Após a queda de Palanthas, seguiu-se a do Norte de Ansalon. Assegurado o domínio da grande e antiga cidade, tendo à disposição as riquezas desta e franqueado o seu porto aos navios dos dragões negros, Ariakan não perdeu tempo a apoderar-se de todo o território, que facilmente lhe cairia nas mãos, e dedicou-se ao reforço das tropas para as batalhas que se adivinhavam difíceis e prolongadas.
Os boatos revelaram-se a sua melhor arma. Difundiam-se com maior rapidez do que os seus próprios cavaleiros a voar, montados nos dragões azuis. Por toda a parte se ouviam cochichos sobre histórias de exércitos, conduzidos pelo Senhor de Loth, formados por esqueletos guerreiros, que chacinavam qualquer ser vivo e lhe bebiam o sangue. Por toda a parte se acreditava nelas. O clima de terror também se adensava com o medo dos dragões e com as histórias dos cruéis bárbaros, que, dizia-se, enfiavam crianças em espetos e as assavam vivas nas fogueiras. Quando as tropas afluíam às cidades principais, o pânico dos habitantes era tal que, sem oferecerem a mínima resistência, escancaravam os portões e convidavam os cavaleiros das trevas a atravessá-los.
Passara-se um mês e Ariakan controlava Nordmaar para leste, as montanhas de Kalkhist para sul até às planícies da Poeira para oeste até Solamnia e Abanasínia. A Ergoth do Norte ainda resistia, os seus habitantes, uma raça de marinheiros de pele escura, prosseguiam encarniçados os combates, recusando-se a desistir. Dizia-se que os duendes das colinas estavam oferecendo uma enérgica resistência nas montanhas de Kalkhist, onde draconianos renegados tinham se juntado à refrega. Ariakan não tentara ainda apoderar-se dos territórios elfos de Silvanesti e Qualinesti, pois sabia que os custos da batalha seriam elevados. Em vez disso, aguardava que o fruto lhe caísse nas mãos, apodrecido por dentro.
Ignorava, por ora, as planícies do Pó, considerando-as de pouca valia. Quando o resto do continente estivesse sob o seu jugo, então dizimaria as tribos dispersas do Povo das Planícies, chefiadas pela sacerdotisa Lua Dourada e por seu esposo Vento do Rio.
Quanto aos gnomos do Monte Não Se Rale, infelizmente tombaram por suas próprias mãos. Tendo ouvido rumores sobre a alegada invasão dos cavaleiros das trevas, os gnomos acionaram febrilmente todos os engenhos bélicos mais poderosos de que dispunham. Desconhece-se com exatidão o que correu mal, mas uma portentosa explosão abalou o Norte e o Sul de Ergoth. Elevou-se no céu uma imensa nuvem de fumaça acre, que durante uma semana pairou sobre a montanha. Dizia-se que, quando esta se dissipou, grande parte do pico da montanha desaparecera. Havia notícias de grandes baixas, mas ouvia-se de novo ecoar pela montanha o estrépito de ferros e de pancadas. Segundo a filosofia dos gnomos, essa coisa de catástrofe não existia — havia apenas oportunidades.
Kendermore não caíra sem antes oferecer resistência, em larga medida devido aos esforços de Paxina, a perspicaz chefe militar dos kenders e filha de Kronin Protuberância de Cardo, um herói das Guerras do Dragão. Paxina Protuberância de Cardo Fedorenta ouvira dizer que o Senhor de Ariakan considerava os kenders um “estorvo inútil” e planejava capturar a todos e condená-los à morte. Paxina comunicou-o ao seu povo, esperando incentivá-los à batalha. Foi acolhida com encolher de ombros, bocejos e “Quais as novidades?”
Tornava-se necessário algo mais que fizesse bulir o sangue dos kenders. Paxina meditou no assunto e depois espalhou o boato de que os cavaleiros das trevas se preparavam para saquear Kendermore e despojar os kenders dos seus bens mais preciosos.
O ardil funcionara.
Apavorados, os kenders opuseram uma resistência tal que, embora vencidos por Ariakan, conquistaram a admiração deste, levando-o a concluir que, afinal, os kenders podiam revelar-se úteis se conseguisse persuadi-los a servir a Rainha das Trevas. Deste modo, Kendermore sobreviveu, para desagrado dos cavaleiros obrigados a prestar serviço lá.
Numa questão de semanas, Lorde Ariakan tornou-se o dono e senhor de mais territórios do que os Senhores Supremos dos Dragões haviam conseguido conquistar durante a Guerra da Lança. E isto com muito menos baixas, de ambos os lados.
A vida mudou para os conquistados, mas apenas por formas sutis que não se tornaram óbvias de imediato. Os que receavam a chacina e a matança desenfreadas, como haviam presenciado durante a última guerra, surpreenderam-se ao constatar que os cavaleiros, embora de um modo rude, tratavam os vencidos com justiça. Difundiram-se leis rigorosas, de cumprimento frio, desapaixonado e por vezes brutal. Excetuando as escolas que divulgavam os ensinamentos da Rainha das Trevas, as demais foram encerradas. Qualquer feiticeiro, apanhado fora dos limites da Torre de Wayreth, corria perigo. Os que desrespeitavam as leis, eram condenados à morte. Sem apelo nem agravo. A exuberante cidade de Flotsam, conhecida pela grosseria e turbulência dos seus habitantes, no final do mês, tornara-se submissa, calma e pacífica.
Havia quem defendesse esta paz como uma coisa boa. Já não era sem tempo, os homens honestos poderem viver em território ordeiro e seguro. Havia outros que consideravam o preço cobrado por esta paz, comprada em troca da liberdade deles, muito alto.
Depois do último cliente sair, Tika Waylan Majere fechou a porta, baixou a pesada tranca de madeira e deu um suspiro. Não retomou logo as tarefas — e havia tanto que fazer: canecas para lavar e enxugar, travessas para raspar e transportar para a cozinha, mesas para limpar. Tika permaneceu junto à porta da estalagem, de cabeça inclinada, retorcendo o avental nas mãos. Permaneceu por tanto tempo e tão silenciosa, que Caramon parou de limpar o bar e se aproximou da mulher.
Colocou-lhe os braços em volta dos ombors e ela encostou-se ao marido e envolveu-lhe os pulsos com as mãos.
— Que se passa? — perguntou ele com brandura. Tika abanou a cabeça.
— Nada — respondeu, soltando novo suspiro. — Tudo. — Passou a mão pelos olhos. — Oh, Caramon! Não costumava ficar contente quando, à noite, fechava a estalagem. Costumava sentir-me penalizada por ver o último cliente partir. Mas agora, fico triste por ter que abrir a estalagem de manhã. Tudo mudou! Está tudo mudado!
Virando-se, enterrou o rosto no peito do marido e começou a soluçar. Caramon pôs-se a acariciar o cabelo ruivo com doçura.
— Você só está cansada, querida. O calor a derrubou. Anda, vamos nos sentar. Deixamos isto tudo para amanhã. Os pratos sujos não vão fugir. Anda, descansa, vou buscar um copo de água fresca.
Tika sentou-se. Não que lhe apetecesse o copo de água que, na melhor das hipóteses, estaria morna. Com aquele calor ficava tudo quente, até a cerveja. Os clientes estavam aprendendo a gostar de cerveja morna. Mas Caramon sentia-se feliz por lhe agradar, de modo que se sentou e permitiu que o marido lhe trouxesse água e os biscoitos preferidos, e que enxotasse Raf, o duende dos esgotos, que entrara vindo da cozinha, ansioso por “limpar” os pratos e que assim fez, devorando os restos de comida.
Com um duende dos esgotos por perto, quem precisava de caixotes de lixo?
Tika ouviu o desapontado Raf choramingar na cozinha. Carrancudo, Caramon atirou-lhe um pedaço de pão bolorento e fechou de novo a porta com estrépito. Continuaram a ouvir-se os choramingos.
Tika mordiscou um bolinho. Não sentia fome, mas se não comesse Caramon continuaria cercândo-a e a preocupar-se até fazê-lo. Vendo-a comer, exibiu um rasgado sorriso, sentou-se ao seu lado e deu-lhe palmadinhas na mão.
— Eu sabia que esses biscoitos te abririam o apetite.
— São deliciosos, querido — disse Tika, mentindo. Os bolinhos tinham gosto de pó. Naquela época, tudo parecia pó. Mas, vendo-a comer, Caramon rejubilou e, sabe-se lá como, o prazer dele tornou-os saborosos. Deu por si a tirar outro.
— Oh, Caramon! — disse, com um suspiro. — Que vamos fazer?
— A respeito de quê?
— A respeito... bom, a respeito... — respondeu ela, fazendo um gesto vago com a mão.
— A respeito dos cavaleiros das trevas? Minha querida, pouco podemos fazer — disse Caramon em tom solene. — Tenho que reconhecer que por causa deles o negócio melhorou. — Ficou por um momento em silêncio e acrescentou baixinho: — Algumas pessoas afirmam que esta ocupação não foi assim tão má.
— Caramon Majere! — exclamou Tika, enraivecida. — Como se atreve?
— Não fui eu quem disse — esclareceu Caramon. — Só citei que algumas pessoas afirmam isso. E de certo modo têm razão. As estradas são seguras. Quando este calor desanuviar... por certo vai acontecer um dia... as pessoas voltarão a viajar. Os cavaleiros são cavalheiros. Não se parecem com os draconianos que, durante a última guerra, se apoderaram da torre. Ariakan não enviou os seus dragões para reduzirem tudo a cinzas. Os soldados dele não roubam. Pagam o que compram. Não se embebedam, não são grosseiros. Eles...
— Não são humanos — atalhou Tika com amargura. — Parecem-se com uma daquelas máquinas sobrenaturais dos gnomos que meteu na cabeça que se tornaria humana, mas que por dentro continua máquina. Esses cavaleiros não possuem coração nem sentimentos a respeito de nada. Sim, comigo são educados, mas sei perfeitamente que se lhes ordenassem para me dilacerarem a garganta, em honra da Rainha das Trevas deles, o fariam sem hesitações.
— Bom, lá isso é... — concordou Caramon.
— E o que me diz... — A fúria de Tika ganhava contornos, adensava-se. Comeu mais quatro bolinhos. — E o que me diz das pessoas que desapareceram sem mais nem menos? Pessoas como o Todd Wainright?
O rosto de Caramon tornou-se sombrio.
— Há um ano que o Todd andava pedindo encrencas. Era um rufião, um arruaceiro. Não foram poucas as vezes que o expulsei ou o arrastei lá para fora pelos pés. Você mesma lhe disse para não voltar aqui.
— É bem possível — disse secamente Tika —, mas os soldados da Rainha das Trevas não levaram o Todd por ser um bêbedo ruim. Levaram-no por não se coadunar com o grandioso plano deles, por ser um arruaceiro e um rebelde.
— Contudo, as coisas, por estas bandas, estão mais pacíficas agora sem ele — argumentou Caramon. — Têm de manter a lei e a ordem...
— Paz! — exclamou Tika dando uma fungada. — Lei e ordem! É verdade que conseguimos isso. Temos leis que chegam para atolar um duende dos esgotos. E ordem. Algumas pessoas receiam a mudança, receiam tudo o que seja diferente. Percorrem a estrada segura e movimentada porque receiam deixá-la. Esse Ariakan cavou um pequeno sulco na estrada e espera que todo mundo o siga. Quem não o fizer, quem pretenda seguir por um trilho secundário ou abandonar a estrada, desaparece no meio da noite. Caramon Majere, está são e salvo no fundo de um poço escuro e seco, mas, acho que quase nada realiza de válido.
Caramon aquiesceu com a cabeça. Ouviu em silêncio o discurso de Tika, mas, discretamente, pusera-se a cortar fatias de pão e, depois de lhes juntar queijo, colocara-as diante da mulher. Acabados os bolinhos, Tika virou-se para o pão com queijo.
— Puseram termo às guerras entre os Elfos — mencionou Caramon. Tika atirou-se com voracidade a um pedaço de pão e mastigou-o como se estivesse a abocanhar os detestados cavaleiros.
— Transformando o próprio filho do Tanis numa das suas máquinas embotadas — murmurou, entre duas dentadas.
— Se é que dá crédito ao Porthios — replicou Caramon serenamente. — Ele afirma que o Gilthas está pensando em vender-se aos cavaleiros para salvar a própria pele. Encontrei-me com o jovem Gil e tenho-o em melhor conta. Lembre-se que é filho do Tanis, e também da Laurana. Os paladinos das trevas mataram o pai. Não sei o que o jovem tem em mente, mas aposto que não é o que os cavaleiros pensam. Qualinesti ainda não caiu.
Tika abanou a cabeça mas, não contestou. Falar de Tanis ainda a deixava perturbada. Ainda tinha bem gravada na mente a noite em que Laurana aparecera para lhes comunicar as tristes novas da sua morte: os três, sentados no escuro, porque receavam acender uma candeia, a falar dos velhos tempos e a entremeá-los com lágrimas.
— Além disso — prosseguiu Caramon, continuando discretamente a cortar mais queijo e a estendê-lo à mulher —, os maus tempos contribuem para que as pessoas se aproximem... vimos acontecer isso durante a Guerra da Lança.
— Os exemplos são escassos e dispersos — murmurou Tika. — Muitos correram logo a desfraldar a bandeira branca e Takhisis conquistou os vizinhos deles.
— Ora vamos, minha querida, tenho as pessoas em melhor conta — respondeu Caramon. — E, para acabar, o que me diz de um pedaço de torta de framboesa agora?
Tika baixou os olhos, viu as migalhas do pão, do queijo e dos bolinhos e desatou a rir. Logo as gargalhadas se transformaram em lágrimas, mas eram lágrimas de amor e não de tristeza. Dando uma palmadinha na mão enorme do marido, disse:
— Agora percebo o teu plano e não, não quero torta nenhuma, depois de todos os bolinhos que comi. Obrigada, mas já comi o suficiente.
— E também recuperou o tempo perdido. Comeu mais em dez minutos do que em dez dias — disse Caramon com voz severa. — Tem que se manter forte, minha bem-amada. — Aninhando a mulher nos braços, acrescentou em voz rouca: — E também não quero perdê-la.
Tika encostou-se ao marido e, como sempre, sentiu que era o seu melhor bálsamo, o seu maior conforto.
— Não vai me perder, meu adorado. Prometo que vou começar a cuidar melhor de mim. Só que... estou sempre pensando em Palin — Suspirou e, da janela, perscrutou a escuridão. — Se o túmulo dele se encontrasse ali, junto dos nossos outros dois meninos, pelo menos eu saberia...
— O túmulo não se encontra ali porque ele não morreu — respondeu Caramon.
— Caramon — argumentou Tika com brandura —, sabe muito bem o que o Dalamar nos disse... Palin e Tas entraram no laboratório e nunca mais saíram de lá. Já passou mais de um mês e não há notícias deles...
— Ele não morreu — disse Caramon, libertando-se do abraço de Tika. — Vou buscar uma chícara de chá de tília para nós dois — acrescentou e dirigiu-se para a cozinha.
Tika preferiu não acompanhá-lo. Caramon tinha que elaborar as coisas à sua maneira. Dando outro suspiro, olhou para toda aquela desordem, suspirou de novo e levantou-se. As guerras e os cavaleiros das trevas iam e vinham. Mas sempre haveriam pratos sujos.
Estava empilhando os pratos quando ouviu o som. Sem saber bem se era o estardalhaço da louça, parou de trabalhar e, sustendo a respiração, pôs-se à escuta.
Nada.
Tentou identificar o ruído.
Passos nas escadas. Passos que eram suaves, furtivos.
Manteve-se por longo tempo quieta, mas não voltou a ouvir o som. Encolhendo os ombros, julgou tratar-se do gato e começou a empilhar de novo os pratos. Colocou-os num tabuleiro e dirigia-se para a cozinha com este nas mãos, quando ouviu o raspar de metal contra a madeira.
Virando-se, viu a tranca da porta levantar-se, sem que ninguém mexesse, e a porta se abrindo.
Tika pousou com violência o tabuleiro, pegou na caçarola e precipitou-se para trás da porta. Quaisquer cavaleiros das trevas que tentassem levá-la, ao marido ou às filhinhas, ficariam com a cabeça rachada...
— Que se...? — perguntou Caramon, irrompendo da cozinha.
— Chiiu! — Tika levou o dedo aos lábios e levantou a caçarola.
Alguém abriu a porta e entrou. Tika não conseguia enxergar bem. Apesar do calor, o homem vestia uma capa cinzenta. Apenas vislumbrando o alvo, a nuca deste, fez pontaria...
Caramon soltou um rugido e precipitou-se para a frente, derrubando mesas e espatifando cadeiras.
— Palin! — murmurou Tika. Muito estupefata para poder mover-se, encostou-se, esvaída, à parede e, com os olhos marejados de lágrimas, ficou a ver o marido estreitar o filho nos braços.
— Onde está a mãe? — perguntou Palin, olhando ao redor.
— Escondida atrás da porta — respondeu Caramon, lavado em lágrimas. — Se preparando para te atacar com a caçarola!
Corando, Tika brandiu a caçarola, largou-a com estrépito e correu para o filho.
— Palin, meu querido Palin! — disse, rindo e chorando. — Passei este tempo todo a rezar para que voltasse são e salvo, e agora que está aqui, quase te ataco! Pensei que era... um deles.
— Está tudo bem, mãe — disse Palin, estreitando-a nos braços. — Eu compreendo. Sei o que está acontecendo por estas bandas. Falamos com o Dalamar.
— Nós? — observou Tika, olhando por trás dele. Avançando, Palin fitou os pais.
— Mãe, Pai. Encontra-se alguém comigo que vocês não vêem há muito tempo. Quis que eu dissesse primeiro. Ele... não tem certeza se será bem-vindo...
Soltando um grito desvairado, repassado de dor, Caramon precipitou-se para a porta e escancarou-a.
No alpendre encontrava-se uma figura envolta em vestes negras, que sumia nas trevas. Ao ver Caramon, o vulto retirou o capuz que lhe cobria a cabeça. A luz que escoava da estalagem foi refletir-se na pele dourada e reluziu-lhe nos olhos em forma de ampulheta.
— Raist! — gritou Caramon, cambaleando.
Raistlin olhou demoradamente para o irmão e não se moveu.
— Caramon — disse, por fim, em voz doce, e o nome pareceu liquefazer-se no sangue do coração. — Caramon, será que, será que... — Começou a tossir, mas dominando-se prosseguiu: — Que me perdoa...
Aproximando-se, Caramon puxou o irmão para dentro.
— O teu quarto está pronto, Raist. Sempre esteve.
O Sol que nascia e que, àquela hora matinal, já envolvia tudo numa bola ardente, cintilou nos vidros manchados das janelas da estalagem. Sentados, os irmãos gêmeos viram-no despontar. Tika fora se deitar há muito, assim como Palin, que se encontrava ainda um pouco exaurido por causa da ferida. Caramon e Raistlin permaneceram de pé, relembrando, pela noite afora, o passado distante, os tempos antigos, os erros antigos e as mágoas antigas.
— Raist, se soubesse que desfecho iria ter, escolheria de outro modo? — perguntou Caramon.
— Não — replicou Raistlin, com uma réstia da sua velha irritabilidade. — Porque se soubesse, não teria que optar.
Caramon não entendeu lá muito bem, mas acostumado a não compreender o irmão, não permitiu que isso o afligisse. Compreendia o suficiente. Pôs-se então a falar com o irmão a respeito da família.
Raistlin encontrava-se aninhado a um canto, segurando nas mãos uma chávena de chá que lhe acalmou a tosse. O arquimago escutava as histórias de Caramon, na sua mente, Palin e os irmãos perfilavam-se com nitidez, sabia coisas deles que Caramon desconhecia. Todos esses anos passados naquele local distante, em paz no seu torpor comatoso — tais visões haviam constituído os sonhos de Raistlin.
Só na hora mais negra que antecede a aurora falaram do presente... e do futuro.
Pela janela, Caramon fitava agora, com ar perturbado e aflito, o Sol a erguer-se por entre a frágil folhagem castanha do bosque do vale.
— O fim de todas as coisas, você diz — murmurou. — De todas as coisas — repetiu, virando-se para encarar o irmão. — Sei que vou morrer. Tudo, até os elfos, tem que morrer. Mas... sempre pensei que isto — fez um gesto, a abranger as janelas, as árvores, a erva, a sujeira e o céu sem nuvens — continuaria a existir depois de eu desaparecer. Você diz que nada... nada, restará?
— Quando o Caos aparecer para destruir este “brinquedo dos deuses”, o solo se abrirá, e das fendas jorrará fogo. Um vento, tão raivoso como mil tempestades, se precipitará rugindo dos céus, para atiçar as chamas. Dragões de fogo, conduzidos por guerreiros demoníacos, sobrevoarão a terra e em pouco tempo o fogo consumirá tudo. Os lagos evaporarão e as águas dos oceanos ferverão. O próprio ar se converterá num braseiro e, só de o respirar, as pessoas morrerão. Nada nem ninguém sobreviverá.
Raistlin falou num tom calmo, inexpressivo, que era profundamente convincente e assustador. As palavras que proferiu provocaram um calafrio de terror em Caramon.
— Fala como se o tivesse presenciado — disse em voz baixa.
— Presenciei — respondeu Raistlin. Desviando o olhar do vapor que evolava do chá, fixou-o no irmão. — Esqueceu o que vi com estes meus olhos malditos. Vi o tempo mover-se em frente e vi assim o tempo deter-se.
— Mas, não tem que ser assim — argumentou Caramon. — Isso sei eu. O futuro é o que construímos.
— Tem razão — concordou Raistlin. — Há alternativas.
— E? — insistiu Caramon, que nunca perdia a esperança.
Raistlin voltou a fixar o chá que esfriava.
— Meu irmão, descrevi o que pode acontecer de pior. — Calou-se, pensativo, e acrescentou: — Ou possivelmente de melhor.
— Quê!? — exclamou Caramon, chocado. — De melhor? As pessoas a serem queimadas vivas! Os oceanos a ferverem! É isso o melhor?
— Meu irmão, depende da forma como encararmos as coisas — respondeu Raistlin, empurrando o chá para o lado. — Não consigo beber isto. Está ficando frio. — Tossindo, aconchegou-se nas vestes, embora, no interior da estalagem, já se respirasse um calor sufocante.
— Não podemos ficar aqui sentados de braços cruzados! — protestou Caramon levantando-se e dirigindo-se para a cozinha. Regressou com uma chaleira de água quente. — Lutaremos, lutaremos ao lado dos deuses, se isso for necessário!
— Oh, sim — respondeu Raistlin. — Lutaremos. E muitos de nós morrerão. E pode até ser que vençamos. E seria possivelmente essa a maior perda de todas.
— Raist, não compreendo... — começou Caramon.
— Raist, não compreendo... — imitou-o Raistlin, com ar de troça. Embaraçado, Caramon corou e olhou para os pés.
Raistlin deu um suspiro.
— Caramon, desta vez nem eu compreendo. Não, não me sirva mais chá. Não há tempo. Temos à nossa frente uma longa jornada.
— Nós? Quer... quer que te acompanhe? — perguntou Caramon, hesitante.
— É claro! — replicou Raistlin com brusquidão. — Preciso do apoio dos teus braços fortes. E é o único que sabe fazer esta mistela como deve ser — acrescentou, indicando a caneca de chá.
— Claro, Raist. Te acompanharei para onde quer que seja. Onde vamos?
— À Torre de Wayreth. O Dalamar irá se encontrar conosco lá. Convocou um Conclave dos Feiticeiros.
— Então, levaremos o Palin conosco...
— Não, o Palin tem outra missão. Deve seguir para Palanthas.
— Sozinho? — inquiriu Caramon, franzindo o cenho. — Mas, correrá perigo na estrada...
— Ele não vai pela estrada — interrompeu-o Raistlin, irritadiço.
— Ah, vai usar a magia para conduzi-lo até lá — disse Caramon.
— Não, não vou. A propósito de Palin, tenho que falar com ele. Vamos, vamos meu irmão — prosseguiu Raistlin, vendo que Caramon se mantinha parado, com a chaleira do chá na mão. — Apresse-se! Cada minuto que passa aproxima-nos mais da catástrofe! Precisamos nos aprontar para partir dentro de uma hora.
— Claro, Raist — disse Caramon, dirigindo-se para a cozinha.
Parando à entrada, ficou a observar o irmão. Levantando-se vagarosamente, Raistlin apoiou-se na mesa para se erguer. Outrora, há uma infinidade de tempo, recorreria ao bastão para se firmar. Fazendo uma pausa, pegou na bolsa que continha a mistura de chá e pendurou-a no cinto que lhe rodeava a cintura. Deste, não pendiam outras bolsas nem dele se desprendeu o perfume de pétalas de rosa. Não transportava consigo nenhum cofre contendo pergaminhos, nenhum livro...
Foi então que Caramon compreendeu.
— Despojaram-te da sua magia, não foi, Raistlin? — perguntou com brandura.
Raistlin guardou um demorado silêncio e, com um modo estranho, respondeu:
— Meu irmão, reparei que não bebe nada mais forte do que água.
— Sim — respondeu Caramon, sereno. — Mas o que...?
Como se não ouvisse, Raistlin prosseguiu:
— Só água porquê? Porquê?
— Raistlin, sabe porquê. As bebidas alcoólicas dos duendes apoderam-se de mim Quando começo, não consigo parar... — Caramon fez uma pausa, o rosto retorcido num esgar de perplexidade. — Quer dizer que é a mesma coisa? Que você...?
— Talvez não conseguisse resistir à tentação — disse Raistlin serenamente.
— Mas... o que está por acontecer. Não vamos precisar de você?
— Temos o Palin — respondeu Raistlin.
O rubor de Caramon desvaneceu-se. Ficou pálido, com ar infeliz.
— Raistlin, não fala sério. Ele ainda é novo e tem uma categoria inferior...
— Eu também, meu irmão — respondeu Raistlin com brandura. — Eu também.
Caramon engoliu em seco.
— Sim, mas você... Bom, você...
— Tive ajuda? — repetiu Raistlin, com um sorriso escarninho. — Sim, tive ajuda. O Fistandantilus estava comigo. E o Palin também terá ajuda. Também terá... — Tossiu e voltou a afundar-se na cadeira. — Mas, não se preocupe, meu querido irmão. Tal como eu, o Palin poderá optar.
O esclarecimento não trouxe nenhum alívio a Caramon. Afastando-se, deixou o irmão gêmeo sentado à mesa, a observar a alvorada, que ardia como uma chama de Verão.
Palin desceu para tomar o desjejum e deparou com a casa num rebuliço. A mãe encontrava-se postada ao balcão, cortando fatias de pão quente com frutas, que cozia sempre que alguém da família partia em viagem. Os rapazes chamavam-lhe o “Pão Ambulante”, pois comiam-no enquanto efetuavam o trajeto, embora, como Sturm, o irmão mais velho dizia com ar de brincadeira, o pão fosse suficientemente duro para permitir que caminhassem sobre ele enquanto comiam.
O cheiro evocou-lhe reminiscências vívidas e dolorosas ao mesmo tempo. Palin viu-se forçado a parar no vão das escadas e a apoiar-se no bastão até que se dissipasse a névoa que lhe toldava os olhos e o aperto que sentia na garganta. Desceu quando Caramon apareceu, trazendo um grande alforje, que pousou junto à porta.
— Pai — disse Palin, espantado —, vai conosco até Wayreth?
— Ele vai comigo, Palin — disse Raistlin, virando-se. — Folgo por te ver acordado. Ia agora mesmo acordá-lo.
— Mas, eu também os acompanho! — protestou Palin. — Sinto-me ótimo. O meu ombro ainda está um pouco rígido, mas esta manhã apliquei um pouco mais daquele ungüento e a ferida está cicatrizando...
— Que ferida? — perguntou Tika com brusquidão, interrompendo o trabalho.
— Um ferimento ligeiro que sofreu durante as suas viagens. Nada de grave — interveio Raistlin.
— É o que veremos. Caramon, acabe de cortar este pão e meta alguns naqueles alforjes. Quanto a você, meu menino, sente-se para eu poder examiná-lo. Por que não despiu a capa a noite passada, pode me dizer?
— Mãe! — exclamou Palin, com as faces a arder e lançando um olhar envergonhado ao tio. — Não há problema, mãe, de verdade. Não precisa ficar tão preocupada...
— Tika — interrompeu Caramon —, não há tempo...
Ela virou-se, de mãos nas ancas.
— Caramon Majere, será que dentro de cinco minutos vamos ser atacados por dragões?
— Ora, não — começou Caramon —, mas...
— Então temos tempo — respondeu Tika, apontando para uma cadeira. — Sente-se ali, rapazinho, e deixe-me ver esse ombro. Que destino deu às roupas ensangüentadas? Escondeu-as debaixo da cama, como costumava fazer quando era criança?
Palin procurou auxílio, mas o pai, já derrotado, batia em retirada. Esboçando um pálido sorriso, o tio aproximou-se e sentou-se em frente de Palin.
— Sobrinho, preciso te dar umas instruções — disse Raistlin. — Além disso, por vezes é bom que “façam alarido” por nossa causa.
Parando de cortar o pão, Caramon olhou, estupefato, para o irmão. Depois, com um sorriso algo triste, o grandalhão, abanando a cabeça, começou a guardar o pão nos alforjes.
Desembaraçando-se da manga da veste, Palin submeteu-se ao exame de Tika.
Tika apalpou, picou, espreitou, cheirou e disse, com um aceno de cabeça:
— Está cicatrizando bem, mas tem que ser lavada. Há pedacinhos de filamentos entranhados. Já volto.
Dirigiu-se para cozinha, a fim de ir buscar água quente e um pano.
— E agora, sobrinho — disse Raistlin — eis as tuas instruções. Eu e o teu pai partiremos para Wayreth. Quero que regresse a Palanthas...
Palin abriu a boca para protestar.
— Essa jovem a que se referiu — prosseguiu Raistlin .— A que afirma ser minha filha. Quero que a encontre.
Palin calou o protesto.
— Sim, tio — disse, de uma forma tão rápida e ansiosa que o pai, erguendo a cabeça, dardejou o filho com um olhar longo e incisivo. — Então, acredita na história dela?
— Não — respondeu Raistlin com frieza —, mas, a relação que tem com os Irdas me deixa intrigado.
— Tio, será um prazer localizá-la para você — observou Palin, ignorando o sorriso do pai e o seu assobio brejeiro —, mas, tem certeza de que ainda se encontra em Palanthas?
— De acordo com o Dalamar, sim. A feiticeira que é companheira dele mantém-se em contato com a jovem. Sabe onde pode ser encontrada.
— Então, você e o Dalamar discutiram o assunto. Por que não fui incluído?
— Estava descansando — replicou Raistlin. — Não quisemos incomodá-lo. Tome. — De um bolso das vestes negras, retirou um anel de aspecto comum e estendeu-o a Palin. — Fique com ele. O Dalamar preparou o teu transporte para Palanthas.
— Ele preparou — repetiu Palin, com um suspiro. Pegou no anel, mal olhou para ele e meteu-o numa bolsa. — Porque eu não conseguiria fazê-lo por meus próprios meios. Mas, você, tio. Você podia lançar o encantamento Alcance entre o Céu e a Terra. Gostaria de ouvi-lo, embora não possa lançá-lo ainda... Que é, pai? O que quer?
Aos poucos, fora tomando consciência da presença do pai, que lhe franzia o cenho e abanava a cabeça.
— Filho, o teu tio não se sente muito bem esta manhã — disse Caramon em tom soturno. — Faça o que ele diz e não o incomode.
Palin reparou que Raistlin parecia extremamente pálido.
— Não tinha intenção... Se não se sente bem, é claro que...
— Sinto-me bem — retorquiu Palin —, pelo menos tão bem como sempre estive. Merece saber a verdade. Sobrinho, deixei de possuir magia. Foi-me retirada. Para regressar a este plano de existência, me vi forçado a obedecer tal requisito
— E não queria voltar! Regressou por minha causa! Tio, eu...
— Deixe de compaixões por mim! — grunhiu Raistlin. Os olhos dourados reluziram com uma expressão feroz, mais quentes do que o Sol.
Sobressaltado, Palin guardou silêncio.
— Aceito isso como um cumprimento — prosseguiu Raistlin, dissipada a cólera. — É sinal de que ela ainda me receia. Mas basta de conversas. Eu e o Caramon já deveríamos estar a caminho. Vá se despedir da Tika e agradeça por mim a hospitalidade. Quero falar em particular com o Palin.
— Claro, Raist — disse Caramon, mas sem esboçar qualquer movimento. Olhou para o filho com ar hesitante.
— Vai lá, Caramon — repetiu Raistlin. Preparava-se para acrescentar algo, mas um acesso de tosse obrigou-o a se calar. — Vai! — arquejou. — Já viu como me irrita?
Hesitante, Caramon olhou para o filho e depois para o irmão gêmeo. Em seguida afastou-se, com ar relutante, em direção à cozinha.
Quando ficaram a sós, Raistlin indicou a Palin para que se aproximasse. Com a garganta inflamada devido à tosse, disse-lhe, num murmúrio:
— Quando localizar essa jovem, esqueci o nome...
— Usha — respondeu Palin com doçura.
— Não me interrompa! Mal consigo ter fôlego para falar! Repito, quando a encontrar, leve-a contigo até à Grande Biblioteca. Me encontrarei lá contigo depois de amanhã, à meia-noite do dia de S. João.
— Compreendo, tio — replicou Palin em tom submisso. — À meia-noite do dia de S. João. Estarei lá.
Raistlin descontraiu e a respiração tornou-se mais fácil.
— E agora, sobrinho, é melhor fazer as despedidas e se por a caminho. O anel não tem nada de complicado. Quando o enfiar no dedo, se formará na tua mente, uma imagem de Paladino, e o encantamento o transportará ao teu destino.
— Sim, tio — respondeu Palin, acrescentando com amargura: — Claro que não tem nada de complicado. Eu não saberia lidar com nada que fosse complicado.
Raistlin olhou-o por um momento em silêncio e, inclinando-se, pousou a mão envelhecida no ombro nu de Palin. O toque do arquimago era inusitadamente quente, quase ardia. Estremecendo, o jovem procurou manter-se quieto, enquanto sentia os dedos esguios morderem-lhe a carne.
Aproximando-se, sussurrou palavras que afloraram a face de Palin:
— Hão de dar-lhe escolhas, tal como a mim. Hão de dar-lhe escolhas.
— Quando? — respondeu Palin, segurando com força a mão do tio. — Em breve? Como saberei?
— Não posso adiantar nada. — Raistlin endireitou-se e recuou. — Já falei mais do que devia. Que a tua escolha seja sensata, sobrinho.
— Será — respondeu Palin, levantando-se. — Há muito que penso nisso. Sei qual será a minha escolha.
— Ainda bem, sobrinho — respondeu Raistlin com um sorriso, e o sorriso gelava.
Sentindo um calafrio, de novo o toque da lâmina maldita, Palin voltou a cobrir o ombro ferido com a veste.
— E agora, rapazinho, vá chamar o teu pai — ordenou Raistlin. — O tempo se move e nós aqui parados.
Há muitas, muitas eras, durante o reinado do Rei-sacerdote de Istar, o mundo era governado pelas forças do Bem — pelo menos era assim que se autodesignavam. Algumas pessoas punham em causa o fato do preconceito, a intolerância, o ódio e a perseguição constituírem, deveras, virtudes de Paladino, mas o Rei-sacerdote camuflara esses pecados cobrindo-os de finas e dispendiosas roupagens brancas, ao ponto de nem sequer se detectar a corrupção subjacente.
O Rei-sacerdote e os seus seguidores temiam tudo o que diferisse das suas pessoas. O rol era longo e todos os dias engrossava, mas os fazedores de magia figuravam no topo. As populaças atacavam os feiticeiros de todos os credos, investindo com virulência contra as suas torres, incendiando-lhes as escolas, matando-os à pedrada ou queimando-os vivos. Graças ao seu poder, os feiticeiros podiam rebater, mas sabiam que, ao fazê-lo, desencadeariam mais banhos de sangue e prejuízos. Optaram pela retirada e abandonaram o mundo para se esconderem no único local seguro: a Torre da Feitiçaria Suprema, em Wayreth.
E era para onde os feiticeiros agora se dirigiam, mas, ironicamente, não fugiam às forças do Bem. Fugiam às forças das Trevas.
Dizem que, se andarmos no rastro da Torre de Wayreth, nunca a encontraremos. A torre é que nos encontra e se isso é bom ou mau, tal dependerá do motivo que nos leva lá. Podemos, uma noite, adormecer num prado em flor, e na manhã seguinte descobrirmos que nos encontramos num ermo. O que esse lugar inóspito decide nos fazer, depende das intenções dos magos da torre.
Todas as criaturas receiam a torre. Até mesmo os dragões — de qualquer cor ou credo — não se atrevem a voar por perto. O dragão negro enviado por Dalamar para efetuar com Raistlin e Caramon o trajeto rápido e seguro sobre as montanhas de Kharolis até aos arredores da torre, restringiria o vôo à estrada.
O dragão negro pousou-os e permaneceu agitado e inquieto, batendo as asas, esticando o pescoço e cheirando o ar, obviamente desagradado com o que quer que fosse que lhe chegava às narinas. Escavou o solo com as garras e mirou Raistlin de soslaio, ansioso por partir, mas tendo o cuidado de não mostrar desrespeito para com o mago. Caramon ajudou o irmão a desmontar e retirou os dois alforjes. O dragão levantou a cabeça, olhando, ansioso, para o céu.
— Pode partir — disse Raistlin à criatura —, mas não se afaste. Mantenha-se de vigia na estrada. Se não encontrarmos o que procuramos, vamos precisar outra vez dos teus serviços.
O dragão inclinou a cabeça e os seus olhos vermelhos emitiram chispas. Abriu as asas negras e, dando impulso com as patas traseiras, descolou do solo e elevou-se no ar, rumo ao norte.
— Argh — queixou-se Caramon, fazendo uma careta e, repugnado, arremessando os alforjes ao chão. — Que cheiro! Parece que a morte passou por aqui. Faz-me recuar àquela época, em Xak Tsaroth, quando o dragão negro te capturou e teria acabado com todos nós, não fosse a Lua Dourada aparecer com o bastão de cristal azul.
— Capturou? Não me lembro — observou Raistlin com desenvoltura. Inclinando-se, esquadrinhou o alforje pessoal e dele retirou duas bolsas que guardara antes de partirem e pendurou-as ao cinto.
Caramon fitava-o com ar atônito.
— Não se lembra? O Bupu, o Highbulp e o Vento do Rio, que morreram e ressuscitaram e...
Raistlin permanecia na estrada poeirenta, a olhar para um campo de aveia seca e mirrada. Examinou-o longa e detidamente, procurando algo e, ao que parece, não o encontrando. Franziu o cenho, comprimiu os lábios e abanou a cabeça.
— O tempo — murmurou. — O tempo está se escoando. Que aqueles doidos estarão fazendo?
— Não se lembra de Xak Tsaroth? De nada? — insistiu Caramon. Raistlin virou a cabeça para o irmão.
— Que disse? Oh, a guerra — disse, encolhendo os ombros. — Já que fala nisso, lembro-me de qualquer coisa. Mas, parece que tudo aconteceu com outra pessoa e não comigo.
Caramon olhou com tristeza e angústia para o irmão. Raistlin voltou a encolher os ombros e virou-se.
— Meu querido irmão, temos problemas mais urgentes. A floresta não fica aqui.
— Parece-me que nunca está quando desejamos — resmungou Caramon. — Age como se não a quiséssemos. Escreva o que eu digo, vamos descobri-la bem por cima de nós. Gostaria de saber se por estas bandas ainda há algum ancoradouro que não tenha secado ainda. Tenho que retirar das mãos o muco viscoso do dragão antes que vomite!
Olhou em redor e prosseguiu:
— Talvez naquele maciço de árvores, ali. Raistlin, está vendo? Perto do salgueiro gigantesco? Os salgueiros crescem em zonas úmidas. Vamos por ali?
— Parece que qualquer lugar é bom — murmurou Raistlin, mal humorado. Os dois saíram da estrada e atravessaram o campo. O caminho era penoso. Hastes de aveia morta e ressequida irrompiam do solo causticado, perfurando as solas de couro das botas de Caramon e rasgando a fímbria das vestes de Raistlin. O calor do entardecer asfixiava e o Sol continuava a dardejá-los com os seus raios inclementes. A poeira que levantavam à passagem, cobria-lhes o rosto, provocando espirros em Caramon e provocando tosse em Raistlin, ao ponto deste se ver forçado a apoiar no braço do irmão para continuar firme.
— Espere aqui, Raist — disse Caramon por fim, depois de percorrerem mais de metade do percurso até o bosque. — Eu vou lá.
Tossindo, Raistlin abanou a cabeça e apertou com força o braço do irmão.
— Que foi? — perguntou Caramon, ansioso. Arquejante, Raistlin conseguiu murmurar:
— Schiu! Ouvi... qualquer coisa.
Caramon olhou rapidamente ao redor.
— O quê? Onde?
— Vozes. No bosque. — Sufocado, Raistlin tentou inspirar.
— Engoliste muita poeira — disse Caramon, preocupado. — Que faremos? Voltamos para trás?
— Não, meu irmão. Levantaria suspeitas. Fizemos mais barulho do que um exército de duendes. Fomos vistos e ouvidos. Agora é a nossa vez. Quero dar uma olhada em quem está nos observando.
— Provavelmente é o lavrador proprietário deste campo — disse Caramon, fazendo deslizar a mão para o lado e desembainhando sub-repticiamente a espada.
— Vem fazer o quê aqui? Ceifar plantas mortas? — perguntou Raistlin, em tom cáustico. — Não. Por algum motivo a Floresta de Wayreth se mantém afastada de nós, quando sabe que preciso de atravessá-la com urgência. Desconfio que é por causa daquilo.
— Quem me dera que tivesse a tua magia — resmungou Caramon, caminhando pesadamente pelo campo ressequido. — Não sou o espadachim que costumava ser.
— Não interessa. Contra aqueles, a tua espada de pouco valerá. Além disso, não estou indefeso. Acautelei-me para a eventualidade de termos confusão. — Enquanto falava, Raistlin remexeu uma das bolsas. — Ah, eu tinha razão! Olha, nas sombras daquelas árvores!
Caramon virou-se e lançou um olhar de esguelha.
— Os meus olhos também já não são o que eram. Que foi?
— Cavaleiros do Abrolho, os feiticeiros de vestes cinzentas de Takhisis, são seis.
— Raios! — praguejou Caramon baixinho. — Que faremos? — disse, olhando para o irmão.
Raistlin puxara o capuz negro bem para frente, ocultando o rosto.
— Em vez dos músculos, usaremos os miolos, e quero dizer com isto que vai manter a boca fechada. Deixe que eu fale.
— Claro, Raist — respondeu Caramon, com um sorriso. — Como nos velhos tempos.
— Nem calcula, meu irmão — disse Raistlin com brandura. — Nem calcula.
Os dois caminharam juntos, Raistlin apoiando-se no braço de Caramon — mas não no que empunhava a espada e penetraram no bosque.
Os Cavaleiros Cinzentos aguardavam-nos. Levantando-se da erva onde tinham se sentado, formaram um semicírculo que, quase de imediato, se fechou em torno dos irmãos.
Raistlin ergueu a cabeça, fingindo estupefação.
— Ora, ora, saudações, Irmãos. De onde vocês apareceram?
Largando o braço de Caramon, Raistlin enfiou as mãos nas mangas das vestes negras. Os magos ficaram tensos. Mas, dado Raistlin mantê-las ali e dirigir-se aos cavaleiros chamando-lhes “irmãos”, desanuviaram um pouco.
— Saudações, Veste negra — respondeu um dos cavaleiros, uma mulher.
— Sou a Dama da Noite Lillith. O que o traz por estas bandas?
— O mesmo que você, suponho — replicou Raistlin em tom prazenteiro. — Procuro entrar na Floresta de Wayreth.
Os Cavaleiros Cinzentos trocaram olhares carregados. A Dama da Noite, obviamente a chefe deles, observou:
— Ouvimos dizer que Dalamar o Sinistro convocou um Conclave de Feiticeiros. Esperávamos assistir.
— E assistirão — replicou Raistlin. — Ouvirão coisas que os deixarão atônitos, receberão advertências quanto ao tempo... se prestarem atenção. Contudo, desconfio não ser este o verdadeiro motivo que os leva a pretender assistir ao Conclave. Quantos dos seus irmãos se encontram escondidos por estas bandas? — Olhou em redor, aparentando interesse.
— Vinte? Uma centena? Acham que são suficientes para conquistar a torre?
— Interpreta-nos mal — respondeu, imperturbável, a Dama da Noite.
— Irmão, não constituímos ameaça para ti... para os nossos irmãos.
Lillith fez uma vênia e Raistlin retribuiu-a. Endireitando-se, a Dama da Noite prosseguiu, enquanto olhava intensamente para Raistlin, tentando perscrutar o rosto que se escondia sob o capuz.
— Que quer dizer com advertências quanto ao tempo? Advertências contra o quê?
— Um perigo iminente. A destruição final. A morte certa — disse Raistlin com frieza.
A Dama da Noite olhou-o sobressaltada, e depois riu.
— Atreve-se a nos ameaçar? Os governantes de toda a Ansalon? Que engraçado! Conte isso a Dalamar, quando encontrá-lo.
— Não se trata de ameaça — respondeu Raistlin. — É uma certeza. E não foi Dalamar quem me enviou. Caramon, para que está aí feito bobo? Veio aqui por causa da água. Vá buscá-la.
— Caramon! — repetiu a Dama da Noite, virando-se para olhá-lo. — Caramon Majere?
— Sou eu — confirmou Caramon com ar sombrio, depois de olhar, hesitante, para o irmão.
Via-se que sentia relutância em se afastar, mas obedeceu, embora tomando a precaução de não virar as costas aos Cavaleiros Cinzentos. Caminhando de lado, desceu a colina e dirigiu-se para o ancoradouro, que pouco mais era do que um fio de água salobra. Tirando o odre, inclinou-se para enchê-lo.
Sem o arrimo do irmão, Raistlin aproximou-se do salgueiro gigante e encostou as costas na árvore.
— Caramon Majere, conhecido como o Herói da Lança — disse a Dama da Noite, voltando a fixar Raistlin. — Viajando na companhia de um feiticeiro de veste negra. Que estranho.
Retirando as mãos das mangas, Raistlin puxou o capuz para trás.
— Não é assim tão estranho... atendendo que são irmãos que viajam juntos.
Olhando para o irmão gêmeo, Caramon deixou tombar o odre.
O rosto de Raistlin já não exibia a compleição dourada. Era branco-marfim, como a pele das mãos. Os lábios estavam violáceos. Os olhos em forma de ampulheta lembravam dois poços fundos, escuros, esverdeados.
Arquejante, a Dama da Noite recuou um passo.
— Por Chemosh! Raistlin Majere! — gritou. — Você morreu!
— Assim foi — respondeu Raistlin com brandura. — E contudo, eis-me perante ti. Vamos, toque-me! — acrescentou, estendendo a mão esguia e pálida para a Veste Cinzenta.
— Afaste-se! — ordenou ela, brandindo um pingente de prata em forma de caveira, preso à corrente de prata que usava ao pescoço. Os outros Cavaleiros Cinzentos atarantavam-se às voltas de ingredientes e pergaminhos de encantamento.
— Deixe sua magia prá lá! — ordenou Raistlin em tom sinistro. — Não quero lhe fazer mal. Já te disse que vim comunicar uma advertência. A nossa Rainha em pessoa enviou-me.
— Takhisis enviou-o? — perguntou a Dama da Noite, com ar de dúvida.
— Quem mais haveria de ser? — retrucou Raistlin. — Quem mais tem o poder de revestir o meu espírito inquieto de carne e osso? Se for sensata, abandonará este lugar imediatamente e comunicará o meu aviso ao teu amo... a Ariakan.
— E o que vamos dizer a Lorde Ariakan? — Depois do choque inicial, a Dama da Noite, que recuperava a compostura, olhou intensamente para Raistlin.
Caramon pegara o odre e, com uma mão o enchia, mantendo a outra junto ao punho da espada.
— Diga a Ariakan o seguinte — respondeu Raistlin. — A vitória dele é em vão. Agora, que vive o seu momento de triunfo, corre mais perigo do que nunca. Avise-o para não afrouxar a vigilância, para redobrá-la dez vezes. Para manter os olhos na direção norte, que dali virá a catástrofe.
— De onde? Dos Cavaleiros da Solamnia? — escarneceu Lillith. — Os que sobreviveram, renderam-se a nós e encontram-se agora encerrados nos seus próprios calabouços! Acho que não...
— Atreve-se a zombar das palavras da tua Rainha? — ciciou Raistlin. Estendeu ambas as mãos, que mantinha fechadas e que de repente abriu. — Cuidado com o seu poder!
Um clarão ofuscante de luz, acompanhado por uma explosão, foi desabar no meio dos Cavaleiros Cinzentos, que levantaram os braços para proteger os olhos. O seu chefe, a Dama da Noite, perdeu o equilíbrio e foi rolando até o meio da colina. Uma nuvem de fumaça negra esverdeada e com um cheiro horrível, elevou-se no ar quente e parado. Quando se dissipou, Raistlin desaparecera. Tudo o que restava era uma mancha calcinada na erva.
Caramon voltou a largar o odre.
Lillith levantou-se. Parecia abalada, embora tentasse ocultar o nervosismo. Os outros reuniram-se à sua volta, evitando aproximar-se da área calcinada.
— Dama da Noite, o que faremos? — perguntou um dos feiticeiros.
— Era uma mensagem da nossa Rainha! Devemos comunicá-la imediatamente a Lorde Ariakan! — disse outro.
— Estou ciente disso — retorquiu a Dama da Noite. — Deixem-me pensar. — Olhou, desconfiada, para a mancha chamuscada e depois para Caramon, que se mantinha no ancoradouro, andando de um lado para o outro e olhando ao redor, com ar perplexo. Pairava no ar o cheiro de enxofre.
A Dama da Noite franziu o cenho.
— Onde está o seu irmão? — inquiriu. Caramon coçou a barba.
— Senhora, diabos me levem se eu souber — respondeu.
Lillith perscrutou-o demoradamente e semicerrou os olhos.
— Tenho a sensação de que se trata de algum truque. Mas... — levantou a mão, para calar o clamor indignado dos subordinados — truque ou não, Lorde Ariakan precisa ser avisado de que Raistlin Majere caminha agora neste plano mortal. Talvez a nossa Rainha o enviasse. Talvez se encontre aqui por motivos pessoais, como aconteceu antes. Seja como for, pode tornar-se um incômodo.
A Dama da Noite relanceou o olhar pelo campo estéril, na direção do que pressupostamente seria a Torre de Wayreth.
— E se Raistlin Majere se libertou do Abismo, podem estar certos de que Palin Majere, o sobrinho, regressou com ele. Já perdemos tempo demais aqui. Vamos embora! — disse. Com gestos graciosos, brandiu três vezes o braço em volta da cabeça e desapareceu.
Os outros Cavaleiros do Abrolho apressaram-se a segui-la. Lançando um derradeiro e sinistro olhar à mancha calcinada, murmuraram os seus encantamentos e, um a um, evolaram-se no ar.
Caramon chapinhou para fora do ancoradouro. Estendendo as mãos, pôs-se a tatear o ar.
— Raist? — sussurrou, confundido e apavorado. — Raist? Onde está? Você... você não ia me deixar aqui... não é? Raist?
— Meu irmão, estou aqui — ouviu-se uma voz, que procurava disfarçar uma gargalhada. — Mas tem que me ajudar.
Caramon levantou a cabeça, abalado até o âmago. Quem falara fora o salgueiro.
— Hum, Raist... — disse, engasgando-se e engolindo em seco
— Dentro da árvore, seu palerma! Dê a volta nesta direção!
— Dentro... — Caramon contornou apressadamente o lado da árvore que ficava próximo da mancha calcinada no chão. Hesitante, receoso, separou os ramos compridos e ondulantes do salgueiro.
Do tronco maciço do salgueiro, emergiu uma mão — branca e engelhada — que lhe dirigia sinais imperiosos. Caramon deu um suspiro de alívio.
— Raist! Está vivo! Mas... — parecia desorientado — ...como conseguiu se meter dentro da árvore?
Raistlin resfolegou, mas quando falou parecia bem contente com a sua pessoa.
— Em nome de Hiddukel, o Embusteiro, não me diga que se deixou enganar por essa velha artimanha! Anda, me ajude. Não posso me mexer. Fiquei preso em alguma coisa.
Pegando na mão de Raistlin, Caramon sentiu um alívio imenso por descobrir que a carne se encontrava quente. Seguindo o braço, deparou com o irmão dentro do tronco do salgueiro, a olhar para ele.
Compreendendo por fim, Caramon soltou um riso abafado, que deixava transparecer o abalo que sofrera.
— Raist, me pregou um susto! E tinha que ver aqueles Cavaleiros Cinzentos! As vestes deles deixaram de ser cinzentas! Vamos, não se mexa. Estou vendo o problema. O capuz se prendeu. Incline-se só um pouquinho para frente. Não consigo chegar com a mão ao... Só mais um pouco... Pronto. Pronto!
Raistlin emergiu do interior da árvore e começou a sacudir os detritos e os seixos, retirando do cabelo branco pedaços de cortiça.
Caramon olhou orgulhoso para o irmão.
— Foi um espetáculo! A tinta branca e tudo isso! Quando foi que se preparou?
— Quando seguíamos montados no dragão — respondeu Raistlin em tom complacente. — Anda, ajude-me a descer até à enseada. Preciso retirar esta porcaria. Começa a dar coceira.
Os dois desceram até o leito da enseada. Caramon voltou a pegar no odre. Raistlin lavou a cara e as mãos. O branco gelado da carne morta borbulhou e desapareceu, arrastado pela correnteza.
— Foi de um realismo absoluto. Pensei que tinha recuperado seus poderes — disse Caramon.
— Diga antes que pensou que eu menti a respeito de ter perdido os meus poderes — replicou Raistlin em tom conciso.
— Não, Raist! — protestou Caramon, com demasiada veemência. — Não pensei. Verdade. Só que... bom... podia ter-me dado alguma pista...
Sorrindo, Raistlin abanou a cabeça.
— Não tem jeito para a hipocrisia, meu querido irmão. Bastava olhar para a tua cara honesta para a Dama da Noite ficar sabendo de tudo. Mesmo assim, acho que ficou desconfiada.
— Então, por que ela não anda por aqui investigando?
— Porque lhe dei uma desculpa perfeita para partir com a dignidade ainda intacta. Meu irmão, veja se entende, aqueles Vestes Cinzentas encontravam-se aqui com o objetivo de atacar a Torre de Wayreth. Pensaram que podiam penetrar na floresta sem serem descobertos.
Raistlin levantou a cabeça e olhou intensamente em redor.
— Sim, consigo sentir a magia. Utilizaram vários encantamentos, na tentativa de descobrir a entrada. Não tiveram sorte. Duvido que a Dama da Noite pretendesse voltar à presença de Ariakan e comunicar-lhe o seu fracasso. Agora, são portadores de notícias de índole diferente.
— Sabia disso tudo! — exclamou Caramon, cheio de admiração. — Antes mesmo de virmos?
— É claro que não — replicou Raistlin, tossicando. — Vamos, não fique aí plantado. Ajude-me a subir a colina. Sabia que podíamos enfrentar confusão na estrada, de modo que me preparei para a eventualidade, nada mais. Depois de ouvir de Palin algumas das lendas mais interessantes que correm a meu respeito, achei que seria fácil tirar partido da situação. Um pouco de tinta branca na cara, uns pós de carvão e um pedaço de pasta de pistácio da Tika sob os olhos, mais um punhado de pólvora e... catrapum! O Feiticeiro Morto regressa do Abismo.
— Era capaz de ter adivinhado o resto, mas a cena do desaparecimento é que me confundiu — disse Caramon, ajudando o irmão a subir o pequeno outeiro.
— Ah, tratou-se de um toque inesperado. — Raistlin retrocedeu até o salgueiro e apontou para o interior da árvore. — Não tencionava fazer aquilo. Mas, quando me encostei ao tronco, senti uma grande fenda. Olhando de relance lá para dentro, descobri que uma porção da árvore era oca. Lá dentro há provas indicando que as crianças locais a utilizaram para brincar de casinha. Para mim foi simples enfiar-me ali, coberto pela explosão e fumaça. Infelizmente, sair foi mais difícil.
— Bom, tudo o que posso dizer é que você... Em nome do... Em nome do Abismo! De onde veio aquele?
Caramon inclinara-se para examinar o interior do salgueiro. Ao virar-se, quase chocara com um gigantesco carvalho que, momentos antes, não se encontrava lá. Olhou para a esquerda e avistou outro carvalho. À direita, encontrava-se mais um. O campo estéril, a aveia ressequida e até a enseada, tinham desaparecido. Encontrava-se numa floresta imensa e escura.
— Meu irmão, acalme-se. Foi há tantos anos assim que já se esqueceu? — Raistlin voltou a enfiar as mãos nas mangas da veste. — A Floresta de Wayreth nos encontrou.
As árvores afastaram-se e surgiu uma trilha, que os conduziria aos recessos.
Caramon olhou para a floresta com ar soturno. Outrora, percorrera em diversas ocasiões aquele caminho, e as reminiscências que o mesmo evocava não eram felizes.
— Raist, não compreendo uma coisa. Os Cavaleiros Cinzentos escarneceram da tua advertência e Lorde Ariakan também o fará. Não lutarão ao nosso lado...
— Hão de lutar, meu irmão — respondeu Raistlin, com um suspiro. — Deixaram de haver “lados”, entende? Ou lutamos juntos ou morreremos.
Ambos permaneceram um instante em silêncio. O roçar das folhas das árvores tinha ecos de perturbação e inquietação e os pássaros chilreavam baixinho.
— Bom — disse Caramon, segurando com força na espada e olhando para o bosque encantado com ar sinistro. — Acho que é melhor despacharmos este assunto.
Raistlin pousou a mão no braço do irmão.
— Caramon, vou entrar sozinho. Você volta para casa.
— E te deixo? — Caramon mostrava-se inflexível. — Não, não permitirei...
— Meu irmão — disse Raistlin em tom gentil —, está caindo de novo em velhos hábitos. Agradeço por me acompanhar até aqui. Já não preciso de você. O seu lugar... — acrescentou, apertando mais o braço do irmão — é junto da família e do povo de Consolação. Tem que voltar, prepará-los para o que está para acontecer.
— Não vão acreditar em mim — respondeu Caramon com rudeza. — Nem eu mesmo tenho certeza se acredito.
— Meu irmão, há de ocorrer-te alguma coisa — respondeu Raistlin. Tossicando, levou um pano branco aos lábios. — Tenho fé em ti.
— Ah tem? — retrucou Caramon, corando de prazer. — Sabe, talvez eu invente que andava formando um movimento secreto de resistência. Depois eu...
— Sim, sim — interrompeu-o Raistlin. — Vê é se não se atrapalha. Agora, tenho que ir. Já perdi tempo demais. Volte para a estrada. O dragão está de vigia à sua espera e o transportará de volta em segurança.
Caramon pareceu extremamente duvidoso, mas sabia que era melhor não argumentar.
— Você também vem, Raistlin? — perguntou, ansioso. Raistlin fez uma pausa e reconsiderou.
— Não posso prometer — respondeu, abanando a cabeça.
Caramon abriu a boca para insistir, mas vendo o olhar faiscante do irmão calou-se. Aquiesceu com a cabeça, pigarreou, colocou o alforje no ombro e perguntou:
— Vai cuidar do Palin, não vai? — perguntou bruscamente. Raistlin esboçou um sorriso soturno e retesou os lábios.
— Sim, meu irmão. Isso eu prometo!
Em Palanthas, o Grêmio dos Ladrões atravessava épocas difíceis.
No início, alguns dos seus membros regozijaram-se com a vitória da Rainha das Trevas. Tinham trabalhado com afinco para ver chegado o dia em que a noite finalmente governaria a Terra. Os ladrões prepararam-se para receber uma gorda recompensa.
Um rude golpe os esperava.
Foi em marcha triunfante que os Cavaleiros de Takhisis entraram em Palanthas. Pelas ruas da cidade, ecoaram os cascos dos seus corcéis, entrecortados pelo tinir do ferro. Acompanhavam-nos as flâmulas da caveira e do lírio, cujas bandeiras, no ar quente e parado, pendiam flácidas. Ordenaram aos cidadãos que prestassem vassalagem ao Senhor de Ariakan. Encheram as mãos das criancinhas de flores e mandaram-nas arremessá-las aos pés de Sua Senhoria. As crianças sentiram-se aterrorizadas com as carrancas dos elmos em forma de caveira dos cavaleiros e com os brutos de pele azulada, que faziam caretas ferozes e entoavam cânticos de guerra numa voz estridente que gelava o sangue. Largando as flores, as crianças precipitaram-se para o refúgio das saias das mães aos gritos. Os pais agarraram-nas e levaram-nas para longe dali, incorrendo na ira da cavalaria das trevas.
De modo que a chegada do Senhor de Ariakan foi acolhida com lágrimas, flores murchas e medo. Não que se importasse. Já esperava isso. Quando, do meio da populaça, lhe chegava aqui e ali algum grito de júbilo, virava-se para fitar essa pessoa e indicava-a ao ajudante. Uma delas foi Geoffrey Linchado, que, para festejar o dia, se embebedara que nem um gambá e berrava agora a plenos pulmões.
Depois de ficar sóbrio, Geoffrey Linchado fora, no dia seguinte, prestar homenagem a Sua Senhoria. Não lhe concederam passagem. Destemido, Geoffrey voltara todos os dias até, semanas mais tarde, conseguir finalmente entrar.
Ariakan requisitara uma casa no centro da cidade, próxima da do Senhor de Palanthas, que se encontrava sob prisão domiciliar. Ariakan poderia ter ocupado o palácio do suserano, mas o comandante dos Cavaleiros de Takhisis não tencionava permanecer por muito tempo em Palanthas. O seu lugar era na Torre do Sumo Sacerdócio, a partir da qual conduziria os seus exércitos à conquista de todo o território de Ansalon. Ficaria em Palanthas o tempo suficiente para formar um Governo provisório e sujeitar a cidade a um firme jugo.
Passava o dia sentado à sua mesa preferida, que fora colocada no meio do salão de jantar, no meio de papéis, a elaborar éditos e a redigir leis. Próximo dele, viam-se ajudantes e servos, prontos para realizarem de imediato as incumbências que ele lhes designasse. Numa pequena antecâmara, ladeada por um cordão de cavaleiros, simpatizantes e pretendentes aguardavam as graças de Sua Senhoria.
Antes de se avistar com Sua Senhoria, Geoffrey Linchado foi obrigado a aguardar naquela sala inúmeras horas. Não se melindrou e aproveitou o tempo para aliviar o Sumo Sacerdote da Ordem de Chemosh do peso da sua bolsa.
Por fim, Linch foi admitido à presença de Ariakan.
— Ora, já não era sem tempo! — foi a saudação emproada, lúbrica e impudente que o ladrão dirigiu a Ariakan.
Não lhe tendo sido disponibilizada uma cadeira para se sentar diante de Sua Senhoria, Geoffrey remediou o contratempo indo buscar uma. Pousou-a junto de um dos extremos da mesa de Ariakan, afundou-se nela, recostou-se e, erguendo as pernas magricelas, pousou confortavelmente as botas em cima da mesa.
Ariakan nada disse. Nem sequer olhou para o ladrão. Sua Senhoria estava ocupada no discurso adequado a atribuir a uma das suas leis. Nem sequer ergueu o cenho.
Ouviu-se o estrépito da lâmina de uma albarda a abater-se sobre a mesa, fendendo-a e transformando os saltos das botas de Linch em rodelas. Felizmente, a lâmina não “fatiou” as botas e os pés que se encontravam lá dentro. Geoffrey foi rápido a retirá-los da mesa. Olhando para as botas arruinadas, pôs-se a praguejar em voz alta.
Com a ponta do indicador, Ariakan esboçou um leve gesto.
O ajudante de Sua Senhoria agarrou Linch pelo pescoço atarracado, obrigou-o a levantar-se, retirou a cadeira e, em voz fria, ordenou-lhe que se dirigisse a Sua Senhoria em termos adequados à posição e categoria desta e que, em seguida, fosse cuidar de sua vida.
Geoffrey Linchado juntou as tiras e os cacos da sua dignidade e, retorcendo os dedos, lembrou, soturno, ao Senhor de Ariakan que ambos estavam do mesmo lado, que ele — Geoffrey — era, para a sua gente, tão chefe como Ariakan em relação aos cavaleiros deste, que o Grêmio dos Ladrões esperava a colaboração dos cavaleiros em determinados projetos que tinham em mente e que estes, pelo incômodo, receberiam algo em troca.
Chegado aqui, Linch estendeu ao Senhor de Ariakan uma bolsa com dinheiro, e constatou, para grande confusão sua, que aquele nem parara de escrever nem, ao longo do discurso do ladrão, se dignara a levantar uma vez sequer a cabeça.
Linch possivelmente teria escapado com uma mera palmada na cabeça, não fosse o fato do sacerdote de Chemosh irromper pela sala, arquejando e todo suado, gritando que lhe haviam roubado a bolsa de dinheiro.
Ariakan levantou a cabeça, olhou para a bolsa e reparou na caveira com chifres, que constituía o símbolo de Chemosh.
Com um sorriso afetado e sarcástico, Linch encolheu os ombros ossudos.
— Vai tudo parar na mesma causa, não é verdade, Excelência? — salientou, com uma gargalhada manhosa e um piscar de olho. — É a minha maneira de servir Sua Majestade das Trevas.
Ariakan ergueu a cabeça e, pela primeira — e última vez — olhou para Geoffrey Linchado.
— E a minha é esta — respondeu Sua Senhoria. — Enforquem-no.
A sentença foi imediatamente levada a cabo no alto da muralha da cidade. O enforcamento correu bastante bem, e alguns atribuíram-no ao fato de Linch já possuir alguma experiência.
As notícias da inesperada morte do seu chefe atingiram o Grêmio dos Ladrões com a virulência de um raio. Pelo átrio do grêmio ecoaram os gritos de ultraje e de vingança contra o ato dos cavaleiros, que os ladrões encararam como uma traição contra os da sua laia. Muitos trocaram, ali mesmo, de aliança. No espaço de dez minutos, Paladino ganhou mais adeptos do que os que uma carroça lotada de sacerdotes converteria com as orações de uma vida inteira. Esperando a todo o instante um ataque dos cavaleiros, os ladrões aprontaram-se. Enviaram mensageiros para alertar e reunir todos os membros, ordenaram que todo mundo se reunisse no átrio do grêmio. Feito isto, os respectivos chefes distribuíram armas, retiraram os cobertores das janelas, mandaram os arqueiros e os espiões posicionarem-se e ficaram aguardando a investida.
Poucos foram os que derramaram lágrimas por Geoffrey Linchado, e Usha decerto não era um deles. O ladrão arranjara-lhe alojamento por cima da taberna, conseguira-lhe trabalho de servir às mesas da taberna e depois, espojara-se na cama da jovem, dizendo-lhe exatamente o que esperava em troca da sua generosidade. Furiosa e indignada, ela lhe travara os avanços.
Linch, que não era sujeito para aceitar um “não” como resposta, possivelmente a teria forçado a ceder aos seus desejos, mas como planejara para essa tardinha uns pequenos roubos, decidira não desperdiçar o tempo na tentativa de persuadir a garota a apreciá-lo. Deixara-a, mas a partir desse dia, teimara em cumulá-la com a sua odiosa atenção.
Para seu horror, Usha não tardou em descobrir que aquelas pessoas não pescavam peixe, mas sim a propriedade alheia. Também constatou — na ponta de uma faca — que uma vez ao par dos segredos do Grêmio, ninguém sairia dali — vivo — para divulgá-los.
— A menos que use a magia para saír daqui, Filha de Raistlin!
A frase fora proferida em tom de escárnio por Geoffrey Linchado, que troçava das recusas constantes por parte de Usha. O nome provocara um coro de gargalhadas, e ela fora batizada de “Filha de Raistlin” por um sacerdote de Hiddukel, que consagrara a cerimônia metendo-lhe uma caneca de cerveja na mão. A partir de então, Usha passara a ser denominada Filha de Raistlin, e a alcunha provocava sempre uma gargalhada ou um sorriso escarninho.
Usha não possuía recursos nem ninguém para ajudá-la. Dougan Martelo Vermelho desaparecera. Alimentara a esperança dele regressar para vê-la. Queria perguntar-lhe por que motivo a entregara àquelas pessoas horrorosas. Mas nunca mais apareceu, nunca mais voltou. Tampouco estaria em suas mãos fazer o que quer que fosse pela jovem. Os ladrões nunca a perdiam de vista, por todo o lado havia sempre alguém a observá-la.
Até no quarto existiam olhos a vigiá-la. Recebia a visita freqüente de um corvo. A ave aparecia sem ser convidada, voando pela janela aberta dos seus miseráveis aposentos. Houve uma vez em que Usha deixou a janela fechada, preferindo o calor do quarto à presença do negro visitante alado. Sem se deixar intimidar, o corvo pusera-se a bicar o vidro, até Usha se ver forçada a deixá-lo entrar, caso contrário, incorreria na fúria do senhorio. Depois de entrar, o corvo saltitava pelo quarto, dando bicadas e apanhando todos os objetos que por acaso encontrasse. Felizmente, a jovem escondera os objetos mágicos oferecidos pelos Irdas no interior do colchão de palha. A ave nunca os descobrira, nem tampouco Usha se atrevera a pôr tais artefatos à vista, temendo aqueles olhos amarelos que lembravam contas.
Receosa das conseqüências se não aceitasse, a jovem assimilara o “treino” dos ladrões. A primeira habilidade que aprendeu foi a bela arte de roubar algibeiras. Quem a ensinou foi uma velha horrorosa que pendurava pequenos sinos nas roupas e depois ordenava a Usha que tentasse retirar algum objeto — uma bolsa, um lenço de seda, um colar, um broche — sem que nenhum dos sinos tilintasse. Quando Usha falhava e um dos sinos retinia, a velha, com uma bengala, zurzia a parte do corpo da jovem, qualquer que fosse, que se encontrasse à mão.
Em seguida, ensinaram Usha a se movimentar num quarto às escuras, atulhado de objetos, sem esbarrar em nada nem fazer o mais leve ruído. Ensinaram-na a concentrar-se no seu objetivo e alcançá-lo, sem se deixar distrair pelo que se passava em volta. Aprendera a escalar muros, a trepar por cordas, a esgueirar-se por janelas. Não fora uma aluna lá muito aplicada, até à noite em que tomara consciência de que poderia utilizar todas essas habilidades para escapar, precisamente, das pessoas que a ensinavam.
Desde então, os ladrões mostraram-se agradados com os seus progressos.
Isto fora há quase um mês. Aquele dia, o dia em que Geoffrey Linchado foi enforcado, assinalou a sua decisão de tentar a fuga.
O átrio do Grêmio transbordava de provocações, fanfarronices e álcool. Os ladrões preparavam-se para lutar, seja até à última gota de sangue, seja até à última gota das bebidas alcoólicas dos duendes.
O tempo escoava-se devagarinho. O dia fora longo, quente, sufocante e enfadonho. As cabeças começavam a ressentir-se do consumo excessivo de coragem.
As trevas da noite tombaram, renovando o espírito e a energia. Na escuridão, os ladrões recuperavam sempre o alento. Os espiões nada tinham a comunicar. As ruas em volta do átrio do Grêmio estavam calmas. Dizia-se que os cavaleiros prosseguiam os seus afazeres. Não estavam se reunindo nem se preparando. Muitos consideraram-no uma mera tentativa de iludir os ladrões e levá-los a baixar as defesas. Voltaram a acocorar-se e aguardaram.
Usha encontrava-se entre eles, no átrio do Grêmio. Atribuíram-lhe uma arma, uma pequena adaga, que não tencionava utilizar. Durante uma das incursões de bêbedo de Geoffrey Linchado, a jovem descobrira a existência de uma passagem secreta, que se estendia sob a muralha e ia do Grêmio até o porto. Limpara o quarto e levara consigo os poucos pertences, algumas roupas e os artefatos mágicos dos Irdas. Estes últimos, embrulhara-os num molho, que conservava debaixo da mesa, junto dos pés. Quando os cavaleiros atacassem, planejava escapar durante a confusão.
Uma vez livre daquele lugar hediondo, iria à procura do barco e fugiria da cidade condenada. Só a penalizava abandonar Palin, mas a semanas que nada sabia a respeito dele e era com o coração apertado que chegava à conclusão de que a sua fé nos deuses esmorecera. Nunca mais o veria.
Era quase meia-noite em Palanthas e nenhum exército apinhava as ruas. Os ladrões começaram a pensar que, afinal, os cavaleiros não iriam atacar.
— Têm medo de nós! — gritou alguém.
E assim, a cerveja e as bebidas alcoólicas dos duendes, correram aos jorros.
Com efeito, os ladrões nada tinham a temer, pelo menos por ora. O Senhor de Ariakan não receava o Grêmio dos Ladrões. Tinha sólidas intenções de limpar o “ninho das varejeiras”, conforme afirmara a um dos ajudantes. A intenção figurava na sua lista — bem no fim. Os ladrões constituíam um aborrecimento, um incômodo, nada mais. Naquela altura crítica, em que se empenhava na batalha pelo controle de todo o território de Ansalon, não iria, conforme disse, “desperdiçar os efetivos militares, tão necessários, na limpeza de um monte de excrementos”.
Porém, os ladrões não sabiam disso. Estavam convencidos de haverem aterrorizado os valentões dos Cavaleiros de Takhisis. Passaram a noite dando palmadas nas costas uns dos outros e congratulando-se. A celebração foi tão estridente e buliçosa que, de início, não ouviram bater à porta.
Murf, o duende dos esgotos que, por um motivo qualquer só do conhecimento dos deuses, era capaz de beber grandes quantidades e nunca ficar bêbedo, foi o único a ouvir o leve roçar na porta. Julgou se tratarem de ratazanas que corriam atabalhoadamente pela viela. Sentindo-se um pouco esfomeado, depois de toda a cerveja derramada no chão que lambera, o duende dos esgotos precipitou-se para garantir o seu jantar. Abrindo o postigo, espreitou lá para fora. Apenas vislumbrou a escuridão, espessa e aveludada.
Julgando tratar-se da noite, o duende escancarou a porta.
Na soleira encontrava-se uma figura encapuzada, vestida de veludo negro. Mantinha-se tão quieta que Murf, ansioso por encontrar o jantar, não reparou nela e pôs-se de quatro à procura da refeição.
A pessoa encapuzada parecia habituada aos duendes dos esgotos e aos modos destes. Aguardou pacientemente até Murf, julgando ter visto uma ratazana correr para baixo das vestes negras, se esticar para levantá-las e olhar.
Uma bota pairou sobre a mão do duende, prendendo-a ao chão.
Murf fez o que, em circunstâncias idênticas, faria qualquer duende dos esgotos. Soltou um guincho que lembrava uma invenção qualquer dos gnomos, daquelas que lançam catadupas de vapor.
Ao som do guincho, que podia ser ouvido em Consolação, os ladrões pousaram as canecas e empunharam as armas. O chefe atual, um tratante conhecido por Mike o Eterno Viúvo, devido ao fato de todas as suas mulheres morrerem invariavelmente por ele, correu para a porta. Seis brutamontes seguiram-no, fazendo grande alarido.
Todos os que se encontravam no átrio ficaram em silêncio e olharam para a porta com ar de alarme e de desconfiança. Os espiões, que deviam ter avisado da aproximação do visitante mesmo antes de entrar na viela, revelavam um estranho mutismo. O Eterno Viúvo escancarou a porta. Olhando lá para fora, Usha avistou o que apenas podia ser um feiticeiro veste negra.
Entrou em pânico. Dalamar a descobrira! Fez menção de correr, mas não conseguia se mover. Sentia os pés muito frios e entorpecidos e o corpo todo a tremer. Ficou ali, muda e paralizada, olhando.
O homem ergueu a mão, que era esguia e engelhada, e agitou uma carta no ar.
Grunhindo, o Eterno Viúvo olhou de relance para os que o seguiam.
— Ele conhece o sinal — disse, e baixaram as armas, embora não as embainhassem. Diversos magos do Grêmio já esquadrinhavam os seus alforjes ou desenrolavam pergaminhos, preparando-se para defender os outros membros, caso o intruso abusasse da sua hospitalidade.
Embora o mago já tivesse retirado o pé, Murf continuava a uivar.
— Cale essa cloaca! — ordenou o Eterno Viúvo, pregando um pontapé no duende. — Saiu-me um belo vigia! — murmurou injustamente, dado Murf ter sido o único a detectar a presença do forasteiro.
— O que quer, feiticeiro? — perguntou o Eterno Viúvo. — E que a resposta seja boa, senão, vai ser o diabo!
— Procuro alguém — ouviu-se uma voz das profundezas do capuz. — Não tenciono lhes fazer mal e, quem sabe se não serei benéfico.
A voz não parecia a de Dalamar, mas Usha não podia assegurar, pois tinha uma entoação suave e ciciante. Não queria arriscar. Recuperando o aprumo e a coragem, começou lentamente a engatinhar em direção à saída dos fundos e à passagem secreta.
Contudo, mal dera uns passos, sentiu uma mão fechar-se no braço. Um dos ladrões virara-se e fitava Usha com os olhos raiados de sangue.
— Sirva-me mais cerveja!
Temendo que, ao recusar, chamasse a atenção para sua pessoa, Usha obedeceu. Mantendo a cabeça baixa, agarrou na jarra de cerveja e a estava servindo na caneca quando ouviu de novo a figura encapuzada, que disse:
— Procuro minha filha.
Usha começou a tremer e deixou tombar, com estrépito, a jarra.
— Olhem! Perdeu a filha! — exclamou o Eterno Viúvo, soltando uma risada. — Sally Dale, deixo-o entrar?
Dizendo isto, olhou para trás. Uma mulher alta, vestindo uma túnica vermelha e com inúmeras bolsas penduradas no cinto, aquiesceu com a cabeça.
O homem entrou, o Eterno Viúvo fechou a porta com estrépito e baixou a tranca.
— Tire o capuz. Gosto de olhar um homem nos olhos — pediu o Viúvo em tom jovial.
Lentamente, o homem ergueu ambas as mãos e, devagar, retirou o capuz que lhe cobria a cabeça. Arregalando os olhos, virou-se para o Eterno Viúvo, que pareceu extremamente penalizado por ter feito tal sugestão.
O rosto do mago era magro, com a pele repuxada nos maxilares salientes. Não atingira ainda a meia-idade, mas tinha o cabelo branco. O rosto, de compleição dourada, banhado pela luz, emitia reflexos metálicos. O que o tornava mais sinistro eram os olhos, cujas pupilas tinham a forma de uma ampulheta.
O Eterno Viúvo empalideceu, fez um esgar e disse, em voz pastosa:
— Por Hiddukel, feiticeiro, tem uma cara que parece saída de um pesadelo! Se se parece contigo, coitada da tua filha!
— É bom que tenha pena de qualquer filho meu — respondeu o mago em tom suave. Os seus olhos dourados fixaram, sem interesse, os que se encontravam na sala, até se deterem em Usha.
— Como se chama? — perguntou.
Usha não foi capaz de responder, pois ficara sem fala. Nem sequer conseguia respirar. Diante dos seus olhos, as chamas cintilaram.
— Ela? — disse o Viúvo, encolhendo os ombros. — Ora, a chamamos de a filha de Raistlin... de Raist... — Um assobio sobressaltado interrompeu-o
O silvo partira de Sally Dale.
A mulher precipitou-se para o Viúvo e pegou-lhe no braço e, quase o arrancando, segredou-lhe, angustiada, um nome ao ouvido.
O viúvo tornou-se lívido e recuou. Num murmúrio ciciante, o nome foi passando de ladrão para ladrão, até o átrio do Grêmio parecer infestado de cobras.
Sally Dale beliscou o Viúvo e este, engolindo em seco e gaguejando, apontou para Usha.
— A tua filha é aquela, Mestre! Leve-a! Não a tocamos com um dedo. Juro! Mesmo que ela diga o contrário. Mestre, não sabíamos. Quem haveria de pensar? Não fiz por mal... Não se ofenda...
— Desapareça — ordenou Raistlin. — Saiam. Todos vocês!
A sua voz era suave e no entanto, chegou aos recessos mais escuros, ecoou pelas vigas, abateu-se sobre a sala como fumaça asfixiante. O Viúvo soltou uma risada fraca e atreveu-se a protestar.
— Saiam? Nós? Mestre, não é justo! Por que haveríamos de sair? O átrio é nosso...
Raistlin franziu o cenho. Os olhos dourados semicerraram-se e faiscaram. A mão deslizou para uma bolsa que trazia à cintura.
Sally Dale abanou o Eterno Viúvo, abanou-o até os ossos deste chocalharem.
— Seu estúpido! — exclamou. — É Raistlin! O Raistlin Majere! O feiticeiro que lutou contra a própria Rainha das Trevas! Se quisesse, explodiria este átrio e mandáva-o para Lunitari, conosco dentro!
O Viúvo, que ainda se mostrava hesitante, olhou para Raistlin.
Por seu turno, o arquimago mantinha-se calmo. Retirou a bolsa do cinto e, lentamente, começou a abri-la...
O átrio ficou deserto. Os ladrões correram para as portas, as janelas, para todos os escaninhos e fendas possíveis.
Em poucos minutos, Raistlin e Usha ficaram sozinhos.
Usha permanecia aterrorizada, com os olhos, dilatados pelo medo, fixos no homem que declarara ser seu pai.
Raistlin retirou da bolsa um punhado de ervas. Dirigindo-se para uma mesa próxima de Usha, escolheu a caneca mais limpa que pôde encontrar e nela jogou as ervas.
— Traga-me água quente — disse a Usha.
A jovem pestanejou, sobressaltada com a ordem, mas apressou-se a obedecer. Precipitando-se para a lareira, retirou a chaleira preta e levou-a para a mesa. Com cuidado, tentando dominar o tremor da mão, encheu a caneca com água.
Desta evolou-se um vapor perfumado com os aromas de nêveda, de hortelã e com outros cheiros menos agradáveis.
Raistlin bebericou calmamente o chá. Usha voltou a pousar a chaleira, parou um instante para reunir coragem e depois foi se sentar em frente do mago.
Este levantou a cabeça e as vestes negras roçaram. A jovem sentiu o cheiro de especiarias, de rosas e de morte.
Usha retraiu-se e baixou a cabeça, incapaz de encarar aquele rosto frio e metálico.
Estremeceu ao sentir na sua o contato de uma mão gelada. O toque era suave, mas os dedos estavam frios. Não que parecessem os de um cadáver, pois pulsavam com vida. Mas tratava-se de uma vida relutante. Há muito, muito tempo, assim ouvira contar, o fogo que ardera nessas mãos fora escaldante ao ponto de consumir o mago e todos os que dele se aproximavam. Agora, a chama esmorecia e as cinzas dispersavam-se. Nunca mais poderia ser atiçada de novo.
A mão dele aflorou-lhe a cabeça e acariciou-lhe o cabelo prateado. Depois, os dedos percorreram-lhe o rosto e tocaram-lhe o queixo, erguendo-o, obrigando-a a fitar as pupilas estranhas, em forma de ampulheta, dos olhos dourados de Raistlin.
— Não é minha filha — disse ele.
As palavras foram proferidas em tom gelado e duro. Mas tal como o peixe que vive por baixo da superfície de um lago coberto de gelo, como a vida é mantida nos recônditos das trevas geladas, sob esta declaração horrível, Usha sentiu pulsar uma grande tristeza.
— Poderia ser — respondeu, com voz dorida.
— Poderia ser filha de qualquer homem — observou Raistlin com secura. Fazendo uma pausa, olhou-a intensamente. — Não faz a mínima idéia de quem é o teu verdadeiro pai, não é? — Parecia intrigado. — Por que me escolheu?
Usha engoliu em seco. Ansiava por se esquivar do contato dele, que começava a queimar, como o gelo queima a pele.
— O kender... contou-me a lenda. Pensei... Todos pareciam respeitá-lo... Eu estava sozinha e... — Abanou a cabeça. — Desculpe. Não fiz por mal.
Raistlin deu um suspiro.
— Não era a mim que prejudicaria, mas sim a ti. Admira-me que... — O mago não acabou a frase e pôs-se a bebericar o chá.
— Não iriam me contar — disse Usha, sentindo-se impelida a dar mais pormenores. — Disseram que não interessava.
— Refere-se aos Irdas?
A jovem aquiesceu. O mago preparava-se para acrescentar algo, quando de repente foi tomado de um acesso de tosse que lhe abanou o corpo frágil e tingiu os lábios de sangue.
— Sente-se bem? Quer que vá buscar alguma coisa? — perguntou Usha, levantando-se.
A mão de Raistlin agarrou-lhe o pulso, detendo-a, enquanto tossia e arquejava para respirar. Cada espasmo fazia-o apertá-la com mais força, até o abraço se tornar doloroso, mas ela não estremeceu nem tentou libertar-se. Por fim, o acesso de tosse passou. Começando a respirar aos haustos, o mago limpou o sangue dos lábios na manga da veste negra.
— Sente-se — ordenou, em voz quase inaudível.
A jovem afundou-se na cadeira. Raistlin afrouxou o aperto, mas continuou a segurar o braço e Usha não o repeliu, antes se aproximou. Sentiu na mão do mago um calor que não existia antes, e compreendeu que fora buscar nela, na sua juventude e vitalidade.
— Como se chama? — perguntou Raistlin.
— Me chamo Usha.
— Usha... — repetiu ele com brandura. — Sabe o que significa?
— Ora, não — respondeu a jovem, pestanejando. — Nunca pensei nisso. Nunca supus que significasse algo. Não passa... de um nome.
— Um nome que vem de outro mundo, de outra época. Usha significa “a alvorada”. Pergunto-me se... — murmurou Raistlin, olhando-a. — Quem te deu o nome conheceria o significado? Saberia a sua origem? Era interessante descobrir.
— Eu poderia ser sua filha. — Usha não se mostrava interessada no nome. Queria ser filha daquele homem, queria-o agora tanto por ele como por ela. Envergava a solidão e o isolamento tal como as vestes negras, de modo orgulhoso e desafiador. No entanto, continuava com a mão engelhada pousada na dela. — Tenho olhos dourados, olhos da mesma cor dos teus.
— A sua mãe também — replicou ele.
Usha encarou-o fixamente. Sentiu um desejo ardente dentro de si, uma necessidade desesperada de preencher o vazio que toda a vida a perseguira. Os Irdas haviam tentado saciar-lhe essa fome com bolos de açúcar, fruta cristalizada e todo o tipo de doces e compotas. Não compreenderam. Não perceberam que, para crescer e desabrochar, necessitava de comida simples.
— Sabe quem são os meus pais! — exclamou, estreitando a mão dele na sua. — Sabe quem eu sou! Diga-me, por favor! Como descobriu? Foi falar com o Prot? Ele está bem? Tem saudades minhas?
— Não visitei os Irdas — replicou Raistlin. — Não precisava. Outrora fui conhecido como o Mestre do Presente e do Passado. O tempo para mim não constitui obstáculo. As águas do rio transportam-me para onde eu quero ir.
Bebeu o chá e umedeceu a garganta, já com a voz mais forte, prosseguiu:
— Quando ouvi falar de você pela primeira vez, quando ouvi a sua pretensão, ignorei-a. Caramon, o meu irmão, contou-me a lenda de uma mulher misteriosa que me seduzira, desaparecera, levando dentro de si a minha semente, e me lançara um encantamento mágico do esquecimento. Não acreditei. Não há magia suficientemente poderosa a ponto de banir do meu coração a percepção de que, em alguma ocasião, fui amado. Nem sequer a morte consegue — acrescentou baixinho, quase de si para si.
Usha mantinha silêncio, esperançosa e receosa.
— De modo que quase ignorei as suas pretensões — prosseguiu Raistlin. — O Caramon assegurou-me que, antes de você, houvera outros e, presumo, que outros virão depois. Não perdi tempo com o assunto até comparecer ao Conclave dos Feiticeiros, na Torre de Wayreth. De novo o seu nome foi citado por afinidade com o meu, só que, desta vez, era a sério. Quem apresentou a pretensão foi Dalamar, o Sinistro.
A voz de Raistlin tornou-se mais dura.
— Sim, Usha, faz bem em estremecer ao ouvir o nome. Se a pretensão se revelasse verdadeira, ele pretendia usá-la para obter ascendência sobre mim. Não me restou outra opção. Tive que averiguar. Mergulhei nas águas escuras do rio do Tempo, aventurei-me até às águas paradas do lago estagnado dos Irdas. Descobri a verdade.
Tossiu de novo, mas o acesso foi breve.
— Desconheço de onde os seus pais são oriundos. Da primeira vez que os vi, tinham sido capturados e feitos escravos pelos Minotauros e enviados para servir a bordo de um navio minotauro. Os Minotauros não tratam os seus escravos com bondade. Uma noite, acreditando que a morte não lhes traria horrores piores do que aqueles que já haviam experimentado, a sua mãe e o seu pai confiaram a vida às mãos de Zeboim. Gritaram por mercê e lançaram-se ao mar enraivecido.
— Zeboim é uma deusa caprichosa. Vira-se com uma fúria selvagem contra os que a servem fielmente e recompensa os que aparentemente menos o merecem. Sentindo-se lisonjeada por aqueles dois procurarem a sua protecção, pôs-lhes no caminho os destroços de uma jangada. O seu bafo conduziu-os até terra firme e, nisso, acho que a deusa foi mal-intencionada. Guiou-os até à ilha secreta dos Irdas.
— Ao descobrirem os dois, jazendo na praia, mais mortos do que vivos, os Irdas apiedaram-se deles e deram-lhes abrigo e comida. Quando se tornou óbvio que você vinha a caminho, cuidaram da sua mãe. Contudo, embora não sendo tão brutais nem cruéis como os Minotauros, os Irdas inflingiram-lhes formas de tortura peculiares. Não era essa a intenção — acrescentou Raistlin, com um encolher de ombros. — Simplesmente não podiam compreender as necessidades dos dois humanos. Quando os seus pais se restabeleceram, desejaram partir, regressar à terra natal, e os Irdas recusaram-se. Receavam que os seus pais pudessem denunciá-los ao resto do mundo. Praticamente fizeram-nos prisioneiros. O seu pai se revoltou e desafiou-os abertamente.
Raistlin olhou-a, sereno.
— Os Irdas o mataram — disse.
— Não! — Usha vacilou, chocada. — Não pode ser verdade! Não acredito! Nunca podiam ter feito uma coisa dessas! Ora, se até o Prot era incapaz de pisar numa aranha!
— Os Irdas não o fizeram por mal. Usha, você, que os conhece, não consegue imaginar a cena? Sentiram-se repugnados e furiosos contra a ira e a violência do homem. Pretendiam apenas ensinar-lhe uma lição. Mas, a magia deles foi muito poderosa, foram longe demais. Nenhuma arte de cura, nenhuma oração conseguiram restituir-lhe a vida.
— Pouco depois, você nasceu. Uma noite, a sua mãe, com o desgosto, a agasalhou bem e deitou no berço. Depois, dirigiu-se para o mar e se afogou. Os Irdas descobriram as pegadas na areia, mas nunca chegaram a descobrir o corpo. Quem sabe se, afinal de contas, Zeboim cobrou um preço pela sua bondade anterior.
Usha mantinha-se cabisbaixa e as lágrimas corriam-lhe pelas pestanas.
— Cheios de remorsos, os Irdas a criaram — prosseguiu Raistlin. — Cumularam de mimos e nada te negaram, a não ser o conhecimento de quem era. Não podiam dizer a verdade sem te contarem tudo. E isso, nunca fariam.
— Compreendo — respondeu Usha em tom sufocado. — Os Irdas não quiseram me fazer infeliz.
— Não quiseram admitir que tinham procedido mal — respondeu Raistlin em tom contundente. — O orgulho e a arrogância dos Irdas, que em épocas remotas quase arruinou a raça deles, irá possivelmente nos destruir agora. Contudo — acrescentou, com voz soturna —, não devo ser cruel. Pagaram pela loucura...
Usha não o escutava. Imersa nos seus pensamentos, recuara até à meninice, na esperança de descobrir alguma réstia de lembrança, o vislumbre de uma canção de embalar, a derradeira expressão de ternura dos olhos da mãe. Levantando a cabeça, perguntou:
— O que disse? Desculpe, não estava prestando atenção...
— Deixe pra lá. Não era importante. — Raistlin levantou-se da mesa. — Tenho que ir. Mas primeiro Usha, cujo nome significa “a alvorada”, fica este conselho. Planejava fugir de Palanthas, numa tentativa de escapar dos teus “professores”.
Usha olhou-o, espantada.
— Como é que...
— É desnecessário — interrompeu-a ele. — A sua formação está completa. Pode deixar o Grêmio esta noite e nunca mais voltar.
— Eles não permitirão — começou Usha.
— Acho que, quando souberem quem é, te deixarão partir.
— Que quer dizer com isso? — inquiriu Usha, levantando os olhos. — Não vai... não vai lhes contar...
— Não vejo motivo para fazê-lo. Isso fica entre nós e, possivelmente Dalamar, caso ele sair da linha. Além disso, há uma razão que me leva a querer que fique. Neste momento, há alguém que se dirige a Palanthas, a sua procura e, acho eu, há de querer estar onde possa ser encontrada. É alguém — acrescentou Raistlin em tom seco, com um ligeiro sorriso a bailar nos lábios finos — que ficará radiante por saber que você e ele não são parentes.
— Palin? — perguntou Usha num sussurro. — Ele está bem? Vem aqui, por minha causa?
— Incumbi-o dessa tarefa — respondeu Raistlin. — E aceitou-a de bom grado.
Usha sentiu um calor no rosto, como se tivesse bebido vinho espumante. Deixou-se envolver pelo ardor, inebriando-se com o gosto doce e borbulhante do enamoramento jovem e feliz, no arroubo de saber que o seu amor era correspondido. Mas as bolhinhas logo se rebentaram na língua e o gosto do vinho tornou-se amargo. Ocorreu-lhe que teria que confessar a Palin que lhe contara uma mentira, uma mentira monstruosa.
Ter a percepção disso, foi como se acrescentasse ao doce vinho um travo azedo. Virou-se para Raistlin, para pedir-lhe ajuda, mas este desaparecera.
Sobressaltada, inquieta, Usha olhou ao redor. Não notara sua saída mas, contudo, a porta se abria para a noite. Foi até lá e perscrutou a viela. Mas se o arquimago se encontrava ali, liquefizera-se na noite, tornara-se uno com as trevas.
— Raistlin? — atreveu-se a chamar.
Um corvo sobrevoou-a e gritou-lhe, em tom trocista:
— Cróó!
Apesar do calor, Usha foi percorrida por um arrepio. Dirigiu-se para o átrio, juntou os seus pertences e voltou para o quarto.
Dissipadas as névoas do anel mágico, Palin deu consigo numa das ruas de uma cidade que, após uns breves instantes de desorientação, identificou como sendo Palanthas. Sob a claridade ardente do Sol, os minaretes tingidos de rubro da Torre da Feitiçaria Suprema irradiavam um clarão lúgubre. Próximo, mergulhado nas sombras, o mármore branco do Templo de Paladino refletia-se tenuamente, como que toldado por nuvens. Mas no céu azul, que brilhava e ofuscava, não se viam nuvens.
Palin relanceou o olhar pela rua onde se materializara. Tratava-se, felizmente, de uma aia lateral, possivelmente na zona mercantil da cidade. Ao longo da estrada pavimentada estendia-se uma fieira de lojas e não de residências. Vários transeuntes, sobressaltados com o seu aparecimento repentino, pararam para olhar, mas reparando nas vestes brancas do mago, limitaram-se a evitá-lo e retomaram o caminho. Palin tirou rapidamente o anel do dedo, enfiou-o numa bolsa e tentou adotar uma atitude descontraída.
Ficou espantado ao ver tanta gente na rua, a maior parte passeando calmamente e deslocando-se como se não passasse de um dia de trabalho comum. Não estava certo quanto ao que esperava enfrentar numa cidade ocupada pelos cavaleiros das trevas — possivelmente as pessoas trancadas em casa, as ruas patrulhadas por tropas, bandos de escravos a serem transportados e com grilhões nas pernas. Mas aqui, as donas de casa saíam para o mercado, com os filhos agarrados às saias, os membros dos grêmios passavam, apressados, como que — era sempre o mesmo — ocupados com algo importante. Até se viam, do lado de fora das cervejarias, os vadios, ociosos e bêbedos, e mendigos usuais postados nas esquinas.
A cidade assemelhava-se tanto à Palanthas que conhecera no passado, que Palin ponderou a hipótese do tio se haver enganado. Talvez Palanthas não tivesse caído nas mãos dos Cavaleiros de Takhisis. Tudo suscitava uma grande perplexidade. E, possivelmente, a questão que mais o deixava perplexo era: porque motivo ele se encontrava na esquina de uma rua desconhecida?
Pensara que o anel o conduziria à torre. Por que o trouxera até ali? Dalamar devia ter algum motivo.
Palin examinou com atenção as tabuletas suspensas das portas, esperando descobrir em que parte da cidade se encontrava. Quase de imediato, obteve o que julgou constituir a resposta à sua pergunta. Do lado oposto da rua, erguia-se uma loja de artigos de magia, conforme indicava o letreiro pendurado sobre a porta — três luas, a prateada, a vermelha e a negra.
Pensando que constituiria um bom ponto de partida, mesmo que não fosse essa a intenção de Dalamar, onde, quem sabe, poderia negociar alguns artigos mágicos úteis durante a sua estada, Palin atravessou a rua.
À maneira de boas-vindas, a porta que dava para a loja encontrava-se aberta de par em par, o que não constituía um fato inusitado, dado estarem ao meio da tarde de um buliçoso dia de mercado. Mas Palin ficou surpreendido por não ver nenhum guarda pesadão postado do lado de fora, pronto a afugentar os turistas, os parolos e os kenders, que se sentem atraídos pelas lojas de artigos de magia como as abelhas por água com açúcar.
Palin entrou e ficou por um instante à porta, a fim de que os seus olhos castigados pelo Sol ardente se habituassem às trevas. Chegaram-lhe aromas familiares que o fizeram sentir-se como que em casa e o descontraíram: a doce fragrância das flores secas que, ainda assim, não conseguia disfarçar o outro cheiro de podridão e morte, misturado com o de bolor e de couro velho.
A loja era ampla e, ao que parecia, próspera. Viam-se nada menos do que seis aparadores com coberturas de vidro, cheios de anéis, broches, pingentes, cristais, pulseiras e anteparos para as mãos — alguns deles lindos, outros pavorosos e ainda alguns de aspecto comum. Num outro, dispostos em prateleiras, viam-se boiões de vidro com tudo o que se pudesse imaginar, desde globos oculares de tritões, suspensos num líquido viscoso qualquer, ao que parecia ser paus de alcaçuz. (Palin nunca ouvira falar de nenhum encantamento que incluísse alcaçuz, pelo que apenas podia supor que este se destinava a magos apreciadores de doces.) Alinhados nas paredes viam-se fileiras de livros de encantamentos, ordenados pela cor das respectivas encadernações e pela ama ocasional gravada na lombada. Em pequenos escaninhos poeirentos, ocultavam-se pergaminhos enrolados e cuidadosamente atados com fitas de diversas cores. Sobre uma mesa, encontravam-se expostos estojos para pergaminhos e bolsas feitas de couro, veludo ou pano cru (para os magos mais pobres), lado a lado com uma bela coleção de pequenas facas.
Na loja havia tudo, exceto o proprietário.
Uma cortina vermelha encobria os fundos da loja. Julgando que o proprietário se encontrava ali, Palin preparava-se para chamar, quando ouviu uma voz bem atrás de si.
— Se procura a Dama Jenna, saiu por um instante. Talvez eu possa ajudar.
Postado junto de Palin, encontrava-se um homem, envergando as vestes cinzentas de mago, mas de espada embainhada.
Um Cavaleiro do Abrolho, pensou Palin. O cavaleiro devia ter se mantido atrás da porta, escondido nas sombras.
Palin reconheceu o nome do proprietário: tudo levava a crer tratar-se da Dama Jenna, poderosa feiticeira veste vermelha e amante de Dalamar.
— Não, obrigado — respondeu Palin em tom polido. — Espero pelo regresso da Dama Jenna. Preciso lhe fazer uma pergunta a respeito de um componente de encantamento.
— Talvez eu consiga responder — insistiu o Cavaleiro Cinzento.
— Duvido — replicou Palin. — Os encantamentos que eu e você lançamos nada têm de comum. Esperarei pela Dama Jenna, se não se importa. Não se prenda por minha causa. Devia estar de saída quando eu entrei.
— Não estava de saída — respondeu o Cavaleiro Cinzento. A sua voz parecia afável, até divertida. — Estou colocado aqui. A propósito, acho que não assinou o livro. Não se importa de chegar aqui...
O Cavaleiro Cinzento conduziu-o até uma pequena escrivaninha que se encontrava à esquerda da porta. Nesta, havia um grande livro com encadernação de couro e dentro, linhas desenhadas e bem espaçadas umas das outras. Olhando, Palin viu uma lista de nomes, seguida do que parecia ser um registro de compras ou movimentos comerciais. Reparou que havia poucos nomes e que o último datava de dois dias atrás.
— Assine aqui — disse o Cavaleiro Cinzento, indicando uma linha. — Depois vou ter que lhe pedir que me mostre toda a sua parafernália arcana. Não se preocupe. Devolvo depois os artigos... os que não constam da lista de contrabando e considerados lesivos do Estado. Se forem, serão confiscados. Mas, será indenizado.
Palin não podia acreditar no que ouvia.
— Lesivos... Confiscados! Não pode... não pode estar falando sério!
— Veste Branca, asseguro-lhe que falo muito sério. É o que manda a lei e sem dúvida sabia disso quando entrou aqui. Vamos. Se os guardas dos portões da frente te deram passagem, é porque não deve trazer nada muito poderoso.
— Não entrei pelos portões da frente — preparava-se para dizer, mas conteve-se a tempo. Podia lutar, mas com quê? A sua navalhinha contra a espada deste feiticeiro? E afinal de contas, que história era aquela destes feiticeiros andarem de espada na cinta? Até então, nunca fora permitido a nenhum feiticeiro de Krynn combinar a espada com a feitiçaria! Pelo visto, a Rainha das Trevas andara recrutando os préstimos dos seus lacaios!
Palin sabia, sem sombra de dúvida, que este cavaleiro-feiticeiro era muito mais poderoso do que ele. Só lhe restava ceder aos desejos do homem, fingir que colaborava e rezar a Solinari para que o Cavaleiro Cinzento não mostrasse excessiva curiosidade em relação ao Bastão de Magius.
Deixando cair o bastão num canto, como se se tratasse de coisa sem valor ou importância, Palin fingiu uma grande relutância em retirar e apresentar os alforjes e os poucos estojos contendo pergaminhos que trazia. Espalhou-os em frente do Cavaleiro Cinzento, que não tocou em nada. Murmurando algumas palavras, lançou sobre os mesmos um encantamento.
Os alforjes e os pergaminhos começaram a irradiar um clarão fantasmagórico, que, em alguns, assumia laivos avermelhados.
Satisfeito por constatar que eram todos mágicos, o Cavaleiro Cinzento ordenou a Palin que esvaziasse sobre a mesa o conteúdo dos alforjes e dos estojos.
Palin esboçou um leve protesto, mas fez o que o outro lhe ordenava. Pelo tampo da mesa rolaram anéis, incluindo o dado por Dalamar. Retirou os pergaminhos, desenrolou-os e permitiu que o Cavaleiro Cinzento desse uma olhada pelos encantamentos. Entretanto, ia sentindo crescer dentro de si a cólera perante o tratamento recebido, assim como a preocupação.
O que aconteceria quando o Cavaleiro Cinzento concentrasse a sua atenção no Bastão de Magius?
Sub-repticiamente, Palin relanceou o olhar pela loja, na esperança de descobrir algo para usar como arma. Os broches e outros objetos encantados encontravam-se fechados em estojos e sem dúvida guardados por encantamentos mágicos. Não fazia idéia do efeito que produziam, podia muito bem dar-se o caso de agarrar em algum anel que fosse mais prejudicial para ele do que para o Cavaleiro Cinzento. O mesmo acontecia com os pergaminhos e os livros de encantamento. Não tinha tempo para folheá-los.
Se não houver mais nada, ainda posso dar-lhe com um boião na cabeça, decidiu Palin com ar soturno e escolheu o que iria agarrar.
O cavaleiro estava de cabeça baixa, examinando atentamente o conteúdo de um dos pequenos livros de encantamentos de Palin.
Palin começou a dirigir-se para as prateleiras e preparava-se para estender a mão e agarrar o boião, quando o Cavaleiro Cinzento levantou a cabeça.
— Oh, está aí! Que faz nesse lugar?
— Só vendo se esta manjerona era fresca — respondeu Palin, retirando o boião da prateleira. Retirando a rolha, cheirou. — Que bom. Quer cheirar?
Desconfiado, o Cavaleiro Cinzento Semicerrou os olhos.
— Pouse já o boião e venha aqui. Vou ficar com isso. — Indicou um grande monte de pergaminhos, anéis, incluindo o de Dalamar, e outros objetos. — Estes... — acrescentou, apontando para o livro de encantamento, para uma bolsa com areia e outra com guano de morcego — pode guardá-lo.
Corando de raiva, Palin ia protestar, mas o Cavaleiro Cinzento virou-se e pegou no bastão.
— Ora, vamos lá ver esta coisa — disse.
— Não passa de um cajado de viagem comum — disse Palin, quase sem poder falar, pois sentia um nó na garganta. — Decerto já constatou que sou de baixa categoria. O que eu faria com um bastão mágico?
— Realmente, o quê? Mas trata-se de um adorno muito rebuscado para servir de cajado... uma garra de dragão segurnado um cristal. Não se importa que o examine mais de perto, não é?
O Cavaleiro Cinzento proferiu umas palavras e lançou o encantamento que revelaria as propriedades mágicas do bastão, tal como acontecera com todo o resto que Palin trazia consigo.
Palin ficou tenso, à espera de ver o clarão feérico derramar-se sobre o bastão. Quando o cavaleiro se preparava para tocá-lo, Palin estava prestes a atirar-se ao homem e jogá-lo ao chão.
O bastão não se mexeu.
Atônito, Palin ficou sem respiração. O Bastão de Magius, um dos artefatos arcanos mais poderosos de todo o território de Krynn, mantinha-se atirado no canto, tão simples e inocente como qualquer aro kender.
O Cavaleiro Cinzento franziu o cenho. Tinha certeza de que o bastão era mágico, mas não iria admitir que duvidava da sua própria fórmula de encantamento. Olhou desconfiado para Palin, julgando que o jovem mago possivelmente se antecipara a ele e pronunciara alguma contra-fórmula.
Palin continuava com as mãos enfiadas nas mangas das vestes.
— Eu avisei — disse, em tom depreciativo.
— Realmente foi — replicou o Cavaleiro Cinzento. Olhou fixamente para o bastão, era evidente que tentava lançar de novo o encantamento, mas deve ter percebido que possivelmente faria figura de tolo. Limitou-se a ralhar: — Rapazinho, um bastão tão chique como este pode metê-lo em confusão. Se teimar em brincar de feiticeiro, aguarde até à Noite do Olho. Pelo menos é capaz de conseguir um bolinho.
Palin sentiu a cara arder com o insulto. Contudo, não se atreveu a dizer uma palavra. Engolindo o orgulho, reconfortou-o imaginar a expressão do rosto do cavaleiro se viesse a saber algum dia que tivera na mão o famoso Bastão de Magius e o largara.
— Assine o seu nome — disse o Cavaleiro Cinzento, empurrando o livro para Palin.
Erguendo a pena de escrever, Palin preparava-se para obedecer, quando o ruído de passos, o roçar de vestes e o aroma carregado de algum perfume caro o fizeram virar a cabeça.
Entrou na loja uma mulher — uma das mais bonitas e exóticas que Palin jamais vira. Envergava vestes vermelhas, caras, feitas de seda e veludo e bordadas a ouro. O perfume servia para dissimular os odores ocasionalmente desagradáveis dos componentes de encantamento que transportava em bolsas de seda, penduradas numa corrente de prata e couro que lhe cingia a cintura. Era estonteante, poderosa, misteriosa e, à sua chegada, até o Cavaleiro Cinzento, endireitando-se, lhe dirigiu uma vênia.
Fez uma pausa e olhou para Palin com ar curioso.
— Como tem passado, Mestre Mago? Sou Jenna, a proprietária desta loja. Peço desculpas por não estar aqui quando chegou. Fui chamada à casa do lorde. Um dos servos quebrou uma jarra valiosa e pediram-me para consertá-la. Uma tarefa menor e que, em circunstâncias normais recusaria, mas atualmente restam tão poucos mágicos na cidade! Em que posso servi-lo?
— Dama Jenna — respondeu Palin, com assinalável admiração —, sou Pal...
— Palas! Palas Margoryle! — Jenna avançou apressadamente e puxou-o pela mão. — Meu caro jovem, deveria tê-lo reconhecido logo! Mas foi há tanto tempo, e você mudou. Quando foi a última vez que nos encontramos? Há quase cinco anos. Durante o Teste. E aqui está você, para a sua sessão de escrita de pergaminhos. Veio cedo, mas não faz mal. Hoje em dia, o negócio está fraco — acrescentou, dardejando o Cavaleiro Cinzento com um ar gélido.
Jenna apertou o braço de Palin e começou a conduzi-lo para a parte mais recuada da loja, separada do resto pela cortina.
— Minha Dama, ele ainda não assinou o livro — observou o Cavaleiro Cinzento.
Jenna parou e dardejou Palin com um olhar de advertência que lhe gelou o sangue.
— Ah, sim, temos que assinar o livro! — disse, em tom malicioso, virando-se. — Se não for assim, como os Cavaleiros de Takhisis podem manter um registro dos que vêm me visitar e do que compram? Já poucos vêm comprar o que quer que seja. Não tarda serei destituída e então, ninguém mais terá que assinar o livro. Ah! Vejam! Alguém derramou a manjerona. Palas, ajude-me a limpar isto.
Palin obedeceu e começou logo a limpar as folhas secas que espalhara. Ajoelhando-se para ajudá-lo, Jenna murmurou:
— Andam à sua procura! Têm um mandato de captura!
Palin estremeceu, quase derramando de novo as folhas, mas conseguiu enfiá-las no boião. Jenna tapou-o com a rolha e voltou a colocá-lo na prateleira.
— Palas, vá assinar o livro e apresse-se. Estou no laboratório. Passe por aquelas cortinas e desça as escadas.
Dito isto, Jenna passou pelas cortinas e Palin ouviu-a descer as escadas. Aliviado do nervosismo, ou da proximidade dela, ou de ambas as coisas, escreveu desajeitadamente o nome falso e, ao terminar, deixou um borrão de tinta. Feito isto, sob o escrutínio desconfiado do Cavaleiro Cinzento, Palin atravessou as cortinas e quase rolou de cabeça pelas escadas que se formavam inesperadamente diante de si.
Em seguida, fez menção de correr a cortina.
— Deixe-a aberta — indicou-lhe o Cavaleiro Cinzento, que foi se postar no alto das escadas, de onde podia avistar o laboratório e ao mesmo tempo, vigiar a porta da frente.
Palin sentou-se junto de Jenna, que fora buscar uma tabuinha feita de cera.
— São evidentes as vantagens de escrever fórmulas mágicas nos pergaminhos — começou, falando em voz alta e com uma entoação didática.
— Não nos obriga a memorizar antes o encantamento e, deste modo, podemos utilizá-lo sempre que desejamos. O ato de escrever determinados encantamentos, em particular os complexos, permite-nos ter a mente livre para a memorização de outros. A principal desvantagem reside na dificuldade em escrever o encantamento, de longe pior do que pronunciá-lo. Porque quando o escrevemos, temos não só de pronunciar as palavras enquanto as escrevemos como também delinear as letras com perfeição. Uma distração e o encantamento não atua.
— Claro que hoje não iremos verdadeiramente escrever encantamentos. O teu grau de estudos não é bastante avançado para isso. Hoje praticaremos a delineação das letras. Escreveremos na cera, para poder apagar eventuais erros. Eu mostro como se faz.
Pegando num estilete e fazendo pressão na cera, Jenna começou a traçar letras. Palin, que aprendera tudo isto há anos e era, na realidade, muito apto a preparar pergaminhos, prestava pouca atenção. Estava furioso consigo mesmo. É evidente que os cavaleiros andavam no seu encalço. Fora um louco em não considerar tal possibilidade.
Jenna, que o olhava com ar soturno, deu-lhe uma cotovelada e apontou para a tabuinha.
— Vamos, copie o que eu escrevi.
Palin pegou no estilete, olhou para as letras, voltou a examiná-las, e por fim compreendeu o que se passava. Jenna não estivera escrevendo magia. O jovem leu o seguinte: Dalamar avisou-me da tua vinda. Tenho andado à procura de Usha. Acredito que se encontra ainda em Palanthas mas, não posso assegurar onde. Pouco posso fazer. Sou constantemente vigiada.
Vendo que Palin lera a mensagem, Jenna apagou-a.
Palin escreveu: Como poderei encontrá-la?
Jenna respondeu: É muito perigoso andar vagueando pela cidade. Os cavaleiros encurralaram-nos numa cintura de ferro. Patrulhas, postos de controle. Os cidadãos têm que apresentar os documentos exigidos. Mas não se desespere. O meu agente anda à procura dela. Comunicou-me que anda por perto e hoje com certeza me dará notícias.
— Mas, que silêncio por essas bandas — observou o Cavaleiro Cinzento, do alto das escadas, espreitando-os.
— Que é que esperava? Estamos estudando — replicou Jenna em tom contundente.
Um sininho, pendurado do teto por um fio de seda, retiniu três vezes. Jenna não se incomodou em virar-se.
— Entrou algum cliente? Diga-lhe que já vou.
— Senhora, não sou seu criado — replicou o Cavaleiro Cinzento em tom cáustico.
— Então, a porta está aberta, pode ir embora — atirou ela, apagando o que escrevera na cera. — Pode ser o meu agente — acrescentou, em voz baixa, a Palin.
Ouviram as pesadas botas do cavaleiro atravessando o chão da loja. Depois, alarmaram-se ao ouvir um grito e ruídos de luta.
— É ele — disse Jenna. Levantando-se, subiu apressadamente as escadas. Palin, que seguia logo atrás, chocou com ela quando Jenna se deteve no alto e lhe murmurou:
— Finja que não o conhece. Nem uma palavra. Deixe que eu fale.
Espantado, Palin aquiesceu. Jenna entrou na loja.
— O que se passa? — inquiriu.
— Um kender — respondeu o Cavaleiro Cinzento em tom soturno.
— Isso estou vendo — retrucou Jenna.
Palin ficou plantado olhando e ocorreu-lhe — bem a tempo — que pressupostamente não conhecia aquela pessoa.
Estrebuchando nas mãos do cavaleiro encontrava-se Tasslehoff Pés Ligeiros.
— Ai, ai! Isso machuca! Como se sentiria se alguém quase te arrancasse o braço? Já te disse que a Dama Jenna quer falar comigo! Sou agente dela. Oops! Credo! Peço muitas desculpas. Não era minha intenção te morder! Acontece que a sua mão foi de encontro aos meus dentes. Doeu muito? Eu... Eei! Eei! Pára com isso! Está arrepiando meu cabelo! Socorro! Socorro!
— Pelo amor de Gileano, largue-o! — exclamou Jenna. O cavaleiro agarrara Tas pelo penacho.
— Senhora, não vai querer um kender na tua loja — papagueou o cavaleiro.
— A loja é minha... pelo menos por ora — retrucou Jenna. — Até vocês, cavaleiros, me retirarem o negócio e tomarem conta dele. Por enquanto, trata-se do meu negócio e o gerencio como me apetecer. Largue o kender.
O cavaleiro obedeceu, com evidente desagrado.
— Muito bem, Senhora, mas é responsável pelas conseqüências.
— Se eu fosse você, subiria ao meu apartamento e lavaria essa ferida — avisou Jenna. — Ou talvez deseje que seja um dos teus sacerdotes a tratá-lo. O kender pode ter raiva.
— Não me surpreenderia — replicou friamente o cavaleiro. — Senhora, lembre-se disto... a sua loja permanece aberta por deferência dos Cavaleiros de Takhisis. Se quiséssemos, poderíamos fechá-la agora mesmo e não haveria uma pessoa que pudesse nos deter. Na verdade, não seriam poucos os vizinhos a, possivelmente, agradecer-nos. De modo que não me faça perder a paciência.
Jenna sacudiu a cabeça, num gesto de desdém, mas não respondeu. O Cavaleiro Cinzento subiu pesadamente as escadas, torcendo a mão ferida. Tasslehoff retraiu-se e esfregou a cabeça.
— Os meus olhos ficaram vesgos, como os do Dalamar? Parece-me que ficaram. Ele puxou com tanta força que quase me arrancou o escalpe e as pálpebras também. Não é um homem simpático — declarou Tasslehoff e em seguida, inclinando-se para Jenna, acrescentou em voz baixa: — Eu disse uma mentira. Mordi por querer mesmo.
— Estava pedindo — respondeu Jenna com um sorriso. — Mas veja se tem mais cuidado na próxima. O meu raio de proteção termina aqui. Não quero pagar mais nenhuma fiança para te tirar da prisão. Encontrou o colar que eu procurava? — perguntou em voz alta, para poder ser ouvida do alto das escadas.
Tas fitou Palin, dirigiu-lhe várias piscadelas de olho e também em voz estridente, respondeu:
— Sim, Dama Jenna. Descobri-o! Sei exatamente onde se encontra!
— Não o tocou, não é? — A voz de Jenna parecia ansiosa. — Nem deixou que o dono percebesse que era valioso?
— O dono nunca me viu. E o colar também não — acrescentou Tas em tom confidencial.
Ouvindo esta declaração, Jenna franziu o cenho e abanou a cabeça. Virando-se para Palin, disse:
— Mestre Mago, parece que hoje não há meio de terminarmos a nossa lição. Chegou a hora da meditação da tarde. Quer me fazer o favor de adquirir por mim o tal colar? É mágico, mas o dono não sabe, não faz idéia do seu verdadeiro valor.
Por esta altura, Palin já adivinhara que o colar devia ser Usha. Só de pensar que voltaria a vê-la, sentiu o coração palpitar rapidamente e o sangue percorrido por uma quente e agradável sensação de formigamento. Toda a noção do perigo dissipou-se, ou pelo menos recuou até aos recessos da sua alma.
— Dama Jenna, para mim seria uma honra obter esse colar para ti — respondeu, lutando para simular indiferença, embora, com a excitação, quase gritasse. — Onde o encontro?
— O kender indica-lhe. Agora vá, antes que eu feche a loja.
Jenna virou os olhos para o alto das escadas e Palin, compreendendo o gesto, aquiesceu em silêncio. Jenna estendeu-lhe a mão.
— Boa sorte — disse, com brandura.
Pegando-lhe na mão, Palin levou-a respeitosamente aos lábios.
— Obrigado, minha Dama — sussurrou. Teve um momento de hesitação e acrescentou baixinho: — Vi a forma como o cavaleiro olhou para ti. Aqui corre perigo...
Encolhendo os ombros, Jenna sorriu.
— O único mago que ficou na cidade fui eu. O Conclave considera importante o trabalho que desenvolvo aqui. Mas não se preocupe, Palin Majere. Sei cuidar de mim. Que a luz de Lunitari te acompanhe.
— E que Solinari derrame sobre ti a tua graça, minha Dama — replicou Palin.
— Tas, obrigada — disse Jenna, subtraindo da bolsa de Tas vários objetos de valor que, por acaso, tinham caído das prateleiras e lá se encontravam. Em seguida, acompanhou-os até à porta.
— Eu não encontrei colar nenhum — disse Tas, mal chegaram à aia.
— Eu sei — respondeu Palin, apressado — Mas, enquanto não estivermos longe daqui, não diga nem mais uma palavra sobre o assunto. — Depois, desceu a rua em passo rápido, olhando com freqüência para trás, a fim de se certificar de que não eram seguidos.
— Palavra de kender — respondeu Tas, saltitando ao lado de Palin. — Como está o Caramon e a Tika? Os dragões queimaram a estalagem, como fizeram na última guerra? Onde está o Raistlin?
— Cale-se! — disse Palin olhando, alarmado, ao redor. — Não mencione...
— Tinha uma série de perguntas que queria fazer ao Raistlin, sobre essa história de ficar morto e coisa e tal — prosseguiu Tas, sem ouvir —, mas o Dalamar me lançou uma magia que me pôs tão depressa para fora da torre que nem consegui fazer uma sequer. O Raistlin foi sempre muito bom para responder pergunta. Bom, quase sempre. Por vezes não foi, mas normalmente era quando descobria que perdera a coisa em relação à qual eu fazia a pergunta. E, como quase sempre eu a descobria, não precisava ser grosseiro. Para onde você disse que o Raistlin foi?
— Não disse — respondeu Palin, macambúzio. Dois cavaleiros das trevas, que percorriam a aia, miravam-nos com ar estranho. — Não mencione esse nome! Onde vamos?
— Oh, a nenhum lugar especial — respondeu Tas, evasivo. — É só uma estalagem pequenina que descobri. A gasosa de gengibre é excelente.
— Quê! — Palin puxou Tas para si. — Não temos tempo para parar e beber gasosa!
Os dois cavaleiros, que tinham abrandado o passo, mostravam grande interesse na conversa.
— Seu grande ladrão, isso é meu! — exclamou Palin, agarrando na primeira bolsa que viu a espreitar da algibeira de Tas. Para seu espanto, descobriu que realmente lhe pertencia. Era uma das que fora confiscada pelo Cavaleiro Cinzento.
— Deve ter deixado cair... — começou Tas.
Rindo, os dois cavaleiros abanaram a cabeça e prosseguiram a ronda. Palin arrastou o kender para uma viela.
— Não temos tempo de entrar na estalagem! Tenho que encontrar a Usha e levá-la à Grande Biblioteca hoje, para se encontrar com o Raistlin!
— E iremos — replicou Tas. — Só que seria melhor ir depois do anoitecer. O Grêmio dos Ladrões é muito rigoroso nessas coisas. Conheço uma bela estalagem, que fica próximo...
— O Grêmio dos Ladrões! — arquejou Palin. — Está querendo me dizer que a Usha é uma... uma ladra?
— Uma pena, não é? — respondeu Tasslehoff, em tom de comiseração. — Até eu fiquei chocado quando soube. A minha mãe costumava dizer que roubar é um crime muito feio, nunca hão de me apanhar rou...
— Tem certeza? — perguntou Palin, com nervosismo. — Talvez se enganou.
— Eu te conto como descobri, está bem? Poderíamos ir à tal estalagem bonita e...
Dois outros cavaleiros passaram pela viela e pararam para espreitar lá para dentro.
Percebendo que levantaria mais suspeitas ficando numa viela falando com um kender do que num lugar público, Palin cedeu, com relutância, a ir à estalagem. Puseram-se então a percorrer as ruas de Palanthas.
— Ora vejamos — ponderou Tas. — A primeira noite que cheguei a Palanthas deve ter sido quando o Raist... quer dizer, Você Sabe Quem... nos deixou sair do laboratório e o Dalamar ficou espantadíssimo e não muito satisfeito por nos ver até que ele e o Você Sabe Quem tiveram aquela conversazinha confidencial. Lembra-se?
— Sim, me lembro — respondeu Palin, tentando conter a impaciência. — Fale-me da Usha.
— Está bem. Vire aqui, por essa rua lateral. Bom, a primeira noite que passei na prisão, devido a um desentendimento com um latoeiro por causa de uma linda chaleira pequenina que assobiava e preparava-me para descobrir o que punham lá dentro para fazê-la assobiar daquela maneira, quando...
Palin franziu o cenho.
— ...e eu passei a noite na cadeia — rematou Tas. Com um suspiro, acrescentou: — Já não é o que costumava ser. Quem manda agora são os Cavaleiros de Takhisis e a princípio julguei que isso podia ser interessante, em especial se torturassem pessoas pendurando-as, pelos calcanhares, de cabeça para baixo e picando-as com ferros em brasa. Mas nada disso. Quero dizer que não torturam ninguém. Os cavaleiros são muito carrancudos e rigorosos e estão sempre nos mandando ficar em fila e ficar sossegados, e ficar sentados e ficar quietos e não nos mexermos e ficar quietos. E lá é raro se ver um kender. Mas, conto isso depois. Aqui está a estalagem. Por fora parece um bocado em ruínas e lá dentro não é muito melhor, mas a gasosa de gengibre é excelente.
A Taberna do Ganso e da Gansa erguia-se numa esquina, onde convergiam duas ruas laterais, formando a aresta de um triângulo. A taberna fora construída na ponta do triângulo e, por conseqüência, tinha a forma de uma fatia de torta. Situando-se próximo da loja de um ferreiro, a taberna fora adquirindo uma camada de fuligem, resultante da forja do homem, que enegrecia também as paredes de tijolo cobertas de hera ressequida. Houvera uma tentativa para lavar as janelas dotadas de pinázios, mas isso só contribuíra para espalhar a porcaria. As penas do ganso e da gansa pintados na tabuleta (com os pescoços entrelaçados), em tempos brancas, pareciam agora saídas de uma caixa de carvão.
— Tas, é sério, não tenho sede — insistiu Palin.
Nesse exato momento, saíram da taberna dois clientes, de aspecto grosseiro, limpando o rosto barbudo com as costas da mão e que, avistando o mago e o kender, lhes lançaram olhares carrancudos.
— Ah, é claro que tem! — disse Tas, e antes que Palin pudesse detê-lo, irrompeu pela porta da taberna.
Dando um suspiro exasperado, Palin seguiu-o.
— Kenders não! — O olhar do estalajadeiro, um homem excepcionalmente magro, com um rosto pálido e macilento, deteve-se em Tas.
— Já estamos de saída — disse Palin, estendendo a mão para agarrar Tas. Foi este que pegou na manga da veste de Palin, dizendo:
— A gasosa de gengibre daqui é boa mesmo! Já provei!
As poucas pessoas que se encontravam na taberna, viraram-se para olhar.
Vendo que Tas se mostrava irredutível e julgando melhor fazer-lhe a vontade, Palin sacou de uma bolsa com dinheiro.
— Arranje-nos uma mesa. Responsabilizo-me pelo kender.
Os olhos do estalajadeiro desviaram-se da bolsa de dinheiro para pousarem nas vestes brancas de Palin, que eram feitas de lã de ovelha finamente entrançada. De semblante carregado, o homem encolheu os ombros.
— Paga já e sente-se lá atrás — grunhiu o estalajadeiro. — Uma peça de aço suplementar pelo incômodo.
— Esta é boa — disse Tas, trotando pela taberna e escolhendo uma mesa perto da cozinha.
Era a pior mesa do lugar, mas para Palin servia, pois pretendia poder falar sem ninguém ouvindo. Com efeito, o retinir dos pratos, os gritos da cozinheira, o estrépito das panelas e o chiar dos foles que atiçavam o fogo abafavam a conversa, ao ponto de Palin considerar difícil ouvir a si mesmo.
— A comida é ruim e o vinho, pior — disse Tas alegremente. — Por isso não há Cavaleiros de Takhisis por perto — acrescentou, com uma piscadela de olho.
O estalajadeiro trouxe uma caneca de gasosa de gengibre e um copo de vinho. Bebendo um trago da gasosa, anunciou ao homem:
— Queremos comer.
— Não tenho fo... — Tas deferiu-lhe um pontapé por baixo da mesa, obrigando Palin a se calar.
— Traga-nos pão de cereais e feijão, com muita pimenta — ordenou Tas.
— Vou mandar a garota — murmurou o homem, afastando-se.
— Fale-me da Usha — pediu Palin, inclinando-se sobre a mesa, a fim de ser ouvido.
Tas relanceou demoradamente o olhar pela taberna. Depois, aquiescendo para si mesmo, embrenhou-se na narrativa.
— Onde eu estava? Ah, já sei! Na prisão. Bom, conheci um duende nas celas comuns e, como era ladrão e tudo isso, entretinha muito. Disse-me que o meu pica-fechaduras, que os cavaleiros me tiraram, era um dos mais bonitos que vira e que se eu quisesse vendê-lo, estava interessado em comprá-lo quando saísse, o que não aconteceria tão cedo, pois os cavaleiros tinham muito má opinião sobre a ladroagem e iam se esforçar ao máximo para limpar a cidade. Por isso não havia nenhum kender na prisão.
Tas deu um suspiro, fez uma pausa para tomar mais uma bebida e relanceou o olhar pela estalagem de novo. Nervoso, Palin se remexia, ansioso para ver como terminava a história — se é que terminava.
Limpando a espuma da boca, Tas prosseguiu:
— Bom, lembrei-me que o Dalamar me dissera para procurar a Usha. Não há pessoa mais indicada do que um ladrão para dar umas voltas pela cidade, de modo que perguntei ao duende se conhecia alguém parecido com a Usha e dei-lhe a descrição dela. O sujeito disse que sim, que parecia mesmo uma mulher que entrara para o Grêmio dos Ladrões. Estava se revelando uma aluna aplicada e teria sido na prática se os cavaleiros não atacassem e destruíssem tudo.
— Será que não se enganou? — perguntou Palin, esperançoso. — Talvez haja outra mulher parecida com a Usha...
Tas lançou-lhe um olhar de esguelha por cima da borda da caneca.
— Acho que não — disse Palin, com um suspiro. — Deve ser ela. Sei onde fica o Grêmio dos Ladrões. Eu e o Steel fomos lá. Mas, como nos aproximamos? Deve estar bem guardado. E precisa ser esta noite. Já te disse, prometi... a alguém... encontrar-me com ele na Grande Biblioteca.
— Bom, vai ser perigoso visitar o Grêmio dos Ladrões — respondeu Tas serenamente. — As pessoas dizem que os cavaleiros pretendem atear fogo àquilo.
— Mas, você disse... Usha! Ela...
— Ela está bem — tranquilizou-o Tas. — Pode perguntar ao duende. Está sentado ali, na mesa perto da janela.
Palin virou-se na cadeira para olhar.
O duende, que estivera a observá-los, ergueu a caneca numa saudação.
— Prazer em voltar a vê-lo, menino.
Palin cambaleou sobre a mesa.
— Aquele é... aquele é...
— O Doughan Martelo Vermelho — disse Tasslehoff, acenando com a mão. O duende de roupagens estravagantes levantou-se e encaminhou-se pesadamente para a mesa deles.
— Importa-se que eu me sente, menino? — perguntou, com uma piscada de olho. — Se não estou enganado, é Palin Majere.
Palin engoliu em seco.
— Eu... Eu... o conheço... É o...
— Sim, menino — respondeu Dougan com brandura. — Há olhos observando e ouvidos escutando. Se fosse você, mandaria vir qualquer coisa para mastigar. Parece um pouco pálido.
— Aqui está a criada! — disse Tas, sorrindo para Dougan que, retribuindo-lhe, cofiou a barba luxuriante.
A mulher, que transportava na mão um tabuleiro cheio de pesadas canecas, deteve-se quando se encaminhava para a cozinha. O cabelo tombava-lhe pela cara, úmido do suor e do vapor. Vestia roupas que pareciam de refugo — uma camisa de homem de mangas compridas atada à cintura, uma saia comprida de algodão, atada com nós na frente para não tropeçar. Depois de os olhar fugazmente com uma expressão enfastiada, olhou de novo para a porta da cozinha.
— Sim? Que é que querem? Apressem-se. Tenho louça para lavar.
— Usha! — exclamou Palin, quase sem forças para se levantar. Depois, fazendo um esforço para se afastar da mesa, acrescentou: — Usha, sou eu!
Usha quase deixou cair as canecas, quando ouviu a voz dele pronunciar o seu nome.
Palin ajudou-a a segurá-las, e as mãos de ambos tocaram-se por baixo do pesado tabuleiro.
— Palin! — exclamou ela, sem fôlego. — Pensei que tinha morrido! Nunca pensei vê-lo de novo! Onde foi? Que faz aqui?
— Foi o Tas quem me trouxe. É uma longa história. Não morri! Vim à sua procura.
Os dois ficaram a olhar um para o outro, segurando o tabuleiro com as canecas, indiferentes a tudo e a todos.
— Encontrou-me — respondeu Usha com meiguice.
— E nunca mais vou te deixar — prometeu Palin.
Cofiando os bigodes, Dougan olhou para Palin com ar especulativo.
— Vai uma aposta? — perguntou, fazendo um movimento com o cenho.
— Ei garota, comigo não há confianças com os clientes — disse o estalajadeiro, avançando para eles. — Vá trabalhar!
— Lamento — disse Palin, tirando o tabuleiro das mãos de Usha e entregando-o ao espantado estalajadeiro. — Mas ela vai embora.
— Quê? Palin, não posso ir embora! Eu... Bom, eu... — Usha mordeu o lábio, corou e rematou, pouco convincente: — Preciso deste emprego.
— Ela precisa do emprego! — imitou-a o estalajadeiro com ar de troça. Com um sorriso escarninho, atirou com estrépito o tabuleiro para cima da mesa. — Sim, vai precisar! Para poder ver quem anda com bolsas recheadas por aí e depois indicá-lo aos amigos ladrões! Como o duende ali!
— Tento na língua! — trovejou Dougan, apertando os punhos. — Quem está chamando de ladrão? Pela barba de Reorx, não admito!
Pegando numa cadeira, o duende espatifou-a em cima da cabeça e dos ombros do ferreiro, que se encontrava sentado atrás dele.
Este, já bêbedo, rugiu de fúria, levantou-se com gestos vacilantes e começou a esmurrar à toa. Falhou a pontaria e, em vez do duende, foi acertar no estalajadeiro.
O homem desequilibrou-se para trás, esfregando o maxilar. Tasslehoff pegou nas pontas do avental.
— Pipa de ossos, pipa de ossos! — cantarolou, saltitando em volta do atordoado estalajadeiro como um diabinho com penacho. — Tem medo de comer a comida que faz! Chamam-lhe o Bill Ptomaína!
O ferreiro investia agora a torto e a direito, o que incluía, pelo menos, metade dos clientes. A outra metade fizera um círculo, dando gritos de incentivo e fazendo apostas. Brandindo o atiçador, o estalajadeiro lançou-se na perseguição de Tas.
Virando-se para Palin e Usha, Dougan gritou:
— Mexa-se, rapazinho! E você também, garotinha! Eu trato do assunto!
Um cântaro de faiança acertou na nuca do duende, fazendo derramar a cerveja por cima do seu chapéu. A elegante pena ficou ensopada e o duende, todo encharcado.
— Ah, é assim? — gritou este, soltando perdigotos. Saltando para cima de uma cadeira, arregaçou as mangas e deu um murro certeiro no adversário. — Menino, é melhor se apressar!
— Por aqui — disse Usha, conduzindo Palin para a porta dos fundos. Lá fora, ouviram um assobio estrepitoso. Ao apelo, responderam o som de passos e uma gritaria de ordens. Os dois escolheram-se nas sombras.
— Os cavaleiros! — informou Palin, espiando por uma esquina da parede. — Aí vem uma patrulha!
— E o Dougan? — perguntou Usha com voz ansiosa. — Não podemos abandoná-lo! E o Tas?
— Estou aqui! — ouviu-se uma voz alegre.
Tasslehoff emergiu de trás do monte de adubo. Estava ligeiramente desgrenhado, com a cara suja, as bolsas pendendo de lado e com o penacho de lado.
— Estou ótimo — declarou.
— Aproximam-se quatro cavaleiros — disse Palin. — É melhor partirmos já antes que apareçam mais.
Usha deteve-se.
— O Dougan! — exclamou, com voz aflita. — Ele foi formidável para mim...
— Oh, ele vai ficar bem — tranquilizou-a Tas. — Afinal de contas, é um deus.
Usha fitou-o de olhos arregalados.
— O quê? — exclamou.
— É melhor nos apressarmos! — insistiu Palin, puxando Usha.
— É um deus — respondeu Tas, em tom desprendido, e saltitando ao lado deles. — É o Reorx. Eu sei porque ando muito com os deuses. Eu e o Paladino somos grandes amigos muito íntimos. A Rainha das Trevas simpatizou tanto comigo que queria que eu ficasse no Abismo com ela. E agora o Reorx, que na realidade é o Dougan. Tivemos uma conversinha interessante, antes de alguém lhe acertar na nuca com uma caçarola.
— Sabe do que ele está falando? — perguntou Usha a Palin, baixando a voz.
— Depois te explico — sussurrou este.
— Para onde vamos agora? — perguntou Tas, excitado.
— Para a Grande Biblioteca.
— Ah! O Astinus! — respondeu Tas, com ar de triunfo. — Estão vendo? Quando eu estive no Abismo... da segunda vez, não da primeira... finalmente percebi de onde o conhecia. Também me conhece.
Do interior da estalagem, vieram-lhes gritos, guinchos e o estrépito do aço contra o ferro.
Chegando ao fim da viela, Palin aventurou-se pela rua afora. Usha deteve-o.
— Onde vai? — perguntou. — Não pode andar assim sem mais nem menos!
— Minha querida — respondeu-lhe Palin em tom gentil mas firme —, estamos com pressa. Não se preocupe. Se os cavaleiros nos avistarem, não nos relacionarão com a confusão. Hão de julgar que somos cidadãos comuns dando o seu passeio noturno.
— Exatamente — contrapôs Usha. — Os cidadãos comuns já não passeiam pelas ruas à noite. Olhe à sua volta. Vê alguém nas ruas?
Palin sobressaltou-se ao verificar que Usha tinha razão. Excetuando os cavaleiros, as ruas encontravam-se desertas.
— Leia seus documentos de identificação — disse Usha com brandura. — Acontece haver certas pessoas que têm permissão para sair à noite. Se for assim, está carimbado nos teus documentos.
Palin fitou-a, de olhos arregalados.
— Que documentos de identificação? Do que está falando?
— Eu não preciso de identificação! — afirmou Tas. — Sei quem eu sou. A noite passada disse isso na cadeia.
— Todo mundo em Palanthas precisa ter documentos. — Usha olhou um e outro com ar consternado. — Até os visitantes. Os cavaleiros entregam-nos junto ao portão. Tem certeza de que não te entregaram nenhum documento? Como entrou na cidade sem eles?
— Bom — começou Tas. — O Dalamar disse qualquer coisa parecida com uugle, bugie, bugie e...
— Não interessa! — interrompeu-o Palin. — Digamos que entramos na cidade por meios muito pouco convencionais. E não, nenhum de nós possui documentos. Não compreendo. Quando começou tudo isto?
A porta da estalagem se abriu. Os cavaleiros obrigaram vários homens a sair — incluindo o ferreiro e o estalajadeiro, que suplicava para não lhe fecharem o negócio. Saíram mais quatro cavaleiros, segurando pelas mãos e pelos pés o duende inconsciente. Os clientes restantes desapareceram na escuridão.
Tas, Palin e Usha mantiveram-se imóveis até os cavaleiros se afastarem. Dentro da estalagem, as tochas ainda ardiam. Com ar receoso, a cozinheira assomou à porta, espreitou para fora e, arrancando o avental, correu para casa.
— Está vendo — disse Usha. — Todo mundo anda aterrorizado. Quando os cavaleiros ocuparam a cidade, obrigaram todas as pessoas de Palanthas a apresentar-se na casa do suserano — que é agora o quartel-general dos cavaleiros — para se recensearem. Obrigaram-nos a dizer onde vivíamos, quem eram os nossos pais, há quanto tempo nos encontrávamos na cidade. Se as pessoas dessem informações erradas, eram levadas... ninguém sabe para onde. Todas as famílias dos Cavaleiros da Solamnia desapareceram. As casas deles foram ocupadas... Chiu!
Os três sumiram na viela. Passou uma patrulha de três cavaleiros, marchando em cadência e os seus passos pesados ressoaram nas pedras.
— Os cavaleiros impuseram o recolher obrigatório — prosseguiu Usha baixinho, depois dos cavaleiros passarem. — É exigido a todos os cidadãos que, a partir da meia-noite, não saiam de casa. A fim de reforçar o recolher obrigatório e “proteger os cidadãos bem comportados dos ataques dos larápios”, os cavaleiros decretaram que não podíamos continuar a acender os lampiões das ruas.
— Os lampiões — murmurou Palin. — Agora percebo a diferença! Mesmo à noite, Palanthas costumava estar iluminada como se fosse dia.
— Agora ninguém mais sai. A taberna está tendo prejuízos. Só os locais paravam para beber um trago e, se calhar, agora nem isso fazem. Ninguém deseja esbarrar com as patrulhas.
Usha esboçou um gesto na direção da rua por onde os cavaleiros tinham desaparecido.
— Mesmo que não passe de um inocente transeunte, levam-no para um dos quartéis-generais dos cavaleiros e o submetem a um interrogatório que nunca mais acaba. Pedem para ver os documentos. Querem saber para onde vamos e porquê. Depois, se as respostas os satisfizerem e se os papéis estiverem “em ordem”, escoltam-nos até o nosso destino. Se nos apanharem mentindo, que os deuses nos valham. Palin, e se te apanharem sem documentos, na companhia de um kender...
Estremecendo, Usha encolheu os ombros.
— Já não permitem a presença de kenders na cidade — acrescentou Tas. — Despejaram-me esta manhã, juntamente com mais alguns. É claro que voltei logo, mas já não é tão fácil como antes. A maior parte das velhas fendas e buracos foi reparada. Mas deixaram alguns esquecidos...
— Não podemos continuar aqui escondidos na viela — murmurou Palin. — À meia-noite tenho de me encontrar na biblioteca. Precisamos arriscar e seguir pelas ruas. Já estamos atrasados.
— E o teu anel mágico? — perguntou Tas, ansioso. — Podia transportar-nos num abrir e fechar de olhos. Adoro que me joguem encantamentos.
— O anel poderia transportar-me — respondeu Palin — mas não a você nem à Usha. Temos que partir agora, enquanto está tudo calmo, antes que os cavaleiros voltem.
Usha manteve-se por uns momentos em silêncio e depois disse:
— Há outra maneira, mais segura, mas não vai gostar.
— Porquê? — perguntou Palin, desanimado. — O que é?
Sacudindo o cabelo prateado, Usha respondeu:
— É conhecido por Trilho dos Ladrões. Pronto... eu disse que não ia gostar.
Palin vislumbrou-lhe o rosto sombrio, mesmo banhado pelo tênue clarão esbranquiçado de Solinari. Sem o encarar, a jovem retirou a mão, que estivera presa na do mago.
— Usha — começou Palin em tom desajeitado.
— Estava com fome — acrescentou ela, com ar de desafio. — Não tinha para onde ir nem onde dormir. Dougan Martelo Vermelho, o duende, encontrou-me e foi simpático comigo. Levou-me para o Grêmio dos Ladrões. Eles não fizeram perguntas. — Usha lançou um olhar de censura a Palin. — Eles me aceitaram logo, me fizeram sentir em casa. Me deram um lugar para dormir e me arranjaram trabalho, o que é muito mais do que algumas pessoas fizeram por mim.
Palin sentia-se confuso. De repente, ele passava a ser o mau da fita e não tinha bem certeza de como isso acontecera.
— Desculpe — disse, em tom pouco convincente —, mas eu...
— Nunca roubei nada! — prosseguiu Usha com mais ardor e procurando conter as lágrimas. — Nem uma única coisa! Os ladrões só estavam me ensinando. O Dougan disse que eu era boa nisso. Que tinha jeito mesmo.
— Usha, eu compreendo. Chiu! Nem mais uma palavra! — Pegou-lhe as mãos e apertou-as com força.
Ela olhou-o nos olhos e, por um instante, o mago perdeu a noção de onde estava e do que fazia. Os lábios de ambos encontraram-se e sentiu-a nos braços. Na escuridão, estreitaram-se um contra o outro, sentiram-se seguros nos braços um do outro, como se em Krynn não existisse mais ninguém.
Com lentidão e relutância, Palin afastou Usha.
— Não posso permitir que isso aconteça entre nós — disse, com firmeza. — É a filha do meu tio... minha prima-irmã!
— Palin... — respondeu Usha, pouco à vontade. — E se eu te dissesse que não era, bom, que na realidade não era... — Calou-se e voltou a tentar. — Que não te contei a verdade... — De novo guardou silêncio.
— A verdade acerca de quê? — O mago sorriu-lhe, tentando aparentar boa disposição. — De ser ladra? Mas já contou. E compreendo.
— Não, não é isso — replicou ela, com um suspiro. — Ora, não interessa. Não era importante.
Palin sentiu que lhe puxavam a manga.
— Peço desculpas — disse Tas em tom polido —, mas esta viela está se tornando horrivelmente enfadonha, e a que horas disse que tínhamos de estar na biblioteca?
— O Tas tem razão. Precisamos ir. Vamos pelo teu caminho.
— Então, sigam-me. — Usha afastou-se da rua e adentrou-se pela viela escura até chegarem a um beco.
Havia prédios altos que ocultavam o luar. A luz da estalagem deserta não iluminava esta parte da viela. No escuro, Usha tropeçou em algo. Tas pisou num gato, que se assanhou e fugiu. Palin bateu com a canela num engradado.
— Precisamos de luz — murmurou Usha.
— É seguro?
A jovem voltou a olhar com nervosismo para a viela.
— Não podemos demorar.
Palin disse em voz baixa “Shirak”, e o Bastão de Magius começou a emitir uma luz fria e pálida. Segurando-o ao alto, o mago só viu muros.
— Usha, como é que...
— Cale-se — murmurou ela, ajoelhando-se. — Ajude-me a retirar este gradeado!
— Os esgotos! — Num instante, Tas encontrava-se de quatro puxando a grade, todo excitado. — Vamos pelos esgotos! Já ouvi falar dos esgotos de Palanthas. Parece que são muito interessantes, mas na verdade, nunca desci por nenhum. Palin, não é uma maravilha?
Palin pensou em várias palavras para descrever o que se passava nos esgotos daquela cidade imensa e populosa. Entre elas, não se encontrava maravilha. Quando Usha e Tas tinham acabado de desviar o pesado gradeamento para o lado, agachou-se e perguntou:
— Pode ser um bom esconderijo mas, como nos levará à biblioteca?... Argh!
Um cheiro terrível espalhou-se pela escuridão, um fedor tão espesso que parecia possuir contornos e vida. Palin calou-se e tapou o nariz com a mão. Tasslehoff, que olhava boquiaberto para dentro do buraco, deu um salto para trás, como que atingido no rosto.
— Argh! Blergh! Urgh! — Repugnado, o kender franziu o nariz. — Mas é... é...
— Indescritível — observou Palin, macambúzio.
— Tomem, ponham isto no nariz e na boca. — Usha estendeu a Palin um trapo que tinha pendurado na cinta. — Logo se habitua.
O cheiro do trapo era só um nadinha melhor do que o dos esgotos. Palin segurou-o, mas hesitou.
— Usha...
A jovem começara a enrolar a saia e prendera-a ao cinto.
— O sistema de esgotos pode nos levar a qualquer local de Palanthas, quem sabe até mesmo à Torre da Feitiçaria Suprema. Desconheço. O trajeto não vai ser muito agradável, mas...
— É melhor do que sermos apanhados pelos cavaleiros das trevas — observou Tas, atando um lenço (um de Palin) em volta da boca e do nariz. — E acho que três cavaleiros se dirigem para cá.
Alarmado, Palin virou-se. No extremo da viela, destacaram-se várias silhuetas, e o luar foi incidir-lhes nas armaduras negras. Baixou rapidamente a luz do bastão. Usha, com outro trapo atado na boca, já penetrara na abertura dos esgotos e descia por umas escadas de ferro, seguida de Tas. Palin ajustou o pano em volta do nariz e da boca e, inspirando fundo, tentando conter a respiração, agachou-se à beira da abertura.
Os seus dedos fecharam-se em torno do Bastão de Magius. Murmurou umas palavras mágicas e, no momento seguinte, flutuava através da escuridão. Tocou no fundo dos esgotos mais ou menos no mesmo momento em que Usha chegava ao fim das escadas.
Palin segurou-a, para evitar que tombasse no esterco. Olhando-o atônita, ela perguntou:
— Como é que...
— Magia — respondeu ele.
Ouviram Tas descer ruidosamente as escadas de ferro.
— Acho que os cavaleiros não entrarão na viela, mas se o fizerem, descobrirão que o gradeamento dos esgotos foi retirado. Ficarão sabendo que alguém desceu — comunicou Tas.
— Temos de sair deste lugar — disse Usha. — Por aqui...
Pegando na mão de Palin, arrastou-o para a escuridão. Tas, que batera no fundo, compôs as bolsas e correu atrás deles.
— Shirak — disse Palin, e, estupefato, olhou ao redor.
Ninguém sabia ao certo a origem do labiríntico sistema de esgotos de Palanthas. Alguns afirmavam que os esgotos tinham sido concebidos pelos construtores originais da Cidade Velha e edificados simultaneamente com a própria cidade. Mas corriam outras histórias, segundo as quais o sistema de esgotos já existia muito antes da fundação de Palanthas, que fora construído como cidade, por uma nação de duendes há muito caídos no esquecimento. Algumas versões da lenda mantinham que os duendes tinham sido expulsos dos túneis subterrâneos por humanos que, reconhecendo o enorme potencial da localização, planejaram desenvolver sobre os mesmos uma cidade.
Estupefato, Palin reparou que o sistema de esgotos se assemelhava, na verdade, a uma pequena cidade. As paredes eram feitas de pedra e escoradas com arcos de pedra. O chão, liso e pavimentado, corria reto. Nas paredes viam-se velhas palmatórias de ferro e a zona chamuscada em volta, indicava que outrora tinham servido de sustentáculo para tochas.
Os tetos eram baixos, só Tas conseguia caminhar ereto. Palin e Usha viram-se obrigados a vergar-se até quase à cintura. O piso era irregular e o pavimento por baixo dos pés encontrava-se úmido e escorregadio, ocasionalmente obstruído por montes de lixo em decomposição. Ao avançarem, provocavam a debandada de ratazanas. Caminhavam com toda a precaução, pois nenhum pretendia escorregar e cair. A luz do bastão guiava-os. Parecia que o bastão brilhava com mais força à medida que a escuridão se adensava.
O túnel para onde desceram, estendia-se diretamente por sob a viela, e quem sabe se não acompanhavam os passos dos cavaleiros. Enquanto Palin se deslocou em linha reta, teve alguma noção de onde se encontrava em relação à cidade, em cima. Mas, foi então que o túnel começou a formar uma série de curvas ziguezagueantes, até desembocar numa interseção de três outros túneis, todos eles abrindo-se para rumos diferentes. Ficou sem saber por qual havia de entrar.
— Desisto! — exclamou Palin. As costas doíam-lhe de andar curvado, o cheiro e a percepção da sua origem causavam-lhe náuseas. Nunca tivera em grande conta a pureza do ar de Palanthas, mas naquele momento daria tudo por poder respirá-lo um pouco. — Como haveremos de saber onde nos encontramos?
— Ouviram alguma coisa? — perguntou Tas, atrás deles, espreitando. — Acho que ouvi qualquer... coisa.
— Duendes dos esgotos — respondeu Usha com voz abafada, devido ao trapo. — Aponte a luz para ali — indicou a Palin, assinalando a parede superior de um dos túneis que se bifurcavam.
A parede encontrava-se decorada com marcas de dois tipos. Havia uma série obviamente muito antiga. As letras eram constituídas por azulejos multicoloridos que formavam um mosaico. Muitos dos azulejos tinham desaparecido, deixando buracos no padrão, outros encontravam-se cobertos de bolor. Os caracteres pareciam feitos por duendes.
Por baixo dos mosaicos antigos, viam-se marcas mais recentes. Estas não passavam de desenhos, toscamente garatujados nas paredes com algum instrumento pontiagudo, possivelmente a lâmina de uma faca. Lembravam desenhos de blocos e círculos com setas por baixo, feitos por crianças.
Usha examinou-os atentamente.
— Continuo a dizer que ouvi qualquer coisa — sussurrou Tas. — Passos... e talvez vozes.
— Ratos. Por aqui — disse Usha, dirigindo-se para o túnel central, que se curvava ligeiramente para a esquerda.
— Como sabe que é este? — perguntou Palin, hesitante. Ele também achara ter ouvido algo. Olhou por cima do ombro e perscrutou a escuridão nauseabunda.
— Aquela marca — respondeu Usha, colocando o dedo num dos desenhos da parede. — É a Grande Biblioteca.
Palin virou-se e olhou. Tudo o que viu foi um triângulo, com uma série de linhas traçadas por baixo. Abanou a cabeça.
— É o telhado — disse Usha, indicando o triângulo —, e aquelas linhas são as colunas. Que se passa? Não confia em mim?
A jovem largou-lhe a mão. Palin tentou segurá-la de novo, mas Usha recusou-se.
— Claro que confio. Só que... é tão estranho — admitiu ele. — Quem fez esses desenhos, ou o quê?
Usha recusou-se a responder.
— Ladrões, aposto! — exclamou Tas excitadíssimo, analisando as garatujas. — Fazem estes desenhos para poderem encontrar o caminho de volta. Olhe, esta é a casa do suserano... com os seus cinco espigões. E aquele triângulo alto e grande, com o pequeno triângulo no topo... aposto que é a Torre da Feitiçaria Suprema. E a cúpula redonda com as cinco coisas pontiagudas... o Templo de Paladino. Que engraçado! E as setas indicam que caminho devemos tomar. Usha, há mais?
— Pode encontrá-las em cada intersecção. Vem ou não? — acrescentou, lançando a Palin um olhar altaneiro. — Era você quem estava com pressa.
— Eu vou na frente! — anunciou Tas. — Talvez descubra mais desenhos.
Dito isto, irrompeu pela escuridão. Depois de tapar de novo a boca com o trapo, Usha dispôs-se a ir no seu encalço.
Palin segurou-a, impedindo-a de avançar.
Usha debateu-se e, atirando a cabeça para trás, olhou-o com ar sério, como se mais uma vez quisesse dizer algo, embora se sentisse relutante, insegura.
— Usha — disse Palin. — Que foi?
Os olhos dela cintilaram e, baixando o trapo, murmurou:
— Palin, eu...
— Onde vocês dois se meteram? — cantarolou Tasslehoff, e o eco fantasmagórico da sua voz atravessou o túnel.
— Eu... — Houve uma mudança súbita e o eco transformou-se num grito esganiçado. — Fuja, Palin! Fuja... Fuja...!
E seguiu-se o silêncio.
— Tas? — chamou Palin.
Ouviu o que lhe pareceu uma rixa e a voz profunda de um homem a praguejar. Ia avançar quando algo mais escuro do que as trevas se abateu sobre ele e o agarrou pela garganta.
— Cale sua boca! É um mago — grunhiu uma voz, e Palin sentiu uma mão calosa tapar-lhe a boca.
Enquanto se debatia, conseguiu não largar o bastão, cuja luz se desvaneceu. Mas, ao que parece, o homem que o atacara trazia uma luz qualquer, pois um clarão amarelado derramou-se pela escuridão, sendo logo apagado por ordem da voz rude.
— Quietos! Todos vocês! — gritou Usha. — Jack Nove Dedos, será que não me conhece?
Ouviu-se um som que lembrava o raspar de ferro e voltou a bruxulear um clarão amarelado, vindo do coto de uma vela, que incidiu bem no rosto de Usha. Um vulto sombrio segurava-a pelos braços.
— Por Hiddukel, é a garota do Dougan! — grunhiu a voz rude. — Largue-a. Allen Cicatriz, o que você tem aí?
— Um kender— respondeu o homem, macambúzio. — Esfaqueou-me — acrescentou, melindrado, mostrando um golpe na mão que sangrava.
A luz iluminou um homem grandalhão, com a cara desfigurada por uma longa cicatriz. Debaixo do braço enorme, trazia Tasslehoff, que estrebuchava e dava pontapés. O homem enfiara um lenço na boca de Tas mas, a mordaça não impediu o kender de tecer comentários livremente, se bem que de um modo algo incoerente, a respeito das feições, família e odor corporal do captor.
Ouviram-se da escuridão, risos abafados que ecoaram pelos túneis.
— Kender? Bah! Que mais falta? — disse Jack Nove Dedos, cuspindo para o esterco. — Não suporto esses ladrõezinhos.
— É um amigo meu! — protestou Usha. — E o mago também! Sally Dale, largue-me!
Usha libertou-se com destreza das mãos do captor — uma mulher de meia-idade que vestia uma túnica vermelha curta e calças de couro. Esta olhou para Jack Nove Dedos, à espera de ordens.
O homem aquiesceu com a cabeça, acenou com a mão, e a mulher retrocedeu.
— Solte os meus amigos também — insistiu Usha. Jack olhou para Palin com ar circunspecto.
— Largue o pica-pergaminhos. Mas tire-lhe o bastão e os alforjes. E você, Mago, mantenha as mãos à vista e a boca fechada. Sally Dale, ponha esses ouvidos para funcionar. Se disser uma palavra que seja de magia, amarre-o.
A mulher aquiesceu em silêncio e manteve-se de olho em Palin. Quem segurava a lanterna, conhecida por lanterna “escura”, por incorporar um painel de ferro que, quando fechado, bloqueava por completo a luz, era um duende de barba branca. Este, a fez incidir diretamente nos olhos de Palin, quase ofuscando-o.
— O que faz aqui embaixo, garota? — perguntou Jack Nove Dedos, franzindo o cenho. Era um homem de constituição magra, esperto e ágil, todo vestido de couro. A ausência do anelar da mão esquerda, granjeara-lhe o nome. Tinha cabelo longo e negro e barba da mesma cor e uma compleição trigueira. — Não tem marcado nenhum roubo para esta noite, pelo menos nenhum combinado com o Grêmio — acrescentou, proferindo a última frase em tom sinistro. — Não está pensar em se tornar independente, não é, garota?
— Jack Nove Dedos, não ando no “negócio” — respondeu Usha, corando e olhando de esguelha para Palin. — O meu amigo mago tem que estar na biblioteca por volta da meia-noite. Como vê, é um Veste Branca. Não traz documentos.
— Não diga mais nada, Usha — advertiu-a Palin. — Provavelmente nos entregarão aos cavaleiros das trevas, em particular se lhes pagarem pelo incômodo.
— Não, não entregam, Senhor Mago — ouviu-se uma voz, vinda da escuridão.
Quem falara, avançou para a luz. Era uma mulher jovem, com o rosto parcialmente coberto por um xale, que usava na cabeça. Envergava um vestido preto de viúva e trazia um bebê nos braços.
— Não os entregarão aos cavaleiros — disse, com brandura. — Salvaram-me deles, a mim e ao meu bebê. O meu marido era um Cavaleiro da Solamnia. Morreu na Torre do Sumo Sacerdócio.
Estreitou o filho, que dormia um sono inquieto, e prosseguiu:
— Os cavaleiros das trevas apareceram ontem à minha porta e disseram-me para estar pronta para sair nesse dia, que me acompanhariam até a um “lugar de internamento”. Fiquei assustada. Ouvira boatos a respeito desses lugares. Não tinha para onde ir, ninguém que me acudisse. E foi quando, à noite, apareceu ele — acenou com a cabeça em direção a Nove Dedos — e se ofereceu para me levar a um local onde ficasse em segurança. Para mim já nada peço — acrescentou a mulher, derramando lágrimas sobre a roupinha do bebê. — A minha vida terminou com a morte do meu marido. Mas o meu filho...
Calou-se e escondeu o rosto no cobertor da criança. Sally Dale cingiu-a nos braços e reconfortou-a, tal como faz uma mãe com a filha. Tasslehoff interrompera as imprecações incoerentes e fungava, acompanhado nesta manifestação pelo grandalhão que segurava o kender.
Palin virou-se para Nove-Dedos.
— É verdade? Vai levá-la para um local onde ficará em segurança?
— O que fazemos não é da sua conta — grunhiu Jack e uma careta iluminou-lhe o rosto. — Coloquemos as coisas nestes termos... vai ser uma bela peça que pregamos naqueles demônios de armadura negra quando baterem à porta da dona hoje e descobrirem que o pássaro voou.
— Talvez o tenha julgado mal — respondeu Palin, em tom rígido. — Se foi assim, lamento.
Soltando uma gargalhada, Nove-Dedos inclinou-se para ele.
— Mago, não comece com idéias cor-de-rosa a nosso respeito. Se eu te encontrasse na viela, no escuro, com uma bolsa recheada na cinta, quem sabe se não cortaria sua garganta por causa do dinheiro. O que fazemos não se compadece com nenhum homem. Fazemos como oposição contra aqueles bastardos de armadura preta que nos desgraçaram a vida com as suas patrulhas e os seus recolheres obrigatórios. Planejamos fazer tudo ao nosso alcance para transformar-lhes a vida num inferno enquanto permanecerem na cidade. Aos que sobreviverem.
Nove-Dedos acenou com uma piscadela, olhou de esguelha e passou o dedo pela garganta. Depois, encarando os três, disse carrancudo:
— Como as coisas estão, interrogo-me se não seria melhor garantir que vocês não divulgarão os nossos planos. A garota fez mal em trazê-los aqui para baixo, revelar os nossos segredos.
— O que quer que faça, é melhor que seja depressa — disse Sally Dale em tom crispado. — O barco que vai transportar dona pretende zarpar com a maré. Se pretende silenciar esta gente, apresse-se, para partirmos.
— Jack, deixe-nos prosseguir o caminho em paz — suplicou Usha. — Respondo pelos meus amigos. Não dirão uma palavra.
— Os meus irmãos eram Cavaleiros da Solamnia — acrescentou Palin. — Juro pelas suas almas que repousam no túmulo que nada direi que ponha em perigo esta dama.
Jack continuava a olhar para Palin.
— Um Veste Branca — disse. — Bom, manterá a sua palavra. Parece que ficamos com o coração mole por estas bandas. Mexen-se. E veja se segue os símbolos, garota. Os que se perdem aqui, acabam como alimento para as ratazanas.
Fez um gesto com a mão. O grandalhão da cicatriz largou Tasslehoff, que tombou de nariz nos excrementos. O duende com a lanterna iluminou o caminho. Sally Dale puxou a mulher e a criança para a escuridão. Os outros marcharam atrás dela e vários segundos depois, os ladrões desapareceram tão rápida e silenciosamente como tinham surgido.
Palin manteve-se nas trevas, procurando acalmar as palpitações do coração e readquirir a compostura. Sentia-se muito confuso. O seu conceito de um mundo ordenado e equilibrado desfizera-se em cacos. Lembrou-se do pai dizer que algumas pessoas aplaudiam os Cavaleiros das Trevas por instaurarem a lei e a ordem num território conturbado. E ocorreram-lhe, como num sonho, as palavras amargas do deus Paladino: “A paz da prisão.”
— Já não há perigo, pode reativar o bastão — disse Usha com brandura.
— Shirak — pronunciou ele, e o bastão iluminou-se. Perturbado, olhou para Usha. — Parece conhecer bem aquela gente, e eles a você.
Usha empalideceu e retesou os lábios.
— Conheço-os sim. Ajudaram-me. Já te expliquei isso. Será que estou sendo julgada?
Palin deu um suspiro. Mais uma vez, parecia ser ele o mau da fita. Decidiu mudar de assunto.
— Há pouco ia-me dizer alguma coisa. O que é?
Usha recusou-se a olhar para ele.
— Não é importante — respondeu. E afastando-se, inclinou-se para ajudar Tas a se levantar.
— Você está bem? — perguntou, solícita.
Tossindo e cuspindo, o kender levantou-se e limpou o esterco do rosto.
— Usha, ouviu do que aquele homem me chamou? “Ladrãozinho”! — A indignação obrigava Tas a cuspir. — Como se atreve? E ficou com a minha faca! Só que não era a minha faca, reparei que era a sua, Palin. E agora, aquele ladrão também vai dar pela falta da faca dele. A tenho bem aqui. Engraçado, talvez a tenha deixado cair...
— Chegamos — anunciou Usha, com voz suave. Encontrava-se junto de umas escadas que desembocavam em cima. A luz do bastão iluminou um gradeamento, sobre as cabeças deles.
— Vai dar aonde? — perguntou Palin.
— Infelizmente, bem no meio da rua e defronte da biblioteca — respondeu Usha. — Não é necessário dizer que esta saída não é muito utilizada. — A sua voz era fria, como se Palin fosse um estranho.
— Vou lá ver — ofereceu-se Tasslehoff. Trepando desajeitadamente pelas escadas, ergueu um pouquinho a grade, espiou e deixou-a tombar com um estrépito que podia ser ouvido em toda a Ergoth do Norte.
— Patrulha! — avisou, descendo atabalhoadamente as escadas.
— Dulak! — exclamou Palin, apagando a luz do bastão.
Por cima deles ouviram o som de botas e um dos cavaleiros parou bem em cima do gradeamento. Àquele som terrível, Usha aproximou-se de Palin. A sua mão encontrou a ele e os dedos se uniram de leve.
Os cavaleiros se afastaram- marchando e todos inspiraram fundo.
— Desculpe — murmurou ele.
— Desculpe — começou ela. Sorrindo, calaram-se.
— Vou outra vez lá em cima. — Tas preparava-se para subir, quando Palin o deteve.
Postado debaixo da escada, olhava fixamente para o gradeamento metálico que tapava a entrada para os esgotos. O mesmo não se encontrava oculto, como o da viela. Situava-se numa rua concorrida do centro da cidade. Teriam que repô-lo, caso contrário, os cavaleiros podiam ficar desconfiados e iniciar uma busca nos esgotos. Encontrariam Palin e, possivelmente, Jack Nove-Dedos, assim como a mulher que este pretendia levar para um local seguro.
— Temos que nos apressar! — lembrou-lhe Usha. Na escuridão, sentia o corpo da jovem contra o seu. — As patrulhas fazem a ronda de quarto em quarto de hora.
— Estou tentando — respondeu Palin, considerando difícil raciocinar sentindo-a tão próximo e a mão dela na sua. As palavras mágicas adequadas ocorriam-lhe à mente como um vislumbre e desapareciam. — Não está funcionando. Fique aqui.
Pegando Usha pelos ombros, colocou-a diretamente por baixo das escadas.
— Tas, fique perto da Usha. Quando eu disser, começam a subir.
— Que vais fazer? — inquiriu Tas, todo excitado. — Vai fazer magia! Posso ir contigo e ver?
— Você fica aqui — repetiu Palin, que já tinha distrações de sobra. Atrapalhado com o bastão, subiu desajeitadamente as escadas. Ergueu por um instante o gradeamento e espreitou.
Bem alto no céu, destacava-se o fulgor prateado de Solinari, que realçava o contorno dos objetos contra o fundo negro. A rua encontrava-se deserta.
Retirando uma pulseira de couro que usava no pulso direito, fez com que lhe ocorressem à mente as palavras do encantamento. Precisava de enunciar adequadamente cada palavra, ao mesmo tempo que esboçava o movimento correto com a mão e utilizava o componente de encantamento da maneira prescrita. De baixo, vieram-lhe os sussurros de Tas e Usha e esforçou-se por ignorá-los.
Fechou os olhos e concentrou-se. Já não se encontrava nos esgotos de Palanthas. Já não fugia da ameaça dos cavaleiros. Já não tinha pressa. Já não sentia ao seu lado a mulher que desejava possuir mesmo à custa da própria vida. Todo ele agora era magia.
Palin desatou a presilha de couro e, com gestos lentos, começou a movê-la em círculos, diretamente por baixo da grade. Ao mesmo tempo, pronunciou as palavras mágicas, imprimindo a cada sílaba a ênfase adequada. E, enquanto falava, aguardou, tenso, nervoso e em ânsia, o afluxo de calor que, concentrando-se no coração, irradiaria por todo o corpo. O calor significava que a magia se apossara dele e que, através dele, fora desencadeada. O calor provocava uma paixão descontrolada, era inebriante, e só uns poucos eleitos o sentiam.
Sentiu-o crescer e experimentou o júbilo intenso, o arroubo do poder a liquefazer-se no sangue. A magia cintilava e dançava dentro de si, como as bolhinhas de vinho, subindo à tona do seu ser. A fórmula mágica era simples, qualquer mago de baixa categoria conseguia executá-la. Contudo, até o encantamento mais simples implicava esta recompensa, cobrava este preço, Depois de pronunciadas as palavras, as bolhas rebentaram. O calor foi se desvanecendo, dando lugar ao cansaço, à depressão e ao desejo ardente de experimentar de novo a sensação.
Palin exultava agora com a sua arte. Fazendo deslocar a pulseira sob o gradeamento, enunciou as palavras. A grade começou a elevar-se devagarinho no ar. Palin controlava a levitação mediante movimentos com a mão. Sempre que executava um círculo completo, a grade movia-se mais um milímetro. Quando ficou a uma altura que permitia a passagem de uma pessoa, Palin interrompeu os movimentos. A grade ficou suspensa no ar, imóvel.
— Tas! Usha! — chamou baixinho. — Agora! Depressa!
Tas subiu atabalhoadamente, fazendo balançar os alforjes à sua volta. Usha precedeu-o. Palin rastejou através da abertura, o que não constituía tarefa fácil, atendendo a que se via obrigado a manter o tempo todo o fio de couro sob o gradeamento. Na aia, agachou-se, com a mão por baixo da grade, enquanto Tas saía precipitadamente do esgoto.
— Fique de vigia! — ordenou Palin ao kender, que atravessou a rua correndo e se agachou atrás de um arbusto.
Usha saiu a seguir, desembaraçando-se com agilidade.
Ao vê-la, Tas acenou-lhe com a mão e a jovem correu a juntar-se a ele.
Palin começou a baixar o aro de couro, com movimentos lentos e em espiral. Foi quando ouviu passos, a marcharem em cadência.
Não se atreveu a se apressar. Se retirasse a pulseira agora, o gradeamento cairia na rua, com um estrépito ensurdecedor. Os passos ressoavam à distância, mas aproximavam-se. Palin tentou ser o mais rápido possível mas os seus gestos pareciam de uma lentidão exasperante. O som das botas tornava-se cada vez mais audível.
— Palin — murmurou Tas em voz alta. — Está ouvindo?...
— Cale-se! — ciciou Palin. A grade encontrava-se quase no lugar, quase lhe roçava a mão agora.
Confrontava-se com a parte mais difícil. Retirado o laço de couro, a grade ficava livre do encantamento e começaria a tombar. Tinha de “apanhá-la”, segurá-la e reativar o encantamento, tudo isto no espaço de segundos. Com cautela, retirou a mão de baixo e, fazendo um gesto rápido, virou o laço ao contrário, segurou-o para baixo e deslocou a mão para cima da grade.
Os passos ouviam-se cada vez mais nítidos, possivelmente a apenas meio quarteirão de distância. Os edifícios ainda os cobriam da vista dos cavaleiros, mas quando surgissem na rua defronte da biblioteca, os avistariam, uma sombra escura a perfilar-se contra o luar.
Ouviu um roçar nos arbustos e Tas murmurando, em tom ríspido:
— Não, Usha, espere aqui. É muito perigoso.
Palin repôs a grade no lugar. O calor esvaiu-se do sangue, deixando-o repentinamente fraco, gelado e vazio. Por um breve instante, parecia ser inútil a corrida, uma perda de tempo. Que seria melhor permanecer ali e deixar que os cavaleiros o capturassem.
Palin estava acostumado a esses sentimentos de desespero e de letargia que sobrevinham depois da magia. Sabia que não devia sucumbir. Os cavaleiros encontravam-se muito próximo agora. Mergulhou na sombra do arbusto no mesmo instante em que estes se tornaram visíveis.
O luar reluzia nas suas armaduras negras. Passaram marchando, silenciosos, eficientes. Escondidos no arbusto, os três mantiveram-se imóveis, sem se atrever a respirar, temendo que o pulsar do coração, de tão rápido, traísse a sua presença.
Os cavaleiros desapareceram. A rua ficou deserta de novo.
A fachada de mármore branco da Grande Biblioteca de Palanthas, com o seu pórtico em colunas e as janelas escuras e estreitas, era uma das estruturas mais antigas de Krynn e das mais reverenciadas e respeitadas pelos que por ali passavam. As pessoas que percorriam os seus terrenos falavam em tom abafado, não porque lhes impusessem o silêncio mas sim porque o próprio ar que roçava as árvores parecia sussurrar os segredos milenários que se achavam trancados no interior da biblioteca. Palin ficou com a impressão de que, se tivesse tempo, conseguiria escutá-los.
Mas o tempo escoava-se. Além de se aproximar a hora do encontro com o tio, dentro de instantes os cavaleiros regressariam da sua ronda. As enormes portas duplas da frente eram novas e substituíam as antigas, anos antes destruídas durante a Batalha de Palanthas. Feitas de bronze e ostentando um livro — o símbolo de Gileano — as portas, que se encontravam fechadas, tinham um aspecto imponentíssimo. Palin empurrou-as e constatou que, tal como esperava, estavam trancadas.
— Provavelmente trancadas por dentro — murmurou. — Deve haver um meio ...
— E se experimentasses isto, Palin? Pode ser que dê.
Tasslehoff segurava na ponta de uma corda, suspensa dos recessos sombrios do pórtico.
— Tas, não...
O estrépito de um grande sino de bronze obrigou-o a se calar. As notas sonantes ribombaram através do ar parado, indo repercutir pela rua.
— Credo! — exclamou Tas, largando a corda.
O sino começou a badalar de um lado para o outro, repicando com desvario e quase os ensurdecendo. As janelas da biblioteca se iluminaram. As janelas dos prédios ao longo da rua se iluminaram. Alguém abriu com precaução uma porta menor que se encontrava inserida nas grandes portas.
— O que é? Fogo? — perguntou uma voz roufenha. Uma cabeça rapada perscrutou, receosa, a escuridão. — Onde é o incêndio?
Palin, que conseguira agarrar na corda, conseguiu silenciar os repiques.
— Não há nenhum incêndio, irmão. Eu... — disse.
Uma expressão estranha contorceu o rosto do idoso monge. De olhos arregalados, examinava as vestes brancas do mago, que estavam manchadas e sujas, o vestido de Usha, enrolado em volta da cintura, os seus sapatos, cobertos de excrementos e Tasslehoff, de cujo penacho pingava lodo. O monge levou a mão ao nariz.
— A biblioteca está fechada — disse em voz estridente, e fez menção de fechar a porta.
— Espere! — exclamou Tasslehoff, insinuando o corpo minúsculo na soleira. — Viva, Bertrem! Lembra-se de mim? Sou Tasslehoff Pés Ligeiros. Já estive aqui antes...
— Sim — replicou Bertrem em tom gelado —, eu me lembro. A biblioteca está irremediavelmente fechada. Voltem pela manhã. Depois de tomarem banho. — Recuando, preparou-se para fechar a porta, parou e acrescentou precipitadamente: — Todos menos o kender. — Enxotando Tas para fora, empurrou a porta.
— Por favor! Tem que nos deixar entrar! — Palin entalou o bastão na porta. — Lamento cheirarmos tão mal mas, viemos lá de baixo, dos esgotos...
— Ladrões! — guinchou Bertrem, tentando, sem êxito, fechar a porta. E alteando a voz: — Socorro! Socorro! Ladrões!
— Vem alguém aí! — avisou Usha.
— Não somos ladrões! — Palin estava ficando desesperado. — Devo me encontrar aqui com o meu tio. Disse-me para esperar por ele no gabinete de Astinus. Deixe-me falar com Astinus!
Bertrem sentia-se tão chocado que quase largou a porta.
— Assassinos! — uivou. — Assassinos que querem matar o mestre estão aqui!
— Cavaleiros! — ciciou Usha. — Estão vindo para cá!
— Bertrem! — chamou uma voz de dentro da biblioteca.
Bertrem deu um pulo, empalideceu e olhou de relance por cima do ombro.
— Sim, Mestre?
— Deixe-os entrar. Estava à espera deles.
— Mas, Mestre...
— Bertrem, será que tenho que repetir?
— Sim, Mestre. Qu... quer dizer, não, Mestre.
Bertrem escancarou a porta. Recuando, levou a manga ao nariz e com a mão indicou aos três que entrassem.
O interior da biblioteca encontrava-se mergulhado na penumbra e era alumiado apenas por uma candeia a óleo que Bertrem instalara numa mesa, a fim de poder responder a quem batesse à porta. A pessoa que o monge designara por “Mestre” continuava invisível.
— Bertrem, feche a porta — ordenou a voz. — Quando os cavaleiros aparecerem indagando o motivo do rebuliço, diga-lhes que estava com um ataque de sonambulismo, e que uma das coisas que faz nesse estado é badalar o sino. Estamos entendidos?
— Sim, Mestre — respondeu Bertrem, com voz submissa.
— Por aqui — prosseguiu a voz vinda das trevas. — Depressa. Enquanto eu permaneço ocioso neste átrio de cantaria, a História vai se escoando sem que a registre. Jovem mago, acenda o bastão. O teu tio te espera.
Palin disse a palavra e o bastão iluminou o vasto átrio. A luz refletiu-se nas fileiras de livros com capa de couro e nas pilhas de pergaminhos, todos cuidadosa e impecavelmente alinhados em prateleiras compridas que se estendiam até se perderem de vista, tragadas pela escuridão, tal como a História que continham fora tragada pelo passado.
A luz também foi incidir no autor dos livros, no escriba dos pergaminhos.
Tinha um rosto que não era nem velho, nem novo, nem tampouco de meia-idade. Era uniforme, sem sulcos, branco como o papel no qual escrevia, num afã constante, a passagem do tempo em Krynn. Nenhuma emoção lhe marcava o rosto, nenhuma emoção perpassava o homem. Vira muito para se comover com o que quer que fosse. Descrevera o nascimento do mundo. Escrevera a ascensão da Casa de Silvanos, o engaste da Pedra Preciosa Cinzenta, a construção de Thorbadin, os poemas épicos de Huma durante a Segunda Guerra dos Dragões, a Guerra de Kinslayer, a formação dos Cavaleiros da Solamnia, a fundação de Istar. E continuara a escrever durante a destruição terrível que se seguiu ao Cataclismo, quando as paredes da biblioteca desabaram em torno de si.
Escrevera a queda dos Cavaleiros de Solamnia, a ascensão dos falsos sacerdotes, o regresso dos dragões, a Guerra da Lança.
Afirmavam alguns que há muito, muito tempo, fora um monge ao serviço de Gileano e que nessa começara a escrever a sua História, agora famosa. Contava-se que Gileano ficara tão impressionado com o trabalho que recompensara o mortal concedendo-lhe a imortalidade — desde que continuasse a escrever.
Outros afirmavam ser ele o deus Gileano em pessoa.
Os que compareciam à sua presença, raramente conseguiam recordar-se das suas feições, mas nunca esqueciam os olhos: escuros, errantes, oniscientes, destituídos de piedade e de compaixão.
— Chamo-me Astinus, Filha dos Irdas — replicou, embora Usha não tivesse formulado a pergunta, em voz alta.
Usha olhou-o com uma expressão de espanto e abanou a cabeça.
— Eu não... — titubeou.
Os olhos fitaram-na, implacáveis, desarmando-a.
— Como sabia? — Os olhos prenderam-na, fascinaram-na, obrigaram-na a avançar. — O que você sabe?
— Tudo.
— Sabe a verdade a meu respeito? — titubeou Usha, olhando de esguelha para Palin.
— Coloque a si mesma a pergunta, Filha dos Irdas — replicou Astinus, em tom distante. — Não a mim. Não é bom lugar para falar — acrescentou, olhando de relance para a porta. — Os cavaleiros devem estar para aparecer a qualquer instante. Venham.
Virou à esquerda e seguiu por um corredor. Bertram — com um ar desditoso — ficou de guarda na porta fechada. A campainha retiniu com estridência e os três estugaram o passo.
— Olá, Astinus! — disse Tasslehoff, saltitando ao lado do cronista, nada intimidado pela sua presença imponente. — Lembra-se de mim? Eu me lembro de você. Há pouco, no Abismo, vi o deus Gileano. Você é mesmo o Gileano? Não se parece lá muito com ele, mas o Fizban também não se parece com o Fizban. O Dougan Martelo Vermelho parece-se bastante com o Reorx, mas já reparei que os duendes não têm muita imaginação. Também reparou? Ora se eu fosse deus...
Astinus parou de repente. Pelo rosto perpassou-lhe um vislumbre de emoção.
— Se os Kenders fossem deuses, o mundo seria, com certeza, um lugar interessante. Embora nenhum de nós conseguisse encontrar o que quer que fosse.
— Onde está o meu tio? — perguntou Palin, ansioso e ao mesmo tempo relutante, face à perspectiva do encontro dele com Usha.
— Aguarda-o nos meus aposentos particulares. Mas... — Astinus olhou de relance para Palin — decerto não tenciona encontrá-lo nesse estado.
Palin encolheu os ombros, dizendo:
— Estou certo de que o meu tio compreenderá. Não nos restou outra alternativa...
Astinus deteve-se junto de uma porta fechada e, apontando, disse:
— Encontrará ali água para se lavar e uma muda de roupa.
— Senhor, agradeço-lhe a gentileza — começou Palin —, mas o meu tio disse para eu me apressar...
Verificou que Astinus lhe virara as costas e se afastara.
— Também tenho vestimentas para vocês — disse o cronista, dirigindo-se a Usha e a Tas. — São roupas velhas que doamos aos pobres, mas estão limpas e em bom estado. Vocês dois, venham comigo.
Quando se afastava, Astinus observou, por cima do ombro:
— Palin Majere, volto dentro de alguns momentos. Depois de se vestir, o levarei para junto do teu tio. Ande, Filha dos Irdas. E você também, Mestre Pés Ligeiros.
— Ouviu do que ele me chamou? — disse um orgulhoso Tas a Usha, enquanto seguiam Astinus. — Mestre Pés Ligeiros!
Palin considerou que Astinus tinha razão. Raistlin não quereria encontrar-se com um sobrinho que fedia como se tivesse banqueteado na companhia de duendes dos esgotos.
Palin abriu a porta e entrou no quarto — uma cela exígua, idêntica às dos ascéticos, os monges que dedicavam a vida ao serviço da biblioteca e do respectivo mestre. Parcamente mobiliado, continha uma cama e um lavatório, no qual se via um jarro com água, uma tina e uma candeia acesa. O extremo do leito perdia-se na escuridão mas, avistando uma protuberância, Palin deduziu tratar-se da muda de roupa.
Palin mal olhou para as roupas lavadas. Aproximou-se da tina, subitamente ansioso por se ver livre daquelas vestes imundas e retirar o lodo e fedor que começava a provocar-lhe engulhos no estômago.
Depois de lavar, e sentindo-se melhor, embrulhou a roupa suja num canto e virou-se para vestir as lavadas.
Deteve-se, sem fôlego e de olhos esgazeados. Agarrou nas vestes e aproximou-as da luz, julgando-se vítima de uma alucinação.
Não se enganara. Pelo menos não eram os seus olhos lhe pregando uma peça.
As vestes que Astinus dera a Palin eram negras.
O primeiro pensamento que ocorreu a Palin foi que Astinus lhe pregara alguma peça. Mas revendo os olhos impassíveis, Palin rejeitou a idéia. A roupa negra era macia ao tato e sentia na mão o estranho calor que emanava dela. Perpassaram-lhe o espírito as palavras que dirigira a Raistlin na Torre da Feitiçaria Suprema:
Sei que vai ser uma tarefa árdua e difícil, mas tudo farei, tudo sacrificarei para alcançar mais poder.
Seria esta a resposta? Seria este o sacrifício pretendido pelo tio?
Ouviu bater à porta. Antes que pudesse responder, esta escancarou-se. Astinus encontrava-se na soleira e, de pena na mão, segurava nos braços um livro volumoso.
— Bom — ordenou — porque perde tempo? Vista-as.
— Não entendo — respondeu Palin. — Que significa isto?
— Significar? O que você pensa que significa? Já tomou a sua decisão. Vista-as.
— Decisão? Qual decisão? Nunca pretendi isto. Não quero envergar as Vestes Negras. Não quero utilizar a magia para beneficiar, prejudicar ou obrigar os outros a submeterem-se à minha vontade...
— Ah não? — Astinus mostrava-se calmo. — Pensei que permitir que um homem morresse no teu lugar era uma decisão digna das vestes negras.
Palin protestou.
— Morrer? No meu lugar? Deve estar enganado. Nunca... — Calou-se. — Ó deuses! Não se refere a Steel! Claro que não! Decerto os cavaleiros não o condenaram à morte. Ele deve ter-lhes explicado as circunstâncias. Não havia nada que pudesse fazer. Não acreditaram nele?
Astinus entrou no quarto. Dirigindo-se para Palin, o cronista abriu o grande livro que segurava e indicou uma linha, escrita ao fundo da página.
Neste dia, ao despontar da Primeira Vigia, Steel Montante Luzente foi executado. Morreu no lugar de Palin Majere, que dera a sua palavra de honra que voltaria e faltou a mesma.
— Despontar da Primeira Vigia — murmurou Palin. Levantando a cabeça, olhou para Astinus. — Ainda não foi a Primeira Vigia! Não pode ser! Como...
— Ainda faltam várias horas para o nascer do Sol — respondeu Astinus, encolhendo os ombros. — Por vezes, antevejo os acontecimentos. Facilita a tarefa, em especial quando é irremediável.
— Onde? — perguntou Palin, agarrando nas vestes negras. — Onde ele morrerá?
— Na Torre do Sumo Sacerdócio. Morrerá na desonra, rebaixado do seu posto. Pousará a cabeça num cepo de pedra incrustado em sangue. Lorde Ariakan em pessoa empunhará a espada que decepará a cabeça de Steel Montante Luzente do corpo.
Palin permaneceu em silêncio, sem se mover. Implacável, Astinus prosseguiu:
— O cadáver do Montante Luzente não baixará ao túmulo. Será arremessado das muralhas, para servir de repasto aos abutres. Constituirá um exemplo para os outros cavaleiros. É o que acontece aos que desobedecem às ordens.
Imagens desfilaram pelo espírito de Palin: Steel ajoelhado junto do túmulo dos seus irmãos, Steel lutando ao lado dele na Clareira de Shoikan, Steel a salvar-lhe a vida...
— Mas que importa? — recitou Astinus em tom retumbante. — O homem é ruim. Entregou a alma à Rainha das Trevas. Matou o seu quinhão de homens bons, de Cavaleiros da Solamnia. Merece morrer.
— Mas não na desonra e na vergonha — Palin olhou fixamente para o livro que Astinus segurava nas mãos, para o que estava escrito na página. — Primeira Vigia. Muito tarde. Se pudesse mandaria interromper a execução, mas não era possível. Levaria dias para ir de Palanthas até à Torre do Sacerdócio Supremo. Nunca chegaria a tempo de impedir a execução. — Sentiu vergonha de si mesmo, mas experimentou uma enorme sensação de alívio.
Ouviu, dentro de si, uma voz que sussurrava:
Vista as roupagens negras. Quando o fizer, abrirei o livro de encantamentos de Fistandantilus. Merece-o.
Palin sentiu na boca um travo amargo, pior que o fedor dos esgotos. Passou a mão pela roupagem negra. Era macia ao tato, suave e quente, o envolveria, protegeria.
— Tio, não fiz nada! A culpa não foi minha! Nunca julguei que, por minha causa, o Steel fosse prejudicado! E mesmo que quisesse ir, nunca chegaria a tempo.
— Tomou a sua decisão. Assuma-a com orgulho! Sobrinho, não minta a si mesmo! — sussurrou a voz. — Pode ir. Tem o anel. O anel de Dalamar. O kender o devolveu. Num abrir e fechar de olhos, ele te transportará à Torre do Sumo Sacerdócio.
Palin estremeceu. De súbito, o Bastão de Magius tornou-se quente, mais quente do que a roupagem negra que segurava. O anel o levaria. Só tinha que fazer o pedido.
Mas, que desejo terrível! Olhou para Astinus.
— Ouviu?
— Sim. Eu ouço todas as palavras, mesmo as da alma.
— É... é verdade o que ele diz? Posso impedir a execução?
— Se chegar a tempo à Torre do Sumo Sacerdócio, sim, os cavaleiros interrompem a execução. — Astinus olhou para Palin com uma leve expressão de curiosidade. — Interrompem a execução de Steel. Está preparado para eu riscar o nome dele e escrever o teu?
Palin sentiu um aperto na garganta e mal conseguia respirar. “Não, não estou preparado para morrer! Receio a morte, receio a dor, as trevas infindáveis, o silêncio ininterrupto. Quero ver o Sol nascer, ouvir música, beber uma caneca de água fria. Encontrei alguém que desejo amar. Desejo sentir outra vez o formigamento da magia. E os meus pais. Sentiriam um amargo desgosto. Não quero partir desta vida!”
Então não parta. Sobrinho — na sua mente, ouviu de novo a voz sussurrante. — Steel Montante Luzente entregou a alma à Rainha das Trevas. Muitos considerariam um bom pretexto para deixar que morresse.
“Dei a minha palavra. Prometi voltar.”
Palavra à qual faltou? Jura que quebrou? O que vale isso? Depois que Steel Montante Luzente morrer, quem saberá ou se importará?
“Eu”, respondeu Palin.
E o que você esperava sobrinho? O que pensava que significava a palavra “sacrifício”? Eu lhe digo. Significa trocar tudo — tudo! — amor, honra, família, a tua própria alma — pela magia. Não era o que queria? Ou esperava consegui-lo sem dar nada em troca?
“Está me pedindo que sacrifique a vida”, respondeu Palin.
Claro.
“Eu sacrifico a vida”, percebeu Palin, “de uma maneira ou de outra.”
De uma maneira ou de outra, respondeu Raistlin.
Steel Montante Luzente encontrava-se deitado numa enxerga de palha, que se encontrava no chão de pedra da cela. Na noite anterior à sua execução, não dormira, passara-a em amarga e silenciosa vigília. Não temia a morte, pois fizera as pazes com ela e ansiava o encontro.
Mas a morte não chegaria e o levaria como pretendera — morrer com honra, em combate. A sua morte seria inglória, vergonhosa, desonrosa. Morreria acorrentado, teria o fim dos ladrões, dos covardes, dos traidores.
A cela era despojada de janelas e não conseguia vislumbrar a madrugada, mas ouvira os chamados das rondas. Escutara-os a noite inteira, chegando-lhe os gritos da última Vigia a atravessarem a torre, e imaginara como decorreria o tempo para os que eram destacados para os turnos.
Haviam de sorrir, espreguiçar-se e bocejar. Aproximava-se o render da guarda. Mais uma hora e abandonariam os postos, voltariam para as barracas e mergulhariam nas abençoadas trevas do sono. Regressariam dessa escuridão, para acordar praguejando contra os percevejos, o calor e o ressonar dos que dormiam próximo.
Dentro de uma hora, Steel Montante Luzente mergulharia nas trevas, das quais não há retorno, a menos que Chemosh se apoderasse dele e o obrigasse a caminhar pelo mundo feito alma penada. Steel nada receava na vida, mas o pensamento de tão pavoroso destino provocava-lhe calafrios na alma. Encontrara-se uma vez com o defunto cavaleiro Lorde Soth. O poder do morto-vivo aterrorizara-o e, olhando com repulsa e piedade para o rosto sem feições do defunto cavaleiro, murmurara, em oração: “Takhisis, Rainha das Trevas, conceda-me qualquer outro destino que não este!”
Ao longo da noite, debatera-se nesta agonia. Será que Takhisis o perdoaria? Ou será que o entregaria a Chemosh, o deus com a máscara de caveira, para que vivesse por toda a eternidade como escravo da Morte?
O pensamento deixou-o gelado, tiritando de pavor, com o corpo ensopado em suor frio. Estremecendo, enrodilhara-se na enxerga de palha e orava pela mercê de Sua Majestade das Trevas, quando a chave da porta da cela girou.
— Visita — anunciou o carcereiro. Disse-o com voz submissa, reverente, e o tom inusitado, advertiu Steel de que não se tratava de uma visita comum.
Endireitando-se, levantou-se. Vestia a roupagem que envergaria para a execução, uma túnica comprida preta, simples, de pano cru, idêntica às utilizadas para amortalhar os indigentes antes de serem lançados nas valas comuns. Aguardou, tenso, nervoso, pensando, receando, invadido pela desvairada esperança de se tratar do Senhor de Ariakan, que vinha comutar a pena de morte. Com um chiar de gonzos, a porta da cela se abriu.
Entrou uma figura envolta em vestes negras, uma figura vergada sob o peso dos anos. Na penumbra da cela, tornava-se difícil a Steel confirmar se se tratava de homem ou mulher. Lembrava uma trouxa vacilante, envolta em trevas. Não se encontrava só. Uma outra, também de negro, caminhava ao seu lado, guiando-lhe os passos trôpegos.
Contudo, a voz que falou não era fraca nem vacilante.
— Feche a porta e tranque-a.
Steel sentiu-se agitado pelas recordações. Reviu a mesma cena, o mesmo encontro, que agora se repetia. Deixou-se tombar de borco na pedra fria e úmida, com os braços estendidos por cima da cabeça.
— Sua Santidade! — murmurou.
— Luz — ordenou a Suma-Sacerdotisa à acólita que lhe prestava assistência.
A outra mulher, mais jovem, pronunciou uma palavra e, de uma fonte invisível, jorrou luz. Mas esta não fez desaparecer a escuridão, antes pareceu adensá-la, torná-la mais forte, imprimir-lhe vida.
A Suma-Sacerdotisa de Takhisis avançou, com passos trôpegos, até se postar diante dele.
— Levante-se — ciciou. — Olhe para mim.
Subjugado pelo temor, Steel ajoelhou-se.
Quando, anos atrás, a Suma-Sacerdotisa abençoara a sua investidura, esta já lhe parecera idosa. Mas a sua velhice de agora, transcendia tudo o que era concebível e compreensível. O cabelo grisalho pendia-lhe, em madeixas, para o rosto. Sob a pele retesada, espetavam-se os ossos, como que despojados de carne. Os lábios estavam violáceos, exangues, tal como as veias das mãos, que tinham uma coloração de marfim.
Estendendo uma delas — a outra fincava-se no braço da acólita — a sacerdotisa segurou no queixo de Steel. Os dedos dela lembravam garras e o cavaleiro sentiu as suas unhas compridas, amareladas e pontiagudas enterrarem-se em sua carne.
— A sua Rainha ouviu as suas preces e está satisfeita contigo, Steel Uth Matar Montante Luzente. Serviu bem Sua Majestade, melhor do que imagina. Neste dia, luta por conquistar duas almas. Para você, foi preparado um lugar na terrível guarda de Sua Majestade das Trevas, um lugar de honra...
Steel fechou os olhos. Lágrimas de alívio e de gratidão escorreram-lhe das pálpebras.
— Honro Sua Majestade e agradeço-lhe do fundo do coração...
— Com uma condição — interrompeu-o a sacerdotisa. Os olhos de Steel arregalaram-se.
As unhas da sacerdotisa arranharam-lhe a carne, provocando sangue. Largando-lhe o queixo, baixou a mão e estendeu um dedo descarnado.
— Tire o talismã.
Steel levou a mão ao pescoço e tocou na corrente de fina prata que o cingia. Da mesma pendia um ornamento que Steel mantivera sempre oculto. Só quatro pessoas sabiam da sua existência e uma delas, Tanis Meio Elfo, encontrava-se morto agora. O Senhor de Ariakan estava a par, fora o próprio Steel a contar-lhe. A sacerdotisa sabia, e também Caramon Majere, que testemunhara as circunstâncias. A mão de Steel fincou-se no talismã, a jóia em forma de estrela.
Steel interrogara-se com freqüência por que motivo a usaria. A jóia constituía um estorvo, pois as suas arestas pontiagudas causavam comichão e incomodavam-no. Por mais de uma vez decidira livrar-se dela, quase quebrara a corrente, para arrancá-la e arremessá-la à poeira.
Mas sempre que a tocava, sentia-se invadido por um sentimento reconfortante, balsâmico, de serenidade, tal como a água fria serve de alívio à sede ardente. A sensação apaziguava-lhe o torvelinho quase constante que o remexia por dentro, aclarava-lhe os pensamentos, deixando-os cristalinos, bem definidos e de arestas aguçadas, tal como a jóia. Desapareciam as dúvidas que o assediavam e recuperava a confiança em si mesmo e nas suas capacidades.
Passou os dedos pela corrente prateada. Sabendo a influência que a jóia exercia nele, Steel sentia relutância em tocá-la. Os seus pensamentos encontravam-se agora serenos e resolvera o conflito interior. A Rainha perdoara-lhe o pecado, preparara-lhe um lugar de honra ao seu lado. A jóia, agora, só o confundiria e perturbaria.
Sim, a sacerdotisa tinha razão. Devia retirá-la naquele instante, para que a sua alma comparecesse à presença de Takhisis livre de estorvos.
— Assim farei — respondeu, e segurando na corrente, deu-lhe um forte puxão.
A corrente não se quebrou.
— Retire-a! — ordenou a sacerdotisa, já encolerizada e semicerrando os olhos orlados de vermelho. — Ou incorre na ira de Sua Majestade!
Diante dos olhos de Steel materializou-se uma visão, a visão de uma mão descarnada, emergindo, a rastejar, do solo sufocante da Clareira de Shoikan, à procura do calor do sangue dos vivos para esconjurar o frio gélido que nunca poderia ser esconjurado, e soube — com profundo terror — que a mão lhe pertencia.
Frenético, desesperado, puxou e tentou quebrar a corrente, até esta se enterrar no pescoço.
— Largue-me, pai! — gritou, sem perceber o que dizia. — Largue-me! Fiz a minha opção...
Percorreu, com a mão, a corrente, e segurou na jóia, tencionando utilizá-la como alavanca.
Dos seus dedos jorrou um clarão brilhante e quente. Sentiu os medos apaziguados, medos que eram como os pesadelos de uma criança sozinha na escuridão, como se o braço forte do pai se encontrasse ali para apoiá-lo, reconfortar, protegê-lo do mal.
Sentiu-se transbordar de paz e de quietude. Já não experimentava amargura. Soube, de repente, que embora a sua morte pudesse parecer desonrosa para alguns, outros havia que a honrariam. A alma lhe pertencia. Takhisis não podia reivindicá-la, a menos que a entregasse de bom grado. Contudo, ainda não tomara tal opção.
Precisava ter fé, mesmo que esta só existisse nele.
A mão de Steel abriu-se e largou a jóia, que de novo lhe aflorou o peito.
— Está condenado! — rosnou a Suma-Sacerdotisa em tom sibilante. — Traíu a sua Rainha! Que os seus tormentos se arrastem por toda a eternidade!
Ao ouvir a terrível praga, Steel estremeceu, mas não titubeou, não se prostrou nem rastejou. Agora, nada sentia, ficara despojado de todas as emoções, até do medo.
— Leve-me daqui! — ordenou a sacerdotisa.
A acólita ergueu a cabeça, que mantivera inclinada, dardejou Steel com um olhar repassado de ódio e inimizade e, obedecendo, guiou os passos trôpegos da sacerdotisa pelas pedras irregulares.
Steel sabia que devia dizer algo, mas de repente sentiu-se cansado, muito cansado. Estava cansado daquela vida. Ansiava por lhe pôr termo, de acabar com o sofrimento e a dúvida, com a sensação de constituir duas entidades separadas e presas num mesmo corpo, acabar com a luta destas pela posse da sua alma.
Em breve, a batalha chegaria ao fim. Deu consigo a aguardá-la com anseio.
O retinir de uma trombeta, cristalino como a prata pura, anunciou a Primeira Vigia.
Fora da porta da cela, chegou-lhe o som de botas que marchavam numa cadência solene. Steel levantou-se. Quando entrassem para levá-lo, o encontrariam orgulhoso e de cabeça erguida.
A porta escancarou-se. Entraram dois cavaleiros de categoria superior, membros do estado-maior pessoal do Senhor de Ariakan. Steel reconheceu a honra que lhe concediam e sentiu-se humildemente grato.
— Steel uth Matar Montante Luzente — anunciou um deles, falando em voz baixa e solene —, por este meio é citado a submeter-se à sentença do nosso suserano. Tem, nesta hora derradeira, algo a dizer em sua defesa?
— Não, meu senhor — replicou Steel em tom sereno — Aceito a sentença do meu amo como sendo justa e o meu castigo como o devido.
— Assim seja — respondeu o cavaleiro, em tom soturno.
Steel ficou estupefato ao constatar que o homem esperara receber uma resposta diferente.
Ouvida a decisão, a expressão do cavaleiro tornou-se rígida. Ele e o companheiro aproximaram-se de Steel. Ataram-lhe as mãos atrás das costas com tiras de couro preto. Depois, ataram-lhe o cabelo negro e espesso com outro fio de couro, a fim de lhe desnudarem o pescoço e o prepararem para o golpe da espada. Feito isto, prepararam-se para segurá-lo pelos braços.
Steel libertou-se do aperto.
— Irei pelo meus próprios pés.
Dizendo isto, encaminhou-se para fora da cela.
Postado de lado, o carcereiro murmurou, com voz roufenha:
— Senhor Cavaleiro, que a Rainha das Trevas possa julgar-te com justiça.
Da escuridão das celas contíguas à sua, elevou-se um coro de vozes:
— Que Paladino possa defender-te, Montante Luzente!
Em algum lugar, ouviu-se uma voz nas trevas, que começou a cantar:
— Sularus Humah durvey. Karamnes Humah durvey...
Tratava-se da Canção de Huma, herói dos Cavaleiros da Solamnia. Um a um, os outros prisioneiros juntaram-se a ele, num coro de vozes forte e pungente que rasgou a alvorada.
— Mande que se calem — disse com brandura, um dos cavaleiros das trevas. O carcereiro, que se afastava, fingiu que não ouvia.
Steel quis responder, não lhe ocorreram palavras, e se as houvesse, não conseguiria dar-lhes voz. Acenou silenciosamente com a cabeça, em agradecimento, e com os olhos marejados de lágrimas, iniciou o percurso.
Era curta a distância que separava o bloco de celas do pátio central, onde Steel lutara com bravura e vira Tanis Meio Elfo morrer em seus braços. Era curta a distância que separava Steel da morte pela sua própria espada, pela espada do pai.
Ficou estupefato ao avistar, ao longo do percurso, um cordão de cavaleiros. Achou, de início, que se encontravam ali para insultá-lo. Mas à sua passagem, caminhando de pés nus e envolto nas roupagens da vergonha, cada homem ou mulher esboçava-lhe uma saudação grave e solene.
Os cavaleiros fundiam-se numa mancha de armaduras reluzentes que materializou a imagem do pai, desfilando diante de si, na sua armadura prateada que os primeiros raios do alvorecer fazia cintilar.
Steel entrou no pátio, apinhado de cavaleiros, que formavam um círculo. No centro, erguia-se um cepo de mármore negro, manchado e incrustado de sangue seco, no qual havia uma cavidade que serviria para Steel pousar a cabeça.
Com passos firmes e resolutos e ladeado pelos dois guardas cavaleiros, Steel Montante Luzente encaminhou-se para o cepo e postou-se diante do mesmo.
Na qualidade de padrinho e juiz de Steel, o Senhor de Ariakan seria também o seu carrasco. Nas mãos enluvadas, Ariakan segurava a espada dos Montante Luzente. O rosto de Sua Senhoria mostrava-se frio e inexorável como a pedra.
Sem olhar para Steel, encarou os dois cavaleiros.
— O prisioneiro apresentou algum argumento susceptível de impedir o prosseguimento da sentença? — perguntou.
— Não, meu senhor — respondeu um dos cavaleiros —, não apresentou.
— Meu senhor, considera a sentença justa — interveio o outro. — O castigo correto.
— Nesse caso, a sentença será levada a cabo — concluiu o Senhor de Ariakan, detendo o olhar em Steel.
— Steel uth Matar Montante Luzente, Sua Majestade das Trevas será o teu próximo juíz. A ela garantirá, tal como nos disse, que foi julgado com eqüidade, que nenhuma oportunidade para falar em sua defesa lhe foi negada, e que a recusou.
— Assim farei, meu senhor — respondeu Steel, com uma voz profunda que repercutiu no ar, já tão sufocante àquela hora têmpora. — Não lhe imputo a responsabilidade pela minha morte, senhor. Assumo-a totalmente.
O Senhor de Ariakan aquiesceu, satisfeito. Não era inusitado a Rainha Takhisis impugnar o julgamento de homens mortais, reenviar a alma da vítima para que se desforrasse nos que a haviam executado injustamente.
— Que a sentença decorra.
Um dos cavaleiros que escoltara Steel, estendeu-lhe uma venda. Abanando a cabeça, Steel recusou-a, orgulhoso. Segurando nos braços de Steel, os dois cavaleiros ajudaram-no a ajoelhar-se diante do cepo. Um deles afastou-lhe o cabelo, deixando-lhe o pescoço descoberto.
— Atinja-o ali! — ouviu-se uma voz sibilante, a voz da Suma-Sacerdotisa. — Atinja-o na marca avermelhada.
Referia-se ao vinco deixado pela corrente de prata. Virando a cabeça, Steel pousou a cara no cepo de mármore que, apesar do calor que se fazia sentir, estava frio como a própria morte.
— Montante Luzente, faça as suas orações à Rainha — disse o Senhor de Ariakan.
— Já as fiz — respondeu Steel, em tom calmo. — Estou pronto.
Viu a espada erguer-se por cima dele, bem alto, prestes a desferir um golpe que deceparia a cabeça de Steel do corpo. Viu Ariakan executar um arco e, quando a lâmina atingiu o ponto culminante, a luz do Sol, incidindo nela, fê-la irradiar um clarão esbranquiçado, como se fosse uma estrela.
Steel fechou os olhos. A última recordação que levaria consigo seria a daquele maravilhoso clarão. Tenso, aguardou que o golpe fosse desferido.
Em vez disso, o que sentiu foi um grande peso, o de outro corpo, a bater contra o seu, fazendo-o perder o equilíbrio. As mãos amarradas impediram-no de se proteger, de modo que tombou para o lado.
Atônito, quase zangado com a interrupção, abriu os olhos para ver o que se passava.
Pairando sobre ele, com ar protetor, viu um jovem de vestes brancas. Este segurava nas mãos um bastão sobrepujado por um cristal azul, incrustado numa garra de dragão.
— Que significa isto? — exclamou o Senhor de Ariakan, com voz retumbante. — Em nome da Rainha das Trevas, quem é você?
— Sou quem você procura — respondeu o jovem em voz hesitante. Em tom duro, acrescentou: — Sou Palin Majere.
Raistlin Majere encontrava-se no gabinete de Astinus de Palanthas. Inquieto, o arquimago perambulava pela sala, passeando o olhar frio e desinteressado pelos volumes da História contemporânea cuidadosamente alinhados nas prateleiras. Sentado à escrivaninha, Astinus continuava a escrever no livro. De vez em quando, aparecia um dos ascéticos que, em silêncio, para não perturbar o amo, reunia os volumes completos e os transportava para a biblioteca, onde eram dispostos por ordem cronológica.
Desde que Astinus voltara para o gabinete, os dois homens não tinham trocado uma palavra. Os campanários da cidade badalaram a Primeira Vigia. Interrompendo o vaivém agitado, Raistlin olhou para a porta aberta e para o átrio, como se esperasse alguém.
Ninguém apareceu.
Recomeçou, então, a andança, girando em círculos em volta da cadeira de Astinus e espreitando para ler o que o historiador acabara de escrever. Raistlin aquiesceu de si para si, satisfeito.
— Obrigado, meu amigo — disse com brandura.
Astinus não afastou a pena do papel e o fluxo de tinta apenas se interrompeu quando mergulhou a pena no tinteiro, e fê-lo com tanta rapidez que o gesto quase passou despercebido.
— Fiz muito pouco — replicou Astinus, continuando a escrever.
— Mostrou o livro a Palin — observou Raistlin. — Eu sei que não é inusitado, mas mostrou-lhe o livro a fim de obrigá-lo a tomar uma decisão. E se há coisa que te desagrada é imiscuír nos assuntos da Humanidade.
— Os assuntos da Humanidade são meus assuntos — replicou Astinus. — Porque não? Há séculos que os escrevo, que os vivo... todos eles.
Abrandou o escrevinhar até que parou. Iniciara precisamente, naquela manhã, um novo volume. Espesso, com capa de couro, as suas folhas de pergaminho, em branco, aguardavam o registro de gargalhadas, lágrimas, imprecações, golpes, os vagidos do recém-nascido, o estertor do moribundo. Os seus dedos obstinavam-se em dobrar-se em garra, a fim de segurarem a pena. Com o indicador manchado de tinta vermelho azulada, Astinus folheou as páginas em branco até chegar ao fim.
— O que for que aconteça — disse baixinho —, este livro será o derradeiro.
Pegou na pena e pousou-a no papel. A pena raspou, fazendo esguichar tinta e manchando a folha. Astinus franziu o cenho, colocou de lado a pena quebrada, retirou outra da escrivaninha e recomeçou a escrever.
— Acho que já sabia a decisão que o teu sobrinho ia tomar — disse.
— Já sabia — respondeu Raistlin baixinho. — Por isso mandei Caramon de volta para casa, pois haveria de interferir. Palin tinha de tomar a decisão por si.
— A acertada... para ele — observou Astinus.
— Sim. É jovem, nunca foi realmente posto à prova. A vida tem sido fácil para ele. Foi amado, admirado e respeitado. Tudo o que desejou, foi-lhe concedido. Nunca conheceu as agruras. Quando quis dormir, aguardava-o uma cama, uma cama com lençóis lavados, num quarto quente e acolhedor. Ah, é verdade, andou em viagem com os irmãos, mas... a não ser a última, as outras foram mais um passeio do que outra coisa. Não se compara com o que me aconteceu, e a Caramon, quando, antes da guerra, éramos mercenários.
Refletindo, Raistlin acrescentou:
— Só uma vez foi realmente posto à prova, durante a batalha em que os irmãos morreram. Falhou...
— Não falhou — observou Astinus.
— Ele acha que sim — respondeu Raistlin, com um encolher de ombros —, o que vai dar no mesmo. Na realidade, lutou bem valendo-se da magia de que dispunha, manteve o sangue frio no meio do caos pavoroso, lembrou-se dos encantamentos em alturas durante as quais nos admiramos por um homem se recordar até do próprio nome. Mas perdeu. Estava condenado a perder. Só quando segurou na mão as vestes negras, só quando teve de condenar um homem a uma morte injusta, só então chegou ao sacrifício para o qual devia estar preparado.
— E pode bem morrer na tentativa de alcançar tal discernimento. — Desta vez, Astinus não parou de escrever.
— É o risco que todos corremos. Assim decidiu o Conclave... — Raistlin olhou para os livros e franziu o cenho, como se conseguisse ler o conteúdo e este lhe desagradasse.
— Tal como outrora decidiram no teu caso, meu amigo.
— Tentaram-me... e caí, por isso me rebelei e paguei um elevado preço. Contudo, mesmo que não caísse, muito provavelmente a Guerra dos Lanceiros estaria perdida. — Raistlin fez com o lábio um trejeito de escárnio. — Como se tece essa linha no grande desenho?
— Como todas as linhas — respondeu Astinus. — Repare no tapete debaixo dos teus pés. Se virá-lo, notará o que parece ser uma amálgama confusa de fios multicoloridos. Mas, se o examinar de frente, vê que os fios se encontram tecidos firmemente e de uma forma nítida e formam uma textura forte. Oh, está um pouco esfiapado nos cantos mas, no geral, tem agüentado bem.
— Precisa mesmo ser forte — disse Raistlin baixinho —, para suportar o que está para vir. Meu amigo, há mais uma coisa que eu queria lhe pedir.
— O que é?... — Astinus não levantou a cabeça, mas a pena continuou a deslizar pelo papel.
— Gostaria de ver a Venerada Crysania — respondeu Raistlin.
Desta vez, Astinus levantou a cabeça e a pena deteve-se. Poucas coisas deixavam o historiador atônito, pois este vira, ouvira e sentira tudo. No entanto, o pedido apanhou-o desprevenido.
— Ver a Venerada Crysania? Porquê? — inquiriu. — O que lhe iria dizer? Que lamenta o que lhe fez? A forma como a usou? Estaria mentindo. Não disse ao seu irmão que, se voltasse atrás, faria tudo de novo?
Raistlin virou-se. Uma réstia de cor animava-lhe as faces pálidas e exangues.
— Usei-a sim — disse. — Mas, esquece a forma como ela me usou? Os dois éramos iguais, só que vestíamos cores diferentes.
— Ela o amava...
— Amava ainda mais a sua ambição.
— É verdade — concordou Astinus. — E, quando finalmente se apercebeu, já não conseguia ver mais nada. O que lhe diria? Sinto-me curioso, sobretudo porque o encontro que sugere nunca se concretizará.
— Por que não? — perguntou Raistlin em tom contundente. — Não tenho que fazer mais do que me dirigir aos recintos do templo. Não podem... não se atreverão... me expulsar.
— Pode ir lá quantas vezes quiser, mas de pouco te valerá. Já esqueceu a terrível calamidade que paira sobre o mundo? Tal como muitos outros, a Venerada Crysania foi chamada a desencadear a sua própria batalha contra o Caos. A sua história, a de Palin, a de Steel Montante Luzente são apenas algumas das muitas que nesta altura ando a escrever.
— A grande amálgama — murmurou Raistlin, esfregando os pés no tapete. — A Venerada Crysania partiu sozinha?
— Não, um homem que lhe é devotado a acompanha. Viajam juntos, embora ela não perceba sua verdadeira natureza. Ora aí tem outra história. Vamos lá, satisfaça a minha curiosidade. Pediria perdão?
— Não — respondeu Raistlin com frieza. — Porque haveria de fazê-lo? Ela teve o que queria. Eu tive o que me era devido. Estamos quites.
— Não lhe pediria desculpas, não lhe rogaria perdão. Que queria lhe dizer então?
Raistlin manteve-se por longo tempo em silêncio. Virando-se para as prateleiras de livros, contemplava agora as sombras que pairavam sobre eles, o tempo que nunca aconteceria.
— Queria lhe dizer que, às vezes, no meu longo sono, sonhei com ela — respondeu com doçura.
Usha tomou um banho de gato, como diria o Protetor, o que significava que se esmerara pouco nos cuidados de higiene. Mas, pelo menos, conseguira expulsar o fedor de esgoto e o cheiro de gordura e cerveja bolorenta da taberna, e, entre estes, que venha o diabo e escolha. Também mudara de roupa, embora ficasse quase tão surpreendida e receosa quanto Palin com a muda que a esperava sobre a cama.
Deparou com as velhas roupas, as roupas feitas para ela pelos Irdas, as roupas que julgara perdidas no quarto exíguo e miserável situado por cima da taberna. E também encontrou o alforje onde guardava os únicos pertences — os artefatos mágicos dos Irdas. Assustou-a ver as roupas e, em especial, o alforje. Ao que parece, alguém fora buscá-los, e o fizera possivelmente antes de saber que ela se encontraria ali!
Usha não gostou. Não gostava daquele lugar nem da sua gente. A única pessoa que lhe agradava era Palin e apreciava-o tanto, que o sentimento se tornava mais assustador do que todo o resto.
Por que teimou em mentir?, disse para consigo, sentindo-se infeliz. Mentiras uma atrás da outra. No início, todas elas insignificantes e inocentes, e que agora parecem avolumar-se.
Um montículo de areia que se convertera numa montanha de seixos. Teria que costurar para mantê-los no lugar, pois se um se desequilibrasse, todos desabariam por cima dela, esmagando-a. E a montanha de mentiras erguia-se agora como uma barreira, a separá-la de Palin.
Amava-o, queria-o para si. Ao longo do último mês, sonhara com ele e revivera o breve encontro de ambos na torre tenebrosa
Outros homens, como Geoffrey Linchado, tentaram conquistar o seu amor. Finalmente, Usha começava a perceber que as pessoas a consideravam bela. E finalmente, Usha podia permitir-se meditar. Examinara-se no espelho e não se achara feia, talvez porque as imagens da incrível beleza dos Irdas começavam, no seu espírito, a desvanecer-se, tal como as rosas de Verão comprimidas entre as páginas de um livro.
De entre os homens que haviam tentado conquistá-la, ressaltava Palin. E embora dissesse constantemente para consigo que nunca mais o veria, a imagem de um mago de vestes brancas fazia sempre o seu coração pulsar mais rápido.
— Foi tão estranho — murmurou —, eu estar tão ocupada e embaraçada que nem dei por ele quando entrou!
Calou-se por um momento, para rever a lembrança, o maravilhoso e excitante calor que a invadira quando o ouvira pronunciar o seu nome, proferi-lo com tanto amor e saudade.
— E você retribuiu com mais mentiras — disse, ralhando para consigo mesma. As palavras deslizaram-lhe tão facilmente pela língua que as pronunciou sem dar por isso. — Mas não suporto pensar que vou perdê-lo de novo! — Deu um suspiro. — E agora, aparece aquele tio...
Relutante, Usha vestiu as suas velhas roupas, desconfiada com o seu inesperado aparecimento. Mas, ou eram aquelas ou a saia manchada de esterco e a blusa com nódoas de comida. Enquanto se vestia, tomou uma decisão.
— Vou encontrar Palin. O levarei daqui antes que possa falar com o tio, antes que descubra que eu não sou... a pessoa que ele julga. Faço isso para o seu próprio bem — tentou persuadir-se a si mesma.
Uma pancada suave veio interromper os castelos que ia construindo no ar.
— Usha? Sou eu, o Tas. Abra! Depressa! — A voz tinha uma entoação esquisita, como se viesse do buraco da fechadura, e depois de investigar Usha descobriu que era assim.
Abriu tão depressa a porta que Tas, perdendo o equilíbrio, entrou aos trambolhões.
— Olá, Usha! Importa-se que eu feche a porta? Parece que o Bertrem simpatiza muito comigo, pois disse-me que, em circunstância alguma, eu deveria sair do quarto e vaguear pela biblioteca sem ele para me acompanhar. Mas não gosto de incomodá-lo. Anda tão ocupado! Foi avisar o Astinus que estamos prontos.
Usha hesitou em fechar a porta.
— Onde está o Palin? — perguntou. — Pode levar-me ao quarto dele?
— Claro! — respondeu Tas alegremente. — Fica a dois quartos abaixo do teu e a um acima do meu. — Dirigiu-se na ponta dos pés para a porta, e espiou lá para fora. — Não queremos incomodar o Bertrem — disse, num sonoro cochicho.
Usha partilhava de bom-grado este sentimento. Verificando que o átrio se encontrava deserto, os dois esgueiraram-se e correram para o quarto de Palin.
A porta estava fechada. Usha bateu timidamente.
— Palin! — disse baixinho. — Palin, é a Usha e o Tas. Está... está vestido?
Não obteve resposta.
— Acho que alguém se aproxima! — avisou Tas, puxando Usha pela manga.
Usha preparava-se para bater de novo, mas sentiu a porta se abrindo.
— Palin? — chamou. Tas entrou.
— Palin, eu... Oh. Usha, pode entrar. O Palin não está aqui.
— Não está! — Usha entrou precipitadamente e relanceou o olhar pela sala. Demorou pouco, pois tratava-se de um quarto bastante exíguo. Viu espalhadas pelo chão roupas de tecido negro e macio, como se alguém as tivesse pegado e depois atirado ao assoalho. Pairava no ar o cheiro de esgotos, ainda presente nas marcas das botas dele pelo chão. Ainda era visível a marca redonda deixada pela ponta do bastão.
— Olha, há um bilhete aqui. — Tas apontou para uma folha de papel, como as que os magos utilizam para copiar os encantamentos, que se encontrava em cima das vestes negras. — É para você — comunicou o kender, pegando-a. — Vou ler...
Usha arrancou-lhe o bilhete e, com ar febril, pôs-se a ler.
A mensagem parecia ter sido escrita às pressas, pois a caligrafia estava quase invisível. O papel continha manchas de borrões de tinta e outras marcas que podiam ser de lágrimas. Usha leu as poucas palavras garatujadas e um calafrio, como se um vento cortante a perpassasse, fê-la estremecer da cabeça aos pés.
— Usha! — exclamou Tas, alarmado. A jovem ficara tão pálida! — Usha, o que foi? O que se passa?
Em silêncio, com as mãos como que entorpecidas, Usha estendeu o bilhete ao kender.
— “Usha, amo-te do fundo do coração. Lembre-se sempre...” Não consigo ler esta parte, está toda borrada. Tal e tal... “Fui para a Torre do Sumo-Sacerdócio”... tal e tal... “Steel... amor...” — Aterrado, Tas fez uma pausa. — Ele foi para a Torre do Sumo Sacerdócio!
— É o baluarte dos cavaleiros das trevas, não é? — perguntou Usha, desanimada, ciente da resposta.
— Agora é — respondeu Tas, deprimido. — Não costumava ser. Pergunto a mim mesmo por que terá ido lá. E sem nos levar!
— Foi dar cabo da vida! — replicou Usha, assustada e irritada ao mesmo tempo. — É o que diz o bilhete. Deu a sua palavra àquele... àquele cavaleiro horroroso, o Plâmula Cintilante, ou seja lá o que for. Precisamos encontrá-lo, impedi-lo! — Encaminhou-se para a porta aberta e acrescentou: — Os cavaleiros vão matá-lo. Vem comigo?
— Claro! — respondeu Tas prontamente. — Mas é provável que não foi a pé, Usha. É uma coisa que reparei que acontece com os magos. Não fazem exercício. E se o Palin usou da magia para se transportar até o bastião dos Cavaleiros de Takhisis, então corre um grande perigo. Acho melhor informarmos o Raistlin...
Usha fechou a porta com estrépito e encostou-se a ela.
— Não — disse. — Não contaremos a ninguém.
Estupefato, Tas deteve-se.
— Por que não, Usha? Se o Palin foi realmente para a Torre do Sumo-Sacerdócio, então vai precisar de auxílio, e eu sou ótimo para salvar pessoas, descobri que quase sempre ajuda ter um feiticeiro junto de nós... Ah, tinha me esquecido! Você é feiticeira, não é, Usha?
Usha pareceu não ouvir.
— Tas, alguma vez esteve na Torre do Sumo Sacerdócio?
— Ah, claro! — respondeu Tas, em tom descontraído. — Já estive lá dentro muitas vezes. A primeira foi quando eu e o Flint estávamos lá e a Kitiara atacou. Depois, os dragões apareceram voando e caíram numa armadilha. E eu quebrei o globo do dragão, foi um grande acidente. E o Sturm morreu. E a Laurana ficou com a lança do dragão.
Fez uma pausa, soltou um leve suspiro e acrescentou:
— Seja como for, conheço muito bem os interiores da Torre da Feitiçaria Suprema, em especial a localização da prisão.
— Ótimo — respondeu Usha —, porque é para onde vamos. Tenho uma idéia.
Encaminhou-se para as vestes negras, sacudiu-as e enfiou-as pela cabeça. Afogueada e arquejante, alisou o cabelo e cingiu a roupa ao corpo esbelto. As vestes assentavam-lhe bem. Ela e Palin eram quase da mesma altura. Atou-as em volta da cintura com um cordão de seda preto.
— Que acha? — perguntou. — Pareço-me com um feiticeiro Veste Negra?
— Bom — respondeu Tas, detestando ter que desapontá-la, mas ansioso por argumentar —, os cavaleiros não têm feiticeiros de vestes negras, só cinzentas.
— É verdade — retrucou Usha, desanimada.
— Mas! — exclamou Tas, todo excitado. — Têm sacerdotes Vestes Negras! Os vi andando em volta da torre!
— Tem razão! Serei uma sacerdotisa de Takhisis. — Usha calou-se e olhou, perplexa, para o kender. — E o seu disfarce?
— Também posso usar vestes negras! — respondeu Tas, ansioso
— Chiu — disse Usha, franzindo o cenho. — Deixe-me pensar.
Como, em geral, o significado da palavra “Chiu” não constava do dicionário kender, Tas continuou a papaguear.
— Uma vez, um sacerdote de Morgion... é o deus da pestilência e da doença... chegou a Kendermore à procura de convertidos. Como o Eiderdown Pakslinger sempre desejara ser sacerdote, ofereceu-se. O clérigo disse a Eiderdown que ele não era bem do gênero pretendido por Morgion, mas que iria aceitá-lo em experiência. Bom, logo na semana em que o Eiderdown envergou as vestes negras, quase todos os kenders de Kendermore adoeceram gravemente com uma constipação. Nunca se ouviram tantos espirros, tosses e assoadas de narizes!
— Quem ficou mais doente, foi o sacerdote de Morgion. Esteve de cama por uma semana, a colocar os bofes pela boca. Atribuíram a responsabilidade da epidemia a Eiderdown. E embora a constipação fosse um incômodo e esgotássemos todos os lenços, sentimo-nos orgulhosos dele... Coitado do Eiderdown, antes disso nunca tivera sucesso em nada! Eiderdown afirmou que, da próxima vez, tencionava fazer experiências com os calos e, depois disso, talvez com a tinha. Mas quando deixou de espirrar, o sacerdote de Morgion tirou as vestes negras de Eiderdown e abandonou inesperadamente a aldeia. Nunca chegamos a saber porquê...
— Não consigo me lembrar de nada — disse Usha, desistindo. — Se alguém nos detiver... espero que não aconteça... podemos só dizer que é meu prisioneiro.
— Tenho muita prática em fazer esse papel — respondeu Tas, com ar solene. — Como vamos chegar à Torre da Feitiçaria Suprema? Daqui até lá é uma distância que nunca mais acaba.
— Não iremos a pé. Tenho comigo os meus objetos mágicos. E sei como utilizá-los — acrescentou Usha com ar de admiração e orgulho. — A Sally Dale me ensinou. Vá ver se tem alguém lá fora.
Tas abriu a porta e relanceou o olhar pelo átrio. Julgou ver o tremular de vestes castanhas contornarem a esquina e aguardou para ver quem era, mas ninguém apareceu. Por fim, declarou que o caminho estava livre. Ambos saíram do quarto de Palin e precipitaram-se para o de Usha.
Uma vez lá dentro, a jovem começou a esquadrinhar o alforje.
Sempre ansioso para ajudar, Tas começou a vasculhá-lo também. Usha encontrou o objeto que procurava e, retirando-o cuidadosamente, fechou o alforje.
Voltou a abri-lo para soltar a mão de Tas que, inadvertidamente, ficara presa lá, e depois exibiu o objeto. Tratava-se de um cavalo em miniatura, feito em argila e pintado de verniz branco lustroso que, ao clarão da candeia, parecia irradiar fulgores. Tas susteve a respiração. Na verdade, era a coisa mais linda, mais encantadora, que vira na vida.
— Como funciona?
— Quando eu soprá-lo, nos transportará até à Torre da Feitiçaria Suprema, à velocidade do vento. Pelo menos foi o que a Sally pensou que faria.
Usha levou o cavalinho aos lábios e soprou-lhe nas narinas minúsculas.
As narinas cintilaram, o cavalo respirou fundo e, de repente, materializou-se no quarto um cavalo autêntico e enorme.
O animal era de uma alvura reluzente, como se estivesse ainda pintado de verniz e, impaciente, pôs-se a escavar o chão com os cascos e a relinchar.
Usha arquejou. A Sally Dale não dissera nada a respeito da materialização de um animal daqueles! Mas não teve tempo para arroubos... o estrépito que o animal fazia impediu-o. Tasslehoff, que já começara a trepar para a garupa, ajudou Usha, que nunca na vida montara qualquer tipo de animal e se mostrava apavorada com o tamanho do cavalo. Sentiu-se insegura e pouco firme no seu dorso nu.
Fincando os calcanhares, Tasslehoff segurou-se na crina.
— E agora? — perguntou, vendo-se obrigado a gritar para ser ouvido no meio da algazarra que o bicho fazia.
— Vamos para a Torre da Feitiçaria Suprema! — anunciou Usha.
— Como? — gritou Tas.
— Desejando! — respondeu Usha, fechando os olhos e formulando o desejo.
No gabinete de Astinus, Raistlin acomodou-se numa cadeira, embrenhando-se na leitura de um livro que o cronista acabara de completar e que se referia à queda de Qualinesti nas mãos dos cavaleiros das trevas, queda essa que fora consumada sem haver resistência.
Os cavaleiros e os seus dragões azuis sobrevoaram Qualinesti, agitando espadas e lanças, sem, contudo, atacar. No que se tornara quase um padrão de comportamento, Ariakan enviara um mensageiro, incumbido de exigir aos Elfos que se rendessem. Avistara-se em segredo com representantes do Senado elfo.
No reino elfo, as pessoas estavam divididas e, na origem, residia o pavor inspirado pelos cavaleiros montados nos dragões azuis que, impunemente, os sobrevoavam. Os Elfos enviaram mensagens aos dragões dourados e prateados, para que viessem em seu auxílio, mas não obtiveram resposta.
Nesta altura, uma facção de Elfos mais jovens exigira que a Nação pegasse em armas. Porthios e as suas tropas encontravam-se no deserto, de vigia a Ariakan e às tropas deste. Porthios não tencionava atacar uma força tão vasta recorrendo apenas ao seu pequeno bando de guerrilheiros mas, se os Elfos atacassem a partir do interior de Qualinesti, Porthios e os seus efetivos por seu turno atacariam e encurralariam os cavaleiros das trevas numa tenaz cada vez mais estreita.
Os Elfos preparavam-se para seguir este plano, quando apareceu um senador anunciando que Qualinesti aspirava à paz. O Senado votara a favor da rendição, com a condição de que o seu Rei — Gilthas, filho de Tanis Meio Elfo e de Laurana, agora viúva — continuasse a ser o regente.
O encontro quase terminara em tumulto. Muitos dos elfos mais jovens foram presos, acorrentados e conduzidos pela sua própria gente. Gilthas ficou observando em silêncio, sem dizer nada. Laurana, a viúva sua mãe, encontrava-se ao seu lado. Todos ficaram sabendo então que Gilthas não passava de um fantoche, que dançava sempre que os cavaleiros puxavam as cordinhas.
Pelo menos assim achavam.
Raistlin, prosseguindo a leitura, sorria de vez em quando.
O relógio de água ia assinalando a passagem do tempo e a pena de Astinus a registrava. Começou e terminou a Segunda Vigia. Do interior da biblioteca, veio um som estranho.
Raistlin levantou a cabeça.
— Um cavalo? — inquiriu, espantado.
— É isso mesmo — respondeu serenamente Astinus, continuando a escrever.
Raistlin levantou a sobrancelha.
— Dentro da Grande Biblioteca?
— É exatamente onde está — respondeu Astinus, sem parar de escrever. — Ou estava.
O som do cavalo foi substituído pelo de sandálias percorrendo apressadamente o assoalho.
— Bertrem, entre — disse Astinus, mesmo antes do monge bater à porta. Esta se abriu e assomou a cabeça de Bertrem. Vendo que o amo não ralhava por perturbá-lo, depois da cabeça apareceu o corpo do monge.
— Bem — perguntou Raistlin —, já partiram?
Bertrem olhou para o mestre.
Irritado, Astinus interrompeu o trabalhou e ergueu os olhos.
— Anda, responde à pergunta do arquimago! A mulher e o kender já partiram?
— Sim, mestre — respondeu Bertrem, dando um suspiro de alívio.
Em tempos, durante a guerra, Bertrem repelira um ataque de uns draconianos que pretendiam atear fogo na biblioteca. Contudo, nunca tivera pesadelos por causa deles. Os seus pesadelos eram povoados pelos kenders — kenders a perambular pela Grande Biblioteca, kenders com os bolsos abarrotados de livros.
— Já se foram. Trouxeram um cavalo! — acrescentou, chocado e em tom de censura. — Um cavalo na Grande Biblioteca!
— Um acontecimento digno de registro — observou Astinus, anotando-o. Olhando de relance para Raistlin, acrescentou: — Foram salvar o seu sobrinho. Espanta-me não acompanhá-los.
— Estou com eles, à minha maneira — respondeu Raistlin, retomando a leitura.
Os dois cavaleiros que tinham escoltado Steel para o local da execução, ajudavam-no agora a se levantar do cepo. Viram-se forçados a pô-lo de pé e a endireitá-lo. Steel, que desejara tão intensamente transpor o Além, que se entregara em absoluto à morte, sentia-se, em vida, fraco e trêmulo. Caminhou em passos trôpegos e olhou, desvairado à sua volta, interrogando-se sobre o que traria esta nova vida.
O Senhor de Ariakan baixara a espada, embora continuasse a segurá-la. Depois, impôs disciplina às fileiras e ordenou que o clamor se silenciasse.
Palin continuava no lugar onde se materializara. Desde a estrondosa declaração inicial, permanecera estático, sem dizer palavra. Claro que o Senhor de Ariakan interrompera a execução, mas tornava-se óbvio — pelo modo como passeava repetidamente o olhar por Steel e Palin — que Sua Senhoria tinha perguntas a fazer.
Virando-se para os cavaleiros reunidos, Ariakan inquiriu:
— Alguém sabe me dizer o que se passa? Quem é este Veste Branca? É, na verdade, o prisioneiro que procuramos? Poderá, algum dos presentes, identificá-lo?
Avançaram dois cavaleiros, ambos forçando ansiosamente o caminho por entre a multidão, mas motivos distintos determinavam a sua pressa. Um, era o subcomandante Trevalin, recém-chegado do triunfo em Qualinesti. O seu rosto irradiava prazer e, quando se deteve diante do suserano, lançou a Steel um olhar de congratulação. O outro, era a Dama da Noite, que devorava Palin com os olhos.
Trevalin dispunha-se a falar de imediato, mas a Dama da Noite antecipou-se, obrigando-o a refrear a impaciência. Lillith tomou a palavra.
— Meu Senhor Ariakan — disse a Dama da Noite, fazendo uma vênia. Parecia perturbada, ansiosa. — Na realidade, este é Palin Majere, o prisioneiro por quem Steel Montante Luzente empenhou a palavra. Fui eu quem, em batalha, capturou o jovem mago. Conheço-o. Juro perante a nossa Rainha. Contudo, meu senhor, deixe que te afirme que a recuperação deste mago não deveria, em circunstância alguma, influenciar na sentença que ditou contra Steel Montante Luzente. Perdeu o prisioneiro e não foi ele a reavê-lo. Afirmou o meu senhor que o Montante Luzente deveria morrer. Insisto com Sua Senhoria para que leve a cabo a sentença!
O Senhor de Ariakan olhou para a mulher com uma expressão perturbada, e depois virou-lhe as costas, gorando-lhe os esforços de acrescentar o que quer que fosse. Em seguida, olhou para Trevalin.
— Subcomandante, reconhece este Veste Branca? Jura que confirma a sua identidade?
— Meu senhor, conheço, na verdade, o mago — respondeu Trevalin. — É Palin Majere, o prisioneiro, e juro pela minha Rainha e por todas as suas hostes! O que exonera Steel Montante Luzente da sentença de morte! — rematou, dardejando a Dama da Noite com um olhar de desafio.
Ariakan esboçou um leve sorriso.
— Assim será, subcomandante — disse. Virando-se para Steel, acrescentou: — Montante Luzente, é este o teu prisioneiro?
— Sim, meu senhor — respondeu Steel, aturdido. — Este é Palin Majere.
— Sobrinho de Raistlin Majere que, uma vez mais, caminha neste plano de existência! — exclamou a Dama da Noite. — Meu Senhor Ariakan, insisto contigo! Entregue imediatamente o mago e o primo aos Cavaleiros do Abrolho! Deixe que nos encarreguemos deles! Escute o que te digo, senhor, pois conspiram juntos! Se assim não fosse, que motivos teria este jovem mago para se entregar voluntariamente à morte? Acha que pode escapar! Meu senhor, mate-os agora, imediatamente! Caso contrário, aviso-o, estes dois provocarão a queda dos cavaleiros!
Os cavaleiros reunidos entreolharam-se e puseram-se a falar em voz baixa e agitada. Com a sua veemência e ardor, Lillith era de uma convicção alarmante.
Ariakan levantou a mão, exigindo silêncio, e olhou intensamente para o jovem mago que se mantinha sozinho perto do cepo de mármore manchado de sangue.
— Me aconselharei quanto à questão de Steel Montante Luzente — disse. — Quanto ao mago, os Cavaleiros do Abrolho podem interrogar o prisioneiro à vontade. Permitam apenas que fale em sua defesa, antes que o calor aumente e acabemos todos assados vivos.
Embora o Sol mal tivesse nascido, o calor já se fazia sentir. O aspecto do Sol também era estranho. Parecia maior, mais perto do mundo, como se isso fosse possível. O calor incidia implacável nas armaduras negras dos cavaleiros, e não eram poucos os que lançavam olhares em direção às áreas frondosas.
Com o braço, Ariakan limpou o suor da testa e prosseguiu o interrogatório.
— Palin Majere, veio pagar o seu resgate?
— Veio para nos destruir! — exclamou a Dama da Noite em voz estridente.
Ariakan lançou-lhe um olhar sinistro, obrigando-a a mergulhar em silêncio.
Palin abanou a cabeça.
— Não, não vim — respondeu.
— Está, de fato, aliado ao seu primo Steel Montante Luzente para nos trair? Jovem mago, diga a verdade — advertiu Ariakan. — Tenho meios de verificar se mente, meios que não considerará muito agradáveis.
— Fiz os votos dos Vestes Brancas — retorquiu Palin em tom orgulhoso. — Meu senhor, acha provável eu me aliar a um cavaleiro do Mal?
Acenando com a cabeça, Ariakan pareceu aceitar a resposta. Frustrada, Lillith rilhava os dentes, murmurando em voz baixa.
Ignorando a Dama da Noite, Ariakan continuou a dirigir-se ao jovem mago.
— Foi condenado à morte, no caso de ser capturado e não trazer o resgate. Ordeno que tal sentença seja executada de imediato. Antes de morrer, tem algo a dizer?
— Tenho sim, meu senhor — replicou Palin. — Dei a minha palavra de que regressaria. Antes de morrer, desejo apresentar as minhas desculpas a este cavaleiro e explicar-lhe por que faltei à minha palavra.
— Não permita que fale! — insistiu a Dama da Noite. — É um truque dos nossos inimigos! Não confie nesse mago! É sobrinho de um dos feiticeiros mais poderosos que já existiram! Meu senhor, afirmo que deparei com Raistlin Majere próximo da Floresta de Wayreth! Ele escapou do Abismo...
— O meu tio nunca esteve no Abismo! — interveio Palin. A Dama da Noite nem se preocupou em refutar.
— Raistlin voltou! — insistiu. — Foi ele quem te enviou até aqui, não é verdade?
— Não, não é! — respondeu Palin, e um leve rubor espalhou-se pelas faces descoradas. — Apresentei-me aqui por iniciativa própria. De outro modo, o meu tio me teria impedido!
Ariakan interveio.
— Dama da Noite, será que posso dizer uma palavrinha? Obrigado. Estou a par das façanhas dos membros da família Majere. Ao que parece a coragem corre-lhes nas veias. Quero falar com este jovem mago. Lillith, se o receia tanto — acrescentou, com secura —, então, subjugue-o com os encantamentos que te apetecer.
Carregando o cenho, a Dama da Noite aproximou-se e foi se postar ao lado de Palin. Desdenhou tocar nas bolsas e alforjes que continham os componentes de encantamento. Fosse qual fosse a magia que estes produziam, conseguiria anulá-la com facilidade. Os seus olhos, ávidos, invejosos e desconfiados, estavam fixos no bastão.
— Lorde Ariakan, ele tem consigo o Bastão de Magius... um dos artefatos mágicos mais poderosos de todo o continente de Ansalon.
— Pois então, tire-o — disse Ariakan, impaciente.
— Meu senhor, quero que seja ele a me dar. Isso provará que não se trata de um truque do tio.
Sem encarar a Dama da Noite, Palin manteve os olhos fixos em Ariakan.
— Meu senhor, pode ficar com o bastão quando este tombar da minha mão morta. Antes, não. Asseguro-lhe que não se trata de truque nenhum. Não estou envolvido com o meu primo em nenhum conluio. Meu senhor, permite que fale sem rodeios?
— Não pode confiar nele! — gritou a Dama da Noite. — Não vê que se recusa a entregar o bastão? Pode nos causar um mal terrível!
— Lillith, se quisesse nos causar agravo, estou certo de que já teria feito. Concedi-lhe o direito de apresentar as suas desculpas ao Montante Luzente, a quem julgou mal. De uma vez por todas, gostaria de ouvi-lo.
Acenando com a cabeça em sinal de agradecimento, Palin foi postar-se diante de Steel.
— Primo, agiu de uma forma honrada e nobre ao restituír os corpos dos meus dois irmãos ao solo da nossa terra, para que ali fossem enterrados. Escoltou-me em segurança até à Torre da Feitiçaria Suprema, onde possivelmente tentei submeter-me aos desejos que estes feiticeiros cinzentos me impuseram. Acho que, no fundo do coração, ambos sabíamos ser a busca falsa, que por um motivo obscuro qualquer nos haviam atribuído...
A Dama da Noite espumava, mas chegados a este ponto, nada podia fazer para obrigar Palin a se calar. Ariakan impusera as suas ordens e ela não se atreveria a desobedecer-lhe.
Palin prosseguiu:
— Cada um de nós entrou na Torre da Feitiçaria Suprema tentando alcançar os seus objetivos. Steel Montante Luzente mostrou-se, nessas diligências, sempre leal à sua Rainha. Eu, possivelmente, não terei sido tão nobre nas minhas. Seja como for, entrei no laboratório do meu tio, plenamente confiado de que o Steel Montante Luzente me acompanharia. Contudo, a porta se fechou com estrépito e não consegui abri-la de novo. Como nada mais podia fazer, procurei e encontrei o Portal. Atravessei-o...
— Mente! — interrompeu-o a Dama da Noite, com voz esganiçada. — Nenhum mago com uma categoria tão baixa como a dele pode atravessar o Portal que dá para o Abismo! Está escrito que apenas um feiticeiro Veste Negra, acompanhado por um sacerdote de Paladino... — Apercebendo-se do que dissera, a Dama da Noite calou-se repentinamente.
Ariakan ergueu de leve o cenho.
— Mas, eu achava que tinha enviado este jovem para que abrisse o Portal. Talvez ele tenha encontrado a chave. Continue, Palin Majere. Quase me faz esquecer o calor.
— Atravessei o Portal — repetiu Palin. — Não precisei de chave. Não me deparei com obstáculos. O Portal se abriu. A Rainha das Trevas o abandonara.
— Mentiras! — murmurou Lillith, sendo apenas ouvida pelos que se encontravam próximos.
Ao escutar esta parte da história, Ariakan carregou o cenho. Os cavaleiros postados no pátio, trocaram olhares inquiridores.
Palin engoliu em seco, tentou prosseguir, tossiu e acabou por dizer, num fio de voz:
— Meu senhor, posso pedir-lhe um copo de água?
Ariakan esboçou um gesto com a mão. Um escudeiro trouxe uma concha cheia de água, que Palin bebeu avidamente. Steel Montante Luzente permanecia imóvel. Recusou que lhe prestassem assistência e os seus olhos mantinham-se fixos em Palin.
— Obrigado, meu senhor — disse este. — Encontrei o meu tio dentro do Abismo. Não estava sendo torturado, como dizem as versões que correm por aí. Levou-me, e ao meu companheiro, o kender Tasslehoff Pés Ligeiros, para que testemunhássemos um acontecimento dos mais extraordinários... um comício dos deuses.
Os murmúrios dos cavaleiros cresceram de tom. Muitos abanaram a cabeça e soltaram exclamações de incredulidade, até mesmo gargalhadas de escárnio. Os comandantes ordenaram aos homens que se calassem.
Ariakan, que fitava Palin com desconfiança agora, murmurou para um ajudante:
— Temos permissão para condenar os loucos à morte?
Palin, que ouvira, espetou com arrogância o queixo.
— Meu senhor, juro por Paladino, por Solinari, por Mishakal e por todos os deuses do Panteão branco, que falei a verdade. Sei que parece incrível — prosseguiu, com redobrada paixão —, mas o que me foi dado ouvir, ainda é mais inacreditável.
— O mundo... O nosso mundo... corre um perigo terrível. Recentemente, os Irdas capturaram a Pedra Preciosa Cinzenta e, na tentativa de utilizarem a magia desta para, meu senhor, te impedirem de invadir a terra deles, inadvertidamente, racharam-na ao meio. Caos, o Pai dos Deuses, encontrava-se aprisionado dentro da jóia. Ao quebrarem-na, os Irdas libertaram o Caos.
— O Pai condenara os Filhos e jurara destruir a Criação destes. Os deuses uniram-se para lutar contra ele e a sua esperança e desejo é que nós, os mortais, nos juntemos a eles. Caso contrário, o mundo estará condenado. Todos nós, todos os seres vivos à face da Terra e, em última instância, o próprio mundo, perecerão.
Das pedras do pátio subiam ondas de calor. As moscas zumbiam incessantemente ao redor do sangue seco que manchava o cepo de mármore. Rolando os olhos e abanando a cabeça, a Dama da Noite esboçou um sorriso escarninho, dando a entender aos presentes o que pensava da narrativa de Palin.
Ariakan carregou ainda mais o cenho.
— Suponho que não dispõe de qualquer prova que corrobore as suas pretensões, não é, Palin? A história que nos relatou é monstruosa, tem que admitir.
— Meu senhor, não disponho de provas consistentes — respondeu Palin em tom sereno. Não estava à espera que acreditassem nele, a não ser, possivelmente, uma pessoa, a única que interessava. Olhando para Steel, acrescentou: — Mas ouvi Paladino estabelecer um acordo com a tua Rainha. Aos cavaleiros das trevas, foi atribuído o controle de Ansalon, a fim de que pudessem unificar todos os povos beligerantes, torná-los coesos para que formassem uma frente contra os exércitos de Caos. A torre caiu nas mãos das suas forças, foi a primeira vez que os exércitos das trevas a conquistaram.
— Gostaria de pensar que a nossa esmagadora superioridade, em termos de armas e de homens, teve algo a ver com a nossa vitória — disse Ariakan, em tom ambíguo.
Steel virou-se para Ariakan.
— Meu senhor, permite que eu fale?
— Claro, Montante Luzente. Surpreende-me que não o fizesse antes.
— Meu senhor, acredito em Palin Majere. Não estou bem certo porquê — acrescentou Steel, com um encolher de ombros —, salvo pelo fato de ter viajado com ele e saber que é um homem de bem. Este ato, apresentar-se aqui com o risco da própria vida para salvar a minha atesta-o. Peço ao meu senhor para recordar um estranho acontecimento ocorrido durante a Batalha da Torre da Feitiçaria Suprema: a retirada dos dragões prateados e dourados. Achamos que batiam em debandada e esperamos que se reagrupassem. Mas não voltaram a aparecer. Que outra explicação podemos dar, a não ser que receberam ordens de Paladino para debandar?
Ariakan ponderou o assunto. Era um homem de fé e ele mesmo se rebelara contra os deuses. Muitos afirmavam que a sua mãe Zeboim, era a deusa dos mares. E há muito tempo, o próprio Ariakan fora honrado ao ser-lhe concedida uma audiência com a rainha Takhisis, de quem obtivera pessoalmente a bênção para formar a cavalaria dedicada à sua régia pessoa.
— Tragam aqui a Suma-Sacerdotisa — ordenou. — Em breve saberemos a verdade.
Um mensageiro partiu no cumprimento da ordem. Os cavaleiros permaneceram no pátio, ensopados de suor e desconfortáveis, fustigados pelo sol infernal.
A quietude foi agitada por um grito estridente e penetrante. Um grito de terror e de angústia, de eriçar os pêlos da nuca e revolver a carne do braço.
— Que temos agora? — perguntou Ariakan.
O frenesi apossou-se de um grupo de cavaleiros que se mantinham à entrada. Estes se afastaram precipitadamente, para desimpedir a passagem.
O mensageiro reapareceu, e o seu rosto estava pálido como a cera.
— Meu senhor! A Suma-Sacerdotisa morreu!
Um silêncio de estupefação abateu-se sobre os cavaleiros. Depois de ouvirem o relato de Palin, a morte repentina da figura suprema do seu sacerdócio parecia-lhes como o pior augúrio possível.
— Como aconteceu? — perguntou Ariakan abalado.
— Meu senhor, trouxe comigo a mulher que, na ocasião, se encontrava com ela. — O mensageiro desviou-se para dar passagem a uma sacerdotisa de Takhisis. A jovem estava lívida, com o cabelo desgrenhado e as vestes rasgadas, a atestarem bem a violência do seu desgosto.
— Meu senhor, Sua Santidade mostrava-se extremamente angustiada. Desde esta manhã, quando se deslocou às celas da prisão para visitar o condenado, que parecia distraída, preocupada. Sua Santidade aproximou-se do altar para rezar uma oração. Efetuava os sacrifícios rituais, quando roçou com o braço num frasquinho com óleo sagrado e o derramou por cima do altar. De um dos candelabros tombou um pouco de cera ardente, ateando fogo. Este se alastrou rapidamente, consumindo os sacrifícios antes dos mesmos serem adequadamente ungidos. A Suma-Sacerdotisa fitou as chamas com uma expressão de tamanho horror estampada no rosto, que a recordarei enquanto viver. Depois, meu senhor, tombou diante do altar em chamas. O fogo extinguiu-se, mas quando tentamos levantar Sua Senhoria verificamos que estava morta.
Os cavaleiros ouviram a história mergulhados num silêncio que parecia abarcar o mundo. A voz da Dama da Noite quebrou-o, tão incômoda como uma pedrinha arremessada à quietude das águas.
— Meu senhor, eu bem te disse! São os enleios deste Veste Branca! E daquele também! — acrescentou, apontando subitamente para Steel. — Estão combinados! São ambos traidores! São eles os responsáveis pela morte de Sua Santidade!
— Comandantes, mandem destroçar os homens! — ordenou Ariakan. — Que regressem aos seus postos. Dama da Noite, leve Palin Majere para uma cela. Ficará detido para mais interrogatórios. A sentença de morte será adiada até o assunto estar resolvido. Parto para o templo, a fim de proceder a mais investigações. — Ariakan virou-se para partir.
Com um assomo de arrojo, Trevalin exclamou:
— Meu senhor!
Irritado, Ariakan olhou por cima do ombro e perguntou:
— Sim, subcomandante, que deseja?
— Meu senhor, dado que Steel Montante Luzente foi redimido e por não existirem acusações substanciais contra ele, solicito que lhe restitua o posto a que tem direito e o coloque sob o meu comando.
— Liberte-o e incorre em perigo, Lorde Ariakan! — exclamou Lillith em voz melíflua e letal. — Liberte-o e a cavalaria cairá!
Ariakan fitou Lillith com desagrado. Depois, olhou para Steel e encolheu os ombros.
— Muito bem, subcomandante — disse. — Montante Luzente, dou-lhe permissão para voltar ao seu batalhão, mas não pode abandonar a fortaleza.
O Senhor de Ariakan encaminhou-se para o Templo de Takhisis, que fora erigido temporariamente nos terrenos exteriores das muralhas da Torre da Feitiçaria Suprema. Embora, em termos oficiais, os cavaleiros das trevas governassem a cidade, haviam constatado ser impossível levar para o interior da torre quaisquer objetos sagrados em honra a Sua Majestade das Trevas.
Abanando a cabeça perante a loucura do seu suserano, a Dama da Noite deu ordem de prisão a Palin. Os feiticeiros manietaram-lhe os braços, despojaram-no dos componentes de encantamento e amordaçaram-no. Contudo, o mago segurava ainda o Bastão de Magius.
A Dama da Noite aproximou-se. Comprimindo fortemente os lábios, determinada a não revelar a mínima fraqueza, estendeu a mão e, com um gesto súbito, apoderou-se do bastão, estremecendo face à perspectiva da dor.
O seu rosto desanuviou-se, suavizou-se. Olhou para o bastão, primeiro com ar estupefato, depois, com triunfo. Exultando, libertou-o do aperto de Palin.
Este, ficou aguardando que o bastão reagisse e punisse a Dama da Noite pela sua audácia.
Nada aconteceu. O bastão podia muito bem passar por um cajado qualquer.
— Parece que o Bastão de Magius escolheu um novo amo — disse Lillith. — Eis o testemunho da aprovação de Sua Majestade das Trevas. O meu senhor tem que ficar a par da verdade. — Sorrindo de um modo sutil, enigmático, acrescentou: — E ficará. Há de constatá-lo com os seus próprios olhos.
Acariciando o bastão e afagando com os dedos a madeira suave, a Dama da Noite fez um gesto aos guardas para que levassem o jovem mago.
Quando se sentiu arrastado pelos Vestes Cinzentas, Palin dirigiu a Steel um último olhar.
— Tem que acreditar em mim — disse-lhe em silêncio. — Tem que convencê-lo!
Steel permaneceu impávido, mas os seus olhos pensativos seguiram o jovem até este sair do pátio. E mesmo depois de o levarem, Steel continuou ali parado, de olhos fixos.
Dando uma palmada nas costas de Steel, Trevalin interrompeu-lhe os devaneios.
— Parabéns, Montante Luzente! — exclamou. — Salvo das garras da morte! Como se sente? Exultante? Aliviado?
— Confuso — respondeu este.
Steel dirigiu-se para os alojamentos onde se encontravam os cavaleiros do seu batalhão. Por recomendação pessoal do Senhor de Ariakan, restituíram-lhe a armadura e — o mais importante — a espada. Depois, tomou o desjejum com o subcomandante Trevalin e os camaradas, que pretendiam escutar as aventuras vividas pelo cavaleiro e o Veste Branca.
Steel não se sentia com vontade de falar de Palin. Manteve um silêncio macambúzio, respondendo com frases curtas às perguntas dos amigos. Vendo-o renitente em falar, os cavaleiros mudaram de assunto e referiram-se às incursões recentes a Qualinesti, à batalha que nunca aconteceu.
— Elfos! — escarneceu Trevalin. — Já vi sapos mais honrados. Pela calada da noite, rastejaram até nós. Alguns dos seus próprios senadores ofereceram-nos Qualinesti de mão beijada... cuspida. Um deles... como se chamava?
— Rashas — sugeriu um cavaleiro.
— Sim, Rashas. Proferiu um longo discurso a respeito da integridade e da nobreza dos Elfos... por oposição à ausência, em nós, de tais qualidades... e depois, sentou-se calmamente e assinou os papéis que subjugavam o povo deles a sola da bota do meu suserano. Tudo muito civilizado — acrescentou Trevalin, soltando uma gargalhada. — O regente deles não passa de um rapazola. Esse tal Rashas tem o garoto pela trela. A propósito, Montante Luzente, é o filho de Tanis Meio Elfo.
Steel, que estivera pensando noutras coisas, levantou a cabeça.
— Quem? — perguntou.
— Gilthas, o suserano dos Elfos, acho que é esse o nome. Palavras viscosas de elfo... saíram-me a deslizar pelo ouvido. Uma coisa é certa, o rapaz não tem a garra do pai. Nem tampouco da mãe, se dermos crédito a todas as histórias que se contam a respeito do General Dourado.
— Trevalin, não estou assim tão certo — argumentou um dos cavaleiros. — Ele pode ficar sentado no trono tão dócil e calado como um rato, mas às vezes dá as suas olhadas... Bom, se eu fosse aquele senador gordo, manteria os olhos no garoto.
— Ora! — exclamou Trevalin, sardônico. — O único elfo que vale alguma coisa é esse tal Porthios. Ora aí está um lutador! E, vejam lá como são os Elfos, o único chefe bom que tinham, enviaram para o exílio. Dizem que vive como um bandido.
— Correm notícias de que ele e os seus guerrilheiros atacaram o acampamento do Batalhão Vermelho — observou outro cavaleiro. — Mataram três dragões e fugiram antes de alguém dar pela sua presença.
— Não duvido — concordou Trevalin. — É esperto, apto e para um elfo, possui rasgos de honra, assim ouvi dizer. Podia defrontá-lo em combate sem sentir vontade de tomar um banho depois. Sempre que esse elfo Rashas se aproximava de mim, me dava vontade de retirar a porcaria das mãos.
Continuaram a falar sobre a guerra, mas Steel deixou de prestar atenção. Ainda ouvia as palavras de Palin. Perpassaram-lhe a mente, misturadas com o canto da melodia que os cavaleiros prisioneiros tinham entoado em sua honra. Steel recordava-a vagamente de outras épocas, embora não conseguisse lembrar-se onde. Possivelmente durante a guerra, quando, em criança, vivera em Palanthas. Ao longo de 20 anos, não pensara nela. Contudo, a toada, solene, reverente, fora em sua memória, fora um hino de vitória, que honrava o altruísmo, embora o ensombrasse a tristeza da perda irreparável. Desconhecia as palavras, em Solâmnico antigo, mas pouco lhe interessava, pois o que ouvia, destacando-se da toada, como o azeite à tona da água, eram as palavras de Palin.
— Montante Luzente!
Steel levantou bruscamente a cabeça.
Era Trevalin, que lhe pousou a mão no ombro, dizendo:
— Meu amigo, vá se deitar. Duvido que nas últimas noites tenha dormido alguma coisa.
Steel obedeceu, mais para fugir da companhia do que por sentir necessidade de descansar. De qualquer modo, era difícil conciliar o sono. O calor tornara-se asfixiante, parecia que chupava o ar dos quartos. Estirou-se na cama, alagado em suor, a interrogar-se sobre o que os Vestes Cinzentas estariam fazendo a Palin. Fosse o que fosse, não seria agradável.
Steel não era melindroso. Já vira homens morrendo, serem torturados antes. Mas este caso era diferente. A Dama da Noite não tentara extrair informações de Palin, obrigara-o, sim, a desistir do bastão, que lhe pertencia por direito próprio. Aos olhos de Steel, constituía um roubo e portanto um ato desonroso. Estava bem ciente de que os Vestes Cinzentas encaravam o confisco do bastão do inimigo como Steel encararia o confisco da fortaleza do adversário, mas não conseguia impedir de sentir repulsa e revolta. O que Trevalin comentara a respeito do elfo Rashas, Steel sentia na presença da Dama da Noite — desejava se afastar e lavar a porcaria que lhe conspurcava as mãos.
O jovem mago comportara-se de uma forma bastante honrosa, e ia receber um tratamento dos mais vergonhosos.
“Ao menos, eu poderia tentar obter uma morte rápida e indolor para o Palin”, pensou Steel, sonolento. “É o mínimo que posso fazer, e ele merece.”
Steel interrogava-se como poderia concretizá-lo, mas quando deu por si, o clarão da tocha fora substituído pela luz do Sol. Dormira o dia inteiro.
O anoitecer não veio abrandar o calor. Durante o dia, a temperatura atingira valores tão elevados que, os que procediam às rondas, fustigados pelo calor tórrido, logo vacilavam e tinham de ser constantemente substituídos por novas tropas. Vários pagens jovens receberam reprimendas por tentarem fritar um ovo nas pedras das calçadas, mas o oficial que os surpreendera, passou o dia a exibir, a quem encontrava, o ovo frito.
Terminada a investigação à morte da Suma-Sacerdotisa, o Senhor de Ariakan ordenara que se procedesse de imediato o funeral e o corpo fosse cremado. Com aquele calor, tornava-se impossível o velório dos cadáveres. Não descobrira nela nenhuma marca nem ferida, como resultado de circunstâncias mágicas ou outras. A mulher era idosa, afirmavam alguns que centenária. Considerou que morrera de causas naturais e passou o resto do dia a tentar acalmar os boatos que fervilhavam entre os supersticiosos Brutos.
Steel acordou na mesma hora em que os camaradas se preparavam para deitar. Não era capaz de retomar o sono, pois sentia-se repousado e transbordante de energia. Procurou Trevalin e perguntou ao subcomandante se sabia o que acontecera ao Veste Branca.
Sem se mostrar particularmente interessado com o assunto, Trevalin respondeu que presumia que a Dama da Noite tinha levado o jovem para as armadilhas para dragões, agora abandonadas, e onde os Cavaleiros do Abrolho haviam assentado arraiais. Em tom breve, Trevalin avisou Steel para não se envolver nem com o Veste Branca nem com os Cinzentos.
Steel refletiu e chegou à conclusão de que se tratava de um bom conselho. Nada podia fazer para salvar Palin, e quem sabe se não agravaria as coisas para o jovem. Era mago, escolhera o rumo a dar à vida, escolhera o seu próprio destino. Determinado a expulsar Palin da mente, Steel decidiu fazer uma visita à Fulgor.
Trevalin contara a Steel que, durante a incursão a Qualinesti, o dragão azul se mostrara extremamente indócil. A fêmea queixara-se contra todos os condutores e nunca encontrara nenhum adequado. Guerreara com o companheiro, inflingindo-lhe uma dentada no focinho que pusera o macho azul fora de serviço durante uma semana. Incapaz de dominar Fulgor, o dono considerara-a inapta para o serviço. Os outros dragões mantinham-na à distância.
Agora que regressara, Steel esperava vê-la retomar a normalidade, embora soubesse que, durante uma semana, a bicha iria possivelmente mostrar-se amuada antes de decidir perdoar-lhe. A fim de apressar as coisas, tencionava passar pela cozinha e ver se conseguia persuadir o cozinheiro do turno da noite a lhe dar um suculento porco. Fulgor adorava carne de porco e Steel estava esperançoso em ver a bicha aceitar o naco como uma oferenda de paz.
Percorria os corredores vazios e silenciosos, a caminho do quarto nível da torre, onde se situavam as cozinhas, quando os seus olhos captaram um vislumbre de cor. Qualquer cor parecia deslocada no meio das sombras profundas e carregadas das vestes negras e cinzentas dos cavaleiros. Não pertencia àquele lugar. E, tratava-se de uma miscelânea de cores que, iluminadas pelo clarão das tochas, pareciam extremamente berrantes, dissonantes e, suspeitosamente, defasadas.
Para aumentar a sua desconfiança, havia o fato do vislumbre de cor se mover e desaparecer quando Steel se virou para olhar. Julgou ouvir um som, como se uma voz se preparasse para falar, logo a seguir abafada..
Desembainhando a espada, Steel foi investigar. O som provinha dos fundos de uma escadaria de pedra, escondida numa área recuada e mergulhada nas trevas. Steel pôs-se a caminhar nas pontas dos pés, a fim de conseguir apanhar o espião — pois concluíra que o intruso decerto era um. Com aquele calor, o cavaleiro não envergava a armadura, pelo que quase não fazia ruído. Contornando a escadaria, avistou dois vultos escuros, que se destacavam das sombras. Um deles, vestia preto e envergava capuz. Não era um fato inusitado, atendendo à presença de todos os sacerdotes de Takhisis, mas o outro, sim. Atônito, Steel avistou... um kender.
— É ele! — dizia o kender em voz baixa, dirigindo-se ao companheiro encapuzado — O reconheceria em qualquer parte! É porque parece mesmo o Sturm, entende? Acho que deveríamos perguntar-lhe...
Movendo-se rapidamente, Steel avançou, a fim de surpreendê-los pelas costas. Estavam tão embrenhados na conversa, que conseguiu se aproximar sub-repticiamente, sem que dessem pela sua presença. Steel agarrou o kender pelo penacho e, com uma torcida, enrolou-o na mão.
— Perguntar-me o quê? — inquiriu.
— Ai, ai! Ah! Fique quieto! Isso dói! — guinchou o kender, estrebuchando e tentando, sem êxito, libertar-se do aperto de Steel.
— Largue-o! — ordenou o vulto encapuzado, com uma voz de mulher. Steel ignorou a sacerdotisa e arrastou o kender, que continuava a protestar, para junto da luz. Reconhecera a voz, mas queria ter certeza.
E tinha.
— O que você faz aqui? — perguntou, dando um safanão no kender.
— Ai! Ui! Está arrepiando meu cabelo! — gemeu o kender. Segurando na mão de Steel, a sacerdotisa de vestes negras tentou fazê-lo largar a presa.
— Disse para soltá-lo! — repetiu.
Empurrando o kender contra a parede, Steel virou-se para a sacerdotisa. Na luta, o capuz caíra e o seu cabelo prateado reluziu ao clarão da tocha.
Vendo que Steel a reconhecera, a mulher voltou a cobrir a cara com o capuz.
Muito tarde.
— Você! — exclamou ele, atônito.
A jovem nada disse, mas dardejou-o com um olhar fulminante. Virando-lhe as costas, socorreu o kender, que esfregava a cabeça e, limpando os olhos, perguntou — algo arquejante — se lhe restava algum cabelo.
Steel olhou rapidamente em volta, interrogando-se se havia mais alguém por perto. As escadas situavam-se numa área escondida de um corredor. A hora do jantar já passara há muito. As únicas pessoas susceptíveis de se encontrarem nesta zona da torre, eram o cozinheiro e os ajudantes. O primeiro pensamento que ocorreu a Steel, foi fazer soar o alarme e mandar prender aqueles dois. Foi o seu primeiro pensamento e o que sabia que devia fazer — tencionava mesmo fazê-lo, mas descobriu que não estava agindo em conformidade.
Segurando a mulher pelo ombro, arrastou-a, e ao kender, de novo para as sombras.
Primeiro irei interrogá-los, disse para consigo, depois, entrego-os aos guardas.
— Em nome de Takhisis, o que fazem aqui? — perguntou Steel em voz alta. Não conseguia se lembrar do nome da mulher nem do kender.
O kender fez menção de falar, mas a mulher, dando-lhe um beliscão, obrigou-o a se calar.
— Não que seja da sua conta — disse ela a Steel, num tom altivo. — Mas, se quer saber, agora sou uma sacerdotisa de Takhisis. Acompanho este prisioneiro...
— Sou eu! — interrompeu-a, solícito, o kender.
— ...à prisão — concluiu a mulher, olhando de cenho franzido para o kender.
— Deve ser um prisioneiro importante — observou Steel —, para obrigá-la a faltar às exéquias fúnebres.
Os olhos dourados da mulher cintilaram.
— Fúnebres? — repetiu, num fio de voz, retorcendo a veste negra de veludo. — Eu... eu não sei de nada. Quem morreu?
— A sua Suma-Sacerdotisa — respondeu Steel, implacável. — Todos os sacerdotes deste lugar estão de luto carregado. Quanto a essa história tola sobre o prisioneiro kender, ninguém lhe dará crédito. Qualquer sacerdote de Takhisis que encontrasse um kender a vaguear por aqui, o despacharia num instante para as mãos de Chemosh. Para a próxima, tente outra.
Mas viu-se forçado a concordar que a mulher merecia respeito. Aceitou com coragem a derrota. Embora até os seus lábios estivessem pálidos e o esforço fosse tremendo, conseguiu readquirir a compostura. Cerrando os maxilares e comprimindo a boca, assumiu uma postura altaneira e encarou-o, com ar digno.
— Que fará conosco? Chamará a guarda?
— Sou eu quem faz as perguntas. O que fazem aqui? Desta vez, quero a verdade.
A mulher mordeu o lábio e, finalmente, admitiu:
— Viemos salvar o Palin. Mas não conseguimos descobrir onde se encontra.
— Não está na cadeia — acrescentou o kender. — Já verifiquei. Está vendo Usha, eu tinha razão! Este é o Steel e deve saber onde o Palin está.
— Sabe? — A jovem inclinou-se para ele e pousou-lhe a mão no braço. — Vai nos dizer? Não precisa nos conduzir até lá. Diga-nos só e deixe-nos partir. Que mal tem? O Palin veio aqui para te salvar a vida. Não pode permitir que morra!
Em silêncio, Steel amaldiçoou a mulher, amaldiçoou o kender e amaldiçoou o fado que o conduzira ao caminho deles, justamente quando começava a pensar que Palin não merecia morrer, que havia algo de ignóbil na sua própria pessoa por permitir que o jovem mago fosse condenado à morte.
O que obrigou Steel a fazer uma pausa para reconsiderar. Seria apenas o azar que o conduzira até àqueles dois? Ou haveria algo mais? Seria por influência da sua Rainha? Com certeza fora Takhisis que o impelira até ali. Sentia-lhe a presença, sentia-a nas trevas que o envolviam. Contudo... O que Sua Majestade queria que ele fizesse? Que prendesse os dois? Ou será que queria que os ajudasse a libertar Palin?
Todos os cavaleiros foram ensinados a, em caso de dúvida, consultarem a Visão da Rainha das Trevas. Steel, que sempre se sentira confuso com a natureza enigmática, intrincada do conceito que tinha da Visão, considerou que, nesta situação, pouco ajudaria. Via-se arrastado em duas direções, uma a pressioná-lo para que atraiçoasse Usha e Tas, a outra a pressioná-lo para que os ajudasse.
A única coisa que Steel tinha como certa, era a história que Palin contara ao Senhor de Ariakan. Ele próprio fora invadido pela inquietude e o mal-estar. A atmosfera estava repassada de perigo, tal como quando crepita durante uma trovoada seca. Passava-se algo de terrivelmente errado em algum lugar.
— Venham comigo — disse, em tom abrupto, dirigindo-se a Usha e a Tas. — Mantenha o capuz bem puxado para frente.
— Obrigada! — respondeu Usha, com fervor.
— Não me agradeça ainda — retrucou Steel, com frio desdém. — Não pretendo libertar o Palin. Preciso ter uma conversa com ele, indagar mais coisas sobre essa história da Pedra Preciosa Cinzenta. Levo-a, e ao kender, só para poder estar de olho em vocês. Talvez decida denunciá-los. E, nem uma palavra! Se alguém nos detiver, deixem que eu falo.
Os dois aquiesceram. O kender fez menção de dizer qualquer coisa, mas Usha o calou. Steel interrogou-se como eles planejariam libertar Palin daquela fortaleza, quase lhes perguntou, mas decidiu que quanto menos soubesse, melhor. Deviam ter um plano, afinal a mulher era feiticeira.
Abandonaram os pisos superiores e embrenharam-se pelas profundezas da torre em direção às armadilhas para dragões, agora abandonadas.
A Torre da Feitiçaria Suprema não dispunha de lugar, nem o providenciara, para os fazedores de magia. Não constituía surpresa, na medida em que nunca, nos anais da sua longa história, os Cavaleiros da Solamnia se viram obrigados a recorrer a feiticeiros.
Dizia-se que Huma fora para a batalha tendo ao lado um feiticeiro, e que os dois se valeram do aço e da magia para derrotar os inimigos. O feiticeiro chamava-se Magius, um Veste Vermelha que era amigo de Huma desde a infância. O bastão que Palin trazia consigo, pertencera a esse mesmo Magius, cujo destino trágico fora responsável pelo fato de permitirem agora aos feiticeiros de Ansalon o uso de adagas. Mas, quando eram eles a relatar a história de Huma, os cavaleiros quase nunca se referiam a Magius. Ou, se o incluíam na narrativa, era a contragosto e minimizavam o papel que desempenhara. Salientavam sempre que Huma nunca confiara em Magius, mas que, por mais de uma vez, o nobre e valente cavaleiro tudo arriscara pelo fraco amigo.
Claro que os feiticeiros de Krynn tinham uma versão diferente. Segundo eles, o verdadeiro herói fora Magius, que dera a vida pelo amigo e tivera uma morte terrível nas mãos do inimigo. Quando a história era contada na Torre da Feitiçaria Suprema, Huma perfilava-se como um personagem menor — um sujeito simpático, todo coração e músculos, que confiava em Magius para determinar o curso da batalha.
A verdade jaz no túmulo perdido e esquecido onde o corpo de Magius repousa, e no túmulo vazio de Huma. A única certeza é de não existirem lojas de produtos de magiana na Torre da Feitiçaria Suprema, nem laboratórios de feiticeiros, nem estantes de livros de encantamentos.
Assim, os feiticeiros Vestes Cinzentas dos Cavaleiros de Takhisis, viram-se entregues a si mesmos.
Vários motivos os levaram a escolher as armadilhas para dragões, há muito abandonadas, e o principal, é evidente, foi a privacidade. Embora os feiticeiros integrassem os Cavaleiros de Takhisis, e vivessem, treinassem e lutassem com os seus pares, os Cavaleiros Cinzentos eram, acima de tudo, magos, e os feiticeiros precisam de locais secretos, calmos e seguros onde trabalhar.
As armadilhas para dragões preenchiam todos estes requisitos. Ninguém lá se aventurava sem um motivo. Durante a Guerra da Lança, a câmara na qual se erguia outrora o globo do dragão, desabara. Os Cavaleiros da Solamnia haviam retirado as pedras fragmentadas, mas as “pedras evocavam a morte”, pelo menos era o que afirmavam os duendes, porque o sangue que as empapava nunca poderia ser removido por completo. O chão de pedra das armadilhas para dragões achava-se manchado de sangue: dos dragões e dos cavaleiros que ali lutaram contra os gigantescos animais. Tratava-se de um lugar palpitante de morte, um lugar pavoroso, triste e sofrido.
Palin conseguia ouvir os guinchos enrouquecidos, os gritos de tortura, o estertor dos moribundos. Por mais de uma vez virara, temeroso, a cabeça, crendo sentir atrás de si o bater frenético de asas. Mas os sons residiam todos na sua imaginação, a menos que os fantasmas dos dragões e dos cavaleiros ali chacinados na luta encarniçada, prosseguissem a batalha num outro plano qualquer. Neste domínio de existência, as armadilhas eram sombrias, tão frias como qualquer local sob o Sol ardente, e impregnadas dos ruídos furtivos que se associam aos feiticeiros: o arranhar da pena que escrevinha um encantamento, o recitar sussurrante de alguém tentando memorizar um encantamento, o papaguear monótono de um outro a decifrar as palavras mágicas, o roçar de vestes a atravessarem o chão poeirento.
Palin tivera tempo para escutar os sons — os dos vivos e os dos mortos. Não fora torturado nas mãos da Dama da Noite, como esperara. Nem tampouco fora morto, coisa que também esperava. Parecia que o haviam esquecido. Ficara abandonado ali, nos recessos da fortaleza, longe do Sol causticante, e por tanto tempo, que perdera a noção. Desde a sua chegada à fortaleza, podiam ter decorrido horas ou dias, tanto fazia. Ninguém se aproximava, ninguém lhe dirigia a palavra.
A mordaça, atada firmemente na boca, obrigava-o a manter os maxilares abertos e fazia-o sentir que ia sufocar. Tinha sede e a garganta inflamada e ressequida. As amarras que lhe prendiam os pulsos impediam que a circulação se fizesse. Estava acorrentado pelo tornozelo à perna de uma grande mesa de mármore cinzento, toda marcada com símbolos cabalísticos.
Mediante grunhidos e crocitos incoerentes, tentara uma vez comunicar a necessidade desesperada que tinha de água, mas o mago que na altura passara, ignorara-o e nem se detivera.
A Dama da Noite espoliara-o do Bastão de Magius, e possivelmente seria este o seu mais amargo tormento, que transcendia a mordaça, a sede, a incerteza e o medo. Com o bastão, desvanecera-se a voz do tio. Palin sentia-se realmente só — coisa que não experimentava desde que tomara posse do bastão.
Interrogou-se quanto ao que os Cavaleiros Cinzentos pretendiam fazer com ele e quando, e por que motivo nada tinham feito até então. Quanto mais tempo decorria sem acontecer nada, mais ele se sentia receoso. No pátio, quando falara com o Senhor de Ariakan e se vira rodeado pelo inimigo, não experimentara uma ponta de medo. Nem mesmo quando olhara para o cepo e vira o sangue coagulado e impregnado na cavidade medonha. Nessa altura, podia ter morrido com dignidade, sem desgosto, a não ser a mágoa de saber a tristeza que a sua morte causaria aos entes queridos.
Enquanto se encontrava ali sentado, imerso na quietude das trevas, o medo fora crescendo aos poucos. Os seus pensamentos começaram a perambular, chegando por vezes a lugares horríveis. Olhou em redor, para as armadilhas para dragões, viu como funcionavam, avistou os buracos através dos quais os cavaleiros atacavam com as lanças. Os dragões mortos eram dragões ruins, do Mal, criaturas da Rainha das Trevas, dragões vermelhos e azuis, que haviam chacinado um número incontável de inocentes, torturado e atormentado as suas vítimas.
Colocado num pedestal, no coração da torre, o globo do dragão atraíra-os para uma armadilha, chamando-os com palavras mágicas às quais não conseguiram resistir. Depois de voarem para o interior dos portões escancarados, a armadilha fora acionada. As pontes levadiças desceram com estrondo e os dragões não puderam escapar. Os cavaleiros atacaram com espadas, lanças e setas. Ao visualizar a forma como morreram — encurralados, frenéticos, feridos, gritando de raiva e de agonia — Palin sentiu no coração uma réstia de piedade pelas criaturas magníficas e condenadas.
Por fim, cedeu à exaustão e cochilou, para de novo acordar, sobressaltado com os sonhos pavorosos que o acossavam, nos quais só havia sangue, dores excruciantes e, acima de tudo, o pavor de ser apanhado numa armadilha, sem que não houvesse uma saída, a não ser a morte.
Resoluto, expulsava as imagens do espírito, mas estas voltavam, com uma insistência aflitiva. Não conseguia compreendê-las, mas perturbavam-no, e o medo foi crescendo. O horror de ser deixado sozinho naquele lugar pavoroso começou a consumi-lo, até o pensamento da tortura, se ao menos a dor trouxesse consigo um rosto vivo, uma voz viva, quase lhe parecia agradável.
De modo que, quando a Dama da Noite regressou, trazendo na mão o Bastão de Magius, Palin sentiu uma alegria irracional por vê-la.
Mas foi de pouca duração.
A Dama da Noite segurou o bastão diante dele. De início, nenhum pensamento ocorreu à mente perturbada de Palin. Depois, lembrou-se que, da primeira vez que a Dama da Noite tentara agarrar o bastão, este a queimara. Sentiu um baque de medo no coração. Será que conseguira ascendência sobre o bastão? Será que o bastão o abandonara?
— Shirak — exclamou Lillith, com voz triunfante. O cristal que sobrepujava o bastão, irradiou um fulgor sombrio e bruxuleante, como se relutasse em obedecer.
Palin baixou a cabeça, para que ela pensasse que a luz o incomodava. Na verdade, tentava esconder da mulher as lágrimas.
Rindo, a Dama da Noite encostou o bastão à mesa, a uma distância mínima de Palin.
— Eu sabia que, mais cedo ou mais tarde, o bastão viria até mim! Vi nas pedras videntes! Que disse?
Palin grunhira algo. Com um rápido puxão, a Dama da Noite retirou-lhe a mordaça da boca.
Depois de tentar umedecer os lábios ressequidos, conseguiu balbuciar:
— Água.
— Sim. Já imaginava que tinha sede — respondeu a Dama da Noite, destapando um odre de água e derramando o líquido na boca de Palin.
Este sorveu avidamente, engasgou-se e olhou para a mulher, com os olhos enevoados.
— Por que não me mata já? O que está esperando?
A Dama da Noite esboçou um sorriso desagradável.
— Não adivinha? Só depois do lobo enfiar a cabeça no laço, é que o caçador mata o coelho.
Passado um instante é que Palin entendeu o que a mulher dissera. Quando, por fim, compreendeu, olhou-a fixamente.
— Está preparando uma cilada? Para quem? Para o meu tio? — perguntou, quase soltando uma gargalhada. — Quem me dera viver o tempo suficiente para presenciar esse encontro!
A Dama da Noite devolveu-lhe o sorriso.
— Eu também — respondeu com brandura. Depois, encolheu os ombros e respondeu: — Fica para mais tarde. A cilada não se destina ao seu tio, mas a outro membro da sua família.
Pensando que se referia à mãe ou ao pai, Palin abanou a cabeça, desconcertado. Depois, ocorreu-lhe outro pensamento.
— Steel?...
Os olhos da Dama da Noite faiscaram.
Ao vê-la erguer uma sobrancelha, desta vez Palin não riu, emitindo um som que lembrava um grasnar.
— Não apanhará esse lobo com este coelho. O que você acha? Que ele se preocupa comigo o bastante para tentar me libertar? — Divertido com o pensamento, Palin soltou uma gargalhada.
Inclinando-se, a Dama da Noite aproximou-se, como que a tentar sorver-lhe a gargalhada, arrastar a sua luz para a escuridão dela.
— Sua Majestade reuniu-os por um motivo qualquer. Muitas vezes lancei as pedras videntes e a resposta foi sempre a mesma. Olhe, vou lançá-las de novo.
De uma bolsa preta que trazia presa ao pulso esquerdo, Lillith retirou um punhado de ágatas polidas. Pegando nelas, murmurou as palavras de encantamento e arremessou-as para a superfície de mármore cinzento. O fulgor do bastão, refletido nas ágatas multicoloridas, tornou-se mais vivo.
— Olhe! Repare! — disse ela, apontando com o dedo ossudo. — A pedra negra é o Steel. A branca, é você. Entre elas, uma fortaleza...
Palin viu uma pedra verde, marcada com uma runa, que representava a torre.
— ...e por cima da fortaleza, chamas.
O mago olhou fixamente para uma ágata vermelha, assinalada com uma minúscula língua de fogo.
— Você de um lado, ele do outro, e no meio, a catástrofe. Inclinando-se, esboçou um gesto rápido com a mão e arrebatou as pedras.
— Está vendo! Ambos desapareceram! — sussurrou. — Os dois morreram e...
— E a catástrofe continua a pairar — respondeu Palin serenamente, olhando para a pedra da torre e para a pedra da chama. Ambas continuavam sobre a mesa.
Sobressaltada, a Dama da Noite pestanejou. Tencionara arrebanhar todas as pedras. Por um motivo qualquer, a mão falhara as duas. Hesitou por um instante, sem dúvida a interrogar-se quanto ao significado deste novo presságio.
Palin não se ralou. Sentia-se muito exausto.
— Ouviu o que contei ao seu suserano a respeito dos deuses — disse, com voz cansada. — Vi...
— ...o que o seu tio queria que visse! — escarneceu a Dama da Noite. — Foi o que eu disse ao meu senhor. Que se tratava de um truque de Raistlin Majere. E eu sei como ele aprecia truques. Mas um dia ainda vai pagar por elas. — Lillith pegou nas duas pedras e meteu-as na bolsa. — Quanto a Steel Montante Luzente, traiu a causa da nossa Rainha. E irei prová-lo ao meu suserano! Depois, ambos morrerão, como convém a primos-irmãos!
Com as pedras videntes a chocalharem-lhe na bolsa, a Dama da Noite afastou-se, levando consigo o reluzente Bastão de Magius.
Palin encostou-se à mesa. A escuridão abateu-se sobre si. Com ela, vinha o desespero. Ia morrer ali. Iriam encontrá-lo acorrentado àquele pedestal...
O som de vozes chamou-o à realidade.
Hesitante, Palin levantou a cabeça, e o clarão vivo de uma tocha obrigou-o a piscar os olhos. Só conseguiu vislumbrar uns vultos borrados, o reflexo de uma armadura, possivelmente o cintilar, mais fraco, de uma jóia, mas nada mais.
Fosse quem fosse, as pessoas trocavam, num sussurro, um breve diálogo, interrompido pela voz soturna e fria de um homem, que ordenou:
— Fiquem aqui. E mantenham-se quietos.
Palin reconheceu a voz, e quase sentiu o coração saltar-lhe da boca. Tentou falar, mas estava muito estupefato, muito aturdido. O homem que empunhava a tocha e a refulgente jóia em forma de estrela, era Steel Montante Luzente.
Distanciando-se dos dois companheiros, que, de imediato, foram engolidos pelas trevas, Steel encaminhou-se para Palin, de tocha em punho.
— Majere? — perguntou Steel, sem baixar a voz, e o som das suas botas ecoou pela sala. Caminhava confiante, seguro do seu direito de se encontrar ali. Não era homem para tentar libertar um prisioneiro às escondidas. Aproximando-se, acrescentou: — Majere, preciso falar contigo...
Um forte clarão dissipou as trevas. Nas alcovas onde, anos atrás, se tinham postado os Cavaleiros da Solamnia para combater os dragões, encontravam-se agora os Cavaleiros de Takhisis.
— Está vendo, meu senhor? — ouviu-se a voz de Lillith, que o triunfo tornara esganiçada. O Bastão de Magius reluzia-lhe nas mãos. — Está vendo?
Da escuridão, veio a voz do Senhor de Ariakan, repassada de tristeza e consumida pela cólera:
— Na verdade, Steel Montante Luzente provou ser um traidor. Prendam-no!
Avançando, os cavaleiros prenderam os braços de Steel. Este não ofereceu resistência. Pestanejando, olhou para Palin.
— Tem que acreditar em mim! — exclamou Palin, em voz baixa. — Não tenho nada a ver com isto!
— Steel Montante Luzente, por que se encontra aqui? — perguntou o Senhor de Ariakan. — O teu batalhão não está de serviço. Não tinha nada que vir aqui.
— Meu senhor, o motivo é óbvio! — exclamou a Dama da Noite. — Esgueirou-se até aqui embaixo para libertar o prisioneiro!
— Não vim sorrateiro! — replicou Steel com frieza e impelido a intervir.
— Viram-me, ouviram-me. Vim sem dissimulações.
— Por que motivo? — insistiu Ariakan. Steel não respondeu.
O Senhor de Ariakan abanou a cabeça.
— Montante Luzente, foi um erro aceitá-lo na cavalaria — disse. — Alguns me advertiram — acrescentou, fitando a Dama da Noite, que fez o obséquio (ou possivelmente teve a presença de espírito) de não parecer magnânima —, mas houveram outros que me pressionaram, sendo um deles a Suma-Sacerdotiza, que agora jaz morta. É um bom soldado, corajoso, honrado, leal. Sim, digo leal — acrescentou, dardejando a Dama da Noite com um olhar fulminante.
— Montante Luzente, acredito piamente que pretende servir a nossa Rainha de alma e coração. Mas nesse coração palpita a sinistra ambição da sua mãe, e nessa alma repousa a nobreza do teu pai. No teu íntimo, ambos se digladiam. De modo que age em consonância com objetivos cruzados. Portanto, constitui um perigo para a causa, uma ameaça para a Visão. Steel Montante Luzente, condeno-o à morte. Que a sentença seja executada imediatamente.
Empunhando a espada, um dos cavaleiros aproximou-se de Steel.
Steel não ofereceu resistência nem protestou. Todas as palavras ditas pelo seu suserano eram verdadeiras, tal como a verdade contida numa lâmina de espada nua.
Erguendo a espada, o cavaleiro preparou-se para enterrá-la no peito de Steel.
— Meu senhor! — exclamou outro cavaleiro. — Ele tem cúmplices! — Ouviu-se um grito e ruídos de briga.
— Será que este homem nunca morre? — inquiriu Ariakan, em tom impaciente. Após um instante de reflexão, acrescentou: — Ou será que a Rainha Takhisis está assim tão determinada em que viva? Aguardem as minhas ordens! — ordenou, retumbante. — O que encontraram?
— Mais dois, meu senhor. — Um dos cavaleiros aproximou-se, arrastando Tasslehoff e um vulto esguio de vestes negras, com a cabeça oculta pelo capuz. — Ao que parece, o Montante Luzente não estava sozinho.
Palin levantou-se, animado pela esperança.
— Raistlin! — murmurou. — Então o meu tio veio!
Ao que parece, a Dama da Noite tivera o mesmo pensamento, pois avançou precipitadamente, com a mão enclavinhada no Bastão de Magius, para que a protegesse.
— Feiticeiro, quem é você? — inquiriu. — Retire o capuz!
A figura envolta em vestes negras levantou a cabeça, e os seus olhos dourados refletiram a luz do bastão.
De início alarmada, a Dama da Noite recuou. Depois, recuperando o aprumo, soltou uma gargalhada escarninha.
— Não é mago coisa nenhuma! Não tem magia dentro de ti! — disse, arrancando o capuz que ocultava a cabeça do vulto.
O grito de alegria de Palin morreu-lhe numa exclamação de desânimo. Ali parada, encontrava-se Usha, pálida e assustada, piscando os olhos devido à luz.
— Mas, o que se passa aqui? — Ariakan parecia agora mais desorientado do que furioso. — Um kender e uma feiticeira Veste Negra?
— Não é feiticeira coisa nenhuma! — rosnou a Dama da Noite com desdém. — Tem tanta magia dentro dela como esta parede. É uma espiã!
— Não sei do que ela está falando! — interveio Tasslehoff. — Não acompanhamos este cavaleiro. Não estamos com ninguém... a não ser um com o outro.
— Calem essa minhoca! — exclamou a Dama da Noite.
— Não, deixem-no falar! — replicou frustrado, Ariakan. — Acontece algo estranho aqui e pretendo ir até o fundo da questão. Pousem-no no chão. Kender, venha cá.
Tas ajeitou os alforjes e avançou, de mãos estendidas.
— Senhor, como tem passado? Me chamo Eiderdown Pasklinger. Esta é a minha amiga Usha, uma feiticeira do Mal muito poderosa! Se fosse você, não me metia com ela, pois é a filha de Raistlin Majere!
Fez uma pausa dramática, dando tempo aos presentes para ficarem convenientemente impressionados.
Ignorando a mão estendida do kender, Ariakan franziu o cenho. Bufando, a Dama da Noite replicou:
— Espiões! Vieram até aqui com o Montante Luzente! Kender, conte para Sua Senhoria o verdadeiro motivo da tua presença!
— Estou tentando — retrucou Tas, sentindo-se ofendido na sua dignidade. E virando-se para Ariakan: — É possível que não saiba, mas sou um kender do Mal. Sim, por isso estou aqui, para oferecer os meus préstimos à Rainha das Trevas. A Takhisis alterou a minha vida. Agora, sou um grande mauzão. Se quiser, faço uma maldade. Olhe para isto!
Tas fugiu rapidamente. Vários cavaleiros tentaram agarrá-lo, mas o kender era muito ágil. Atravessou a sala como um raio, dando pulos e esquivando-se dos cavaleiros.
— Vou matar este Veste Branca para você! — disse.
Sacando de uma pequena adaga, fingiu que apunhalava Palin no estômago. Desviando a lâmina, o kender cortou as cordas que prendiam os pulsos do mago.
— Pega! — gritou, atirando a adaga a Palin.
Aturdido, apanhado de surpresa, com as mãos e os dedos entorpecidos devido às cordas que os prendiam, Palin tentou atabalhoadamente pegar a faca, conseguindo-o.
Ouviu-se o retinir de espadas. O cavaleiro que mantivera Steel preso, virou-se para Palin.
Tasslehoff trepou para cima da mesa e arremessou-se sobre as costas do cavaleiro. Agarrando no elmo do homem com ambas as mãos, Tas baixou-o até os olhos. O golpe de espada que teria morto Palin, falhou o alvo. O cavaleiro perdeu o equilíbrio e ele e Tas rolaram pelo chão.
Outros cavaleiros acudiram.
— Duro como o gelo! — soou a voz de Usha, erguendo um cristal transparente e cintilante.
Os braços que empunhavam as espadas ficaram hirtos, os pés permaneceram imóveis e as bocas escancararam-se. O frio gélido da magia dos Irdas percorreu os cavaleiros das trevas, envolvendo-os em magia gelada.
Todos exceto Steel. Quem sabe se a jóia o protegia, quem sabe se a espada, quem sabe se a influência sinistra da mãe. De todos os cavaleiros que se encontravam na sala, só ele conseguia mover-se.
De faca na mão, Palin encostou-se à mesa e olhou para Steel, com uma expressão de incerteza.
— Somos primos — disse. — Salvou-me a vida. Não quero lutar contigo.
Usha precipitou-se para o lado dele. Numa das mãos, segurava o cristal e na outra, a miniatura de um cavalo branco.
— Porque não se junta a nós? Venha conosco! Eles também pretendiam matá-lo!
Perturbado, Steel franziu o cenho. Tinha a espada meio embainhada.
— O meu suserano é justo — disse.
— Uma ova que é! — praguejou Palin, avançando com a adaga em riste e obrigando Steel a recuar. — Quer morrer, seu covarde, seu grande covarde! Tem medo de viver!
Olhando-o ameaçadoramente, Steel voltou a embainhar a espada.
Cauteloso, Palin baixou a adaga.
— Vem...
Steel precipitou-se para a frente e, segurando pelo pulso a mão de Palin que empunhava a faca, empurrou-o e bateu com a mão do mago contra a mesa de pedra.
A mão golpeada sangrava, mas Palin apertou, desesperado, a única arma que possuía. Steel voltou a bater-lhe com a mão na mesa. Palin arquejou de dor e soltou a adaga. Esta tombou com estrépito no chão.
Uma explosão — ensurdecedora, de fazer parar o coração — veio abalar a Torre da Feitiçaria Suprema até os alicerces. O chão vibrou. As paredes estremeceram, abrindo fendas. O cristal escorregou da mão de Usha e caiu na mesa de mármore, despedaçando-se. O encantamento quebrara-se.
— O que... — começou Ariakan.
Outro ribombo terrível sacudiu a torre e muitos dos cavaleiros tombaram de quatro. Steel cambaleou para trás e foi bater em Palin que, num gesto instintivo, se chegou a ele, para que ambos se equilibrassem.
— Alguém vá ver o que se passa! — rugiu Ariakan. — Estamos sendo atacados?
Alguns dos homens puseram-se a correr para as saídas, a fim de cumprirem as ordens de Ariakan. Outros, mantiveram-se junto dos prisioneiros.
— Meu senhor? Onde está o meu senhor Ariakan? — Um jovem escudeiro, com os olhos esbugalhados de pavor, ia abrindo caminho, aos empurrões e encontrões, por entre a amálgama de gente.
— Estou aqui! — gritou Ariakan, tentando que o tumulto lhe não abafasse a voz.
— Meu senhor! — O escudeiro mal conseguia respirar. — A torre... foi atingida por raios! Duas vezes, meu senhor! Que faíscas horríveis! Nunca na vida vi coisa assim! Fenderam os céus e tombaram como lanças arremessadas! Atingiram-nos duas vezes! — repetiu, apavorado, de si para si. — E exatamente no mesmo lugar! Eu... eu...
Engoliu em seco, procurando recuperar o fôlego.
— Dragões, meu senhor! — prosseguiu. — Centenas deles... Dourados, prateados...
— Estamos sendo atacados! — declarou Ariakan em tom soturno, desembainhando a espada.
— Não, meu senhor! — A voz do escudeiro não passava de um cochicho rouco e todos à volta se calaram para poderem ouvi-lo. — Há dragões vermelhos voando com os dourados, e os azuis lado a lado com os prateados. A norte, um fulgor terrível ilumina o céu, um medonho clarão avermelhado que brilha e está a alastrar, como se todas as árvores das grandes florestas do Norte tivessem irrompido em chamas. Consegue sentir-se o cheiro...
Através do portão aberto, rodopiaram gavinhas e tufos. Ouviu-se novo ribombo e mais um abalo fez tremer a Torre da Feitiçaria Suprema. Um candelabro desprendeu-se de uma parede, caindo com estrépito no chão e apagando a tocha. A ponte levadiça de ferro rangeu e as correntes balançaram-se de um lado para o outro. Nuvens sufocantes de poeira começaram a tombar do teto. Alarmados, os cavaleiros entreolharam-se. Eram homens de bravura, ninguém duvidava da sua coragem, mas não suportavam a idéia de serem soterrados vivos.
Palin e Usha permaneciam lado a lado, cingindo-se com os braços. Tasslehoff, que fora agarrado por um dos cavaleiros, estrebuchava, tentando libertar-se do abraço do captor.
— Deixe-me ver! — suplicava o kender. — Por favor, por favor! Depois pode me matar! Juro! Palavra de honra! Mas largue-me e deixe-me ver!
Steel olhava fixamente para a Dama da Noite.
— A torre... atingida por raios... — murmurou.
O Senhor de Ariakan já se pusera a distribuir ordens rápidas e mandara que as tropas se retirassem das alcovas e se dirigissem, a toda a pressa, para as escadas mais próximas.
— Convoquem os meus comandantes para uma reunião! — ordenou. Ia andando de um lado para o outro enquanto falava, rodeado pelos ajudantes e tenentes. — Quero relatórios de todos sobre o que viram e ouviram. Eu mesmo falarei com os dragões. Mandem chamar o Senhor da Caveira.
— Meu senhor, que faremos com os prisioneiros? — perguntou alguém. Ariakan fez um gesto impaciente com a mão.
— Não...
— Mate-os, meu senhor! — guinchou a Dama da Noite, chegando ao arrojo de segurar no braço de Ariakan. — Mate-os já! Eles... são a causa! Li nas pedras divinatórias!
Impaciente, Ariakan desenvencilhou-se da mulher.
— Lillith, que a nossa Rainha te ature, mais as tuas pedras videntes! Saia da frente! — Dizendo isto, empurrou-a para trás.
A Dama da Noite tentou manter o equilíbrio, mas o Bastão de Magius enrodilhou-se nos pés e a fez tropeçar. Tombou de costas no chão, ficando por baixo de uma das pontes levadiças de ferro, utilizadas para encurralar os dragões.
Outro ribombo ensurdecedor repercutiu-se pela torre. As pontes levadiças, que se tinham desprendido devido às ondas de choque das explosões anteriores, soltaram-se das amarras e desabaram.
Vendo a morte descer sobre si, a Dama da Noite tentou escapar rastejando, mas não foi suficientemente rápida. As barras de ferro, pontiagudas como lanças, feitas para trespassar a pele dura e escamosa dos dragões, perfuraram com facilidade a carne mole da Dama da Noite. As pontes levadiças tombaram com estrondo no chão de pedra, prendendo por baixo o corpo trespassado de Lillith.
Esta soltou um guincho pavoroso e enclavinhou as mãos nas barras que a tinham empalado, como se pudesse soltá-las. Das feridas horríveis esguichou o sangue. Afrouxando o aperto, as mãos resvalaram, quase inertes, para o chão. Os dedos afloraram o Bastão de Magius e estrebucharam de leve. A bolsa com as pedras divinatórias abriu-se, e as ágatas espalharam-se pela poça de sangue, que ia aumentando. Os seus olhos tornaram-se vítreos, a mão que segurava o bastão contraiu-se e ficou flácida.
O Senhor de Ariakan olhava, apavorado, para o cadáver. A barba negra formava contraste com a palidez do seu rosto. A pele reluzia de suor.
— Já vi muitas formas de morrer, mas poucas foram tão horríveis como esta! É um sinal! Que a nossa Rainha tenha piedade da sua alma!
Olhou de relance em volta, como que à procura de alguém. Avistando Palin, acenou-lhe com a mão.
— Você, Majere! Aproxime-se. Não receie. Quanto ao que me contou lá em cima, no pátio, sobre o Caos tentar nos destruir. Será o começo?
Palin hesitou e respondeu, sereno:
— Meu senhor, acredito que seja, mas não posso assegurar.
Ariakan inspirou fundo e expirou lentamente. Limpando o suor que lhe alagava o rosto, disse:
— Veste Branca, precisamos ter outra conversa. Montante Luzente, traga-o contigo. Vocês dois, acompanhem-me.
Palin fez um gesto em direção a Usha e a Tasslehoff.
— Quero que os meus amigos também venham — disse. — Quero me assegurar de que não correm perigo.
— Muito bem! — exclamou Ariakan, impaciente. — Saiamos daqui antes que a maldita torre desabe em cima das nossas cabeças!
— E — prosseguiu Palin, sem se mexer — quero o meu bastão.
— Leve-o! — Ariakan mostrava-se soturno. — Duvido que mais alguém queira essa coisa amaldiçoada. Montante Luzente, leve os três para os meus alojamentos.
— Sim, meu senhor — respondeu Montante Luzente.
O Senhor de Ariakan afastou-se apressadamente, deixando os quatro sozinhos nas armadilhas para dragões.
Palin dirigiu-se para o lugar onde, sob as barras de ferro, jazia a Dama da Noite, esparramada no seu próprio sangue coagulado. Quando se inclinou para retirar o bastão, reparou nos seus olhos vítreos, no seu rosto contorcido pela dor. Chegou-lhe ao nariz o cheiro do sangue ainda quente.
Fora o bastão a matá-la? Será que a atraíra para uma cilada, guiando-a deliberadamente? Ou não passara de um mero acidente? A mão de Palin, que se preparava para agarrar o bastão, deteve-se, trêmula.
Usha foi ter com ele e rodeou-lhe o braço com as mãos. O mago apoiou-se, num gesto de gratidão.
Com a ponta do penacho, Tas limpou o sangue dos olhos.
— Apresse-se, Palin! — exclamou. — Quero ver o que se passa!
— Majere, se te melindra tanto assim, deixe que eu tiro o bastão — disse Steel, com repugnância.
Palin empurrou o cavaleiro para trás e, mantendo os olhos grudados no bastão, inspirou fundo, baixou-se e retirou-o da mão da morta.
Depois, começou a endireitar-se.
Diante dele, encontrava-se um vulto de vestes e capuz negros.
Alarmado, Steel desembainhou a espada, mas Palin deteve-o precipitadamente.
— Não! É o meu tio! — exclamou.
Raistlin olhou para Steel, parecendo pouco interessado, e depois fitou Palin.
— Portou-se bem, sobrinho.
— Tio, como... — começou Palin a dizer.
Ouviu-se um ribombo surdo, que parecia vir do chão e não dos céus, e o chão por baixo dos pés deles começou a rodopiar. Próximo, veio-lhes o estrépito de algo a estilhaçar-se.
— Não há tempo para perguntas — respondeu Raistlin. Agarrando Palin, fez um gesto a Usha e a Tasslehoff para que se aproximassem. — Dalamar providenciou a minha viagem. Aguarda-os na Torre da Feitiçaria Suprema.
— Palin, não vai a parte nenhuma — interveio Steel, com voz soturna —, a não ser à presença de Lorde Ariakan. Você e o teu tio.
Palin hesitou.
— Prometi que falaria com o Ariakan. Não seria possível nós...
— O tempo para conversas já se esgotou. A batalha começou. O próprio Ariakan já se envolveu nela.
Raistlin fixou Steel.
— Filho do Montante Luzente, a tua espada é necessária noutro lugar. Permita-nos que nos retiremos em paz.
Steel pôde constatar por si a veracidade desta afirmação. O fragor da batalha já penetrara nos recessos da torre.
Raistlin avançou em passos rápidos, com as vestes negras a roçagarem o chão. Steel olhou-o, circunspecto, e embainhou a espada.
— Reconheço essa lâmina — observou Raistlin com voz serena. — Era do teu pai, não era? Nunca gostei muito do teu pai. Todas aquelas tretas sobre a honra e a nobreza dos cavaleiros. Fazia um tal alarde disso, pavoneava-se, atirava na nossa cara.
Steel nada disse, mas a mão enclavinhou-se no punho da espada, até os nós dos dedos ficarem esbranquiçados. Raistlin aproximou-se.
— Foi então que descobri uma coisa muito interessante a respeito do teu pai. Ele nos mentiu. Sturm Montante Luzente era tão cavaleiro como eu. Só foi investido pouco antes da sua morte. E durante esse tempo todo, usou armadura, andou com a espada... e era tudo mentira.
Encolhendo os ombros, Raistlin acrescentou:
— Sabe do que mais? Depois que descobri, simpatizei mais com ele.
— Porque achou que ele desceu ao mesmo nível que você — respondeu Steel, com voz rouca.
Raistlin esboçou um sorriso ambíguo, amargo.
— Era o que você pensaria, não era, Montante Luzente? Mas não, não foi esse o motivo.
Raistlin acercou-se ainda mais e ficou tão próximo que Steel podia sentir o frio gélido que emanava do corpo frágil do mago, ouvir a respiração farfalhar-lhe nos pulmões, experimentar o toque macio do veludo preto.
— O teu pai mentiu a todo mundo, menos a uma pessoa... ele mesmo. No fundo do coração, o Sturm era um cavaleiro. Tinha mais direito a reclamar esse título falso do que muitos que o usam por direito próprio. O Sturm Montante Luzente obedeceu a leis que não lhe foram impostas. Viveu segundo um código de nobreza no qual ninguém mais acreditava. Fez um juramento que ninguém ouviu. A não ser ele mesmo... e o seu deus. Ninguém poderia mantê-lo preso a esse juramento, à Medida. Ele o fez por si, porque se conhecia.
— Steel Montante Luzente, quem é você? — Os olhos dourados, em forma de ampulheta, de Raistlin, cintilaram. — Sabe?
O rosto de Steel tornou-se exangue. Abriu a boca, mas as palavras não lhe brotaram dos lábios. Uma lágrima deslizou-lhe pela face. Baixou a cabeça, num gesto tão brusco que o longo cabelo preto lhe tombou para frente.
Irado, embainhou a espada. Virou-se e, sem olhar para ninguém, correu para as escadas e para o clamor da batalha.
Raistlin encontrava-se nos aposentos dos pisos superiores da Torre da Feitiçaria Suprema, em Palanthas, postado a uma das janelas. O arquimago estava de volta ao seu antigo gabinete, uma sala que, para surpresa sua e algum regozijo, Dalamar mantivera tal como o seu shalafi a deixara. O gabinete não fora encerrado ao mundo, como acontecera com o laboratório, que encerrava artefatos poderosos e perigosos, assim como segredos perturbadores e sinistros.
Do gabinete tinham sido retirados certos objetos, sobretudo os de natureza mágica, e possivelmente transferidos para os aposentos de Dalamar ou, quem sabe, para as salas de aulas, onde jovens magos os estudavam e praticavam a arte de desvendar os mistérios arcanos. Mas a escrivaninha de madeira, com entalhes intrincados, ainda se encontrava lá. Nas prateleiras viam-se livros que eram velhos amigos, e as suas encadernações, familiares, mais familiares do que os rostos das pessoas do passado de Raistlin. A tapeçaria que cobria o assoalho, continuava a ser a mesma, só que mais puída.
Usha instalou-se na cadeira onde, outrora, a Dama Crysania se sentara. Perscrutando o éter, Raistlin tentou vislumbrar o rosto de Crysania. As sombras ocultavam-no. Abanando a cabeça, virou-se de novo para a janela.
— Que estranho fulgor é aquele a brilhar no Norte? — perguntou.
— O oceano Túrbido está em chamas — replicou Dalamar.
— O quê!? — exclamou Palin, sobressaltado, dando um pulo da cadeira. — Como é possível?
— Quero ver! — interveio Tas, aproximando-se da janela.
As trevas envolviam o céu noturno, exceto a norte, onde se esparramava um pavoroso clarão vermelho-alaranjado.
— O mar em chamas! — exclamou Palin, apavorado. Tas suspirou.
— Quem me dera poder ver! — disse.
— Talvez ainda vá a tempo. — Dalamar esquadrinhou os volumes alinhados nas prateleiras. Detendo-se, virou-se para eles. — Foram enviados membros do Conclave, para procederem a investigações. Comunicaram que se abriu uma fenda enorme no oceano, entre Ansalon e as ilhas do Dragão. Da mesma, brotam chamas que estão provocando a evaporação das águas do oceano. O que vêem, são nuvens de vapor, a refletir o clarão pavoroso.
— Da fenda, estão a jorrar dragões de fogo, cavalgados por demônios e outros tipos de criaturas das sombras. São em número incalculável. Cada língua de chama que lambe o rebordo fendido da rocha, transforma-se nos terríveis dragões, feitos de fogo e de magia. As criaturas que os conduzem são geradas pelas trevas redemoinhantes do Caos. As suas forças estão agora a investir contra a Torre da Feitiçaria Suprema. Em breve, atacarão todos os outros pontos estratégicos de Ansalon. Chegaram-nos relatos de que os duendes de Thorbardin já estão combatendo, nas suas cavernas subterrâneas, esses demônios.
— Então esse livro? — inquiriu Raistlin, imperturbável.
— Não consigo encontrá-lo! — murmurou Dalamar, e retomou a busca.
— O meu povo — disse Usha, com os lábios a tremer. — Que vai ser do meu povo? Eles... vivem ali perto.
— O teu povo foi o responsável por esta desgraça desabar sobre nós — observou Raistlin, em tom cáustico.
Usha recuou, encolhendo-se perante o olhar do mago. Fitou Palin, em busca de conforto, mas desde o regresso da torre este a evitava. Nesse entretanto, o tio observava-os com atenção. Era óbvio que Usha ainda não contara a verdade a Palin. Atendendo às provações que ambos enfrentavam, tanto melhor. Tanto melhor...
— O que o Conclave está fazendo? — perguntou Palin a Dalamar.
— Tentando determinar a constituição e natureza dessas criaturas mágicas, a fim de podermos combatê-las. Infelizmente, isso só é viável mediante confronto direto com elas. Como chefe do Conclave, ofereci-me para empreender a tarefa.
— Bem perigosa — observou Raistlin, olhando de relance para o elfo das trevas que fora, outrora, seu aprendiz. — E da qual é possível que não volte.
— Isso que importa, não é? — respondeu Dalamar, com um encolher de ombros. — Estava na reunião do Conclave quando discutimos o assunto. Se as nossas teorias forem consistentes, não interessa nada mesmo.
— Senhor, vou contigo — ofereceu-se Palin. — Não tenho um estatuto muito elevado, mas posso ser de alguma utilidade.
— Os deuses precisam da ajuda de todos nós. Em especial, a Rainha das Trevas. No entanto, ela joga com um pau de dois bicos — observou Raistlin, absorto. — Espera sair vitoriosa do confronto.
— Se sair de lá, já será muito bom — respondeu Dalamar em tom seco.
— Então, me leva? — perguntou Palin, estreitando o bastão.
— Não, jovem mago. Não fique aborrecido. Há de ter uma oportunidade de morrer. Será incumbido de outra tarefa. Dunban Companheiro Mestre, o chefe dos Vestes Brancas e Jenna, representando os Vestes Vermelhas me acompanham. Felizmente, mesmo que sejamos vencidos, as nossas conclusões chegarão ao Conclave a tempo de serem utilizadas.
— Mas não a tempo de ajudar os que se encontram na Torre da Feitiçaria Suprema — realçou Raistlin. O clarão feroz que emanava do céu, fora incidir nos picos das montanhas e brilhava com um fulgor cada vez mais intenso, transformando a noite num dia fantasmagórico e aterrador. — Os cavaleiros já foram atacados.
— Que pena o Tanis não se encontrar lá! — exclamou Tas, em tom melancólico. — Era sempre bom nesse tipo de coisas.
— O Tanis Meio Elfo trava a sua própria batalha no seu próprio plano — disse Raistlin. — Assim como os Elfos, os Duendes e os Kenders.
— Atacaram Kendermore? — inquiriu Tas, com a garganta embargada.
— Todas as áreas de Krynn, Mestre Pés Ligeiros — respondeu Dalamar. — Todos os seres, de todos os credos, ver-se-ão forçados a pôr de lado outras querelas e unirem-se para lutar pela própria sobrevivência.
— Talvez o façam — disse Raistlin. — Talvez não. Em Ansalon, o ódio encontra-se bem arraigado. A nossa única esperança é a aliança... e a única com menos hipóteses de se concretizar.
— Dalamar, me manda para casa? — perguntou Tas. E abriu mão do último trunfo. — A Laurana me ensinou muitas coisas sobre a arte de ser general. São coisas muito importantes, por exemplo, no início da batalha não devemos dizer “retirar”, porque isso causa muita confusão nos soldados, mesmo que se tratasse apenas de um pedacinho de música tocado numa trombeta. Assim, se conseguisse usar da tua magia para me fazer voltar a Kendermore, gostaria de fazer o que puder para ajudar.
— Receio que Kendermore tenha de passar sem o seu general — disse Raistlin. — Acho que me lembro onde ficou guardado o tal volume — acrescentou, afastando-se para ajudar na busca. — As tuas aptidões são necessárias noutro lugar.
Tasslehoff ficou emudecido. Estrebuchou para falar até conseguir emitir um som roufenho.
— Raistlin... Será que... será que poderia repetir?
— Repetir o quê? — perguntou o mago, agastado.
— Repetir que... que sou necessário — respondeu Tas, pigarreando para aclarar a garganta. — O Fizban costumava pensar assim, mas depois começou a ficar um pouco confuso... Com uns parafusos a menos, não sei se me entende. Sem ofensa — acrescentou, olhando de relance para cima.
— Eu e ele decidimos que, como eu era pequenino, podia ajudar em coisas miúdas, como salvar duendes dos esgotos de serem comidos por um dragão. Mas, seria mesmo formidável eu ajudar as pessoas grandes.
— São as pessoas grandes que neste momento precisam da tua ajuda — disse Dalamar. — Vai destacado com o Palin.
— Ouviu, Palin? Vou contigo! — exclamou Tas, transbordando de excitação.
— Ouvi — respondeu Palin, que parecia não comungar do entusiasmo.
— Aqui está — disse Raistlin, retirando um livro da prateleira e pousando-o na escrivaninha.
Ele e Dalamar debruçaram-se, ansiosos, para consultar o livro e folhearam-no com impaciência.
Tasslehoff começou a perambular pela sala, pondo-se a examinar os vários e curiosos objetos que se encontravam em mesas pequenas e enfeitavam a prateleira do fogão da sala. Pegou no que parecia não passar de uma sólida peça de madeira, mas após um exame mais atento, descobriu inúmeras gavetinhas embutidas na mesma, todas sabiamente ocultas, de modo a não parecerem gavetas.
A caixa ia deslizando rapidamente para um dos alforjes de Tas, quando o kender se deteve. Segurando-a na mão, olhou-a com desejo e passou os dedos pela madeira. Com um suspiro, esticou-se e a repôs, com todo o cuidado, em cima do fogão de sala.
— Fui destacado para uma missão importante — disse, em tom solene. — E não quero ir sobrecarregado.
— Agora sei que nos aproximamos do Fim do Mundo — murmurou Dalamar.
— Eis a entrada — respondeu Raistlin. — Sim, está vendo. Lembrei-me corretamente.
Dalamar inclinou-se para o livro. Os dois puseram-se a ler, murmurando de vez em quando estranhas palavras em voz alta.
Palin esforçava-se para ouvir. As palavras pareciam elfas, mas deviam ser elfo antigo, pois em cada 20, apenas conseguia entender uma. Vendo o tio absorto, Palin aproximou-se de Usha.
Esta encontrava-se aninhada numa cadeira, olhando receosa o clarão vermelho que iluminava o céu.
Palin pousou-lhe a mão no ombro, para reconfortá-la. Ela segurou-a e apertou-a com força.
— Temo por eles — disse, com voz embargada. — Aquele clarão... é o mesmo que vi na noite em que parti. Só que... agora é muito mais forte. Palin, estou preocupada. O que o teu tio disse está certo. Eles... nós... trouxemos a desgraça a todo mundo!
— Não se preocupe — respondeu Palin, em tom gentil e acariciando-lhe o cabelo luzidio. — Os Irdas são fortes na magia. Quando eu voltar...
Usha ergueu a cabeça e olhou-o.
— Que quer dizer com “quando eu voltar”? Onde vai? Vou contigo! — exclamou, levantando-se e estreitando as mãos de Palin nas suas.
— Então, o assunto está arrumado — declarou Dalamar, endireitando-se.
— Sim, acho que sim — murmurou Raistlin. Começou a tossir, mas recuperando de imediato limpou a boca com o lenço.
Bateram à porta, que se abriu em silêncio. Entrou Jenna.
— Dalamar — disse, com brandura —, chegou o momento. Tenho os componentes de encantamento e os pergaminhos que pediu.
— Tenho que ir — disse Dalamar. — Não há tempo a perder. Shalafi, transmitirá as suas instruções ao Palin e ao kender?
Raistlin abanou a cabeça.
— Não é necessário me chamar assim. Já não sou seu mestre.
Dalamar esboçou um sorriso sombrio e ambíguo. Levou a mão ao peito, desapertou um alfinete em forma de cisne preto e abriu as dobras da túnica de veludo preto. Na pele lisa do elfo, sangrando e parecendo recentes, destacavam-se cinco feridas, com o contorno e o tamanho da ponta de cinco dedos.
— Será sempre o meu professor — respondeu Dalamar. — Como vê, todos os dias estudo a lição que me ensinou.
— Ao que parece, está colhendo benefícios — observou Raistlin, com frieza. Com a mão direita, começou a tamborilar suavemente na mesa.
— Admirei-o — respondeu Dalamar com brandura. — Ainda te admiro. — Com um movimento rápido e sacudido, uniu as dobras do tecido, escondendo as feridas. — E hei de odiá-lo sempre.
Virando-se para Palin acrescentou:
— Adeus, Majere. Que os deuses da Magia te abençoem.
— E a todos nós — observou Jenna baixinho. — Adeus, Palin Majere. E — sorriu com malícia —, adeus, Usha Majere.
Jenna estendeu a mão a Dalamar. Pegando-a, este pronunciou rapidamente umas palavras de magia e ambos desapareceram.
Palin não retribuiu as despedidas. Tinha os olhos fixos em Raistlin.
— Tio, onde vou? Para onde me enviará?
— E a mim! — exclamou Tas, andante.
— E a mim! — interveio Usha, resoluta.
— Não... — começou Palin.
— Sim — interrompeu-o Raistlin em tom linear. — A garota vai contigo. Tem que ir. É a única que conhece o caminho.
— Para casa! — Usha compreendeu-o logo. E, retendo a respiração, acrescentou: — Vai me enviar de volta à minha terra!
— Envio-te de volta para que vá buscar isto. — Raistlin pousou o dedo esguio na ilustração do livro que ele e Dalamar tinham estado a folhear. Palin inclinou-se para olhar.
— A Pedra Preciosa Cinzenta! Mas... está quebrada! Foi o que os deuses afirmaram!
— Está quebrada — concordou Raistlin. — Cabe a você restaurá-la. Contudo, primeiro terá que tirá-la dos que a guardam — acrescentou, olhando, com ar expressivo, para Usha.
— Tio, vem conosco?
— Em espírito — replicou este. — Lhes darei toda a ajuda possível. Palin, não sou deste mundo — acrescentou, vendo o desapontamento do sobrinho. — O meu poder se foi. Posso apenas trabalhar através de ti.
Palin mostrou-se confuso.
— Orgulho-me constatar que confia tanto em mim, mas... por que me envia, tio? Há outros magos muito mais poderosos...
— Sobrinho, todos os magos de Krynn se encontram envolvidos nesta guerra. Os Vestes Cinzentas, Vermelhas, Brancas, Negras, desde o mestre feiticeiro ao aprendiz menor. O Conclave considerou-o o mais apto ao desempenho desta tarefa específica. Porquê? Têm lá os seus motivos, alguns aprovei, outros não. Basta dizer que os teus vínculos com a garota Irda constituem um dos fatores e os teus laços comigo, outro. Possui o Bastão de Magius e, possivelmente o mais importante, em tempos foi capaz de controlar a Pedra Preciosa Cinzenta.
— Não foi bem assim — respondeu Palin, pesaroso. — E contei com ajuda. O Dougan Martelo Vermelho encontrava-se lá.
— E desta vez também contará com ajuda. Não está só. — Raistlin olhou de relance para Tasslehoff, que se sentara no chão, fazendo um inventário dos objetos que guardava nos bolsos.
Seguindo o olhar do tio, Palin aproximou-se de Raistlin.
— Tio — murmurou. — Irei onde quiser e farei exatamente o que me ordenar. A Usha me acompanha, para descobrir o que aconteceu ao povo dela. Mas tem certeza de que quer que o Tasslehoff vá conosco? Não há dúvida que é o melhor kender que existe na face da Terra mas... bom... é um kender.
Raistlin pousou a mão no ombro de Palin.
— Por isso o envio — respondeu. — Sobrinho, os Kenders possuem uma qualidade que vai lhe ser útil. Os Kenders são imunes ao medo. — O abraço de Raistlin aumentou, e os seus dedos esguios enterraram-se na carne de Palin. — E, para onde vai, tal qualidade é inestimável.
Naquela manhã abafada e pesada de fumaça, as docas da baía de Branchala encontravam-se apinhadas de gente. As montanhas eram sacudidas por uma tempestade pavorosa. Os ribombos chegavam a Palanthas. Corriam, pela cidade rumores terríveis, que alastravam de casa em casa, avolumando-se e espalhando uma agitação cada vez maior por onde passavam.
No céu do Norte, um sinistro clarão avermelhado transformava a noite num dia irreal. No início, transpirou que arrebentara na cidade uma gigantesca conflagração. Alguns afirmavam que a Grande Biblioteca estava ardendo. Outros juravam ter visto a Torre da Feitiçaria Suprema num pasto de chamas. Outros ainda conheciam alguém que vira o fogo se derramar pelas janelas do Templo de Paladino.
Ninguém conseguia dormir. Todos viviam num estado de excitação inquieta. As pessoas acudiam ao templo e à biblioteca, se oferecendo para combater o incêndio, mas lá chegando, verificavam não haver fogo nenhum. Os Palancianos perambulavam pelas ruas, observando o fulgor avermelhado, que se tornava cada vez mais ígneo. Reuniam-se em pequenos magotes tensos, ansiosos. Depois de ouvido o último boato, afastavam-se de um e precipitavam-se para outro grupo. Por toda a cidade ouvia-se o repique desvairado dos sinos, esporadicamente interrompido pelo anúncio de qualquer boato que alguém considerava por bem transmitir.
No início, os Cavaleiros de Takhisis tentaram instaurar a ordem na cidade. Afluíram em chusma, percorreram as ruas marchando, dispersaram as multidões, obrigaram as pessoas a regressar para casa. Os cavaleiros fecharam as tabernas, tentaram silenciar os sinos. Mas, pela manhã, estes foram substituídos pelo rufar de tambores. Os cavaleiros que tinham marchado pelas ruas, podiam agora ser vistos a transpor os portões, em direção à estrada que ia de Palanthas à Torre da Feitiçaria Suprema.
Logo ocorreu aos habitantes de Palanthas que a cidade fora libertada.
O júbilo foi grande. Agora, os boatos tornavam-se consistentes e céleres. A nação dos Elfos insurgira-se e desencadeara um ataque gigantesco contra os cavaleiros das trevas. A nação dos Duendes insurgira-se e desencadeara um ataque. Os Duendes e os Elfos... e por aí afora, até alguém jurar que ouvira dizer que um exército de kenders estava penetrando as muralhas da Torre da Feitiçaria Suprema. De novo se ouviu o repique dos sinos, desta vez a anunciar a vitória. Mas em breve se calavam.
A meio da manhã, o porto começou a ficar coalhado de navios que ancoravam rapidamente. As tripulações relatavam ter visto o mar em chamas. O clarão aibro que se via no céu, provinha de um incêndio mágico e pavoroso, que utilizava a água como combustível. Divulgada a nova, as pessoas acorreram às docas, a fim de ouvirem as histórias dos marinheiros e observarem o clarão avermelhado — um pôr do Sol na altura errada e no céu errado.
Depois, correu o rumor de que as florestas das montanhas de Vingaard se encontravam em chamas, que a Torre da Feitiçaria Suprema estava a sofrer um ataque por parte de uma força medonha, pavorosa e desconhecida, a mesma que conseguia fazer queimar a água tão facilmente como a madeira ressequida. Por sobre a cidade pairava uma coluna de fumaça, que provinha dos outeiros em chamas. E embora os incêndios que lavravam nas florestas não constituíssem uma ameaça, se os ventos mudassem...
— Onde deixou o barco? — perguntou Palin a Usha, depois de transporem os portões da Cidade Velha em direção à zona ribeirinha.
— No porto público. Paguei a um duende para vigiá-lo. Oh, Palin! — gritou Usha, em tom de desânimo e parando. — Olhe para aquela gente toda! Como vamos passar?
Metade da população da cidade afluira às docas e aguardava a chegada de mais navios, cochichando para os vizinhos ou observando o céu irreal, e mantendo um silêncio macambúzio. Entre eles e o porto erguia-se uma muralha de gente. Embora se tratasse de uma muralha viva, que rodopiava ao sabor de cada novo boato, permanecia compacta.
— Aquilo? Puf! Não há problema! — exclamou Tas em tom jovial. — Sigam-me!
Encaminhou-se para o grupo mais próximo, vários membros de grêmios que se abanavam, limpavam as testas suadas, falavam em tom baixo e excitado, calando-se para perguntar a quem passava:
— Quais as notícias?
— Com licença! — exclamou Tasslehoff com voz retumbante, puxando um dos membros pela manga comprida e ondulante. — Eu e os meus amigos estamos tentando...
— Kender — guinchou o homem. Segurando a bolsa do dinheiro com uma das mãos e uma jóia que trazia ao pescoço com a outra, recuou precipitadamente três passos.
Foi bater com violência nas costas de outro homem, que se encontrava num grupo próximo a falar. Virando-se, este avistou Tas, levou a mão à bolsa de dinheiro e, rapidamente, recuou três passos. Em breve, as pessoas começavam aos empurrões, encontrões e cotoveladas, a fim de darem passagem.
— Obrigado — respondeu Tas em tom polido e avançando. Palin e Usha correram no seu encalço. Chegado à muralha humana seguinte, lançava um novo e estridente “Com licença!” e todo o processo recomeçava.
Deste modo, abriram caminho através da multidão de uma forma mais rápida e fácil do que esperavam. O fato de, à sua passagem, se ouvirem exclamações pontuais de “Abram alas!” e gritos repetidos de “Ei! Devolva-me isso!”, mais uns reboliços ocasionais, constituíram miudezas de menor importância.
A maior parte das pessoas acotovelava-se contra o paredão da cidade ou reunia-se em torno das docas comerciais, próximo do local onde as embarcações costeiras descarregavam as tripulações e os passageiros dos navios maiores, que se encontravam ancorados à entrada do porto. Ao chegar à margem, a multidão diminuía.
Sobre o edifício da capitania do porto, as bandeiras de aviso que tinham sido desfraldadas pendiam, flácidas. Contudo, os marinheiros não precisavam delas. Nessa manhã conturbada, constatavam, com os seus próprios olhos, que ninguém, no seu perfeito juízo, se arriscaria a aventurar-se no mar.
Usha não era mareante. Nada sabia a respeito de bandeiras de aviso e, mesmo que soubesse, lhes prestaria pouca atenção. Ia regressar à terra natal. Descobriria a verdade — fosse qual fosse, por terrível que fosse.
O medo pareceu aguçar-lhe os sentidos, apurar-lhe a vista, pois logo detectou a sua embarcação, embora esta se encontrasse amontoada no meio de muitas outras.
— Lá está! — exclamou, apontando. Palin olhou-a, com ar de dúvida.
— Parece tão pequena! — disse.
— Chega para nós três.
— Eu queria dizer... pequena... para nos aventurarmos no mar.
Palin olhou fixamente para a água. Nem sequer uma brisa agitava o porto. As ondas provocadas pelo movimento dos barcos, desvaneciam-se languidamente sob as docas. Não se viam aves marinhas a agitar a tona da água ou a lutar para apanhar as cabeças e os rabos de peixe. Não havia nuvens a toldar o céu, embora fossem constantes os clarões das faíscas e o ribombo dos trovões, vindos de leste. Derramando-se pelo horizonte, o estranho e pavoroso fulgor avermelhado refletia-se nas águas.
Palin abanou a cabeça.
— Não há vento — disse. — Não podemos cobrir toda esta distância até a sua terra apenas às custas dos remos. Temos de encontrar outra forma.
— Não, não temos — respondeu Usha, instando com ele para que a acompanhasse. — Palin, o barco é mágico, lembra-se? Me levará até em casa. Me levará até à minha terra — repetiu, com meiguice.
— Usha — disse Palin, puxando-lhe a mão, para refrear-lhe os passos apressados —, Usha...
No rosto dele, no tom da sua voz, a jovem viu e ouviu o que o mago se preparava para dizer. Era como se, mirando-se no espelho, visse o reflexo do seu próprio medo.
— Estou bem — respondeu. — Tenho você comigo.
Apertando-lhe a mão, encaminhou-se para a doca, em direção ao barco.
Usha saltou para a embarcação e pôs-se a inspecioná-la, para confirmar se a mesma se encontrava em condições de velejar. Palin e Tas permaneceram no molhe, causticados pelo calor, a postos para soltar as amarras quando chegasse a hora da largada. Várias pessoas miraram-nos com curiosidade, mas ninguém lhes disse nada, julgando possivelmente que protegiam o veleiro da intempérie e nunca lhes ocorrendo que planejavam zarpar.
Palin interrogou-se sobre o que faria, caso tentassem detê-los, e como lidaria com a situação.
Ou seguiam aquela rota ou, e isso lhe desagradava, viajavam pelo céu avermelhado. O que Usha dissera estava certo. O barco mágico regressaria à terra natal. Não havia outro meio, dado ninguém, nem sequer os membros do Conclave, conhecerem o paradeiro da pátria dos Irdas. Os dragões talvez soubessem. Mas esses travavam as suas próprias batalhas.
— Eu sou um grande marinheiro! — anunciou Tas, que se encontrava sentado na doca, a balançar as pernas e a perscrutar as profundezas do mar, na esperança de avistar algum peixe. — O Flint não. O Flint detestava a água. Nunca chegou a compreender porque existia à nossa volta. “Reorx nos deu a cerveja”, costumava dizer. “Tendo-a à mão, acha que pararia ali?” Tentei fazer-lhe ver que não era lá muito viável conduzirmos um barco em cerveja. Bom, talvez fosse, mas a espuma é muito incômoda. Mas o Flint insistia que os barcos são invenções do Demônio. Se calhar dizia aquelas coisas porque quase se afogou num. Já ouviu a história de quando o Flint quase se afogou? Um dia, quando o teu pai...
— Não falemos de afogamentos — interrompeu-o Palin —, nem do meu pai.
A ameaça devia estar chegando à Estalagem da Última Casa. Caramon regressara para avisar os habitantes de Consolação e obrigá-los a se prepararem, para fazer o que estivesse ao seu alcance no sentido de protegê-los dos horrores que possivelmente os esperavam.
— O meu pai sabe o que tenciono fazer? — perguntara Palin ao tio, no que haviam praticamente sido as últimas palavras que trocaram. — Para onde vou?
— Sabe — respondeu Raistlin.
— O que ele disse? — perguntara Palin, pouco à vontade. Relembrando as palavras, Palin rejubilou. O pai sabia o perigo que o filho ia enfrentar, mas em vez de tentar impedi-lo (como faria em tempos), Caramon transmitira-lhe a fé que os pais depositavam nele, o seu voto de confiança e que sabiam que daria o seu melhor.
Sentiu uma mãozinha puxar-lhe a manga. Baixando a cabeça, Palin viu Tas, bem ao seu lado.
— Palin — disse este, num cochicho. — Depois do que ouvimos os deuses dizer, receio que a Usha vá se sentir infeliz quando chegar à terra dela.
— Sim, Tas — respondeu Palin baixinho. — Vai ficar muito infeliz.
— Acha que devíamos contar agora? Assim de modo a... a prepará-la?
Palin olhou para Usha, que se azafamava na embarcação, retirando apetrechos a fim de arranjar espaço para as duas pessoas que a acompanhariam.
— Tas, ela sabe — respondeu. — Ela já sabe.
Vieram a constatar que ninguém tentou impedi-los de sair do porto. Ninguém reparou, sequer, que içavam as velas e, se isso aconteceu, as pessoas já se encontravam com problemas de sobra. De repente, ao que parece de uma maneira perversa, o vento pelo qual as pessoas passaram o Verão inteiro a rezar, e as brisas das montanhas que iriam refrescar a cidade sufocante, começaram a soprar. Mas não trouxeram alívio ao calor. Em vez disso, espalharam o terror. Os incêndios florestais lambiam as montanhas e os ventos sopravam-nos bem na direção de Palanthas.
De novo soou o repique dos sinos. As pessoas correram para as suas casas, a fim de fazerem o que pudessem para salvá-las, e aos seus negócios. A fumaça que pairava no ar, fazia arder os olhos e tornava a respiração difícil. Uma chuva de cinzas começava a tombar sobre a cidade. No barco, Palin virou-se para olhar a grande cidade de Palanthas e imaginou o que seria, caso as chamas a consumissem. Pensou no tio, sozinho na torre. Os aprendizes já tinham partido para Wayreth, a fim de contribuírem com a sua ajuda na preparação da magia. Ocorreu-lhe o último vislumbre da imagem do tio, junto ao lago dos Que Vêem.
— Ficarei aqui vigiando — dissera Raistlin. Será daqui que tudo farei para te guiar.
Palin pensou em Astinus, prosseguindo, incansável, a escrita. Conseguiu visualizar o pânico de Bertrem e dos outros monges, numa correria frenética, procurando salvar os livros, a História do Mundo.
Salvá-los de quê? Quem sabe se restaria alguém para lê-los, pensou. Viajamos para uma ilha da morte, possivelmente rumo à nossa própria morte...
— Bom, aqui vamos nós! — anunciou alegremente Tasslehoff. Encontrava-se debruçado à proa, enquanto Usha manobrava a embarcação para fora do porto, em direção ao mar alto. — Sabem — acrescentou, com um suspiro de deleite —, não há nada mais excitante do que irmos a um lugar onde nunca estivemos.
Navegaram para fora da baía de Branchala, rumo ao oceano Túrbido, com o vento de feição, como se também este ansiasse ajudar. De repente, o vento que os transportara até tão longe — o mesmo que precipitava o dilúvio de fogo contra Palanthas — parou. Ficaram à deriva na superfície lisa das águas.
Pousando a mão no leme, Usha virou a proa do barco para norte.
— Para casa — ordenou.
A embarcação começou a rodopiar na água, água que parecia tingida de rubro. A vela pendia, frouxa, sem uma brisa a agitá-la, mas o barco era impelido para a frente, a uma velocidade cada vez maior, até roçar perigosamente a tona, esparrinhando sal nos rostos deles.
Tas encontrava-se à proa, fincando-se com ambas as mãos e arrostando o vento e os borrifos de espuma, com a boca aberta, tão empolgado se sentia com a corrida desenfreada. Usha mantinha-se firme ao leme. Palin agarrava-se aos costados da embarcação, esforçando-se para limpar os borrifos de água salgada que lhe atingiam os olhos.
A velocidade do barco aumentou. Tas voou do poleiro e foi aterrar num monte de cordas, enroladas no fundo. Por fim, os três foram obrigados a se agachar no fundo da embarcação. Viram o céu rodopiar e as ondas bater, derramando-se por cima deles. Começavam a se formar poças de água sob os seus pés e estavam encharcados até os ossos. Palin começou a se preocupar com o fato do barco estar se enchendo de água, mas Usha disse que, mesmo que isso acontecesse, a magia iria mantê-los à tona. Agarrando-se uns aos outros, agora só conseguiam avistar o céu rubro e dardejante.
— Estamos abrandando — anunciou uma voz excitada. — Acho que chegamos!
Usha acordou, sobressaltada por constatar que cochilara. Palin ergueu a cabeça e esfregou os olhos. Deviam ter todos adormecido. Usha lembrou-se de sonhos vagos, em que se sentira ensopada e com fome.
Palin olhou para o Sol, que parecia um olho feroz e cintilante a fitá-los por cima da linha do horizonte.
— Parece que dormimos o dia inteiro — disse. — O Sol está se pondo.
— Não tão cedo — observou Tas.
— Que quer dizer? — Com precaução, Palin pôs-se de pé.
— Observo-o há três horas, o tempo que vocês dormiram. O Sol nem se mexeu. Permanece ali, mais nada.
Palin sorriu, com ar condescendente.
— Tas, deve estar enganado — disse. — Provavelmente não passaram três horas, você é que achou.
Tasslehoff voltara a empoleirar-se na proa.
— Olha! Ali na frente! — exclamou.
Contra o céu avermelhado, perfilava-se uma tênue linha escura.
Usha levantou-se bruscamente, esquecida de que se encontrava no barco, e este começou a balançar com tanta violência que, para não ser cuspida borda afora, se viu obrigada a se agarrar com força ao mastro. Percorrendo a embarcação, foi se juntar a Palin e Tas à proa e ficou olhando, com os lábios entreabertos de alegria.
— Acho que chegamos à tua terra, Usha — disse Palin. — Parece que vamos mesmo na direção certa.
O barco aproximou-se mais.
— Que árvores tão esquisitas — comentou Tas. — Usha, na tua terra há árvores com um aspecto esquisito?
— As nossas árvores são iguais a todas as outras árvores — respondeu Usha. — Mas, tem razão, estas têm um aspecto esquisito...
As ondas e a magia nele contido, impeliram o barco mais para a costa.
— Que Paladino nos valha! — murmurou Palin, apavorado.
— Ai credo! — exclamou Tas, num fio de voz, — Aquelas árvores já não são árvores. Estão todas queimadas!
— Não — respondeu Usha baixinho. — Há qualquer coisa aqui que não bate certo. A magia não está funcionando. O barco nos conduziu ao local errado. Aquela... — Sentiu um aperto na garganta a embargar-lhe a voz. — Aquela não é a minha ilha.
Mas, o maldito barco continuava a aproximar-se cada vez mais.
— Usha, lamento — disse Palin, tentando segurar-lhe a mão.
A jovem ignorou as palavras, ignorou a mão estendida. Tropeçando nos cordames e nos odres, precipitou-se para a popa. Segurou o leme, empurrou-o, tentou alterar o curso e fazer a embarcação dar meia volta.
— O barco vai virar! — avisou-a Palin.
— Não quero saber! — soluçou ela. — Não quero saber se a gente morrer!
— Quer sim, Usha — repetiu ele com brandura. — Quer sim. — Depois, tentou reconfortá-la, acariciando-lhe o cabelo molhado e estreitando-a contra si.
A jovem parou de soluçar e deixou-se ficar aninhada nos braços dele. A embarcação conduziu-os até o litoral.
Quando chegaram à praia. Usha alardeava uma calma gélida e silenciosa, quase tão terrível como o ataque de histeria. Saltou do barco para a água e, com esta a dar-lhe nos tornozelos, encaminhou-se para a vasta língua de areia onde, não há muito, os Cavaleiros de Takhisis tinham desembarcado.
Olhou ao redor, e o que viu foi só devastação.
Excetuando o ponto onde as ondas se desfaziam na areia, esta, em tempos tão branca, agora estava negra.
Palin, que puxava a embarcação para terra, julgou que a areia preta constituía um fenômeno natural. Foi então que avistou os destroços flutuando na água e o lodo fino que orlava a fímbria das ondas. Olhou para os troncos chamuscados e calcinados que, em tempos, haviam sido árvores vivas, e de repente entendeu por que motivo a areia se tornara preta. Estava coberta de escórias e de cinzas.
Dando um suspiro, Palin ajudou Tas a saltar do barco. Quando se virou para Usha, esta corria, desvairada, frenética, em direção ao que fora, outrora, uma floresta. Palin e Tas seguiram, atabalhoadamente, no seu encalço, escorregando nas areias movediças. Em breve, a jovem deixava-os para trás. O kender ancião foi impedido de estugar o passo por ter menos fôlego e as perninhas curtas, e Palin, por não estar habituado ao exercício físico e pelas vestes ensopadas se enrodilhavam nas pernas.
Contudo, tornava-se fácil seguir-lhe o rasto, lamentavelmente fácil, conforme Tas observou. A trilha era formada por pegadas feitas nas cinzas, que chegavam aos tornozelos, e conduziu-os a um deserto de devastação. O cheiro levemente adocicado, penetrante e enjoativo de madeira queimada que repassava o ar, cortava a respiração. Agitadas pela brisa, as escórias e as cinzas faziam arder os olhos e obrigaram-nos a tossir. Sobre eles pairavam ramos enegrecidos, que chiavam e se balançavam, prestes a desabar.
Chegaram a uma parede de pedra, que tinha a forma de um quadrado. Numa das extremidades elevava-se uma chaminé de pedra, toda enfarruscada — o que restava do que em tempos constituira uma casinha aconchegante.
— Palin! — chamou Tas, com voz embargada.
Palin virou-se. O kender apontava para algo. O mago não precisou se aproximar para ver. Sabia do que se tratava.
O cadáver — o que restava dele — jazia perto da casa, como se a pessoa tivesse podido sair da residência em chamas, apenas para ser tragada pelo inferno.
— Eu vi Que-Shu — disse de repente Tasslehoff, subjugado pela visão dantesca —, depois dos dragões terem estado lá. Parecia isto. A coisa mais triste que já vi, até agora. Palin, acha... acha que morreram todos?
Palin olhou para os cepos chamuscados e esfacelados das árvores, e para o manto espesso de cinzas que cobria o chão.
— Precisamos encontrar Usha — disse e, pegando na mão de Tas, abriram caminho por entre as cinzas e seguiram no encalço dela.
A jovem encontrava-se defronte de outra parede de pedra. Da casa ou do seu recheio, nada restava passível de ser identificado. Desabara sobre si mesma e só restava um monte de cascalho enegrecido.
Usha não chorou nem gritou. Não esboçou nenhum movimento para tocar no pouco que restava.
Palin aproximou-se e cingiu-a nos braços. Foi como abraçasse pedra. A carne da jovem estava fria, o seu corpo rígido e os olhos arregalados, vítreos.
— Usha! — chamou Palin, muito assustado por vê-la assim. — Usha, não faça isso a si mesma! É inútil. Usha, não...
Sem encará-lo, a jovem continuava de olhos fixos nos escombros calcinados da casa. Sob a máscara de fuligem, o seu rosto mostrava uma palidez de cera. Uma lágrima sulcou-lhe a face enegrecida, tal como a trilha deixada nas cinzas pelas suas pegadas.
— Usha, lamento tanto! — disse Palin com brandura. — Mas, os Irdas não foram totalmente destruídos. Você vai continuar...
— Não — respondeu ela com uma calma ausente e terrível. — Não, eles desapareceram, foram completamente aniquilados. O Prot sabia o que ia acontecer. Por isso me mandou embora. Oh, Prot, lamento tanto! — Estremeceu e soluçou. — Lamento tanto!
— Não lamente, minha querida. Não podia fazer nada. Quem sabe — acrescentou Palin, esperançoso —, se alguns conseguiram escapar. A magia deles...
Usha abanou a cabeça.
— Mesmo que conseguissem se salvar, nunca abandonariam os outros. Não, desapareceram. Nada restou. Nada.
O fulgor rubro e sobrenatural do Sol escoou-se por entre os esqueletos das árvores, indo refletir-se nela, cobrindo-a com uma névoa avermelhada, fazendo os olhos reluzirem, como se fossem de bronze brunido.
O Sol...
— Tas tinha razão! — exclamou Palin, arquejante. — O Sol não se moveu! Tas, onde está... Tas?
Olhou ao redor.
O kender desaparecera.
— Assim é que é — disse Tasslehoff, observando Palin e Usha. — Agora têm um ao outro e é claro que vai correr tudo bem. Pelo menos eles merecem que tudo lhes corra bem. Embora eu tenha verificado com freqüência — acrescentou, com um suspiro —, que o merecer e o acontecer não andam forçosamente de braços dados.
Ficou a observá-los o tempo suficiente para constatar que, nos braços um do outro, tinham encontrado consolo e conforto. O verdadeiro amor — quando não somos os protagonistas, mas simples espectadores — tende a ser um bocadinho monótono. Tas bocejou, soltou um espirro violento quando uma cinza lhe fez cócegas no nariz e olhou ao redor, à procura de algo para fazer.
E ali, serpenteando por entre os cepos das árvores calcinadas, avistou uma trilha.
Todos os caminhos vão dar em algum lugar, já reza o velho ditado. Juntem-lhe o todos os caminhos vão para a direita, exceto quando viram à esquerda, e ora aí têm o apanágio da filosofia kender.
— Quem sabe se esta trilha me conduz até à Pedra Preciosa Cinzenta? — disse ele, refletindo.
Tas preparava-se para avisar Palin e Usha da sua decisão, mas ocorreu-lhe que talvez não quisessem ser incomodados. Assim, esgueirando-se devagarinho, seguiu pelo caminho que descobrira.
Enquanto ia avançando, com toda a precaução, como que a não querer incomodar ninguém, pôs-se a recapitular o que sabia a respeito da Pedra Preciosa Cinzenta.
— Acho que é uma jóia como outra qualquer, só que, claro, está quebrada, o que é uma coisa excelente — observou, com ar pensativo —, pois me evita o trabalho de rachá-la.
Lembrou-se de Raistlin dizer algo a respeito da Pedra Preciosa Cinzenta estar vigiada, mas não prestara grande atenção a essa parte. Sabia, por experiência própria, que as jóias estavam sempre sob vigilância e que, em geral, os guardas eram pessoas com preconceitos dos mais irracionais contra os kenders. Tas não via motivos sólidos para duvidar que, neste caso, fosse diferente. Prosseguiu a trilha, trepando por cima de cepos calcinados, e pôs-se a refletir que os montes de cinzas lembravam bastante a neve à deriva, só que eram pretos, eram cinzas e cheiravam a podre. De repente, avistou um duende, agachado atrás de uma árvore.
— Minhas santas deusas! — exclamou Tas, parando abruptamente. — Mas que esquisito!
O duende estava muito bem-vestido, em especial porque se escondia atrás de uma árvore consumida pelas chamas, que se perfilava numa floresta calcinada e devastada. Uma camada de fuligem cobria as lindas roupas do duende, e o mesmo acontecia com a barba e o longo cabelo. A pluma do chapéu estava enlameada e enegrecida. Parecia absorvido a observar algo. Tinha as costas meio viradas para a trilha, o que significava que estava de costas meio viradas para o kender que se encontrava na trilha.
— Não acredito... sim, tenho certeza! — murmurou Tas. — É o Dougan Martelo Vermelho!
Tas seguiu o olhar do duende, tentando ver o que tanto prendia a atenção de Dougan, mas um outro pinheiro enorme — ou o que restava dele — tapava-lhe a visão.
O duende parecia tão concentrado que Tas, não desejando perturbá-lo, pôs-se a rastejar em silêncio, deslizando pelo solo calcinado com a discrição de um rato, fruto da sua experiência, pois uma vez, por acidente, transformara-se a ele mesmo num rato. Aproximando-se furtivamente do duende, Tas deu-lhe uma palmadinha no ombro.
É espantoso como, apesar de ser atarracado, um duende consegue dar pulos tão altos. E fazê-lo sem perder o chapéu, também constitui um feito extraordinário.
O salto repentino de Dougan surpreendeu Tas, que tombou de costas e que, depois de tropeçar num cepo calcinado, foi aterrar no chão. O rotundo duende, respirando pesadamente e pondo-se tão vermelho como o céu, arremessou-se para cima do kender e tapou-lhe a boca com a mão.
— Em nome de Reorx, quem é você? — perguntou Dougan, num murmúrio rouco. — E o que faz aqui?
Tas replicou o melhor que podia, mas a mão que lhe tapava a boca dificultou-lhe a resposta.
— Xrinxmagle Yurfuuz? — repetiu o duende. — Nunca ouvi falar. Contudo, parece que te conheço.
Abanando com violência a cabeça, Tas pôs-se a guinchar e a estrebuchar e, apontando, insinuou que, se lhe fosse permitido falar, podiam prosseguir a conversa de forma mais agradável.
Dougan olhou-o por um instante, retirou a mão da boca de Tas e voltou a agachar-se.
— Fique quieto! — avisou. — Eles estão perto. Ali. E embora eu não tenha certeza se ouvem, é melhor não arriscar.
Tasslehoff acenou com a cabeça, esfregou-a no lugar onde batera contra uma rocha e sentou-se.
— Eles quem? — cochichou.
— Quem é você? — sussurrou Dougan.
— Desculpe. Não cheguei a me apresentar. — Tas remexeu-se, tentando levantar-se, e Dougan imitou-o, coisa que possivelmente não fazia há séculos, pelo menos foi o que Tas achou, a avaliar pela pança enorme do duende. Estendendo a mão, o kender disse:
— Me chamo Tasslehoff Pés Ligeiros.
— Ah — grunhiu Dougan. — Então é daí que eu te conheço. Eu sou...
— Reorx, já sei — atalhou Tas, soltando um dos seus murmúrios estridentes. Vendo o olhar carrancudo de Dougan, apressou-se a acrescentar: — Mas não se preocupe, não contarei a ninguém.
— Não há nada para contar — replicou o duende, fitando, colérico, os olhos de Tas. — Me chamo Dougan Martelo Vermelho. Entendido?
— Não — replicou Tas, após um momento de reflexão. — Mas também há montes de outras coisas que não compreendo. Uma delas é a morte. Outra, são os xerifes. Ambos parecem ter muitas pândegas na vida. E por falar nisso, também há a questão dos soluços. Por que temos que ter soluços, é capaz de me explicar? Agora, será que podia me explicar...
Dougan disse algo acerca do Abismo estar a se transformar num rinque de patinação, o que Tas considerou muito curioso e preparava-se para pedir ao duende que lhe explicasse aquilo, quando sentiu de novo a mão de Dougan a tapar-lhe a boca.
— Por que está aqui? O que veio fazer aqui?
Soergueu um nadinha a mão, para permitir a Tas guinchar uma resposta.
— Foi Raistlin Majere quem me mandou — replicou o kender com orgulho. — Tenho que ir buscar a Pedra Preciosa Cinzenta.
— Você?
Com o espanto, o duende esqueceu-se do voto de silêncio que impusera e pronunciou as palavras em alto e bom som. Agachando-se atrás da árvore, puxou Tas para junto de si.
— Você? — repetiu Dougan, agora em voz baixa e em estado de choque. — Ele mandou você?
Tas não podia assegurar se lhe agradava a maneira despudorada como Dougan continuava a repetir você. Não era lá muito lisonjeiro para Raistlin.
— Eu sou um Herói da Lança! — salientou Tas. — Já lutei antes com dragões e uma vez capturei um prisioneiro, não me interessa se possivelmente o Flint disse o contrário! Salvei Sestun de um dragão vermelho. Estive no Abismo, e voltei, duas vezes e...
— Basta! — ganiu o duende baixinho, uma proeza interessante e que, se Tas não tivesse visto Dougan acabar de cometer, diria, linearmente, ser impossível.
— Já está aqui, de modo que suponho que devo tirar o melhor partido disso — grunhiu Dougan, acrescentando algo que tinha a ver com o motivo porque o mago não se lembrara de enviar também um bando de gnomos, para a desgraça de Dougan ser completa. — Chegue aqui — rematou, puxando Tas para junto da árvore. — Quero te mostrar uma coisa. E mantenha essa boca calada!
Tas olhou e manteve-se calado, conforme o outro lhe ordenara, não por lhe ter ordenado mas porque o que viu o obrigou a querer ficar calado — muito, muito calado, e por muito, muito tempo.
Formando um círculo, erguiam-se sete pinheiros mortos. Tinham sido devastados pelo fogo, mas ao invés das outras árvores, essas reduzidas a cepos calcinados, os pinheiros ainda se mantinham inteiros. Ora bem, ali estavam eles, lembrando esqueletos fantasmagóricos, com os ramos despidos de folhas, todos retorcidos na sua morte excruciante.
Subiu-lhe à garganta um soluço — em comiseração por aquelas árvores, em tempos majestosas —, mas conseguiu engoli-lo. No meio do anel de árvores mortas, via-se um monte de madeira. De uma forma inexplicável e prodigiosa, esta não fora consumida pelo braseiro pavoroso que carbonizara tudo na face da ilha. Perto do fundo da pilha de lenha, algo brilhava com um fulgor avermelhado, a refletir o Sol persistente que teimava em não se pôr na altura devida.
Levando a mão à orelha de Dougan, Tas inclinou-se e perguntou-lhe baixinho:
— É a Pedra Preciosa Cinzenta?
— Rachada ao meio — respondeu o duende, com uma expressão sombria e carrancuda. — As metades jazem no que restou do altar. Escondidas. Dele. Embora virasse tudo do avesso à procura, não conseguiu encontrá-las. O que me fez pensar.
— Pensar o quê?
— Não te interessa — replicou Dougan em tom severo e pondo-se muito sério. — A primeira coisa a fazer é recuperarmos a gema.
— Então, mãos à obra. O que nos impede?
— Eles ali — respondeu Dougan, lançando um olhar sombrio na direção do altar.
Tas voltou a olhar. Não viu nenhum dragão, nem tampouco draconianos. Não enxergou hordas de gobelins, nem ogros, nem kobolds[5], nem cavaleiros mortos, nem fadas de mau olhado, nem esqueletos descarnados, nem qualquer outro dos guardiões que normalmente velam as pedras preciosas mágicas. Nem sequer se via um xerife. Não havia nada — um fato para o qual chamou a atenção.
— Andou metido com as bebidas alcoólicas dos duendes outra vez, hein? — disse Tas, com simpatia.
— Não estou bêbedo! — replicou Dougan, indignado. — Os guardiões! Estão ali, entre as árvores.
— Entre as árvores não há nada a não ser sombras — observou Tas.
— São eles — sussurrou Dougan. — Só que não são sombras. São criaturas-sombras, terríveis guerreiros do Caos.
— São feitas de sombras? — inquiriu Tas, impressionado.
— São feitas de buracos da matéria do ser mortal. Não olha para elas, mas sim através delas, para o reino delas, que é o plano da não existência. É essa a catástrofe que o Caos prepara para o mundo e para todas as pessoas, animais, rochas, árvores, plantas, rios, riachos e oceanos. Tudo, tudo se tornará nada.
De repente, Tas experimentou na boca do estômago um desagradável vazio. Idealizou-o como nada, tudo à sua volta como nada, todo mundo como nada... tudo a desaparecer nas trevas do esquecimento, sem sequer restar alguém que ficasse a saber que, em tempos, tinham sido algo.
— Dougan, tem... tem certeza? — gaguejou Tas, engolindo em seco e esfregando o estômago com a mão, numa tentativa para afugentar a sensação de infelicidade.
— Ai, menino! Tenho certeza. Foi o que Ele prometeu, e cumprirá a promessa. Ficará tudo na Sua mão — acrescentou, em tom agourento.
— Mas, se nos apoderarmos da Pedra Preciosa Cinzenta, conseguiremos impedi-lo?
— Acho que sim, menino. Mas não tenho certeza. Foi só uma idéia minha. — Suspirou. — A única idéia que ocorreu até agora a alguém. De modo que pensamos fazer a experiência.
— Deixa ver se entendo — disse Tas, voltando a espreitar para o altar mutilado, sob o qual jaziam as duas metades da Pedra. — As metades, temos que recuperá-las daquelas sombras?
— Criaturas-sombras — corrigiu-o Dougan em voz baixa.
— Sim. Bom, não vai ser muito difícil. Tenho... — Tas engatinhou para o chão e começou a rebuscar o alforje — este artefato mágico que é muito poderoso.
— Tem? — Fincando-se nos calcanhares, Dougan tentou espreitar a bolsa.
— Tenho, sim. Me foi dado pelo meu tio Salta-Pocinhas...
— Claro. Quem mais haveria de ser? — murmurou Dougan, com azedume. — É esta coisa aqui?
— Não, isso é um lagarto seco. Pelo menos acho que é um lagarto seco.
— E esta aqui?
— Um lenço com as iniciais “FB”. Mmmm. Quem eu conheço com as iniciais FB? Oh, bom... Não, não é isso. Ahá! — exclamou Tas.
— Chiu! — ordenou Dougan, gesticulando com frenesi.
— Ahá! — sussurrou Tas. — Aqui está! A Colher Que Revolve dos Kenders!
Dougan fitou a colher e resfolegou com desdém.
— Podia ser de alguma utilidade se as criaturas-sombras se transformassem em sopa-sombra, o que não me parece provável. — Levantando-se, Dougan bateu, irritado, com os pés no chão, lamuriando-se e puxando a barba. — Porquê eu? Porque hei de ser sempre eu?
— Isto — disse Tas, levantando-se com ar digno, o que, não contando com o chapéu, o tornou mais alto do que o duende —, é um artefato kender muito poderoso. Ora, repare. Vai ver como funciona.
Afastando-se da árvore, Tasslehoff encaminhou-se para o altar, segurando diante de si a colher de chá de prata de Dalamar.
— Tas? Onde está você? — chamou Palin. Não houve resposta.
Qualquer peregrino de Krynn suficientemente audaz, ou mal informado, para viajar com um kender, sabe que, se há coisa que estraçalha dez vezes mais os nervos do que se ver na companhia deste, é constatar que o kender foi dar as suas voltinhas por conta própria. Grandes apreciadores de aventuras, os kenders têm o interessante hábito de transportar as mesmas para junto dos companheiros e partilhá-las, quer estes queiram quer não.
Amaldiçoando-se pelo seu erro — embora só tivesse virado as costas a Tas por cerca de cinco minutos —, Palin esquadrinhou a área e logo descobriu as pegadas minúsculas que conduziam a trilha.
— Onde vai dar isto? — perguntou a Usha. A jovem olhou com tristeza ao redor.
— Está tudo tão diferente — respondeu. — Torna-se difícil identificar. Acho... sim, deve ser o caminho que conduz ao altar que os Irdas construíram para a Pedra Preciosa Cinzenta.
— Santos deuses! Então ele foi por ali! — Palin enclavinhou a mão no bastão, disse em silêncio uma prece e, vigilantes e cautelosos, ele e Usha foram no encalço de Tas.
A trilha era ladeada pelo que restava das árvores consumidas pelo fogo: cepos carbonizados, troncos calcinados e cinzas. Começava a parecer a Palin que, no mundo, havia apenas três cores: o preto do carvão, o pardo das cinzas e o fulgor rubro do céu.
— Estamos perto? — inquiriu.
— Devemos estar! Não ficava longe — respondeu Usha. Calou-se por um momento, à procura, e depois apontou. — Ali! Os sete pinheiros...
As árvores maciças, outrora guardiãs orgulhosas, tinham agora um aspecto devastado e maldito, pareciam guerreiros descarnados, para sempre condenados a velar o objeto que sobre eles fizera desabar a calamidade. No centro do bosque morto viram uma pilha de madeira. Palin apercebeu-se do tênue fulgor do que podia ser a luz a refletir-se nas faces de uma pedra preciosa. Foi quando entre ele e as árvores pairou uma sombra.
Palin abaixou-se, tolhido pelo medo, tal como um coelho fica colado ao chão quando é sobrevoado pelas asas de um falcão. Mas o pavor desapareceu quase de imediato. A sombra adejou por cima do monte de lenha, ocultando-o da vista, e esvaiu-se entre as árvores mortas. Palin voltou a enxergar o tênue fulgor.
Apesar do calor, Palin sentiu-se percorrido por um calafrio e aconchegou as vestes. Desconcertado com aquela sensação de medo, estava prestes a inquirir a Usha se experimentara o mesmo, mas esta olhava fixamente noutra direção.
— Palin, veja! — disse a jovem. — Não é o Dougan?
— Sim, mas onde está o Tas?
Falavam baixinho, mas o som deve ter chegado aos ouvidos do duende, pois este virou-se e espreitou ao redor. Avistando-os, começou a fazer movimentos frenéticos com a mão.
— Venham aqui depressa! — soletrou com a boca e pôs-se, alternadamente, a agitar as mãos e a retorcê-las. — Devagar! — admoestou. — Mas, apressem-se!
Com a desagradável sensação de tal urgência ter algo a ver com Tasslehoff, Palin estugou o passo, movendo-se, o mais silenciosamente que podia, por entre as cinzas e os troncos caídos. Teve a nítida e arrepiante percepção de que algo o observava.
— Dougan! — exclamou baixinho, aproximando-se do aflito duende. — Viu Tas...
Como resposta, Dougan dirigiu a atenção de Palin para o bosque morto.
Virando-se, Palin verificou, alarmado, que o kender se dirigia para os pinheiros.
— Tas! Tas! Volte aqui! — exclamou, fazendo menção de segui-lo. Dougan segurou-lhe a manga da veste e apertou-a com força.
— Menino, não vá atrás dele — advertiu o duende, com uma voz profunda e soturna. — Nada pode fazer. Tentei detê-lo... — Os ombros de Dougan vergaram-se e, inclinando a cabeça, abanou-a e gemeu.
Palin olhou fixamente para o kender.
— Em nome de tudo quanto é sagrado, o que ele está fazendo?
Tasslehoff avançava lentamente para o pinhal, movendo-se como se acompanhasse um cortejo fúnebre, com passadas comedidas e uma postura solene. Na mão, segurava alguma coisa reluzente.
— Uma colher — disse Palin, estupefato. — O que ele está fazendo com uma colher?
— A Colher que Revolve dos Kenders, ou coisa parecida — murmurou Dougan.
— Ah! Já me lembro! Da torre! — Frustrado, Palin começou a praguejar baixinho. — Raios, ele não percebeu... foi tudo obra do meu tio! Onde ele vai?
— Tentar recuperar a Pedra Preciosa Cinzenta — respondeu Dougan, soltando novo gemido e puxando com força a barba. — Está ali, debaixo do que resta do altar. Não vá atrás dele. Aviso-o, menino! Caminha para um perigo terrível! Viu... viu algo parecido com uma sombra... deslizando para fora das árvores?
— Sim — respondeu Palin, e a lembrança provocou-lhe novo calafrio. — O que...
— Criaturas-sombras, menino — respondeu Dougan em voz baixa e apavorada. — Criaturas do Caos. Arrastam-nos para o esquecimento, primeiro a nossa alma, depois, o nosso corpo. Desaparecemos como se nunca tivéssemos existido.
— Senti-as me roçarem — respondeu Palin baixinho —, embora não percebesse do que se tratava.
— Menino, acho que não compreendeu — observou Dougan, com voz soturna. — Quando falo em desaparecer, como se nunca tivesse existido, quero dizer isso mesmo! Das mentes de todos os que te conhecem se desvanecerá a lembrança da tua pessoa. A tua mãe se esquecerá até que gerou um filho. O teu pai não reconhecerá o teu nome. Os que te amam não te chorarão, não rezarão por ti, nunca te recordarão com pensamentos de afeto. É como se nunca tivesse existido!
— É o que Ele planeja para o mundo inteiro — prosseguiu Dougan. — Nós, os deuses, olvidaremos tudo o que criamos, depois morreremos e a Criação nos esquecerá. Depois, até as próprias estrelas esquecerão.
— Palin, acho que o viram! — interveio Usha, aflita. — Está se aproximando muito!
— Dougan, como? — disse Palin, virando-se para o duende. — Como podemos detê-lo?
— A Pedra Preciosa Cinzenta! — Com a preocupação, Dougan retorcera a barba toda em nós. — Temos que recuperar a Pedra Preciosa Cinzenta!
— Mas como nos aproximaremos, com aquelas criaturas em volta?
Tas aproximava-se cada vez mais, e as sombras começaram a se mover.
— Tas! — chamou Palin em surdina, — Tas, volte aqui!
Mas o kender não o ouviu porque, nesse momento, começara a falar.
— Saiam do caminho, seus bandalhos sugadores de almas! Saiam já, antes que desencadeie o poder mortal do talher do meu antepassado! Saiam já, antes que use esta colher para revolver esses seus intestinos feitos de sombras!
— Tas! — exclamou Usha, alteando a voz. — Tas, por favor! Anda...
— Chiu! — Dougan agarrou-se a ela, quase a deitando ao chão. — Olhe! Olhe! Eles vão apanhá-lo!
Sob os pinheiros calcinados, deslizou uma noite que era só trevas. Toda a luz, sons, cores, movimentos, esperanças foram tragados por aquela escuridão fantasmagórica, sem nunca mais encontrarem o caminho de volta. Apareceram quatro desses medonhos contornos informes, que começaram a serpentear por cima do solo, movendo-se em direção ao kender. As criaturas-sombras faziam desaparecer o Sol, as árvores, o céu, o chão.
— Menina! Menina! Olhe! — murmurou Dougan, preso de grande excitação. — Não estão vigiando a Pedra Preciosa Cinzenta!
Palin tinha dificuldade em enxergar o altar, era-lhe mesmo difícil lembrar-se onde se encontrava. Nada existia por trás das criaturas-sombras. Quando estas se deslocaram, os objetos voltaram a emergir, parecendo ganhar existência só naquele instante.
— Kender maluco! Vou atrás dele! — disse o mago. Recapitulou mentalmente os encantamentos, interrogando-se se haveria algum passível de destruir as criaturas.
— Vou contigo! — exclamou Usha.
— Não! — respondeu Palin, abanando a cabeça. — Fique aqui com o...
— Menina, vá buscar a Pedra Preciosa Cinzenta — interrompeu-o Dougan, com uma expressão astuta a reluzir-lhe nos olhos. — Pode ir lá, sorrateira, e surripiá-la antes mesmo daquelas criaturas saberem o que aconteceu. Menina, foi treinada na arte. A vi em ação... O Nove-Dedos diz que é das melhores... Menina, agora não há tempo para perguntas. É capaz de se apoderar da Pedra?
— Será que isso vai deter as criaturas-sombras?
— Ai, menina, ai, pode ser — respondeu Dougan. — Pelo menos — acrescentou —, não dói.
— Ora experimentem me transformar em nada! — ouviu-se a voz esganiçada de Tasslehoff, embora traísse uma leve hesitação à medida que as criaturas-sombras se aproximavam. — Fiquem lá com o seu nada e metam-no num lugar que eu sei...
— Menina, agora! — insistiu Dougan.
Usha arremessou a trouxa ao chão, para ficar com as mãos livres. Ignorando os protestos de Palin, deu-lhe um beijo fugaz no rosto, uma palmadinha no braço e, desenvencilhando-se dele, precipitou-se, em silêncio, para as árvores, esgueirando-se entre elas.
Palin olhou, carrancudo, para Dougan.
— Supostamente... é um deus. Por que não faz alguma coisa?
Dougan, que de modo nenhum pareceu espantado, respondeu:
— Estou fazendo, menino! Estou fazendo! A idéia de mandar a garota apanhar a Pedra Preciosa Cinzenta foi minha, não foi?
— Eu queria dizer fazer alguma coisa contra aquelas criaturas! — replicou Palin, indicando, com as mãos, os seres-sombras.
— Ah, menino! — replicou Dougan com brandura — Eles são constituídos pela mesma matéria que eu! São seres-duendes, tal como eu. E embora, no seu plano, eu seja imortal, não o sou no deles, se entende o que quero dizer. Menino, o que aconteceria ao mundo se me destruíssem?
— Não sei — respondeu Palin com frieza. — Será que gostaria de apostar?
Dougan cofiou a barba e respondeu:
— Menino, é melhor se apressar. Parece que o teu amigo kender está metido em confusão.
— Por Paladino, se alguma coisa lhe acontecer, ou à Usha, garanto que vais se arrepender! — jurou Palin.
— Shirak — O Mago ordenou ao bastão que brilhasse e precipitou-se para os sete pinheiros, no encalço de Tasslehoff.
O kender percorrera cerca de metade do trajeto. Defronte dele, alinhavam-se as criaturas-sombras, deixando a Pedra Preciosa Cinzenta desprotegida.
É verdade que os insultos de um kender podem transtornar a pessoa mais cordata e levá-la a cometer homicídio e outros danos físicos. Mas será que as provocações de Tas constituíam o verdadeiro motivo que levava as criaturas a abandonarem o seu posto? Palin experimentou a desagradável sensação de não constituir esse o caso. Considerou ser muito mais provável as criaturas do outro mundo estarem minimamente interessadas na guarda da Pedra Preciosa Cinzenta. O seu objetivo era apenas um, o da destruição.
Mas, se dessem por Usha tentando se apoderar da Pedra, se virariam de imediato contra ela. Palin observou-a pelo canto do olho, receoso de encará-la diretamente, caso as criaturas seguirem-lhe a trajetória e captarem a jovem. Esta esgueirava-se, em silêncio e com passos ágeis, através dos destroços calcinados da floresta.
Encontrava-se a salvo, pelo menos por ora. A atenção das criaturas concentrava-se apenas em Tasslehoff. E, dentro de pouco tempo, teriam outro alvo — Palin.
Este, sentia-se muito preocupado para permitir que o medo o invadisse. Precisava forjar um plano que salvasse Tas e, ao mesmo tempo, mantivesse a atenção das criaturas desviada da Pedra e — assim esperava — acabasse por expulsá-las do mundo dos vivos.
Voltou a recapitular o rol de encantamentos. Pareceu-lhe lógico que, sendo as criaturas-sombras seres das trevas, possivelmente seriam sensíveis à luz e suscetíveis de serem destruídas por esta ou, pelo menos, intimidadas. O Bastão de Magius banhou Palin com o seu clarão fulgurante. Vasculhando o alforje dos componentes, retirou uma bolinha de guano de morcego, envolveu-a em enxofre e, concentrando-se, procurou que lhe ocorressem à mente as palavras da bola de fogo mágica.
Concentre-se no saque, aconselharia Geoffrey Linchado. Toque-o, segure-o, possua-o no coração antes de possuí-lo nas mãos.
O que queria dizer: “Não deixe que nada a distraia e desvie do objetivo. Pense na Pedra Preciosa Cinzenta, pense em como a deseja! Não pense em Palin nem em Tas. Não pense nessas criaturas horríveis que tentarão destruí-la... A Pedra Preciosa Cinzenta... a Pedra Preciosa Cinzenta... Significa tudo e todos.”
Usha observou as criaturas-sombras aproximarem-se devagarinho do kender. Tas parecia muito menos confiante. De vez em quando, a voz desfalecia-lhe, abrandava o passo e a colher — que de início brandira de forma tão temerária — tremia-lhe na mão.
— Não tenho medo! — gritou Tas. — Estou... estou enfastiado! Vocês começam realmente a me dar cabo da paciência! De modo que... pirem-se! Eu... — O tom da voz tornou-se um gorgolejo. — Parem... parem com isso! Que pensam que estão fazendo?... Deixem de ser iguais a mim!
Tasslehoff estava de olhos arregalados, vítreos, como se, diante de si, visse algo terrível e inacreditável.
Palin precipitou-se para fora das árvores. O cristal que sobrepujava o Bastão de Magius derramou um fulgor esbranquiçado e cintilante.
A voz de Dougan chegou aos ouvidos de Usha:
— Menina, a Pedra Preciosa Cinzenta! É a única forma de ajudá-los! Pegue a Pedra Preciosa Cinzenta!
A jovem desviou o olhar de Palin e de Tas, voltando a se concentrar no seu objetivo, tal como lhe tinham ensinado.
Franqueando o anel formado pelos sete pinheiros mortos, esgueirou-se por entre eles. Ao centro, avistou a pilha de madeira que em tempos fora o altar. Agora que se encontrava perto, podia constatar a amplitude da devastação. Uma mão gigantesca qualquer, tomada de ódio e de fúria, reduzira a lascas a madeira, polida à mão e coberta de runas, que outrora fora tão linda.
Perpassou o espírito de Usha a recordação pungente dos Irdas a construírem aquele altar, a trabalharem horas a fio, com as ferramentas e a magia, esculpindo, alisando, areando, planando e impregnando a madeira com os seus encantamentos, encantamentos que manteriam a Pedra subjugada.
O Prot não aprovara, desde o início opusera-se ao plano. Recordou-o, ali, a observar, veio-lhe à mente o seu presságio.
— Querido amigo, querido pai, tinha razão — murmurou Usha, sentindo os olhos marejarem-se de lágrimas.
— Menina, a pedra! A pedra!
Usha refreou o desgosto. O altar era agora uma coisa morta. Os Irdas estavam mortos. Não podia restituir-lhes a vida. Mas, podia tentar reparar o mal que tinham causado.
A Pedra Preciosa Cinzenta, que em tempos irradiara um fulgor cinzento, peculiar e fantasmagórico, jazia agora no chão, fragmentada em dois e parcialmente soterrada no monte de lascas de madeira. Estada quebrada em dois, como uma casca de noz rachada. O interior da pedra encontrava-se vazio, como se, por muitos, muitos anos, um verme insidioso o tivesse corroído, até encontrar a saída.
Mesmo quebrada, a Pedra continuava a enlear, a fascinar. Era tão linda como feia, tão grande como pequena, tão cintilante como sombria, tão dura como macia. Usha estendeu para ela as mãos, tocou-a, ergueu-a. A pedra era imponderável e, contudo, teve a percepção de um grande peso. As inúmeras faces eram pontiagudas, cortantes, suaves. A pedra revelava-se fria ao tato, um frio que queimava.
Preparava-se para, triunfante, metê-la no alforje, quando um grito, repassado de terror, lhe gelou a alma.
Palin encontrava-se diante de Tasslehoff. O bastão ainda irradiava luz, mas o fulgor estava a esvair-se. As criaturas-sombras encontravam-se perto. A jovem já pouco conseguia vislumbrar de Tas — apenas a pontinha do penacho. De Palin, avistou os ombros e o rosto.
E no seu rosto a mesma expressão desvairada, de horror, que se apossara até do kender imune ao medo.
Palin acorreu em socorro de Tas. O kender deixara de desafiar os inimigos. Parecia que tentava ganhar coragem — coisa inédita num kender.
— Não tenho medo! — gritou Tas. — Estou... estou enfastiado! Vocês começam realmente a me dar cabo da paciência! De modo que... pirem-se! Eu... — O tom da voz tornou-se um gorgolejo. — Parem... parem com isso! Que pensam que estão fazendo?... Deixem de ser iguais a mim!
Palin não estivera observando as criaturas, mas sim pensando no encantamento, o que significava visualizar na mente as palavras que tinha que proferir. O resto da sua atenção dividia-se entre Usha, agora dentro da clareira de pinheiros, e Tasslehoff.
Ao grito de Tas, Palin, pela primeira vez, olhou diretamente para as criaturas.
E não conseguiu desviar os olhos.
Deu consigo a fitar a si mesmo. Diante de si, encontrava-se Palin.
— Quem é você? — perguntou Palin, com voz trêmula. Olhou a criatura nos olhos e não viu nada, nem sequer o seu próprio reflexo. — O que é você?
— Quem é você? O que é você? — escarneceu a sombra.
— Sou eu mesmo — respondeu Palin. Porém, mesmo falando, sentia-se desvanecer.
A criatura-sombra estava lhe chupando a vida do corpo.
— Não é nada — disse-lhe o espectro, falando com a boca de Palin.
— Nasceu do nada e ao nada voltará.
— Desvie o olhar! — chegou-lhe a voz de Raistlin a avisá-lo e a repercutir-se no bastão. — Desvie o olhar! Não olhe nos olhos!
Palin tentou desviar os olhos da imagem de si mesmo, mas não conseguiu. Continuou a fitá-la, hipnotizado. As palavras do encantamento foram liquefeitas por gotas de escuridão que lhe escorriam para a mente, quais pingos de chuva numa folha de papel. As recordações, a percepção de si mesmo, tornaram-se baças, indistintas e confusas, começando a desvanecer-se lentamente.
Teve a vaga impressão de que ouvira Usha chamar um nome: “Palin!”, e interrogou-se, como que em sonhos, sobre quem seria.
— Palin! — gritou-lhe Usha da clareira de pinheiros.
As criaturas-sombras aproximavam-se cada vez mais do mago e rastejavam em direção a Tasslehoff. Agora, a jovem só conseguia vislumbrar as meias, de um amarelo vivo, e a ponta do penacho do kender.
— Palin! Tas! Afastem-se! Corram!
Mas, às suas palavras, nenhum deles se moveu nem sequer reagiu. Palin continuava de olhos grudados nas criaturas, revelando aquela pavorosa expressão de horror.
— Menina, apresse-se, senão desaparecem! — gritou Dougan.
— O que posso... o que posso fazer? — perguntou Usha, sentindo-se impotente. O alforje com os apetrechos mágicos dados pelos Irdas encontravam-se longe, junto dos pés de Dougan. Não havia tempo para tentar alcançá-los.
— A Pedra Preciosa Cinzenta! — berrou Dougan. — Tente apanhá-las com a Pedra Preciosa Cinzenta! Eu ajudo, menina! Vai conseguir!
Quanto a isso, Usha tinha certas dúvidas, mas não conseguia pensar em mais nada. Precisava tomar uma ação rápida. A escuridão, que ia se apoderando de Palin, já quase engolira Tas.
Segurando uma metade da Pedra Preciosa Cinzenta em cada mão, Usha rastejou até às criaturas-sombras.
— Menina, não olhe para elas! — advertiu-a Dougan. — Faça o que fizer, não olhe para elas!
Usha não queria olhá-las, pois sempre que as via de relance, estremecia com um pavor que a revolvia por dentro. Fitou Palin, o seu adorado rosto, agora contorcido de medo.
E, de repente, Usha encontrava-se diante de si.
A jovem pestanejou, estupefata e apavorada.
— Menina, não a olhe nos olhos! — uivou Dougan. — Não olhe!
Usha fitou Palin, concentrou-se no mago, ignorando a voz da criatura que tentava atraí-la para as trevas. Desviando a cabeça, tenteou às cegas e puxou a Pedra Preciosa Cinzenta para a imagem de si mesma.
Um frio terrível, doloroso, entorpecente, gelou-lhe os dedos. Quase deixou tombar a Pedra. O sofrimento era atroz. Sentiu as veias rasgadas por lascas de gelo. Estava perdendo a consciência, a rodopiar para a escuridão.
— Apanhe-a! — ordenou Dougan. — Prenda-a na jóia!
Desesperada, aflita, Usha juntou com violência as duas metades da Pedra Preciosa Cinzenta.
O gelo tornou-se calor.
A escuridão tornou-se luz.
As criaturas-sombras desapareceram.
Olhando em redor, Usha interrogou-se, confusa, se realmente tinham estado lá. Depois, fitou a Pedra Preciosa, que as suas mãos enclavinhavam, e começou a tremer.
Arquejando e bufando, Dougan correu, aos sopetões para a jovem, fazendo levantar nuvens de poeira sufocante com as pesadas botas.
— Bom trabalho, menina! Portou-se bem! As apanhamos! — E de si para si, murmurou: — Pelo menos algumas delas. — Depois, apressou-se a acrescentar: — Eu fico com isso — declarou, arrebanhando a Pedra Preciosa Cinzenta das mãos de Usha.
Se antes a quisera, a jovem, agora, sentia-se ansiosa por se ver livre dela.
— Palin? — perguntou, aflita, segurando com força no braço do mago. — Palin, sente-se bem?
O feiticeiro continuava de olhos vítreos, com aquela expressão horrível colada ao rosto. Ao ouvir a voz da jovem, e quando ela lhe tocou, relanceou lentamente o olhar.
— Palin. Eu sou Palin.
Usha cingiu-o contra si.
De olhos fechados, com o corpo a tremer, Palin estreitou-a nos braços. Dougan inclinou-se para Tasslehoff.
O kender tombara de joelhos. Ainda segurava a colher na mão e, repetidamente, soluçava:
— Não sou nada! Não sou nada! Não sou nada!
— Menino! Menino! Já se foram! — exclamou Dougan, dando palmadas nas costas de Tas, numa tentativa bem intencionada de fazer o kender voltar a si, mas que teve como efeito quase esvaziar o ar do corpo minúsculo de Tas.
Tossindo e com uma respiração farfalhante, piscou os olhos. Ao ver Dougan, dirigiu-lhe um sorriso vago.
— Ah, olá!
— Menino, me reconhece? — inquiriu Dougan em tom ansioso.
— Claro que sim — respondeu Tas —, é o Reorx.
Dougan abanou a cabeça.
— Isso não interessa agora — disse. — O importante é, quem é você, menino? Lembra-se?
Tas soltou um suspiro aliviado e contente que, começando na ponta das meias amarelas, se espalhou por toda a sua pessoa. E abrindo os braços de par em par, respondeu:
— Sou eu, ora quem havia de ser? Sou eu!
A Pedra Preciosa Cinzenta encontrava-se nas mãos do duende. De repente, este parecia muito idoso. As mãos abanavam e os dedos tremiam. O seu rosto mostrava-se gasto e avelhentado. Retirara o chapéu com a pluma vistosa, tinha as roupas cobertas de cinzas, os botões desapertados, as rendas penduradas. Segurava a jóia e, olhando-a com tristeza, deu um suspiro profundo e trêmulo.
— Lembro-me do dia em que a lapidei — disse. — Tudo o que eu queria era um pedacinho de Caos. Era só o que eu precisava. Para falar em termos humanos, nada mais do que um anel de cabelo ou uma lasca de unha. Como sempre, Ele não parava de rondar, de bisbilhotar. No nosso mundo, o mundo que fizéramos sem Ele, havia, na altura, ordem, entendem? E não conseguia suportá-lo. Adorava poder ver a nossa Criação soçobrar na desordem, na confusão, na anarquia.
— Odiava sobretudo a minha forja. A prática do ofício, a confecção e a construção de objetos, constituíam para Ele um anátema. O que apreciava era ... a rotura.
— Teve muitos filhos mas, os prediletos eram três: Paladino, Takhisis e Gileano. Concedeu-lhes um grande poder e enfureceu-se quando o utilizaram... o utilizaram para o amesquinhar... pelo menos foi o que ele achou. Formar um mundo e povoá-lo de seres vivos, inspirar nessas criaturas o sopro dos deuses, insuflar-lhes vida, de modo a continuarem a prática dos ofícios, a construção e a ordenação. Nenhum dos outros filhos se atrevera antes a efetuar tal coisa. Não conseguia suportá-lo.
— Pretendeu destruí-los, mas éramos muito poderosos. Refreámo-lo. Vejam se entendem, Ele mesmo facultara aos filhos os meios de fazê-lo e agora, como se arrependia! Desprezou Paladino e Takhisis, que sempre aspiraram à ordem e formavam conluios e maquinações para consegui-lo. Quanto a Gileano, que fora o filho preferido... revelou-se uma triste desilusão.
— Acho que foi sobretudo por causa do Gileano que o Caos se coibiu de, logo no início, destruir o mundo recém-povoado. Julgou que Gileano velaria no sentido de o Caos imperar. Mas Gileano tivera sempre índole de estudioso, sempre com o nariz enfiado nos livros e avesso a ser incomodado. De modo que Paladino e Takhisis levaram a deles avante. O equilíbrio oscilava de um lado para o outro, e no meio encontrava-se Gileano, sempre a folhear páginas.
Dougan fitou os dois fragmentos da jóia, sopesou-os e olhou intensamente para o centro oco.
— Dizem que o encurralei lá dentro, que desejava apenas um pedacinho de Caos e acabei por tê-lo todo. A gema funcionaria como uma âncora, estão entendendo? Faria o que o Gileano, por se encontrar imerso nos seus livros, não tinha aptidão para fazer. Na altura, o plano pareceu-me bom. Quem sabe se ponderasse mais... Mas não aconteceu e não podemos voltar atrás.
— Mas acho que não o arrastei para a cilada. Não.
— Foi propositado da sua parte. Viu chegada a oportunidade e agarrou-a. Meteu-se nesta pedra, mesmo antes de eu fechá-la. Foi Ele quem pairou pelo mundo, mudando isto, alterando aquilo, semeando desordem por tudo o que fizéramos. E viveu grandes momentos de gáudio: guerras, o Cataclismo, os filhos a guerrearem uns com os outros. E no fim, foram os Irdas que estragaram tudo, percebem? Ao quebrarem a gema, roubaram-lhe todo o prazer. De modo que agora faz um grande alarido, anda por aí a arengar, num desatino e... visto já não poder influenciar o mundo... prepara-se para destruí-lo. A meu ver, é esta a verdade.
O duende aquiesceu com a cabeça, para dar mais ênfase às palavras, e equilibrando com cuidado a pedra preciosa no joelho rotundo, limpou o rosto suado com as mãos.
Palin remexia-se, ansioso.
— Você não é o culpado. Paladino não é o culpado. Takhisis não é a culpada — disse. — Ao que parece, ninguém tem culpa. É tudo muito bonito, mas quando o nosso mundo se rachar como esta gema esfrangalhada e todos morrermos e cairmos no esquecimento, acho que de nada valerá.
— Tem razão, menino, tem razão — respondeu Dougan, taciturno.
— Mas, deve haver um meio de derrotarmos o Caos — observou Tasslehoff. — Agora, recuperamos a Pedra Preciosa Cinzenta. Será que poderia segurar nela... só por um instantinho? Devolvo-a logo...
Dougan cingiu a gema contra o peito.
— Afaste-se! — ordenou em tom feroz, dardejando Tas com um olhar faiscante. — Mexa-se! Vai para lá! Não, mais para longe! Continue a andar...
— Se me afastar mais, vou dar no extremo da ilha — lamuriou-se Tas.
— Boa viagem — murmurou Dougan.
— Tas, fique onde está — interveio Palin. — Olhe aqui, Dougan, Reorx ou seja lá quem for, temos que fazer alguma coisa!
— A gema destruiu as criaturas-sombras — aventurou Usha, com voz esperançosa.
— Nem todas — corrigiu-a Dougan —, e abarcou um curto raio de alcance. As criaturas se espalharão pela Terra como a morte mais tenebrosa, começando pela Torre do Sumo Sacerdócio. Estão vendo, é ali que o Caos calcula poder desferir o golpe mais duro contra Paladino e Takhisis, os seus dois filhos mais poderosos. Uma vez destruídos... e o serão, no caso da Torre do Sumo Sacerdócio cair... então, desencadeará a invasão maciça do mundo pelos exércitos dos seus servos.
— Nesse caso, deveríamos ir para a torre — respondeu Palin, frustrado. — Podemos utilizar a Pedra Preciosa para ajudar os cavaleiros a derrotarem o Caos...
— Menino, os cavaleiros estão recebendo ajuda, embora possivelmente não o saibam. Os outros deuses não cruzaram os braços. Em todo o continente de Ansalon, as suas forças já foram ativadas. Mas isto — acrescentou Dougan, aflorando com precaução a Pedra Preciosa Cinzenta —, constitui a chave de tudo. Se a minha idéia funcionar, podemos detê-lo, enviá-lo, e aos seus servos, para as profundezas.
— Então, tem um plano — observou Palin. Dougan fixou-o com ar matreiro.
— Você dizia que queria fazer alguma coisa, não é?
— Claro! — retrucou Palin com impaciência. — Queremos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance.
— Por mais perigoso que seja? Mesmo que não haja hipóteses de sobreviverem? Ou que, se forem poupados, fiquem mudados para sempre?
Tasslehoff levantou a mão e exclamou:
— Eu também vou! O Raistlin disse que podia!
— Enfrentarei os perigos — observou Usha, olhando de soslaio para os pinheiros mortos, para o local onde tinham pairado as criaturas-sombras. — Nada pode ser tão ruim quanto isso.
— Vai uma aposta? — grunhiu o duende.
— Deduzo, pelas suas palavras, que todo mundo em Ansalon corre perigo. Correremos os mesmos riscos que os outros. Que temos de fazer?
Segurando as metades da Pedra Preciosa Cinzenta em cada mão, Dougan estendeu-as, dizendo:
— Têm que capturar o Caos e metê-lo aí dentro.
Palin ficou sem respiração.
— Está doido! — exclamou. — É impossível fazê-lo! Não somos deuses!
— Menino, é possível. Pensei em tudo. Falei com os outros e acham que pode funcionar. Nós, os deuses, defrontamo-nos com os nossos próprios problemas. O Paladino concordou em nos ajudar... contanto que sobreviva. A Takhisis, desesperada como está — acrescentou Dougan, abanando a cabeça —, só luta para dominar o mundo. Melhor seria se lutasse pela própria sobrevivência, mas não consegue discerni-lo. Combatem na Torre do Sumo Sacerdócio.
Dando um profundo suspiro, rematou:
— A Takhisis ainda pode ganhar. Se isso acontecer, se verá, por fim, no topo. Mas quem sabe se não constatará que se encontra no topo de um monte de cinzas, nada mais.
Os cavaleiros lutavam sob o clarão rubro do Sol, que teimava em não se pôr. O fulgor ofuscante tingia-lhes as espadas de laivos de sangue e fazia as lanças faiscarem. Os Cavaleiros de Takhisis envolveram-se numa luta renhida para defender a Torre do Sumo Sacerdócio da investida de um adversário pavoroso, terrível e mortal.
As faíscas dilaceravam o céu sem nuvens, e o eco dos ribombos troava sem cessar. Sempre que os raios acertavam nos flancos das montanhas, as árvores ressequidas irrompiam em chamas. O fumo pairava sobre o vale, lembrando uma mortalha. Derramando-se sob a fumaça, as trevas sobrenaturais escorriam pelas montanhas e tomavam a direção norte, rumo à muralha norte da Torre do Sumo Sacerdócio. Os cavaleiros encontravam-se preparados para o confronto com o que quer que fosse — os dragões advertiram-nos de que essas trevas fantasmagóricas não nutriam simpatia pelos que adoravam Sua Majestade das Trevas.
Os dragões — dourados, vermelhos, azuis, prateados e de todas as outras cores dos espécimes de dragão — comunicavam que, no oceano Túrbido, se abrira uma fenda enorme, da qual jorrava fogo que fazia ferver a água do mar. Era dessa fenda que as trevas brotavam.
— Trata-se de um imenso rio de noite infindável, que se abate sobre as montanhas. Deixa atrás de si um rasto de destruição pior do que os incêndios — comunicou um idoso dragão dourado, um lorde entre os da sua espécie. — Toda a criatura viva que é tocada pelas trevas, desaparece sem deixar vestígios, nada guardando atrás de si... nem sequer uma recordação.
Ariakan escutou, com ar cético, em particular por se tratar de um dragão dourado a comunicá-lo.
— E essas trevas, o que são? — quis saber.
— Senhor, não sabemos dizer — respondeu um jovem dragão vermelho, que ascendera há pouco à chefia e exibia feridas recentes sofridas em combate. — Nunca vimos tal coisa. Mas pode avaliar com os seus próprios olhos. Encontram-se diante de ti.
O Senhor de Ariakan dirigiu-se para o seu posto de comando e assumiu posição nas ameias da Espora dos Cavaleiros. Conforme o dragão dissera, o ataque já fora desencadeado. Alinhados nas muralhas, os arqueiros disparavam setas contra as trevas, e aquelas deslizavam, como água, até à base da estrutura, desaparecendo sem deixar vestígios nem causarem danos visíveis. As trevas adensavam-se e começavam a trepar pelas muralhas.
Em socorro acorreu um contingente de brutos, chefiados por cavaleiros e preparados para investir contra a escuridão, fazendo uso das espadas e das lanças. Entre as suas fileiras, havia Cavaleiros do Abrolho e Cavaleiros da Caveira, prontos a combater este novo inimigo com recurso à magia e às preces.
— Que raio se... — praguejou Ariakan. — Que se passa? Não consigo ver! No horizonte, distinguia-se o fulgor vivo do Sol, contudo, a muralha norte da Torre do Sumo Sacerdócio encontrava-se mergulhada na noite. Ariakan ouvira gritos roucos de terror, gritos pavorosos saídos das trevas. O que mais o preocupou foi o que não conseguiu ouvir. Não lhe chegavam fragores de batalha, nem o entrechocar de espadas contra escudos, nem de espadas contra armaduras. Nem ordens dos oficiais. Escutou as vozes dos seus feiticeiros, a pronunciar as primeiras frases dos encantamentos mágicos, mas não ouviu o fim. As preces dirigidas pelos sacerdotes a Sua Majestade das Trevas, silenciaram-se abruptamente. Até que, por fim, Ariakan não conseguiu agüentar mais.
— Vou lá abaixo! — anunciou, ignorando os protestos dos seus oficiais. Mas antes que pudesse dar um passo, as trevas recuaram de forma tão repentina como surgiram. Escoaram-se pela muralha e deslizaram por entre as árvores, confundindo-se com o fumo. Os cavaleiros postados nas muralhas rejubilaram, julgando ter os seus efetivos rechaçado o inimigo. A alegria esmoreceu quando o fulgor de um Sol feroz se apressou a substituir as trevas. Tornou-se óbvio que não se tratava da vitória. A escuridão recuara por outro motivo.
— Minha Santa Majestade! — murmurou Ariakan, estupefato e apavorado. Das centenas de soldados que haviam montado a defesa da muralha norte da torre, não restava um. Os únicos indícios que comprovavam ter eles existido, eram os objetos físicos que, na altura, usavam ou traziam consigo. Espalhados pelas ameias, viam-se elmos, couraças, anteparos para as mãos, camisas, túnicas, vestes cinzentas e negras. No topo de uma couraça, jazia uma espada. Perto de um toucado com plumas via-se uma lança com penas. Sobre uma veste cinzenta via-se uma bolsa com pétalas de rosa. Junto de uma veste negra, um castão negro.
Não sobrevivera um único ser. Todos, sem exceção, desapareceram. Não houvera derramamento de sangue, mas a avaliar pelo som daqueles gritos horrorosos — a todos tocaram as vascas do sofrimento. E, o pior de tudo, os que, em estado de choque, olhavam para a pavorosa cena, eram incapazes de se recordar de um único rosto ou nome. Que aqueles homens e mulheres tinham existido e ali estado, ninguém duvidava. A comprová-lo, havia os testemunhos físicos abandonados. Era o que conseguiam recordar. Pegaram nos pertences dos amigos e dos camaradas e examinaram-nos, com uma expressão temerosa e horrorizada. Por mais que se esforçassem, não conseguiam se lembrar dos desaparecidos.
Que força pavorosa é esta?, interrogou-se Ariakan, tomado de fúria e de estupefação. O seu rosto mostrava-se da cor da cinza. Ali ficou parado, imerso em torpor. Os que, em tempos, haviam conhecido a sua calma e frieza em combate, viam-no agora abalado até ao âmago.
— E como vamos combatê-la? — exclamou em voz alta. — Descubram alguém que me diga! Chamem os meus sacerdotes e os Cavaleiros Cinzentos... os que restam — acrescentou, em tom soturno.
Mas embora todos os sacerdotes e feiticeiros apresentassem idéias, nenhum forneceu certezas absolutas.
— Pelo menos — atreveu-se o subcomandante Trevalin a dizer —, parece que o inimigo bateu em retirada. Quem sabe se os que o combateram saíram vitoriosos, embora à custa da própria vida.
— Não — replicou Ariakan, perscrutando as trevas insondáveis que se ocultavam atrás das árvores em chamas. — Não, as sombras não bateram em retirada por terem perdido. Fizeram-no propositadamente, para permitir-nos ver o que aconteceu aos nossos camaradas. O comandante delas, seja lá o que for ou quem for, pretende nos desmoralizar, em pânico e terror. Mas, por Sua Majestade das Trevas, não permitirei que tal aconteça!
— Voltem para junto dos vossos contingentes! — ordenou aos comandantes. — Mandem limpar imediatamente esta confusão, para que nada fique à vista! Interroguem os vossos homens! Tentem descobrir alguém que viu ou ouviu algo susceptível de nos elucidar quanto a este inimigo e quanto ao que aconteceu aos que o combateram. Comuniquem-me diretamente as informações. Estarei no Ninho do Pica-Peixe.
Os comandantes dispersaram-se, a fim de restaurarem a disciplina e a ordem entre as tropas nervosas. Os cavaleiros retomaram as obrigações, com intervalos ocasionais sempre que um ou outro parava para olhar fixamente para as ameias a sul, agora consideradas amaldiçoadas.
Acompanhado pelos guarda-costas, Ariakan subiu até o posto de vigia conhecido por Ninho do Pica-Peixe. Ordenando aos homens que ficassem postados ao fundo das escadas, percorreu, sozinho, o resto do trajeto.
Sendo o ponto de vigia mais vantajoso da torre, o Ninho do Pica-Peixe era composto por uma dependência pequena e circular, dotada de janelas de fendas por toda a volta e proporcionava uma panorâmica espantosa das montanhas de Vingaard, das planícies Solâmnicas e do território circundante. Ariakan tentou vislumbrar, para lá da mortalha de fumaça que pairava sobre o vale, os picos das montanhas de Vingaard. Avistou as estranhas trevas, que se esparramavam por entre as rachas e fendas, devorando a luz.
Como se encontrava sozinho, Ariakan pôde dar largas à sua frustração. Percorreu a pequena dependência, indo de janela em janela, tentado encontrar respostas e sentindo a alma a transbordar de pavor e maus presságios. Ocorreu-lhe a história do jovem mago sobre o regresso do Caos, sobre a ameaça que atingia e punha em risco os próprios deuses. Não acreditara nela... até o momento.
Encontrava-se ali postado, a perscrutar as montanhas, tentando vislumbrar algo que lhe pudesse fornecer alguma pista, quando se apercebeu do som de botas que subiam as escadas.
— Um mensageiro — murmurou para consigo, sentindo a esperança renascer. — A minha gente descobriu alguma coisa.
Mas quem entrou na câmara não vinha ofegando nem era portador de informações importantes. Tratava-se de um cavaleiro, ao que parecia de Ariakan, a avaliar pela reluzente armadura negra. O seu rosto encontrava-se oculto pelo elmo, que tinha a viseira caída.
— Senhor cavaleiro, quem é você? — inquiriu Ariakan. — Porque abandonou o seu posto?
O cavaleiro não respondeu. Tinha uma altura desmesurada. A pluma negra do elmo aflorava o teto. Os ombros eram largos e os braços grossos e musculosos. À ilharga, pendia-lhe uma pesada espada, com bainha de couro preto, decorada no topo com cinco faixas de cor: vermelha, azul, verde, branca, preta. O punho da mesma configurava um dragão com cinco cabeças. Estava vestido de negro, como se a noite o cingisse. Os seus olhos eram pálidos e ardentes como as estrelas.
Pela mente de Ariakan, agigantaram-se reminiscências. Conhecia aquele cavaleiro, já o vira antes, em algum lugar, num passado remoto...
Apavorado e reverente, o Senhor de Ariakan prostrou-se de joelhos.
— Sua Majestade!
— Lorde, levante-se — disse uma voz de mulher, tão funda como o Abismo. — Sobre nós paira a iminência da catástrofe. Caos, o Pai de Tudo e de Nada, voltou. Voltou tomado de fúria, disposto a destruir toda a Criação. Lutamos pela nossa própria existência.
— Majestade, eu e os meus cavaleiros estamos prontos — respondeu Ariakan, levantando-se. — Ordene, que nós obedecemos.
A Guerreira das Trevas atravessou a pequena sala e foi postar-se a uma das janelas. Com a mão enluvada, esboçou um gesto peremptório. Ariakan aproximou-se da Rainha.
— A catástrofe está iminente — disse Takhisis baixinho —, mas também o está a oportunidade da vitória final. A vitória final, Ariakan! — repetiu, crispando a mão enluvada de preto.
— Ariakan — prosseguiu —, se derrotar o Caos, o povo de Krynn saberá que têm a mim para agradecer tê-lo salvo. A sua dívida será eterna. Exercerei sobre este mundo um tal jugo que ninguém poderá quebrá-lo.
— É verdade, Majestade — concordou Ariakan —, mas, como isso será possível?
— O povo de Ansalon sairá desta guerra confuso, sem um chefe à altura. Reinará a anarquia. Quem sabe se não é chegada a nossa oportunidade. Quando as forças do Caos forem rechaçadas, vocês... os meus cavaleiros... deverão manter-se firmes e prontos a assumir o domínio.
— Mas, Majestade, já controlamos grande parte de Ansalon! — protestou Ariakan, julgando que a Rainha lhe atribuía, e aos seus cavaleiros alguma culpa.
— Governa Silvanesti? — inquiriu Takhisis. — Será que o reino duende de Thorbardin caiu?
— Ainda não — replicou, taciturno, Ariakan.
— As suas forças lutam ainda no Norte de Ergoth. Em Qualinesti cresce a revolta. E quanto a Taladas e as regiões distantes deste mundo?
— Vossa Majestade tem de nos dar tempo — replicou Ariakan, pálido e de cenho franzido.
— Não precisa de tempo. Deixaremos que as forças do Caos façam o trabalho por nós. Compreende?
— Compreendo, Majestade — replicou Ariakan, executando uma vênia. — O que me ordena?
— Na sua investida contra o Caos, o Paladino está a recorrer a tudo o que possui. As forças do Bem sairão largamente vencidas. Aniquiladas e dizimadas. Precisamos tomar providências para que isso não aconteça. Passará à reserva um certo número de cavaleiros e de dragões. Mantenha um dos flancos resguardado da batalha que se avizinha. Faça isso em segredo.
— Quando terminar a luta pela Torre do Sumo Sacerdócio e sairmos vencedores, esses cavaleiros se encontrarão repousados e aptos a conquistar pontos estratégicos-chave do continente de Ansalon. Os teus cavaleiros não se encontrarão sós. Alertei outros leais à nossa causa. Draconianos, ogros, minotauros, gobelins lutam, neste exato momento, como aliados das forças do Bem. Mas quando tudo terminar, integrarão o teu exército para consumar a tomada do poder.
— Às suas ordens, Majestade — respondeu Ariakan. E perscrutando, através da janela, as inusitadas trevas, acrescentou: — Mas antes, temos de fazer com que a Torre do Sumo Sacerdócio resista ao inimigo. Majestade, será que pode me esclarecer a respeito deste adversário? Do que se trata?
— Criaturas-sombras, seres constituídos a partir da essência do Caos. Não possuem forma nem contornos. Perscrutá-las, equivale a perscrutar o esquecimento. Quando atacam assumem, nos mais ínfimos detalhes, a forma do adversário. Proferem palavras de trevas e de desespero, privando o inimigo do seu caráter beligerante. Quando tocam num ser mortal, reduzem-no a nada.
— E a próxima onda de assalto integrará guerreiros demoníacos. São criaturas tão frias como a escuridão imensa e vazia que separa as estrelas. A espada que tentar trespassá-los se estilhaçará como se fosse de vidro. A mão do homem que tocá-los ficará dormente, para sempre despojada da vida e do calor.
— Essas tropas integram dragões de fogo, dotados de garras de chamas e um bafo sulfuroso e tóxico. São estes os adversários que enfrentará e terá que derrotar.
Ariakan mostrava-se soturno.
— Majestade, como essas criaturas poderão ser derrotadas?
— Por serem destituídos de forma ou substância e nascidos do Caos, podem ser desbaratados por qualquer arma forjada que tenha sido tocada por um dos deuses. Todas as espadas dos teus cavaleiros receberam a minha bênção e as suas lâminas matarão as criaturas-sombras. Os homens devem tomar a precaução de não olhar as criaturas nos olhos e, ao mesmo tempo, aproximarem-se delas o suficiente para desferir o golpe. Quanto aos guerreiros demoníacos, embora as armas forjadas neutralizem a magia, o golpe que desferirem constituirá o último. A arma será destruída e o cavaleiro que a empunhava ficará indefeso.
— E quanto aos meus fazedores de magia? Os teus sacerdotes?
— Os encantamentos de luz evitarão que as criaturas-sombras assumam a forma do inimigo e os encantamentos de fogo as destruirão, mas os feiticeiros terão de expulsar da mente as vozes letais daquelas, senão serão destruídos. Todo o objeto sagrado que tocar no guerreiro demoníaco, o remeterá de novo para o esquecimento, mas o próprio objeto se perderá, será sacrificado.
Pensativo, Ariakan guardou silêncio. Depois, aquiescendo com a cabeça, observou:
— Majestade, começo agora a entender por que motivo pretende que se mantenham tropas de reserva. Esta batalha irá nos enfraquecer muitíssimo.
— Enfraquecerá todos, Lorde Ariakan — replicou Takhisis. — E nisso residirá a nossa vitória final. Reinarei em supremacia. Meu senhor, adeus.
A Rainha estendeu-lhe a mão enluvada e o Senhor de Ariakan prostrou-se de novo de joelhos, para que o abençoasse.
— Majestade, lutaremos até à morte! — exclamou, com fervor. Com ar de desagrado, Sua Majestade retirou a mão.
— Ariakan, tenho almas de sobra — disse com frieza. — São os vivos que me interessam.
Ariakan baixou a cabeça, acusando a reprimenda. Quando a levantou, a Rainha já desaparecera
— O que disse? — perguntou Steel, furioso, e o amargo desapontamento o fez esquecer da disciplina. — Trevalin, não está falando sério!
Os outros cavaleiros rodearam o superior, juntando-se aos protestos de Steel.
— Desagrada-me tanto quanto a vocês, mas foram as ordens que recebi — respondeu Trevalin. — Temos que nos esconder nas armadilhas para dragão, longe da batalha, e permanecer ali até novas ordens. E — acrescentou, dardejando os homens com um olhar severo —, temos que guardar sigilo a respeito disto. O homem que o divulgar a alguém alheio a este batalhão, pagará com a vida.
— Estamos sendo castigados — observou um dos cavaleiros.
— Que fizemos para cair no desagrado do nosso amo? — perguntou outro.
— Andar por aí aos segredinhos, escondidos no escuro como duendes dos esgotos fedorentos!
— O povo entoará odes à bravura dos nossos camaradas...
— Entoarão à nossa vergonha!
— Cavalheiros, basta! As ordens que recebi vêm diretamente de Lorde Ariakan — interveio Trevalin, em tom severo. — Algum plano deve ter em mente. Cabe-nos obedecer e não questionar. Se há queixas a fazer, sugiro que as apresentem diretamente a Sua Senhoria.
Tal declaração veio calar os protestos — pelo menos os ditos em voz alta. Os cavaleiros trocaram olhares carrancudos e infelizes, mas nada disseram.
Dada a imposição de sigilo, Trevalin reunira os homens nos barracões do batalhão, longe dos alojamentos da força principal dos cavaleiros. Ao olhar de relance pela janela, verificou que o Sol começava, por fim, a baixar no horizonte, irradiando um fulgor lúgubre, como que renitente em partir e assim perder a batalha iminente. A torre preparava-se para o ataque seguinte, augurado pelas vastas poças de trevas, que deslizavam pelos flancos das montanhas e se adensavam ao redor das muralhas. Da escuridão ressaltavam agora os olhos dos guerreiros do demônio, a caminharem entre as criaturas-sombras. Tratava-se apenas de olhos, nada mais. Olhos vermelhos, medonhos, faiscantes de morte.
A visão permitia a cada cavaleiro partilhar a descrição feita por Sua Majestade das Trevas a respeito das criaturas-sombras e dos guerreiros demoníacos e de como derrotá-los. Os cavaleiros do Lírio aprontavam os dragões para levantar vôo. Os Cavaleiros da Caveira invocavam a Rainha, para que derramasse a sua benção sobre as armaduras, os escudos e as armas. Os Cavaleiros do Abrolho reuniram ingredientes mágicos e memorizavam encantamentos. O batalhão de Steel preparava-se para bater em retirada e esconder-se.
— É tempo de partirmos — disse por fim Trevalin, com relutância. — Espero que não haja perguntas a fazer, pois se assim fosse, não poderia lhes responder. Dentro de uma hora, deveremos nos encontrar reunidos nas armadilhas para dragão. Dada a necessidade de sigilo, tomarão caminhos diferentes e irão um a um ou aos pares. O oficial cavaleiro Montante Luzente transmitirá as diretivas.
Com ar macambúzio, os cavaleiros preparavam-se para abandonar o local, a fim de assumirem as novas posições “na adega, com as velhas e as crianças”, conforme disse um em surdina, para que Trevalin não ouvisse.
Steel estava tão furioso como os outros por perder a batalha, mas — passado o primeiro acesso de cólera — nada mais dissera. Resgatara o seu posto, era de novo o segundo-comandante do batalhão e, na qualidade de oficial cavaleiro, dele se esperava que prestasse lealdade e apoio incondicional a Trevalin. Steel organizou os cavaleiros do batalhão, deu a cada grupo instruções quanto ao trajeto específico a tomarem, ouviu-os resmungar e, referindo-se a “tropas de choque” e “missões secretas”, tudo fez ao alcance para apaziguá-los. Quando o último contingente se retirou, apresentou-se junto de Trevalin para lhe apresentar um relatório da situação.
— Sabe, não anda longe da verdade — disse-lhe Trevalin em voz baixa, quando se encaminharam para as armadilhas para dragões. — Pelo que consegui apurar, passamos à reserva porque nos vai ser atribuída uma missão importante, que o Ariakan recebeu de Sua Majestade em pessoa. Um dos guarda-costas de Ariakan me contou que a Rainha se avistou com o nosso suserano no Ninho do Pica-Peixe e que falaram. O homem soube porque viu o Ariakan subir até lá sozinho e depois ouviu duas pessoas falando — uma era mulher, com uma voz que lembrava um sino anunciando a catástrofe. Quando o Ariakan desceu, vinha pálido e tremendo, como um homem atingido por um raio. Pouco depois, transmitia estas ordens.
Steel sorriu, com agrado.
— Porque não conta aos outros? Os faria se sentir melhor.
— Porque devemos obedecer às ordens sem contestá-las. E o que te contei, não passa de mexerico — replicou Trevalin em tom cortante. Relaxando, encolheu os ombros, sorriu e acrescentou: — Em outras palavras, oficialmente, eu não recebi autorização para dizer, mas você, Montante Luzente, pode fazer correr o boato.
— Fomos escolhidos pela própria Rainha! — exclamou Steel, exultante, para consigo, ao franquearem os portões de bronze que conduziam às armadilhas para dragões.
Mas, quando a escuridão daquele antro se abateu sobre eles, os separou dos camaradas e os envolveu na sua mortalha, tornou-se difícil manter o orgulho, o arroubo por se saberem eleitos.
Mantiveram-se em silêncio, que foi interrompido pelo toque às armas de um clarim, um apelo ao qual estavam proibidos de responder.
Refreando-se, Steel procurou manter-se calmamente sentado, a aguardar as ordens. Olhou, com ar de censura, para os cavaleiros que procuravam extravasar as emoções andando nervosamente de um lado para o outro e ordenou-lhes que ficassem quietos e não desperdiçassem energias. Passou a primeira hora limpando e polindo a espada, a espada do pai, admirando-lhe de novo a perfeição, que nem sequer os mestres forjadores de espadas contratados por Sua Excelência Ariakan conseguiam igualar. O próprio Ariakan afirmara tratar-se de uma das mais belas lâminas que já lhe fora dado admirar.
Na realidade, a espada não precisava ser limpa, pois Steel punha um extremo cuidado na manutenção das suas armas. Mas polir o requintado metal proporcionava-lhe algo de construtivo para fazer e, ao mesmo tempo, tranquilizava-o. Deu consigo a pensar no pai e nas histórias que ouvira a respeito da coragem dele. Os seus pensamentos recuaram até às brumas das épocas que antecederam o progenitor. Steel interrogou-se a respeito dos outros cavaleiros que empunharam aquela espada e a transportaram aos píncaros da honra e da glória. Onde se encontravam agora reunidos todos os Montante Luzente? Será que se dispunham, em linha, atrás do seu chefe, Paladino, preparando-se para se lançar no combate? Os antepassados de Montante Luzente lutaram em nome de Paladino. Steel, que os representava em vida, combatia por Takhisis. Mas, o que viu pouca diferença fazia, pois tratava-se do reverso da medalha.
Imaginou a batalha que devia estar a acalar com o seu fragor o Abismo, os deuses unidos no combate ao Caos, a Rainha dele na vanguarda das suas terríveis legiões, a conduzi-los para a vitória. Sentiu o coração transbordar de orgulho e admiração. Enquanto trabalhava, dirigiu, em surdina, uma prece a Takhisis, pedindo que lhe concedesse um pedacinho da coragem imensa de Sua Majestade. Quase invejou os mortos por serem contemplados com o supremo privilégio de lutarem ao lado de Sua Majestade das Trevas.
Os sonhos, a imaginação e o trabalho fizeram com que a primeira hora de espera se escoasse rapidamente. Passou a segunda sentado no chão de pedra, a suar devido ao calor que conseguira infiltrar-se até àquele recesso da torre e a escutar os sons da batalha, vindos de cima. Imitando-o, os outros cavaleiros especulavam quanto ao que estaria se passando. Os sons chegavam-lhes indistintos, abafados e distorcidos, calados pelos ribombos que sacudiam a torre até os alicerces, pelo estrépito dos clarins e pelo baque surdo e palpitante dos engenhos de guerra. De vez em quando, estremeciam ao ouvir, mais forte que todos os outros fragores, um grito terrível e roufenho — o bramido de agonia de um dragão. O som horrível silenciava os cavaleiros, que se punham a examinar o chão empedrado.
O tempo passava e nada. Nenhum mensageiro arquejante desceu ruidosamente as escadas, a ordenar-lhes que selassem os dragões e se elevassem aos céus.
À terceira hora, todos os sons cessaram e sobre eles abateu-se um silêncio de mau presságio. Os jogos de dados pararam, assim como todas as tentativas de entabular conversa. Trevalin postou-se junto a porta de bronze trancada, a olhá-la, com o rosto soturno e consumido de inquietação. Steel, incapaz de agüentar por mais tempo a tensão, passeava inquieto, chocando com outros companheiros que o imitavam.
Sentiu algo molhado atingir-lhe a testa. Levou a mão à cabeça, recuou, olhou para os dedos e soltou um grito rouco:
— Alguém me traga uma tocha! Depressa!
Foram trazidas várias tochas e os homens acotovelaram-se nervosamente em volta dele.
Abrindo caminho por entre o círculo de cavaleiros, Trevalin inquiriu:
— O que temos? O que foi? Qual é a causa deste reboliço? Vocês aí, dispersem...
— Subcomandante, é melhor ver isto — respondeu Steel. — Tragam-me essa luz para cá.
Um dos cavaleiros baixou a tocha. O clarão foi iluminar uma poça que ia se formando no chão de pedra. Fez-se um silêncio repentino e chegou-lhes o som lento e incessante de pingos a cair.
Ajoelhando-se, Trevalin mergulhou os dedos na poça e examinou-os à luz.
— Sangue — disse, baixinho, olhando para o teto. Em seguida levantou-se.
— Vou lá em cima — anunciou, e vários cavaleiros receberam a frase com um clamor de alegria.
— Parem com isso! — ordenou, zangado. — Peguem as armas e preparem-se. Montante Luzente, venha comigo.
Os outros dispersaram rapidamente, animados por fazer algo, embora tal se limitasse a afivelarem as espadas e a prenderem as armaduras. Steel acompanhou Trevalin até às portas.
— Enquanto me ausentar, fica no comando — disse Trevalin. Calou-se e, em vez de sair, ficou olhando para as portas, parecendo hesitante em falar ou não.
— Montante Luzente — disse, por fim, em voz baixa —, sentiu algo estranho? Qualquer coisa relacionada com a Visão?
Steel esboçou um gesto lento com a cabeça.
— Tinha esperança que fosse engano meu, subcomandante — respondeu baixinho. — Pensei que fosse só eu.
— Ao que parece, não foi — respondeu Trevalin, com um suspiro. — Mas, acho que mais ninguém reparou, e aí?
— Também, subcomandante.
Abanando a cabeça, Trevalin pôs as luvas.
— Ao fazer isto, estou desobedecendo a ordens diretas — disse. — Mas, sem a Visão a me guiar... Acontece algo de errado. E, se pudermos, caberá a nós remediá-lo. Espere-me aqui. Não demoro.
Pegando numa tocha, Trevalin ergueu a pesada tranca que vedava a porta, abriu-a e saiu. Steel permaneceu lá dentro, acompanhando a luz, enquanto esta bruxuleava pelo corredor até desaparecer. Abrindo uma fresta da porta, procurou, tenso, ouvir ruídos.
Os outros cavaleiros juntaram-se, formando em torno dele um semicírculo. Eles também se mantinham em silêncio. Os únicos sons, vinham do retinir e do ranger das armaduras, e da respiração suave e pausada.
Depois, no extremo do corredor, a luz reapareceu. O clarão era bruxuleante, como se a mão que segurava a tocha estivesse fraca e vacilante. Chegou-lhes o som hesitante e abafado de botas. Apoiando-se contra a parede, apareceu Trevalin. Percorria o corredor em passos lentos, a olhar para os pés.
Quando o subcomandante se encontrava perto, Steel abriu a porta e Trevalin parou, olhando para os homens com uma expressão vítrea e alucinada, como se não fizesse idéia de quem eram nem do que estavam fazendo ali.
Ao clarão cintilante da tocha, o rosto de Trevalin mostrava-se da cor da cinza. De repente, deixou cair a tocha no chão, e a mesma continuou a crepitar e a fumegar. Ninguém se moveu para apanhá-la.
— Subcomandante — disse Steel —, o que foi? O que se passa?
— Nada — respondeu Trevalin, com voz espessa. — Estão todos ... mortos.
Ninguém falou, mas um deles soltou um arquejo sibilante. Trevalin fechou os olhos, como se sentisse dores. As lágrimas rolaram-lhe das pálpebras.
— O meu senhor... morto! — exclamou, quase num soluço. Abrindo os olhos raiados de sangue, olhou em volta e acrescentou: — Morto! Será que não percebem? Morreram todos! Todos... Mortos... Mortos...
Vacilou, os joelhos fraquejaram-lhe e deslizou pela parede abaixo. Steel segurou o comandante nos braços.
— Senhor, está ferido! — exclamou. — Onde? Ajudem-me a tirar-lhe a armadura!
Trevalin agarrou na mão de Steel e deteve-o.
— É inútil — disse. — Aquilo... — Sufocou, engoliu em seco. — Atingiu-me pelas costas. — Irado e confuso, Trevalin franziu o cenho. — Covarde... atingir-nos pelas costas... Não cheguei a ver... não tive hipótese de rebater... Que desonra...
— Senhor... o inimigo está lá fora? Quantos são?
Trevalin abanou a cabeça. Soltou um estertor, tentou falar, mas da boca só lhe saíram bolhas de sangue e de saliva. Encostou-se de novo à parede. A mão que segurava Steel ficou flácida.
Steel manteve-a presa na sua por um instante. Depois, com modos suaves e respeitosos, pousou-a no peito do morto.
— Que Takhisis te acompanhe, senhor — disse baixinho.
Através da armadura negra, rasgada como se fosse um pedaço de pergaminho, conseguia agora entrever o profundo ferimento, a pele chamuscada e a sangrar, o rasgão enorme e feio que lhe dilacerava a ilharga.
— Provocado por garras — observou um dos cavaleiros, com ar soturno e apavorado.
— Sendo assim, foram garras de fogo — respondeu Steel, levantando-se devagar. Depois, olhando para a porta, acrescentou: — Pergunto-me quais seriam as nossas ordens.
— Agora já não interessa, senhor — interveio um dos cavaleiros. — Quais são as suas ordens, senhor?
Ocorreu a Steel que agora era o comandante. Não só do batalhão mas — caso Trevalin falasse verdade — também da Torre do Sumo Sacerdócio. Tentou expulsar do espírito o terrível pensamento. Trevalin decerto se equivocara, pois sofrera ferimentos pavorosos. Com certeza não podiam estar todos mortos!
Steel tomou uma decisão.
— Vocês dois — disse — coloquem o corpo do comandante ali e cubram-no com a armadura. Os restantes peguem nas armas e sigam-me. Se a torre caiu, o inimigo provavelmente desconhece que nos encontramos aqui embaixo. Talvez consigamos apanhá-los desprevenidos. Não acendam as tochas nem façam barulho!
Mergulhando os dedos no sangue de Trevalin, Steel espalhou-o sobre os anteparos negros que lhe cingiam os braços, como outros prenderiam as fitas dadas pelas suas damas. Desembainhando a espada — a espada do pai —, franqueou as portas das armadilhas para dragões.
Um a um, os cavaleiros saudaram o morto e seguiram-no.
Movendo-se com lentidão, Steel deslizou sorrateiro pelos corredores da torre. Tornava-se impossível enxergar algo. Não esperava uma escuridão tão densa. Mandou vários retrocederem, para que fossem buscar tochas. Corriam maior perigo tropeçando nas trevas do que se o inimigo os aguardasse, emboscado.
Por fim, o Sol estranho e persistente pusera-se, dando lugar à noite. Mas, onde se via o clarão das estrelas, o fulgor das três luas que deviam alumiar-lhes o caminho? Enquanto aguardava o regresso dos homens, Steel deslizou ao longo de uma parede, descobriu uma janela e perscrutou lá para fora. Procurou enxergar o céu, julgando que possivelmente a seca terminara e havia nuvens a toldar as estrelas.
O firmamento — límpido, sem nuvens, vazio — era rasgado por relâmpagos.
Não se avistavam estrelas. Nem luas.
Procurando descobrir alguma réstia de luz, Steel fitou demoradamente as trevas do céu, e que eram infindáveis, até os olhos lhe arderem. Não enxergou nada. Afastou-se da janela, não se permitindo especular quanto à natureza do fenômeno. Os homens voltaram com as tochas. Disse-lhes que prosseguissem a marcha, e, aos que faziam menção de se deter à janela, ordenou-lhes, em tom áspero, que não parassem. Logo saberiam a verdade, mas, assim esperava, não sem antes ter apurado a natureza do que iam enfrentar.
Ao percorrerem os corredores, começaram a vislumbrar indícios de uma luta terrível. As paredes encontravam-se queimadas e chamuscadas e, em alguns casos, desventradas por buracos. Montes de pedras atulhavam os corredores, dificultando o avanço. Depois, começaram a descobrir os corpos, alguns horrivelmente carbonizados, o calor ígneo fizera as armaduras de metal liquefazer-se na carne. O pior de tudo eram as pilhas de armaduras vazias, as trouxas lastimosas de vestes cinzentas ao lado de ingredientes de encantamento espalhados, as vestes negras, adornadas com os emblemas de Sua Majestade das Trevas, agora enrodilhadas no chão de pedra.
De vez em quando, Steel ordenava aos homens que parassem. E, em silêncio, quase sem respirarem, punham-se à escuta — na esperança de lhes chegar o som das ordens, de gritos vitoriosos, de gargalhadas de júbilo, dos berros dos cativos, das pragas desafiadoras dos prisioneiros.
Não ouviam, a não ser o uivo do vento abafado, a soprar por entre os escombros do que fora, em tempos, a fortaleza mais poderosa de Ansalon.
Os cavaleiros caminhavam disciplinados, embora, ao clarão das tochas, os seus rostos sombrios refletissem os horrores que testemunhavam ao redor. Foi quando entraram no pátio central.
A área estava quase toda ocupada pelo corpo de um dragão vermelho enorme. As tochas iluminaram as escamas partidas, os rasgões profundos que lhe dilaceravam o corpo e as asas, estas últimas dobradas e mutiladas. A criatura monstruosa morrera devido a múltiplos ferimentos e o seu sangue coalhava o chão de pedra, tornando-o escorregadio.
— Dispersar — ordenou Steel baixinho. Percorreu-o um calafrio, pois começava a aperceber-se que os homens nada tinham a recear, e que, portanto, a esperança também morrera. — Procurem sobreviventes e comuniquem-me o ponto da situação.
Empunhando as armas, os cavaleiros separaram-se e afastaram-se em grupos de dois e três.
Steel pousou a tocha numa palmatória e contornou a cabeça do dragão, pois apercebera-se de um corpo humano.
Perto do animal jazia o Senhor de Ariakan. Aquela devia ter sido a sua montaria na última e desesperada luta, até o dragão despencar e forçar Ariakan a defrontar os inimigos a pé. A mão fria ainda se enclavinhava na espada, que tinha a lâmina despedaçada, embora coberta de sangue, como se, mesmo depois da arma falhar, persistisse na luta. Ao redor, não se viam os corpos dos inimigos que enfrentara. Próximo, Steel avistou manchas gordurosas e chamuscadas e perpassou-lhe o espírito a imagem súbita dos soldados do demônio, atingidos pelo aço forjado e explodindo em chamas.
Steel ajoelhou-se diante do suserano, do homem que o descobrira e o educara para tornar-se cavaleiro. Viu nitidamente, como se iluminado por um cepo a arder, o vulto de Ariakan, quando este se apresentara na casa do garoto de 12 anos e, com os seus olhos escuros, o avaliara.
Ofereço-lhe trabalho duro, labutas brutais, uma vida de agruras, destituída de repouso e conforto. Não obterá riquezas pessoais. O máximo a que poderá aspirar, é o respeito dos teus camaradas de armas. Renunciará ao amor da família e dos amigos, que serão substituídos pelos combates, a glória e a honra. Jovem Steel, aceita estas condições?
— Aceito, meu Senhor — respondeu Steel, reiterando o compromisso de então.
Tornava-se difícil confirmar qual das inúmeras feridas provocara a morte de Ariakan. Um esgar — não de dor, mas de determinação — contorcia-lhe o rosto. Batera-se com coragem até o último suspiro. O metal da lâmina falhara, a coragem de Ariakan não. Steel percebia agora porque a Visão morrera. Morrera com o homem que a criara.
— Majestade, receba a alma dele — orou Steel, com as lágrimas a embargarem-lhe a voz. Fechou os olhos vítreos do cadáver, tentou compor os membros retorcidos, num esforço para lhes imprimir uma certa aparência de paz. Descobrindo os estilhaços da lâmina quebrada, pousou-os sobre o peito de Ariakan.
Steel levantou-se devagar, dizendo:
— Meu Senhor, agora combate ao lado de Sua Majestade. Com honra. Prepare o caminho para nós.
Steel permaneceu parado no pátio, sozinho, de cabeça inclinada, interrogando-se sobre o que fazer. O inimigo saíra vitorioso. A torre do Sumo Sacerdócio caíra. Mas este adversário não se interessava pela ocupação, pela conquista, não se preocupava com fortalezas, terras, cidades, riquezas, súditos. Tinha por único objetivo, lidar com a morte. A fortaleza mais poderosa caíra às suas mãos, e os defensores — a força mais poderosa de Krynn — largamente dizimados. Consumada a tarefa principal, o inimigo prosseguia a marcha, com todo o seu cortejo de chamas, sangue e terror.
Somos tudo o que resta, disse Steel para consigo, aturdido com o pensamento. Que vamos fazer? A Visão desapareceu, mas com certeza pode ser ressuscitada!
Olhando para os céus vazios, abriu os braços e exclamou:
— Majestade das Trevas! Diga-me o que fazer! Guie-me!
Ouviu o som de passos — de passos ligeiros, calçados de botas, que se aproximavam rapidamente. Sentindo um baque no coração, Steel ergueu a espada.
— Quem vem lá? — gritou.
Apareceu uma mulher, uma amazona envergando uma armadura azul. Tinha o cabelo curto, encaracolado e escuro. Dirigiu a Steel um sorriso ambíguo, encantador.
Steel baixou a espada. Não duvidava tratar-se da resposta da Rainha. Ficou aguardando as ordens.
Kitiara aproximou-se e postou-se diante do filho. Ao reparar que havia sangue na armadura dele, assumiu uma expressão grave.
— Steel, não foi ferido, não é?
— O sangue pertence ao meu comandante, que sacrificou a vida para defender a torre — respondeu Steel, com o rosto afogueado pela vergonha. — Mãe, não tomei parte na batalha. Ordenaram ao meu batalhão que permanecesse escondido...
— Sei disso tudo — interrompeu-o Kitiara, acenando a mão, como se tratasse de algo irrelevante. — Fui eu quem deu tais ordens.
Steel olhou-a, aterrorizado.
— Você! — exclamou.— Ordenou que ficasse escondido, longe da batalha! A minha honra...
— Mande essas tretas ao Abismo! — replicou Kitiara. — Com essa conversa fiada a respeito de honra, parece mesmo o imbecil do seu pai! Steel, preste atenção! Não temos muito tempo!
Kitiara aproximou-se mais do filho. Dela emanou uma mortalha de frio, que se cingiu ao corpo dele, enregelando-lhe os ossos até à medula e tornando-lhe a respiração penosa. As palavras da mãe chegaram-lhe, não através dos ouvidos mas como que a trespassarem-lhe o coração.
— A batalha está perdida. A guerra está perdida. Enquanto pode, a nossa Rainha pretende escapar de forma elegante. Prepare-se para partir, levando consigo os seguidores mais leais. Por intercedência minha, foi um dos eleitos, meu filho. Siga-me já!
— Ir contigo? — Steel olhou-a, confuso. — Ir contigo para onde?
— Para outro mundo, filho! — exclamou Kitiara, andante. — O outro mundo para ser governado, conquistado! E você, integrará a nossa força triunfante! Eu e você estaremos juntos!
Steel mostrava-se duvidoso, perturbado.
— Você diz que a guerra está perdida? — inquiriu.
— Preciso repetir? Apresse-se filho! Venha já!
— A minha Rainha não fugiria — respondeu Steel, afastando-se da mãe. — Sua Majestade não abandonaria, não atraiçoaria os que lutaram em seu nome, os que morreram por ela...
— Morreram por ela? — interrompeu-o Kitiara, soltando uma gargalhada. — Claro que morreram por ela! Foi um privilégio, morrerem por ela! Não lhes deve nada! Não deve nada ao mundo! Que seja destruído! Haverá outros. Mundos novos! Filho, nem calcula as maravilhas que os teus olhos verão! E delas, dessas riquezas, nos apoderaremos, tornando-as nossas! Contudo, tem que tirar esse estúpido brinquedo elfo que usa no pescoço primeiro.
Ignorando a mãe, Steel olhou para o corpo do Senhor de Ariakan e para o cadáver do dragão vermelho, idoso e magnífico. Pensou em Trevalin que, embora ferido de morte, regressara ao posto de comando.
O fulgor da tocha refletia-se, difuso, nos olhos de Steel. Encostando-se à parede, lutou por respirar. E pareceu-lhe que esta se movia, que tudo o que havia de real e sólido era sugado e fugia-lhe de baixo dos pés.
Abandonado, traído, nada lhe restava. A Visão desaparecera, não por Ariakan já não se encontrar entre os vivos mas porque aquela deixara de existir. As estrelas, tombando o céu, foram despencar sobre Steel.
— Anda, Steel! — A voz de Kitiara tornara-se mais áspera. — Por que hesita? Tire a jóia!
— Não, mãe — respondeu Steel com brandura. — Não vou contigo.
— Quê? Não seja estúpido!
— Porque não hei de ser? — retorquiu Steel, com amargura. — Ao que parece, estes anos todos não passei de um estúpido. Tudo em que acreditei não passa de uma mentira.
Kitiara dardejou-o com olhos faiscantes, tão escuros como o céu vazio.
— Ao que parece, enganei-me — disse. — Julgava haver em ti as sementes de um verdadeiro guerreiro. A luta! A vitória! O poder! Nada mais há. Isso é tudo. Comporta-se como o teu pai e morre como ele. Só, abandonado, desperdiçando a vida por uma causa qualquer destituída de valor! Steel, esta você não pode ganhar! — acrescentou Kitiara, pronunciando, em tom sibilante, o nome do filho. — Não pode ganhar!
— Tem razão, mãe — respondeu Steel, com voz calma. — Já perdi. Já perdi o meu deus, o meu suserano, os meus sonhos. Perdi tudo — acrescentou, dirigindo a mão para a jóia que usara ao pescoço, oculta por sob a armadura negra —, exceto o que está dentro de mim.
— O que está dentro de ti, provém de mim!
A fúria de Kitiara teve o impacto de um murro em cheio no rosto. Steel virou a cabeça e desviou os olhos.
De repente, a ira da mãe desvaneceu-se e esta falou em voz suave, acariciadora:
— Steel, está cansado de tanto lutar e chora o que perdeu. Errei em querer obrigá-lo a tomar uma decisão numa altura destas. Leve o tempo que quiser, meu filho. Reflita no que te ofereci. Um mundo novo. Uma vida nova...
O murro converteu-se em mão gentil. Sobre ele pairou um doce calor, como o toque de veludo negro... que logo se desvaneceu.
Fechou os olhos e apoiou-se contra a parede de pedra, agora firme e uniforme, em busca de amparo. Sentia-se exausto, mas o cansaço transcendia o da batalha. Afinal não fora atingido e, contudo, havia nele equimoses, como se, depois de pontapeado e esmurrado, o abandonassem numa viela escura. Para morrer sozinho.
Porque iria?
Novos mundos. Maravilhas... Conquistas... Glória...
Porque não? Raios, porque não? A minha mãe tem razão. Este mundo acabou. Já não me diz nada.
Steel experimentou dentro de si um vazio que lembrava um ferimento mortal provocado pela garra de um dragão. A traição da Rainha destroçara-lhe a alma, deixara-o sem nada, como uma casca vazia.
Porque não preencher esse vazio com a guerra, com a adrenalina provocada pelo combate, com o arroubo da vitória, com o prazer dos saques? Não lutarei mais por nenhum deus, mas sim por mim mesmo! Serei eu a ganhar!
Crispou a mão em torno da jóia.
— Ela mente... — ouviu, vinda do interior, do exterior, já não interessava, outra voz.
Steel manteve os olhos fechados.
— Pai, não tente me deter — disse. — Acabou. A batalha terminou e nós perdemos.
— A Kitiara mentiu. A batalha não terminou, pelo menos para alguns. Paladino e os outros deuses estão em luta contra Caos. Lunitari, Solinari e Nuitari, os filhos mágicos, prosseguem a batalha. Sargonnas fez um juramento de sangue em como continuaria a luta. Chemosh fez erguer os mortos e os conduz na batalha. Por todo o território de Krynn, há pessoas que lutam, sem esperança de conseguirem a vitória. Não falam em abandonar o mundo.
— Pai, e o que ganharão com isso? — perguntou Steel. Os seus pensamentos viraram-se para o corpo de Ariakan, que jazia ao lado do dragão morto. — Quem os recompensará? Quem lhes entoará canções épicas em sua honra?
— Será você, Steel — respondeu o pai. — Os honrará todos os dias da tua longa, longa vida.
Steel não respondeu. Segurou na jóia, mas fosse por força do juramento ou devido ao mesmo, sentia-se indeciso.
— Pai, que quer que eu faça? — perguntou, com desespero e desdém. — O Caos não pode ser destruído.
— Não, mas pode se ver forçado a bater em retirada. O Caos abriu uma brecha no mundo, e através da mesma fez afluir os seus contingentes: criaturas-sombras, dragões de fogo, os guerreiros demoníacos. Mas, essa fenda tornou o Caos vulnerável. É como um buraco na armadura dele. Viu-se obrigado a descer ao nosso plano de existência. Paladino e Gileano acreditam que, se pudermos apanhá-lo aqui, neste plano, e derrotá-lo, o Caos será obrigado a abandonar a batalha e a fechar a brecha, caso contrário se arrisca a que esta também o trague.
— E como lutarei contra o Caos? Que armas utilizaria?
— Um bando de cavaleiros, empunhando as famosas lanças do dragão, deverá transpor o Abismo e enfrentar o Caos e as suas legiões. Para lá se dirigem sabendo que não voltam, sabendo que a sua morte pode ser em vão, que não restará ninguém para entoar cantos épicos em sua honra.
Steel permanecia indeciso, agitado pela batalha que se travava no seu íntimo, uma batalha que se desenrolava desde o instante em que nascera. Ali ficou, banhado pelo clarão da tocha, sob o firmamento sem estrelas, cabisbaixo, enquanto dentro de si os exércitos beligerantes se entrechocavam, retalhando e convertendo-lhe a alma num campo de batalha devastado.
— Senhor! Montante Luzente, sente-se bem?
Steel ergueu o braço e agitou-o de um lado para o outro. A luta deixara-o exaurido e os ferimentos doíam-lhe. E sentia-se furioso, furioso por se ver obrigado a passar por este transe.
— Deixem-me em paz! — gritou.
— Sim, senhor — respondeu, sobressaltado, o cavaleiro, recuando.
— Desculpe, senhor. Queria só comunicar...
— Não, espere...
Steel pestanejou e olhou ao redor. Por um instante, não percebeu onde se encontrava e como chegara lá. Avistando o corpo do seu suserano, lembrou-se. Deu um suspiro e percebeu que apertava, num abraço asfixiante e mortal, a jóia que trazia ao pescoço.
Afrouxando a mão, largou-a, voltou a guardá-la sob a couraça e limpou o suor do rosto. A noite estava mais quente e opressiva do que o dia. O calor e a exaustão tinham-no feito dormir de pé.
— Desculpe. Devo ter cochilado. Assustou-me — respondeu Steel, fazendo um esforço para prestar atenção. — Apresente o seu relatório.
— Senhor, não há sinais do inimigo. Não há vestígios de ninguém... quer dizer, de ninguém vivo. Não há sobreviventes. Os feridos... — o homem calou-se e engoliu em seco. — Os feridos foram chacinados... Não tiveram uma hipótese.
Steel começara a dirigir uma prece a Takhisis pela alma deles, mas interrompeu-se.
— Mais alguma coisa? — perguntou, circunspecto.
— Senhor, há notícias boas. Descobrimos ainda vivos alguns dragões azuis. Tal como nós, receberam ordens para se manterem afastados da batalha. E juntaram-se a eles alguns dragões prateados. Ao que parece, chegaram tarde. Encontravam-se na montanha do Dragão Prateado, de guarda ao túmulo de Huma, quando receberam ordens para se dirigirem para a Torre do Sumo Sacerdócio.
— Ordens? Quem deu essas ordens?
Olhando com ar severo para Steel, o cavaleiro respondeu:
— Senhor, afirmam que foi o próprio Huma.
Steel abanou a cabeça.
— Que mais tem a comunicar? — perguntou.
— Todas as nossas armas foram despedaçadas e destruídas, com uma exceção. Descobrimos um monte de lanças. Parecem ser lanças de dragão. Foram alinhadas cuidadosamente contra a parede. Senhor, estão ali, junto ao vão das escadas.
— Lanças de dragão — repetiu Steel, olhando fixamente para o homem. — Tem certeza?
— Bom, senhor, na verdade não. Nenhum de nós as viu antes. Mas, coincidem com a descrição que nos foi dada.
— Onde estão? — inquiriu Steel que, apesar do calor, se sentiu percorrido por um calafrio. — Mostre-me.
— Sim, senhor, por aqui.
O cavaleiro conduziu o oficial pelos corredores, até chegarem à entrada que dava para a Câmara de Paladino. De baixo, vinha um fulgor vivo e prateado.
— Foi o brilho que nos chamou a atenção, senhor. Julgamos tratar-se de alguém. Mas só encontramos as lanças.
Steel desceu as escadas e veio-lhe a recordação nítida do dia em que as descera: acompanhado por Caramon Majere e Tanis Meio Elfo, para prestar homenagem ao pai.
Todos os cavaleiros do batalhão se encontravam ali reunidos, no meio dos túmulos e da poeira. A câmara parecia estranhamente vazia embora os corpos parecessem se manter imperturbados. Quem sabe se as almas dos mortos seculares não tinham voado para a refrega? As lanças que, ao clarão das tochas, emitiam fulgores prateados, encontravam-se cuidadosamente alinhadas contra a parede. Os cavaleiros das trevas mantinham-se bem afastados das mesmas, olhando-as com suspeita e dúvida e murmurando uns para os outros.
Seriam as famosas lanças de dragão, forjadas em prata mágica por The-res do Braço de Prata? Seriam as armas que contribuíram para a derrota da Rainha das Trevas? Se era assim, como tinham ido parar ali no túmulo, e porquê? Ninguém leal a Takhisis poderia tocá-las, dado estarem abençoadas por Paladino e se destinarem a servi-lo.
Steel aproximou-se para observar mais de perto as lanças. Estudara as descrições destas armas, tal como estudara todas as batalhas nas quais as mesmas tinham tomado parte ativa. Se se tratasse das famosas lanças de dragão — e o aspecto o confirmava — então pertenciam ao tipo conhecido por lança do infante, mais curta e mais leve do que as lanças para montaria, que se fixavam nas selas dos dragões.
Dobrando-se ainda mais, Steel ficou extasiado com o acabamento das armas. Cada uma media cerca de um metro de comprimento e tanto o cabo como a ponta eram de prata — possivelmente a prata mágica proveniente da montanha do Dragão de Prata. Rezava a lenda que tais lanças só podiam ser forjadas por um homem com o Braço de Prata de Ergoth e o Martelo de Kharas, o famoso artefato dos duendes. A ponta era pontiaguda e cortante e os lados estavam eriçados de farpas. As lanças pareciam bem equilibradas. Steel estendeu a mão para pegar numa.
Como se uma faísca o atingisse, Steel sentiu um choque no braço, que o deixou dormente dos dedos ao ombro e lhe enviou espasmos de fogo por todo o corpo. Ficou, por vários segundos, paralisado, incapaz de se mover. Agarrando no braço e esfregando-o para lhe restituir a circulação, caiu para trás.
— Que gracinha, pai — murmurou. — O teu deus deve ter soltado uma boa gargalhada por conta disso. Renuncio a todos e a cada um de vocês. — Tentou erguer a mão, a fim de arrancar o colar do pescoço mas, o braço foi percorrido por espasmos e a mão recusou-se a obedecer-lhe. — Peguem nas lanças, você disse! Cavalguem e derrotem o Caos! Como, se as malditas lanças não têm utilidade nenhuma?...
— Para nós têm.
Steel interrompeu o discurso.
Avistou, no alto das escadas, um pequeno bando de Cavaleiros da Solamnia, magros, andrajosos, com os braços e as costas sulcados por chicotadas.
— Os prisioneiros! — Vários cavaleiros desembainharam as espadas. — Escaparam!
— Baixem as armas! — ordenou Steel. — Não se encontram aqui para lutar conosco. Pelo menos, é o que penso.
No cavaleiro que falara, reconhecera o jovem que fora fustigado por causa do erro de Steel, quando ambos eram prisioneiros.
— Senhor Cavaleiro, porque está aqui? — inquiriu Steel. — Não sabíamos que tinham escapado das celas. Por esta altura, já podiam estar a caminho de Palanthas.
— Assim foi — retrucou o prisioneiro, com um sorriso pesaroso. Descendo as escadas, postou-se diante de Steel e acrescentou: — Quando o ataque começou, nos encontrávamos nos calabouços. Os guardas nos abandonaram para se juntar ao combate. Não fazíamos idéia do que se passava. Não conseguíamos ver nada, mas o que nos chegou aos ouvidos foi quanto bastou. Os sons horríveis quase nos levaram à loucura. Julgamos que iam nos chacinar nas celas, mas o inimigo nunca chegou a descer, não nos descobriu. Algo bateu contra a torre, fazendo-a oscilar até aos alicerces. As paredes se racharam e as pedras começaram a ruir. Pensamos que ficaríamos soterrados. Por fim, o abalo passou, ainda estávamos vivos e mais, a porta da nossa cela escancarara-se.
— Saímos furtivamente. Preparávamo-nos para escapulir por uma das portas laterais da Espora do Cavaleiro, quando te ouvimos — prosseguiu o cavaleiro, apontando para Steel — falando com alguém e dizer que a guerra não estava perdida, que planejava conduzir um bando de heróis ao Abismo.
O jovem cavaleiro inclinou-se e ergueu, com toda a facilidade, uma das lanças prateadas e reluzentes que, tal como Steel calculara, possuía um excelente equilíbrio.
Os cavaleiros das trevas soltaram, em surdina, advertências e aproximaram-se do prisioneiro, prontos a atacá-lo.
Ignorando-os, o Cavaleiro da Solamnia baixou a lança, de modo à ponta tocar no chão.
— Raramente conhecemos um homem com tamanha coragem e honra. Steel Montante Luzente, se aceitar os nossos préstimos, o seguiremos para lutar ao teu lado.
Steel olhou-os, estupefato.
— Poderiam ter escapado, regressando aos seus lares. Por que voltaram?
Esboçando um gesto solene com a cabeça, o cavaleiro respondeu:
— Ouvimos o que disse a respeito de cantar as melodias épicas. Tem razão. Talvez não haja ninguém para cantá-las para nós. Mas, pelo menos, não seremos forçados a passar o resto da vida a cantá-las para os outros.
— Se formos, partimos sem esperança de regressar vivos. — disse Steel, acrescentando, com um sorriso amargo: — Nem sequer podemos rogar aos deuses que nos acompanhem. Lutaremos sós.
— Sabemos disso, senhor — respondeu o jovem Cavaleiro Solâmnico. — Compreendemos e estamos preparados para partir. Apenas pedimos que nos restitua as armaduras e as espadas.
Como é tolo, filho! — chegou-lhe a voz da mãe. — Querem as armas para poderem virá-las contra ti.
— Filho, veja-se no exemplo deles. — Agora era a voz do pai. — Estes homens partem com honra, para lutar pelo que sabem estar certo.
Steel desapertou o fecho que prendia a jóia e a corrente deslizou-lhe para a mão. Segurou-a por um instante e, com um gesto sereno, pousou-a no túmulo do pai.
As vozes beligerantes se calaram. O túmulo ficou silencioso. Os cavaleiros se mantinham calados, à espera da decisão de Steel. O cavaleiro das trevas desembainhou a espada, a espada do pai, que só se quebraria se o mesmo lhe acontecesse.
Os Cavaleiros de Takhisis honraram os mortos com palavras e canções. Estes eram em número excessivo, e não havia tempo para enterrar ou cremar os corpos condignamente. Perturbados com o fato, alguns cavaleiros referiram-se aos abutres, chacais e outras criaturas mais hediondas, suscetíveis de conspurcar ou devorar os cadáveres.
Os paladinos das trevas formaram um círculo em volta do corpo do malogrado suserano, interrogando-se sobre o que poderiam fazer para proteger os mortos, quando de repente se aperceberam da presença de uma mulher.
Aproximara-se deles em silêncio, ninguém sabia de onde. Era linda, com os olhos da cor do luar refletido nas águas azuis. Contudo, embora parecesse serena à superfície, do seu íntimo emanava uma força perigosa. Envergava uma armadura cintilante de água e com o aspecto de escamas de peixe. Flores e conchas marinhas cingiam-lhe o cabelo negro. Reconhecendo-a, os cavaleiros esboçaram uma vênia.
Tratava-se de Zeboim, deusa do mar e mãe de Ariakan.
Ajoelhando-se diante do filho morto, fitou-o longamente. Duas lágrimas deslizaram-lhe pelas faces, reluzentes como pérolas, liquefazendo-se na armadura. Olhou de relance para a torre, para o clarão bruxuleante das tochas, para as sombras fugazes, para os corredores e os átrios vazios, e depois para os cavaleiros.
— Ninguém virá perturbar os seus mortos — disse a deusa. — Olhem. Escutem. Nenhum pássaro sobrevoa o céu. Nenhuma fera perambula por aí. Nenhuma mosca zumbe. Todas as criaturas, desde o inseto mais insignificante ao dragão mais poderoso sabem que, esta noite, o seu destino pende na balança. Todos aguardam o fim... tal como nós.
Steel dirigiu aos homens um gesto silencioso. Estes deixaram a deusa a sós com o seu defunto.
Os Cavaleiros da Solamnia voltaram a envergar a armadura que lhes fora retirada quando da sua captura. Afivelaram as espadas e colocaram os elmos. Segurando as lanças de dragão, montaram os dragões prateados que tinham chegado muito tarde para participar na batalha da Torre do Sumo Sacerdócio.
Os cavaleiros das trevas montaram os dragões azuis que compunham os efetivos de reserva.
Steel ficou desapontado por constatar que Fulgor não os integrava. Os camaradas da fêmea desconheciam o seu paradeiro. Ficara enraivecida quando receberam ordens para não participar no combate. Com o seu bafo faiscante, quase despedaçara o oficial e fizera explodir um grande pedaço de rocha do flanco da montanha. Amuada, desaparecera. Desconheciam para onde, mas presumiam que, desobedecendo às ordens, decidira participar da batalha.
Steel efetuou uma busca por entre os corpos dos dragões, na esperança de encontrá-la e poder prestar-lhe as devidas honras antes de partir. Fez às pressas, por descargo de consciência, e não conseguira descobrir o cadáver de Fulgor entre os outros dragões azuis. Concluiu que jazia, em algum lugar, entre as rochas das montanhas de Vingaard.
Preparava-se para subir na sela de um dragão azul desconhecido, quando lhe veio um chamado colérico de cima. Agitando as asas e provocando nuvens de poeira, Fulgor desceu dos céus e aterrou bem diante do dragão azul. Com o pescoço arqueado, numa atitude de desafio, as asas abertas e a cauda a fustigar o chão, avançou para o estranho.
— Esse cavaleiro é meu! — exclamou, sibilante. — Ninguém mais, a não ser eu, o conduz à batalha!
Steel apressou-se a intervir antes que estalasse uma briga ali, pois o animal que se preparava para montar não tinha intenção de ceder. Em tom polido, Steel pediu-lhe para se juntar aos dragões que se dispunham a partir sozinhos. O azul cedeu a contragosto, deixando bem claro que se sentia ofendido. Dado Steel ter solicitado ao animal para se afastar, Fulgor não o atacou, mas quando este se afastava deu-lhe um beliscão na cauda.
O dragão e o condutor saudaram-se com manifestações de júbilo, contentes por se verem vivos e, ao que parece, incólumes.
— Os outros disseram que tinha ido embora furiosa — observou Steel. — Onde esteve? Para onde foi?
Fulgor sacudiu a cabeça, e a crina azul reluziu ao clarão das tochas.
— Fui examinar essa tal fenda de que todo mundo fala, confirmar por mim mesma se existia ou não — respondeu. E lançando um olhar de soslaio aos dragões prateados, acrescentou: — Confesso que achei que fosse um truque. — A voz do animal tornou-se mais profunda e, baixando a cabeça, rematou: — Steel, não se trata de truque. Dentro do Abismo, desenrola-se uma batalha medonha. Estive lá. Vi com estes olhos.
— Como decorre a guerra?
— A nossa Rainha fugiu — respondeu Fulgor, com os olhos a cintilar. — Sabia?
— Sabia — respondeu Steel em voz baixa e soturna.
— Alguns deuses acompanharam-na: Hiddukel foi o primeiro. Zivilyn também partiu, afirmando que já presenciara todos os fins e que, se permanecesse, receava influenciar o desfecho. Gileano continua a escrever o seu livro, o derradeiro. Os outros deuses, chefiados por Kiri-Jolith e Sargonnas, prosseguem a luta, mas... situando-se no mesmo plano imortal que Caos... pouco podem fazer contra ele.
— E nós, podemos? — perguntou Steel.
— Sim, era o que vinha te dizer. Mas — Fulgor olhou de relance para os homens montados —, parece que já está sabendo.
— Estou, mas folgo por ver a informação confirmada.
Steel subiu para o dorso de Fulgor e ergueu o estandarte dos Cavaleiros de Takhisis, a bandeira que ostentava o lírio da morte e a caveira. Os Cavaleiros da Solamnia ergueram o seu, decorado com o pica-peixe, que numa das garras segurava uma rosa e na outra uma espada. Na noite quente e parada, as flâmulas penderam, inertes.
Ninguém se rejubilou nem pronunciou palavra. Cada homem olhou pela derradeira vez, e por longo tempo, para o mundo que nunca mais veria. Os Cavaleiros da Solamnia baixaram o estandarte, numa saudação à Torre do Sumo Sacerdócio. Steel baixou o seu, saudando os mortos.
Os dragões levantaram vôo, fazendo os respectivos condutores elevarem-se num céu vazio, despojado de estrelas e de deuses.
— O que estamos esperando? — perguntou Usha, mostrando-se nervosa e irritadiça. — Porque não vamos para algum lugar, fazemos alguma coisa?
— Daqui a pouco, daqui a pouco — murmurou Dougan.
— Concordo — interveio Tasslehoff, circulando com uma expressão desanimada e levantando nuvens de cinza com as botas. — As coisas agitaram-se bastante quando aquelas sombras bailarinas tentaram nos apanhar. Não é que sentisse medo, atenção! Verdade. De modo que me revolvi todo ao me ver diante de mim mesmo e sabendo que não era. Quer dizer, que não era eu. E depois, ouvir-me papaguear aquelas coisas horríveis... aquelas tretas de eu não ser nada. Quando sabem bem que sou.
Palin estremeceu.
— Não falemos mais disso — observou. — Concordo com a Usha. Devíamos fazer alguma coisa.
— Daqui a pouco, daqui a pouco — repetiu Dougan, sem se mexer.
O duende encontrava-se sentado num cepo carbonizado e abanava-se com o chapéu emplumado. Mostrava-se solene, preocupado, distante dali. Inclinava a cabeça, como que a tentar ouvir e perscrutava em frente, como que a observar. Houve uma altura em que gemeu e cobriu o rosto com a mão, como se visse e escutasse algo excessivo para a sua capacidade de resistência
Ansiosos, os outros observaram-no, insistiam nas perguntas e não obtinham resposta. Por fim, desistiram. Usha e Palin sentaram-se, de mãos entrelaçadas e falando em surdina. Queixando-se da cinza que o fizera tossir, Tas pôs-se a vasculhar os bolsos.
— É agora! — exclamou Dougan, levantando-se de um pulo com uma rapidez que sobressaltou os outros. — Vêm a caminho. Precisamos ir ao encontro deles!
— Ainda não — ouviu-se uma voz. — Ainda não.
Viram então Raistlin materializar-se no meio do pinhal, perto do altar destruído.
— Bonito! — murmurou Dougan, olhando para o mago com ar de poucos amigos. — Era só o que nos faltava!
O duende dirigiu-se pesadamente ao seu encontro, dando pontapés irritados em tocos de árvores. Raistlin observava-o, esboçando, com os lábios finos, um sorriso divertido.
— Tio! — exclamou Palin, em voz alegre. — Que notícias nos traz? Viu as criaturas que nos atacaram? — acrescentou, encaminhando-se para Raistlin.
Relutante, Usha seguiu-o.
— Esperem! Esperem por mim! — gritou Tas, mas nesse momento algo lhe revolveu os bolsos, fazendo derramar o conteúdo e obrigando-o a esgaravatar o solo, a fim de recuperar os objetos.
Palin e Dougan entraram no bosque, Usha seguia, renitente, atrás, embora Palin tentasse arrastá-la para a frente.
— Vai falar com o teu tio — disse a jovem, largando-lhe a mão. — É importante e eu só ia estorvar.
Raistlin observava a cena e os seus olhos dourados semicerraram-se, mostrando-se impacientes e desdenhosos. Pouco à vontade, sentindo que de alguma forma traíra a confiança do tio, separou-se de Usha sem dizer palavra e dirigiu-se, em passos largos, para o pinhal.
Encarando o sobrinho com ar firme, Raistlin observou:
— Quase falhou... — Os seus olhos pousaram-se no local onde Palin enfrentara o ataque das criaturas-sombras.
Palin corou.
— Eu... desculpe, tio — disse, num fio de voz. — Foi... tão horrível e... estranho...
Os olhos frios de Raistlin pousaram-se em Usha.
— Talvez estivesse distraído, incapaz de se concentrar — observou. O rubor de Palin acentuou-se.
— Não, tio, acho que não. Foi... — Abanando a cabeça, ergueu-a e enfrentou o olhar de Raistlin. — Tio, não tenho desculpa. Se não fosse a Usha, me converteria no que a criatura disse que eu era... em nada. Mas prometo que não voltará a acontecer.
— Diz-se que aprendemos mais com os nossos fracassos do que com os nossos êxitos. Sobrinho, espero que o ditado se aplique a você, para o bem de todos nós. Lhe será confiada uma responsabilidade enorme. Há vidas, muitas, dependendo de você.
— Não o desiludirei, tio.
— Não se desiluda a si mesmo.
Raistlin olhou para Usha, que se refugiara à sombra de uma árvore calcinada.
— Basta de bobagens! — grunhiu Dougan. — Mestre Mago, cá para mim, e atendendo à pouca idade e inexperiência, este jovem portou-se muito bem. E se o seu amor pela menina o distraiu um bocadinho, foi o amor dela que, no final, o salvou. Raistlin Majere, onde se encontraria você agora se, em vez de fraqueza, considerasse o amor uma força?
— Provavelmente estaria na cozinha do meu irmão, a desencantar moedas de ouro do nariz, para alegria das criancinhas — replicou Raistlin. — Entreguei-me por completo à magia e esta nunca me desiludiu. Foi a minha amante, esposa e filha...
— Por ela até matou o teu irmão — observou Dougan.
— Foi — respondeu Raistlin, em tom calmo. — Conforme disse, aprendemos com os nossos erros. Agora chega. O tempo está se esgotando... em sentido literal. Dalamar regressou à torre. Viveu inúmeras e perigosas aventuras, mas os momentos que nos restam são muito preciosos para desperdiçá-los com pormenores. Basta dizer que ele e os outros descobriram um ponto fraco. O Caos viu-se forçado a se manifestar neste plano de existência. Assumiu uma forma física e isso o tornou vulnerável.
— Tão vulnerável como uma montanha diante de um duende dos esgotos munido de picareta — murmurou Dougan.
— Não disse que será fácil derrotá-lo — replicou Raistlin, dardejando o duende com um olhar fulminante. — Mas existe um ponto fraco na rocha.
— Ah, já sei — respondeu Dougan, com um suspiro.
— Então sabe o que tem de ser feito?
— Também sei disso — retorquiu Dougan remexendo os pés pouco à vontade. — Verei o que se pode arranjar.
— Tio e nós, o que faremos? — perguntou Palin.
— Vão ao Abismo. Se reunirão ali com Steel Montante Luzente e com um pequeno bando de cavaleiros, que aceitaram o desafio de combater o Caos e seus lacaios. Os cavaleiros precisam de um feiticeiro. Que será você, sobrinho.
— Os cavaleiros não confiam em feiticeiros — respondeu Palin. — Não vão me querer.
— Cabe a você dissuadí-los. Sobrinho, não vou mentir. Este é o principal motivo porque te envio e não outro feiticeiro mais poderoso. É o único mago que o teu primo Steel ponderaria em aceitar.
— Irei, tio, e darei o meu melhor — respondeu Palin, acrescentando rispidamente: — Mas acho que terei pouca utilidade se combater o Caos com pétalas de rosa e guano de morcego.
Raistlin quase esboçou um sorriso.
— Ficaria espantado por descobrir o que pode realizar com esses ingredientes. Contudo, irá melhor equipado. O Conclave enviou-lhe isto... uma prenda.
Raistlin estendeu as mãos e, do ar repassado de cinzas, brilhando tenuamente surgiu um livro. Este era velho e se encontrava bastante gasto, com as páginas secas e quebradiças. A capa, em couro vermelho, rachara em vários pontos e as letras da frente, gravadas a ouro, já tinham quase desaparecido. Só o nome, coberto de poeira e teias de aranha, continuava visível.
Magius.
Raistlin estendeu o livro a Palin.
Este aceitou-o, com uma expressão reverente e as mãos trêmulas. Intimidado, ficou a olhá-lo, fitando longamente o nome que figurava na capa.
— O livro de encantamentos mais poderoso que o Conclave conta no seu acervo — disse Raistlin. — Só os que subiram aos mais elevados postos receberam permissão para ler este livro, e isso nunca fora das paredes da Torre de Wayreth. Poucos no mundo conhecem a sua existência. O livro de encantamentos de Magius, o maior feiticeiro de guerra que já existiu.
— Foi treinado com Huma... embora em segredo, pois de outro modo os Cavaleiros da Solamnia não o permitiriam. Desafiando todas as normas, lutou abertamente ao lado de Huma. Os seus encantamentos são complexos, difíceis. Não terá muito tempo para memorizá-los, exigirão a máxima concentração.
Os olhos de Raistlin piscaram na direção de Usha, que se afastara um pouco da árvore atrás da qual se ocultava.
Perturbado, Palin seguiu o olhar do tio. Ficou calado por um instante. Depois, estendendo a mão para a jovem, disse com voz severa:
— Tio, entendo o que quer dizer. Não pretendo enfurecê-lo, mas não renunciarei a ela. Sei que é tua filha, que nunca poderemos ser um para o outro mais do que somos agora. O amor da Usha constituiria uma bênção que funcionará para mim como uma armadura, um escudo... mesmo no Abismo.
Mantendo-se cabisbaixa, Usha estreitou a mão de Palin nas suas.
— Tio, espero que compreenda — disse o mago, em tom deferente. Os olhos de Raistlin piscaram.
— Melhor do que você julga, sobrinho. Mas, chegou a hora. Tem o livro de encantamentos. Ponha-se ali, junto do altar, e será transportado até o Abismo. O Portal encontra-se escancarado agora. Sua Majestade já não precisa de quem o guarde.
Abraçando Usha, Palin beijou-a na face. A jovem estreitou-o por um instante, murmurando-lhe palavras de amor e de despedida, e soltou-o. O mago encaminhou-se para o altar destruído, levando o Bastão de Magius numa mão e o livro de encantamentos de Magius na outra.
— É Dalamar quem pronunciará o encantamento? — perguntou de súbito, lembrando-se das palavras agourentas do tio.
— Neste momento, é possível que Dalamar já não se encontre vivo — respondeu Raistlin com frieza. — Quem lida agora com os encantamentos é Dunbar Companheiro Mestre. Adeus, sobrinho. Que os deuses... os que restam... te acompanhem.
Dougan agitou a mão.
— Tem de ferir o Caos! — gritou o duende. — É só o que tem a fazer, menino! Apenas feri-lo!
A magia entrou em ação, fazendo Palin levitar e pairar no ar, como uma ave marinha ao sabor de uma rajada de vento.
Usha, Raistlin e Dougan permaneceram no pinhal, junto do altar despedaçado.
— Nunca mais o verei — disse Usha, com os olhos marejados de lágrimas.
— Oh, minha querida filha, acho que verá — respondeu Raistlin, torcendo os lábios num sorriso trocista.
— Não precisa ser sarcástico — observou Usha com brandura. — Tencionava contar-lhe a verdade. Quase o fiz em Palanthas — acrescentou, abanando a cabeça. — Mas, não consegui.
— Talvez fosse bom não poder — respondeu Raistlin em tom seco. — Então é que lhe seria difícil se concentrar.
— Vai me odiar por ter mentido. Nunca mais irá querer me ver.
— Filha, duvido. O Palin é como o pai. Possui uma capacidade extraordinária para amar... e perdoar. — Raistlin enfiou as mãos nas mangas das vestes negras. — E agora, tenho que voltar à torre, ao Lago dos que vêem. Adeus, Usha, cujo nome significa “Alvorecer”. Esperemos que seja de natureza profética.
Erguendo a cabeça, dirigiu-se ao ar impregnado de fuligem.
— Companheiro Mestre, quando quiser, estou pronto — anunciou. Usha, que já não o receava, observou-o enquanto partia. Contaria a verdade a Palin. Esperava que a amasse o suficiente para compreender e perdoar. O que considerava inacreditável, alguém amá-la a esse ponto. Acontecera com o Prot, mas com nenhum outro Irda. Para eles, constituira sempre uma desilusão. Feia. Aquela criança humana feia. Fora um dos motivos porque começara a mentir, e desde então não parara mais. Não suportava o desapontamento estampado nos olhos do seu Protetor...
Sentiu Dougan puxar-lhe a manga.
— Menina, sei que o teu coração partiu com o jovem, mas se o resto da tua pessoa neste momento se encontra desocupado, gostaria muito que me ajudasse — disse o duende.
— A minha ajuda também! — exclamou Tasslehoff, aparecendo de rompante, com os alforjes — de novo cheios — balançando em volta do corpo. — Com certeza também precisa da minha ajuda!
— Ah! — exclamou Dougan, irritado. — Se fosse me atirar de cabeça para dentro da boca de um dragão vermelho, gostaria muito que me acompanhasse. Mas como não...
Usha se aproximou e segurou Tas.
— Somos uma equipe — disse. — Onde eu for, ele vai.
— Assim é que se fala! — observou Tas em tom solene. — Como deve estar lembrado, possuo a Colher de Revolver dos Kenders.
— Pelo menos até Lorde Dalamar se lembrar de contar o faqueiro de prata. Oh, está bem — disse Dougan, com um grunhido, — De acordo com Flint Forjardente, no passado você foi de alguma utilidade.
— O Flint disse isso? Ora vejam, a meu respeito! — Tas arquejou de prazer. — No passado fui de alguma utilidade!
Pegando nas duas metades da Pedra Preciosa Cinzenta, Dougan contemplou-as com desvelo e cupidez, parecendo querer chegar a uma decisão. Por fim, deu um suspiro, virou a cabeça e estendeu a gema a Usha.
— Não posso — disse Dougan com voz trêmula. — Pensei que sim, mas não posso. De todos os objetos que forjei foi o que me deu mais confusão. E é o que mais amo. Não posso destruí-lo. Menina, tem que ser você a fazê-lo. Tem que ser você.
Usha pegou na pedra preciosa e olhou, incrédula, para o duende.
— Como? — perguntou.
— Uma gota de sangue, menina — respondeu Dougan. — Tem que derramar uma gota de sangue lá dentro.
— De quem?
— Dele.
Quando os cavaleiros chegaram à fenda que se abrira no oceano Túrbido, a madrugada já rompera. Localizaram-na primeiro devido ao barulho, um som ribombante que lembrava mil cataratas, feito pela água do mar que era sorvida pelo abismo. Aproximando-se, os cavaleiros avistaram nuvens de vapor que se elevavam dalí, refletindo a luz do Sol sinistro, que irradiava todas as cores do espectro e formava um arco-íris magnífico. Os dragões voaram em direção à nuvem, que se fechou em torno deles, envolvendo-os num manto quente e ofuscante de neblina. Suando, respirando aos haustos, os cavaleiros lutaram para enxergar através das névoas esbranquiçadas e incertas.
Contudo, Fulgor conhecia o caminho. Já estivera ali antes. Vindo do nevoeiro, chegou-lhe o fragor da batalha, enxergou a escuridão e o fogo. Por baixo deles surgiu a fenda.
Os dragões desceram em círculos, ladeados por cascatas de água ribombante. O som ensurdecia, o rugir das cataratas oprimia a cabeça e as vibrações dos estrépitos ameaçavam fazer parar o coração.
Os cavaleiros e os dragões adentraram-se pela fenda até as trevas os engolirem. Com a escuridão, sobreveio o silêncio, mais pavoroso do que o tumulto da água. Tratava-se de um silêncio tal, que por uns instantes horríveis os homens se julgaram ensurdecidos.
Quando Steel falou, foi sobretudo para ouvir o som da própria voz.
— Onde estamos?
— Voamos por um túnel que desemboca no Abismo — respondeu Fulgor. — Nós, os dragões, seguimos por esse caminho. É secreto, não está vigiado e vai dar quase no Portal.
Os dragões aceleraram a velocidade e os cavaleiros logo avistavam um clarão de luz avermelhada no extremo do túnel. Foram parar numa paisagem mais estéril e vazia do que a escuridão de onde emergiram. Vislumbraram apenas um vulto solitário com vestes brancas postado junto do Portal, que parecia aguardá-los. Quando os avistou, ergueu a mão para que se detivessem.
— Quem é aquele? — perguntou Steel, perscrutando a silhueta.
— Um Veste Branca — replicou Fulgor com desdém sem abrandar a velocidade nem parar.
Steel olhou fixamente a figura, que lhe pareceu familiar. Chegou-lhe o vislumbre de um clarão esbranquiçado, a irradiar do topo de um bastão.
— Pára! — ordenou Steel. — Pouse. Eu o conheço.
— Amo, não há tempo! — protestou Fulgor.
— Não demora — prometeu Steel. — Está em contato com os magos. Talvez tenha notícias.
Sem mais queixas Fulgor desceu, voando em círculos e, com as garras a deslizar pela rocha cinzenta tingida de vermelho, pousou junto do Portal.
Steel saltou da sela e, em passos rápidos, encaminhou-se para Palin, que avançou ao encontro deles.
— Majere, que se passa? — inquiriu Steel. — Por que nos obrigou a parar? Apresse-se. Dirigimo-nos para a batalha.
— Eu sei — replicou Palin. — Por isso os detive. Leve-me contigo.
Franzindo o cenho, Steel respondeu com brandura:
— Majere, agradeço a oferta e a tua coragem merece igual respeito do que no passado. Mas, tenho que recusar.
Os outros cavaleiros e dragões sobrevoavam-nos em círculos, dragões prateados voando lado a lado com dragões azuis, cavaleiros das trevas e cavaleiros da luz unidos na mesma cavalgada.
— Majere, volte para o mundo lá de cima — disse Steel. — Volte para a mulher que ama. Volte para os pais que te amam. Usufrua com eles o tempo que puder. Não se preocupe por perder a batalha. Se falharmos, a batalha irá encontrá-lo. Adeus.
Palin avançou e interpôs-se no caminho de Steel.
— Posso evitar que falhe — disse, estendendo o livro de encantamentos. — Repare no nome que está escrito na capa. O livro me foi dado pelo Conclave dos Feiticeiros. E incumbiram-me de lhe dizer o seguinte. Tudo o que tem de fazer contra o Caos é feri-lo.
— Feri-lo? — repetiu Steel, incrédulo.
— É tudo. Antes de partir, o deus Reorx me disse.
— É tudo? — Fulgor intrometeu a cabeça para participar na conversa. — É tudo mesmo! Não falamos de um capitãozinho ogro qualquer! Trata-se do Pai de Tudo e de Nada! Até na forma mortal causa um pavor indescritível! A sua altura ultrapassa a das montanhas de Vingaard. Os braços têm a espessura e o diâmetro do rio Torath! O cabelo é só chamas, o olhar catástrofe, as mãos a morte. Está rodeado de dragões de fogo, criaturas-sombras e guerreiros do demônio! Feri-lo! — repetiu Fulgor, resfolegando.
— Somos capazes. Eu e você — disse Palin calmamente, pousando a mão no livro de encantamentos. — Atravessamos juntos a Clareira de Shoikan e de lá saímos vivos. Poucos mortais podem afirmar o mesmo.
— É verdade — respondeu Steel, esboçando um sorriso. — Refletiu por um instante. — Um guerreiro nunca rejeita uma arma útil. Muito bem, Majere, venha conosco. Mas, preste atenção ao que te digo... não podemos desperdiçar efetivos para defendê-lo. Se se meter em confusão, terá que se desvencilhar sozinho.
— De acordo — respondeu Palin. — Não te deixarei ficar mal. Desde a minha primeira batalha, aprendi muito.
Steel voltou a montar no dragão. Estendendo a mão a Palin, ajudou-o a instalar-se na sela atrás.
Fulgor abriu as asas e decolou em direção ao resto dos cavaleiros. No céu, o clarão vermelho-alaranjado tornava-se cada vez mais brilhante e forte. O ar estava quente, fétido, tão denso que cortava a respiração.
— Quantos encantamentos possui? — inquiriu Steel, gritando para se fazer ouvir através do vento sibilante. — São poderosos? Como funcionam?
— Prefiro não falar nesses assuntos — respondeu Palin, segurando com força o livro de encantamentos debaixo do braço. — É proibido.
Steel virou a cabeça para fitá-lo e de repente, sorriu.
— Deixe de tretas. Não tem tantos assim, não é?
Palin sorriu e respondeu:
— São muito complexos. E não tive muito tempo para estudá-los.
— Quantos tem?
— Um. Mas — acrescentou Palin em tom solene —, é muito bom.
— Sabe o que digo dele? — observou Tasslehoff Pés Ligeiros, olhando para cima, para cima e para cima. — É bem feio!
— Cale-se! — murmurou Dougan, estrebuchando de pavor. — Ele pode ouvir!
— Se ofenderia?
— Se ofenderia! — replicou Dougan, furioso. — Esborrachava-nos como se fôssemos percevejos! Cale-se e deixe-me pensar.
Tas pretendia, do fundo do coração, ficar calado, mas vendo Usha tão pálida, assustada e infeliz, não se conteve e sussurrou:
— Não se preocupe. O Palin vai se sair bem. Tem o bastão e o livro de encantamentos.
— Como pode ele vencer aquela... aquela coisa? — perguntou Usha, olhando apavorada para o terrível gigante.
Uma palavra de Dougan transportara Usha, Tas e o duende ao Abismo. Ou antes, parecia que a magia do deus trouxera o Abismo até eles. Continuava a avistar o bosque dos sete pinheiros mortos, mas o resto da ilha desaparecera. No meio do pinhal, que se situava no meio de lugar nenhum, erguia-se o altar despedaçado dos Irdas. Dougan, Tas e Usha agacharam-se atrás dele.
Pairando sobre eles, avolumava-se o Caos.
O gigante encontrava-se sozinho. Ao que parece, não dera pelo pinhal nem pelo altar, que se localizavam por trás dele. O monstro olhava em frente, perscrutando o tempo e o espaço. Mantinha-se calado. Tudo à sua volta se silenciara. Contudo, à distância, pareciam se ouvir sons de batalha.
— As pessoas do mundo lutam contra ele e as suas forças — disse Dougan baixinho. — Cada pessoa, onde quer que esteja, luta à sua maneira. Efetuaram-se alianças entre velhos inimigos. Os Elfos lutam lado a lado com os Ogros. Os Humanos, os Gobelins, os Duendes, os Draconianos, todos puseram as quesilas de lado. Até os Gnomos... que os deuses os abençoem e ajudem. — Dougan deu um suspiro. — E os kenders também dão uma ajuda, pequena, mas valiosa.
Tas abriu a boca para, excitado, tecer um comentário, mas Dougan, franzindo o cenho, olhou-o com um ar tão feroz, que optou por se calar.
— É por isso, menina — disse Dougan, dando uma palmadinha no braço de Usha —, que ainda temos esta hipótese. Se nos virmos obrigados a enfrentar o Caos e as suas legiões... — O duende abanou a cabeça e, com a mão, limpou o rosto suado. — Será em vão.
— Dougan, não sei se consigo — respondeu Usha, a tremer. — Não sei se terei coragem.
— Eu estou contigo — disse Tas, fazendo-lhe festinhas na mão. O kender olhou de novo para Caos e acrescentou: — Humpf. É um grandalhão. E feioso. Mas já vi outras coisas grandalhonas e feiosas. Lorde Soth, por exemplo. E não senti uma pontinha de medo. Bom, talvez uma pontinha de nada, porque era um cavaleiro da Morte e terrivelmente poderoso. Podia nos matar com uma só palavra. Já imaginou? Só que não me matou. De modo que me deu com uma tigela na cabeça e fiquei com uma galo na testa. Eu...
Dougan dardejou-o com o olhar.
— Cale a boca — antecipou-se Tas docilmente, tapando a boca com a mão, descobrira ser a única maneira de conseguir manter-se calado... embora por pouco tempo. Até a mão descobrir algo mais interessante para fazer, como vasculhar os bolsos do preocupado duende.
Apertando com força a Pedra Preciosa Cinzenta, Usha olhou para o gigante.
— O que é... — A voz embargou-se e teve de recomeçar. — O que eu preciso fazer?
— Menina, só isto. — Dougan falava tão baixinho que Usha se viu forçada a se aproximar. — Os cavaleiros e Palin, o teu menino, atacarão o Caos, que convocará as suas legiões e rebaterá. A batalha vai ser difícil, menina, mas eles são fortes. Não se preocupe. Ora bem, se algum deles conseguir ferir o Caos... só precisa lhe ferrar com uma picada, entende, é tudo o que precisamos, uma única gota de sangue, vertida para a Pedra Preciosa Cinzenta, o colocará em nosso poder. Desta forma capturamos sua essência física, percebe? Ou fica aqui com esses contornos e forma, ou parte.
— E, se decidir ficar? — perguntou Usha, desanimada. A idéia parecia-lhe grotesca.
Dougan cofiou a barba.
— Não vai, menina — respondeu, esforçando-se o máximo possível por parecer convincente. — Não vai. Eu e os filhos mágicos ponderamos todas as hipóteses. Ele odeia ficar confinado, entende? Quem olha para aquele corpo, não diria que representa a ordem. As suas tropas, as legiões, todas exigem ordens e comandos. Tem que lhes atender às necessidades, enviá-las para aqui e para ali. Menina, já começa a ficar farto, pois já não está achando graça.
— Graça... — Usha pensou no seu povo, nas casas arruinadas, nos corpos carbonizados. Sentiu os olhos marejarem-se de lágrimas. Obrigou-se a fitar longa e duramente o Caos. Borrado e indistinto quando visto através das lágrimas, não parecia tão dantesco. Afinal, tratava-se de uma missão fácil. Aproximava-se, sorrateira, por trás, enquanto o monstro não estivesse olhando...
De repente, Caos soltou um rugido, um ribombo calamitoso que revolveu o chão, despedaçando-o, fez tombar os ramos calcinados dos pinheiros e abalou o altar despedaçado atrás do qual os três se escondiam. O Pai não soltava rugidos de fúria. Rugia porque soltava gargalhadas.
— Reorx! Seu piolho pesadão, disforme, minorca, gorducho, aborto que se proclama deus! Vejo que anda com companhias muito reles atualmente!
Dougan levou o dedo aos lábios, puxou Usha para baixo da pilha de madeira, tentou agarrar Tas mas falhou. O kender continuava de olhos fixos no gigante.
— Não tenho medo de você! — exclamou Tas tentando desfazer um inesperado e incômodo nó do tamanho do coração que lhe embargava a garganta. — Deu-me um prazer enorme ter oportunidade de ver uma coisa tão grandona e feiosa como você, mas agora que já te vi, acho, sinceramente, que o melhor seria ir embora.
— Ir embora? — replicou Caos, escarninho. — Irei, sim! Quando esta bola de porcaria que vocês consideram um mundo for reduzida a poeira e atirada ao vazio! Reorx, não é necessário ter o incômodo de se esconder, pois sei que está aí! Consigo te cheirar!
Caos virou-se. Os seus olhos sem pálpebras, que nada mais refletiam senão profundezas fantasmagóricas, concentraram-se nos três e pareceram sorver-lhes a alma.
— Vejo um deus, um humano e uma coisa... nem sequer sei o que é.
— Uma coisa! — repetiu Tas, indignado. — Não sou uma coisa! Sou um kender. Quanto a ser minorca, prefiro ser pequenino do que parecer um bocado de vômito lançado do monte da Desgraça!
— Tas, pare! — gritou Usha, horrorizada.
Sentindo-se bastante melhor, o kender lançou-se num discurso inflamado:
— Isso é o nariz, ou foi um vulcão que entrou em erupção na tua cara?
Caos soltou um ribombo e os seus olhos vazios começaram a se semicerrar.
— Dougan, obrigue-o a se calar! — suplicou Usha.
— Não, menina, ainda não — murmurou Dougan. — Olhe! Olhe o que vem aí!
No céu alaranjado, materializou-se uma esquadra de dragões azuis e prateados. No seu dorso cavalgavam cavaleiros — os devotados às trevas e os que abraçavam a Luz. Ao se aproximarem de Caos, parecia que as lanças do dragão e as espadas por eles empunhadas se incendiavam e emitiam um clarão de chamas.
Um dragão azul os conduzia, e nele se via montado um cavaleiro de armadura negra e, atrás, um mago de vestes brancas.
Caos pareceu não avistá-los, concentrado como estava no kender.
Tentando desesperadamente que Caos não olhasse ao redor, Dougan pôs-se atabalhoadamente de pé.
— Ei, touro grandalhão! — gritou o duende, agitando o punho. Tas olhou para Dougan com ar severo.
— Isso não é lá muito original! — exclamou o kender em voz baixa.
— Menino, não interessa — respondeu Dougan, limpando o suor da cara com a manga do casaco. — Limite-se a falar. Só mais uns segundos... é tudo...
Tas voltou a inspirar fundo, mas o fôlego e os insultos saíram disparados num grande “Aaagh!”, como se um murro o atingisse no estômago.
Na mão enorme, Caos segurava o Sol — uma imensa bola feita de chamas e magma. Os três sentiram o calor abater-se sobre si, afogueando-lhes a carne.
— Uma gota do meu sangue? É isso que querem? — exclamou o Caos numa voz tão fria e tão vazia como o negrume do céu. — Acham que, com isso, me controlarão?
De novo o Pai de Tudo e de Nada soltou um rugido que era uma gargalhada. Pôs-se de novo a fazer malabarismos com o Sol, arremessando-o descuidamente no ar e apanhando-o.
— Nunca me controlarão! Nunca controlaram. Não conseguirão nunca! Bem podem construir fortalezas, cidades-muradas, casas de pedra! Bem podem enchê-las de luz, música e risos! Pois eu serei a catástrofe! Serei a praga e a pestilência! O assassínio, a intolerância. Serei a seca e a fome, as inundações e a voracidade! E vocês... — Caos ergueu a bola de fogo e preparava-se para arremessá-la contra eles — Vocês são nada!
— Engana-se! — ouviu-se uma voz nítida e forte. — Somos tudo! Somos a esperança!
Uma lança de dragão, irradiando laivos rubros e prateados, fendeu o ar. Atingiu o Sol e esfrangalhou-se. O Sol explodiu em milhares de pedaços de magma que despencaram no chão envoltos em chama, para logo gelarem.
O Caos virou-se.
Alinhados em posição de combate, os cavaleiros defrontaram-no, com as lanças do dragão preparadas, as espadas em riste, irradiando fulgores rubros e prateados. No meio deles, encontrava-se um mago de vestes brancas, sem armadura e sem armas.
— Esperança? — disse Caos soltando uma nova gargalhada. — Não vejo esperança, apenas desespero!
Os fragmentos de rocha transformaram-se em guerreiros do demônio, excreções do Caos constituídas pelos terrores que cada pessoa vivenciara durante a existência. Incolores e volúveis como sonhos maus, os guerreiros demoníacos assumiam aspectos diferentes consoante os que os combatiam, materializando-se no que a pessoa mais temia.
Da fenda, começaram a brotar dragões de fogo. Caricaturando os dragões reais, eram constituídos por magma, com as escamas de obsidiana, as asas e a crina de chama, com carvões incandescentes em lugar de olhos. Das entranhas do mundo, vomitavam gases tóxicos. Das asas desprendiam-se fagulhas, que transformavam num pasto de chamas tudo o que afloravam.
Desesperados, os cavaleiros ficaram olhando para aqueles monstros, de rosto empalidecido pelo desânimo e o medo, à medida que as horríveis criaturas se lançavam ao ataque. Soltando-se das mãos trêmulas, os estandartes começaram a deslizar para o solo.
O Caos apontou para os Cavaleiros da Solamnia.
— Paladino morreu! — rugiu. — Lutam sozinhos!
E virando-se para os cavaleiros das trevas:
— Takhisis fugiu! Vocês lutam sozinhos!
Caos esparramou os braços enormes, que pareciam abarcar o Universo.
— Não há esperança! Não há deuses! Quem lhes resta?
Steel desembainhou a espada e ergueu-a no ar. O metal não refletiu as chamas, mas irradiou um fulgor esbranquiçado, como o luar a refletir-se no gelo.
— Temos uns aos outros — respondeu.
— Majere, tem que pousar — disse Steel a Palin. — Não consigo lutar contigo às minhas costas.
— E eu não posso lutar escarranchado na garupa do dragão — concordou Palin.
Fulgor pairou sobre o solo. Steel estendeu o braço a Palin e puxou-o para fora da sela. Quando o cavaleiro se preparava para largá-lo, o mago segurou sua mão por um instante fugaz.
— Sabe o que fazer? — perguntou, ansioso.
— Mestre Feiticeiro trate do seu encantamento — respondeu Steel com frieza. — Estou preparado.
Palin aquiesceu com a cabeça e estreitou a mão de Steel.
— Adeus, primo — disse.
Steel sorriu. Por um instante, brilhou-lhe nos olhos um reflexo cálido.
— Adeus... — Calou-se e acrescentou, baixinho: — Primo.
Soltando um grito de guerra estridente, Fulgor elevou-se no ar.
As palavras e o exemplo de Steel fizeram redobrar a coragem dos cavaleiros da Luz e das Trevas que, erguendo os estandartes decaídos, se arremessaram ao ataque.
O Caos acolheu-os com confusão, loucura, terror e sofrimento. O fogo irrompia e elevavam-se os guinchos de criaturas de pesadelo. Brandindo as lanças do dragão, os Cavaleiros da Solamnia atacaram os dragões de fogo. Os dragões prateados quase se deixaram consumir pelas chamas mortais, num esforço para aproximarem os cavaleiros do inimigo. Estes, suando profusamente e piscando os olhos ao clarão fantasmagórico, arremessavam as lanças. A fé que os imbuía e a força dos braços guiava-lhes o arremesso, certeiro e real. Vários dragões de fogo tombaram, indo despencar no solo e explodindo num mar de chamas. Muitos dragões prateados caíram também, com os focinhos queimados, os olhos cegos, as asas carbonizadas e ressequidas.
Os cavaleiros das trevas combatiam os guerreiros demoníacos, esfacelando-os com as espadas malditas. Os dragões azuis lutavam com as garras e as faíscas. Mas sempre que uma arma desferia um golpe no coração de um guerreiro do demônio, o frio do vazio de breu, que já existia antes do começo dos tempos, despedaçava o metal e gelava a mão que o segurava. Agüentando com estoicismo a dor, os cavaleiros transferiam a lâmina para a mão boa e prosseguiam a luta.
Palin encontrava-se bastante recuado da linha da frente dos cavaleiros e temporariamente fora de combate. A fúria da arremetida dos cavaleiros fez os guerreiros demoníacos e os dragões de fogo recuarem, obrigou-os a passar à defensiva. Não por muito tempo. Com um aceno da mão gigantesca, Caos estava a congregar reforços, não da linha de vanguarda mas criando-os a partir dos corpos tombados.
Palin tinha de ser rápido a pronunciar o encantamento. Abrindo o livro de Magius na página correta, segurou-o na mão esquerda, tirando o Bastão de Magius na direita. Examinou, pela última vez, as palavras da fórmula. Inspirando fundo, começou a recitá-las, levantou a cabeça e avistou Usha.
Não dera por ela antes, pois a jovem mantivera-se escondida atrás do altar esfrangalhado. Mas levantara-se e observava a batalha, com ar temeroso, segurando nas mãos a Pedra Preciosa Cinzenta. Que fazia ali?
Sentiu ímpetos de lhe gritar, mas receou que, ao fazê-lo, desviasse a atenção mortífera do deus pai para a presença de Usha. Palin precisava estar com ela, de protegê-la e, ao mesmo tempo, de permanecer ali, pronunciar o encantamento e proteger os cavaleiros.
Já sentia a magia palpitar, rastejar-lhe para a cabeça. As palavras começaram a deslizar, indo se esconder nas fendas da sua concentração fragmentada. Conseguia ver as palavras na página, mas não era capaz de pronunciá-las, de lhes imprimir a entoação correta, que era o mais importante de tudo. Logo se converteriam num papaguear sem sentido.
O amor é a minha força!
Recuou de novo até àquela praia terrível, onde, em pânico, paralisado de terror, assistira à luta dos irmãos, receoso pelas vidas deles e querendo ajudar com tanto desespero, que fora um fracasso rotundo. Que interessava que a vantagem numérica do adversário fosse esmagadora, que ele estivesse ferido, que não tivessem uma única hipótese...
Sabia que falhara. E estava predestinado a falhar de novo.
Sobrinho, aprendemos com os nossos erros, ouviu uma voz doce e sibilante lhe dizer.
De repente, as palavras do encantamento revestiram-se de sentido, sabia como pronunciá-las.
Posicionou o bastão e em tom claro e forte, entoou as palavras:
“Abdis Tukngf Kumpul-ah Kepudanya Kuasaham!”
Tenso, ansioso, ficou à espera de sentir o efervescente formigamento nas veias, que assinalava o começo da magia.
“Burus longang degang birsih sekalilagang!”
A magia não adquiria vida. O mago já quase terminara o encantamento. Sabia que o pronunciara corretamente, que não cometera um único erro. Faltavam só umas palavras...
“Degang Kuashnya, lampar Terbong Kilat mati yangjahat!”
Sobre ele pairava o Caos. O fogo o queimou. A morte o envolveu. Steel ia morrer, Usha, Tas e Dougan iam morrer, os pais, as irmãzinhas e tantos outros morreriam...
Sacrifique-se. Sacrifique-se pela magia. Sobrinho, o que você sacrificou pela magia? Eu renunciei à saúde, à felicidade. Renunciei ao amor — do meu irmão, dos meus amigos. Renunciei à única mulher que possivelmente me daria amor em troca. A tudo isso renunciei, em troca da magia. E você, sobrinho, renuncia a quê?
Palin pronunciou as últimas duas palavras do encantamento:
“Xis. Vrie.”
Depois, em tom sereno, acrescentou baixinho:
— Renuncio a mim mesmo.
As palavras contidas no livro de encantamentos começaram a brilhar, emanando um fulgor prateado. Derramando-se pela capa de couro, o esplendor se liquefez na mão de Palin.
O mago foi percorrido por um formigamento que lhe provocou calafrios. Sentiu-se avassalado pelo êxtase da magia, misto de prazer sublime e dor intensa. Deixou de temer o que quer que fosse, o malogro ou a morte. O resplendor impregnou Palin, ganhou consistência dentro dele, no recôndito do seu coração.
O cristal, incrustado na garra de dragão que sobrepujava o Bastão de Magius, começou a irradiar um clarão prateado. Este foi se tornando mais forte, mais vivo, com uma ardência que transcendia as chamas do Caos. Refletindo-o, as armaduras de prata dos Cavaleiros da Solamnia converteram-se, elas mesmas, em cintilações. As armaduras negras dos cavaleiros das trevas também a absorveram, mas sem a refletirem. À cintilação mágica, as escamas dos dragões prateados refulgiam, quais diamantes. As escamas dos dragões azuis lembravam safiras reluzentes.
Quando o fulgor atingiu os guerreiros demoníacos, estes soltaram guinchos de dor e de fúria. As criaturas-sombra deslizaram, lembrando fumaça a ser expelida de uma chaminé. Tentando evitar o fulgor, os dragões de fogo recuaram, sendo vitimados pelas reluzentes lanças prateadas do dragão.
Caos apercebeu-se da Luz. Vista de soslaio, a cintilação era incômoda, irritante, pelo que decidiu livrar-se dela.
Deixando de prestar atenção à condução das suas legiões, Caos procurou localizar a malfadada luz. Avistou o bastão e a criatura minúscula e insignificante que o segurava. Fitou a luz, fitou-a diretamente...
A magia impregnou Palin com um ímpeto que o obrigou a ajoelhar-se. Contudo, continuou a segurar o bastão com pulso firme. O fulgor emanado do cristal lançou um feixe de luz esbranquiçada, radiosa, viva e ofuscante, que atingiu o gigante bem nos olhos.
— Steel, agora! — gritou Palin. — Ataque agora!
Steel Montante Luzente e Fulgor sobrevoavam o campo de batalha, e aguardavam, impacientes, pois viram-se forçados a ver os camaradas morrer sem nada poderem fazer para ajudá-los ou se vingar. Steel vira Palin vacilar e, em silêncio, suplicara-lhe que agüentasse. O êxito do primo provocou-lhe uma satisfação enorme e — a bem da verdade — um sentimento cálido e inesperado de orgulho fraterno.
Não precisava ouvir Palin gritar para saber quando desencadear o ataque. Quando a luz do cristal atingiu o Caos em cheio nos olhos, Steel brandiu a espada e enterrou as esporas nos flancos de Fulgor.
Caos soltou urros de raiva e de fúria, tentando destruiu a luz que lhe penetrara na cabeça, cegando-o e causando-lhe dor. Mas os seus olhos sem pálpebras não podiam se fechar. Sendo redemoinhos de trevas, sugavam tudo o que olhassem, incluindo o debilitante clarão.
Fulgor voou direto contra Caos. O gigante gesticulava e sacudia a cabeça. Tentando libertar-se do abraço da luz. Guiando o dragão, Steel gritou-lhe palavras de incitamento, impelindo o animal para as chamas retumbantes que formavam o cabelo e a barba do gigante.
Quase cego pelo fogo, Steel protegeu os olhos com a mão. Localizando o alvo, investiu. O calor era medonho e, em contato com o metal da armadura, tornava-a ardente e intolerável ao tato. O elmo sufocava-o. Retirou-o e arremessou-o ao solo. As chamas tostaram-lhe a pele. Sentia-se incapaz de respirar o ar em combustão que lhe queimava os pulmões. Contudo, não esmoreceu.
Caos usava uma couraça de diamante e ferro em brasa, mas esta só lhe cobria o peito. Os braços e as mãos encontravam nus.
— Vire! — gritou Steel a Fulgor, puxando as rédeas para a direita, a fim de virar a cabeça do dragão. — Conduza-me até o ombro dele!
Baixando a cabeça, o dragão atravessou, a troar, o fogo da barba do deus pai e vomitou o bafo feito de relâmpagos. Ondas de eletricidade atingiram Caos, tornando-o mais irritado e enraivecido. Sabia que havia um inimigo por perto, pelo que começou a gesticular às cegas. Steel esquivou-se, protegendo-se atrás do pescoço de Fulgor.
O dragão levantou a asa direita, bateu-a e voou tão rente à couraça cintilante que o calor que esta irradiava lhe chamuscou as asas. Steel arquejava, tentando respirar. Devido ao braseiro, tinha os olhos marejados de lágrimas. Contudo, manteve-os abertos, fixos no alvo.
O dragão aproximou-se do gigante. Debruçando-se temerariamente na sela, Steel brandiu a espada e, soltando um grito de guerra estrepitoso, cravou a lâmina no braço enorme.
— Menina! Ele conseguiu! Conseguiu! — Dougan guinchava, dava pulos. — Agora! Depressa! Depressa!
A espada de Steel encontrava-se enterrada na carne do gigante. Caos soltava ganidos e mugidos. Incapaz de ver o que o picara, lançou o braço para trás, obrigando Steel a largar a espada.
Da ferida esguichou uma gota cintilante de sangue.
— Menina, agora! Agora! — gritou Dougan, ofegante.
— Vou contigo! — exclamou Tas. — Mas espere um instante! Deixe eu ver onde pus a colher...
— Não há tempo! — interrompeu-o Dougan, empurrando Usha: — Vai, menina! Agora!
Usha lançou um olhar hesitante a Dougan e a Tas, que remexia os alforjes. O duende acenou-lhe com a mão.
Usha aproximou-se rastejando.
“Concentre-se no objetivo. Não pense no Palin, não pense no Tas, não pense em como está assustada. Pense no Protetor e nos outros. Pense em como morreram. Nunca fiz nada por eles, nunca lhes exprimi a minha gratidão. Parti sem lhes agradecer. Isto... é pela minha família, pelos Irdas perdidos.”
Usha manteve os olhos fixos na gota de sangue reluzente, que deslizava pela espada.
Aproximou-se, ficando perto das pernas monstruosas, dos pés enormes que batiam com estrépito no solo, fendendo-o e abalando-o.
A gota de sangue ficou suspensa, qual jóia inacessível.
Não caiu.
Como um espinho de rosa, a espada de Steel — a espada do pai — continuava cravada na carne de Caos.
Ao gesticular com o braço para trás, Caos arrancara a espada da mão de Steel. O gume não provocara grandes estragos no gigante, apenas o fizera derramar uma gotinha de sangue.
Steel precisava desferir novo ataque, mas antes, tinha que recuperar a espada. Sentia-se desfalecer, e o dragão também começava a ficar sem forças. Fulgor, muito queimada, perdera um olho e tinha as escamas da cabeça ressecadas e sangrando. As asas azuis estavam enegrecidas e a fina membrana se rasgara.
Steel não conseguia encontrar oxigênio suficiente para respirar. A respiração vinha-lhe aos haustos, acompanhados de uma dor excruciante. Sentia-se tonto, com a cabeça girando. A sua pele estava queimada e cheia de vesículas.
Rilhando os dentes, inclinou-se para Fulgor e deu-lhe uma palmadinha no pescoço.
— Pequena, precisamos tentar outra vez — disse. — Temos que acabar com isto. Depois, já podemos descansar.
O dragão aquiesceu com a cabeça, muito exausto e dolorido para falar. Mas quando obrigou as asas esfrangalhadas a bater, antes de se lançar de novo, e ao cavaleiro, na batalha, ainda arranjou forças para soltar uma rosnada de desafio.
Fulgor pairou junto do braço ferido, no último instante ergueu rapidamente a asa e arremeteu de frente contra o gigante. Steel conseguiu apoderar-se do punho da espada e, com um último puxão, arrancou-a do braço do gigante.
Reluzindo, a gota de sangue tombou da ferida.
Usha viu o sangue cair. A esperança redobrou-lhe a coragem. Indiferente aos pés tonitroantes, precipitou-se para frente, a fim de apanhar a gota.
Nesse momento, porém, Caos, soltando pragas medonhas, fez girar o braço e esmagou o que para ele nada mais era do que um inseto incômodo.
O dragão sentiu-se sem forças nas asas para fugir ao abraço da mão e esta esmagou-o como se se tratasse de uma mosca.
Com o pescoço partido, Fulgor despencou dos céus, arrastando consigo o dono. Viu-se uma cintilação de luz prateada e ambos se espatifaram no chão, perto de Palin. A asa do dragão atingiu o mago, obrigando-o a largar o bastão e o livro de encantamentos.
O fulgor branco prateado desapareceu.
A gota de sangue obtida com tanto sofrimento, caiu no chão, sendo logo absorvida pelo solo acizentado e ressequido.
Usha deu um grito de desolação. Pondo-se de quatro, começou a esgaravatar a poeira úmida e tingida de sangue, na esperança de recuperar algum.
Sobre ela pairou uma sombra que a enregelou até os ossos, lhe tolheu as mãos e paralisou o coração.
Caos conseguia avistá-la agora, inclinada sobre o sangue derramado e com a Pedra Preciosa Cinzenta nas mãos.
O gigante compreendeu o perigo que corria.
Ferido e tonto, Palin procurou freneticamente o bastão, que jazia debaixo do dragão morto. A sombra, que ia crescendo, derramava trevas em volta do mago. Levantando a cabeça, viu que os olhos vazios e tenebrosos do gigante — que recuperara a visão — se concentravam em Usha.
Palin levantou-se atabalhoadamente.
— Usha! Cuidado! Fuja! — gritou.
Com o estrépito que o gigante fazia, a jovem não o ouviu. Ou ignorou-o. Mantendo o olhar fixo no solo manchado de sangue, tentava, em desespero, recuperar uma gota, para introduzi-la dentro das metades da Pedra Preciosa Cinzenta.
Desistindo do bastão, Palin acorreu em auxílio dela.
Nunca chegou a fazê-lo.
A mão enorme de Caos, que parecia prender o vento, arrastou este consigo. Palin foi atingido por uma rajada de ar quente, que o empurrou para trás e o fez chocar contra o corpo do dragão. A cabeça pareceu explodir-lhe de dor.
— Usha — murmurou, enjoado e tonto. Esforçou-se por se levantar e, em espírito, conseguiu-o, mas o seu corpo jazia no sangue do dragão. Sentiu o próprio sangue escorrer-lhe, quente, pelo rosto. Refletido nos olhos vazios do gigante, não passava de uma partícula de poeira. Depois, tornou-se nada.
Tasslehoff despejava os alforjes e o chão em volta dele estava praticamente juncado de objetos. Um pedacinho de cristal azul, um bocadinho de árvore do vale petrificada, um anel de cabelo da juba de uma grifo, um lagarto morto numa tira de couro, uma rosa murcha, um anel branco com duas pedras vermelhas, uma pena branca de galinha...
— Onde meti a maldita colher?! — gritou, frustrado.
— Usha! Desista, menina! Fuja! — berrava Dougan.
— O que se passa? O que aconteceu? — Tas levantou a cabeça, ansioso por ver. — Estou perdendo alguma coisa?
Usha, ainda agachada, continuava a esgravatar a terra, com as lágrimas a banhar-lhe o rosto. Palin, que jazia numa poça de sangue do dragão, parecia um boneco enrodilhado.
Ouviu-se o arrastar das botas que calçavam os pés enormes do gigante... E estas rolavam pelo chão ribombando e chiando como seixos gigantescos, que esmigalhavam os corpos dos cavaleiros mortos e dos dragões moribundos. Usha e Palin encontravam-se à mercê do monstro.
O kender sentiu no coração um baque gelado, que lhe doeu tanto como se levasse um murro de gigante.
— Vai esmagá-los! — gritou Tas. — Vai reduzi-los a purê! Esta... esta coisa é pior do que Lorde Soth! Os meus amigos não podem ficar esborrachados! Tem que haver por aqui algum grandalhão que o impeça!
Desvairado, Tas olhou em redor, à procura de um cavaleiro, um dragão ou mesmo um deus, que prestasse auxílio. Os cavaleiros e dragões que ainda restavam, encarniçavam-se, desesperados, nas suas próprias batalhas. Quanto a Dougan, o duende, que parecia uma trouxa enrodilhada, estava cabisbaixo, com as mãos flacidamente pousadas no regaço e lamentava-se:
— A culpa é minha! A culpa é minha...
Tas levantou-se e, ao fazê-lo, percebeu de repente que era a pessoa mais alta e grandalhona do mundo (à sua esquerda e com exceção do gigante). O coração transbordou-lhe de orgulho, fazendo explodir o aperto gelado da mão que lhe sugava a vida.
Tasslehoff arremessou os alforjes para o lado. Sacando da faca — a faca que um dia Caramon batizara de “Mata-Coelhos” — o kender precipitou-se para os amigos caídos, com a presteza e agilidade inatas à raça kender e um dos motivos por que conseguem sobreviver num mundo de minotauros irados, comerciantes furiosos e xerifes enraivecidos.
Protegendo Usha com o corpinho, Tasslehoff soltou um grito kender.
— Toma isto! — disse, enterrando a faca conhecida por “Mata-Coelhos” no dedo grande do pé de Caos.
O sangue respingou. O deus levantou o pé ferido, preparando-se para esborrachar a criatura insignificante e impertinente que o machucara. Caos fez desabar o pé no chão. Ergueram-se nuvens de poeira e Tasslehoff desapareceu.
— Tas! — gritou Usha, cheia de desgosto e furiosa. Fez menção de tentar salvar o amigo, mas chegou-lhe um grito estridente de Dougan.
— Menina, conseguiu! Olhe para baixo! Olhe para a Pedra Preciosa Cinzenta!
Aturdida, Usha obedeceu.
No meio de uma das metades da gema, reluzia uma gota de sangue.
— Menina, feche as metades! — gritou-lhe Dougan, dando pulos. Feche-as! Depressa!
Em volta dele, Usha ouviu os guinchos e os ribombos de Caos. As chamas do monstro queimaram-na, os ventos que soprava tentaram arrasá-la. Ia morrer, mas não interessava. Palin morrera. O alegre kender estava morto. O taciturno cavaleiro das trevas estava morto. O Prot estava morto. Todos tinham morrido, nada restava. A esperança morrera.
Unindo as mãos, Usha juntou as duas metades da Pedra Preciosa Cinzenta, aprisionando lá dentro o sangue de Caos. Depois...
Silêncio.
Silêncio e trevas.
Usha não conseguia ver nada, ouvir nada, sentir nada, nem sequer o chão debaixo dos pés. O único objeto sólido que sentia eram as arestas frias, pontiagudas e facetadas da Pedra Preciosa Cinzenta.
Usha largou-a, mas a gema não caiu.
A Pedra Preciosa Cinzenta libertou-se do seu aperto e, de repente, explodiu.
Milhões de estilhaços de cristal reluzente esparramaram-se nos ares, pontilhando as trevas com miríades de luz.
Tratava-se de estrelas. Estrelas novas, estranhas.
Elevou-se uma Lua, uma só e pálida. Tinha um rosto bondoso e, no entanto, descuidado.
E foi então que, ao clarão do luar, Usha pôde ver.
O Caos desaparecera. O Dougan desaparecera. Em volta da jovem, jaziam os corpos dos mortos. Procurou, até encontrar Palin.
Cingindo-o com os braços, Usha deitou-se ao seu lado. Pousando a cabeça no peito do mago, fechou os olhos e, sem querer fitar as estrelas desconhecidas e a Lua fria, procurou nas trevas, encontrar Palin.
Uma gota de água fria caiu-lhe na testa.
A chuva caía, gentil, fria e suave. Palin encontrava-se deitado na relva molhada, de olhos fechados, pensando que ia ser um dia aborrecido, cinzento e sombrio para cavalgar, que o irmão mais velho se queixaria amargamente que a chuva lhe enferrujava a armadura e estragava a espada. E que o outro irmão, dando uma gargalhada, sacudiria as gotas do cabelo, comentando que todos cheiravam a cavalo molhado.
E hei de lembrar-lhes que precisamos da chuva, que devíamos nos sentir gratos pela seca ter acabado...
A seca.
O Sol.
O Sol ardente, causticante.
Os meus irmãos estão mortos.
As lembranças voltaram, horripilantes e repassadas de dor. O líquido que tombava não era chuva, mas sangue. As nuvens eram a sombra do gigante, que sobre ele pairava, sobranceiro. Receoso, Palin abriu os olhos, fixou-os nas folhas de uma árvore do vale, folhas que derramavam chuva e começavam a mudar de cor e assumir os laivos quentes e dourados do Outono.
Palin soergueu-se e, num estado de grande confusão, olhou em redor. Encontrava-se deitado num campo que devia situar-se perto da terra natal, pois as árvores do vale só crescem num lugar de Ansalon, que é em Consolação. Mas o que ele fazia ali? Há bem poucos instantes, estava no Abismo, morrendo.
Avistou, à distância, o seu lar, a Estalagem da Última Casa, que se erguia incólume. Uma tênue espiral de fumaça elevava-se da chaminé, derramando na atmosfera molhada um perfume doce.
Ouvindo um gemido perto de si, abaixou a cabeça.
Usha encontrava-se deitada ao seu lado, aninhada como uma criança, com um dos braços a proteger-lhe a cabeça. Vivenciava sonhos terríveis.
Tocou-lhe gentilmente no ombro. Remexendo-se, a jovem chamou-o:
— Palin! Onde você está?
— Usha, sou eu. Estou aqui — respondeu ele com doçura.
Usha abriu os olhos e, ao avistá-lo, estendeu os braços e estreitou-o contra si.
— Pensei que tinha morrido. Me vi só, completamente só, as estrelas eram diferentes e estavam todos mortos...
— Estou bem — respondeu Palin, sentindo-se atônito por constatar que se encontrava bem, quando a última coisa que recordava era uma dor excruciante.
Alisou-lhe o lindo cabelo prateado e deixou-se embalar no dourado dos olhos da jovem, agora vermelhos de tanto chorar.
— Sente-se bem?
— Sim... não fui ferida. O gigante... O Tas... Oh, santos deuses! — Usha desvencilhou-se das mãos e, a cambalear, levantou-se. — Tas! O gigante!
Virou-se, e a respiração morreu-lhe num soluço.
Palin seguiu-lhe o olhar e foi então que avistou os mortos.
Os corpos dos Cavaleiros da Solamnia e dos Cavaleiros de Takhisis jaziam lado a lado. Dos que tinham voado para o Abismo para combater o Caos e as suas legiões medonhas, nem um sobrevivera. Os cavaleiros estavam expostos em câmara-ardente, com as mãos cruzadas no peito, o rosto sereno e em paz, sem vestígios de sangue, medo e dor, que as suaves gotas de água haviam feito desaparecer.
Através do manto de chuva, Palin apercebeu-se de um movimento, de algo a se mexer. Não se enganara. Um dos cavaleiros ainda vivia. Palin percorreu apressadamente as fileiras dos mortos. Aproximando-se, reconheceu Steel.
O rosto do cavaleiro estava coberto de sangue. Encontrava-se de joelhos e tão fraco que mal se sustinha de pé. Levou ao peito a mão gelada de um jovem Cavaleiro da Solamnia. Depois, as forças esvaíram-se e Steel tombou na erva molhada e acastanhada.
Palin postou-se junto dele e inclinou-se, olhando de relance para a armadura, amassada, esfrangalhada e manchada de sangue, para o rosto pálido e a respiração estertorosa.
— Steel — chamou baixinho. — Primo.
Steel abriu os olhos, agora vítreos e embaciados.
— Majere... — murmurou, esboçando um sorriso pálido e tênue. — Você lutou bem.
Palin pegou na mão do cavaleiro das trevas e sentiu-lhe a carne gelada.
— Posso fazer alguma coisa para que se sinta mais tranqüilo?
Steel virou a cabeça.
— A minha espada — disse, procurando-a com o olhar.
Palin encontrou-a perto do cavaleiro. Erguendo-a, colocou o punho na mão de Steel.
O cavaleiro fechou os olhos.
— Agora deixe-me com os outros — disse.
— Assim farei, primo — respondeu Palin, com os olhos marejados de lágrimas. — Assim farei.
Os dedos de Steel crisparam-se em torno do punho da espada. Tentou erguê-la de novo.
— Est Sularus (A minha honra)... — As palavras em solâmnico foram sussurradas com o último estertor — oth Mithas (é a minha vida) — concluiu, soltando o derradeiro suspiro.
— Palin. — Era Usha, que se encontrava ao seu lado.
O mago levantou a cabeça e limpou a chuva e as lágrimas.
— O que é? Encontrou Tas?
— Venha ver — respondeu Usha com brandura.
Palin levantou-se. Tinha as vestes empapadas de chuva, mas para começo de Outono, o ar estava quente. Passou pelos corpos dos cavaleiros e interrogou-se sobre o destino dos dragões.
Depois, sentindo um baque de medo no coração, lembrou-se do bastão e do livro de encantamentos.
Mas avistou-os na erva, próximos um do outro. A lombada de couro vermelho estava enegrecida e queimada. Palin tocou-o com cuidado e abriu a capa. Não restava uma única página. Tinham sido todas destruídas, consumidas no último encantamento.
Palin suspirou, pensando quão grande era a perda. Contudo, estava certo de que Magius ficaria satisfeito se soubesse que a sua magia ajudara a derrotar o Caos. Palin pegou no bastão e foi com um sobressaltado e algo alarmado que constatou como o sentia estranho ao toque. A madeira, sempre tão cálida e convidativa, encontrava-se agora fria, áspera e irregular. Provocou-lhe uma sensação desconfortável na mão. Voltou a pousá-lo, aliviado por largá-lo e interrogou-se sobre o que havia de errado.
Foi encontrar Usha, que olhava fixamente para um monte de alforjes dispersos. Inclinando-se para examinar os pertences mais valiosos do kender, Palin logo esqueceu o bastão.
Separou vários objetos. Não reconheceu nenhum. Para bagagem de um kender não constituía surpresa, mas quase se convenceu de que pertenciam a outro que não Tas, que haviam sido abandonados pelo proprietário (possivelmente para permitir ao kender fugir mais depressa). Foi quando ergueu um dos alforjes e deste caiu um monte de mapas.
— São de Tasslehoff — disse, com o medo a gelar-lhe o coração. — Mas onde está ele? Nunca os abandonaria.
— Tas! — gritou Usha, pondo-se à procura. — Palin, olhe! Ali está a braçadeira dele... misturada com um monte de... penas de galinha.
Palin aproximou-se das penas e, por baixo destas e da braçadeira, avistou um lenço com as iniciais FB, uma colher de prata (de confecção elfa) e uma faca manchada de sangue escuro.
— Morreu! — exclamou Usha, com um soluço. — Nunca abandonaria a colher!
Palin olhou para a estrada, que se espraiava até se unir a outra, e mais outra, para depois se ramificarem, mas sempre em frente, a desembocarem em toda a parte e, na volta, a casa.
De repente, a estrada não passava de uma mancha.
— Há um único motivo que levaria Tas a abandonar os seus queridos pertences — disse Palin baixinho. — Encontrou algo mais interessante.
A chuva suave parou. Ao dia pardacento sucedeu-se a noite de breu. As estrelas estranhas acordaram e pontilharam o céu como se fossem pedras divinatórias lançadas sobre um pano negro. A Lua pálida e indiferente surgiu, iluminando-lhes o caminho.
Palin mirou as estrelas e a Lua solitária. Estremecendo, baixou a cabeça e deu com os olhos dourados de Raistlin.
— Tio! — exclamou Palin contente, e no entanto pouco à vontade.
O bastão já não lhe servia de arrimo. Tornara-se pesado e incômodo e não conseguia descobrir o que se passava de errado.
— Agora que a guerra acabou, vem para a nossa companhia? A guerra acabou, não foi? — perguntou, ansioso.
— Esta guerra terminou — acrescentou Raistlin em tom ríspido. — Haverá outras, mas não são da minha competência. E não, não vim para ficar. Só parei por estas bandas para me despedir.
Palin olhou com ar desapontado para o tio.
— Tem mesmo que ir? Preciso ainda aprender tanta coisa!
— É verdade, sobrinho e será até o dia em que morrer, mesmo que isso te aconteça quando for muito, muito velho. O que se passa com o bastão? Segurava-o como se te custasse agarrá-lo.
— Alguma coisa não bate certo — respondeu Palin, sentindo o medo crescer dentro de si, medo de coisas percepcionadas, suspeitas mas desconhecidas.
— Dê-me aqui — disse Raistlin com brandura.
Palin estendeu-o, experimentando uma súbita relutância. Raistlin pegou-o e examinou-o com admiração. Com a mão esguia, aflorou a madeira e acariciou-a.
— Shirak — murmurou.
O bastão irradiou um fulgor, que começou a esvair-se, a escurecer. O clarão tremeluziu e desvaneceu-se.
Palin olhou-o consternado e depois ergueu a cabeça em direção à única Lua. Sentiu um aperto de medo no coração.
— O que se passa? — exclamou, aterrorizado.
— Ah, jovem, talvez eu possa responder.
Avistaram um velho feiticeiro, com vestes cor de rato e um chapéu vergonhoso com a copa partida, que percorria a estrada com passo cambaleante, vindo da Estalagem da Última Casa. Limpando a boca com a palma da mão ouviram-no observar:
— Bela cerveja. Uma das melhores do Caramon. Promete ser um ano excelente — disse, abanando a cabeça. — Vou, com certeza, sentir falta dela.
— Saudações, ó Velho — disse Raistlin, arrimado no bastão e sorrindo.
— Quê? Hein? É alguma piadinha à minha idade? — Sob as sobrancelhas hirsutas, os olhos do feiticeiro faiscavam.
Virou-se para Palin e avistou o lenço do kender, que Palin enfiara no cinto. A barba do velho eriçou-se.
— É meu! — guinchou e, arrebanhando-o, exibiu o pano. — Aqui estão as minhas iniciais, FB! Quer dizer... Mmmmm. Foos bal. Não, não soa lá muito bem. Fluber. Também não...
— Fizban — disse Palin.
— Onde? — O velho deu precipitadamente meia vota. — Apanhe-o! Anda sempre me seguindo!
— Fizban! — exclamou Usha, olhando-o maravilhada. — Sei quem é! O Protetor me falou de você! Na verdade, é o Paladino!
— Nunca ouvi falar dele! — respondeu o velho, irritado. — As pessoas estão sempre nos confundindo, mas eu sou muito mais bonito do que ele.
— Não morreu! — exclamou Palin, em tom aliviado. — O Caos disse que tinha morrido. Quer dizer, disse que o Paladino tinha morrido.
Fizban viu-se obrigado a se calar por um momento, a fim de ponderar o assunto.
— Não, não creio — respondeu, franzindo o cenho. — Não me digam que me deixaram outra vez num monte de penas de galinha!
Palin sentia-se reconfortado, alegre, sem receios.
— Senhor, conte-nos o que aconteceu. Ganhamos, não ganhamos? O Caos foi derrotado?
Fizban sorriu e suspirou. A expressão aturdida desapareceu, para dar lugar a um ancião de rosto bondoso, triste, sofredor e, contudo, triunfante.
— O Caos foi derrotado, meu filho. Mas não foi destruído. O Pai de Tudo e de Nada nunca poderá ser destruído. Vocês o obrigaram a sair deste mundo. Concordou em fazê-lo, mas por um elevado preço. Partirá de Krynn, mas os filhos têm que partir também.
— Você... você não vai, não é? — exclamou Usha. — Não pode!
— Os outros já se foram — respondeu Fizban baixinho. — Vim lhes apresentar os meus agradecimentos e... — soltou um novo suspiro — beber uma última caneca de cerveja com os meus amigos.
— Não pode fazer isso! — exclamou Palin, aturdido, incrédulo. — Como é possível que nos abandone?
— Meu filho, fizemos este sacrifício para salvar a Criação que tanto amamos — respondeu Fizban. Depois, olhou para os corpos dos cavaleiros e para o lenço que tinha na mão. — Tal como eles se sacrificaram para salvar o que amavam.
— Não compreendo! — murmurou Palin, angustiado. — E o bastão? E a minha magia? — acrescentou, levando a mão ao coração. — Deixei de senti-la dentro de mim.
Raistlin pousou a mão no ombro de Palin.
— Eu disse que um dia se tomaria o maior mago que já existiu. Sobrinho, cumpriu a minha profecia. O próprio Magius nunca foi capaz de lançar aquele encantamento. Orgulho-me de ti.
— Mas o livro ficou destruído...
— Não interessa — respondeu Raistlin, com um encolher de ombros. — Não é, sobrinho?
Palin ficou a olhá-lo, ainda sem compreender. Depois, o significado do que o tio lhe dissera penetrou-lhe no âmago.
— Deixou de haver magia no mundo...
— Tal como a conhece, deixou. Pode ser que haja outra magia. Cabe a você descobri-la — disse Fizban com brandura. — Inicia-se agora o que será conhecido em Krynn como a Idade dos Mortais. Acho que será a época final. A derradeira, a mais longa e possivelmente a melhor. Adeus, meu filho. Adeus, minha filha.
Fizban apertou-lhes as mãos e depois virou-se para Raistlin.
— Bem, você vem? Sabe que não tenho o dia todo. Tenho que ir construir outro mundo. Vejamos. Como se fazia? Arranja-se um bocadinho de terra e mistura-se com um pedacinho de guano de morcego...
— Adeus, Palin. Cuide bem dos teus pais — disse Raistlin, virando-se depois para Usha. — Adeus, Filha dos Irdas. Não só vingou o teu povo, mas também o redimiu. — E relanceando o olhar pelo deprimido Palin acrescentou:
— Ainda não lhe contou a verdade? Acho que vai alegrá-lo bastante.
— Ainda não, mas o farei — respondeu Usha. — Prometo-lhe, tio — acrescentou, com voz tímida.
Raistlin sorriu.
— Adeus — disse de novo.
Apoiando-se ao bastão, ele e Fizban viraram-se e atravessaram o campo, onde jaziam os mortos.
— Tio! — chamou Palin, desesperado. — Os deuses se foram! Agora que ficamos sós, o que faremos?
Raistlin parou e olhou para trás. À luz das estrelas estranhas, a sua pele irradiava laivos ouro pálido e os seus olhos dourados faiscavam.
— Sobrinho, não está só. Lembre-se das palavras de Steel Montante Luzente. Têm-se um ao outro.
Palin e Usha ficaram sozinhos no campo junto à torre de Consolação, e que posteriormente se tornou sagrado.
Ao mesmo afluíram as pessoas de Ansalon para, juntas, erigirem um túmulo de pedra, transportada de Thorbardin por um exército de duendes. O túmulo era simples, elegante, construído em mármore branco e obsidiana preta. Em volta, os humanos plantaram árvores, trazidas pelos elfos de Qualinesti e Silvanesti, que eram chefiados pelo rei, Gilthas.
No interior foram depositados, lado a lado, os corpos dos Cavaleiros da Solamnia e dos Cavaleiros de Takhisis.
Ao centro, num ataúde feito de um mármore preto raro, repousava Steel Montante Luzente, envergando a armadura negra e empunhando a espada do pai. Noutro ataúde, esculpido em mármore branco, jazia o corpo de Tanis Meio Elfo, vestido com uma armadura de couro verde e tendo ao lado um bastão de cristal azul, ali colocado pelos filhos de Vento do Rio e de Lua Dourada.
A abóbada foi fechada e lacrada com portas duplas de prata e de ouro. Num dos lados da porta, os Cavaleiros da Solamnia esculpiram uma rosa e no outro um lírio, gravando nos blocos de pedra os nomes dos cavaleiros.
Por sobre a porta colocaram um nome apenas, que homenageava um dos heróis mais famosos de Ansalon.
Tasslehoff Pés Ligeiros.
Por baixo, esculpiram uma braçadeira hoopak.
Foi denominado o túmulo dos Últimos Heróis e constituía a efeméride aos que morreram na batalha ocorrida no final daquele Verão terrível.
O túmulo, longe de ser um local solene, pulsava de alegria (para grande confusão dos cavaleiros). De todo o continente de Ansalon afluíam kenders em peregrinação. Traziam os filhos e faziam piqueniques nas áreas circundantes. Enquanto comiam, contavam histórias do seu famoso herói.
Decorrido pouco tempo — menos de uma geração — cada kender com o qual cruzássemos nos mostraria um objeto interessante qualquer — possivelmente uma colher de prata —, jurando-nos pelo penacho que este possuía toda a espécie de poderes de encantar.
E que este lhe fora dado pelo “Tio Tas”.
Sob a árvore, Flint Forjardente passeava, de trás para frente, da frente para trás. Não podia parar, visto a forja ter se apagado e o velho duende sentir-se enregelado até os ossos. Dava palmadas com as mãos para aquecer os dedos, batia com os pés para desentorpecê-los, resmungava e queixava-se para reavivar o sangue.
— Onde se meteu aquele kender danado? Disse que vinha até aqui. Há uma eternidade que o espero. O Tanis, o Sturm e os outros já partiram há tempos! Nem faço idéia onde estão agora! Provavelmente estão refastelados em alguma estalagem acolhedora, bebendo um copo ou dois de sangria quente e falando dos bons e velhos tempos. E eu, onde me encontro?
O duende bufou.
— Em parte nenhuma é o que é! Debaixo de uma árvore morta, junto a uma forja fria, à espera do cabeça de atum do kender. E o que ele anda fazendo? Vai ouvir poucas e boas! — Flint assanhou-se até ficar com a cara vermelha. — Se calhar está na prisão. Ou quem sabe se um minotauro não o pendurou pelo penacho. Talvez um mago furioso o transformou em lagarto. Ou caiu num poço, como aconteceu uma vez, quando tentava apanhar o próprio reflexo e seria eu a tirá-lo de lá, não fosse ele me puxar para dentro. Se o Tanis não acudisse...
Flint ia grunhindo, andando de um lado para o outro, batendo com as palmas e os pés. Estava tão embrenhado nestas atividades que nem sequer notou que um companheiro se juntara a ele.
Um kender, vestido com umas calças de um amarelo vivo e um elegante colete de xadrez encarnado e verde, aproximara-se sorrateiro e sustendo as gargalhadas, imitava o duende nas costas deste.
O kender passeava, batia palmas e os pés ao compasso de Flint, até que o duende — detendo-se a meio do percurso para acender o cachimbo — esquadrinhou a bolsa de tabaco e descobriu lá dentro outra mão. Após um cálculo por alto, descobrindo três em vez de duas, o duende rugiu e virou-se precipitadamente.
— Te peguei! — gritou Flint, agarrando o ladrão. O ladrão agarrou-se a Flint.
— Flint! Sou eu! — exclamou Tasslehoff, cingindo os braços em volta do amigo.
— Bom, já não era sem tempo! — replicou Flint. — Seu cabeça de atum! Veja o que você fez! Por sua causa deixei cair o cachimbo! Ora, pequeno, deixa pra lá. Não fique assim! Não queria gritar com você. Assustou-me, foi só isso!
Tas tentava rir e soluçar ao mesmo tempo, mas descobriu que o riso e o soluço se emaranhavam na garganta, o que tornava a respiração um pouco difícil. Flint pôs-se a dar palmadas nas costas do amigo.
Recuperando o fôlego, graças ao desvelo de Flint, Tas conseguiu falar.
— Até que enfim consegui. Aposto que teve saudades minhas, não teve?
Ignorando o retumbante “não!” de Flint, Tas continuou a tagarelice:
— Tive saudades suas. Vivi uma aventura das mais maravilhosas. Vou te contar.
O kender livrou-se dos alforjes, espalhou-os em volta e preparou-se para se sentar debaixo da árvore.
— Por onde começo? Já sei! A Colher de Revolver dos Kender. Me foi dada pelo...
— O que você pensa que está fazendo? — inquiriu Flint, de mãos nas ancas e fuzilando o kender com o olhar.
— Descansando debaixo da sua árvore — replicou Tas. — Porquê? O que você pensa que eu estou fazendo? — Parecia interessado. — É alguma coisa diferente do que eu penso que estou fazendo? Porque se é...
— Vai para o inferno! — rosnou Flint. — Não é o que está fazendo ou o que pensa que penso que está fazendo, é o que não está fazendo!
Tas encarou o duende com ar severo.
— Você só diz bobagens — respondeu. — Se pensa que não faço o que em princípio devia estar fazendo, e se pensa que eu penso que faço o que não devia fazer, então...
— Cale-se! — rugiu Flint, crispando as mãos na cabeça.
— Flint, está acontecendo alguma coisa?
— Por sua causa estou ficando com dores de cabeça, é o que é! Bom, onde eu estava?
— Ora, eu não estava fazendo...
— Basta! — exclamou o duende, com a respiração pesada. — Não queria dizer isso. E levante-se. Não há tempo para ficar aqui na vida boa. Temos que nos encontrar com Tanis e com os outros, ali — acrescentou, fazendo um gesto vago com a mão.
— Talvez daqui a pouquinho — respondeu Tas, aninhando-se ainda mais. — Sinto-me tão cansado! Se não se importa, gostaria de repousar aqui mesmo. Mas que árvore tão linda! Ou seria, se não estivesse toda acastanhada e com um aspecto tão triste. Acho que a árvore está tremendo. Faz um gelo aqui! Tenho frio. Flint, você não tem?
— Frio! Claro que tenho frio! Quase pareço um atum defumado! Se chegasse na hora combinada...
Tas não o escutava. Avaliava a situação.
— Sabe, Flint, acho que eu, você e a árvore temos frio (acho que é por isso que parece tão esquisita), porque não há fogo na forja.
— Eu sei que não há fogo na forja! — uivou Flint, tão furioso que começou a cuspir perdigotos. — Eu... Mas... Você...
— Bom, cheguei bem a tempo! — disse Tas, em tom resoluto. — O que você faria sem mim! Mais tarde iremos encontrar com Tanis e os outros. A esta hora já se meteram num sem-fim de confusão e nós é que teremos que salvá-los. Tal como nos bons e velhos tempos. Ora bem, porque não acende o fogo e eu me sento debaixo desta bela árvore e te conto histórias? Ah, a propósito, tenho uma coisa para nós. — Tas esquadrinhou um dos alforjes e retirou um frasco de prata que exibiu, orgulhoso. — Do Caramon e do melhor!
Flint olhou para a árvore. Olhou para a forja. Olhou para o kender. E depois para o frasco.
Sobretudo para o frasco. Pôs-se a coçar a cabeça.
— Por Reorx — murmurou o duende —, não faria mal tirar uma soneca. Só para me aquecer, entende? Suponho que pagou o Caramon por isso, não é verdade?
Flint pegou o frasco, retirou a rolha e cheirou avidamente.
— Hei de pagar — respondeu Tas, inclinando-se para trás e pousando a cabeça no alforje. — Da próxima vez que estiver lá. Bom. Onde eu estava? Ah, sim. A famosa Colher de Revolver dos Kenders. Bom, havia um espectro, estás entendendo, e...
O kender continuou a tagarelar. Flint provou o conhaque, achou-o delicioso, bebeu várias goladas e meteu o frasco num bolso.
Havia tempo para se juntarem a Tanis e aos outros. Uma eternidade, se é que me entendem.
— Bem, acho que vou atear o fogo — decidiu Flint. — Só para não ter que ouvir o papaguear deste kender cabeça de atum.
Flint juntou lenha, encheu a forja e ateou uma centelha. Começou a manejar o fole e este transformou a fagulha em chama.
Logo a forja crepitava com um fogo reluzente, que aqueceu o duende, o kender e a árvore.
Flint acomodou-se, decidido a experimentar de novo o conhaque, para confirmar se era tão bom como o julgara da primeira vez.
Era mesmo.
Estendeu o frasco a Tas, que bebeu e o devolveu ao duende.
Na forja as chamas crepitavam, cada vez mais quentes e vivas.
E, no céu escuro que pairava sobre Ansalon, uma nova estrela nasceu — uma estrela vermelha — que perdurará, imutável e para todo o sempre, como o símbolo de que, mesmo na Idade dos Mortais, a Humanidade não se encontra só.