.
— Vejam!
O dedo que ele apontou para o céu estava trêmulo, e sua voz soou seca e esganiçada.
Houve uma exclamação em uníssono quando todos acompanharam o dedo com os olhos e, por um momento, prenderam a respiração.
Estava faltando um pedaço de Dovim!
A mancha escura tinha talvez a largura de uma unha, mas para os observadores assustados era como um buraco imenso.
Em Theremon, a visão daquele pequeno arco de escuridão teve um efeito devastador. O repórter fechou os olhos, levou a mão à cabeça e deu as costas para a janela.
O pequeno pedaço que faltava no lado de Dovim havia abalado a estrutura do seu ser. Theremon, o cético. Theremon, o gozador. Theremon, o cronista das fraquezas e das tolices humanas… Céus! Como eu estava errado!
Quando reabriu os olhos, deparou com Siferra. Estava do outro lado da sala, olhando para ele. Havia desprezo naqueles olhos… ou seria piedade? Forçou-se a encará-la e sacudiu a cabeça tristemente, como que para traduzir todo o seu arrependimento. Estraguei tudo. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito.
Julgou detectar um leve sorriso no rosto da arqueóloga. Talvez ela tivesse entendido o que ele estava tentando dizer. Depois, houve uma confusão de gritos que deu lugar a uma atividade organizada, com cada homem se dirigindo a seu posto, alguns correndo para a cúpula, para observar o eclipse nos telescópios, outros se dirigindo para os computadores, alguns usando instrumentos portáteis para registrar as mudanças no disco de Dovim. Naquele momento crucial, não havia lugar para emoções. Os homens eram simplesmente cientistas com um trabalho a ser feito. Theremon, sozinho no meio daquilo tudo, olhou em torno à procura de Beenay e, afinal, conseguiu localizá-lo, sentado diante de um teclado, trabalhando furiosamente em algum tipo de problema. Athor havia desaparecido.
Sheerin apareceu ao lado de Theremon e comentou, prosaicamente:
— O primeiro contato deve ter ocorrido há cinco ou dez minutos. Um pouquinho antes do previsto, mas nossos resultados não fora nada maus, se levarmos em conta as incertezas envolvidas. — Ele sorriu. — É melhor você sair de perto dessa janela.
— Por quê? — quis saber Theremon, que tinha se aproximado da janela de novo para olhar Dovim.
— Athor está furioso — sussurrou. — Perdeu o primeiro contato por causa da confusão causada por Folimun. Você está em um lugar perigoso. Se Athor entrar aqui, é capaz de jogá-lo pela janela.
Theremon fez que sim com a cabeça e sentou-se. Sheerin olhou para ele, surpreso.
— Que diabo, homem! — exclamou. — Você está tremendo!
— Hein? — Theremon passou a língua nos lábios secos e tentou sorrir. — Não estou me sentindo muito bem.
Os olhos do psicólogo o encararam com frieza.
— Não está perdendo a coragem, está?
— Não! — gritou Theremon, indignado. — Dê-me um tempo, está bem? Sabe, Sheerin, eu bem que tentei acreditar nessa história de eclipse. Sinceramente. Mas não consegui. Para mim, tudo não passava de uma fantasia dos cientistas. Eu queria acreditar por causa de Beenay, por causa de Siferra… até mesmo por causa de Athor. Mas não consegui. Não, até um minuto atrás. Dê-me um tempo para me acostumar à ideia, está bem? Você teve meses para se preparar.
— Tem razão — replicou Sheerin, pensativo. — Escute, você tem família? Pais, mulher, filhos?
Theremon sacudiu a cabeça.
— Não. Tenho uma irmã, mas ela está a mais de três mil quilômetros de distância. Não falo com ela há anos.
— Está bem, mas quanto a você?
— Que quer dizer?
— Poderia tentar chegar ao nosso Abrigo. Não seria difícil arranjar um lugar para você. Ainda há tempo. Posso telefonar e avisar que está a caminho, e eles abrirão o portão para você.
— Acha que estou apavorado, não acha?
— Você mesmo disse que não estava se sentindo bem.
— E é verdade. Mas sou jornalista e estou aqui para fazer uma reportagem. Pretendo fazê-la até o fim.
Havia um leve sorriso no rosto do psicólogo.
— Entendo. Orgulho profissional, não é?
— Pode chamar assim, se quiser — Theremon olhou para o outro com ar cansado. — Além disso, fiz o que pude para sabotar os planos de Athor, não foi? Acha que eu teria cara agora para me refugiar no mesmo Abrigo que ridicularizei durante tanto tempo?
— Não tinha pensado nisso.
— Será que existe outra garrafa daquele vinho horroroso escondida em algum lugar? Nunca precisei tanto de um drinque…
— Psiu! — fez Sheerin. Deu uma cotovelada em Theremon, fazendo-o calar-se. — Está ouvindo? Preste atenção! Theremon acompanhou o olhar do outro e se deu conta da presença de Folimun 66, que, alheio a tudo, estava de frente para a janela, com uma expressão de êxtase no rosto, recitando alguma coisa em tom monótono. O repórter sentiu um arrepio.
— Que é que ele está dizendo? — sussurrou.
— Está repetindo um trecho do capítulo cinco do Livro das Revelações — respondeu Sheerin. — Fique quieto e preste atenção!
A voz do Apóstolo havia aumentado de volume, em um surto súbito de fervor:
— “E aconteceu que, naqueles dias, a vigia solitária do sol Dovim durava mais tempo a cada revolução, até que, por meia revolução, ele foi o único a brilhar, fraco e encolhido, sobre a superfície da Kalgash. E os homens se reuniram nas praças públicas e nas estradas, para discutir e se maravilhar com a visão, pois uma estranha depressão os acometera. Suas mentes estavam perturbadas e suas palavras eram confusas, porque as almas dos homens aguardavam a chegada das Estrelas. E na cidade de Trigon, ao meio-dia, Vendret se adiantou e disse aos homens de Trigon: “Arrependam-se, pecadores! Chegou a hora da justiça. A Caverna está se aproximando para engolir Kalgash e tudo que ele contém.” E enquanto falava, a boca da Caverna da Escuridão passou pela borda de Dovim, de modo que o sol ficou escondido das vistas de todos os habitantes de Kalgash. Muitos foram os gritos dos homens quando ele desapareceu, e um grande medo se apossou de todos.
— A Escuridão da Caverna se abateu sobre Kalgash, e não havia nenhuma luz em toda a superfície do mundo. Os homens se sentiam como se estivessem cegos. Ninguém podia ver o seu vizinho, embora sentisse a sua respiração. E nesta escuridão apareceram as Estrelas, em números incontáveis, e seu brilho era como o brilho de todos os deuses reunidos. E com as estrelas veio também uma música de tal beleza que as próprias folhas das árvores entoaram louvores. E nesse momento as almas dos homens se foram, e seus corpos abandonados se transformaram em animais selvagens; sim, em feras irracionais, que vagavam pelas ruas escuras de Kalgash dando gritos inumanos.
— Das Estrelas desceu então o Fogo Celestial, que era o portador da vontade dos deuses; e onde ele tocava, as cidades de Kalgash eram consumidas pelas chamas, de modo que nada restou do homem e das obras do homem. Foi então…
Houve uma mudança sutil no tom que Folimun estava usando. Seus olhos continuavam fixos no espaço, mas de alguma forma percebera que os outros dois estavam prestando atenção em suas palavras. Sem nenhum esforço, sem ao menos parar para respirar, o timbre de sua voz mudou, e as sílabas se tornaram mais suaves.
Theremon, pego de surpresa, franziu a testa. As palavras pareciam vagamente familiares. Tinha havido uma mudança indefinida no sotaque, uma pequena alteração no som das vogais. Nada mais… e, no entanto, agora era totalmente impossível compreender o que Folimun estava dizendo.
— Talvez Siferra consiga entendê-lo — disse Sheerin. Deve estar falando na língua litúrgica, a língua do Ano de Divindade anterior, da qual o Livro das Revelações foi supostamente traduzido.
Theremon olhou desconfiado para o psicólogo.
— Você está bem-informado, hein? Que é que ele está dizendo, então?
— Quem disse que eu sei? Andei lendo alguma coisa sobre a religião dos Apóstolos, é verdade, mas não o suficiente para traduzir uma língua antiga. Ei, nós não íamos trancá-lo no armário?
— Deixe-o onde está — disse Theremon. — Que diferença faz? É o grande momento da vida dele. Deixe-o aproveitar.
— Chegou a cadeira para trás e passou os dedos pelos cabelos. As mãos não estavam mais tremendo. — Engraçado observou. — Agora que tudo começou, não estou mais nervoso.
— Não?
— Por que estaria? — disse Theremon. Um toque de irreverência havia voltado a sua voz. — Não há nada que eu possa fazer para mudar as coisas. O jeito é relaxar… Acha que as Estrelas vão mesmo aparecer?
— Sei lá. Talvez Beenay possa nos dizer alguma coisa.
— Ou Athor.
— É melhor deixar Athor de fora — aconselhou o psicólogo, rindo. — Ele acabou de passar na porta e olhou para você com cara de poucos amigos.
Theremon fez uma careta.
— Eu ainda vou ter muito que ouvir depois que isto passar. Que é que você acha, Sheerin? É seguro ir lá fora apreciar o eclipse?
— Quando a Escuridão for total…
— Não estou falando da Escuridão. Não tenho medo da Escuridão. Estou falando das Estrelas.
— Das Estrelas? — repetiu Sheerin, com impaciência. Eu já disse-lhe que não sei nada sobre as Estrelas.
— Provavelmente não são tão assustadoras como o Livro das Revelações parece insinuar. Se aquela experiência que os dois estudantes fizeram com os furinhos no teto significa alguma coisa… — Ele virou as palmas das mãos para cima, como se a resposta pudesse estar nelas. — Diga-me, Sheerin, que é que você acha? Algumas pessoas não podem ser imunes à Escuridão e às Estrelas?
O psicólogo deu de ombros e apontou para o piso. Dovim já havia passado pelo zênite e o quadrado de luz vermelha que se projetava da janela para dentro da sala se deslocara para o centro do aposento, onde parecia a marca de algum crime hediondo. Theremon contemplou, pensativo, a mancha colorida e depois abaixou-se para olhar diretamente para o sol.
A sombra havia aumentado para cobrir um terço de Dovim. O repórter estremeceu. Um dia, de brincadeira, conversara com Beenay sobre dragões no céu. Agora parecia que o dragão havia chegado, já engolira cinco dos sóis e estava devorando rapidamente o último que restava.
— Existem provavelmente dois milhões de pessoas na cidade de Saro que estão todas tentando se juntar aos Apóstolos ao mesmo tempo — observou Sheerin. — Aposto como neste momento estão realizando uma gigantesca cerimônia de iniciação na sede do culto… se eu acho que algumas pessoas podem ser imunes aos efeitos da Escuridão? Ora, daqui a pouco vamos saber ao certo, não vamos?
— Tem que haver. Caso contrário, como foi que os Apóstolos conseguiram fazer passar o Livro das Revelações de ciclo para ciclo? Como conseguiram escrevê-lo, em primeiro lugar? Alguns devem ser imunes, porque se todos ficassem loucos, quem restaria para escrever o livro?
— Provavelmente, os membros de algumas organizações secretas se esconderam em abrigos até tudo terminar, como alguns dos nossos estão fazendo esta noite — sugeriu Sheerin.
— Não é o bastante. Acontece que o aparecimento das estrelas é relatado no Livro das Revelações. Não, alguns foram expostos à Escuridão… e conseguiram sobreviver.
— Bem — disse o psicólogo -, existem três tipos de pessoas que seriam pouco afetadas. Em primeiro lugar, os poucos que são incapazes de ver as Estrelas: os cegos; os seriamente retardados e aqueles que bebem até perder a consciência no início do eclipse e permanecem nesse estado até o final.
— Esses não contam. Não podem testemunhar nada.
— Concordo com você. Também existem as crianças pequenas, para quem o mundo como um todo é muito novo e estranho para que se assustem com as Estrelas e a Escuridão. Elas seriam apenas mais um fenômeno em um mundo já surpreendente. Você entende isso, não é? O outro fez que sim, um pouco contrafeito.
— Acho que entendo.
— Finalmente, existem aqueles cuja mente não é suficientemente sofisticada para sofrer um impacto muito grande. Os simplórios seriam pouco afetados. Eles se limitariam a dar de ombros e esperar que Onos nascesse no dia seguinte.
— Está querendo dizer que o Livro das Revelações foi escrito por simplórios? — perguntou Theremon, rindo.
— Claro que não. Deve ter sido escrito por algumas das pessoas mais inteligentes do novo ciclo, mas com base nas vagas memórias das crianças, combinadas com as histórias confusas e incoerentes dos débeis mentais e, por que não, com as lendas contadas pelos analfabetos.
— É melhor não deixar Folimon escutar isto.
— Naturalmente, o texto deve ter sido editado e reeditado várias vezes. E mesmo passado adiante, talvez, de ciclo para ciclo, da mesma forma que Athor pretende passar adiante o segredo da gravitação. Mas o ponto onde eu queria chegar é que o livro não pode deixar de ser um amontoado de distorções, mesmo que se baseie em fatos. Vamos tomar, por exemplo, a experiência que Faro e Yimot fizeram com buracos no teto. Aquela que não deu certo.
— Que é que tem?
— Sabe por que não fun… — Sheerin interrompeu o que estava dizendo e levantou-se, assustado. — Chiii…
— Que houve? — perguntou Theremon.
— Athor está vindo para cá, com cara de poucos amigos! Theremon olhou na direção indicada.
O velho astrônomo se aproximou do dois, como se fosse algum espírito maligno saído de um mito medieval. Estava branco como cera. Seu rosto era uma máscara de consternação. Lançou um olhar furioso para Folimun, que estava sozinho no canto da sala, e outro para Theremon. Disse para Sheerin:
— Passei os últimos quinze minutos no comunicador. Falei com o Abrigo, com o pessoal da Segurança e com o centro da cidade de Saro.
— Que tal?
— Nosso repórter aqui fez um bom trabalho. O caos na cidade é total. Tumultos em toda parte, saques, multidões em pânico…
— E o Abrigo? — perguntou Sheerin, ansioso.
— No Abrigo, está tudo bem. Eles se trancaram há alguns momentos, de acordo com os planos, e vão permanecer isolados de tudo até clarear. Estão seguros. Mas é a cidade, Sheerin. Você não faz ideia… — Estava com dificuldade de falar.
— Professor, se o senhor soubesse como me arrependo do que fiz… — começou Theremon.
— Não há tempo para isto agora — interrompeu Sheerin, com impaciência. Segurou Athor pelo braço. — E o senhor? Está bem, Dr. Athor?
— E isto importa? — O diretor debruçou-se na janela, como se pudesse ver os tumultos dali. — No momento em que o eclipse começou, todos perceberam que tudo mais iria ocorrer de acordo com o que havíamos previsto… nós, e os Apóstolos. E a histeria tomou conta da população. Os incêndios devem começar a qualquer momento. E suponho que o bando de Folimun vai nos atacar, também. Que vamos fazer, Sheerin? Você tem alguma ideia?
Sheerin baixou a cabeça e ficou olhando para os próprios sapatos, em profunda meditação. Coçou o queixo. Afinal, olhou para o diretor e disse:
— Fazer? Que há para fazer? Trancar os portões e torcer para que tudo acabe bem.
— E se disséssemos a eles que mataremos Folimun se tentarem invadir o Observatório?
— O senhor faria isso? — perguntou Sheerin.
Athor arregalou os olhos, surpreso.
— Ora… Acho que…
— Não — afirmou Sheerin. — Claro que não.
— Podíamos pelo menos ameaçar…
— Não. Não. Eles são fanáticos, Athor. Sabem que ele é nosso refém. Provavelmente esperam que ele seja morto no momento em que invadirem o Observatório. Isso não os assusta. E você sabe que não poderia cumprir a ameaça.
— É verdade.
— Nesse caso, deixe as coisas como estão. Quanto tempo falta para a totalidade?
— Menos de uma hora.
— Vamos ter que correr o risco. Os Apóstolos levarão algum tempo para reunir uma multidão. Não vai ser apenas um grupo de Apóstolos, aposto, mas um bando de pessoas comuns, levadas ao pânico por um punhado de Apóstolos, que prometerão a eles o perdão dos pecados, a entrada imediata no céu, qualquer coisa… E levarão mais tempo ainda para chegar aqui. Estamos a quase dez quilômetros da cidade…
Sheerin olhou pela janela. Theremon, ao lado dele, olhou também. Lá embaixo, na base da colina, os campos cultivados davam lugar às casas brancas dos subúrbios.
A metrópole, mais além, era uma mancha no horizonte, quase invisível à luz mortiça de Dovim. Uma luz lúgubre de pesadelo banhava a paisagem. Sheerin repetiu, sem se virar:
— Sim, eles vão levar algum tempo. O jeito é manter as portas trancadas, continuar trabalhando e rezar para que a totalidade chegue primeiro. Quando as Estrelas aparecerem, duvido que até mesmo os Apóstolos consigam manter a multidão sob controle.
Dovim estava reduzido à metade; a linha divisória introduzia uma ligeira concavidade na parte ainda visível do sol vermelho. Era como se uma gigantesca pálpebra estivesse se fechando inexoravelmente sobre a luz de um mundo.
Theremon ficou olhando, fascinado. Os ruídos na sala em que se encontrava desapareceram, e ele podia sentir apenas o silêncio pesado dos campos lá fora. Os próprios insetos pareciam mudos de medo. E tudo estava ficando mais escuro. Aquela estranha luminosidade avermelhada tomava conta de tudo.
— Não fique olhando muito tempo — Sheerin murmurou em seu ouvido.
— Para o sol?
— Para a cidade. Para o céu. Não estou preocupado com os seus olhos. Estou preocupado com a sua mente, Theremon.
— Minha mente está bem.
— Quero que continue assim. Como se sente?
— Bem… — Theremon semicerrou os olhos. Estava com a garganta um pouco seca. Enfiou o dedo no espaço entre a garganta e o colarinho. O colarinho parecia mais justo do que o normal. Como se uma mão estivesse apertando sua garganta. Virou a cabeça para um lado e para o outro, mas não sentiu nenhum alívio. — Estou com um pouco de dificuldade para respirar.
— Dificuldade para respirar é um dos primeiros sintomas de um ataque de claustrofobia — disse Sheerin . — Quando sentir um aperto no peito, é melhor afastar-se da janela.
— Quero ver o que está acontecendo.
— Está bem, está bem, faça como quiser.
Theremon abriu bem os olhos e respirou fundo duas ou três vezes.
— Você acha que eu não vou agüentar, não é?
— Eu não acho mais nada, Theremon — disse Sheerin, com ar cansado. — As coisas estão mudando de momento para momento, não é mesmo? Ei, aí vem Beenay.
O astrônomo se colocara entre os dois e a luz. Sheerin olhou para ele, ansioso.
— Olá, Beenay.
— Incomodam-se se eu me juntar a vocês? — perguntou. — Acabei de ajustar os aparelhos e não tenho nada para fazer até a totalidade. — Fez uma pausa e olhou para o Apóstolo, que tinha tirado do bolso um livro pequeno, encadernado, e não parara de ler desde então.
— Vocês não iam trancá-lo em um armário?
— Mudamos de ideia — disse Theremon. — Sabe onde está Siferra, Beenay? Eu a vi há pouco, mas ela não parece estar aqui agora.
— Lá em cima, na cúpula. Queria dar uma olhada no telescópio maior. Não que haja alguma coisa que não possa ser vista a olho nu.
— E Kalgash Dois? — perguntou Theremon.
— Que há para ver? Escuridão é Escuridão. Podemos ver os efeitos de sua passagem diante de Dovim. Kalgash Dois em si, porém, é apenas um pedaço de noite no céu noturno.
— Noite… — cismou Sheerin. — Que palavra estranha!
— Já deixou de ser estranha — disse Theremon. — Quer dizer que não é possível ver o tal satélite, mesmo com o auxílio do grande telescópio?
Beenay pareceu envergonhado.
— Nossos telescópios não são na verdade muito sensíveis, você sabe. Servem para observar os sóis, mas quando a luz é escassa… — Sacudiu a cabeça. Endireitou o corpo, e seu rosto se contraiu com o esforço para respirar normalmente.
— Mas Kalgash Dois existe. A estranha zona de Escuridão que está passando entre nós e Dovim… isso é Kalgash Dois.
— Está sentindo dificuldade para respirar, Beenay? perguntou Sheerin.
Beenay aspirou o ar.
— Um pouco. Acho que vou ficar resfriado.
— É mais provável que sejam os primeiros sintomas de claustrofobia.
— Você acha?
— Acho. Alguém mais está se sentindo estranho?
— Tenho a impressão de que meus olhos estão falhando — disse Beenay. — As coisas ficaram fora de foco. Estou com frio, também.
— Oh, está frio, não há dúvida. Isso não é nenhuma ilusão. — Theremon fez uma careta. — É como se meus pés estivessem numa geladeira.
— O que precisamos — observou Sheerin — é distrair a cabeça com outros assuntos. Há pouco eu estava explicando-lhe, Theremon, por que a experiência de Faro com os furos no teto fracassou.
— Estava começando a explicar — disse o repórter. Ele abraçou as pernas dobradas e apoiou o queixo nos joelhos.
O que eu devia fazer, pensou, era ir lá em cima procurar Siferra, porque falta muito pouco para a totalidade. Entretanto, estava se sentindo estranhamente apático. Ou seria simplesmente o medo de encará-la?
— Como eu comecei a dizer, o erro que cometeram foi tomar ao pé da letra o que está escrito no Livro das Revelações. Ao que tudo indica, as Estrelas não têm existência real. Pode ser, você sabe, que na presença da Escuridão total, a mente sinta uma necessidade vital de criar algum tipo de luz As Estrelas podem ser simplesmente essa ilusão de luz.
— Você está querendo dizer que as Estrelas são consequência da loucura, e não uma de suas causas – interrompeu Theremon. — Nesse caso, de que servirão as fotografias que os astrônomos estão tirando esta noite?
— Servirão para provar que as Estrelas não passam de uma ilusão. Mas pode ser que eu esteja errado. Pode ser…
Beenay arrastara sua cadeira para mais perto, e havia uma expressão súbita de entusiasmo em seu rosto.
— Que bom que vocês dois puxaram o assunto. — Seus olhos se estreitaram, e ele começou: — Estive pensando nessas Estrelas e tive uma ideia que me pareceu muito interessante. Naturalmente, não disponho de provas concretas, de modo que tudo não passa de mera especulação. Querem ouvir assim mesmo?
-Por que não? — disse Sheerin, recostando-se na cadeira.
Beenay parecia meio relutante. Mas Sheerin sorriu e com timidez prosseguiu:
— Suponhamos que existam outros sóis no universo.
Theremon começou a rir.
— Você disse que era uma especulação, mas mesmo assim…
— Não, não é tão fantástico como parece. Não me refiro a sóis tão próximos quanto os que já conhecemos, que por alguma razão misteriosa não conseguimos ver. Estou falando de sóis tão distantes que não possam ser vistos em condições normais. Se estivessem próximos, seriam tão brilhantes quanto Onos, talvez, ou Tano e Sitha. Mas como estão muito mais afastados, sua luz é para nós como pequenos pontos luminosos, que o brilho constante dos nossos seis sóis se encarrega de ocultar.
— Não está se esquecendo da Lei da Gravitação Universal? — objetou Sheerin. — Se esses sóis existissem, sua presença não se manifestaria através de forças atrativas, como ocorre com Kalgash Dois?
— Não, se eles estivessem suficientemente distantes explicou Beenay. — Realmente distantes… quatro anos-luz, ou mais. Nesse caso, as perturbações seriam pequenas demais para serem detectadas.
— Quantos anos tem um ano-luz? — perguntou Theremon.
— Sua pergunta não faz sentido. O ano-luz é uma unidade de comprimento. Corresponde à distância que a luz percorre em um ano. O que, em quilômetros, é um número imenso, já que a luz viaja muito depressa. De acordo com nossas estimativas mais recentes, a velocidade da luz é da ordem de 25O mil quilômetros por segundo, mas os dados não são muito precisos. Acho que se tivéssemos instrumentos melhores, descobriríamos que a velocidade da luz é ainda um pouco maior que este valor. Entretanto, mesmo tomando a velocidade da luz como sendo de 25O mil quilômetros por segundo, podemos calcular que Onos está a cerca de dez minutos-luz daqui, Tano e Sitha estão a uma distância onze vezes maior, e assim por diante. Nesse caso, um sol situado a alguns anos-luz de distância estaria muito, muito longe de Kalgash. Tão longe que jamais poderíamos detectar as perturbações causadas na órbita do nosso planeta, porque elas seriam insignificantes. Muito bem: vamos supor que existam muitos sóis no universo, a uma distância de quatro a oito anos-luz de Kalgash. Uma ou duas dúzias desses sóis, talvez.
Theremon deu um assovio.
— Que grande ideia para um suplemento dominical! Duas dúzias de sóis, em um universo com um raio de mais de oito anos-luz! Puxa vida! Isso reduziria nosso universo a uma insignificância! Imagine… Kalgash e seus sóis ocupando apenas um cantinho do universo real. E nós pensando que éramos importantes, que nós e nossos seis sóis estávamos sozinhos no cosmo!
— É apenas uma ideia — disse Beenay, com um sorriso mas vocês percebem aonde quero chegar. Durante um eclipse, esses sóis ficariam visíveis, porque a luz dos sóis de verdade não estaria presente para ofuscá-los. Como estão muito distantes, pareceriam pequenos, como pontinhos luminosos no céu. Mas ali estariam elas: as Estrelas. Os pontos de luz que os Apóstolos nos prometeram.
— Os Apóstolos falam de um “número incontável” de Estrelas — observou Sheerin. — Isso é muito diferente de uma ou duas dúzias, não acha? É mais como alguns milhões, hein?
— Exagero poético — argumentou Beenay. — Simplesmente não haveria lugar no universo para milhões de estrelas… a menos que estivessem empilhadas uma contra as outras, de modo que se tocassem.
— Além do mais — interveio Theremon -, depois que passamos de uma ou duas dúzias, será que é possível realmente apreender o conceito de número? Aposto que duas dúzias poderiam parecer aos antigos Apóstolos um número “incontável”… especialmente se houvesse um eclipse acontecendo e estivessem todos perturbados por causa da Escuridão. Sabe de uma coisa? Algumas tribos primitivas têm apenas três palavras para os números: “um”, “dois” e “muitos”. Somos um pouco mais sofisticados do que isso, talvez. De modo que, para nós, uma dúzia ou duas ainda fazem sentido. Um número maior, porém, ainda nos parece como “incontável”. — O repórter parecia entusiasmado. — Uma dúzia de sóis, assim de repente! Imagine!
— Tive outra ideia — afirmou Beenay. — Já imaginaram como seria fácil resolver o problema da gravitação em um sistema mais simples do que o nosso? Imagine um universo em que haja um planeta com um único sol. A trajetória do planeta seria uma elipse perfeita e a natureza exata da força gravitacional seria tão evidente que ela poderia ser aceita como um axioma. Os astrônomos de um planeta assim resolveriam o problema da gravidade antes mesmo de inventarem o telescópio. As observações a olho nu seriam suficientes.
— Esse sistema seria dinamicamente estável? — perguntou Sheerin.
— Claro! É o chamado caso de “um-e-um”. Já foi analisado matematicamente, mas é nas implicações filosóficas que estou interessado.
— É uma abstração — admitiu Sheerin. — Um caso limite. Algo como o gás perfeito ou o zero absoluto.
— Naturalmente — prosseguiu Beenay -, a vida seria impossível em um planeta assim. Não haveria calor nem luz suficiente, e se o planeta girasse em torno de si mesmo, qualquer ponto na superfície passaria metade do tempo em total Escuridão. Foi esse tipo de planeta que uma vez você me pediu para imaginar, lembra-se, Sheerin? Um planeta cujos habitantes estivessem habituados a períodos alternados de luz e Escuridão? Mas estive pensando no assunto. Não haveria habitantes. Não podemos esperar que a vida, que depende fundamentalmente da luz, se desenvolva em tais condições. Metade do tempo na escuridão! Não, nenhuma criatura poderia viver em tais condições. Mas completando o meu raciocínio, um sistema “um-e-um” teria…
— Um momento — interrompeu Sheerin. — Está sendo precipitado ao afirmar que a vida não se desenvolveria nesse planeta. Como é que você sabe? Que há de fundamentalmente impossível em a vida se desenvolver em um lugar onde não há luz o tempo todo?
— Já expliquei, Sheerin. A vida depende de luz. Assim, em um planeta onde…
— A vida depende de luz aqui em Kalgash. Que é que isso tem a ver com um planeta que…
— A vida depende de luz em qualquer lugar, Sheerin!
— Não sei por quê! Nós só conhecemos as formas de vida que existem em Kalgash! Como podemos saber como seria a vida em um planeta totalmente…
Theremon teve um acesso de riso. Sheerin e Beenay olharam para ele, indignados.
— Qual foi a graça? — perguntou Beenay.
— Vocês dois! Um astrônomo e um psicólogo discutindo furiosamente uma questão de biologia. Este deve ser o famoso diálogo interdisciplinar, o fermento intelectual de que esta universidade tanto se orgulha. — O jornalista se pôs de pé. Estava se sentindo inquieto, e a longa exposição de Beenay só contribuíra para deixá-lo ainda mais agitado. — Vocês me dão licença? Preciso esticar as pernas.
— Falta pouco tempo para a totalidade — observou Beenay. — Talvez não seja seguro você estar sozinho quando ela acontecer.
— Vou só dar uma voltinha. Não demoro — disse Theremon.
Antes que tivesse dado cinco passos, Beenay e Sheerin reiniciaram a discussão. Theremon sorriu. Era uma forma de aliviar a tensão, disse para si próprio. Todos estavam sob grande pressão. Afinal de contas, a cada batida do relógio estavam mais perto da Escuridão… mais perto…
Das Estrelas? Da Loucura?
Da Hora do Fogo Celestial?
Theremon deu de ombros. Passara por uma centena de mudanças de humor nas últimas horas, mas agora se sentia estranhamente calmo, quase fatalista. Sempre se considerara senhor do próprio destino, sempre se julgara capaz de traçar o curso da própria vida; era assim que conseguira manter-se à frente dos outros repórteres. Agora, porém, tudo fugia ao seu controle, e sabia disso. A Escuridão, as Estrelas, o Fogo chegariam sem lhe pedir licença. Não adiantava sofrer por antecipação. Melhor relaxar, sentar-se, esperar, assistir ao que estava para acontecer. E depois… depois tentar sobreviver ao caos resultante.
— Está indo para a cúpula? — perguntou uma voz. Piscou os olhos na penumbra. Era aquele aluno gorducho… o nome era Faro?
— Estou — respondeu Theremon, embora na verdade estivesse passeando sem destino.
— Eu também. Siga-me. Eu o levo lá.
Uma escada metálica em espiral conduzia ao piso superior do grande edifício. Faro subiu a escada, ofegante, seguido de perto por Theremon. Ele já havia estado uma vez na cúpula do Observatório, fazia alguns anos, para ver alguma coisa que Beenay queria lhe mostrar. Entretanto, não se lembrava muito bem do lugar.
Faro abriu uma grande porta de correr e os dois entraram.
— Veio ver as Estrelas de perto? — perguntou Siferra.
A arqueóloga estava de pé, perto da entrada, vendo os astrônomos trabalharem. Theremon ficou sem graça. A última pessoa que queria encontrar naquele momento era Siferra. Lembrou-se, tarde demais, que Beenay lhe havia dito que ela fora para a cúpula. Apesar do sorriso ambíguo que ela lhe lançara no início do eclipse, temia que ainda estivesse sentida com ele por causa das críticas que fizera em público ao grupo do Observatório.
Entretanto, Siferra recebeu-o com naturalidade. Talvez, agora que o mundo estava mergulhando de cabeça na Caverna da Escuridão, ela pensasse que tudo que acontecera antes do eclipse era irrelevante, que a catástrofe iminente cancelava todos os erros, todas as disputas, todos os pecados.
— Um lugar e tanto! — observou Theremon.
— Não é fantástico? Não que eu saiba exatamente o que está acontecendo aqui. Eles estão com o grande solarscópio apontado para Dovim… pelo que me disseram, é mais uma câmara do que um telescópio; não se pode usá-lo para observar diretamente o céu… e focalizaram aqueles telescópios menores para mais longe, na esperança de observar as Estrelas…
— Já apareceu alguma?
— Não que eu saiba.
Theremon assentiu e olhou em volta. Estava no coração do Observatório, no lugar onde realmente esquadrinhavam os céus. Era o lugar mais escuro onde jamais estivera.
Não estava totalmente às escuras, é claro; havia uma fileira dupla de candelabros de bronze ao longo da parede curva, mas a luz das lâmpadas era fraca e superficial.
No lusco-fusco, viu um grande tubo metálico, que subia em diagonal e desaparecia por um painel aberto no teto do edifício, através do qual também podia ver uma nesga do céu, que no momento estava com uma desagradável cor arroxeada. O diminuto pedaço que restava de Dovim também estava visível, mas o pequeno sol parecia ter recuado para uma enorme distância.
— Tudo parece muito estranho — murmurou o repórter. — O céu tem uma textura diferente. Parece um cobertor.
— Um cobertor que vai nos sufocar a todos.
— Está com medo? — perguntou ele.
— Claro que estou — respondeu Siferra. — E você?
— Sim e não — respondeu Theremon. — Não estou tentando bancar o herói, acredite. Sinto-me muito mais calmo, porém, do que há uma hora ou duas horas. É quase como se eu estivesse anestesiado.
— Acho que sei o que quer dizer.
— Athor disse que os tumultos na cidade já começaram.
— E apenas o começo — observou a arqueóloga. — Theremon, não consigo tirar aquelas cinzas do pensamento. As cinzas da cidade de Thombo. Aqueles grandes blocos de pedra, as fundações da cidade ciclópica… e cinzas por toda parte em suas bases.
— Com cinzas mais antigas por baixo, e assim por diante.
— Isso mesmo — disse ela.
Theremon se deu conta de que a moça tinha chegado um pouco mais perto. Percebeu também que a animosidade que sentira em relação a ele nos últimos meses parecia ter desaparecido totalmente, e (seria possível?) Siferra estava correspondendo à atração que um dia sentira por ela. Reconhecia os sintomas. Era um homem experiente demais para deixar de reconhecê-los.
Formidável, pensou Theremon. O mundo está acabando, e agora, de repente, Siferra resolve quebrar o gelo. Uma silhueta estranha, desengonçada, incrivelmente alta, se aproximou deles.
— Nenhum sinal das Estrelas, ainda — disse Yimot, o outro aluno de pós-graduação. — Talvez elas não existam. Talvez não aconteça nada, como na experiência que Faro e eu montamos naquele depósito abandonado.
— Ainda dá para ver uma boa parte de Dovim — observou Theremon. — Falta muito para a Escuridão total.
— Você parece quase ansioso para que ela chegue — disse Siferra.
O repórter voltou-se para ela.
— Não agüento mais esperar.
— Ei! — gritou alguém. — Meu computador parou!
— As luzes! — gritou outra voz.
— Que está acontecendo? — perguntou Siferra.
— Falta de energia — disse Theremon. — Como Sheerin previu. A usina de força deve estar com problemas. A primeira onda de tresloucados, quebrando tudo na cidade.
Realmente, alguma coisa estava errada com as lâmpadas dos candelabros. De repente, a luz aumentou muito de intensidade, como se um último surto de corrente tivesse atravessado os circuitos; depois, as lâmpadas quase se apagaram; em seguida, acenderam de novo, mas com uma intensidade menor do que antes; finalmente, apagaram-se de vez. Siferra segurou com força o braço de Theremon.
— Estamos sem luz! — exclamou alguém.
— E sem computadores! Ligue a força de emergência, alguém! Ei! A força de emergência!
— Rápido! O solarscópio parou de rastrear! O obturador da câmara não funciona!
— Por que eles não se prepararam para um corte de energia? — disse Theremon.
Aparentemente, eles haviam se preparado. Houve um zumbido em algum lugar nas profundezas do edifício e as telas dos computadores se acenderam. As lâmpadas nos candelabros, porém, continuaram quase apagadas. Evidentemente, estavam em outro circuito, e o gerador de emergência no porão não podia fazê-las voltar a funcionar.
O Observatório estava praticamente às escuras.
A mão de Siferra ainda segurava o pulso de Theremon. Ele pensou em colocar o braço no ombro da moça para tranquilizá-la. Nesse momento, ouviram a voz de Athor:
— Alguém me ajude aqui! Vai ficar tudo bem!
— Que foi? — perguntou Theremon.
— Athor trouxe as varas — respondeu Yimot. Theremon voltou-se para a direção de onde viera a voz. Era difícil ver alguma coisa com tão pouca iluminação, mas em mais alguns momentos seus olhos se habituaram. Athor levava nos braços meia-dúzia de varas de trinta centímetros de comprimento por três de diâmetro. Procurou os assistentes com os olhos.
— Faro! Yimot! Venham me ajudar!
Os rapazes correram para o lado do diretor. Uma por uma, Yimot segurou as varas, enquanto Faro, em absoluto silêncio, acendia um fósforo grande e primitivo, como se estivesse executando a parte mais sagrada de um ritual religioso. Quando encostou a chama na parte superior da vara, a pequena labareda hesitou por um momento e depois uma forte luz amarela iluminou o rosto de Athor. Todos bateram palmas. Acima da vara, havia agora uma chama tremeluzente de quinze centímetros de altura!
— Fogo? — admirou-se Theremon. — Aqui? Por que não usam lanternas ou coisa parecida?
— Discutimos o assunto — disse Siferra. — A luz das lanternas é muito fraca. Não daria para iluminar um lugar deste tamanho…
— E no andar de baixo? Também estão acendendo tochas?
— Acho que sim. Theremon sacudiu a cabeça.
— Não é de admirar que ocorram incêndios na cidade esta noite. Se até cientistas como vocês estão recorrendo ao fogo para afastar a Escuridão…
A luz era fraca, mais fraca do que a luz de Dovim. As chamas oscilavam loucamente, projetando sombras caóticas e bêbadas nas paredes. As tochas produziam muita fumaça e cheiravam como um acidente culinário. Mas emitiam luz amarela.
Havia algo de muito desejável na luz amarela, pensou Theremon. Especialmente depois de quatro horas de Dovim. Siferra esquentou as mãos na tocha mais próxima, sem se importar com a fuligem que nelas se acumulou, sob a for--ma de um pó acinzentado, e murmurou consigo mesma:
— Lindo! Lindo! Nunca havia reparado na beleza do amarelo!
Mas Theremon olhava desconfiado para as tochas. Torceu o nariz para o cheiro rançoso e perguntou:
— De que são feitas essas coisas?
— De madeira — respondeu Siferra.
— Oh, não, não pode ser. Não estão queimando. A parte de cima ficou apenas chamuscada, e a chama parece brotar do nada.
— E a beleza dela. Trata-se na verdade de um mecanismo de iluminação artificial. Fizemos algumas centenas delas, mas a maioria está no Abrigo, é claro. vou lhe explicar.
Ela se voltou e limpou com um lenço as mãos enegrecidas.
— Você toma o caule de um junco aquático, seca-o bem e coloca-o de molho em gordura animal. Quando ele é aceso, a gordura queima lentamente. Essas tochas vão durar mais de meia hora, sem apagar. Não é engenhoso?
— Sensacional — disse o repórter, mecanicamente. — Moderníssimo. Estou realmente impressionado.
Mas não agüentava mais ficar ali. Estava sentindo a mesma inquietação que o fizera subir para a cúpula. Não bastasse o cheiro das tochas, havia também uma corrente gelada de ar entrando pelo buraco do teto, como se fosse o dedo frio da noite. Sentiu um arrepio. Ele, Sheerin e Beenay não deviam ter acabado tão depressa com aquela garrafa de vinho.
— Vou descer — disse para Siferra. — Não há nada para ver aqui se você não é um astrônomo.
— Tem razão. Eu vou com você.
À luz bruxuleante e amarela das tochas, pôde ver um sorriso no rosto da moça, um sorriso que desta vez não deixava margem a dúvidas.
Desceram a estreita escada em espiral até o andar de baixo. As pessoas ali também haviam acendido tochas. Beenay trabalhava com três computadores ao mesmo tempo, processando os dados colhidos pelos telescópios. Outros astrônomos estavam fazendo outras coisas, todas incompreensíveis para Theremon. Sheerin andava para cá e para lá, sem ter o que fazer; parecia uma alma perdida. Folimun colocara a cadeira bem debaixo de uma das tochas e continuara a leitura, os lábios se movendo no ritmo monótono do recital de invocações das Estrelas.
Frases soltas cruzaram a mente de Theremon, trechos de um artigo que pretendia escrever para a Crônica do dia seguinte. Várias vezes, naquela noite, a máquina de escrever que havia no seu cérebro começara a funcionar, em um processo totalmente automático, totalmente inconsciente, e, ele sabia muito bem, totalmente inútil. Seria ridículo imaginar que a Crônica fosse sair no dia seguinte.
Trocou olhares com Siferra.
— Veja o céu — murmurou a moça.
— Estou vendo.
O céu havia mudado novamente de tom. Agora estava ainda mais escuro, quase roxo, uma cor monstruosa, como se de alguma ferida no céu estivessem jorrando torrentes de sangue.
O ar parecia ter ficado mais denso. A escuridão, como uma entidade palpável, entrou no aposento, e o círculo dançante de luz amarela em torno das tochas se destacou cada vez mais do cinzento do ambiente. O cheiro de fumaça ali era tão enjoativo quanto na cúpula. Theremon descobriu que tudo o incomodava: a fumaça, o leve crepitar das chamas, o ruído dos passos de Sheerin, que andava sem parar em volta da mesa, no meio da sala. Com tochas ou sem tochas, estava ficando mais difícil enxergar.
Está chegando, pensou Theremon. A hora da Escuridão total. A hora das Estrelas. Por um instante, pensou que talvez fosse melhor procurar algum armário aconchegante e trancar-se lá dentro até tudo terminar. Ficar fora do caminho, evitar a visão das Estrelas, esconder-se e esperar que as coisas voltassem ao normal. Bastou um momento de reflexão, porém, para se convencer de que era uma péssima ideia. Um armário, ou qualquer outro lugar fechado, também estaria escuro. Em vez de um refúgio seguro, poderia tomar-se uma câmara de horrores muito pior do que os aposentos do Observatório.
Além disso, se algo importante estava para acontecer, algo capaz de mudar a história do mundo, Theremon não queria se manter à margem. Seria uma atitude tola e covarde, algo que provavelmente se arrependeria pelo resto da vida. Nunca tinha sido homem de fugir do perigo, se achava que havia assunto para uma reportagem. Além do mais, tinha confiança suficiente em si mesmo para achar que sobreviveria ao que estava para acontecer… e um resto de cinismo que o fazia imaginar se realmente estaria para acontecer alguma coisa.
Ficou em silêncio, escutando a respiração pesada de alguém tentando recuperar a compostura em um mundo que se dissolvia aos poucos nas sombras. Foi então que ouviu outro ruído. Era uma vaga impressão de som, que teria passado despercebida, se não fosse o silêncio mortal que tomara conta do aposento e a tensão que se apossara de Theremon com a aproximação da totalidade. O repórter prendeu a respiração e escutou; depois, foi até a janela e olhou para fora. O silêncio foi quebrado pelo seu grito assustado:
— Sheerin!
Houve um tumulto na sala. Estavam todos olhando para ele, apontando, perguntando.
O psicólogo correu para o lado de Theremon. Siferra juntou-se a ele. Até mesmo Beenay, sentado diante dos computadores, virou a cabeça para olhar.
Lá fora, Dovim era uma pequena lasca vermelha, dando uma última olhada desesperada para Kalgash. O horizonte a leste, na direção da cidade, estava perdido na Escuridão, e a estrada que ligava a cidade de Saro ao Observatório era uma linha avermelhada, ladeada de árvores, que pareciam haver perdido sua individualidade, transformando-se em uma massa sombria.
Mas era a estrada que atraía a atenção, porque no meio dela havia outra massa sombria, infinitamente mais perigosa, movendo-se na direção do Observatório, como uma fera gigantesca.
— Vejam! — gritou Theremon, com voz rouca. — Precisamos avisar a Athor! São os loucos da cidade! Os homens de Folimun! Estão chegando!
— Quanto tempo falta para a totalidade? — perguntou Sheerin.
— Faltam quinze minutos — informou Beenay. — Mas eles vão chegar aqui em cinco — disse Sheerin . Sua voz era firme, controlada, autoritária, como se tivesse conseguido encontrar um reservatório secreto de energia interior naquele momento crítico. — Eles não vão conseguir entrar. Este lugar parece uma fortaleza. Siferra, vá lá em cima contar a Athor o que está acontecendo. Beenay, não tire os olhos de Folimun. Jogue-o no chão e sente em cima dele se for preciso, mas mantenha-o onde está. Theremon, venha comigo.
Sheerin estava na porta, e Theremon nos seus calcanhares. A escada descia em espiral e desaparecia nas sombras. O impulso da corrida os fez descer uns quinze metros, de modo que a luz trêmula e amarelada que saía pela porta da sala desapareceu totalmente e eles se viram imersos na escuridão.
Sheerin parou e levou ao peito a mão rechonchuda. Os olhos se arregalaram e a voz se tomou uma tosse seca. Todo o seu corpo tremia de medo. A energia que demonstrara há poucos momentos parecia ter se esgotado.
— Não posso… respirar… Desça… sozinho. Feche todas as portas…
Theremon desceu mais alguns degraus e parou.
— Espere! Pode agüentar um minuto? — Ele também respirava com dificuldade. O ar entrava e saía dos pulmões como se fosse pegajoso, e sentiu uma ponta de medo quando pensou em fazer sozinho o caminho naquela Escuridão misteriosa.
E se os guardas tivessem deixado o portão aberto? Não era a multidão que o assustava. Era… A Escuridão.
Theremon compreendeu que, no final das contas, também tinha medo do escuro!
— Fique aqui — disse, desnecessariamente, para Sheerin, que estava encolhido na escada, no mesmo lugar em que Theremon o deixara. — Volto num segundo.
Subiu a escada de dois em dois degraus, com o coração aos pulos, não só pelo exercício, entrou na sala principal e arrancou uma das tochas do suporte. Siferra olhou para ele, surpresa.
— Quer que eu vá com você? — perguntou.
— Quero. Não. Não!
Saiu de novo da sala. A tocha tinha um cheiro desagradável, e a fumaça quase o cegou, mas agarrou a tocha como se quisesse beijá-la de alegria e desceu as escadas correndo.
Sheerin ainda estava no mesmo lugar. Ele abriu os olhos e gemeu quando Theremon se agachou a seu lado. O repórter o sacudiu.
— Tente controlar-se, está bem? Eu trouxe uma tocha. Levantou a tocha bem alto e segurando o cambaleante psicólogo pelo cotovelo, começou a descer as escadas, no centro do círculo protetor de luz.
No andar térreo, estava tudo escuro. Theremon sentiu de novo uma onda de medo, mas a tocha abriu uma brecha na Escuridão.
— Os guardas da segurança… — murmurou Sheerin . Onde estavam? Teriam fugido? Parecia que sim. Não, ali estavam dois dos guardas que Athor havia destacado, encolhidos em um canto do saguão, os olhos sem expressão, a língua de fora, tremendo como geleia. Dos outros, nem sinal.
— Segure — disse o jornalista, passando a tocha para Sheerin. — Já se pode ouvi-los lá fora.
Era verdade. Gritos roucos, abafados.
Mas Sheerin estava certo; o Observatório parecia uma fortaleza. Construído no século anterior, quando o estilo neogavotiano de arquitetura estava no apogeu, tinha sido projetado tendo em vista a estabilidade e durabilidade, e não a beleza.
As janelas eram protegidas por grossas barras de ferro enterradas bem fundo nos parapeitos de concreto. As grossas paredes não poderiam ser abaladas por um terremoto, e a porta principal era de carvalho maciço, reforçado com cintas metálicas em pontos estratégicos. Theremon verificou os ferrolhos. Ainda estavam no lugar.
— Pelo menos, não podem ir entrando, como Folimun fez — disse, ofegante. — Mas escute só! Estão do lado de fora!
— Temos que fazer alguma coisa.
— Tem toda razão — disse Theremon. — Não fique aí parado! Ajude-me a arrastar esses caixotes e colocá-los contra a porta… e mantenha essa tocha longe dos meus olhos. A fumaça está me matando.
Os caixotes estavam cheios de livros, instrumentos científicos, objetos variados, todo um museu de astronomia. Só os deuses sabiam quanto pesavam, mas alguma força sobrenatural se apossara de Theremon naquele momento de crise e ele conseguiu deslocá-los, como se fossem travesseiros, com a ajuda, não muito eficiente, de Sheerin.
Os pequenos telescópios e outros aparelhos chocalharam, enquanto ele transportava os caixotes. Ouviu um barulho de vidro quebrado. Beenay vai me matar, pensou Theremon. Ele adora essas quinquilharias.
Mas não estava na hora de ser delicado. Amontoou os caixotes contra a porta e, em poucos minutos, havia erguido uma barricada que, com sorte, seria capaz de conter os invasores se eles conseguissem arrombar o portão.
Podiam ouvir, com se viesse de muito longe, o som de punhos cerrados batendo na porta. Gritos… gemidos… Era como um terrível pesadelo.
A multidão partira de Saro com apenas duas coisas na mente: a vontade de destruir o Observatório e assim conseguir a absolvição prometida pelos Apóstolos, e um medo irracional que quase os deixava paralisados. Não houvera tempo para pensar em veículos, em armas, em líderes, nem mesmo em organização. Tinham se dirigido para o Observatório a pé e tentavam invadi-lo com mãos nuas.
E agora que estavam ali, o último lampejo de Dovim, a última gota de fogo escarlate tremeluziu por um instante sobre uma humanidade, à qual restava apenas um medo rígido e universal.
— Vamos subir — murmurou Theremon.
A sala do primeiro andar agora estava vazia. Tinham todos ido para o segundo andar, onde ficavam os telescópios. Quando entrou na cúpula, Theremon ficou surpreso com a calma que parecia haver se apossado de todos. Era como um quadro vivo. Yimot estava sentado no pequeno assento reclinável, operando o gigantesco solarscópio como se aquela fosse uma observação astronômica de rotina. Os outros se aglomeravam em torno dos telescópios menores, e Beenay dava instruções com voz tensa e desigual.
— Prestem atenção, todos vocês. Temos que fotografar Dovim um segundo antes da totalidade e mudar o filme. Ei, você… você… um para cada câmera. É melhor duplicar o trabalho para termos certeza de que não vamos perder nada. Vocês sabem quais são os tempos de exposição.
Os assistentes murmuraram que sim. Beenay passou a mão pelos olhos.
— As tochas ainda estão acesas? Claro que sim. Posso vê-las! — Apoiou-se nas costas de uma cadeira. – Lembrem-se, não façam tentativas exóticas. Não percam tempo tentando pegar duas estrelas de uma vez. Uma é suficiente. E… e se sentirem que estão perdendo o juízo, afastem-se da câmera. Da porta, Sheerin sussurrou para Theremon:
— Leve-me a Athor. Não consigo vê-lo.
O repórter não respondeu logo. As formas vagas dos astrônomos oscilavam e confundiam-se, e as tochas haviam se transformado em manchas amarelas. A cúpula estava fria como a morte. Theremon sentiu a mão de Siferra tocar a sua por um momento, apenas por um momento, mas não viu a arqueóloga.
— Está escuro — gemeu. Sheerin estendeu a mão.
— Athor. — Cambaleou para a frente. — Athor! Theremon se aproximou e segurou-o pelo braço.
— Espere. Vou levar você.
Atravessou o aposento com esforço, fechando os olhos para se proteger da Escuridão e proteger a mente do caos esmagador que crescia dentro dele. Ninguém lhes deu atenção. Sheerin apoiou-se na parede.
— Athor!
— É você, Sheerin?
— Sou eu, sou eu. Athor?
— Que é, Sheerin? — Era a voz de Athor, sem dúvida.
— Eu só queria lhe dizer… para não se preocupar com a multidão… eles não vão conseguir arrombar a porta…
— Está bem. Obrigado — murmurou Athor.
A voz de Athor, pensou Theremon, soava como se ele estivesse a quilômetros de distância. A anos-luz de distância.
De repente, outro vulto estava no meio deles, agitando os braços. Theremon achou que podia ser Yimot ou mesmo Beenay, mas depois sentiu o tecido grosseiro de uma veste de Apóstolo e compreendeu que só podia ser Folimun.
— As Estrelas! — gritou Folimun. — As Estrelas estão chegando! Saiam do meu caminho!
Ele está tentando chegar até onde está Beenay, pensou Theremon. Para destruir as câmeras sacrílegas.
— Cuidado! — gritou Theremon.
Mas Beenay continuava sentado em frente aos computadores que controlavam as câmeras. Theremon segurou a veste de Folimun e deu um puxão. De repente, sentiu alguém apertar-lhe o pescoço. Cambaleou. Não havia nada à sua frente além de sombras, o próprio chão debaixo dos seus pés parecia ter perdido substância.
O impacto de um joelho no abdome o fez dobrar-se de dor; quase caiu.
Após um momento de agonia, porém, suas forças voltaram. Segurou Folimun pelos ombros, sacudiu-o, deu-lhe uma gravata. Nesse momento, ouviu Beenay exclamar:
— Chegou a hora! Todos para suas câmeras! Theremon tomou consciência de várias coisas ao mesmo tempo. O mundo inteiro estava passando pela sua mente conturbada… e tudo era caos, tudo era medo.
Percebeu que o último raio de sol tinha ficado para trás. Ao mesmo tempo, ouviu um gemido sufocado de Folimun, um grito de espanto de Beenay, uma gargalhada histérica de Sheerin, que terminou abruptamente… e um súbito silêncio, um silêncio estranho e mortal do lado de fora.
Sentiu o corpo de Folimun relaxar. Examinou os olhos do Apóstolo e pôde ver que apenas a parte branca refletia a luz tênue das tochas. Os cantos dos lábios do Apóstolo se encheram de espuma e ele deixou escapar um rugido animal. Com a lenta fascinação do medo, levantou a cabeça para o negrume arrepiante do céu.
Lá fora, estavam as Estrelas!
Não uma ou duas dúzias, como imaginava Beenay. Havia milhares delas, brilhando com incrível nitidez, uma ao lado da outra, uma infinita parede de estrelas, formando um ofuscante escudo de espantosa luz que enchia todo o céu. Milhares de poderosos sóis tremeluziam no céu, em um esplendor que era mais assustadoramente frio em sua serena indiferença do que o vento cortante que castigava aquele mundo gélido e escuro.
Elas abalavam as raízes do seu ser. Martelavam o seu cérebro. Sua monstruosa luz gélida era como um milhão de gongos gigantescos sendo tocados ao mesmo tempo.
Meu Deus, pensou. Meu Deus, meu Deus, meu Deus! Mas não podia desviar os olhos daquela visão diabólica. Ficou olhando pela abertura da cúpula, todos os músculos do corpo enrijecidos, contemplando, com uma mistura de fascínio e terror, aquela cortina cintilante que cobria o céu. Sentiu a mente encolher-se diante daquele espetáculo grandioso até ficar reduzida a um pequeno ponto gelado. Seu cérebro não era maior do que uma bola de gude, chocalhando na cabaça oca que era o seu crânio. Seus pulmões se recusavam a funcionar. Seu sangue corria em sentido oposto nas veias.
Afinal, conseguiu fechar os olhos. Ficou algum tempo ajoelhado, ofegante, lutando para recuperar o controle. Depois, Theremon se pôs de pé com esforço, a garganta contraída a ponto de impedir-lhe a respiração, todos os músculos do corpo agonizando em uma tensão de terror e um medo absoluto além da compreensão. Sabia vagamente que Siferra estava por perto, mas teve que lutar para lembrar quem ela era. Teve que se esforçar para se lembrar quem ele era. Do andar térreo, veio um temível ruído de batidas ininterruptas na porta, como se uma selvagem fera estranha, de mil cabeças, estivesse lutando para entrar…
Não tinha importância.
Nada mais tinha importância.
Estava ficando louco e sabia disso. Em algum lugar do seu íntimo, o que lhe restava de sanidade estava protestando, lutando para não ceder à avalanche irresistível de puro pavor. Era horrível enlouquecer e ter consciência disto, saber que em poucos instantes estaria ali fisicamente, mas toda a essência do seu ser estaria morta, afogada pela escuridão. Porque aquilo era a Escuridão. A Escuridão, o Frio e o Medo. As paredes luminosas do universo tinham sido estilhaçadas e seus horríveis fragmentos negros estavam caindo para esmagá-lo e obliterá-lo.
Tropeçou em alguém que engatinhava pelo chão, mas conseguiu manter o equilíbrio. com as mãos apertando a garganta seca, cambaleou em direção às tochas que enchiam sua visão transtornada.
— Luz! — berrou, com voz rouca.
Athor, em algum lugar, chorava, soluçando sem parar, como uma criança terrivelmente assustada.
— As Estrelas… Todas as estrelas… Não sabíamos de nada! Pensávamos que seis estrelas eram muita coisa! A Escuridão não vai passar! As paredes estão se fechando e não sabíamos de nada, não podíamos saber e qualquer coisa…
Alguém tentou arrancar uma tocha do suporte, mas ela caiu no chão e se apagou. Nesse instante, o esplendor terrível das indiferentes Estrelas pareceu aproximar-se ainda mais.
Do andar térreo, veio o som de gritos e o barulho de vidro quebrado. A multidão enlouquecida conseguira entrar no Observatório. Theremon olhou em torno. À luz fria das Estrelas, viu as silhuetas dos cientistas encolhidos nos cantos, trêmulos de pavor. Foi para o corredor. Uma rajada de vento gelado entrou por uma janela atingindo-o no rosto. Ficou ali parado, rindo.
— Theremon? — chamou uma voz. — Theremon?
— Continuou a rir.
— Olhe — disse, depois de algum tempo. — Ali estão as Estrelas. Ali está o Fogo do céu.
No horizonte, na direção da cidade de Saro, um clarão vermelho começou a se espalhar e a aumentar de intensidade, um clarão que não era o brilho de um sol.
A longa noite havia começado de novo.