LIVRO 3

1 A advertência. Os três se encontram. Tanis tem que escolher.

Tanis encontrava-se nas ameias mais altas da Torre do Sumo Sacerdócio, olhando para a estrada deserta que desembocava na cidade de Palanthas. Percorreu-a em espírito, chegou à cidade e imaginou o alvoroço.

Ao romper do dia, espalhara-se o boato da chegada iminente do inimigo. Era meio-dia. Fechadas as lojas e as tendas, as pessoas afluíram às ruas, escutando, ávidas, os aimorés. Quanto mais incríveis fossem, mais elas acreditavam.

Claro que, pela tardinha, o Suserano de Palanthas teria o seu discurso preparado. Postado à varanda, procederia à leitura, no qual tranqüilizava a população, afirmando que a Torre do Sumo Sacerdócio se erguia entre eles e o inimigo. Lida a reconfortante mensagem, se retiraria para jantar.

Tanis suspirou, dizendo:

— Quem me dera que alguém viesse me reconfortar!

E alguém veio, não pela estrada, antes por uma via muito pouco convencional, mas não lhe trouxe conforto nem tranqüilidade.

Tanis percorreu as ameias na direção leste, virou-se e preparava-se para retroceder, quando quase bateu num feiticeiro Veste Negra que lhe bloqueava o caminho.

— Mas o que... — Tanis agarrou-se com força ao alto do paredão, a fim de se equilibrar. — Dalamar! Onde estava?...

— Em Palanthas. Viajei pelas estradas da magia e não tenho tempo para ouvi-lo cuspindo perdigotos. É você o responsável por estas bandas?

— Eu? Credo! Não! Estou só...

— Então leve-me à presença de quem esteja — interrompeu-o Dalamar com impaciência. — E diga àqueles palermas para embainharem as espadas antes que os transforme em poças de metal fundido.

Vários cavaleiros, que se encontravam de vigia nas ameias, tinham sacado das espadas e rodeavam agora o elfo das trevas.

— Baixem as armas — disse-lhes Tanis. — Este é Lorde Dalamar, da Torre da Feitiçaria Suprema. É bem capaz de concretizar a ameaça, e vamos precisar de todas as espadas que pudermos arranjar. Um de vocês vá falar com Sir Thomas e diga-lhe que lhe solicitamos um encontro imediato.

— Meio Elfo, fala realmente a verdade quando se refere à necessidade de espadas — observou Dalamar, enquanto percorriam as ameias em direção aos aposentos interiores. — Embora eu ache que o que precisa mesmo é de um milagre...

— No passado, Paladino nos providenciou — respondeu Tanis. Dalamar relanceou o olhar pela torre.

— Sim, mas não vejo nenhum feiticeiro meio tonto murmurando rezas de encantamento para bolas de fogo e interrogar-se onde pôs o chapéu.

Detendo-se, o elfo das trevas virou-se para Tanis.

— Épocas sombrias se aproximam — disse. — Não devia encontrá-lo aqui, meu amigo. Deveria partir, voltar para casa, para junto da tua mulher. Se quiser, ajudo-o. Diga a palavra e envio-te imediatamente.

Tanis olhou para o elfo das trevas.

— As notícias que traz são tão más assim?

— É verdade, Meio Elfo — respondeu Dalamar com voz tranqüila. Tanis pôs-se a coçar a barba e respondeu:

— Primeiro ouvirei as notícias e depois decidirei.

— Faça como quiser — retorquiu Dalamar com um encolher de ombros. Recomeçou a andar, agora em passos rápidos, fazendo rodopiar as vestes negras em torno dos tornozelos. Os poucos cavaleiros por quem passaram, olharam o feiticeiro com uma expressão sinistra, afastando-se apressadamente.

Tanis entrou na sala do conselho. Uma escolta armada de cavaleiros foi ao encontro deles.

— Procuro Sir Thomas — anunciou Tanis.

— E ele quer falar contigo, meu senhor — respondeu o comandante da escolta. — Fui incumbido de transmitir que convocaram um Conselho de Cavaleiros para lidar com esta crise. Comunicaram a Sir Thomas que Lorde Dalamar chegou e traz notícias.

— De índole muito urgente — declarou Dalamar. O cavaleiro dirigiu-lhe uma vênia rígida e fria.

— Meu senhor Dalamar, Sir Thomas apresenta os seus agradecimentos pela sua vinda. Se quiser me transmitir as notícias, ou, caso prefira, ao meu senhor Tanis Meio Elfo, não o reteremos por mais tempo.

— Não podem reter-me — replicou Dalamar. — Não existem meios para me reter. Vim de livre vontade e desse modo partirei, depois de ter falado com Thomas de Thalgaard.

— Meu senhor. — O cavaleiro hesitou, debatendo-se entre a polidez e a política. — Colocas-nos numa situação muito difícil. Posso falar sem rodeios?

— Se isso abreviar o assunto, pode — respondeu Dalamar, cada vez mais impaciente.

— Meu senhor, como bem sabe, representa o inimigo e portanto...

Dalamar abanou a cabeça.

— Senhor cavaleiro — disse —, é certo que os seus inimigos estão perto, mas não me incluo entre eles.

— Talvez. — O cavaleiro não se mostrou convencido. — Mas foram as ordens que recebi. Pode se tratar de uma armadilha da sua Rainha soberana para enfeitiçar os nossos comandantes.

O rosto de Dalamar empalideceu de fúria.

— Senhor cavaleiro, se eu quisesse “enfeitiçar” os seus comandantes, o faria no conforto e segurança da minha casa! — respondeu. — Neste exato momento eu poderia...

— Mas não o fará — interveio rapidamente Tanis. — Lorde Dalamar veio de boa-fé. Garanto-o. Se for necessário, responderei com a vida.

— E eu também — ouviu-se uma voz calma, vinda de outro corredor.

Lady Crysania, conduzida pelo tigre branco e escoltada por um pequeno destacamento de cavaleiros, fez a sua entrada na sala do conselho. O tigre examinou intensamente cada presente, não com a expressão rápida e desconfiada de um animal, mas com o olhar veemente, pensativo e inteligente de um homem. E, talvez fosse produto da imaginação de Tanis, mas poderia jurar que Dalamar e o tigre trocaram, de esguelha, um sinal de aprovação.

O comandante e os seus homens caíram de joelhos, com a cabeça inclinada.

A Venerada Filha de Paladino obrigou-os a se levantarem e depois virou os olhos vazios na direção de Dalamar. O elfo das trevas curvara a cabeça, num gesto respeitoso, mas sem executar a vênia. Obedecendo à ordem que a dona lhe deu em voz meiga, o tigre conduziu-a até Dalamar, não sem antes interpor o seu corpo maciço entre os dois. Crysania estendeu a mão.

Dalamar aflorou-a com a ponta dos dedos.

— Agradeço o seu apoio, Venerada Filha — disse, embora com um leve sarcasmo.

Crysania virou-se para os cavaleiros.

— Agora, querem fazer o favor de nos escoltar, aos três, à presença de Sir Thomas de Thalgaard?

Embora fosse óbvia a relutância dos cavaleiros em escoltar Dalamar para outro lado que não as masmorras, não tiveram outra hipótese senão aquiescer. Os Cavaleiros da Solamnia serviam o deus Paladino, e a Venerada Filha era a representante suprema da igreja que se dedicava à adoração desse deus.

— Por aqui, meus senhores, Venerada Filha — disse o comandante, ordenando aos seus homens que formassem fileiras atrás deles.

— Venerada Filha, como sabia que me encontrava aqui? — perguntou Dalamar em voz baixa, não parecendo lá muito agradado. — Será que a igreja anda vigiando os meus movimentos?

— Meu senhor, Paladino observa todos os seus filhos, tal como o pastor o seu rebanho, sem esquecer as ovelhas negras — acrescentou, com um sorriso. — Mas não, Senhor Feiticeiro, desconhecia que se encontrava aqui. Circulam por Palanthas estranhos boatos. Ninguém soube me dar qualquer informação, de modo que decidi averiguar o que se passava.

A sacerdotisa realçou a palavra “ninguém”, acompanhando-a de um sorriso, o que levou Dalamar a examiná-la com mais atenção. Deu um passo em frente. O tigre imitou-o, com extrema dignidade, guiando os passos da dona e mantendo-se vigilante.

— Venerada Filha, pelo que afirma, deduzo que o seu deus não lhe contou nada do que se passa no mundo, é isso?

Crysania não respondeu, mas o seu rosto pálido e perturbado deixou transparecer o que pensava.

— Venerada Filha, não o pergunto movido por sentimentos de vingança triunfante — prosseguiu Dalamar. — Ultimamente, Nuitari, o meu próprio deus, tem guardado um estranho silêncio, tal como todos os deuses da magia. Quanto à minha Rainha — acrescentou Dalamar, encolhendo os ombros —, o poder de Nuitari está se desvanecendo, afetando, como conseqüência, o meu. O mesmo se passa com Lunitari e Solinari. Todos os magos são unânimes. É como se os deuses estivessem preocupados...

Crysania virou-se para ele.

— Meu senhor, tem razão. Quando ouvi aqueles boatos, comuniquei-os em oração ao deus. Está vendo o amuleto que uso em volta do pescoço? — perguntou, indicando um medalhão de prata, adornado com a imagem de um dragão feito em folha de ouro. — No passado, sempre que rezava a Paladino, sentia o seu amor me envolver. Este medalhão — acrescentou, tocando-o com ar reverente — começava a emanar uma luz suave. Sentia a alma apaziguada e a minha perturbação e receios desapareciam.

Manteve-se por um momento em silêncio e depois acrescentou, com voz doce:

— Ultimamente, este medalhão tem permanecido obscuro. Sei que Paladino escuta as minhas orações, sinto que pretende me reconfortar. Mas, receio que não tenha conforto para me oferecer. Receio que isso se deva à ameaça feita por Lorde Ariakan.

— Talvez — aquiesceu Dalamar, mas era evidente que isso não o convencia em absoluto. — É possível que logo o descubramos. Palin Majere atravessou o Portal.

— É verdade? — perguntou Crysania, consternada.

— Receio que sim.

— Como conseguiu entrar, se trancou o laboratório? Até colocou guardas para vigiá-lo!

— Senhora, foi convidado — respondeu Dalamar com secura. — Acho que adivinha por quem.

A cor fugiu do rosto de Crysania, que se tornou pálido. Os seus passos vacilaram. O tigre encostou-se a ela, oferecendo-lhe amparo e conforto.

Tanis precipitou-se para ajudá-la e segurou-lhe o braço. Sentindo-a tremer, olhou para Dalamar com ar zangado.

— Deixou Palin entrar? — inquiriu. — Devia tê-lo impedido!

— Meio Elfo, não tive outro remédio — replicou Dalamar, e os seus olhos escuros faiscavam. — Todos nós aqui experimentamos na pele o poder de Raistlin.

— Raistlin morreu — declarou Crysania com voz firme. A fraqueza momentânea passara rapidamente. Endireitando-se, libertou-se do abraço de Tanis. — Através do seu sacrifício conquistou a paz. Se Palin Majere foi atraído para o Abismo — acrescentou, e a sua voz suave traía a comiseração —, alguma outra força o arrastou.

Dalamar abriu a boca, mas o cenho carregado de Tanis, como que a adverti-lo, calou-o, embora os seus lábios esboçassem um trejeito irônico.

Os três fizeram o resto do percurso em silêncio, cada um ocupado com os seus próprios pensamentos e, a avaliar pela expressão sombria, nenhum se sentia lá muito satisfeito. O comandante os conduziu até a um longo corredor, decorado com bandeiras. Cada uma destas ostentava o brasão dos que se encontravam alistados.

O ar estava quente e parado e as bandeiras pendiam, imóveis. Examinando a longa fila, Tanis descobriu o brasão da família Majere, recentemente incluído pela admissão dos dois irmãos na cavalaria.

A bandeira ostentava um botão de rosa — símbolo de Majere, o deus responsável pelo nome da família — submerso numa caneca de cerveja espumosa. Tanis pensara sempre que o brasão se assemelhava mais à tabuleta de uma estalagem do que a um estandarte de cavalaria, mas fora Caramon quem o desenhara e orgulhava-se muito dele. Tanis amava demais o amigo para proferir uma palavra contra ele. Enquanto o examinava, dois pagens, montados em escadas de mão, envolveram a bandeira num pano preto.

— Meus senhores, Venerada Filha, queiram entrar por favor.

O comandante escancarou as portas que davam para uma sala ampla e convidou os três a falar perante o Conselho dos Cavaleiros.

Este reunia-se apenas em certas ocasiões, acordadas pela Medida Legislativa. Incluía medidas como a decisão quanto a estratégias bélicas, a transferência de ordens, a seleção prévia de lordes guerreiros para batalhas, a audiência de acusações de comportamento conforme o grau de cavaleiro, a distinção dos que executavam atos de bravura e a resolução de questões relacionadas com a Medida Legislativa.

O Conselho era constituído por três cavaleiros, representantes das três ordens: a Rosa, a Espada e a Coroa. Os mesmos presidiam a uma grande mesa, esculpida com os símbolos das ordens, que se encontrava do lado oposto à entrada para a sala do conselho. Durante as reuniões de conselho podiam estar presentes os cavaleiros cujos deveres assim o permitissem. Os que desejassem tomar a palavra perante o Conselho, permaneciam numa área desocupada, bem defronte da mesa.

Depois de recitado o Código dos Cavaleiros, Est Sularus oth Mithas, por todos os cavaleiros presentes no salão, por vezes, quando a ocasião era de júbilo, entoava-se o Hino dos Cavaleiros.

Nesta reunião, os três cavaleiros presentes recitaram o código, e sentaram-se sem entoar o hino.

— Devo declarar que se trata de uma ocasião histórica — comentou Sir Thomas depois de efetuadas as apresentações e de trazerem cadeiras para os visitantes. — E, me perdoem por dizer, não me agrada particularmente. Para falar sem rodeios, este encontro de vocês três, nesta altura... — Abanou a cabeça. — Cheira-me a calamidade.

— Meu senhor, diga antes que aqui nos fizeram comparecer para evitarmos a calamidade — disse Lady Crysania em voz gentil.

— Venerada Filha, rezo a Paladino para que tenha razão — replicou Sir Thomas. — Senhor Feiticeiro, vejo-te agitado, impaciente. Que notícias assim tão urgentes nos traz que justifiquem a presença de um Veste Negra diante do Conselho... algo que nunca aconteceu em todos os anais da cavalaria?

— Senhor — interveio vivamente Dalamar, determinado em não perder mais tempo —, soube, de fonte digna, que os Cavaleiros de Takhisis atacarão amanhã, pelo entardecer, esta fortificação.

— Amanhã? — perguntou Lady Crysania com um profundo arquejo. Ao seu lado, o tigre rugiu suavemente. Acalmou-o sussurrando-lhe palavras e afagando-lhe a cabeça. — Tão depressa? Como pode ser?

Tanis disfarçou um suspiro. Então era isso que Dalamar queria dizer quando me avisou para sair daqui, Se ficar, me envolverei na batalha. Tem razão. Devo partir, voltar para casa.

Estupefato, Sir Thomas de Thalgaard passeou o olhar por Dalamar, Tanis e Lady Crysania, voltando a fixá-lo em Dalamar. Os outros dois membros do Conselho, um Cavaleiro da Espada e um Cavaleiro da Coroa, permaneceram sentados, com um semblante carregado que não deixava transparecer o que pensavam. Ao cavaleiro de mais elevado estatuto coube a tarefa de falar primeiro.

Sir Thomas cofiou os longos bigodes, apanágio da cavalaria.

— Meu Excelentíssimo Dalamar, espero que não leve a mal se te perguntar por que motivo nos trouxeste tais notícias.

— Meu senhor, não vejo necessidade de te explicar a razão que me levou a fazê-lo — replicou Dalamar com frieza. — Basta dizer que vim aqui para avisá-los no sentido de efetuarem os preparativos possíveis para enfrentar a investida. Embora não possa responder pelos motivos que me moveram, Tanis Meio Elfo pode responder pela minha veracidade.

— Acho que posso responder pelos motivos dele — acrescentou Lady Crysania em voz baixa.

— Mas, se quiser saber como me inteirei, posso satisfazer facilmente tal pedido — prosseguiu Dalamar, indiferente à interrupção. — Encontrei-me há pouco na companhia de um Cavaleiro de Takhisis, um homem de nome Steel Montante Luzente.

— Filho de Sturm Montante Luzente — lembrou-lhe Tanis.

O rosto dos três cavaleiros ensombrou-se e franziram o cenho.

— O violador do túmulo do próprio pai — disse um deles.

— Diga antes o bafejado pela bênção do próprio pai — corrigiu Tanis, acrescentando, irritado: — Com mil raios, já compareci perante este conselho para explicar o que aconteceu!

Os três cavaleiros trocaram olhares de esguelha, mas guardaram silêncio. Tanis Meio Elfo era, na Solamnia, uma figura lendária. Herói de renome, exercia, nesta parte do mundo, uma poderosa influência. Após o referido incidente com Steel Montante Luzente no túmulo sagrado dos cavaleiros, fora solicitado a Tanis que comparecesse perante o Conselho dos Cavaleiros a fim de explicar porque motivo escoltara pessoalmente até à Torre do Sumo-Sacerdócio um mancebo que se conhecia ser leal à Rainha das Trevas, e o conduzira à sepultura, onde o jovem cometera o terrível sacrilégio de perturbar o repouso do heróico pai. Steel Montante Luzente destruíra o corpo, roubara a espada sagrada do progenitor e ferira vários cavaleiros enquanto tentava abrir caminho até à saída. Ainda por cima, Tanis Meio Elfo e o seu amigo Caramon Majere tinham ajudado e instigado o cavaleiro do Mal na sua fuga.

Tanis expusera a sua opinião a respeito do incidente. Segundo ele, Steel comparecera ali para prestar homenagem ao pai. Este presenteara-o com a espada, possivelmente na tentativa de desviar o jovem dos maus caminhos pelos quais enveredara. Quanto à ajuda prestada por Tanis e Caramon, ambos haviam jurado ao mancebo protegê-lo à custa da própria vida.

O Conselho dos Cavaleiros ouvira outros testemunhos, nomeadamente o da Venerada Filha Crysania, que falara em abono de ambos, acrescentando ter a firme convicção de que o próprio Paladino lhes guiara os passos até à torre, pois, embora o cavaleiro envergasse a armadura ornamentada com o lírio da morte, os fatos evidenciavam que, ao longo do percurso, até o fim, os Cavaleiros da Solamnia com quem deparara haviam tomado Steel Montante Luzente por um dos camaradas de armas.

Os cavaleiros mostraram-se incapazes de contradizer em absoluto um testemunho tão eloqüente e comovedor. Julgaram que Tanis Meio Elfo, embora possivelmente desencaminhado, agira movido pela honra. O incidente fora encerrado, mas, Tanis constatava-o agora, não esquecido.

Nem, ao que parece, perdoado.

Sir Thomas suspirou e voltou a cofiar os bigodes. Olhou para os outros dois que, à sua muda pergunta, aquiesceram afirmativamente em silêncio.

— Lorde Dalamar, agradeço-te o aviso — disse Thomas. — Devo dizer-te que a tua informação corresponde em absoluto à que obtivemos de outras fontes. Esperávamos este ataque, embora não tão cedo. Estamos preparados.

— Não vejo grandes preparativos — respondeu Dalamar em tom ambíguo. Debruçando-se na cadeira, apontou para o mapa que se encontrava desdobrado sobre a mesa. — Senhor, não vai enfrentar uma pequena força de cavaleiros. Trata-se de um exército, de um grande exército de muitos milhares de efetivos. Recrutaram bárbaros de uma região distante para lutar por eles. Possuem feiticeiros, feiticeiros poderosos, como me foi dado constatar, que obedecem apenas a leis de magia muito próprias.

— Temos consciência disso — começou Sir Thomas.

— Mas, senhor, o que possivelmente não saberão é que atravessaram Neraka. Sacerdotes das trevas penetraram nas ruínas assombradas e convocaram as sombras dos mortos para se juntarem à luta. Pararam no Baluarte de Dargaard e não tenho dúvidas de que, entre as forças atacantes, irão encontrar Lorde Soth e os seus guerreiros. Lorde Ariakan os lidera. Vocês mesmos o treinaram! Conhecem o seu valor melhor do que eu.

Isso era óbvio, a avaliar pela expressão soturna do rosto dos cavaleiros. Sir Thomas agitou-se na cadeira.

— Lorde Dalamar, tudo o que disse é absolutamente correto. Os nossos batedores confirmaram. No entanto, e aqui entre nós, enquanto houve homens de fé a defendê-la, a Torre do Sumo Sacerdócio nunca tombou.

— Talvez porque nunca houve homens de fé atacando-a — disse Lady Crysania inesperadamente.

— Os Cavaleiros de Takhisis foram criados juntos desde a infância — disse Dalamar. — São incondicionalmente leais à sua Rainha, aos comandantes e uns aos outros. Sacrificarão tudo, incluindo a vida, em prol da causa. Vivem segundo um código de honra tão rígido como o seu. Para falar a verdade, Lorde Ariakan concebeu-o nos moldes do seu. Meus senhores, sou de opinião que nunca se defrontaram com tamanho perigo.

Dalamar fez um gesto na direção da janela.

— Você diz que estão preparados, mas o que vocês fizeram? Olho lá para fora e vejo a estrada principal, que deveria se encontrar cheia de cavaleiros a cavalo mais os respectivos servidores, de linhas de soldados de infantaria, carroças e carretas equipadas com armas e mantimentos. Contudo, a estrada encontra-se vazia!

— Sim, está vazia — replicou Sir Thomas. — Quer saber porque motivo? — Dobrando as mãos, pousou-as no mapa e passeou o olhar pelos três. — Porque foi tomada pelo inimigo.

Tanis deu um suspiro e esfregou o queixo barbudo.

— Dalamar, enviamos batedores. Viajaram montados em dragões, a fim de convocar os cavaleiros às armas. Partiram há três dias. Aí tem a resposta.

— Os cavaleiros com terras e castelos nas fronteiras orientais mandaram informar que já se encontravam cercados. Alguns nem chegaram a responder — disse Sir Thomas baixinho. — Em muitos casos, os mensageiros enviados para trazer os cavaleiros não regressaram.

— Entendo — murmurou Dalamar, franzindo o cenho, imerso em seus pensamentos. — Perdoem-me. Não dei por isso.

— Os exércitos de Ariakan movimentam-se à velocidade de um rastilho aceso. Está mandando as tropas, bagagens e engenhos para cercos efetuarem a travessia do rio Vingaard valendo-se de uma armada imensa de barcaças. Nesta época do ano, o rio encontra-se, em geral, caudaloso, mas agora, devido à seca, está uniforme e plácido como uma caneca de cerveja morna. As barcaças deslocam-se velozmente, manobradas pelos bárbaros do leste.

— Nenhum obstáculo poderá deter o exército dele. Conta, nos seus efetivos, com animais enormes conhecidos por mamutes, que gozam da fama de derrubarem árvores vivas com a cabeça, de arrancarem os troncos com a longa tromba e espezinharem-nos como se fossem rebentos. Os céus são sobrevoados por dragões do Mal, que guardam o exército e que com o seu bafo do medo envenenam o coração e a mente de quem se atrever a enfrentá-los. Desconheço os mortos-vivos de Neraka ou Lorde Soth, mas o que posso afirmar é que não me surpreendem.

Sir Thomas endireitou-se, com uma expressão grave, embora implacável e digna no rosto. Falou em voz sóbria, de olhar firme e imperturbável.

— Meus senhores, senhora, estamos preparados. Quanto menor for o número, maior será a glória. É o que dizem. — O cavaleiro esboçou um leve sorriso. — Além disso, Paladino e Kiri-Jolith estarão conosco.

— Que as bênçãos deles os acompanhem — disse baixinho a Venerada Filha Crysania, tão baixinho que quase não a ouviram. Pensativa, sorumbática, acariciou a cabeça do tigre.

Sir Thomas olhou-a preocupado.

— Venerada Filha, o dia está se escoando. Deve regressar a Palanthas antes que a noite caia. Mandarei escoltá-la...

Lady Crysania levantou a cabeça.

— Nem pense em semelhante tolice, Sir Thomas. Precisa de todos os homens de que dispõe. Um dragão dourado, que me serve em nome de Paladino, trouxe-me aqui. O Chama de Ouro nos levará de volta em segurança. — Acariciando o tigre, que se levantara, acrescentou: — Tandar, o meu guia, velará para que nenhum mal me aconteça.

O tigre Tandar olhou fixamente para todos e Tanis não teve dúvidas de que, junto daquele companheiro feroz, selvagem e leal, Lady Crysania ficaria tão segura como na companhia de um regimento de cavaleiros.

A sacerdotisa levantou-se e fez menção de partir. Os cavaleiros, Tanis e Dalamar imitaram-na, num gesto de respeito.

— Vários sacerdotes que irão ajudá-los já se encontram a caminho. Conduzem uma carroça cheia de mantimentos e chegarão aqui por volta do anoitecer. Senhor, ofereceram-se como voluntários — acrescentou, antecipando-se às objeções de Sir Thomas. — Acho que vai precisar deles.

— Serão bem-vindos — respondeu o cavaleiro. — Obrigado, Venerada Filha.

— É o mínimo que posso fazer — replicou ela com um suspiro. — Adeus. Que os deuses estejam convosco. Me lembrarei de vocês em minhas orações.

Virou-se e, guiada pelo tigre, abandonou os aposentos. Ao passar por Tanis, este a ouviu acrescentar, num doce murmúrio:

— Se é que alguém me ouve...

— Eu também estou de partida — disse Dalamar. — Ofereceria o contributo da magia, mas sei que não aceitariam. Não obstante, lembro-os que Lord Ariakan atribuiu aos feiticeiros que integram o seu exército um estatuto e uma categoria idênticos aos dos cavaleiros.

Sir Thomas desculpou-se convenientemente.

— Digno Feiticeiro, estou ciente disso e agradeço-lhe a oferta. Os nossos cavaleiros nunca praticaram a arte de aliar o aço à feitiçaria. Receio que, em tais circunstâncias, os danos superassem o que de bom fosse feito.

— Senhor, provavelmente tem razão — respondeu Dalamar com um sorriso sardônico. — Bom, desejo a todos a melhor sorte. Espero não melindrá-los quando digo que precisarão dela. Adeus.

— Obrigado, Lorde Dalamar — replicou Sir Thomas. — É bem possível que a tua advertência tenha salvo o dia.

Dalamar encolheu os ombros, como se o assunto já não lhe interessasse. Olhando para Tanis, perguntou:

— Acompanha-me?

Sir Thomas mirou Tanis. Todos os presentes na sala fixaram os olhos em Tanis.

Será que partiria ou ficaria?

Tanis cofiou a barba, ciente de que teria de tomar uma decisão. A única forma de partir em segurança seria enveredando pela trilha de Dalamar, viajar pelas estradas da magia.

Aproximando-se de Tanis, Sir Thomas pediu para lhe falar a sós.

— Fico à sua espera, Meio Elfo — disse Dalamar, acrescentando, contundente: — Mas não por muito tempo.

Tanis e Sir Thomas saíram e encaminharam-se para uma pequena varanda que se situava do lado de fora da sala do Conselho de Cavaleiros. O Sol ainda não se pusera, mas as sombras das montanhas, derramando-se sobre a torre, apressavam o cair da noite. Num pátio embaixo, encontrava-se Chama de Ouro, um animal dourado, enorme e magnífico, o dragão às ordens da Venerada Filha Crysania. Outros dragões, a maioria prateados, sobrevoavam a torre em círculos, mantendo-se de atalaia.

Sir Thomas inclinou-se sobre a balaustrada e perscrutou as trevas que se adensavam.

— Tanis, vou falar sem rodeios — disse o cavaleiro em tom calmo. — Posso utilizar o teu auxílio. Não apenas a tua espada. Preciso do teu comando. Os cavaleiros que ficaram para defender a torre são sobretudo garotos, recém-integrados na cavalaria. Os respectivos pais e irmãos, a quem, em circunstâncias normais, eu delegaria o comando, encontram-se nas suas terras, defendendo as mansões e as cidades.

— Que é onde eu deveria estar — disse Tanis.

— Pode crer que sim — concordou rapidamente Sir Thomas. — Se partir, serei o primeiro a desejar-lhe sorte. — Virando-se, o cavaleiro fitou Tanis nos olhos. — Conhece a situação tão bem quanto eu. Enfrentamos forças esmagadoras. A Torre do Sumo Sacerdócio tem que agüentar, caso contrário toda a Solamnia cairá. Ariakan assumirá o controle do Norte de Ansalon e ali estabelecerá a sua base de operações. Daí, atacará a seu bel-prazer o Sul. Longos meses decorrerão antes de podermos nos reagrupar e reconquistar a torre... se isso for possível.

Tanis sabia disso, sabia perfeitamente. Também sabia que, se há cinco anos, o povo de Ansalon tivesse dado ouvidos a ele, a Laurana, a Lady Crysania e, sim, até a Dalamar, isso nunca aconteceria. Se ao menos os Elfos, os Duendes e os Humanos pusessem de lado as suas questões e preocupações mesquinhas e se juntassem para formar a aliança por eles proposta, a torre possuiria defensores, mais do que os necessários.

Pelo espírito de Tanis desfilaram as imagens: arqueiros elfos alinhados nas ameias, valentes guerreiros duendes postados junto aos portões, todos a lutar ombro a ombro com os seus camaradas humanos.

Um quadro bonito, mas que nunca seria pintado.

Se eu regressar para casa, pensou, irei encontrá-la vazia.

Laurana não estaria lá. Ela e Tanis já haviam trocado as despedidas. Na altura, ambos saberiam que esta partida poderia ser a última. As recordações afluíram-lhe ao espírito.

Ao efetuar o trajeto de Consolação à Torre do Sumo Sacerdócio, Tanis parara em casa, à espera do acolhimento caloroso que sempre recebia.

Tal não aconteceu.

Ninguém acorreu dos estábulos para acudir às necessidades do grifo sobre o qual voara. Nenhum servo veio recebê-lo à porta. Os que se encontravam por ali, trazendo e levando mensagens, dirigiam-lhe saudações apressadas e desapareciam noutras partes da grande mansão. Não viu Laurana, a mulher, em parte alguma. Ao meio da entrada encontrava-se um grande baú de viagem, que lhe dificultou a passagem. Dos andares de cima veio-lhe o som de vozes e passos. Subiu as escadas, à procura de uma resposta para todo aquele desassossego e confusão.

Foi encontrar Laurana no quarto. Viam-se roupas espalhadas pela cama e por todas as outras superfícies desocupadas, dispostas em cadeiras e penduradas nos biombos pintados à mão. No meio do quarto encontrava-se outro baú de viagem, menor do que o do andar de baixo. Laurana e três criadas escolhiam, dobravam e embalavam as peças, sem perceber que Tanis se encontrava postado à soleira.

Tanis permaneceu em silêncio, aproveitando esses instantes fugazes para observar a mulher sem que esta desse por isso, ver o fulgor do Sol refletir-se no seu cabelo dourado, admirar-lhe a graciosidade dos movimentos, ouvir a música que fluía da sua voz. Dela captou uma imagem que guardaria na mente, tal como guardava perto do coração o seu retrato pintado em miniatura.

Laurana era elfa e os elfos não envelhecem tão rapidamente como os humanos. Para alguém de fora, parecia, à primeira vista, no início da idade adulta. Se tivesse permanecido na pátria dos Elfos, possivelmente manteria esse aspecto de juventude eterna. Mas não o fizera. Optara por casar com um mestiço, cortara os vínculos com a família e os amigos e passara a residir em território dos humanos. E, nesse entretanto, passara os anos tentando, infatigável e incessantemente, pôr termo ao conflito que opunha as duas raças.

O trabalho, os fardos da vida, os períodos de esperança e depois a destruição dos sonhos acabaram por desbotar a vibrante serenidade e pureza da elfa. Não havia rugas ou vincos sulcando-lhe a pele, mas nos olhos pairava a sombra da tristeza. O cabelo permanecia da cor do ouro, sem laivos grisalhos, mas o seu brilho diminuíra. Qualquer elfo que olhasse para Laurana, diria que envelhecera prematuramente.

Ao admirá-la, Tanis sentiu por ela um amor mais ardente do que nunca. E nesse momento soube que possivelmente seria aquela a última vez que se encontravam nesta vida.

— Hum-hum! — pigarreou em voz estridente.

Sobressaltadas, as servas ficaram sem respiração. Uma deixou cair o vestido que dobrava.

Debruçada na arca, Laurana levantou a cabeça, endireitou-se e sorriu.

— Que vem a ser isto tudo? — perguntou Tanis.

— Acabem de embalar as coisas — indicou Laurana às criadas — e coloquem o resto das roupas na despensa. — Depois abriu caminho por entre as capas e chapéus até finalmente chegar junto do marido.

Beijou-o com afeto e ele reteve-a contra si. Guardando um silêncio cúmplice, por um momento deixaram que os corações batessem em uníssono. Depois, Laurana conduziu Tanis ao gabinete de trabalho e fechou a porta. Virou-se para ele, de olhos brilhantes.

— Adivinha! — exclamou e, antes que respondesse: — Recebi uma mensagem de Gilthas! Convidou-me para ir a Qualinesti!

— O quê! — respondeu Tanis, estupefato.

Laurana empenhara-se infatigavelmente no sentido de obrigar os elfos de Qualinesti a admiti-la nos seus territórios, a fim de estar perto do filho. Vezes sem conta vira a sua proposta recusada e fizeram-lhe saber que se ela ou o marido se aventurassem perto da fronteira do domínio elfo, correriam perigo de vida.

— Porquê esta mudança repentina? — perguntou Tanis, soturno. Laurana não respondeu. Desdobrou o pergaminho que fora selado com o timbre do Sol, o timbre do Orador do Sol, agora o título de Gil.

Tanis examinou o selo quebrado, desdobrou o pergaminho e leu-o com atenção.

— É a caligrafia de Gil — disse —, mas não as palavras do nosso filho. Alguém as ditou e ele escreveu o que lhe mandaram.

— É verdade — replicou Laurana, imperturbável —, mas continua a ser um convite.

— Um convite para a catástrofe — disse Tanis abruptamente. — Mantiveram Alhana Brisa das Estrelas prisioneira. Ameaçaram-na de morte e estou certo de que a assassinariam caso Gil se recusasse a ceder aos esquemas dos senadores. Trata-se de uma armadilha.

— Ora, é claro que é, tonto! — respondeu-lhe a esposa, com um brilho divertido no olhar. Deu-lhe um beijo rápido na face e acariciou-lhe a barba, cujos fios grisalhos ele já desistira de contar. — Mas, como o querido Flint costumava dizer: “Uma armadilha só funciona quando, sem a ver, caímos lá.” Pressinto-a a léguas de distância. Ora — acrescentou, risonha, para aborrecê-lo —, até você a viu, mesmo sem por os óculos!

— Só uso para ler — respondeu Tanis, fingindo-se irritado. O fato de estar envelhecendo constituía o tema de uma piada que há muito partilhavam. Estendeu-lhe os braços e ela aninhou-se contra o marido. — Presumo que não recebi um convite idêntico, não é verdade?

— Não, meu querido — respondeu ela em tom gentil. — Lamento. — Afastando-se, olhou-o nos olhos. — Quando chegar lá, tentarei...

— Não conseguirá — respondeu ele, abanando a cabeça. Mas folgo por, ao menos você se encontrar lá. A Alhana e o Porthios...

— A Alhana! O bebê! Não cheguei a perguntar! Como...

— Estão ótimos. Ótimos. Mãe e filho. E, não pode perder isto: se visse o Porthios segurando o bebê, nem o reconheceria.

— Reconheceria — disse Laurana — Afinal de contas, é o meu irmão mais velho. Sempre foi gentil e afetuoso comigo. Foi sim — acrescentou, vendo o olhar de dúvida de Tanis. — Mesmo quando se mostrava casmurro e preconceituoso, eu sabia que tentava me proteger da dor e do sofrimento.

— Não conseguiu — replicou Tanis, cheio de remorsos. — No fim das contas casou comigo e olhe para onde eu te trouxe.

— Trouxe-me para casa, adorado marido — disse Laurana baixinho. — Trouxe-me para casa.

Sentaram-se e falaram por longo tempo, do passado, dos amigos distantes, dos amigos desaparecidos deste mundo. Falaram de Gil, partilharam reminiscências, o amor, esperanças, receios. Falaram do mundo, das perturbações antigas e novas que o agitavam. Sentaram-se e, de mãos dadas, falaram, sabendo, sem proferir palavras, que viviam um momento precioso que em breve acabaria.

Despediram-se. Nessa noite, ele voaria para o norte, a fim de chegar no dia seguinte à Torre do Sumo Sacerdócio. Ela iniciaria naquela manhã a viagem para Qualinesti.

À meia-noite, ela acompanhou-o até à porta. Os servos estavam dormindo. A casa encontrava-se em silêncio e, em breve, vazia, pois Laurana e Tanis haviam concordado em despedir os criados. Sabiam que ambos permaneceriam ausentes por longo, longo tempo. Sobre a casa já pairava o vazio. Os seus passos ressoaram na quietude.

Quando se fossem deste mundo, quem sabe se ecoariam sempre assim. Quem sabe se os seus espíritos, espíritos abençoados de amor e riso, perambulariam pela casa.

Estreitaram-se um contra o outro, murmuram palavras entrecortadas de amor e despedida e afastaram-se.

Olhando para trás, Tanis avistou Laurana postada à soleira da porta aberta, com o luar a banhá-la. De olhos secos, ela sorriu e acenou com a mão.

O marido sorriu e retribuiu o aceno.

Trouxe-me para casa, ecoaram as palavras. Trouxe-me para casa.

As recordações foram-se esvaindo. Tanis ponderou a decisão. Podia voltar para a sua mansão, mas lá se encontraria só — nessa casa vazia, tão vazia e palpitante de ecos. Viu-se a percorrer o assoalho, interrogando-se sobre o que estaria acontecendo na torre, interrogando-se se Laurana estaria em segurança, interrogando-se se Gil estaria bem, interrogando-se se Palanthas já sofrera o ataque, consumido de impaciência por nada saber, precipitando-se para a porta sempre que ouvia cascos a escarvar o solo, culpando-se...

Pedir aos deuses que os guiem.

No pátio embaixo, a Venerada Filha Crysania sentara-se na garupa de Raio de Ouro. Com ar protetor, o tigre com olhos humanos agachara-se ao lado. Olhando-a, ocorreram a Tanis as palavras dela.

Se é que algum me ouve...

O tigre levantou a cabeça e olhou diretamente para Tanis. E, como se o guia lhe tivesse transmitido alguma informação, Crysania pousou no meio elfo os olhos vazios que pareciam ver tanto. Depois, ergueu a mão, como que a abençoá-lo... ou seria um adeus?

A dor, por ter de optar, desapareceu. Tanis sabia agora que já tomara uma decisão. Esta fora assumida há muito, no exato momento em que, na Estalagem da Última Casa, o bastão azul de cristal, a Lua Dourada e a Brisa do Rio haviam entrado na sua vida. Tanis recordou o momento e as palavras memoráveis que dissera na ocasião, palavras que lhe mudaram a vida para sempre.

— Desculpe! Disse alguma coisa? — Sir Thomas olhava o meio elfo com perplexidade e alguma preocupação.

Provavelmente, achava que a tensão era demasiada para o ancião. Com um esgar, Tanis abanou a cabeça.

— Senhor, não ligue. Apenas revivia recordações antigas.

Desviou o olhar de Lady Crysania e pousou-o num ponto da ameia, um ponto assinalado por uma mancha escarlate, um lugar reverenciado pelos cavaleiros, que nunca o pisavam, evitando passar sobre as pedras manchadas de sangue e contornando-as num respeitoso silêncio. Tanis quase conseguia ver Sturm postado ali e o meio elfo soube que fizera a escolha certa.

Tal como então, Tanis repetira as palavras. Não admira que Sir Thomas se mostrasse perplexo. Não se tratava de palavras inspiradas nem estas ecoariam pelas abóbadas da História. Porém, contavam algo a respeito daquele grupo estranho, disparatado e inverosímil de amigos que haviam empreendido mudar o mundo.

Saímos pela cozinha.

Rindo, Tanis virou-se e regressou ao interior da torre.

2 O regresso. O julgamento. A sentença é proferida.



Caia a noite nas planícies da Solamnia, embora fossem poucos os que, no interior do acampamento dos Cavaleiros de Takhisis, dessem por isso. Os exércitos das trevas haviam banido as trevas. As fogueiras estavam proibidas, pois o Senhor de Ariakan não pretendia atear um incêndio nas planícies ressequidas pela seca. Contudo, os Cavaleiros do Abrolho, os feiticeiros de vestes cinzentas, tinham equipado o local com globos de cristal enormes, que derramavam um fulgor cinzento e incandescente. Suspensos dos ramos das árvores, os globos convertiam a noite num dia fantasmagórico.

Mesmo a alguma distância, Steel vislumbrou a luz. O Senhor de Ariakan desdenhara ocultar os seus contingentes nas trevas. Pretendia que o inimigo visse o poder imenso do seu exército e perdesse o ânimo. O próprio Steel, que sobrevoava em círculos o acampamento, montado na garupa do dragão azul, sentiu-se impressionado. Fulgor aterrou num campo lavrado, cujas colheitas se encontravam ressequidas pelo Sol. Os pegadores de dragões que acorreram para ajudar o cavaleiro a desmontar, apontaram-lhe na direção do campo principal e viraram-se para o dragão, a fim de lhe prestarem assistência.

O único desejo de Fulgor era juntar-se de novo aos seus camaradas. A fêmea ouvira-lhes o apelo antes mesmo de enxergá-los e depois de confirmar que só na manhã seguinte Steel precisaria dos seus serviços, levantou vôo em direção ao ponto onde se encontravam reunidos os dragões azuis.

Estes eram a montaria preferida dos Cavaleiros de Takhisis. Os dragões são animais muito autônomos e, em geral, com fraca opinião a respeito da Humanidade. Muitos acham difícil acatar ordens dadas por quem consideram seres inferiores e em relação a certas espécies de dragão, tal revela-se impossível.

Os dragões negros são tortuosos, egoístas e não inspiram confiança, nem sequer àqueles a quem servem objetivamente. Não percebem qual a finalidade de se “sacrificarem” por outra causa que não a própria e, embora possam ser induzidos ao combate, é bem possível que deixem a batalha ao meio para prosseguirem os seus objetivos.

Durante a Guerra da Lança, foram os dragões vermelhos a constituir a montaria preferida de inúmeros comandantes, incluindo o infame Chefe Supremo dos Dragões Verminaard. Enormes, expelindo fogo e pérfidos, os dragões vermelhos fartaram-se das sutilezas do tipo de guerra de Ariakan. Para eles, atacar uma cidade significava queimá-la, saqueá-la, destruí-la e matar tudo o que se movesse dentro desta. O conceito da cidade intacta, dos respectivos habitantes vivos e de boa saúde, ser, para a Rainha das Trevas, de valor mais prático do que um monte de cascalho e de cadáveres putrefatos constituía, para os dragões vermelhos, um anátema. Melhor seria deixar a fumaça dos restos calcinados e o fedor da morte proclamar a glória de Sua Majestade, sem esquecer o brilho do ouro arrecadado nos covis dos dragões vermelhos.

Durante a última Guerra do Dragão, os dragões verdes revelaram-se ineficazes. Estes só lutam quando encurralados. Preferem recorrer aos seus poderosos encantamentos mágicos para enlear o adversário. Pelo que, os comandantes militares lhes merecem pouco respeito, embora obedeçam aos Cavaleiros do Abrolho — os feiticeiros de vestes cinzentas — quando acham que isso irá beneficiá-los.

Acostumados a viver em climas frios, os dragões brancos, sob o calor inusitado e devastador do Verão, que transformara as massas flutuantes de gelo em rios e lhes derretera as cavernas de gelo, desapareceram por completo.

O Senhor de Ariakan escolhera para montaria dos seus cavaleiros, os dragões azuis e recolhera bons dividendos por isso. Estes animais gostavam mesmo dos mortais e votavam uma lealdade incrível entre si e aos respectivos donos. Acatavam as ordens, lutavam bem enquanto unidade coesa e — fato mais importante — conseguiam entender claramente a Visão e o papel que desempenhavam nela.

Steel deixou que Fulgor se juntasse aos companheiros, que a acolheram com gritos de alegria, proferidos na linguagem deles. Alguns dragões azuis executavam círculos no ar, montando guarda, mas a grande maioria encontrava-se no solo, descansando antes da grande batalha. Ariakan não temia a investida. Os flancos encontravam-se salvaguardados. O seu exército imenso derramara-se pelo Norte de Ansalon como um fogo descontrolado, consumindo tudo à passagem.

Steel penetrou no acampamento a pé e procurou o estandarte que assinalaria a localização do seu batalhão. Logo constatou ser uma tarefa quase impossível, atendendo às dimensões das forças reunidas na planura. Verificando que poderia levar a noite inteira nesta busca sem nunca chegar ao destino, deteve-se e inquiriu junto de um oficial, que o orientou para o local correto.

Trevalin encontrava-se reunido com os seus oficiais. A chegada de Steel, calou-se e fez um gesto ao cavaleiro para que se juntasse a eles.

— O cavaleiro guerreiro Montante Luzente apresenta-se ao serviço, meu comandante — disse Steel, fazendo a continência.

— Montante Luzente! — disse Trevalin com um sorriso. — Folgo por te ver. Sinceramente. Parece que havia quem pensasse que não voltaria!

Steel carregou o cenho, pois isso constituía uma afronta à sua honra. Sentiu-se no direito de confrontar quem o caluniava.

— E quem seria, meu subcomandante?

— A Dama da Noite, responsável, antes de mais nada, por te enviar nessa estúpida missão — respondeu Trevalin com uma careta, como se experimentasse na boca algo ruim. — Atenção, não o disse diretamente. Melhor do que ninguém ela sabe não ser prudente insultar publicamente a honra de um dos meus cavaleiros. Mas andou o dia todo por aí com insinuações. Homem, descontraia e esqueça isso. Tem preocupações mais urgentes.

O sorriso de Trevalin converteu-se num sulco rígido e soturno. Steel adivinhou o que vinha a seguir.

— O Senhor de Ariakan esteve aqui em pessoa à sua procura. Deixou ordens. Tem que comparecer imediatamente à sua presença. — A expressão de Trevalin suavizou-se e este pousou a mão no braço de Steel. — Montante Luzente, acho que tenciona levá-lo esta noite a julgamento. Procedeu assim com outros. “Para manter a disciplina, há que se agir depressa”, afirma. — Trevalin esboçou um gesto. — A tenda dele fica ali, no centro. Fiquei de te acompanhar. É melhor irmos já. O Senhor de Ariakan disse para se apresentar de imediato.

Steel contraiu o maxilar. Ia ser julgado aquela noite e, quase com certeza, condenado. Seguiria-se a execução. As lágrimas queimaram-lhe as pálpebras, mas não se tratava de lágrimas de medo, antes de amargo desapontamento. No dia seguinte, os cavaleiros atacariam a Torre do Sacerdócio Supremo, no que se pretendia constituir a batalha decisiva da campanha, e ele a perderia.

Lentamente, meio cego pelas lágrimas, vendo tudo enevoado à sua volta, desembainhou a espada do pai e estendeu-a a Trevalin.

— Meu subcomandante, apresento-lhe a minha rendição — disse.

A espada dos Montante Luzente gozava a reputação de ter pertencido a Bertel Montante Luzente, um dos antigos heróis da cavalaria. Ao longo dos séculos, fora passando de pai para filho e, segundo a lenda, só se quebraria se o ânimo do homem que a empunhava quebrasse primeiro. A espada repousava junto ao defunto, aguardando a hora de passar de novo para as mãos de um Montante Luzente, quando este atingisse a idade conveniente. A sua lâmina de aço antiga, que Steel mantinha amorosamente polida, reluzia, embora não se tratasse do frio clarão pardo dos feiticeiros de Takhisis. A espada irradiava uma luz peculiar, viva, de prata.

Trevalin olhou para o punho, decorado com o pica-peixe e a rosa — os símbolos dos Cavaleiros da Solamnia — e abanou a cabeça.

— Não a tocarei. Amanhã vou precisar das minhas mãos. Não pretendo vê-las consumidas pela cólera de Paladino. Espanta-me você poder utilizar tal artefato e sair ileso. A Dama da Noite também se admira com o fato. Foi uma das observações que proferiu contra você.

— A espada pertenceu ao meu pai — respondeu Steel, afivelando o cinto em volta da bainha com arrogante precaução. — Recebi permissão do Senhor de Ariakan para a usá-la.

— Eu sei, e a Dama da Noite também. Montante Luzente, interrogo-me sobre o que terá feito para ela te odiar tanto assim. Ah, não interessa. Quem pode assegurar o que vai na cabeça dos feiticeiros? Espere aqui enquanto informo os outros para onde vamos.

O trajeto não foi longo e o julgamento também não.

Ao que parece, Ariakan mandara montar guarda para o avisarem da chegada deles pois um cavaleiro do estado-maior do suserano reconheceu-os e conduziu-os através da multidão densa, mas ordeira, de oficiais, mensageiros e ajudantes que aguardavam até conseguirem obter a atenção de Ariakan.

O cavaleiro encaminhou-os para uma tenda grande, sobre a qual tremulava a bandeira de Ariakan; preta, adornada com um lírio da morte entrelaçado numa espada. O suserano encontrava-se sentado a uma pequena mesa em pau-preto, uma prenda dos seus homens por ocasião do aniversário da fundação da cavalaria. A mesma viajava sempre com Ariakan, incluída na sua bagagem. Nessa noite, a madeira preta polida encontrava-se quase toda coberta de mapas cuidadosamente atados e postos de lado. No centro da tenda, defronte de Ariakan, erguia-se uma caixa enorme, cheia de areia e de pedras, dispostas no sentido de representarem o campo de batalha.

A Caixa da Batalha, concebida por Ariakan, enchia-o de orgulho. A areia e as pedras podiam ser alisadas e reconstituídas para formarem qualquer tipo de terreno. Havia pedras grandes representando as montanhas de Vinegaard. Palanthas — com os seus edifícios em ouro, rodeados por uma muralha feita com seixos — localizava-se no canto ocidental da caixa, próximo de um entalhe feito a lápis-lazúli que constituía a baía de Branchala. No desfiladeiro, entre as montanhas, encontrava-se uma Torre do Sumo-Sacerdócio em miniatura, esculpida em jade branco, e junto desta viam-se pequenos cavaleiros feitos de prata, assim como dragões de prata e alguns, poucos, de ouro.

Os Cavaleiros de Takhisis, feitos de obsidiana reluzente, cercavam a torre. Empoleirados nas pedras, viam-se dragões em safira azul, com as cabeças apontadas numa única direção: a torre. Fora assim determinada a disposição da batalha. Cada batalhão já recebera as suas ordens. Steel viu a bandeira do seu, conduzida por um cavaleiro minúsculo, montado num dragão azul minúsculo.

— Cavaleiro Guerreiro Montante Luzente — ouviu-se uma voz severa e profunda. — Aproxime-se.

A voz era de Ariakan. Steel e o subcomandante Trevalin avançaram, ambos conscientes dos olhares dos que se apinhavam do lado de fora da tenda.

Ariakan encontrava-se sozinho à mesa, escrevendo num grande livro com capa de couro, a história das suas batalhas, que lhe ocupava todos os momentos disponíveis. Steel encontrava-se suficientemente próximo para ver marcas nítidas na página, que quase correspondiam à disposição das tropas representadas na Caixa da Batalha.

— Meu Senhor, o subcomandante Trevalin apresenta-se na companhia do prisioneiro, conforme ordenado.

Ariakan acrescentou um toque final, fez uma breve pausa para rever o que escrevera e, chamando um ajudante, pôs o livro, aberto, de lado. O ajudante cobriu a página com areia, a fim de secar a tinta, e retirou o volume.

Foi quando o Senhor da Noite, Comandante e fundador dos Cavaleiros de Takhisis, virou a sua atenção para Steel.

Ariakan estava na casa dos 50, no auge da virilidade. Homem alto, forte, bem proporcionado, continuava um guerreiro apto que, nas justas e nos torneios, rivalizava com os melhores. Fora um jovem bonito. Agora, que atingira a meia-idade, com o seu nariz aquilino e os seus luzidios e perscrutadores olhos negros, lembrava um gavião-dos-mares. Constituía uma imagem apropriada pois a mãe, filha de Takhisis, fora propositadamente designada para ser Zeboim, a deusa dos mares.

O cabelo, embora grisalho nas têmporas, era espesso e preto. Usava-o comprido, preso na nuca com uma tira de couro entrançada, negra e prateada. Não tinha barba, o que lhe realçava a pele queimada e castigada pelas intempéries. Era inteligente, conseguia ser encantador quando lhe convinha, e gozava de grande respeito entre os que o serviam. Tinha a reputação de leal e justo e, ao mesmo tempo, obscuro e frio como as profundezas do oceano. A sua dedicação ia, de corpo, mente e alma, para a rainha Takhisis, e o mesmo esperava dos que lhe eram leais.

Ao mirar Steel, que ele introduzira na cavalaria quando o moço tinha 12 anos, não revelava piedade nem compaixão, embora a tristeza lhe ensombrasse o olhar. Steel ficaria surpreendido, e possivelmente desapontado com o seu comandante, se assim não fosse.

— O acusado, o cavaleiro guerreiro Montante Luzente, encontra-se diante de nós. Onde está o acusador?

Da multidão emergiu a feiticeira veste cinzenta que contribuíra para o envio de Steel na fatídica missão.

— Senhor, sou eu o acusador — disse a Dama da Noite, sem olhar para Steel.

Por seu turno, este manteve orgulhosamente os olhos fixos em Ariakan.

— Subcomandante Trevalin — prosseguiu o lorde —, agradeço-lhe os seus préstimos. Entregou o prisioneiro, conforme te ordenaram. Pode regressar agora ao seu batalhão.

Trevalin esboçou uma saudação, mas não se afastou logo.

— Meu senhor — disse —, antes de partir, solicito permissão para proferir algumas palavras a favor do prisioneiro. A Visão impele-me a fazê-lo.

Erguendo as sobrancelhas, Ariakan aquiesceu. A Visão, que predominava sobre todo o resto, não era invocada de ânimo leve.

— Fale, subcomandante — disse.

— Obrigado, senhor. Gostaria que as minhas palavras ficassem registradas. Steel Montante Luzente é um dos melhores soldados que eu tive o privilégio de comandar. A sua bravura e aptidões são irrepreensíveis e a sua lealdade para com a Visão ilimitada. Tais atributos viram-se confirmados vezes sem conta em batalha, e não deveriam ser agora postos em causa. — Ao dizê-lo, dardejou a Dama da Noite com um olhar sinistro. — Meu senhor, a perda do cavaleiro guerreiro Montante Luzente constituiria um dano irreparável para todos nós e também para a Visão.

— Obrigado, subcomandante Trevalin — respondeu Ariakan com voz fria e desapaixonada. — Tomaremos em consideração o que disse. Pode se retirar.

Trevalin esboçou uma saudação, inclinou-se e, antes de partir, dirigiu em surdina algumas palavras de encorajamento a Steel.

Segurando a espada do pai com ambas as mãos, o cavaleiro agradeceu mas não proferiu palavra. Abanando a cabeça, Trevalin abandonou a tenda.

Virando-se, Ariakan pediu:

— Traga-me a sua espada, Cavaleiro Guerreiro.

Obedecendo, Steel aproximou-se da mesa.

— Desembainhe a espada — prosseguiu Ariakan —, e coloque-a diante de mim.

Steel assim fez. Retirando a espada da bainha velha e gasta, pousou-a, em todo o comprimento, diante do seu superior. A lâmina deixara de cintilar, parecia cinzenta e baça, como que ofuscada pela presença sombria de Ariakan.

Steel retrocedeu cinco passos, mantendo-se ereto, imóvel, com as mãos de lado e os olhos fixos em frente.

Ariakan virou-se para a Veste Cinzenta.

— Dama da Noite, exponha suas acusações contra este cavaleiro — disse. Lilith, em tom estridente, relatou que Steel se oferecera para restituir os corpos dos dois Cavaleiros da Solamnia ao pai — que ela admitiu constituir uma dívida de honra. Olhando de relance para Steel, Ariakan mostrou a sua aprovação inclinando de leve a cabeça. O lorde encontrava-se familiarizado com a história de Steel, sabia que o cavaleiro devia a liberdade, e muito possivelmente a vida, a Caramon Majere. A dívida encontrava-se saldada agora.

A Dama da Noite prosseguiu dizendo que Steel tomara Palin Majere, o jovem mago, sob sua responsabilidade, que aceitara a palavra deste, que se oferecera para assumir a sentença de morte que pendia sobre o prisioneiro, caso este escapasse.

— Meu senhor, o Cavaleiro Guerreiro regressou para junto de nós — disse a Dama da Noite, rematando o seu discurso —, mas o prisioneiro não. A missão de Montante Luzente falhou. Permitiu que o prisioneiro fugisse. Para falar a verdade, meu senhor — acrescentou, deslizando para junto da mesa, inclinando-se e acercando-se dele como se estivesse prestes a revelar algum conluio terrível. Em voz baixa, num tom gutural e sibilante, acrescentou: — Atendendo à linhagem de Montante Luzente, acredito que ajudou o prisioneiro na fuga.

— Fale claramente, Dama da Noite — disse Ariakan, algo impaciente. Embora reconhecesse e apreciasse o valor dos fazedores de magia, começava, tal como muitos espadachins, a sentir-se farto da sua tendência para a ofuscação. — As insinuações vagas desagradam-me. Se tem alguma queixa contra este cavaleiro, exponha em termos simples que nós, soldados, possamos compreender.

— Meu senhor, achei que tivesse feito — respondeu a Dama da Noite. Recuando, endireitou-se e encarou Steel com uma expressão hostil. — Este cavaleiro usa ao pescoço um pingente elfo. Traz consigo a espada dos nossos inimigos. Meu senhor, deixe que eu lhe diga que este cavaleiro não é completamente leal à nossa gloriosa Rainha ou à Visão. É um traidor à nossa causa, e o fato do prisioneiro escapar, confirma-o. Meu senhor, sugiro que Montante Luzente seja obrigado a assumir o castigo que ele próprio concordou em aceitar. Steel Montante Luzente deve ser condenado à morte.

Ariakan voltou a olhar para Steel.

— Conheço este homem desde menino — disse. — Nunca me deu motivos para pôr a sua lealdade em causa. Quanto à espada e à jóia, lhe foram dadas pelo pai, um homem que, embora nosso inimigo, é venerado entre nós pela sua bravura e coragem. Na altura, tomei conhecimento das dádivas — prosseguiu Ariakan, carregando ligeiramente o cenho — e aprovei-as, tal como a Suma-Sacerdotisa de Takhisis. Dama da Noite, será que põe em causa a nossa lealdade?

Lillith mostrou-se chocada por Ariakan poder imaginar tal coisa, desgostosa por ser tão mal compreendida.

— Decerto que não, meu senhor — respondeu. — Tratou-se, sem dúvida, de uma decisão sensata... na altura em que a tomou. — Insistiu na frase, dando-lhe ênfase. — Mas lembro ao meu senhor que os tempos mudam, assim como o coração dos homens. Resta a questão do prisioneiro. Onde — prosseguiu, abrindo os braços — se encontra Palin Majere? Se o trouxerem aqui, vivo ou morto, então retirarei todas as minhas acusações e solicitarei a este cavaleiro que me perdoe.

Sorrindo, cruzou os braços no peito e dardejou Steel com uma expressão de perverso triunfo.

— Cavaleiro Guerreiro, qual é a tua resposta? — perguntou Ariakan a Steel. — Que tem a dizer em sua defesa?

— Nada, meu senhor — respondeu Steel.

Ouviu-se um murmúrio, vindo dos cavaleiros que se haviam juntado para assistir ao julgamento e cujo número, entretanto, se tornara significativo, pois a notícia espalhara-se rapidamente pelo campo.

— Nada, Cavaleiro Guerreiro? — repetiu Ariakan, parecendo atônito e perturbado. Lançou um olhar de esguelha à Dama da Noite e, muito de leve, abanou a cabeça. O gesto, mais do que as palavras, elucidou Steel quanto ao fato de Ariakan se encontrar do seu lado. — Vamos ouvir a sua versão.

Steel podia tê-lo feito, e conquistado a admiração dos presentes ao relatar que atravessara, incólume, a fatídica Clareira de Shoikan — um feito heróico que raras pessoas de Krynn se atreveriam a tentar e do qual muito menos sairiam vivas para contá-lo. Poderia também desculpar-se dizendo que Palin Majere sem sombra de dúvida fora ajudado na fuga pelo seu tio, Raistlin Majere, de infame memória. Conhecidos os fatos, Steel tinha certeza de que Ariakan julgaria a seu favor.

Mas, limitou-se a dizer:

— Não tenho desculpas a apresentar, meu senhor. Aceitei a missão e falhei. Dei a minha palavra de honra. Perdi o prisioneiro e responderei pela sua segurança. Meu senhor, aceito o teu julgamento.

— A minha sentença equivalerá à morte — respondeu Ariakan, carregando mais o cenho.

— Meu senhor, estou ciente disso — replicou Steel com voz calma.

— Pois então muito bem. Cavaleiro Guerreiro, não me deixa outra opção.

Ariakan pousou a mão no punho da espada. Uma expressão de dor contorceu-lhe o rosto — a espada constituía um artefato dedicado a Paladino e deste modo Paladino castigava os que seguiam os trilhos da escuridão. Ariakan não largou a espada. Em gestos lentos, rangendo os dentes, virou a ponta da espada na direção de Steel. Só depois a soltou.

— Steel Montante Luzente, por este meio é condenado a morrer por via desta espada que desgraçou e desonrou. A sentença de morte será executada...

Será executada já, pensou Steel, que antes assistira a julgamentos idênticos. Para ser mantida, a disciplina tem de ser rápida. Tentou preparar-se para o encontro com a sua Rainha. O que diria a ela, que conseguia ver-lhe os recessos do coração? Quem conheceria a verdade?

O seu corpo manteve-se firme, a alma estremeceu-lhe e, de início, não escutou as palavras de Ariakan. O murmúrio de aprovação por parte dos cavaleiros reunidos, ao qual se misturaram alguns vivas, fizeram Steel voltar ao mundo dos vivos.

Incrédulo, gaguejou:

— Que... que foi que disse, meu senhor?

— A sentença será cumprida dentro de um mês — repetiu Lorde Ariakan.

— Meu senhor! — apressou-se a Dama da Noite a protestar. — Será sensato? Este homem admitiu a sua traição! Sabe-se lá que outros danos poderá causar!

— Este cavaleiro admitiu que perdeu o prisioneiro — replicou Ariakan. — Submeteu-se, de bom grado, ao justo castigo. Dama da Noite, lhe recordo que o comandante dele, invocando a Visão, pediu que o seu subordinado fosse poupado e pudesse participar na batalha iminente. Eu consultei consultei a Visão. A minha sentença se mantém.

A voz de Ariakan era fria e suave, mas todos os presentes detectaram a sua cólera. A Dama da Noite inclinou a cabeça e retirou-se, mas não sem antes lançar a Steel Montante Luzente um olhar mortífero, de quem o executaria naquele exato momento.

Aturdido, sem acreditar ainda muito bem que viveria, Steel permaneceu imóvel. Ariakan viu-se forçado a acenar-lhe duas vezes com a mão antes que o cavaleiro se aproximasse para recuperar a espada.

Lorde Ariakan apontou para ela, mas sem tocá-la. Tinha a palma da mão direita coberta de bolhas e inflamada, como se tivesse tocado em metal ardente.

— Aí tem a sua espada de volta, Cavaleiro Guerreiro. Lhe é concedida a oportunidade de resgatar a honra nesta batalha, de modo a que a sua alma possa encarar com orgulho a nossa Rainha e não rastejar aos seus pés.

— Agradeço-lhe, meu senhor — respondeu Steel, com a voz embargada de emoção. Com ar reverente, ergueu a espada e voltou a embainhá-la.

— Contudo, vejo-me obrigado a pedir-lhe que retire as esporas — acrescentou Ariakan. — Fica privado de qualquer patente ou título. Vou pô-lo ao comando de uma companhia de soldados de infantaria. Terá a honra de liderar a investida contra o portão da frente.

Sorrindo, Steel levantou a cabeça. Liderar a investida, lutar a pé, o primeiro a franquear a torre, o primeiro a enfrentar o embate da defesa do inimigo, estaria entre os primeiros a morrer. Ariakan concedia-lhe um grande favor.

— Compreendo, meu senhor. Obrigado. Não o desiludirei.

— Entretanto, regresse ao seu batalhão, Montante Luzente. Pela manhã será entregue sob sentença de novo. E, a menos que pretenda dizer-me mais alguma coisa, está dispensado.

Tratava-se de mais uma oportunidade que Ariakan lhe oferecia.

Nesse momento, Steel ansiou poder libertar-se do peso que o oprimia. Mas sabia que, se o fizesse, o orgulho e afeto que votava ao procedimento do seu suserano esmoreceriam, para se converterem em raiva e amarga desilusão.

— Não, meu senhor. Nada tenho a acrescentar, a não ser para reiterar os meus agradecimentos.

Ariakan encolheu os ombros. Levantando-se, encaminhou-se para a Caixa da Batalha. Os seus oficiais apressaram-se a rodeá-lo e, debruçando-se para a mesma, puseram-se a transferir unidades para aqui e ali, procedendo de novo à discussão das estratégias e das táticas. Um sacerdote das trevas irrompeu pela tenda, a fim de lançar um encantamento de cicatrização sobre a mão ferida do lorde.

Steel, esquecido, saiu discretamente pelos fundos da tenda, a fim de evitar a multidão. Deixando atrás de si a claridade e o bulício, ultrapassou o perímetro exterior do campo, em busca de um lugar onde pudesse estar sozinho.

Na manhã seguinte morreria, com honra, e com ele o tumulto que lhe revolvia a alma, toda a verdade — que, à soleira do laboratório, hesitara, hesitara porque sentira medo. Deste modo, o seu suserano e os camaradas seriam poupados.

3 O plano de batalha de Ariakan. A batalha pessoal de Steel



Faltavam horas para a aurora, mas o exército de Lorde Ariakan já encontrava-se em movimento, caminhando das planuras para as Colinas de Virkhus, rumo ao Desfiladeiro do Portão Ocidental e ao seu alvo, a Torre do Sumo Sacerdócio.

A estrada encontrava-se desimpedida. Os Cavaleiros da Solamnia não podiam permitir-se desperdiçar efetivos na sua defesa. Os exércitos de Ariakan moviam-se com rapidez, o clarão das tochas e o fogo da magia alumiava-lhes o caminho. Caminhando na vanguarda, Steel virou-se para olhar e sentiu-se extasiado. Das colinas às planícies, era um formigueiro de homens, equipamento e máquinas. Aglomerados na estrada, movendo-se com uma precisão que era produto de treinos intensos, o exército lembrava uma serpente a cintilar nas trevas — uma serpente gigantesca que em breve se enrolaria em torno da vítima, esmagando-a. Os efetivos do exército eram incalculáveis. Nos anais do mundo, não havia registro de alguma vez se ter concentrado em Ansalon uma força tão poderosa.

Por esta altura, os defensores da Torre do Sumo Sacerdócio já seriam capazes de avistar nitidamente o exército. Deviam estar observando a terrível serpente, no seu avanço inexorável. Steel conseguia imaginar o terror e o desânimo que sentiam. Certamente que agora morrera toda a esperança que os Cavaleiros da Solamnia possivelmente ainda acalentavam.

Enquanto afivelava a espada, ocorreram ao espírito de Steel histórias dos feitos heróicos do pai, sozinho nas ameias da torre que o filho estava prestes a atacar. Sturm Montante Luzente também previra a sua morte e fora mais longe, prognosticara a brilhante vitória que o aguardava.

Steel sentia-se agora mais próximo do pai do que da guerreira sua mãe. Sturm compreendia a decisão tomada pelo filho, de optar pela morte e não pela desonra. Kitiara, a mãe, não.

Ao longo da noite, Steel sentira o fragor da batalha entre os dois, uma guerra que lhe fora familiar a vida inteira. Conseguia ouvir a voz do pai, falando de honra, sacrifício pessoal, e a voz da mãe, a pressioná-lo para mentir, ser conivente, sair-se vitorioso da confusão. A luta prolongara-se e fora extenuante e, ao que parece, até no sono o perseguira, pois sonhou com armaduras azuis e de prata, com o entrechocar de armas.

O toque do clarim, a chamar às armas, arrancou-o dos sonhos. Steel acordou sentindo-se repousado, alegre e sem o medo a aguilhoá-lo. Ele e os seus homens — uma força de espadachins e arqueiros bárbaros, todos eles tão excitados como o comandante — marchavam céleres, tão céleres que de vez em quando tinham de abrandar o passo, a fim de evitar tropeçar nos calcanhares do batalhão que seguia à frente.

Steel ia morrer nesse dia, podia assegurá-lo. Mas morreria envolto em glória, e nessa noite a alma dele compareceria perante a sua Rainha, provada que estava a sua lealdade incondicional, desaparecido para sempre o tumulto que o agitava.

Lorde Ariakan reuniu o seu exército nas Asas de Habbakuk, um trecho de terra batida que lembrava um avental e se situava bem por baixo da Torre do Sumo Sacerdócio. Sendo o bastião mais forte de Ansalon, a fortaleza não tinha mistérios para Ariakan. Conhecia cada corredor, cada entrada secreta, cada adega, conhecia-lhe os pontos fortes e fracos. Desde o dia em que partira, há muitos anos, que aguardava este momento.

Ariakan recordava-se de se encontrar, neste mesmo outeiro, montado no seu cavalo, a olhar para a torre e a planejar a forma de conquistá-la. A recordação trouxe-lhe uma sensação feérica de ter passado por tudo isto antes, embora na altura os homens ao seu lado fossem Cavaleiros da Solamnia, alguns deles possivelmente aguardando nesse dia o confronto com o antigo camarada.

No escuro, os servos montaram-lhe a tenda de comando. Quando os primeiros laivos rosa-alaranjados tingiram os céus, os seus oficiais reuniram-se. Encontravam-se cinco presentes, os três comandantes que chefiavam o exército de investida, o comandante da força draconiana e o comandante de uma força que, entre as tropas, se tornara conhecida por os Lacaios das Trevas — um exército composto por duendes maléficos, trasgos, ogros e mercenários humanos, muitos dos quais, desde o termo da Guerra da Lança, vagueavam pelas montanhas de Khalkist, à espera de uma oportunidade para se vingar. Entre eles também se contava um grande contingente de minotauros, chefiados pelos da própria espécie, visto o minotauro desprezar as ordens emitidas pelos insignificantes humanos.

Ariakan voltou a recapitular o plano de batalha. O primeiro, segundo e terceiro exércitos de investida deviam atacar, abrir brechas e penetrar no escudo formado pelas muralhas da torre, fazendo-o através das entradas principais. Para a consecução da tarefa, a cada um seriam atribuídos engenhos para cerco. O primeiro exército a romper as defesas deveria desobstruir as muralhas, a fim de permitir o acesso às outras forças.

Os Lacaios das Trevas deviam atacar a entrada principal que dava para o Espigão dos Cavaleiros. Em caso de êxito, deviam abrir caminho até à torre principal e prestar assistência aos exércitos de investida no esmagamento do inimigo.

O quinto exército, a força draconiana, devia aliar-se aos Cavaleiros de Takhisis, que atacariam do ar. Os draconianos, montados em dragões azuis, desceriam dos céus até às ameias e desimpediriam o caminho para as forças de investida. Os cavaleiros, mantendo-se no dorso dos dragões, combateriam os dragões prateados, que decerto acorreriam em auxílio dos Cavaleiros da Solamnia.

Depois da reunião, Ariakan dispensou os oficiais e ordenou aos servos que lhe trouxessem o desjejum.

A espera foi penosa. Steel, incapaz de se manter parado, caminhava agitadamente de um lado para o outro, Necessitava de um escape para a excitação que lhe alvoroçava as veias. Decidiu ir observar os oficiais das máquinas montarem o engenho de cerco que investiria contra o portão principal. Teria se juntado a tarefa, só para se manter ocupado, mas supôs que seria mais um estorvo do que ajuda.

O enorme aríete era feito com o tronco de um carvalho poderoso em tempos idos. A cabeça, revestida de ferro, fora trabalhada na forma de uma quélidra serpentina (em honra da deusa dos mares, mãe de Ariakan) e encontrava-se montada numa plataforma giratória que rolaria pela estrada e investiria diretamente contra o portão principal. O aríete, metido numa armação de couro, encontrava-se suspenso do topo do engenho de cerco e ligado a uma série de complexas roldanas. O aríete seria puxado para trás por homens que manobravam cordas espessas. Depois de soltas as cordas, o aríete seria arremessado para frente, atingindo os portões com um impacto enorme. Um tejadilho de ferro sobre o aríete oferecia proteção contra setas incendiárias, pedregulhos e outras armas que os defensores utilizassem, num esforço para destrui-lo antes que provocasse danos significativos.

Os Cavaleiros do Abrolho dotaram o engenho infernal com vários tipos de magia. Os Cavaleiros da Caveira, chefiados pela Sacerdotisa Suprema de Takhisis, avançaram e deram a sua bênção tenebrosa ao engenho de cerco, invocando os deuses para que os apoiassem na sua causa. Os enormes portões de pau-ferro da torre, com liga de aço, foram reforçados com magia e, conforme se receava, não cairiam sem a intervenção pessoal da Rainha das Trevas.

Mas onde se encontrava Takhisis? Será que viera presenciar o maior triunfo do seu exército? Parecia a Steel que a Suma-Sacerdotisa hesitava nas suas orações, como que não tendo a certeza se alguém a estava ouvindo ou não. Os Cavaleiros da Caveira que ladeavam a sacerdotisa à direita e à esquerda, pareciam apreensivos e trocavam olhares de esguelha uns com os outros. O oficial das máquinas, que durante as orações fora obrigado a interromper o trabalho, mostrava-se impaciente.

— Se quer que te diga, tudo isto é um rematado disparate — grunhiu a Steel, quando as orações terminaram. — Não que eu não seja um homem de fé — acrescentou rapidamente, olhando ao redor para se certificar que não fora escutado pelos sacerdotes. — Mas passei seis meses da minha vida, dias e noites, a desenhar aquele engenho e outros seis a construí-lo. Não será uma pitada de pó mágico malcheiroso nem umas quantas orações em surdina que irão vencer esta batalha. A nossa Dama das Trevas terá hoje coisas muito mais importantes a fazer do que andar por aí batendo à porta da frente dos Solâmnicos. — Orgulhoso, admirou a máquina com os olhos úmidos de lágrimas e acrescentou: — O meu engenho fará esse servicinho por ela.

Steel aquiesceu polidamente e ambos começaram a discutir a coordenação das suas duas forças. Feito isto, Steel regressou para junto das tropas bárbaras.

Foi dar com os brutos a participarem num jogo popular qualquer entre os da sua espécie. Um deles, dos poucos que falavam a língua comum, tentou explicar-lhe o jogo. Steel ouviu-o pacientemente, tentando parecer interessado. Em breve se perdia na complexidade das regras do jogo, que era feito com a ajuda de paus, pedregulhos, pinhas e incluía o arremesso, aparentemente descuidado, de grandes facas com punho de osso e aspecto mortífero.

Explicou o bruto que os ocasionais derramamentos de sangue excitavam os homens e os preparava para a batalha. Steel, que se interrogara quanto à origem de todas aquelas cicatrizes de aspecto estranho nas pernas e nos pés dos bárbaros, em breve os deixava entregues aos seus perigosos folguedos e retomava o passeio.

O seu olhar dirigiu-se para as ameias da Torre do Sumo Sacerdócio, onde conseguia avistar figuras minúsculas a percorrê-las e a espreitarem por cima da guarnição. Já passava muito da madrugada, da hora em que normalmente os exércitos atacam. Se a espera se revelava penosa para Steel, o que dizer do que sentiam os que se encontravam no interior da torre. Deviam interrogar-se quanto ao motivo da demora, sobre o que estaria Ariakan a conspirar, ao mesmo tempo que reviam as suas próprias estratégias. E enquanto o tempo se escoava, o medo insinuava-se no coração e a coragem ia-lhes esmorecendo.

O Sol ia alto nos céus, fazendo diminuir as sombras projetadas pela torre. Por sob a pesada armadura, Steel sentia-se alagado em suor e olhava com inveja os brutos, que iam para a batalha quase nus, com o corpo pintado de tinta azul, com um cheiro pestilento e que, afirmavam eles, possuía propriedades mágicas e era tudo o que necessitavam para se protegerem contra qualquer tipo de arma.

Steel enfrentou o calor e dirigiu-se para o local onde os cavaleiros do seu batalhão preparavam os dragões para o combate. Avistando-o, o subcomandante Trevalin dirigiu-lhe um aceno, mas não lhe falou, ocupado como estava a ajustar a lança — uma cópia das famosas lanças de dragão. Steel avistou Fulgor, agora com um novo dono, e não o invejou. Fulgor ficara furiosa quando descobrira o rebaixamento de Steel, falara mesmo em recusar-se a voar durante a batalha. Steel dissera-lhe que isso equivalia a deserção, mas tornava-se óbvio que o animal ainda estava de mau humor. Era leal à Visão e lutaria com bravura, mas também faria tudo para dificultar a vida do seu novo condutor.

Tentando calar os sentimentos de desgosto e de inveja, Steel regressou para junto do seu comando, arrependido por tê-lo deixado. Ressentia-se do calor e o entusiasmo começava a esmorecer-lhe, quando foi atraído por um movimento ondulante que agitou o centro do exército. Lorde Ariakan saíra da tenda e os que o rodeavam aquietaram-se.

Acompanhado pelos guarda-costas, pelo porta-estandarte, os feiticeiros e os sacerdotes das trevas, Ariakan montou o cavalo — um espécime de pelagem negra como carvão, conhecido por Vôo da Noite — e avançou, postando-se bem atrás do esquadrão da retaguarda do segundo exército de investida. Depois, ordenou que fosse erguido o estandarte bélico.

Foram desfraldados os estandartes de todos os outros exércitos. As bandeiras pendiam, flácidas, no ar parado. Ariakan ergueu um bastão feito de obsidiana preta, decorado com lírios da morte em prata e sobrepujado por uma caveira sorridente. Lançando um derradeiro olhar ao redor, a fim de se certificar de que tudo se encontrava a postos, Ariakan baixou o bastão.

Na atmosfera fervilhante de calor ressoou o som cristalino de uma trombeta. Steel reconheceu o chamado: “Avançar para Contato”, e o sangue pulsou-lhe nas veias, a ponto de achar que o coração arrebentaria de excitação.

Responderam as trombetas de todos os exércitos de Takhisis, às quais se juntaram os sons estrídulos das trompas dos vários esquadrões, misturando-se numa cacofonia de guerra estridente e ensurdecedora. Com um retumbar de vozes, que devem ter abalado as pedras que serviam de alicerce à torre, o exército de Takhisis lançou-se ao ataque.

4 Discussão entre velhos amigos. Sturm Montante Luzente pede um favor.



Ao alvorecer, Tanis Meio Elfo subiu as escadas que desembocavam nas ameias próximas da torre central, não muito longe do lugar onde se erguiam as paredes manchadas pelo sangue de Sturm Montante Luzente. Seria aqui que em breve assumiria a sua posição, mas não solicitou às suas tropas que o seguissem. Ainda não. Tanis escolhera deliberadamente este lugar, pois sentia a presença do amigo e, naquele momento, necessitava dele.

Tanis estava cansado. Ficara acordado toda a noite, em reunião com Sir Thomas e os outros comandantes, tentando descobrir um meio de conseguir o impossível, uma forma de vencer em circunstâncias das mais desvantajosas. Também delinearam planos, bons planos. Depois, foram até às ameias e ficaram observando os exércitos das trevas que, irradiando clarões, iam cobrindo a colina — uma maré crescente de morte.

Excessiva para ser contida por planos bons.

Tanis sentou-se pesadamente no chão de pedra, recostou a cabeça para trás e fechou os olhos. Diante dele apareceu Sturm Montante Luzente.

Tanis conseguia ver Sturm distintamente, este envergando a antiquada armadura, com a espada do pai nas mãos e postado nas ameias onde Tanis repousava agora. O estranho foi Tanis não se surpreender por avistar o velho amigo. Parecia correto e adequado Sturm encontrar-se ali, a percorrer as ameias da torre pela qual dera a vida para defender.

— Meu velho amigo, bem que precisava de um pouco da tua coragem neste momento — disse Tanis baixinho. — Não podemos ganhar. Eu sei que é inevitável. Sir Thomas sabe. Os soldados sabem. E, sem esperança, como havemos de seguir em frente?

— Por vezes, ganhar transforma-se em derrota — respondeu Sturm Montante Luzente. — E na derrota alcança-se melhor a vitória.

— Exprime-se por metáforas, meu velho amigo. Fale com clareza. — Tanis procurou uma posição mais confortável. — Sinto-me muito cansado para adivinhas.

Sturm não respondeu logo. O cavaleiro percorreu as ameias, perscrutou por cima da muralha e olhou para o vasto exército que se concentrava embaixo.

— Tanis, o Steel está ali embaixo. O meu filho.

— Está, não está? Não me surpreende. Ao que parece, falhamos. Ele entregou a alma à Rainha das Trevas.

Sturm virou-se para o amigo.

— Tanis, vigie-o.

Tanis bufou de indignação.

— Meu amigo, acho que o seu filho já é bem crescidinho para vigiar a si mesmo — respondeu.

Sturm abanou a cabeça.

— Está lutando contra um inimigo que o transcende. A alma dele não se perdeu completamente para nós, mas... se perder esta batalha interior... ficará. Meu amigo, cuide dele. Prometa-me.

Tanis sentiu-se perplexo, perturbado. Raramente Sturm Montante Luzente pedia favores.

— Farei o que estiver ao meu alcance, Sturm, mas não compreendo. O Steel é um servo da Rainha das Trevas. Virou as costas a tudo o que tentou fazer por ele.

— Meu senhor...

— Se ao menos me explicasse...

— Meu senhor! — A voz fez-se acompanhar por uma mão, que lhe abanou o ombro.

Tanis abriu os olhos e soergueu-se.

— Quê? Que se passa? — Levou a mão à espada. — Chegou a hora?

— Não, meu senhor. Desculpe se o acordei, meu senhor, mas preciso saber quais as suas ordens...

— Sim, é claro. — Tanis levantou-se de um salto. Lançou um rápido olhar pelas ameias. Ninguém mais se encontrava lá, apenas ele e o jovem cavaleiro. — Desculpe, devo ter adormecido.

— Sim, meu senhor — concordou o cavaleiro em tom polido. — Falava com alguém, meu senhor.

— Falava? — Tanis abanou a cabeça, tentando libertar-se do torpor que lhe pesava no cérebro. — Tive um sonho dos mais estranhos.

— Sim, meu senhor. — O cavaleiro continuava a aguardar pacientemente. Tanis esfregou os olhos raiados de sangue.

— Ora vamos lá, que quer me perguntar?

Ouviu, respondeu e prosseguiu com as suas obrigações, mas sempre que o silêncio pairava chegavam-lhe aos ouvidos palavras suaves.

Prometa-me...

Rompeu a madrugada, mas a luz do Sol apenas veio aguçar o desespero. Os defensores da torre olharam para baixo e avistaram um mar de trevas que se formara de noite e estava prestes a afogá-los numa onda gigantesca de sangue. Por todo o lado correram as notícias a respeito da força imensa que se mobilizara contra os cavaleiros. Ouviam-se os comandantes ordenando aos homens, em tom contundente, para guardarem silêncio e manterem-se nas suas posições. Em breve, os únicos sons que podiam ser ouvidos eram os chamados dos dragões prateados, que voavam em círculos no ar e soltavam gritos de desafio contra os seus primos azuis.

Os cavaleiros prepararam-se para o ataque, mas este não ocorreu.

Passou-se uma hora, e depois outra. Tomaram o desjejum nos seus postos, o pão numa mão, a espada na outra. Dos exércitos aglomerados embaixo, o único movimento perceptível era o dos efetivos que iam engrossando-o.

O Sol foi subindo cada vez mais alto. O calor tornou-se insuportável. A água começou a ser racionada. O ribeiro da montanha que outrora escoava através do aqueduto da torre, estava reduzido a um fio. Os homens postados contra as pedras das muralhas, com as armaduras transformadas numa câmara ardente pelo calor, tombavam e desmaiavam.

— Acho que poderíamos ferver o óleo sem necessidade de acender o fogo — observou Sir Thomas a Tanis, numa das inúmeras rondas de inspeção do Lorde Cavaleiro.

Apontou para um grande caldeirão, cheio de óleo fervente, pronto a ser arremessado ao inimigo. O calor derramado pela fogueira obrigava todos a manterem-se à distância, com exceção dos incumbidos da pesada tarefa de reavivarem as chamas. Estes, que haviam retirado a armadura e as roupas, encontravam-se despidos da cintura para cima e suavam profusamente.

Tanis enxugou o rosto.

— O que você pensa que Ariakan está tramando? Ele está à espera de que?

— Que percamos o ânimo — respondeu Sir Thomas.

— Funciona — observou Tanis com amargura. — Que Paladino nos valha, nunca vi um exército tão grande! Nem sequer durante a guerra, nos últimos dias que antecederam a queda de Neraka. De quantas tropas você acha que dispõe?

— Só Gileano sabe — respondeu Sir Thomas. — É inútil tentar adivinhar. Lá reza o velho ditado: “Cada homem contado em clima de medo é um homem contado ao dobro.” E também não interessa muito.

— Tem razão, meu senhor — concordou Tanis. — Não interessa nada. — Ainda esteve prestes a perguntar ao cavaleiro se achava que a torre iria agüentar, mas concluiu que tampouco valia a pena.

O chamado de um clarim fendeu o ar.

— Aí vêm eles! — exclamou Sir Thomas e apressou-se a assumir a sua posição de comando numa das varandas dos jardins do sexto piso.

Tanis deu um suspiro de alívio e verificou que o mesmo alívio se refletia no rosto dos homens sob o seu comando. A ação era de longe melhor do que a terrível tensão da espera. Os homens esqueceram-se do calor terrível, do medo, da sede e precipitaram-se para os seus postos. Finalmente podiam descontrair-se e deixar as coisas correrem. O destino deles encontrava-se nas mãos de Paladino.

Um estrondo de clarins e um retumbar de gritos de desafio fenderam o ar. O exército das trevas atacava. O sol reluziu nas escamas dos dragões azuis. As sombras das asas dos animais insinuaram-se pelas muralhas da torre, e deslizaram para o coração dos defensores da torre. O bafo de terror do dragão reclamava as primeiras vítimas.

Os dragões prateados e respectivos condutores, armados com as famosas lanças de dragão, levantaram vôo e lançaram-se ao ataque. Uma falange de azuis foi entrechocar com os prateados. Explodiram faíscas. Os dragões azuis atacavam com os seus bafos de fogo. Os prateados retaliavam vomitando nuvens de fumaça gelada que, cobrindo as asas dos inimigos, as congelavam e faziam com que despencassem dos céus.

Tanis admirou-se com o número reduzido de dragões azuis e já suspeitava que este ataque inicial se tratava de uma diversão quando ouviu um grito. Os homens apontavam para oeste.

Vindos dessa direção, avistaram o que parecia ser um enxame de dragões azuis a voar, e que ultrapassava largamente os prateados. Cada um deles transportava no dorso não um, mas inúmeros condutores. Os jovens cavaleiros ficaram olhando, com uma expressão esgazeada e aturdida, mas os veteranos, que haviam lutado na Guerra da Lança, sabiam o que estava por vir. Mal os primeiros dragões azuis sobrevoaram a torre, dos céus começaram a descer sombras aladas e tenebrosas.

— Draconianos! — gritou Tanis, desembainhando a espada e preparando-se para o ataque. — Lembrem-se! Logo que matarem um, arremessem o corpo pela muralha afora!

Os draconianos mortos eram tão perigosos como os draconianos vivos. Consoante a espécie, os corpos podiam transformar-se em pedra, prendendo no interior quaisquer armas aí deixadas, explodir, destruindo os que os destruíam, ou dissolver-se em poças de ácido, letais para quem os tocasse.

Um draconiano Bozac, com as asas hirsutas abertas para amortecer a queda, foi bater contra o topo da muralha que ficava bem defronte de Tanis. O Bozac, que não está adaptado ao vôo, aterrou pesadamente e o impacto deixou-o por uns instantes desnorteado. Porém, logo se recuperaria, e os Bozacs, além de lutadores experientes, também eram fazedores de magia. Antes que a criatura recolhesse as asas, Tanis deu um salto e investiu. A sua espada rodopiou no ar. A cabeça do draconiano separou-se do pescoço e o sangue espirrou. Embainhando a espada, Tanis, antes que o corpo pudesse causar danos, arrastou-o até à muralha e atirou-o borda afora.

O Bozac morto foi cair sobre um grupo de bárbaros que tentavam escalar a muralha. O corpo explodiu quase de imediato, provocando danos consideráveis. Confusos, os bárbaros bateram em retirada.

Tanis não teve tempo para se rejubilar. Um grupo de mamutes puxava um enorme engenho de cerco na direção do portão da frente da torre. Escadas de mão estavam a ser arremessadas contra as muralhas. Tanis ordenou aos arqueiros que disparassem e deu ordens aos cavaleiros que manejavam o caldeirão de óleo para se aprontarem para derramá-lo sobre as cabeças dos que se encontravam lá embaixo. Com sorte, talvez conseguissem incendiar o engenho de cerco. Os homens sob o seu comando obedeceram rapidamente, pois Tanis gozava de grande respeito, era conhecido por ser um cavaleiro em espírito, se não em verdade.

Um mensageiro subiu precipitadamente as escadas e escorregou no sangue do draconiano, quase caindo. Recuperando o aprumo, comunicou a Tanis:

— Mensagem de Sir Thomas, meu senhor! Se o portão da frente tombar, deve se reunir os seus homens e reforçar as tropas que guardam a entrada.

Se o portão da frente cair, pouco restará para guardar, pensou Tanis soturnamente. Mas, abstendo-se de citar o que era óbvio, limitou-se a aquiescer com a cabeça e mudou de assunto:

— Que foi aquele grito que ouvi há instantes?

O mensageiro esboçou um sorriso cansado.

— Uma força de minotauros tentou esgueirar-se pelo aqueduto — respondeu. — Sir Thomas acha que o inimigo pode ter pensado o mesmo, atendendo à seca e a isso tudo. Os nossos cavaleiros aguardavam-nos. Tão depressa não o tentarão de novo.

— Boas notícias — grunhiu Tanis, enquanto empurrava o mensageiro para o lado e atacava um draconiano que por pouco não aterrava em cima do jovem.

Essa pequena réstia de esperança em breve esmorecia. A maré das trevas ia desabando sobre eles e ao longo da tarde foi engrossando. Os cavaleiros deslocavam-se de uma posição para outra. Retiravam-se, reagrupavam-se, tentavam agüentar firmes, apenas para serem repelidos de novo. Tanis lutou até ficar arquejante. Os músculos queimavam-lhe, a mão que segurava a espada estava embotada e dolorida.

E o inimigo continuava a afluir.

Tanis apenas tinha consciência do entrechocar do aço, dos gritos dos moribundos e do respingar do que ele de início julgou tratar-se de chuva.

Afinal, era sangue — sangue de dragão, a derramar-se dos céus.

Pairando sobre o tumulto, ouvia-se o buum, cabuum arrepiante do enorme aríete, que batia qual coração tenebroso, pulsando de vida animosa e terrível.

Registrou-se uma breve calmaria. O inimigo aguardava alguma coisa. Aproveitando a pausa, Tanis encostou-se à muralha, tentando recuperar o fôlego.

De baixo, veio um entrechocar terrível e um grito triunfante. Os portões maciços da Torre do Sacerdócio Supremo cederam.

Uma força de tropas inimigas, que aguardava por trás do engenho de cerco, precipitou-se para a entrada. Eram chefiados por um cavaleiro de armadura que lutava a pé e entre eles viam-se feiticeiros de vestes cinzentas.

Reunindo os seus homens — os que podiam ainda agüentar — Tanis precipitou-se em defesa do portão da frente.

5 Promessa feita. Promessa cumprida.



Steel fez desdobrar as tropas em linha, por trás e de cada lado do enorme engenho de cerco. Os brutos eram arqueiros experientes. Possuíam arcos mais altos do que a maioria dos humanos e disparavam estranhas flechas que, no trajeto, emitiam um assobio fantasmagórico. Steel utilizou-os para manter os defensores afastados das ameias, permitindo assim que o engenho atuasse sem interrupções.

Em larga medida, tal estratégia funcionou, não fosse um pequeno grupo de Cavaleiros da Solamnia que permaneciam nos seus postos com sombria determinação, rechaçando os ataques dos draconianos de cima e desviando as setas dos brutos, de baixo. Revelaram-se um estorvo para o engenho de cerco, pois sobre ele despejavam óleo fervente, quase ateando-lhe fogo, arremessavam pedregulhos enormes, um dos quais reduziu a cabeça de um mamute a uma polpa sangrenta, e utilizavam arqueiros, com conseqüências devastadoras.

Os cavaleiros persistiam na sua ação, mesmo depois dos outros defensores terem, há muito, desistido ou sido mortos. Se bem que irritado com o atraso, Steel saudou-os, e ao seu invisível comandante, pela coragem e bravura. Não fossem eles, a meio da tarde o aríete já teria derrubado os portões.

Como era inevitável, o aríete conseguiu, por fim, levar a cabo a tarefa, arrebentando os portões maciços de madeira. Steel reuniu as tropas à frente, preparando-se para entrar, quando o chefe dos oficiais das máquinas, depois de olhar de relance para o interior, veio correndo apresentar seu relatório:

— Existe uma maldita ponte levadiça bloqueando o caminho! — O homem tomava este obstáculo inesperado como uma afronta pessoal. — Não consta no mapa de Lorde Ariakan.

— Uma ponte levadiça? — Steel franziu o cenho, tentando se lembrar. Não se recordava de tê-la visto há cinco anos, quando fora à torre por este caminho. Mas ocorreu-lhe que na altura procediam a uma construção qualquer. — Ao que parece, edificaram-na. É capaz de derrubá-la?

— Não, senhor. O engenho não passa por baixo da parede. Senhor, é melhor chamar os feiticeiros.

Steel concordou e enviou um mensageiro para transmitir as notícias ao Senhor de Ariakan. Agora, só lhe restava aguardar.

Recordou-se da época em que cruzara aquele portão, quando se dirigira à Câmara de Paladino prestar homenagem à memória do pai. O corpo jazia, incorrupto, no sepulcro, alguns afirmavam que preservado pela magia da jóia élfica que Sturm usava em volta do pescoço. As mãos frias e quietas seguravam a espada dos Montante Luzente. Sentimentos de admiração pela coragem e bravura do defunto, de desgosto por não tê-lo conhecido, de esperança de ser como ele, agitaram a alma de Steel e converteram-se em respeito e amor. O pai retribuíra-lhe esse amor, dera ao filho as únicas oferendas que Sturm Montante Luzente podia endereçar-lhe — a jóia e a espada — dádivas de visionário, ao mesmo tempo abençoadas e amaldiçoadas. Embora o sol da tarde os castigasse com a sua ardência, Steel, sob a armadura, sentiu um leve calafrio perpassá-lo.

Cuidado moço. Se descobrir a verdadeira identidade do teu pai, cairá sobre ti uma maldição!

A advertência partira do Senhor de Ariakan, que a transmitira a Steel quando este era ainda muito jovem. A mesma provara ser verdadeira. A maldição abatera-se como um machado, rachando a alma de Steel em dois. Contudo, fora também uma bênção. Possuía a espada do pai e um legado de honra e de coragem.

Lá no alto, naquelas ameias defendidas com tanta bravura e tenacidade, as pedras encontravam-se manchadas com o sangue do pai. O sangue do próprio filho iria manchar os rochedos que se situavam em baixo. Um defensor, o outro conquistador. E, no entanto, iminentemente lutadores.

O mensageiro regressou, acompanhado de três Cavaleiros do Abrolho. Com soturno alívio, Steel reparou que nenhum deles era a Veste Cinzenta que fora sua acusadora.

Steel reconheceu o comandante destes, um Lorde do Abrolho. De meia-idade, o homem lutara na Guerra da Lança e era feiticeiro pessoal de Ariakan. Estava habituado a lidar com soldados, a misturar o aço com a magia.

Esboçou um gesto casual em direção à entrada da torre e gritou, para que o ouvissem no meio do fragor da batalha:

— O meu amo ordenou-nos que derrubássemos as defesas. Vou precisar das tuas tropas, para que nos cubram enquanto trabalhamos.

Steel ordenou às suas forças que se pusessem a postos. O mestre feiticeiro e os seus assistentes posicionaram-se na retaguarda. Atrás, uma nuvem de poeira indicava que o segundo exército de investida estava se formando, preparando-se para entrar mal o caminho se encontrasse desimpedido.

O Lorde do Abrolho esboçou um movimento com a mão.

Steel ergueu a espada e saudou a sua Rainha. Com um estridente grito bélico, conduziu as tropas, secundadas pelos feiticeiros de vestes cinzentas, e franqueou os escombros dos portões da Torre do Sacerdócio Supremo.

A ponte levadiça de ferro interpunha-se entre os cavaleiros e o pátio central. Do outro lado, os defensores, através das grades do portão, dispararam uma barragem mortal de setas.

Com larga experiência neste tipo de defesa, o Senhor do Abrolho e os outros dois Cavaleiros Cinzentos, de hierarquia inferior, colocaram mãos à obra, procedendo de forma rápida e perfeita. Steel, a quem a magia sempre inspirara uma certa desconfiança, observava-os, estupefato e cheio de admiração, enquanto os seus arqueiros combatiam através do gradeado de ferro, obrigando os defensores a manterem-se à distância.

Algumas setas, disparadas pelos arqueiros solâmnicos, caíram no meio dos fazedores de magia. Os dois Cavaleiros cinzentos ocuparam-se delas. Recorrendo a vários escudos e a encantamentos de desintegração, fizeram com que as setas, antes de chegarem ao alvo, batessem contra uma barreira invisível ou tombassem na poeira.

Trabalhando com tanta frieza e calma como se estivesse na segurança do seu laboratório, o Senhor do Abrolho retirou do alforje um grande frasco, que continha o que parecia ser água. Segurando-o na mão, verteu-o num pouco de terra, voltou a tapá-lo e, na linguagem arrastada da magia, começou a entoar palavras. Abriu de novo o frasco e, sempre recitando, arremessou o conteúdo contra a muralha de pedra na qual fora montada a ponte levadiça.

A água derramou-se pela pedra em catadupas. O feiticeiro voltou a guardar cuidadosamente o frasco no alforje, bateu palmas e, de imediato, a muralha começou a dissolver-se. Por artes mágicas, a pedra transformou-se em lama.

Concluída a tarefa, o Senhor do Abrolho enfiou as mãos nas mangas da veste e recuou.

— Avance — disse a Steel.

O cavaleiro ordenou a três dos brutos mais grandalhões para porem mãos à obra. Estes encostaram os ombros ao ferro e, com dois ou três puxões, arrancaram a ponte levadiça das suas amarras e arremessaram-na ao chão.

Parecendo enfastiado, o Senhor do Abrolho reuniu os assistentes.

— Se não deseja os nossos préstimos para coisas importantes — disse —, voltaremos para junto do meu amo.

Steel aquiesceu com a cabeça. Sentia-se grato pela ajuda dos feiticeiros, mas não lamentava vê-los partir.

— Avise-me quando a torre cair — acrescentou o mago. — Incumbiram-me de arrombar a porta da sala do tesouro.

Depois retirou-se, seguido apressadamente pelos assistentes. Steel ordenou aos homens que se livrassem dos arcos e das flechas e desembainhassem as espadas e as facas. Doravante, o combate seria corpo-a-corpo. Ouviu, atrás dele, gritarem ordens. O segundo exército de investida preparava-se para avançar.

Steel conduziu os homens por cima dos escombros do portão, pela lama viscosa e pelo corredor que desembocava no pátio central da Torre do Sacerdócio Supremo. Chegando ao fim deste, mandou as tropas pararem.

O pátio encontrava-se vazio.

Steel sentiu-se inquieto. Esperava resistência.

No interior das pesadas muralhas da torre, tudo estava calmo, calmo demais.

Tratava-se de uma cilada.

Pouco habituados a atacar fortificações, os brutos teriam arremetido à toa contra o espaço aberto. Em voz gutural, Steel emitiu uma ordem, sendo obrigado a repeti-la duas vezes antes dos brutos compreenderem que deviam aguardar o seu sinal para avançar.

Steel pôs-se a estudar cuidadosamente a situação.

O pátio fora construído em cruz. À direita de Steel, erguiam-se duas portas de ferro, assinaladas com o símbolo de Paladino, que desembocavam nas profundezas da torre. No extremo oposto da cruz, havia outra ponte levadiça, mas Steel não tencionava deixar-se enganar. O corredor conduzia às armadilhas contra dragões — que para os Cavaleiros de Takhisis, já haviam passado para a História.

De cada lado da ponte levadiça viam-se dois lances de escadas, que começavam nas ameias. Steel olhou-as fixamente. Ordenando aos brutos que guardassem silêncio, pôs-se à escuta e julgou ouvir um roçar, como se fosse uma armadura raspando a pedra. Com que então, era ali que se escondiam! Iria rechaçá-los dali e sabia como proceder.

Apontando para as portas de ferro que ficavam à direita, as assinaladas com o pica-peixe e a rosa, Steel, em voz alta, emitiu as suas ordens.

— Arrombem aquelas portas. Ao fundo das escadas encontra-se um sepulcro que encerra os corpos de Cavaleiros da Solamnia amaldiçoados. Recebemos ordens para saqueá-lo.

Vários brutos lançaram-se à tarefa, arremessando os corpos maciços contra a porta e desferindo golpes na fechadura com as espadas. Senhor indiscutível da torre, Steel entrou no pátio com ares arrogantes. Retirando o elmo, pediu um odre e bebeu um longo trago de água. Os brutos restantes treparam atrás dele, rindo e tagarelando. Arrancando as tochas das paredes, escarneciam, impacientes, os camaradas, cuja tarefa de arrombar a porta se revelava difícil.

Steel tampouco esperava que conseguissem. Não recebera ordem nenhuma para saquear o túmulo nem tencionava permitir que os bárbaros invadissem o átrio santificado. Mas o estratagema funcionara. Aproximando-se lentamente das escadas, conseguia ouvir agora com nitidez o retinir de metal contra metal e até um murmúrio de raiva, prontamente abafado.

Mantendo-se impassível e fingindo que nada ouvira, voltou para junto dos brutos e instigou-os:

— Seus pés-de-salsa! — exclamou, bufando. — Será que tenho de chamar os feiticeiros sempre que deparamos com uma porta? Mais valia eu comandar um exército de duendes malignos! Metam esses costados na...

Um fragor, o entrechocar de espadas e um grito súbito, vindos da sua esquerda, assinalou a Steel que os defensores tinham saído do esconderijo e atacavam.

Um contingente de Cavaleiros da Solamnia irrompeu pelo meio da força de Steel. Até este foi apanhado desprevenido pela investida, inesperada e fulminante. Vários brutos foram esfacelados antes de poderem empunhar as espadas.

Ao que parece, os cavaleiros eram chefiados por um comandante apto e inteligente. Não atacaram em tropel, mas antes com precisão, introduzindo-se à força no corpo principal do contingente de Steel e dispersando as suas tropas, ao mesmo tempo que se mantinham coesos. Como o segundo exército de investida estava entrando pela frente, os efetivos de Steel, não tendo outro lugar para onde ir, ficaram encurralados no pátio.

Claro que previra isto. Não esperava ganhar a batalha, mas, pelo menos, o segundo exército encontraria o caminho desimpedido.

Steel deixou para os seus homens a investida do ataque. Tinha por responsabilidade localizar o apto e inteligente comandante, possivelmente o mesmo que, com tanta determinação, combatera nas ameias, e eliminá-lo.

Decepe a cabeça e o corpo tombará, era uma das máximas de Ariakan.

Voltando a pôr o elmo e baixando a viseira, Steel, aos empurrões, abriu caminho pelos seus homens. Repeliu espadas e parou de lutar quando se viu forçado a isso. Mas a sua atenção mantinha-se concentrada na localização do oficial responsável. Tal revelou-se difícil. Todos os oficiais envergavam armaduras — muitas delas amassadas e ensangüentadas. Mal conseguia distinguir uns dos outros.

Enquanto forçava para abrir caminho até o centro daquela amálgama, do tumulto chegou aos ouvidos de Steel uma voz de comando que distribuía ordens e, desta vez, avistou o comandante.

Não usava elmo, possivelmente para que as suas ordens pudessem ser ouvidas com nitidez. Não envergava armadura completa, apenas uma couraça por cima de couro trabalhado. Steel não conseguiu enxergar-lhe o rosto, pois o comandante estava de costas para o cavaleiro das trevas. O cabelo comprido e castanho, com laivos grisalhos, indicava tratar-se de um homem mais velho, sem dúvida um veterano de inúmeras batalhas.

Parte da couraça pendia-lhe, solta. Uma das tiras de couro fora cortada, deixando-lhe as costas parcialmente descoberta. Mas Steel preferia morrer a atacar um homem por trás.

Enquanto empurrava os seus homens e ao mesmo tempo combatia um Cavaleiro da Solamnia, Steel aproximou-se do comandante e pousou-lhe a mão no ombro, para lhe chamar a atenção.

O homem virou-se de um salto e encarou o adversário. Tinha o rosto barbudo coberto de sangue. O cabelo, empapado de suor, caía-lhe nos olhos. Steel foi percorrido por um leve estremecimento. Algo dentro dele dizia: Conhece este homem.

— Meio Elfo! — exclamou, arquejante.

O homem refreou a investida, deu um salto para trás e olhou para Steel com desconfiança.

O cavaleiro sentia-se furioso com a partida que o destino lhe pregara, mas a sua honra exigia-lhe que deixasse de lutar contra o homem que lhe salvara a vida uma vez.

Com um gesto raivoso, Steel ergueu a viseira.

— Você me conhece, Tanis Meio Elfo. Não lutarei contigo, mas posso e exijo que se renda!

— Steel? — Tanis baixou a espada. O encontro o surpreendia, mas, de certo modo, também não o surpreendia. — Steel Montante Luzente...

Um jovem Cavaleiro da Solamnia que se encontrava próximo de Tanis, passou correndo pelo meio elfo, com uma lança assestada contra o rosto desprotegido de Steel.

Steel levantou o braço para se defender do golpe, escorregou numa poça de sangue e caiu no chão. A espada — a espada do pai — soltou-se da mão. O jovem cavaleiro já se encontrava a dois passos.

Desesperado, Steel tentou se levantar, mas a pesada armadura o impedia de executar movimentos rápidos. O Cavaleiro da Solamnia ergueu a lança e preparou-se para trespassar a garganta de Steel com a ponta. De repente, Steel deixou de ver cavaleiro e lança.

Erguendo a cabeça, viu Tanis, que lhe estendia a mão, para ajudá-lo a se levantar.

O orgulho acicatou-o a recusar a ajuda do inimigo, mas o bom senso e a Visão obrigaram-no a aceitar, de má vontade, os préstimos de Tanis.

— Mais uma vez te devo a vida, Meio Elfo — disse Steel com amargura, quando já se encontrava de pé.

— Não me agradeça — retrucou Tanis, soturno. — Fiz uma promessa ao...

O meio elfo esbugalhou os olhos, com um esgar de dor a contorcer-lhe o rosto. Tombou para frente, soltando um grito repassado de sofrimento.

Um dos brutos, que se encontrava atrás do meio elfo, empunhava agora uma espada coberta de sangue.

Tanis cambaleou e os seus joelhos cederam.

Steel amparou-o na queda e, suavemente, deitou-o no chão. Aninhando Tanis nos braços, o cavaleiro sentiu o sangue quente escorrer-lhe para as mãos.

— Meio Elfo! — exclamou Steel. — Não fui eu quem te atacou! Juro!

Tanis levantou a cabeça e esboçou um esgar.

— Eu... sei — sussurrou, com um sorriso de esguelha. — Você... é um Montante Luzente.

Assumindo uma postura rígida, arquejou e ouviu-se um estertor. O sangue gotejava-lhe da boca. Olhando para lá de Steel, tentou fixar algo que se encontrava por trás do cavaleiro das trevas.

Sorrindo, disse:

— Sturm, honrei a minha promessa.

Tanis suspirou baixinho, como que grato por poder repousar, fechou os olhos e morreu.

— Meio Elfo! — gritou Steel, embora soubesse que não teria resposta. — Tanis...

De repente, Steel deu-se conta da presença de um Cavaleiro da Solamnia, junto de si. O cavaleiro olhava fixamente para o corpo que jazia aos seus pés com uma expressão de desgosto, angústia e tristeza intensos.

O Cavaleiro da Solamnia não usava elmo e estava desarmado. Envergava uma armadura de concepção antiquada. Nada disse, não esboçou nenhum movimento ameaçador. Desviando o olhar, encarou Steel com uma expressão veemente, que era um misto de tristeza e orgulho.

Steel sabia quem era. Não se tratava de um sonho nem de uma visão. E, sendo-o, então Steel materializara-o, dando-lhe uma forma e um corpo.

— Pai! — sussurrou.

Sturm Montante Luzente não proferiu uma palavra. Inclinando-se, pegou no corpo de Tanis Meio Elfo, ergueu-o nos braços, virou-se e, em passos lentos, com gestos comedidos, afastou-se do pátio.

O estrépito de gritos de desafio e de braços a colidir, trouxe Steel à realidade. As portas de ferro, assinaladas com o símbolo de Paladino, escancararam-se. Um novo contingente de Cavaleiros da Solamnia precipitou-se para o pátio, acorrendo em auxílio dos camaradas. Um dos cavaleiros gritou que Tanis Meio Elfo estava morto, outro invocou Paladino para vingar a sua morte e apontaram para Steel.

Desembainhando a espada, Steel avançou ao encontro deles.

6 Os dragões se calam. A porta se abre. Alguém aguarda do outro lado.



Ai, ai! — exclamou Tasslehoff Pés Ligeiros, ao mesmo tempo estupefato e apavorado. E, em tom lamuriento, acrescentou: — Quebrei! Palin, foi sem querer! Estou sempre quebrando coisas. É uma maldição. Primeiro, foi um globo de dragão, depois, o dispositivo de viajar no tempo! Agora, fiz uma boa! Quebrei o Portal que dá para o Abismo!

— Bobagem — retorquiu Palin, mas sem convicção. Ocorrera-lhe o pensamento, alarmante, de que se havia alguém capaz de “quebrar” o Portal, esse alguém seria Tasslehoff.

Mas prevaleceram pensamentos mais lógicos. O Portal fora construído por poderosos magos que haviam recorrido a uma magia tão poderosa que nem sequer um kender conseguiria desvendá-la. Mas admitindo que era verdade, o que dera errado?

Cauteloso, Palin aproximou-se do Portal para examinar melhor e ficou a olhá-lo com ar perplexo.

— Sabe, Palin, já o vi uma vez antes. — Tas fixou o Portal e abanou tristemente a cabeça. — Era lindo, se bem que de uma maneira terrível. Todas as cinco cabeças de dragão tinham cores diferentes e todas guinchavam. E o Raistlin estava cantando e lá dentro viam-se luzes a rodopiar, e só de olhá-las fiquei tonto. E então ouvi uma gargalhada horrível vinda de dentro e... e... — Tas soltou um suspiro e, com ar abatido, caiu de joelhos. — Olha para ele agora.

Palin estava olhando. Realmente, nunca vira o Portal, a não ser na ilusão que Dalamar criara. Mas, tal como os outros magos, Palin estudara o Portal. Este, uma enorme porta oval montada numa plataforma, encontrava-se decorado e guardado pelas cabeças de cinco dragões, cujos pescoços emergiam, serpenteantes, do chão. As cinco cabeças pareciam absortas em meditação: duas de um lado, três do outro. As bocas, abertas, entoavam cânticos infinitos e silenciosos à Rainha das Trevas.

No interior do Portal, reinava uma escuridão que só os olhos da magia conseguiam devassar.

Sempre que a cortina que ocultava o Portal se levantava, as cinco cabeças adquiriam vida e irradiavam luz: azul, verde, encarnada, branca, preta. Matariam e devorariam todo o mago suficientemente louco para tentar a entrada pelos seus próprios meios, como acontecera durante o Teste...

A luz cegou Palin. Pestanejou com esforço e esfregou os olhos, que queimavam. As cabeças de dragão emitiram um fulgor ainda mais forte e ele conseguia agora ouvi-las entoando cânticos.

A primeira: Saltando de trevas em trevas, a minha voz ecoa pelo vazio.

A segunda: Deste mundo para o outro, a minha voz grita por vida.

A terceira: Saltando de trevas em trevas, eu grito. Por sob os meus pés, tudo se torna firme.

A quarta: Tempo que se escoa, detém-me no teu curso.

E por fim, a última cabeça: Pelo destino, até os deuses são repelidos, possam todos eles chorar comigo.

...A visão enevoou-se e lágrimas correram-lhe pelas faces, enquanto tentava divisar o portal através da luz ofuscante. Num desvario, as luzes multicoloridas começaram a rodopiar, girando em torno do vazio imenso, escancarado, tortuoso, que se formava no centro...

Ora essa, que coisa espantosa! — exclamou Tas de repente. Levantando-se de um pulo, correu para Palin e puxou-lhe a manga. — Consigo ver lá dentro! Palin, consigo ver! E você, consegue?

Palin soltou um arquejo. Conseguia vislumbrar o interior do Portal. Sob um céu cinzento e vazio, espraiava-se uma paisagem plana, cinzenta e vazia.

As cinco cabeças de dragões mostravam-se pardacentas, em silêncio. Nos olhos dos dragões, que deviam lançar chispas, como uma feroz advertência, por esta tentativa de devassarem a sua guarda, refletia-se uma expressão embotada, baça, vazia.

— É o Abismo mesmo — declarou Tas em tom solene. — O reconheci. Isto é, acho que o reconheci. Mas a cor não é a mesma. Não sei se te contei que...

— Contou — murmurou Palin, ciente de que não faria diferença. Tas prosseguiu:

— Pois, já estive no Abismo uma vez e fiquei consideravelmente desapontado. Tinha ouvido tanta coisa: demônios, mafarricos, espíritos e fantasmas, almas atormentadas, que me sentia na verdade ansioso por fazer uma visita. Mas o Abismo não se parece nada com isso. É horrível, vazio e enfadonho. Quase morri de tédio.

Já dizia o ditado, “O céu de um homem é o inferno de outro.” E isso certamente se aplicava ao kender.

— Quase tão enfadonho como por estas bandas — acrescentou Tas, uma frase que, tal como Palin devia ter notado, quando proferida por um kender se tornava de mau agouro.

Contudo, o jovem mago encontrava-se imerso nos seus pensamentos, tentando explicar o inexplicável. O que se passava com o Portal? Tas não parava de tagarelar.

— Mas, me lembro perfeitamente que o Abismo não tinha esta cor parda mas uma espécie de rosa, como uma fogueira ardendo à distância. Foi como Caramon o descreveu. Talvez a Rainha das Trevas decidiu mudar a decoração. — O pensamento alegrou-lhe o semblante. — Poderia escolher um esquema de cores mais atraente... Assim como está, não faz o meu gênero. Contudo, qualquer alteração poderia melhorá-lo.

Tas deu um puxão na túnica, certificou-se de que tinha todos os alforjes e avançou, dizendo:

— Vamos lá dar uma olhada...

Palin mal lhe prestava atenção, ocupado como estava em recordar tudo o que ouvira ou lera a respeito do Portal e do Abismo. Mas a parte da sua pessoa que se mantinha constantemente alerta, quando na presença de kenders — uma faceta relacionada com a sobrevivência que muitos humanos desenvolveram —, fez soar um alarme, interrompendo-lhe os pensamentos.

Dando um salto para frente, batendo, na pressa, contra o estrado, Palin conseguiu agarrar Tas segundos antes do kender se aventurar pelo Portal.

— Que foi? — perguntou Tas, de olhos arregalados. — Que aconteceu?

Palin mostrava dificuldade em respirar.

— O encantamento... — gaguejou — ...pode ter sido ativado... Não é permitido entrar... Poderia... ter sido morto...

— Acho que sim — respondeu Tas, pondo-se a refletir. — Por outro lado, acho que não. Como o Fizban costumava dizer, é assim que a bola de fogo pula de um lado para o outro. Além disso, parece que o Raistlin está ficando impaciente. Não acho que seja boa educação fazê-lo esperar mais tempo.

Palin parou de respirar por completo. Sentiu a sua carne arrefecer, o seu coração ressequir-se.

— O meu... tio...

— Está bem ali — disse Tas, apontando para o Portal, na direção da paisagem cinzenta e vazia. — Não o vê?

Apertando o Bastão de Magius, Palin arrimou-se a ele, procurando apoio. Olhou de novo para o interior do Portal, receoso de ver...

O corpo de Raistlin, flácido, estava suspenso na parede pelos pulsos, com as vestes pretas rasgadas em tiras, o longo cabelo branco tombava-lhe no rosto, a cabeça curvada para frente... A carne de Raistlin, do peito às virilhas, fora arrancada, esfacelada por lanças afiadas, deixando à mostra os órgãos palpitantes. O pingar que Palin ouvia, era o som do sangue do mago que, gota a gota, ia caindo num grande tanque de pedra que se encontrava aos seus pés.

Raistlin encontrava-se de pé, envergando as vestes negras, com os braços cruzados no peito. Tinha a cabeça inclinada, absorta, mas de vez em quando relanceava o olhar na direção do Portal, como se aguardasse alguém. Depois, voltava a mergulhar nos seus pensamentos, que deviam ser desagradáveis, a avaliar pela expressão carrancuda do rosto magro e pálido.

— Tio!

Fora só um murmúrio, tão em surdina que Palin quase não se ouviu pronunciar a palavra.

Mas Raistlin ouviu. O arquimago levantou a cabeça e fitou Palin com os seus olhos dourados, que lembravam ampulhetas.

— Por que hesita, sobrinho? — perguntou, em tom irritado, uma voz seca e áspera. — Apresse-se! Já perdeu muito tempo! O kender já esteve aqui. Ele te guiará.

— Sou eu! — gritou Tas, todo excitado. — Está falando de mim! Vou ser guia! Nunca tinha guiado ninguém! A não ser o Tarsis, que não estava junto ao mar quando devia, mas isso não foi culpa minha. — Agarrando com força a mão de Palin, acrescentou: — Anda, siga-me! Sei exatamente o que fazer...

— Mas, não posso! — respondeu Palin, libertando-se do abraço de Tas.

— Tio! — chamou. — E o Portal? De acordo com as leis da magia, não podemos...

— Leis — repetiu Raistlin, em tom suave e absorto. Olhando para o horizonte distante, para o cinzento pálido do céu infindável, acrescentou:

— Sobrinho, todas as leis se encontram suspensas, todas as regras foram quebradas. Pode atravessar o Portal à vontade. Ninguém te impedirá. Ninguém.

Leis suspensas. Regras quebradas. Que palavras mais estranhas. Contudo, Palin tinha diante dos olhos a prova disso — ou algo parecido. Podia entrar no Portal sem que o estorvassem. A Rainha das Trevas não iria tentar impedi-lo. Não corria perigo.

— Engana-se, sobrinho — disse Raistlin, respondendo aos pensamentos de Palin.— Corre um grande perigo, você e todos os outros mortais de Krynn. Venha até mim, para que te explique. — Os olhos em forma de ampulheta estreitaram-se. — A menos que tenha medo...

Palin sentia receio. Havia motivos de sobra para isso. Mas, respondeu serenamente:

— Tio, cheguei até tão longe, não voltarei para trás.

— Bem dito, sobrinho. Folgo constatar que não perdi tempo investindo em você. Quando chegar aqui, procure-me.

Palin inspirou fundo, agarrou o bastão com uma das mãos e Tasslehoff com a outra.

Juntos, foram se postar diante das cabeças dos cinco dragões.

Estes não se mexeram, não falaram, não viram, não ouviram.

O Portal não foi quebrado, disse Palin para consigo, em tom suave, está... morto!

Tas e Palin cruzaram o Portal que dava para o Abismo com a mesma naturalidade que teriam se passassem pela porta da cozinha de Tika.

7 O abismo. A busca. Uma assembléia imortal



Permaneceram ali, envoltos em cinzento: solo cinzento, céu cinzento. Não havia sinais de vida, nem sequer de vida amaldiçoada. Tampouco vislumbraram Raistlin.

— Tio! — Palin começou a gritar.

— Chiu! Cale-se! Não faça isso! — exclamou Tas, agarrando-se a Palin e quase o derrubando. — Não diga uma palavra. Nem pense!

— O quê? Porque não? — inquiriu Palin.

— Por estas bandas, as coisas acontecem de um modo muito estranho — murmurou Tas, relanceando furtivamente o olhar em volta. — Quando estive aqui, pensei como seria bom ver uma árvore. E apareceu uma, tal e qual. Só que não era uma árvore verde e frondosa, mas uma árvore morta. E depois, pensei no Flint, porque, de acordo com o Fizban, deveria encontrar-me com o Flint debaixo de uma árvore no Além. Então, apareceu um duende, só que não era o Flint, mas um duende maligno chamado Arack, que se aproximou de mim com uma faca e...

— Compreendo — interrompeu-o Palin, com voz suave. — O que desejamos, recebemos, só que não conforme queremos. Acha então que Raistlin... não passou de uma ilusão?

— Parecia horrivelmente real, não parecia? — disse Tas, depois de um instante de reflexão. — Aquela treta misteriosa a respeito de leis suspensas e regras quebradas... é bem do Raistlin. E a maneira como nos disse para nos encontrarmos com ele aqui e depois desapareceu antes de chegarmos. Também é bem dele.

— Mas, disse para nos apressarmos... — Palin ponderou o assunto. — Leis suspensas... Regras quebradas... Quando chegar aqui, procure-me... Tas — acrescentou, inspirado por uma idéia súbita —, como se viaja por este lugar? Não andamos, não é?

— Bom, poder podemos, mas o cenário nada tem de especial, para não citar que desconhecemos para onde vamos... Sabemos para onde vamos?

Palin abanou a cabeça.

— Então, não o aconselho — respondeu Tas. — Lembro-me, da última vez que estive aqui, daquele tipo macabro, com uma barba que lhe irrompia do crânio e que exalava um fedor que parecia um piquenique de duendes dos esgotos, só que pior. Foi quem me encontrou e me levou à Rainha das Trevas. Não foi simpática — acrescentou Tas, em tom severo. — Disse-me...

— Como conseguiu fazer para se encontrar com a Rainha? — interrompeu-o Palin e mantendo as rédeas da conversa bem curtas, pois bem sabia que, se as soltasse, o kender se dispersaria pela meia dúzia de estradas coloquiais secundárias.

Pensativo, Tas franziu o cenho.

— Bom, não foi de carruagem — respondeu. — Senão me lembraria. Acho... Sim. O tipo horripilante pôs a mão... se bem me recordo, era mais uma garra do que uma mão... em volta de um medalhão que usava ao pescoço e, num minuto, estávamos num lugar qualquer e no seguinte, estávamos noutro lugar qualquer.

— Tem certeza que usava um medalhão? — perguntou Palin, desapontado.

— Absoluta. Lembro-me porque era um medalhão com um aspecto muito interessante... tinha um dragão de cinco cabeças... e eu gostaria de tomá-lo emprestado por uns minutinhos, só para examiná-lo melhor, e...

— O bastão — disse Palin.

— Não. Era um medalhão. Tenho certeza. Eu...

— Quero dizer que poderíamos ser capazes de usar o bastão para encontrar o meu tio. Anda, segure minha mão — disse Palin, agarrando o bastão com mais força.

— Magia? — perguntou Tas, ansioso. — Adoro magia! Lembro-me que uma vez o Raistlin usou a magia e enfiou-me num lago de patos. Foi...

Palin não prestou atenção. Fechando os olhos, apertou o bastão e sentiu na mão a calidez da madeira macia. Pensou no tio, visualizou-o como o vira e a voz dele, bem nítida, chegou-lhe aos ouvidos.

Apresse-se! Venha até mim...

— Oh! — exclamou Tas, com um arquejo. — Palin! Olha! Funcionou! Estamos nos movendo!

Sob os pés, sentiu deslizar a paisagem cinzenta e imutável. O céu começou a girar em volta deles, a rodopiar em volta deles, cada vez mais depressa, até Palin sentir-se enjoado e tonto.

O cinzento rodopiante envolvia-o, girava à sua volta. O chão fugiu-lhe debaixo dos pés, mas o cinzento manteve-o sob o seu abraço, não o largou.

E rodopiaram... rodopiaram... rodopiaram...

E rodopiaram... rodopiaram... rodopiaram...

O fuso girava, exaurindo-o dos sentidos, da consciência, e ia fiando numa grande roda que girava, girava... e girava... e o fio era cada vez mais tênue e...

Snape.

Palin não conseguia respirar. Uma mão apertava-lhe a boca. Estrebuchou, tentou erguer as mãos para se libertar do abraço sufocante...

— Chiu! — ciciou uma voz. — Nem uma palavra! Nem um som! Não deveríamos nos encontrar aqui.

Palin abriu os olhos e deparou com uns olhos dourados, em forma de ampulheta. A mão que lhe tapava a boca era magra e ossuda, e os dedos, compridos e delicados. A pele tinha laivos dourados. Era o tio, a mão do tio que o segurava.

Palin aquiesceu, a indicar que compreendia. Raistlin afrouxou o abraço e Palin inspirou fundo.

Sentiu uma coisa a retorcer-se ao seu lado. Tasslehoff.

O kender disse algo, mas Palin não conseguiu ouvi-lo. Sabia que Tas estava falando, pois via-lhe a boca se mexendo, mas não emitia palavras.

Parecendo extremamente desorientado, Tasslehoff apalpou a garganta e voltou a falar. Nada.

Pousando a mão em concha no ouvido, Tasslehoff tentou de novo. Nenhum som saiu.

Em desespero, o kender colocou a língua de fora, quase entortando os olhos na tentativa de verificar o que esta tinha de errado.

Aproximando-se de Palin, Raistlin disse-lhe em voz suave:

— O encantamento não é permanente. Não o perca de vista.

Palin aquiesceu de novo, embora sem deixar de se interrogar porque motivo Raistlin trouxera o kender consigo. Preparava-se para perguntar quando Raistlin, dardejando-o com um olhar carrancudo, o forçou ao silêncio.

Palin, Raistlin e Tas encontravam-se escondidos nas densas sombras, por trás de uma coluna enorme de mármore, de um branco reluzente, com estrias pretas e encarnadas. Junto de Palin erguia-se outra coluna de mármore preto, com estrias encarnadas e brancas. E, para lá da mesma, via-se uma terceira coluna de mármore vermelho, com arabescos pretos e brancos. Debaixo dos pés não havia assoalho nem solo, apenas escuridão.

Palin soltou um leve arquejo. Sentiu uma mão forte apertar a sua e dedos esguios enterraram-se dolorosamente no braço.

Raistlin não disse palavra. Estas tornavam-se supérfluas. Palin fechou a boca, determinado a não emitir mais nenhum som. Segurou Tas com força, pois este começava a rastejar para longe. Juntos, olharam para baixo.

Avistaram um grupo de pessoas, que permaneciam num círculo. Sob os pés destas, havia um chão de mármore. No centro do mesmo, via-se um círculo negro de nada. Do círculo irradiavam faixas de cores alternadas: brancas, pretas, vermelhas. As pessoas — homens e mulheres — encontravam-se à beira do círculo, cada uma na cor que lhe pertencia. Falavam e discutiam.

Estupefato, Palin olhou de relance para Raistlin.

O arquimago inclinou a cabeça encapuzada na direção das pessoas e levou a mão à orelha.

Palin escutou com atenção e, quando se apercebeu da importância da conversa, da amplitude do que diziam, ficou sem fala. Mesmo que quisesse, não conseguiria produzir um som. Ouviu e observou com ávida atenção, enquanto sentia a alma estremecer. Até Tas sossegara, finalmente, tão intimidado se sentia.

As pessoas que espiavam, eram os deuses de Krynn.

— A culpa é toda de Hiddukel! — Chislev, uma deusa vestindo roupa verde de seda fiada, com folhas e flores entrelaçadas no cabelo castanho, apontou um dedo acusador contra um deus entrançado que se encontrava numa faixa preta. — Enganou-me, e ao duende. Não é verdade, Reorx?

O duende, cuja roupagem fina era das mais inadequadas, segurou o chapéu de plumas nas mãos. Via-se que se sentia mortificado, mas a cólera ensombrava-lhe os olhos.

— Chislev fala a verdade. Fui eu quem forjou a maldita pedra... por insistência dela, devo acrescentar. Contudo, foi Hiddukel quem preparou toda esta tramóia.

O deus — um deus grandalhão e rotundo, com modos insinuantes — sorriu, com ar distante e aparentou indiferença. Os seus olhinhos semicerrados fitavam de relance e com nervosismo uma linda mulher de rosto e olhos frios, que vestia uma reluzente armadura negra e se encontrava na parte superior do círculo.

— Então, Hiddukel? — A voz de Takhisis parecia a encarnação das trevas. — Que tem a dizer em tua defesa?

— O que eu fiz foi perfeitamente legítimo, minha rainha — replicou Hiddukel, com modos untuosos e mansos. — Todos conhecemos a história da Pedra Preciosa Cinzenta. É desnecessário repeti-la aqui. Não passou de uma conspiraçãozinha inofensiva para aumentar ainda mais a glória de Sua Majestade.

— E fazê-la reverter a teu favor?

— Acautelei os meus interesses — choramingou Hiddukel, esquivando-se à ira de Takhisis. — Que mal há? Se há pessoas — disse, virando o rosto untuoso para Chislev — tão ingênuas a ponto de caírem nela, o problema é delas, não é verdade? E se algumas — Hiddukel olhou com ar depreciativo para o duende — são tão estúpidas a ponto de tentar capturar o Caos...

— Foi um acidente! — rugiu Reorx. — Tencionava agarrar apenas uma parte do Caos... um pedacinho de nada. Senhor, tem que acreditar em mim!

Humilde, o duende virou-se para um deus alto, de rosto soturno, que usava uma armadura prateada e ocupava uma faixa branca próxima de Takhisis.

— Não tencionava capturá-lo — acrescentou Reorx, com voz mortificada.

— Estou ciente disso — respondeu Paladino. — Somos todos culpados.

— Uns mais do que outros. Foi necessária uma magia poderosa para conter o Caos — grunhiu Sargonnas, um deus alto e dotado de chifres que se encontrava perto de Taskhisis. — Parece-me que os responsáveis são os nossos filhos rebeldes.

Os três deuses da magia aproximaram-se uns dos outros.

— A culpa não foi minha — afirmou Lunitari.

— Não sabíamos nada a respeito disso — replicou Nuitar.

— Ninguém nos consultou — protestou Solinari.

Reorx resmungou:

— Foi a Lunitari quem perdeu a Pedra Preciosa Cinzenta!

— E foi o teu duende minorca e porcalhão quem a roubou! — replicou Lunitari.

— Se ao menos alguém me tivesse perguntado! — queixou-se Zivilyn — Eu poderia perscrutar o futuro e avisá-los...

— Quando? — inquiriu Morgion, com voz sarcástica. — Daqui a seis ou sete milênios? Era o tempo que levaria para se decidir sobre que futuro seria.

Os deuses de categoria inferior começaram a discutir em voz estridente, culpando-se uns aos outros. Em cada voz e rosto eram patentes o cansaço e o medo. As quesilas e as acusações arrastaram-se por tempos intermináveis. A pedido dos vários deuses, Gileano leu longas passagens que retirou do seu livro, procurando atribuir ou isentar culpas. Reorx proferiu um discurso inflamado em defesa da sua própria pessoa. Hiddukel também o secundou, falando muito e quase nada dizendo. Sargonnas atribuiu todas as culpas às raças fracas, insignificantes e lamurientas dos Humanos, Elfos e Ogros, afirmando que, se ao menos tivessem o bom senso de se tornar servos dos Minotauros, tal calamidade não teria ocorrido. Zivilyn replicou apresentando inúmeras versões do futuro e do passado que, sem nada resolver, só serviram para confundir a questão.

O argumento arrastou-se por tanto tempo e tornou-se tão extenuante e infrutífero que, por diversas vezes, Palin chegou a cochilar. Acordava em sobressalto quando uma voz mais estridente se alteava e tombava de novo no sono. Tinha a nítida e algo desagradável sensação de ver escoar o tempo, mas esse tempo situava-se em algum lugar e não ali.

Ia questionar Raistlin, mas, quando tentou falar, este abanou a cabeça e os seus olhos dourados cerraram-se. Parecia bastante descontente. Tasslehoff dormia a sono solto, ressonando baixinho.

Por fim, precisamente quando Hiddukel afirmava estar preparado para citar vários precedentes legais importantes, todos com relação direta com o seu caso, Paladino e Takhisis, que, durante a discussão tinham guardado silêncio e permaneciam calados, entreolharam-se.

Viu-se um clarão repentino de luz brilhante e só os três deuses de categoria superior permaneceram no círculo. Os deuses inferiores desapareceram.

— Foi inútil trazê-los até aqui — disse Takhisis em tom azedo.

— Tínhamos que tentar — pronunciou-se Gileano, até então calado. Segurava um grande livro e não parava de escrever nele. — Talvez ficássemos sabendo de algo que pode vir a nos ser útil.

— Para mim foi óbvio que nenhum deles sabia como isto aconteceu — replicou Paladino. — Ao que parece, o Caos ficou preso dentro da Pedra Preciosa Cinzenta e — com ou sem razão — atribui-nos a culpa.

Caso esteja falando a verdade — disse Takhisis. — Poderia ser um truque.

— Acredito que ficou preso lá dentro — observou Gileano, com ar pensativo. — O assunto mereceu um estudo cuidadoso e tal explicaria muita coisa: a confusão que a Pedra Preciosa Cinzenta espalhou por todo o Krynn, o fato de nenhum de nós ser capaz de controlá-la...

— Os teus Irdas conseguiram controlá-la, irmão — interrompeu Takhisis, dardejando Paladino com um olhar de recriminação.

— Diga antes que ela os controlou — respondeu o deus, em tom soturno. — O Caos descobriu por fim pessoas a quem pode manipular, pessoas que, em magia, são suficientemente fortes para libertarem-no e que no entanto não possuem força suficiente para detê-lo. Pagaram pela sua loucura.

— E ele está determinado em nos fazer pagar. A questão que se põe é: ele pode fazer isso? Ele será suficientemente forte? A nossa força foi crescendo ao longo dos séculos.

— Mas não o suficiente — observou Gileano, com um suspiro. — Irmã, como você mesma relatou, o Caos provocou uma grande fenda, que está se formando no Abismo. O seu poder aumentou, transcendendo tudo o que possamos imaginar. Está convocando os seus exércitos: demônios, terríveis guerreiros das sombras e dragões que expelem fogo. Quando estiver preparado, atacará Krynn. O seu objetivo: destruir tudo o que criamos. Quando consumado, a fenda será imensa e profunda, tão imensa e tão profunda que engolirá o mundo. Tudo o que existe agora, ficará reduzido a nada.

— E o que vai ser de nós? — inquiriu Takhisis. — Que fará conosco?

— Ele nos deu vida — respondeu Paladino, a custo. — Pode nos tirar.

— A questão que se põe é: que faremos agora? — perguntou Gileano, passeando o olhar pelos irmãos.

— Está brincando conosco — disse Paladino. — Num abrir e fechar de olhos, pode nos destruir a todos. Quer nos ver sofrer, ver a nossa Criação sofrer.

— Irmãos, sugiro que partamos sorrateiramente antes que ele dê pela nossa falta — sugeriu Takhisis, com um encolher de ombros. — Podemos sempre criar outro mundo.

Não abandonarei os que confiaram em mim — interveio Paladino, com ar soturno. — Se for necessário, me sacrificarei por eles.

— Talvez lhes façamos um favor se partirmos — salientou Gileano. — Se partirmos, é possível que o Caos nos siga.

Depois de destruir o mundo — insistiu Paladino, com os olhos a reluzir —, o “nosso brinquedo”, como ele chama. Não mostrará compaixão. Vou ficar e combatê-lo... se for necessário, sozinho.

Pensativos, os outros dois deuses guardaram silêncio.

— Irmão, talvez esteja certo — disse Takhisis com uma doçura repentina e desarmante. — Devemos ficar e lutar. Mas necessitaremos da ajuda dos mortais, não concorda?

— Diga antes que precisam de se ajudar uns aos outros— disse Paladino, olhando para a irmã com ar duvidoso.

— Nunca poderíamos destruir o Caos — disse Gileano —, mas haverá possivelmente meios de obrigá-lo a partir. Neste sentido, os mortais poderiam nos ajudar.

Se estivessem unidos — observou Takhisis. — De nada servirá os exércitos dos humanos e dos elfos estarem atiçados uns contra os outros quando deveriam combater as legiões do Caos.

— Se unirão — disse Paladino, com voz sinistra. — Não lhes resta outra opção.

— Talvez. Talvez não. Meus irmãos, temos coragem para arriscar? Para bem deles e para o nosso?

— Irmã, fale sem rodeios — pediu Paladino. — Já estou vendo que tem algum plano em mente.

— E que sem dúvida reverterá em seu benefício — acrescentou Gileano em surdina, referindo-se à irmã.

Takhisis ouviu-o e compôs um ar magoado de quem se espanta por terem a coragem de interpretá-la tão mal.

— Se conseguirmos livrar o mundo do Caos, o que reverter em benefício de um irá beneficiar todos. Não é verdade, meus queridos irmãos? — disse.

— Qual é o seu plano? — repetiu Paladino.

— Muito simples. Passem o controle de Ansalon para as mãos dos meus cavaleiros. Permitam-lhes que se tornem seus regentes. Sob o seu governo, a lei e a ordem prevalecerão. Terminarão estas quesilas e lutas infindáveis entre os mortais. A paz voltará a Ansalon. Os mortais se tornarão coesos e deste modo preparados para o ataque do Caos.

— Unidade? A unidade dos escravos! A paz do cárcere! Não posso acreditar! Não esperava isto nem sequer de você, irmã! — replicou Paladino, em tom furioso. — Nunca enfrentamos tamanho perigo e mesmo assim, embora a tua existência esteja presa por um fio, continua a maquinar e a conspirar para obter as coisas à sua maneira! Não concordo!

— Irmão, tenha calma — interveio Gileano, em tom conciliador. — Sem dúvida que a nossa amada irmã joga com um pau de dois bicos. O que mais esperava? No entanto, o plano que propôs tem algum mérito. Uma Ansalon pacífica e unificada, mesmo à custa das trevas, melhor preparada para enfrentar os exércitos do Caos do que uma Ansalon fragmentada, dividida e em polvorosa.

Paladino ficou pensativo, perturbado. Olhou para Takhisis e depois para Gileano.

— Apóia-a nisso? — perguntou.

— Sim, irmão, receio que sim — respondeu Gileano, em tom gentil. — Não me resta outra esperança.

— Vamos, irmão, não seja egoísta! — insistiu Takhisis, em tom sardônico. — Fala sem pudor em sacrificar-se pelos seus preciosos mortais. Mas, quando soa a hora de fazê-lo, recua. É só conversa fiada? Ou fala mesmo a sério?

Paladino permaneceu por largo tempo em silêncio. De cenho franzido, olhou, penalizado, para o mundo. Abanando a cabeça, disse por fim:

— Não consigo vislumbrar o futuro. As chamas e a fumaça tapam-me a visão. Não posso assegurar que vocês dois estejam certos. Porém, como vejo ambos contra mim, não me resta outra opção senão concordar. Irmã — acrescentou, com um suspiro de amargura —, Ansalon será sua.

— Uma opção sábia, meu irmão — respondeu Takhisis, fria, sinistra e magnânima no triunfo.

— Mas, só governará até à destruição das forças do Caos — insistiu Paladino.

— Ou até à nossa — acrescentou Gileano em tom soturno. Exibindo o livro, no qual continuava a escrever, acrescentou: — Querido irmão, querida irmã, é bem possível que eu esteja escrevendo o capítulo final.

— Então — respondeu Takhisis —, é melhor que o façamos bem. Meus irmãos, despeço-me. Tenho uma batalha para ganhar.

Dito isto, desapareceu. Paladino partiu logo a seguir. Só ficou Gileano. Sentando-se, continuou a escrever no grande livro.

8 Desapontamento. A vitória é nossa. A rendição.



Steel Montante Luzente encontrava-se vivo.

Não queria estar. Não devia estar. Devia ter morrido durante a investida contra a Torre do Sumo Sacerdócio, em combate, com nobreza e bravura, ver a vida sacrificada pela sua Rainha e a honra resgatada.

E a sua morte fora inevitável — provava-o a armadura trespassada pela lança que um nobre inimigo lhe arremessara. Ao salvar Steel dela, Tanis Meio Elfo iludira o destino, morrera a morte de Steel.

Steel encontrava-se no pátio central da Torre do Sacerdócio Supremo, segurando na mão a espada, viscosa de sangue, algum dele, grande parte de outros. Não conseguia compreender o que se passava, dentro dele ainda fervilhava a luxúria do combate. A recordação mais vívida, era a do pai, afastando-se com o corpo de Tanis. E, não fosse o sangue deste tingir as pedras aos seus pés, se interrogaria se não teria imaginado tudo aquilo.

Depois disso, apenas lhe ocorria o estranho silêncio da batalha — o silêncio que paira sobre o entrechocar das armas, os estertores dos moribundos, os gritos de ordens, o ruído de passos. Contudo, todos esses sons foram absorvidos pelo silêncio, o silêncio do guerreiro que tem de concentrar a sua existência no objetivo, que não pode permitir que nada o distraia, nada interfira.

Para Steel, o silêncio quebrou-se quando, olhando ao redor à procura de um adversário com quem lutar, percebeu que não havia ninguém.

— Vitória! A vitória é nossa! — O subcomandante Trevalin, com a armadura amassada e ensangüentada, o — rosto coberto de sangue e fuligem, irrompeu pelo pátio central, gritando as notícias.

Detendo um escudeiro e empurrando-o para a entrada, Trevalin ordenou:

— Vá transmitir as novas ao meu Senhor de Ariakan! Diga-lhe — se é que já não lhe chegou aos ouvidos — que os Solâmnicos pretendem discutir as condições de rendição.

Olhando em redor, avistou Steel, que se encontrava no meio do pátio, com ar aturdido e desconcertado. Precipitou-se para ele e cingiu o amigo nos braços.

— Montante Luzente! Embainhe a espada! Ganhamos!

— Ganhamos... — repetiu Steel. A batalha terminara e ele encontrava-se vivo.

Exultante, Trevalin prosseguiu:

— Uma campanha gloriosa! Que perdurará para sempre! Pela primeira vez nos anais da História, a Torre do Sumo Sacerdócio cai! Uma vitória retumbante! Em breve, Palanthas será nossa. Mal ouvirem que os seus protetores foram derrotados e que os dragões bons fugiram, os cidadãos nos cairão nas mãos como frutos apodrecidos. E você, meu amigo! Já correm por aí histórias do teu valor! Afirmam que matou Tanis Meio Elfo.

— Não — murmurou Steel. O fogo da batalha que lhe revolvera as veias começava a extinguir-se lentamente, nada deixando atrás de si senão cinzas e fumaça. Estava vivo. — Não, não matei o meio elfo. Ele salvou...

Mas Trevalin não lhe prestou atenção. Pelo pátio irrompeu um mensageiro do Senhor de Ariakan a cavalo. A montaria, que fora treinada para as velocidades e não para as batalhas, à vista dos corpos e sentindo o fedor do sangue, amedrontou-se. Procurando aquietar o cavalo, solicitou permissão para se dirigir à autoridade em comando.

— Sua Eminência avistou uma bandeira branca desfraldada no alto da torre. Chegaram mensageiros informando que os defensores da torre pretendem discutir as condições de rendição. O meu amo também ouviu dizer que os dragões prateados e os dragões dourados abandonaram o campo e a batalha. Subcomandante, há alguma verdade nisto?

— É tudo verdade. Eu mesmo vi os ditos dragões “bons” partirem — respondeu Trevalin, rindo. — Quem sabe se Paladino lhes enviou uma mensagem, ordenando-lhes que batessem em retirada.

O mensageiro não pareceu achar graça. O cavalo escavava o chão e relinchava, andando de um lado para o outro com nervosismo, com os cascos escorregando nas pedras cobertas de sangue. Enquanto falava com Trevalin, o mensageiro deslocava-se para lá e para cá, guiando o desassossegado animal.

— Sua Eminência suspeita se tratar de um ardil.

Mais comedido, Trevalin aquiesceu.

— Não me surpreenderia se os dragões se retirassem apenas para se agruparem em algum lugar e reforçarem os efetivos. Mais uma razão para aceitar a rendição dos cavaleiros e assumir depressa o comando desta fortaleza.

— Os respectivos oficiais são aqueles? — inquiriu o mensageiro em voz baixa, inclinando-se para o pescoço do cavalo. — Aqueles homens que avançam para nós?

Três Cavaleiros da Solamnia entraram no pátio. Um, o comandante, um Lorde Cavaleiro da Rosa, caminhava à frente e os outros dois ladeavam-no, com ar solene. Tinham retirado os elmos — ou estes haviam-se perdido na batalha. Exibiam marcas da contenda, as armaduras encontravam-se amassadas, cobertas de poeira e de sangue. O comandante vinha coxeando e o seu rosto contorcia-se de dor sempre que dava um passo lento e se detinha. Outro, com um dos braços hirto, tinha a cara coberta de sangue, que lhe escorria de um golpe fundo da cabeça. Um dos olhos do terceiro encontrava-se envolto numa ligadura tosca, empapada de sangue, que lhe escorria pela bochecha.

Traziam consigo um pedaço de pano branco.

— São eles os oficiais — confirmou Trevalin.

O mensageiro cavalgou ao seu encontro. Detendo a montaria, esboçou uma saudação.

O comandante solâmnico derrotado, ergueu o olhar esgazeado. Era um homem de meia-idade, mas parecia muito, muito mais idoso.

— Vem da parte de Lorde Ariakan? — inquiriu. — Pode transmitir-lhe uma mensagem?

— Assim farei, Senhor Cavaleiro — respondeu o mensageiro em tom polido. — Que notícias pretende que comunique a Sua Senhoria?

O cavaleiro solâmnico esfregou o rosto com as mãos, possivelmente para limpar o sangue, ou lágrimas, quem sabe, e com um suspiro, disse:

— Diga a Sua Senhoria que lhe solicitamos permissão para retirar os nossos mortos do campo.

— Meu senhor, significa então que esta torre se rende?

O cavaleiro aquiesceu lentamente com a cabeça.

— Sob condição de não haver mais derramamento de sangue — disse. — Perderam-se muitas vidas hoje.

— É possível que Sua Senhoria exija rendição incondicional — replicou o mensageiro.

A expressão do cavaleiro endureceu.

— Se assim for — disse —, continuaremos a lutar até não restar um único sobrevivente. Seria um desperdício lamentável.

Nesta altura, um dos cavaleiros que acompanhavam o comandante falou-lhe em tom premente, como que a insistir num argumento.

Com um movimento de mão, o comandante silenciou-o.

— Já discutimos isso — respondeu. — Não mandarei mais garotos para a morte quando isso representará um esforço inútil. Conheço Ariakan. Agirá com honra. Se não o fizer... — Agitou a cabeça e fitou o mensageiro com uma expressão severa. — São estas as nossas condições. Diga ao seu senhor que é pegar ou largar.

— Assim o farei, Senhor Cavaleiro.

O mensageiro afastou-se a galope. Assumindo uma postura contida, os três cavaleiros derrotados mergulharam em reflexão. Nada diziam uns aos outros e mantinham os olhos colados em frente, recusando-se a dar pela presença do inimigo.

— Ele aceitará — previu Trevalin. — A batalha está resolvida. O que viesse por acréscimo seria matança inútil. Conforme eu disse, acho que quererá assumir o controle imediato da torre, antes que os dragões dourados regressem. E eu tenho que me apresentar ao meu comandante. Montante Luzente, por certo te agradará saber que a Fulgor sobreviveu ilesa à batalha. Lutou bem, embora me parecesse bem desanimada. Acho que sentiu a falta do verdadeiro dono. Eu... Montante Luzente, que se passa?

— A minha espada — disse Steel em tom amargo e soturno. — Subcomandante, apresento-lhe a minha rendição. Sou seu prisioneiro.

De início, Trevalin pareceu confuso. Então, ocorreu-lhe.

— Raios! Esqueci-me por completo! — Empurrou para o lado a espada que o outro lhe estendia e, aproximando-se, disse com brandura: — Steel, preste atenção. Não conte uma palavra a ninguém. Sua Senhoria também esquecerá por completo o assunto. Quanto à Dama da Noite... Bom, o Ariakan saberá da sua bravura neste dia. O que significa a perda de um miserável mago, comparada com o duelo entre ti e o Meio Elfo? Um duelo que ganhou!

Steel mostrou-se frio, calmo.

— Subcomandante, sou seu prisioneiro — repetiu.

— Raios o partam, Montante Luzente! — começou Trevalin, exasperado. Steel desafivelou a bainha e segurou a espada nas mãos.

— Muito bem, Montante Luzente — disse Trevalin em voz baixa— Fica sob prisão. Mas, assim que me surgir oportunidade, falarei pessoalmente a teu favor com Lorde Ariakan, pedirei que leve a sua bravura em consideração...

— Subcomandante, agradeço-lhe se não o fizer — respondeu Steel, no mesmo tom gélido. — Obrigado, mas peço que não diga nada. O meu senhor pensaria que lhe mendigo a vida. Leve-me para onde se encontram detidos os prisioneiros.

— Muito bem — respondeu Trevalin depois de fazer uma pausa, na esperança de ver Steel mudar de idéia. — Se é isso que quer.

Trevalin fez um gesto a Steel para que o seguisse e indicou uma porta, no extremo mais afastado do pátio.

Do lado de fora da torre, veio o estrépito de clarins e os gritos de homens, celebrando a vitória. Steel ouviu o escavar de cascos. O senhor de Ariakan aproximava-se, cavalgando em triunfo, cavalgando como o conquistador da fortaleza na qual uma vez entrara como conquistado.

Steel não aguardou para ver. Não queria estragar a ocasião, não queria que o seu senhor, na sua glória, visse Steel nesta vergonha. Erguendo a cabeça, de maxilares cerrados, Steel percorreu as pedras manchadas de escarlate em direção às celas da prisão da Torre do Sumo Sacerdócio.

9 O Portal. O regresso de velhos amigos. A confissão de Tasslehoff.



— Bom — murmurou Tasslehoff Pés Ligeiros —, como diria o Bupu, mas que bela caçarola de guisado de ratazanas! — Pestanejou, arquejante. — Ouvi o que disse! A minha voz voltou! Raistlin, reparou? Eu...

— Tio — interveio Palin, perturbado —, que foi...

— Agora não, kender — interrompeu Raistlin —, e você também não, sobrinho. As perguntas ficam para depois. Temos que ir embora já antes que nos descubram.

Aliviado por poder falar de novo, excitado por perceber que ia ser “magicado” outra vez (a segunda, num dia), Tas ansiou que a próxima parada fosse tão interessante como esta. Quem sabe outro lago de patos.

Raistlin nada disse e nada fez. De repente, porém, a coluna atrás da qual se escondiam, começou a se dissolver, a minguar e a desaparecer.

A magia rodopiou em torno de Tas, ou possivelmente foi este a rodopiar em torno da magia. Não podia assegurar, atendendo à sensação extremamente reconfortante de sentir o estômago achatado contra a espinha e o penacho enrolado em volta dos olhos.

Quando o torvelinho parou, o estômago voltou-lhe ao lugar. Afastando o cabelo dos olhos, passeou-os ao redor e suspirou.

Nem sinal de lago de patos. Apenas o céu cinzento em cima e o solo pardacento em baixo. Tinham voltado ao ponto de partida.

E lá estava o Portal. Para lá do Portal, ficava o laboratório, exatamente como fora deixado — cheio de potes e de frascos contendo coisas das mais interessantes, se bem que repelentes, livros e papiros, possivelmente um ou dois anéis. Tas sempre tivera muita sorte com os anéis mágicos.

Antes de atravessarem o Abismo, o kender achara o laboratório bastante enfadonho. Agora, parecia-lhe tão belo como um dia de mercado em Flotsam.

Tas preparava-se para irromper pelo Portal quando se lembrou das boas maneiras. Virando-se, estendeu a mãozinha a Raistlin.

— Bom, então adeus, Raistlin. Embora tenha assassinado o coitado do Gnimsh, foi um prazer vê-lo de novo. Mas, já te perdoei por isso, porque o Caramon disse que tentou recompor tudo quando sacrificou a si mesmo e fechou o Portal, ao saber que a Rainha das Trevas estava à espera para te abrir ao meio e arrancar-lhe as tripas.

Neste ponto, ocorreu um pensamento ao kender.

— Me diga uma coisa Raistlin — disse. — Será que a Rainha das Trevas vai voltar e acorrentá-lo à parede, abri-lo ao meio e arrancar-lhe as entranhas? Não é que eu deseje que ela o faça, é claro. Para você deveria ser extremamente desagradável. Mas, se insistir muito, gostaria de observar.

Os olhos de Raistlin semicerraram-se.

— Mestre Pés Ligeiros, se acha que vai gostar, talvez eu peça a Sua Majestade para arrancar as suas tripas — disse.

Tas considerou a sugestão de uma generosidade extrema, mas por fim abanou a cabeça.

— Raistlin, é simpático da sua parte pensar em mim. Nunca me arrancaram as tripas antes, e embora seja, com toda a certeza, bastante lúdico, acho que não pressuporia uma vida longa. O Tanis estava sempre me dizendo para eu refletir antes de dizer qualquer coisa, susceptível ou não de conduzir a uma vida longa, e, caso não fosse, para não fazê-lo. Eu diria que o ponto em questão se insere na última categoria.

Palin parecia realmente alarmado.

— A Rainha das Trevas não vai regressar, não é, Tio? Para te... para te torturar...

— Quem dera a ela. Takhisis tem uma excelente memória. Não esquece nem perdoa. Se pudesse, desforraria em mim, mas encontro-me protegido da sua ira — respondeu Raistlin de modo estranho. — Conforme disse o kender... uma recompensa pelo meu sacrifício.

— Então, não vai ser torturado? — perguntou Tas.

— Não, não vou — respondeu Raistlin. — Lamento se te desiludo.

— Não faz mal — tranquilizou-o Tas. — Esta viagem serviu para compensar, pois foi ótima mesmo. Imagine, ver todos os deuses de perto, como aconteceu. Claro que senti muito a falta de Fizban, mas não vejo muito como poderia ajudar numa situação tão difícil como esta. E agora já sei como se parece o Paladino quando não anda a por fogo na barba nem a perder o chapéu. E o Gileano, pareceu-me tão familiar, mas não consigo me lembrar onde o encontrei antes. O Chemosh é feio de morrer, não é? A caveira, é mesmo a cara dele? E o Morgion, com a carne se esfarrapando toda. Talvez, diria “olá” a Paladino, um gesto educado da minha parte, sendo eu e ele amigos tão chegados, mas estava com problemas na voz. Será que o gato me comeu a língua? Se foi isso, o que aconteceu ao gato? E, antes de mais nada, porque o gato quereria uma língua suplementar?

— Têm que partir — disse Raistlin com firmeza. — Estão perdendo tempo.

— Estou preparado — anunciou Tas, começando a dirigir-se para o Portal. — Adeus, Raistlin! — gritou, por cima do ombro. — Direi a Caramon que mandou um “olá”, embora não o tenha feito.

De repente, o kender deu-se conta de que se encontrava sozinho.

— Palin, você não vem? — perguntou.

Palin manteve-se imóvel, percorrendo nervosamente o bastão com as mãos. Depois, olhou para Raistlin.

— Não vem conosco, não é tio? — perguntou.

— Não, sobrinho. Não vou.

— Mas se quisesse poderia. Não está morto. Deu-me o bastão. Foi você quem nos conduziu até aqui.

— Sim, poderia regressar — disse Raistlin com brandura. — Tem razão. Não morri. No entanto, não estou verdadeiramente vivo. Mas porque haveria de voltar? Enquanto me encontrei no mundo, a minha presença não inspirou lá muito prazer. Já cumpri a minha parte... trouxe-o aqui, mostrei-lhe o perigo. Você fez o que nenhum outro mortal jamais conseguiu. Testemunhou um encontro entre os deuses. Agora, tem que regressar, avisar as pessoas, avisar os cavaleiros, de Takhisis e de Paladino, avisar os feiticeiros das três luas e os das Vestes Cinzentas. Avisar o teu pai e pedir-lhe que divulgue as notícias. Conte a todos eles o que viu e ouviu.

— Assim farei — respondeu Palin. — Mas, não estou bem certo se compreendi bem o que vi e ouvi. Posso avisá-los que o Caos tenciona destruir o mundo. Posso avisá-los que o Paladino nos confiou às mãos das trevas. Pergunto-me se alguém acreditará em mim. Mas, tio, em ti eles acreditariam. Venha comigo!

Raistlin olhou intensamente para Palin.

— Não é esse o único motivo porque quer que eu volte, não é sobrinho?

Corando, Palin respondeu com brandura:

— Não, tio, não é. Vim ao teu encontro... porque queria que me ensinasse.

— Há inúmeros mestres de artes mágicas por esse mundo afora. Em você, a arte é inata, sobrinho. Decerto há muita gente que queria um aluno tão brilhante.

— Talvez, mas não iriam querer — respondeu Palin, ainda mais ruborizado.

— E porque não? — inquiriu Raistlin com brandura.

— Por causa... por causa... — Palin hesitou.

— Por causa de mim? — disse Raistlin com um desagradável sorriso. — Ainda lhes inspiro muito receio, não é?

— Não é que deseje ferir seus sentimentos — interveio Tas, solícito. — Mas o fato é que houve alturas em que não foi uma pessoa lá muito simpática.

Raistlin pousou os olhos dourados, em forma de ampulheta, no kender.

— Acho que ouvi alguém chamá-lo — disse.

— Quem seria? — Tas pôs-se à escuta, mas não ouviu nada. — Onde?

— Ali! — respondeu Raistlin, apontando.

E foi quando Tas ouviu algo — uma voz roufenha e rabugenta.

— O que você pensa que anda fazendo aqui, Tasslehoff Pés Ligeiros? Presumo que não seja coisa boa! Provavelmente chamando o azar, para você e esses pobres loucos se verem metidos num sem-fim de confusão...

Tasslehoff girou à volta com tanta rapidez que as abas do alforje se abriram, espalhando pelo Abismo afora os seus valiosos pertences. Mas, uma vez na vida, Tas não se importou.

— Flint!

Longa barba grisalha, olhar carrancudo e reprovador, voz roufenha e tudo isso. Tas preparava-se para abraçar Flint, gostasse o duende ou não de ser abraçado (em geral não gostava, mas tratava-se de uma ocasião especial), quando reparou nas duas pessoas atrás de Flint.

— Sturm! — arquejou Tas, com prazer. — E Tanis! Que vocês fazem aqui? Esperem! Já sei! Partimos em mais uma aventura! Onde vamos? Seja para onde for, tenho mapa para tudo. Os meus mapas, agora, estão atualizados. Tarsis junto ao mar já não está... junto ao mar, quero dizer. Tarsis mantém-se onde sempre esteve. Olha lá, Flint, fica quieto para eu poder te abraçar.

Flint bufou.

— Como se eu permitisse um kender se aproximar de mim uns milímetros! Ainda por cima me abraçar! Mantenha-se à distância e a minha bolsa de dinheiro ficará a salvo!

Tas, que sabia que Flint não falava a sério, tentou de novo abraçar o amigo. Mas, os braços do kender apenas cingiram ar cinzento. Tas recuou.

— Ora, Flint, deixe de brincadeiras! Como posso partir em aventura contigo se não pára quieto?

— Tas, receio que não possa vir conosco — disse Tanis com brandura. — Não que não quiséssemos ter a sua...

— Também não a queríamos — resmungou Flint.

Sorrindo, Tanis pousou a mão no ombro do duende.

— Viemos porque o teu amigo quer dar-lhe uma palavrinha — disse. Pouco à vontade, o duende saltitou de um pé para o outro, acariciou a barba e ficou muito vermelho.

— Então, Flint, do que se trata? — perguntou Tas, bastante contrito e sentindo um soluço a subir pela garganta acima. Experimentava uma dor esquisita no coração, como se no íntimo soubesse que algo ia mal e não quisesse contá-lo à sua parte exterior. Era estranho Tanis encontrar-se ali.

— Flint, que você queria me dizer?

— Bom, pequeno — disse Flint depois de uns quantos arquejos e pigarros. — Quando vi o Tanis, disse-lhe que...

A dor no coração de Tas foi crescendo até quase se tornar intolerável. Levou a mão ao peito, na esperança de que passasse, pelo menos até Flint acabar.

— Disse eu ao Tanis, quando o vi da primeira vez, que eu... bom... ando, por assim dizer, me sentindo um pouco só.

— Debaixo da árvore, quer dizer? — perguntou Tas.

— Não me interprete mal — resmungou Flint. — Estou muito bem situado. Aquela minha árvore... é uma maravilha! Cada pedacinho é tão lindo como as árvores do vale da nossa terra. Até o Tanis, quando a viu, disse o mesmo. E lá é quentinho, pois fica perto da forja de Reorx, o que se torna interessante. Nunca pára de criar, entende? E se não é isso, há sempre uma ou outra parte precisando de um retoque. Reorx trabalha lá, está sempre trabalhando. E conta histórias, fábulas maravilhosas dos outros mundos que conheceu...

— Histórias! — Tas sentiu-se mais animado. — Adoro ouvir histórias! E aposto que ele gostaria de algumas das minhas, como a de quando encontrei o mamute lanzudo...

— Ainda não acabei! — ribombou Flint.

— Desculpe, Flint — disse Tas em tom submisso. — Continue.

— Agora esqueci onde estava! — respondeu Flint com irritação.

— Dizia que estava sozinho... — sugeriu Tas.

— Já sei! — Flint cruzou os braços no peito, inspirou fundo e as palavras saíram-lhe em tropel. — Olhe pequeno, eu só queria dizer que se algum dia te apetecer me visitar, será bem-vindo. Não sei por que estou com isto. — O duende parecia extremamente confuso. — Mas sei que vou me arrepender por dizer isto... eu... começo a sentir a sua falta, pequeno.

— Ora, é claro que começa — respondeu Tas, espantado pelo duende não ter percebido há mais tempo. — Não consigo deixar de pensar... e espero que a tua árvore não se ofenda... que uma pessoa estar sentada o dia inteiro vendo um deus martelar o mundo, não me parece muito excitante. A propósito. Por falar em deuses, acabamos de ver o Reorx. E os outros deuses todos também! E estão acontecendo coisas das mais maravilhosas... perdão, terríveis... no mundo. Olha, vou chamar o Palin e ele lhes conta. Palin! — O kender virou-se, gritou e agitou a mão. — E ali está o Raistlin. Isso é uma assembléia, não acham? Não conheceu o Palin. Esquisito, porque ele não aparece para cumprimentá-los?

Palin olhou de relance, e acenou com a mão, um aceno que dizia: Ótimo, está se divertindo. Continue assim. Agora deixe-me.

Flint, que nos últimos minutos tentara falar, mas que não conseguira devido às interrupções de Tas, acabou por dizer:

— O palerma, ele não pode nos ver!

— É claro que pode! — retrucou Tas, algo irritado. — Só o Tanis é que precisa de óculos...

— Já não mais, Tas — disse Tanis. — O Palin não pode nos ver porque está vivo. Nós agora existimos num plano diferente.

— Você também, Tanis? — inquiriu Tas em surdina.

— Receio que...

— Deve ter feito algo não suscetível de conduzir a uma vida longa — prosseguiu apressadamente Tas, pestanejando e passando a mão pelos olhos. Depois, assumiu uma expressão sombria, — Devo dizer-lhe, Tanis, que não foi muito inteligente da tua parte. Eu explico, andava sempre me avisando para não fazer coisas que não fossem suscetíveis de levar a uma vida... longa... — A sua voz começou a vacilar.

— Acho que nem pensei — respondeu Tanis com um sorriso. — Vivi uma existência boa. Tive muitas bênçãos na vida. Foi penoso deixar os entes queridos — acrescentou —, mas tenho amigos aqui.

— E inimigos também — comentou Flint com ar sinistro. O rosto de Tanis tornou-se severo.

— Sim, travaremos neste reino as nossas próprias batalhas — disse. Tas puxou um lenço (um de Palin), enxugou os olhos e assoou-se.

Depois, aproximou-se de Flint.

— Flint, vou te contar um segredo — disse num sussurro que possivelmente foi audível em muitas partes do Abismo —, já não sou o aventureiro que costumava ser. Não. — O kender soltou um profundo suspiro. — Às vezes penso... e sei que não vai acreditar... mas às vezes penso em me aposentar, assentar. Não compreendo o que se passa comigo. Já não se trata apenas de brincadeira, não sei se me entende.

— Ah, seu cabeça de atum! — disse Flint em tom roufenho. — Não adivinha? Está ficando velho!

— Velho? Eu! — Tas sentia-se chocado. — Quer dizer, por dentro não me sinto velho. Se não fossem as dores ocasionais nas costas e nas mãos e o desejo irresistível de tirar umas sestas junto à fogueira em vez de gritar insultos aos minotauros, eles ficam zangados mesmo, sabia? Em especial quando lhes dizemos: “Muu!” É espantoso como um minotauro pode correr depressa quando vai atrás de nós! Seja como for, onde eu estava?

— Onde devia ir — disse Tanis. — Adeus. Que o minotauro nunca te apanhe.

— Faça “Muu!”, ao minotauro — resmungou Flint. — Por todas as cabeças de atum! Cuide de si, pequeno! — Virando-se rapidamente, afastou-se em passos muito rápidos, abanando a cabeça. A última coisa que Tas ouviu foi o duende murmurar ainda, de si para si: “Muu!”

— Que Paladino te acompanhe, Tas — disse Sturm e, virando-se, seguiu atrás de Flint.

— Desde que ele junto de mim e não tente nenhum encantamento de bolas de fogo — disse Tas, algo duvidoso.

Ficou olhando até perdê-los de vista, o que aconteceu quase de imediato, porque num instante encontravam-se ali e no seguinte, não se encontravam.

— Tanis? Flint? — Tas chamou-os algumas vezes. — Sturm? Desculpem, uma vez, sem querer, tirei-lhes os anteparos para as mãos.

Mas não ouviu resposta.

Depois de uns tantos acessos de choro e soluços inesperados, Tas, ainda soluçando, inspirou fundo, limpou o nariz na manga — o lenço estava ensopado de tanto usá-lo — e, um tanto irritado, suspirou.

— As pessoas precisam de mim, diz o Tanis. Bom, parece que estão sempre precisando. Fazer desaparecer um fantasma aqui, lutar contra um duende maléfico ali. Não tenho um momento de paz. Mas é assim que se engendra um herói. Só terei de fazer o meu melhor.

Reunindo os alforjes, Tas, arrastando os pés na areia cinzenta, regressou lentamente ao Portal. Palin continuava conversando com Raistlin.

— Gostaria que reconsiderasse. Vamos, tio! O pai vai ficar contentíssimo por te ver!

— Será? — inquiriu Raistlin com brandura.

— Ora essa, claro... — Hesitante, Palin calou-se. Sorrindo, Raistlin encolheu os ombros.

— Está vendo? — disse. — É melhor deixar as coisas como estão. Olhe! — Do Portal começava a emanar um clarão tênue. — A Rainha está dirigindo os seus pensamentos para cá outra vez. Já percebeu que o Portal está aberto. Tem que voltar e fechá-lo de novo. Use o bastão. Apresse-se.

A escuridão adensou-se no céu e o cinzento começou a tornar-se negro. Palin olhou, inquieto, mas ainda hesitante.

— Tio...

— Vá embora, Palin — disse Raistlin com frieza na voz. — Não sabe o que me pede.

Palin suspirou, olhou para o bastão e de novo para Raistlin.

— Obrigado, tio — disse. — Obrigado por ter fé em mim. Não te desiludirei. Vamos, Tas. Apresse-se! Os guardiões estão voltando!

— Já vou!

Mas Tas continuava a arrastar os pés. O mínimo que se podia dizer é que o pensamento das cinco cabeças multicoloridas de dragão a gritar, quem sabe se todas elas a tentar devorá-lo, excitava-o. Bom, não muito.

— Adeus, Raistlin. Direi a Caramon que você disse... Ora, olá, Kitiara! Credo! Com certeza que as pessoas não aparecem assim do nada por estas bandas, sem mais nem menos, aparecem? Kitiara, lembra-se de mim? Sou o Tasslehoff Pés Ligeiros!

A mulher de cabelo escuro, com uma armadura de dragão azul e uma espada na ilharga, empurrou brutalmente o kender para o lado. Foi postar-se em frente de Palin, bloqueando-lhe o caminho de volta ao Portal.

— Até que enfim que te encontro, sobrinho — disse Kitiara com o seu sorriso retorcido. Estendendo a mão, deu um passo em frente. — Porque não fica um pouco mais? Está chegando alguém que gostaria muito de te ver...

Tas deu um grito de advertência:

— Palin, cuidado!

Kitiara desembainhou a espada. A lâmina emitiu uma cintilação pardacenta, sombria, lúgubre. Avançando para Palin, disse:

— Ouviu o que não devia ouvir! A minha rainha não usa de benevolência para com os espiões!

Kitiara brandiu a espada. Erguendo o bastão, Palin amorteceu o golpe e tentou arremessar Kitiara para trás. Os dois engalfinharam-se. De repente, Kit caiu para trás. Desequilibrado, Palin tropeçou para frente. Kit deu um pulo e investiu.

Frenético, Tas procurou algo com que arremessar em Kitiara. Não descobriu mais nada senão os objetos que guardava nos alforjes e a sua pessoa. Vendo que os seus pertences mais queridos, embora indiscutivelmente valiosos, de pouco serviam para deter uma Kitiara enraivecida, Tas precipitou-se para frente, lançando contra ela o pequeno corpo, na esperança de derrubá-la e ao mesmo tempo evitar que a sua espada o trespassasse.

Esqueceu-se que se encontrava no Abismo. O kender voou contra Kitiara, atravessou Kitiara voando e foi aterrar do outro lado de Kitiara, sem sequer tocá-la. Mas, o gesto não foi em vão; conseguiu acertar na espada que, fato estranho, possuía substância. Kitiara, que a mantinha apontada para o coração de Palin, falhou.

Abalado e confuso, Tas foi aterrar de quatro.

Palin cambaleou para frente. Uma mancha de sangue tingia-lhe as vestes brancas. Apertou o ombro, vacilou e tombou de joelhos. Com uma praga, Kitiara ergueu a espada e investiu de novo.

Esforçando-se para levantar, Tas preparava-se para se lançar outra vez contra a espada quando ouviu Raistlin, que entoava estranhas palavras. Tas viu vestes negras rodopiando à sua frente. Os dragões do Portal começavam a chiar e no exato momento em que a situação atingiu o auge do interesse, algo acertou em Tasslehoff, bem entre os olhos.

Viu desfilar uma coleção interessantíssima de estrelas, sentiu-se tombar e mergulhou numa inesperada soneca.

10 O prisioneiro. A flagelação.



A chave rodou na fechadura e a porta da cela se abriu.

— Montante Luzente, tem visitas — disse o carcereiro.

Steel sentou-se no catre de palha e esfregou os olhos, para espantar o sono. Interrogou-se se seria dia ou noite. Não tinha como saber. As masmorras, que se situavam no primeiro nível da torre, não possuíam janelas. Piscando ao clarão da tocha, Steel tentou ver quem entrava.

Ouviu o roçar de vestes e notou um fulgor pardacento.

Steel ergueu-se lentamente, fazendo chocalhar os grilhões que lhe prendiam os pés. Tinha que mostrar respeito para com esta mulher, pois era seu superior, mas o faria sem pressa.

— Dama da Noite — disse, observando-a circunspecto.

Esta aproximou-se e percorreu-o com o olhar, detendo-se nos mais ínfimos pormenores da sua degradação, desde as roupas sujas ao cabelo emaranhado e aos pulsos algemados.

— Deixe-nos — disse Lillith, a Dama da Noite, virando-se para o carcereiro. — Feche a porta.

— Não o empate muito, Dama da Noite — grunhiu este, colocando a tocha num anteparo de ferro da parede. — Tem trabalho para fazer.

— Só demoro uns instantes. — Lillith aguardou até o homem sair, e depois virou-se para Steel. Os seus olhos emitiam um brilho fantasmagórico. Mirou-o com uma intensidade que parecia imprimir-lhes uma luz sinistra, que lhe vinha dos recessos.

— Dama da Noite, por que veio? — perguntou Steel finalmente, que começava se fartar deste silencioso escrutínio. — Rejubilar com a minha queda?

— Tal não me causa prazer, Montante Luzente — respondeu Lillith abruptamente. — Tudo o que faço é pela glória da nossa Rainha. Vim dizer porque é necessário que morra.

Steel encolheu os ombros.

— Então perdeu o seu tempo, Dama da Noite. Sei que devo morrer. Você mesma disse. Perdi o prisioneiro que se encontrava à minha guarda.

— Foi por premeditação que o perdeu — respondeu a Dama da Noite com voz calma. — Enviei-o numa missão impossível, perfeitamente ciente de que o perderia. Contudo, surpreendeu-me que voltasse. Esperava — prosseguiu, falando com desenvoltura — que ambos morressem na Clareira de Shoikan. Quando isso não aconteceu, achei que a Rainha das Trevas te mataria, e ao mago, no Abismo. Também esse plano falhou. Mas felizmente, por esta altura, o mago já morreu. E em breve será a tua vez. — Aquiesceu várias vezes com a cabeça e repetiu: — Em breve será a tua.

Sentindo-se confuso, Steel ficou sem palavras. O fato daquela mulher odiar tão completa e malevolamente, sem motivos para tal, transcendia a sua compreensão. Por fim, vendo que estava à espera que falasse, observou:

— Não consigo entender por que veio aqui, Dama da Noite. Se foi para escarnecer de mim...

— Não, nada disso. Não me causa nenhuma satisfação. Vim porque queria que compreendesse. Não desejava que comparecesse perante a nossa Rainha e me acusasse de tê-lo mandado executar por motivos falsos ou injustos. Sua Majestade pode ser... muito vingativa.

Calando-se, a Dama da Noite pôs-se a cismar.

Steel não estava com disposição para se mostrar simpático.

— Dama da Noite, o que fez equivale a um assassínio, foi traiçoeira, falsa, indigna de um cavaleiro de Ariakan.

Lillith prestou-lhe pouca atenção.

— Steel Montante Luzente, perscrutei o futuro — disse. — Vi-o, e ao mago, o Veste Branca, juntos num campo de batalha. Vi um relâmpago atingir a torre. Vi a morte, a destruição, a queda da cavalaria. — Os olhos, que irradiavam um estranho clarão, viraram-se para ele. — Você e o Veste Branca tinham que morrer. Só assim se evitaria a desgraça. Compreende? Decerto o aceita como inevitável!

— Aceito a decisão do meu senhor — respondeu Steel, escolhendo cuidadosamente as palavras. — Se a minha morte beneficiar a cavalaria, então que seja.

A Dama da Noite parecia no mínimo satisfeita com a resposta. Arreganhando o lábio inferior, remexeu nas pedras divinatórias que tinha no bolso.

O carcereiro abriu a porta da cela.

— Tem outra visita, Montante Luzente — anunciou.

O subcomandante Trevalin entrou e, quando avistou a Dama da Noite, pareceu ficar desagradado. Tampouco esta se rejubilou por vê-lo. Sem dirigir mais palavras a Steel, deu meia volta e saiu precipitadamente da cela, fazendo rodopiar à sua volta as vestes cinzentas. Trevalin recuou, para evitar eventuais contatos.

— O que ela fazia aqui? — perguntou.

— Conversa de feiticeira — respondeu Steel, profundamente perturbado. — Presságios e coisas assim. Disse... — calou-se, hesitante —, disse que a minha morte se torna necessária, caso contrário, a cavalaria cairá. Diz ela que o previu.

— Bobagens! — bufou Travalin. Baixando a voz, acrescentou: — Sei que o nosso amo preza bastante esses fazedores de magia, mas eu e você somos soldados. Sabemos que o futuro é o que construímos, com isto. — Levou a mão ao punho da espada. — Montante Luzente, você é um guerreiro valente. Serviu bem a nossa Rainha. Será recompensado. Pela última vez, será que não consigo persuadi-lo a falar com Lorde Ariakan?

Steel hesitou. O pensamento de abandonar aquela cela pavorosa, de ser reintegrado no seu comando, de, uma vez mais, cavalgar pelos campos de batalha, quase se tornou insuportável, quase o impeliu a ceder. Viviam-se horas gloriosas para o Senhor de Ariakan, para a Rainha deles. Os exércitos dos Cavaleiros de Takhisis marchavam estrepitosamente contra Ansalon. Ninguém seria capaz de detê-los. Palanthas já caíra. Os cavaleiros preparavam-se para entrar em guerra com os elfos. E Steel veria tudo isso passar-lhe de lado. Acorrentado, com grilhões lhe prendendo as mãos e os pés, fora designado para trabalhar como escravo. Na noite seguinte, atravessaria pela última vez a porta daquela cela, rumo à sua execução.

Não tinha nada para falar com o Senhor de Ariakan. O que lhe contaria? A verdade?

— Subcomandante, lamento — disse Steel, esboçando um pálido sorriso ao ver o óbvio desapontamento do superior. — Não tenho nada a dizer.

Trevalin fitou-o em silêncio, na esperança de que mudasse de idéia. Steel permaneceu mudo, irredutível. Trevalin abanou a cabeça.

— Também lamento, Montante Luzente — disse. — Bom, fiz tudo que estava ao meu alcance. — Pousando fugazmente a mão no braço de Steel, acrescentou: — O nosso batalhão parte hoje. Destacaram-nos para ajudar no combate ao Norte de Ergoth. Pena não poder contar com os seus serviços. Desconfio que nunca mais te verei. Que Sua Majestade das Trevas esteja contigo.

— E contigo também, subcomandante. Obrigado.

Dando meia volta, Trevalin abandonou a cela no exato momento em que o carcereiro entrava.

— É hora de trabalhar, Montante Luzente — disse este.

Steel moveu-se com lentidão, procurando ganhar tempo. Não queria que Trevalin o visse ser levado de uma forma tão ignominiosa da cela, amarrado com grilhões, para ser alinhado com os outros prisioneiros e marchar para as pedreiras. Depois de se certificar de que já não ouvia os passos de Trevalin, Steel saiu da cela.

Juntou-se a um grupo de prisioneiros, Cavaleiros da Solamnia capturados durante a batalha ou que tinham se rendido. Na sua maioria eram jovens — mais jovens do que Steel.

Os Cavaleiros da Solamnia sabiam estar na presença do inimigo. Acreditavam ser ele o responsável pela morte de Tanis Meio Elfo. De início, consideraram-no um espião infiltrado no meio deles. Mas depois souberam a verdade pelos guardas, que Steel perdera um prisioneiro e regressara voluntariamente para enfrentar a punição, que era a morte. Um ato de tamanha coragem e honra que lhe valeu o ressentido respeito dos jovens cavaleiros. Mal lhe dirigiam a palavra, mas deixaram de evitá-lo e, quando se encontrava presente, falavam à vontade uns com os outros. De vez em quando — durante os breves períodos de descanso — tentavam até entabular conversa. Os seus esforços foram rechaçados com frieza.

O desespero de Steel era tão negro que não admitia consolo.

O Senhor de Ariakan não era duro para com os prisioneiros, mas também não usava de brandura. Velava para que lhes dessem alimentos adequados e água — um homem fraco, doente, não agüenta trabalhos duros —, mas obrigava-os a labutar desalmadamente e sempre que pretendia que se esforçassem mais, não poupava o chicote. Ariakan alcançara uma grande vitória, mas ainda não ganhara a guerra.

Conhecia os dragões, sabia não serem dignos de confiança. Supunha que os dragões prateados e dourados haviam batido em retirada para se reagruparem, para convocarem outros da sua espécie, e se preparavam para atacar de novo em força. Mantinha as suas tropas em alerta e fazia os prisioneiros trabalharem dia e noite na reconstrução, reparação e reforço da Torre do Sacerdócio Supremo.

Os cavaleiros prisioneiros tinham esperado ver Steel usar o seu posto e credo político para obter os favores dos guardas. Com efeito, seria lícito que o fizesse. Os inimigos não eram os únicos a admirá-lo. O seu regresso voluntário para enfrentar a punição, a sua bravura no campo de batalha, posteriormente a sua aceitação estóica do encarceramento e execução eram todas as noites louvados ao redor das fogueiras.

Mas Steel recusou-se a aceitar quaisquer favores. Não os merecia.

Assim, devolvia a comida suplementar que os guardas lhe davam, recusava a concha extra de água. Trabalhava lado a lado com os Cavaleiros da Solamnia capturados: lavar pedra nas pedreiras das montanhas, puxar os enormes blocos até à torre, se forçar para colocá-los no lugar. Todo o trabalho se processava debaixo do Sol inclemente. Mas nunca o espancavam nem o chicoteavam, como acontecia com os demais prisioneiros. Tão atolado se encontrava no seu infortúnio que nunca dera pela diferença.

Como de costume, os prisioneiros puseram-se a marchar em direção à pedreira. Tinham por tarefa descarregar blocos gigantescos de granito para dentro de enormes trenós de madeira, que depois eram puxados até à torre pelos volumosos mamutes. Os blocos eram içados até uma rampa mediante cordas e deslizavam para o trenó. Postando-se atrás dos blocos, os prisioneiros empurravam-nos ao longo da descida.

Os pensamentos de Steel giravam em torno de Trevalin, do seu batalhão. Imaginava os camaradas, embarcados no que devia ser um vôo de desafio contra os Ergocianos, humanos de imensa coragem e intrepidez, que, irredutíveis, haviam defendido as suas terras ao longo de toda a Guerra da Lança e agora estavam determinados a fazê-lo de novo.

Steel imaginou o confronto, a sua imaginação fez com que participasse na batalha. A corda-mestra, que ele devia segurar, ficou frouxa. Chamados de advertência e gritos arrancaram-no dos seus devaneios. Permanecendo metade no trenó e metade de fora, o enorme bloco de granito desequilibrara-se, tombara e virara o trenó do avesso.

— Desastrado de um raio! Preste atenção ao que faz! — grunhiu o capataz, desferindo golpes com o chicote. Indiferente a Steel, atingiu o jovem cavaleiro que se encontrava perto deste.

O chicote dilacerou a carne das costas nuas do mancebo e a pancada jogou-o ao chão. Sobre ele pairava o capataz, de chicote em riste, prestes a investir de novo.

Steel agarrou-lhe o braço.

— A culpa foi minha — disse. — Ele não fez nada. Fui eu quem largou a corda.

O capataz fitou Steel com ar atônito, o mesmo acontecendo com os outros prisioneiros que, parando de trabalhar, observavam, incrédulos. Recuperando o aprumo, o capataz disse:

— Eu vi tudo. O Solâmnico...

— ...não fez nada para merecer punição. — Steel empurrou o homem para o lado. — E não me chame de cavaleiro. Deixei de sê-lo. E não me faça favores, nunca mais!

Dirigiu-se para o jovem Solâmnico e ajudou-o a se levantar.

— Senhor — disse —, lamento o incidente. Não voltará a acontecer. Aceita as minhas desculpas?

— Sim — tartamudeou o cavaleiro. — Claro que sim.

Satisfeito. Steel virou-se para o capataz.

— Dá-me com o chicote — pediu.

— Perde o seu tempo — grunhiu o homem. — Volte para o trabalho.

— Dá-me com o chicote — repetiu Steel. — Como fez a ele. Senão o denuncio ao meu senhor, por desrespeito aos deveres.

Por esta altura, o capataz já se sentia tão furioso com Steel por obrigá-lo a fazer figura de tolo, que de bom grado concordou em desferir as chicotadas. Pôs-se a zurzir os ombros nus de Steel, vergastando a pele até quase ao osso.

Steel agüentou a dor sem pestanejar, sem que um esgar lhe contorcesse o rosto. Dos lábios não deixou escapar um grito. O capataz investiu de novo, e depois afastou-se, rosnando.

Vendo que o castigo terminara, Steel retomou o trabalho. Tinha as costas em carne viva e a sangrar. Zunindo, as moscas começaram a enxamear em volta das chagas abertas.

O capataz começou a acitar os outros prisioneiros, para que transferissem o bloco para o trenó. Aproveitando a oportunidade, o jovem cavaleiro aproximou-se de Steel e, em tom desajeitado, agradeceu-lhe.

Steel afastou-se. Não pretendia agradecimentos. Não agira impelido por inconfessados sentimentos de compaixão. O estilete do chicote fizera-o voltar à realidade. Nem sequer tinha o direito de se imaginar como um dos eleitos de Takhisis. A Rainha das Trevas conhecia a sua culpa.

Podia ter entrado no laboratório do mago — tal era a percepção que o atormentava. A porta mantivera-se por um momento aberta para ele. Podia ter seguido Palin mas hesitara, fora só um instante, incapaz de entrar por aquelas trevas balbuciantes, sussurrantes e fedendo a morte. Depois, a porta se fechara com estrondo.

Takhisis perscrutara-lhe o coração. Sabia que ele era um covarde. Recusara conceder-lhe uma morte honrosa e, ao que parece, pretendia agora que sofresse mais penas. Não toleraria manter-se impávido, vendo outro ser castigado por ele.

Levantando a corda-mestra, Steel retomou o trabalho. O suor salgado que lhe escorria para as feridas ardia como fogo. Agora, era tal e qual os outros prisioneiros.

Salvo que, dali a uma noite, na madrugada do dia celebrado como o dia de S. João, se Palin não voltasse ou fosse capturado, Steel Montante Luzente morreria. E se, como afirmara a Dama da Noite, a sua morte salvasse a cavalaria, tal como a do pai salvara a Cavalaria Solâmnica, quem sabe se então ficaria em paz.

Mas iria servir Chemosh por toda a eternidade antes de rogar a Takhisis que perdoasse à Dama da Noite.

11 A vingança da rainha. A escolha de Raistlin.


Tasslehoff acordou com uma dor na cabeça e a sensação de ter sido atropelado por um mamute peludo, como aquele que uma vez ajudara a salvar de um feiticeiro do Mal.

Sentou-se, esfregou a cabeça e perguntou:

— Quem me bateu?

— Estava no caminho — respondeu Raistlin em tom breve.

Tas voltou a esfregar, pestanejou, viu mais estrelas e perguntou alto:

— Onde estou?

Depois, lembrou-se. Encontravam-se no Abismo. As cabeças dos dragões emitiam agora um clarão muito vivo e tinham que atravessar de novo o Portal.

Kender, venh cá — ordenou Raistlin. — Preciso que me ajude.

— Estão sempre precisando da minha ajuda — murmurou Tasslehoff. — Depois de me porem para dormir porque estorvava o caminho. E o meu nome é Tasslehoff — acrescentou —, caso não se recorde.

Pestanejou mais umas tantas vezes, e por fim as estrelas começaram a esmaecer o suficiente para conseguir ver.

Raistlin encontrava-se inclinado para Palin, que jazia desmaiado no chão pardacento. Tas levantou-se e correu para eles.

— O que ele tem, Raistlin? Vai ficar bom? Não parece lá muito bem. Para onde foi a Kitiara?

O arquimago dardejou-o com o olhar.

— Cale-se — disse.

— Está bem, Raistlin — respondeu Tas em tom dócil. E era sincero. As palavras seguintes rolaram-lhe da boca por um mero engano. — Mas, gostaria de saber o que aconteceu.

— Aconteceu que a minha adorada irmã o feriu com a lança. Se não fosse eu detê-la, acabaria com ele. Não se iguala a mim e sabe disso. Foi buscar reforços.

Tas acocorou-se ao lado de Palin e inspecionou a ferida.

— Não tem muito mau aspecto — disse, aliviado. — Acertou-lhe no ombro direito e no ombro direito há poucos órgãos importantes. Desmaiou. Porque...

— Não mandei se calar? — respondeu Raistlin.

— É provável — retrucou Tas, com um suspiro. Sentia-se triste e deprimido. — Normalmente é o que você faz. — Teria continuado falando, mas Palin gemeu e começou a estrebuchar e a se contorcer.

— Que se passa com ele, Raistlin? — perguntou Tas, subitamente receoso pelo jovem amigo. — Parece que... parece que está morrendo.

Raistlin abanou a cabeça.

Está morrendo. O Palin tem que voltar rapidamente para o seu plano de existência.

— Mas, a ferida não é grave...

Kender, a lâmina que o trespassou era deste reino, não do seu. Conseguiu amortecer o impacto assassino da minha irmã, mas a lâmina penetrou-lhe a carne. A maldição já está atuando nele. Se morrer aqui, a sua alma permanecerá aqui — prisioneira de Chemosh.

Raistlin levantou-se e olhou para o Portal. Os olhos dos dragões retribuíram-lhe o olhar. O céu mostrava-se cinzento, raiado de negro, como tentáculos a rastejar em direção a eles.

Tas passeou o olhar por Palin, pelo Portal, pelo céu e de novo por Palin.

— Acho que conseguiria arrastá-lo até ali, mas o que faria com ele depois de metê-lo de novo no laboratório? — Pensou por um instante e exclamou, animado: — Já sei! Talvez haja algum encantamento mágico que possa me ensinar para eu poder usar nele! Faz isso, Raistlin? Ensina-me alguma magia?

— Já pequei o suficiente contra o mundo — respondeu Raistlin secamente. — Ensinar magia a um kender equivaleria por certo à minha danação. — Franziu o cenho e pôs-se a refletir.

— Então tem que voltar com ele, Raistlin — disse Tas. — Suponho que pode voltar, não é verdade?

— Posso sim — respondeu Raistlin. — O meu corpo físico não morreu para o mundo. Posso voltar para ele. A questão que se põe é: “Porque haveria de querer?” O único prazer que encontrei nesse mundo retirei-o da magia. E, se eu voltasse, acha que os deuses permitiriam que continuasse investido dos meus poderes?

— Mas, e o Palin? — argumentou Tas. — Se ficar aqui, morre!

— Sim — respondeu Raistlin, dando um suspiro. — E o Palin? — O arquimago esboçou um sorriso amargo e, com ar hostil, perscrutou o céu negro. — Pronto, vou regressar! É isso que quer! Fraco e indefeso como estou! Para assim poder se vingar, minha rainha?

Tudo isto fazia pouco sentido para Tasslehoff. Inclinou-se para dar uma palmadinha de reconforto em Palin. Mas, quando lhe tocou na pele, estava fria e tinha os lábios violáceos. A carne começava a assumir um aspecto de cera.

— Raistlin! — gritou Tas, engolindo em seco. — Depressa, faça alguma coisa!

Raistlin ajoelhou-se precipitadamente ao lado de Palin e pousou a mão no pescoço do jovem.

— Sim, está indo para bem longe.

Tomando uma decisão súbita, inclinou-se e pegou em Palin pelos ombros.

Kender, vamos carregá-lo — disse.

— O meu nome é Tasslehoff. Parece que nunca aprende. — Tas deu um pulo para ajudar e reparou em algo que se encontrava no chão. Apontando, perguntou: — Que faremos com o bastão?

Raistlin fitou o Bastão de Magius. Começou a torcer os dedos esguios e nervosos, estendeu subitamente a mão para ele, com ar ansioso.

— Pensando bem, é capaz de haver uma maneira...

Em seguida deteve-se e retirou a mão.

— Traga o bastão, Kender — disse Raistlin em voz baixa. — Eu me encarrego de Palin. Apresse-se!

— Eu? — A excitação quase deixou Tas emudecido. — Eu? Serei eu a levar o... o bastão?

— Pare de tremer e faça o que digo! — ordenou Raistlin.

Tas segurou com força no afamado Bastão de Magius e ergueu-o. Aguardava este ensejo desde o momento em que o vira em poder de Raistlin, na Estalagem da Última Casa.

— Estou pronto! — exclamou, olhando com orgulho para o bastão. Raistlin não tinha forças suficientes para levantar Palin. Colocando as mãos sob os ombros do jovem, arrastou-o pelo chão cinzento e, com grande esforço, conseguiu transportá-lo até o Portal.

As cabeças dos dragões cintilavam, irradiando uma beleza estranha e medonha.

Respirando pesadamente, Raistlin parou e, pela primeira vez desde que o conhecera, Tas ouviu Raistlin começar a tossir.

Kender — ordenou, em voz entrecortada —, levante o bastão! Levante-o bem alto para a Rainha poder vê-lo!

Empolgado até à planta dos sapatos verdes, obedeceu. Ergueu o bastão no ar o mais alto que pôde.

As cabeças dos dragões soltaram gritos de desafio, mas o Portal continuava aberto.

Segurando o bastão, Tas atravessou o Portal, no que constituiu o momento em que, na vida do kender, o seu orgulho foi ao cúmulo.

Raistlin seguiu-o, arrastando Palin. Os dragões soltaram guinchos ensurdecedores, mas não tentaram detê-los.

Sobre eles se derramou a escuridão fria e úmida do laboratório. Endireitando-se, o arquimago deu um passo em direção ao Portal.

— Vou regressar ao Abismo! — gritou. — Deixa-me voltar! Takhisis, faça de mim o que quiser! Não me deixe aqui, espoliado do meu poder!

Viu-se um clarão de luz ofuscante e dolorosa para quem a fitasse. Tas sentiu os olhos queimar e lacrimejar e um desejo enorme de fechar as pálpebras, mas sabia que, se o fizesse, poderia arriscar-se a perder algo, pelo que as segurou com os dedos.

Tossindo, Raistlin avançou mais um passo em direção ao Portal. A luz tornou-se ainda mais forte. Tas não conseguiu agüentar a pressão das pálpebras, que se cerraram. A última coisa que viu foi Raistlin erguendo o braço, como se defendendo de uma pancada...

Raistlin soltou uma praga. Tas ouviu um som de roçar e a luz esmoreceu..

Tas arriscou-se a abrir os olhos.

A cortina de veludo pendia de novo sobre o Portal, tapando-o. Por baixo da mesma cintilava, escarnecedora, uma tênue luz. O resto do laboratório encontrava-se mergulhado nas trevas.

Raistlin achava-se postado diante da cortina, a mirá-la fixamente. Então, virou-se de repente e mergulhou na escuridão. Tas ouviu-o se afastar.

A escuridão não era comum, do tipo que apreciamos ter no nosso quarto, que nos envolve com aquela áurea suave, fofa e que nos embala até mergulharmos no sono e deslizarmos em sonhos aprazíveis. Tratava-se de uma escuridão gelada, decadente, sussurrante, uma escuridão que nos impele a ficar bem despertos.

— Raistlin? Onde você está? — perguntou Tas.

Não sabia bem de quê, mas sentia medo e começava a pensar quão agradável seria ter à mão uma luz pequenina. Preparou-se para fazer com que o bastão se iluminasse. Sabia a palavra mágica — ia provar que sabia a palavra mágica — e estava quase a proferi-la quando, das trevas, lhe chegou a voz de Raistlin, gelada, ciciante, tal como a escuridão.

— Estou na parte da frente do laboratório. Fique junto de Palin — disse Raistlin. — Avise-me se ele se mexer ou falar. E pouse esse bastão!

Tas foi rastejando se sentar junto de Palin. O kender ouviu as vestes de Raistlin roçarem de um lado para o outro, e depois uma luz começou a brilhar — suave, reconfortante. Raistlin apareceu, trazendo uma vela num suporte de ferro forjado em forma de pássaro, que pousou ao lado de Palin.

— Acho que está um pouco melhor — disse Tas, debruçando-se para tocar na testa de Palin. — Pelo menos está mais quente. Mas, ainda não voltou a si.

— A maldição ainda lhe gela o sangue, mas agora já pode ser curado. — Raistlin olhou para o kender. — Já não te disse para pousar o bastão?

— E pousei! — protestou Tas que, com imensa estupefação, constatou que ainda segurava o bastão. — Credo! Não é fantástico? Acho que gosta de mim. Acha que poderia acendê-lo... só uma vez? Qual é a palavra que diz para dar à luz? Shelac? Shirley? Shirleylac?

Raistlin, com uma expressão sombria, segurou no bastão e foi com alguma dificuldade que soltou os dedos do kender.

— Raistlin, deixe-me acendê-lo só uma vez! Por favor! Desculpe aquela vez que te tirei os óculos mágicos. Se encontrá-los eu devolvo. É tão esquisito os meus dedos terem ficado assim tão hirtos, não é?...

Raistlin conseguiu libertar o bastão das mãos de Tas e, colocando-o numa parte distante do laboratório, encostou-se à parede. O arquimago parecia tão relutante como o kender em separar-se dele. Acariciou com a mão a madeira e os seus lábios moveram-se, possivelmente recitando a linguagem da magia.

Mas nada aconteceu.

Raistlin retirou a mão e, virando-se, dirigiu-se para a gigantesca mesa de pedra, acendeu outra vela, levantou-a e examinou Palin.

— Tas? — murmurou o jovem num fio de voz.

— Estou aqui, Palin! — Esquecido do bastão, Tas virou-se para o doente. — Como se sente?

— O meu braço parece que queima... mas o resto do meu corpo está tão frio — respondeu Palin, rilhando os dentes. — Que... que aconteceu?

— Não estou bem certo — replicou Tas. — Eu disse “olá” e ia trocar um aperto de mão, e a seguir vi que a Kitiara segurava a espada e se preparava para te trespassar. Depois, o Raistlin saltou por cima de mim e tirei uma soneca.

— Quê? — Por uns momentos, Palin sentiu-se confuso, depois, a memória voltou. Quase sem forças, tentou sentar-se. — O Portal! A Rainha das Trevas! Temos... temos que voltar...

— Já voltamos — respondeu Tas, obrigando suavemente Palin a se deitar de novo. — Estamos no laboratório. O Raistlin também.

— Tio? — Palin fixou o clarão que refletia o rosto de pele dourada, emoldurado por cabelos longos e brancos. — Afinal, você veio!

— Palin, ele atravessou o Portal para te salvar — explicou Tas. Um rubor de prazer reavivou o rosto descorado de Palin.

— Obrigado, tio — disse. — Estou-lhe muito grato. — Voltando a deitar-se, fechou os olhos. — Que me aconteceu? Sinto tanto frio...

— Foi atingido por uma arma amaldiçoada do Abismo — explicou Raistlin. — Felizmente, a espada só te feriu a carne. Se tivesse varado o coração, agora estaria servindo Chemosh. Mas, como as coisas se apresentam, acho que tenho qualquer coisa aqui que te dará algum alívio.

Raistlin voltou para a parte mais recuada do laboratório, a fim de examinar uma série de frascos de boca larga que se encontravam alinhados numa prateleira coberta de pó.

— Quem era aquela mulher? — perguntou Palin, com um calafrio. — Alguma serva da Rainha das Trevas?

— De certo modo, sim, embora não duvide que agisse por conta própria e não porque a ordenaram. Era a minha irmã — replicou Raistlin —, Kitiara, a sua falecida tia.

— Não há dúvidas que o dia de hoje assinalou o ponto de encontro entre uma leva de velhos amigos — comentou Tas. — Bom, acho que agora já não podemos considerar a Kitiara uma amiga, embora o fosse, há muito tempo. Ora, lembro-me da ocasião em que estava numa caverna e me salvou de um papão. Como haveria de saber que os papões dormem o Inverno inteiro e acordam esfomeados? Mas, foi-se. — Tas soltou um suspiro. — E agora o Tanis também se foi. Tantos que já se foram... Mas, pelo menos — acrescentou, mais animado —, o temos de volta, Raistlin.

— Assim parece — replicou Raistlin e, quase de imediato, foi sacudido por um acesso de tosse, que o obrigou a se dobrar. Enclavinhando as mãos no peito, lutou para respirar. Por fim, o espasmo cedeu. Limpando os lábios com a manga da veste, soltou um arquejo. — Asseguro-lhe que o meu regresso não foi intencional.

— Tentou voltar — acrescentou Tas —, mas, quando o fez, as cabeças começaram a gritar para nós. Na realidade, foi muito excitante. Então, o Raistlin desceu a cortina. Acha que seria possível eu dar uma espiada? Só para ver se as cabeças estão...

— Não se aproxime! — replicou Raistlin. — Caso contrário vai se encontrar tirando outra sesta! E olha que não será breve!

Encontrando o frasco que procurava, o arquimago retirou-o da prateleira e retirou o bujão. Cheirou o conteúdo, aquiesceu com a cabeça e dirigiu-se para Palin.

Depois, Raistlin espalhou sobre a ferida um ungüento azulado.

— É capaz de arder — disse.

Rilhando os dentes, Palin inspirou fundo.

— Suponho que não nos era permitido ouvir os deuses às escondidas — disse. Soerguendo-se espreitou por cima do ombro, tentando examinar a ferida. Os vincos de dor que lhe sulcavam o rosto suavizaram-se. A respiração tornou-se mais fácil e deixou de tremer. — Já me sinto melhor. É magia?

— É — respondeu Raistlin —, mas não feita por mim. Trata-se de uma dádiva por parte de um sacerdote de Paladino.

— Lady Crysania, suponho — interveio Tasslehoff, esboçando um sábio aceno com a cabeça. — Tinha-o em grande consideração, Raistlin.

O rosto do mago mostrou-se impávido, soturno. Virando-se, dirigiu-se para as prateleiras e começou a examiná-las de novo.

— Tas! — sussurrou Palin, chocado. — Cale-se!

— Porquê? — replicou Tas baixinho, com voz áspera. Começava a sentir-se zangado. — É verdade.

Palin lançou ao tio um olhar constrangido, mas se Raistlin os escutou não o deu a entender, pois ignorou-os.

Tas sentiu a cabeça doendo. Estava profundamente infeliz por pensar que Tanis partira, que nunca mais ouviria as suas gargalhadas, o veria sorrir, lhe tomaria os lenços emprestados. Para aumentar a desgraça, ainda por cima sentia-se enfadado.

Tas sabia muito bem que, se se atrevesse até mesmo a olhar para o morcego morto que havia no laboratório, Raistlin e Palin gritariam co ele. E se o fizessem, a dor que lhe latejava no peito o obrigaria a gritar e possivelmente a dizer coisas que lhes feririam os sentimentos. Isso significava que um deles podia acabar transformando-o — a Tasslehoff Pés Ligeiros — num morcego, e embora a idéia fosse engraçada...

Tasslehoff dirigiu-se para a porta do laboratório. Tentou abri-la, mas esta não se mexeu.

— Raios! Estamos trancados! — exclamou.

— Não, não estamos — disse Raistlin com frieza. — Sairemos quando eu estiver pronto para partir. Não antes.

Tas olhou para a porta com ar pensativo.

— Que calma reina lá fora — disse. — Quando partimos, o Steel parecia um furacão, aos murros na porta. Acho que ele, o Dalamar e a Usha se cansaram e foram jantar.

— Usha! — gritou Palin, levantando-se. Quase de imediato, deixou-se cair, exaurido, numa cadeira. — Espero que esteja bem. Tio, tem que conhecê-la!

— Já a conhece — salientou Tas. — Bom, mais ou menos. Visto que é filha dele...

— Filha! — bufou Raistlin. Estava retirando folhas perfumadas de um grande saco e introduzindo-as num pequeno alforje de couro. — Se afirma isso, é porque mente. Não tenho nenhuma filha.

— Ela não é mentirosa. As circunstâncias foram... hum... singulares, tio — respondeu Palin, na defensiva. Levantou-se da cadeira, dirigiu-se para o canto onde se encontrava o bastão e pegou-o. Quase de imediato, pareceu sentir-se mais forte. — Pode ter tido uma filha e não sabê-lo. Por causa da magia dos Irdas.

Tossindo, Raistlin começou a abanar a cabeça e depois levantou-a.

— Irdas? O que têm os Irdas a ver com isto?

— Eu... Bom, tio, é uma história que as pessoas contam a seu respeito. Meu pai nunca lhe prestou grande atenção. Sempre que alguém a mencionava, dizia que era tudo uma tolice.

— Estou interessado em ouvir essa lenda — disse Raistlin, com um pálido sorriso nos lábios delgados.

— Correm por aí diversas versões mas..., de acordo com a maior parte... você e o meu pai voltavam do Teste na Torre de Wayreth. Você estava doente. O tempo começava a fechar. Ambos se detiveram numa estalagem, para descansar. Entrou uma mulher que perguntou se podia passar a noite lá. Estava agasalhada e vestia uma capa. Alguns rufiões a atacaram. Você e o meu pai a salvaram. A mulher tentou manter o rosto oculto, mas o lenço caiu. Era linda — disse Palin com brandura. — Tio, sei como deve ter se sentido quando olhou para ela! Senti o mesmo. — Sorrindo, calou-se, imerso na sua própria fábula.

— E depois, o que aconteceu? — perguntou Raistlin, arrancando o jovem do devaneio.

— Bom, hum — tartamudeou Palin. — Para abreviar a história, que é longa, você e ela... bom...mmmm...

— Fizeram amor — interrompeu Tas, vendo que, chegado a este ponto, Palin se mostrava bastante confuso. — Você dois fizeram amor, só que você não soube, por causa da magia dos Irdas, e ela teve um bebê com olhos dourados e os Irdas apareceram e levaram o bebê.

— Fiz amor com uma linda mulher e não soube. Que sorte a minha — observou Raistlin.

— Não foi bem assim que aconteceu. Ela tem que te contar. Vai gostar dela, tio — prosseguiu Palin, com entusiasmo. — É encantadora. E bondosa. E muito, muito linda.

— Tudo isso prova que não é minha filha — retrucou Raistlin em tom cáustico. Fechando o alforje de couro, pendurou-o cuidadosamente à cintura. — Agora é melhor partirmos. Há muito o que fazer e pouco tempo para concretizá-los. Receio que tenham se passado dias demais.

— Dias? Não, tio. Quando partimos, era de manhã. Por esta altura, já entardeceu. — Palin fez uma pausa e relanceou o olhar pelo laboratório. — Não quer levar nenhum dos teus livros de encantamento? Já me sinto melhor. Podia ajudá-lo a carregar...

— Não, não quero — replicou Raistlin em tom calmo, sem olhar na direção dos mesmos.

Palin hesitou e depois disse:

— Então, não se importas se eu levá-los? Estava na esperança de que pudesse me ensinar alguns dos encantamentos.

— Encantamentos do grande Fistandantilus? — perguntou Raistlin, parecendo muito divertido. — Sobrinho, antes de poder ler aqueles encantamentos, as suas vestes tinham que se tornar mais escuras.

Palin mostrou-se calmo.

— Talvez não, tio — disse. — Sei que nos anais da história das Três Luas não consta que nenhum Veste Negra tenha tomado como aprendiz um Veste Branca. Mas isso não significa que seja impossível. Meu pai me contou que uma vez, quando o Tio Tas foi envenenado no Templo de Neraka, você transformou um encantamento para roubar a vida num encantamento de dádiva da vida. Sei que será uma tarefa demorada e difícil, mas farei tudo... sacrificarei tudo — acrescentou com ênfase — para obter mais poder.

— Fará? — Raistlin fitou intensamente Palin. — Mesmo? — Erguendo a sobrancelha, acrescentou: — Veremos, meu sobrinho. Veremos. E agora — encaminhou-se para a porta —, temos que partir. Conforme eu disse, o tempo urge. É crepúsculo, sim, mas não o do dia em que se foi. Em Ansalon se passou um mês.

Palin arquejou.

— Mas, não é possível! — exclamou. — Passaram-se... apenas umas horas...

— Talvez para você, mas o tempo, tal como o conhecemos neste plano de existência, no domínio dos deuses nada significa. Faz agora um mês, neste mesmo dia, Lorde Ariakan atravessou, triunfante, os portões da Torre do Sumo Sacerdócio. Uma vez esta caída, nada conseguiu detê-lo. A cidade de Palanthas é governada pelos Cavaleiros de Takhisis agora.

Tas encontrava-se junto da porta e, pelo buraco da fechadura, tentou espiar lá para fora.

— E se o espectro ainda estiver ali fora? — perguntou.

— O guardião se foi. O Dalamar encontra-se aqui, mas não por muito tempo. Em breve, tal como nos dias que precederam o Cataclismo, a torre ficará deserta.

— O Dalamar vai partir! Eu... não posso acreditar! — Palin parecia aturdido. — Tio, se os cavaleiros das trevas assumiram o controle, para onde nós iremos? Nenhum lugar é seguro.

Raistlin não respondeu.

E o seu silêncio parecia algo irreal.

— Sonho há tanto tempo com isto — disse Raistlin baixinho. — Iremos para casa, sobrinho. Quero ir para casa.

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