Os corpos dos Cavaleiros Solâmnicos jaziam nas areias da praia da baía da Thoradin, numa longa fila. Não eram muitos, apenas 18. Haviam sido chacinados até não restar nenhum sobrevivente. Atrás deles, também em fileira, viam-se os restos mortais dos respectivos escudeiros.
Um vento quente rodopiava por entre a areia e os altos canaviais, fazendo esvoaçar as capas rasgadas e tingidas de sangue que envolviam os corpos inertes dos homens.
Um oficial cavaleiro presidia às exéquias.
— Lutaram como bravos — discursou, formulando o epíteto dos cavaleiros mortos. — Ultrapassados em número, apanhados de surpresa, podiam ter batido em retirada e ninguém os censuraria. Contudo, permaneceram no terreno, mesmo confrontados com a iminência da derrota. Lorde Ariakan ordenou-nos que os enterrássemos com todas as pompas. Deitem cada homem de forma conveniente e coloquem suas armas ao lado. O terreno é muito pantanoso para enterrarmos os corpos. Informaram-me que não longe daqui existe uma gruta. Sepultaremos aí os cadáveres, selamos a mesma e assinalamos como um local onde repousam bravos homens. Examinou os corpos? Há alguma forma de lhes identificarmos os nomes, guerreiro cavaleiro Montante Luzente?
— Meu senhor, há um sobrevivente. — comunicou o cavaleiro, fazendo uma saudação ao superior.
— Verdade? Desconhecia.
— Um mago Veste Branca. Finalmente foi capturado.
— Ah, claro. — O subcomandante não mostrou surpresa. Os magos lutavam na retaguarda dos exércitos, lançando feitiços a partir de lugares seguros, dado que, devido à ética da sua arte, estavam proibidos de envergar armaduras ou transportar armamento mais convencional. — Estranho os Cavaleiros Solâmnicos recorrerem a um feiticeiro. Outrora, tal nunca aconteceria. Mas os tempos mudam. Esse mago deve saber o nome dos cavaleiros. Tragam-no aqui para que os identifique, para que possamos homenageá-los quando os baixarmos para a última morada. Onde se encontra agora?
— Foi capturado pelos Cavaleiros Cinzentos, meu senhor.
— Vá buscá-lo, Montante Luzente.
— Sim, meu Senhor. Às suas ordens, meu senhor.
O cavaleiro afastou-se, a fim de cumprir a missão de que fora incumbido. Não constituía tarefa fácil. Na costa sul da baía de Thoradin, o único local calmo era agora o campo de batalha, no topo do paredão sobranceiro ao mar. A vasta faixa de areia negra fervilhava de homens e equipamento. As praias encontravam-se juncadas de embarcações costeiras, alinhadas umas contra as outras, e a todo o instante mais barcos chegavam à costa. Os Brutos, comandados por cavaleiros das trevas, descarregavam sacas de equipamento e de mantimentos, tudo desde espessos rolos de corda, passando por barricas de água, aljavas para setas e escudos enormes, identificados com o lírio da morte — a insígnia dos Cavaleiros de Takhisis.
Em terra, procedia-se à ferragem dos cavalos. Os donos mantinham-se junto dos animais, acalmando-lhes o terror e prometendo-lhes que a longa viagem acabaria logo. Dragões azuis, conduzidos por cavaleiros, patrulhavam os céus, embora o Senhor de Ariakan quase não receasse ver o desembarque perturbado por mais intromissões. Os mensageiros haviam comunicado a debandada total dos poucos habitantes que viviam na aldeia piscatória vizinha, a leste de Kalaman.
Estes por certo divulgariam a sua chegada, mas quando conseguissem reunir efetivos de peso para atacá-lo, já estariam longe. Alcançado o predomínio sobre a praia, planejava marchar rapidamente para oeste, a fim de se apoderar de Kalaman, cidade portuária de águas fundas. Após a queda desta, convocaria o resto das suas tropas da Fortaleza das Tempestades, a fortaleza intransponível dos cavaleiros que se situava a norte, no oceano Túrbido. Com um porto de águas fundas para os seus navios e congregados os efetivos, desencadearia o principal assalto até o rio Vingaard (Ácrido) e contra as planícies solâmnicas.
Objetivo: conquistar o único local em Krynn que nunca caíra nas mãos do inimigo, o lugar onde tantos anos vivera como prisioneiro. Prisioneiro respeitado, é certo, mas sem deixar de estar cativo. Conquistar o único local que, noite após noite, lhe perseguia os sonhos. E não lhe restavam dúvidas de que o conseguiria. Nesse local, iniciaram-no nos segredos da força que os imbuía. Já conhecia o segredo da fraqueza deles. O objetivo do Senhor de Ariakan — a Torre do Sacerdócio Supremo. E, a partir daí, o mundo.
Steel Montante Luzente abriu caminho por entre a amálgama de gente, quase ensurdecido pelos gritos dos oficiais, pelas pragas e grunhidos dos Brutos, vergados sob pesadas cargas, pelos relinchos assustados dos cavalos e, ocasionalmente, pelo chamado estridente de um dragão azul, dirigido do alto a um dos camaradas.
Refulgia o sol da alvorada. O calor já se revelava intenso e o Verão ainda mal começara. Terminada a batalha, o cavaleiro retirara grande parte da armadura mas envergava ainda a couraça e os anteparos para as mãos, e o lírio da morte identificava-o como um Cavaleiro do Lírio. Sendo condutor de dragões, não participara na batalha, que se desenrolara no solo. Finda a mesma, o seu batalhão fora destacado para efetuar as cerimônias fúnebres de ambos os lados e assim, embora com o posto de Segundo-Comandante, desempenhava o papel de moço de recados.
Contudo, Steel Montante Luzente não se ressentia de tal incumbência, tal como o seu comandante não se ressentia de lhe atribuírem os trâmites decorrentes das exéquias. Mandava a disciplina dos Cavaleiros de Takhisis que servissem a Rainha das Trevas em todos os domínios e que, ao fazê-lo, a cumulassem de glória.
A meio percurso da praia, Montante Luzente viu-se forçado a parar e inquirir onde assentavam os Cavaleiros Cinzentos, os Cavaleiros de Abrolho, arraiais. Sentiu-se aliviado quando constatou que tinham procurado abrigo num pequeno bosque.
Devia ter adivinhado, pensou, esboçando um leve sorriso. Ainda não conheci um feiticeiro que não procurasse tirar partido do conforto posto à sua disposição.
Montante Luzente abandonou a praia apinhada, quente e barulhenta e penetrou na relativa frescura proporcionada pelos pinheiros. A algazarra diminuiu, tal como o calor. Fez uma breve pausa, a fim de apreciar a amenidade e a quietude, em seguida prosseguiu caminho, ansioso por ver cumprida a missão e abandonar aquele lugar, mau grado este ser fresco e convidativo. Começava agora a experimentar a usual sensação de desconforto e inquietação, votada por todos os que não são bafejados com o dom da magia aos que o possuem.
Foi encontrar os Cavaleiros de Abrolho num pequeno bosque de pinheiros altos, a alguma distância da praia. Pousadas no chão, viam-se algumas arcas grandes de madeira, decoradas com intrincados símbolos arcanos. Alguns aprendizes procediam à seleção das mesmas, assinalando os artigos em rolos de pergaminho. O cavaleiro evitou passar junto destas. Os cheiros que emanavam causavam engulhos. Interrogou-se como os aprendizes conseguiam suportá-los, mas supôs que, com o tempo, iam habituando. Os Cavaleiros de Abrolho transportavam sempre consigo equipamento próprio.
Esboçou uma careta ao sentir um odor particularmente desagradável que escapava de uma das arcas. Ao olhar de relance para o conteúdo, descobriu objetos putrefatos e fétidos, cuja origem mais valia não apurar. Agoniado, desviou os olhos e procurou o seu objetivo. Avistou, através das sombras das árvores, uma mancha branca, reluzindo ao Sol, embora parcialmente obscurecida por laivos cinzentos. Montante Luzente não era particularmente fantasioso, mas ocorreram-lhe as nuvens brancas, a lembrar algodão, toldadas pelo cinzento da tempestade. Considerou-o bom presságio. Hesitante, aproximou-se do chefe da ordem — uma poderosa feiticeira de categoria superior, conhecida por Dama da Noite.
— Senhora, quem te fala é o guerreiro cavaleiro Steel Montante Luzente — disse, à laia de saudação. — Fui enviado pelo subcomandante cavaleiro Trevalin, a fim de solicitar o comparecimento do prisioneiro, o mago de vestes brancas, junto dele. Lorde Trevalin necessita do prisioneiro para proceder à identificação dos corpos dos mortos, a fim de poderem ser enterrados com as devidas honras. E também — acrescentou em voz baixa, para não ser ouvido —, para confirmar a contagem.
Trevalin gostaria de saber se escapara algum cavaleiro solâmnico, alguém suscetível de montar uma emboscada, possivelmente na esperança de capturar algum chefe.
A Dama da Noite não retribuiu a saudação do cavaleiro e de modo nenhum pareceu agradada com o pedido deste. Lilith, uma mulher mais idosa, quase na curva dos 50 anos, fora outrora um Veste Negra mas, quando surgira a oportunidade, trocara de vassalagem. Tal como os Cavaleiros de Abrolho, era considerada uma renegada pelos outros feiticeiros de Ansalon, incluindo os que envergavam as vestes negras. Tal podia parecer confuso para alguns, visto todos os feiticeiros servirem a mesma Rainha das Trevas. Mas os Vestes Negras serviam em primeiro lugar Nuitari, a deusa da magia negra, e em segundo sua mãe, a Rainha Takhisis. Os Cavaleiros do Abrolho serviam incondicionalmente, e antes de mais nada, a Rainha das Trevas.
A Dama da Noite lançou um olhar intenso a Steel.
— Porque motivo Trevalin te enviou?
— Dona — replicou Steel, tendo o cuidado de não revelar a irritação que lhe provocava este interrogatório desusado, — na altura eu era o único disponível.
A Dama da Noite franziu o cenho, tornando mais profundo o vinco negro entre as sobrancelhas.
— Volte à presença do subcomandante Trevalin — disse. — Diga-lhe para mandar outra pessoa.
Steel respondeu, com um encolher de ombros:
— Dona, vai me desculpar, mas as minhas ordens vêm do subcomandante Trevalin. Se pretende anulá-la, deverá contatá-lo diretamente. Permanecerei aqui até ter conferenciado com o meu comandante.
O cenho da Dama da Noite tornou-se mais carregado, mas viu-se apanhada nas malhas do protocolo. Para alterar as ordens de Montante Luzente, seria obrigada a enviar um dos seus aprendizes à presença de Trevalin. A viagem possivelmente de nada serviria, pois de qualquer forma Trevalin tinha falta de efetivos e não enviaria outro cavaleiro executar o que este podia fazer facilmente.
— Por certo é essa a vontade de Sua Majestade das Trevas — murmurou a Dama da Noite, fixando no cavaleiro os olhos verdes e penetrantes. — Pois que assim seja. Curvo-me perante ela. O mago que procura encontra-se ali.
Steel não fazia a mínima idéia quanto ao objetivo desta estranha conversa e não pretendia aprofundar o assunto.
— Trevalin quer o mago para quê? — inquiriu a Dama da Noite. Montante Luzente, há que ter paciência, repetiu ele para si mesmo.
— Precisa dele para identificar os corpos — respondeu. — O Veste Branca é o único sobrevivente.
Ao ouvir isto, o prisioneiro levantou a cabeça. O seu rosto quase adquiriu a palidez dos cadáveres que jaziam na areia. Para surpresa dos que estavam incumbidos da sua guarda, levantou-se de um salto.
— Não pode ser! — exclamou, com raiva na voz. — Por certo não sou o único!
Steel aquiesceu com uma saudação respeitosa e no entanto digna, como lhe haviam ensinado. Trate todas as pessoas de categoria, título e educação com respeito, até mesmo o inimigo. Em especial se for o inimigo. Respeite sempre o teu inimigo. Se o fizer, nunca o subestimará.
— Cremos que assim seja, Mestre Mago, embora não tenhamos maneira de confirmar. Planejamos enterrar os mortos com todas as honras e gravar os nomes nas sepulturas. É o único capaz de identificá-los.
— Conduza-me até eles — solicitou o jovem mago.
Espalhara-se pelo rosto o rubor da febre. Manchas de sangue, algumas possivelmente dele mesmo, sujavam-lhe as vestes. Tinha um dos lados da cabeça gravemente contundido e golpeado. No chão, encontravam-se os sacos e bolsas que lhe haviam sido tirados. Um desafortunado aprendiz qualquer iria manipulá-los, arriscando-se a ser queimado — ou pior — pelos objetos arcanos que, devido à sua propensão para o bem, apenas um Veste Branca podia utilizar.
Tais objetos não teriam serventia imediata para um Cavaleiro Cinzento, pois apesar da capacidade dos Cavaleiros do Abrolho para adquirir poder das três luas, a branca, a negra e a vermelha, cada magia conhece os da sua espécie e reage, amiúde, com violência à presença dos opostos. É possível a um Cavaleiro do Abrolho utilizar um artefato dedicado a Solinari, mas só à custa de longas horas de estudos dos mais disciplinados e intensos. Os componentes dos feitiços do Veste Branca e outros objetos mágicos capturados seriam guardados em segurança, para fins de estudo, e os que não fossem passíveis de manipulação fidedigna podiam ser trocados por artefatos arcanos de mais valia — e menos perigo — para os Cavaleiros do Abrolho.
Contudo, Montante Luzente reparou que o Veste Branca mantinha consigo um bordão. Feito de madeira, este era sobrepujado por uma garra de dragão em prata, que segurava, no punho, um cristal multifacetado. O Cavaleiro possuía conhecimentos do arcano que lhe permitiam constatar ler este bordão indubitavelmente mágico e possivelmente de elevado valor. Interrogou-se por que motivo haviam permitido ao Veste Branca mantê-lo.
— Suponho que o mago pode partir — disse a Dama da Noite em tom rude e com relutância. — Mas só se eu acompanhá-lo.
— Com certeza, Dona.
Montante Luzente fez o possível para esconder o choque. Não era possível este Veste Branca pertencer a uma hierarquia superior. E havia a acrescentar o fato de nenhum Veste Branca de hierarquia superior jamais permitir ser tomado prisioneiro. No entanto, Lillith — o chefe da Ordem dos Cavaleiros do Abrolho — tratava este jovem com a circunspecção que votaria, digamos, a Lorde Dalamar, renomado Senhor da Torre da Feitiçaria Suprema, em Palanthas.
O Veste Branca movia-se com esforço, apoiando-se pesadamente no bastão. A dor e a angústia consumiam-lhe o rosto. A marcha provocava-lhe estremecimentos e tinha que morder o lábio para não chorar. Avançava com a lentidão de um duende atolado. Se viajassem àquela velocidade, levariam o resto do dia e a noite para chegar ao local onde jaziam os corpos. O subcomandante Trevalin não ia ficar nada satisfeito com o atraso.
Montante Luzente olhou de relance para a Dama da Noite. O mago era seu prisioneiro. Cabia a ela prestar-lhe assistência. A Dama da Noite olhava os dois com uma expressão de desagrado e — fato estranho — de curiosidade, como que à espera de ver o que faria Montante Luzente naquela situação. Agiria como lhe haviam ensinado — com honra. Se tal desagradasse à Dama da Noite...
— Apóie no meu braço, Mestre Magno — sugeriu Steel. Falou num tom frio, desapaixonado, mas com respeito. — Verá que o percurso se torna mais fácil.
O Veste Branca levantou a cabeça, olhando atônito, mas logo a desconfiança lhe toldou a expressão.
— Que farsa é essa?
— Não é farsa, senhor. Vejo que sofre e obviamente sente dificuldade em caminhar. Pretendo apenas ajudá-lo, senhor.
O Veste Branca esboçou um esgar de perplexidade.
— Mas... — disse. — Você é... você é um dos... dela.
— Se, com isso, pretende dizer que sou um servo de Takhisis, a nossa Rainha das Trevas, então dou-lhe razão — replicou Steel Montante Luzente, em tom solene. — Pertenço-lhe de corpo e alma. Contudo, tal não impede que eu seja um homem de honra, que sente prazer em saudar a bravura e a coragem sempre que se justifique. Suplico-te, senhor, permita que o meu braço te sirva de arrimo. O trajeto é longo e vejo que está ferido.
O jovem mago olhou de soslaio para a Dama da Noite, como que à espera da sua desaprovação. Se era assim, esta nada disse. O seu rosto parecia uma máscara.
Hesitante, e obviamente receando ainda um desígnio malévolo qualquer por parte do inimigo, o Veste Branca aceitou o préstimo do cavaleiro das trevas. Claro que esperava ser arremessado ao chão, espezinhado e agredido. Pareceu surpreendido (e possivelmente desapontado) ao verificar que tal não acontecia.
Com a ajuda de Steel, a marcha do jovem mago tornou-se mais fácil e rápida. Em breve os dois abandonavam a frescura das sombras das árvores e se expunham ao calor. À vista dos preparativos de desembarque, o rosto do Veste Branca deixou transparecer uma expressão de receio e desânimo.
— Tantas tropas... — disse, baixinho, para consigo.
— A derrota do seu pequeno bando não constitui nenhuma desgraça — observou Steel. — Foram largamente superados em número.
— Contudo... — O Veste Branca falava entredentes, que a dor fazia rilhar. — Se eu tivesse sido mais forte... — Cerrou os olhos e cambaleou como que prestes a desfalecer.
O cavaleiro amparou o exaurido mago. Olhando por sobre o ombro, Steel inquiriu:
— Dama da Noite, por que motivo os curandeiros, os Cavaleiros da Caveira, não lhe prestaram assistência?
— Recusou a ajuda deles — respondeu a Dama da Noite em tom brusco. Com um encolher de ombros, acrescentou: — De qualquer forma, e na qualidade de servos de Sua Majestade a Rainha das Trevas, os nossos curandeiros possivelmente nada poderiam fazer.
Montante Luzente ficou sem resposta. Quase desconhecia os meandros dos sacerdotes das trevas. Mas sabia como fazer curativos em feridas de guerra, ele próprio preparara alguns.
— Darei a receita para um cataplasma — prometeu, voltando a ajudar o mago na caminhada. — A minha mãe... — Fez uma pausa e corrigiu. — A mulher que me criou, ensinou-me a fazê-lo. As ervas são fáceis de encontrar. A tua ferida localiza-se na ilharga?
O jovem mago aquiesceu com a cabeça e comprimiu a mão contra as costelas. As suas vestes brancas, empapadas do sangue, encontravam-se grudadas na ferida. Quiçá fosse melhor não mexer na roupa. Serviria como tampão.
— Uma lança — replicou o mago. — Um golpe de través. O meu irmão...
Interrompeu o que pretendia dizer e guardou silêncio.
Ah, então foi isso!, refletiu Steel Montante Luzente. Por isso os Cavaleiros Solâmnicos contavam, nas suas fileiras, com um fazedor de magia! Um irmão luta com a espada, o outro, com o bastão. Por isso se mostra tão ansioso por ver os mortos. Ainda não abandonou a esperança mas, no íntimo, deve saber o que o aguarda. Deverei avisá-lo? Não, podia inadvertidamente revelar informações suscetíveis de nos serem úteis.
Steel não estava sendo calculista. Simplesmente não conseguia entender a manifesta ansiedade do mago em relação ao destino desse irmão. Decerto um Cavaleiro Solâmnico aguarda morrer em combate e até o aceita de bom grado! Os parentes dos honrados mortos deviam sentir orgulho e não desgosto.
Mas, este mago é jovem, refletiu Steel. Quem sabe se foi esta a sua primeira batalha. O que explicaria muita coisa.
Continuaram o percurso pela praia apinhada, sendo o cavaleiro e o prisioneiro alvo de alguns olhares curiosos. Contudo, ninguém lhes dirigiu palavra. A Dama da Noite seguia atrás, sempre perscrutando-os com os seus olhos verdes. Steel podia jurar que sentia a feroz intensidade destes a atravessar-lhe a pesada couraça de metal.
O Sol, que parecia gotejar sangue, quando chegaram ao local de batalha onde se encontravam depositados os corpos, já atingira o auge. A alvorada fora espetacular, uma exibição inflamada de vermelhos enraivecidos e púrpuras triunfantes, como se o Sol ostentasse o seu poder perante um mundo fistuloso e ressequido. Avizinhava-se um dia abrasador. Nem sequer a noite constituiria um bálsamo. O calor emanaria da areia, qual manta asfixiante, a cobrir os que tentavam dormir nela. À noite, o repouso só viria para os que se encontravam muito exaustos para reparar no que quer que fosse.
Montante Luzente escoltou o Veste Branca à presença do seu superior, o subcomandante Sequor Trevalin.
— Conforme ordenou, aqui está o prisioneiro.
O subcomandante olhou de relance para o prisioneiro e depois para a Dama da Noite, que os acompanhava. Também Trevalin pareceu surpreendido com tão honrosa companheira de viagem. Saudou a Dama da Noite, seu superior hierárquico.
— Estou grato pela colaboração neste assunto, Senhora.
— Não me restou outra opção — respondeu ela com azedume. — Seja feita a vontade de Sua Majestade.
Ao que parece, o comentário deixou Trevalin bastante perplexo. A Rainha Takhisis vigiava tudo o que faziam — assim acreditavam os cavaleiros — mas decerto Sua Majestade Tenebrosa tinha assuntos mais importantes a ocupar-lhe a mente imortal do que a mera identificação de prisioneiros. Contudo, os feiticeiros eram gente esquisita e a Dama da Noite figurava entre os mais estranhos. Quem ia agora adivinhar o que as suas palavras insinuavam? Trevalin decerto não iria perguntar. Em vez disso, apressou os trâmites da missão de que fora incumbido.
— Mestre Mago, ficaríamos muito gratos se pudesse nos fornecer o nome e o título daqueles cavaleiros, pretendemos gravá-los, a fim de que a posteridade possa honrar-lhes a bravura conforme merecem.
O jovem mago ficara exausto com a caminhada, o calor e as dores que o atormentavam. Parecia aturdido, ali parado a olhar para os corpos como se se tratasse de estranhos, sem dar mostras de reconhecê-los. O braço, ainda pousado no de Montante Luzente, tremia-lhe.
— Senhor — sugeriu Steel —, talvez fosse melhor dar-lhe um pouco de água. Ou uma taça de vinho.
— Certamente. — Em vez de vinho, Trevalin ofereceu-lhe uma taça de conhaque forte, retirado de um frasco que mantinha preso à cintura.
O jovem bebeu avidamente, talvez desconhecendo o que lhe escorria para os lábios. Mas, a primeira golada restituiu alguma cor às faces exangues. Isso e a breve pausa pareceram ajudar. Chegou ao ponto de dispensar o apoio de Steel.
O Veste Branca fechou os olhos e moveu os lábios. Parecia que recitava uma oração, pois Montante Luzente julgou ouvir, num sussurro, a palavra “Paladino”.
Recuperadas as forças, que possivelmente lhe vieram mais da prece do que do conhaque, o jovem mago encaminhou-se penosamente para o primeiro morto. Inclinando-se, ergueu a pequena capa que lhe cobria o rosto. Foi numa voz embargada pelo alívio, e também pelo desgosto, que pronunciou o nome e o título, assim como a terra natal do cavaleiro.
— Sir Llewelyn ap Ellsar, Cavaleiro da Rosa, de Guthar de Sanscrit.
Percorreu a fileira dos mortos, revelando a seu respeito mais força e alento do que o primeiro jovem cavaleiro lhe inspirara.
— Sir Horan Devishtor, Cavaleiro da Coroa, do distrito de Palanthas. Sir Yori Beck, Cavaleiro da Coroa, de Caergoth. Sir Percival Nelish... — prosseguiu.
Um escriba, convocado pelo subcomandante Trevalin, ia anotando todos os detalhes numa ardósia de chifre.
Foi quando o jovem mago se acercou dos últimos dois corpos. Detendo-se, virou a cabeça e olhou para a fileira de cadáveres. Todos os presentes constataram que efetuava a contagem. Baixou a cabeça, apertou a mão contra os olhos e ficou imóvel.
Steel aproximou-se de Trevalin.
— Senhor, ele mencionou-me algo a respeito de um irmão.
Trevalin aquiesceu, dando a entender que compreendera, e nada disse.
O Veste Branca revelara ao oficial tudo o que este precisava saber. Não havia mais cavaleiros. Nenhum escapara.
O Veste Branca ajoelhou-se. Com a mão trêmula, levantou a capa que tapava o rosto imóvel e frio. Sufocado pelo desgosto, sentou-se, desamparado, perto do corpo.
— Perdoe, senhor — observou o escriba. — Não entendi o que disse. Qual é o nome desse homem?
— Majere — respondeu, aos haustos, o Veste Branca. — Sturm Majere. E aquele — acrescentou, levantando a capa que tapava o rosto do outro cavaleiro — é Tanin Majere.
Inclinando-se para eles, limpou-lhes o sangue dos rostos desfigurados e beijou-lhes a fronte gelada.
— Os meus irmãos.
— Majere — repetiu Montante Luzente, virando-se para o jovem mago. — A palavra não me é estranha.
Quebrantado pelo desgosto, o Veste Branca não respondeu. Provavelmente, nem sequer ouvira. No entanto, a Dama da Noite escutara. Emitiu um suave ruído sibilante, inspirando fundo. Os olhos verdes semicerraram-se e, por sob as pálpebras meio fechadas, fixaram-se em Steel.
Este, não prestando atenção à Dama da Noite, aproximou-se do mago. O jovem era alto, bem constituído, embora lhe faltasse a rijidez de músculos dos irmãos soldados. Possuía um cabelo castanho avermelhado que lhe descia até os ombros. Tinha mãos de mago: flexíveis, esguias, com dedos afunilados. Ao observar o jovem, Steel conseguia agora vislumbrar a semelhança, não só com os corpos que jaziam na areia como também com o homem que um dia lhe salvara a vida.
— Majere. Caramon Majere. Estes... — Steel apontou para os cavaleiros mortos — devem ser os dois filhos mais velhos. E você é o mais jovem. É filho de Caramon Majere?
— Sou Palin — respondeu o jovem mago em voz trêmula. Com uma das mãos, afastou da testa fria do irmão os anéis úmidos de cabelo ruivo. A outra mão mantinha-se enclavinhada no bordão, como se deste extraísse a força que o mantinha vivo. — Palin Majere.
— Filho de Caramon Majere, sobrinho de Raistlin Majere! — murmurou a Dama da Noite com uma entoação sibilante.
Ao ouvir isto, o subcomandante Trevalin — que estivera desatento à conversa, ocupado com a logística da transferência dos corpos e com a seleção dos homens para a tarefa — levantou a cabeça e olhou para o jovem Veste Branca com redobrada atenção.
— O sobrinho de Raistlin Majere? — repetiu.
— Um excelente espólio — observou a Dama da Noite. — De valor apreciável. O tio foi o feiticeiro mais poderoso que existiu em Ansalon. — E até quando se referia a Palin, a Dama da Noite não tirava os olhos de Steel.
O cavaleiro não deu por isso. Fitando os corpos, embora sem na realidade vê-los, a avaliar pela expressão sombria que lhe toldava o rosto, algo lhe revolvia o espírito, e estava obrigando-o à tomar uma decisão difícil qualquer.
Foi quando Palin se moveu, erguendo os olhos, avermelhados por tantas lágrimas vertidas.
— Você é o Montante. O Montante Luzente. O filho de Sturm... — A voz embargou-se de novo ao citar o nome que era o mesmo do irmão.
Quase como se falasse para consigo, Steel observou:
— Estranha coincidência, o nosso encontro decorrer assim...
— Não foi coincidência nenhuma! — interrompeu a Dama da Noite em voz estridente. Os seus olhos verdes lembravam ranhuras incrustadas de jóias. — Tentei impedi-lo, mas a vontade de Sua Majestade das Trevas prevaleceu. Que significará? Que presságios conterá?
Montante Luzente lançou-lhe um olhar exasperado. O cavaleiro nutria um grande respeito pelos Senhores da Noite e pelo trabalho destes. Ao invés dos Cavaleiros da Solamnia, que desprezavam misturar a têmpera com a magia, os Cavaleiros de Takhisis recorriam às artes esotéricas nas batalhas. Aos feiticeiros eram atribuídos postos e um estatuto idêntico aos dos guerreiros-cavaleiros. Os feiticeiros detinham postos honrados e respeitados em todas as esferas de comando. Mas ainda se registravam atritos ocasionais entre os dois grupos, embora Lorde Ariakan fizesse tudo ao seu alcance para eliminá-los. O soldado, com o seu sentido prático, que via direto do ponto A ao ponto B e nada mais do que isso, não podia esperar compreender o feiticeiro, que via não só A e B como todos os planos de existência mutáveis que se interpunham.
E, de todos os Cavaleiros do Abrolho, esta mulher era a mais intratável — conforme rezava o ditado, via seis faces em todos os objetos apenas dotados de quatro, o mínimo incidente servia de pretexto para uma busca constante de significado, lançava três vezes por dia as suas pedras divinatórias, perscrutava as entranhas dos gatos domésticos. Por mais de uma vez o subcomandante Trevalin e o seu grupo de oficiais se viram em dificuldades nas relações de trabalho com ela.
Pura coincidência. Nada mais. E que não era assim tão estranha como isso. Haver um mago irmão de Cavaleiros da Solamnia que encontra um primo, um Cavaleiro de Takhisis. O mundo estava em guerra, embora nem todos se apercebessem do fato. O encontro entre os três, mais cedo ou mais tarde, decerto seria inevitável. Steel sentia-se grato por uma coisa: pelo fato de não lhe caber a responsabilidade da morte dos dois Majere. Porém, mesmo que fosse ele o responsável, só cumpria o seu dever. Mas o desfecho tornava as coisas mais fáceis. Virou-se para o superior:
— Subcomandante Trevalin — disse. — Rogo-te um favor. Conceda-me autorização para levar os corpos de volta à sua terra natal, para que se proceda às exéquias. Ao mesmo tempo, restituirei o Veste Branca ao seu povo e cobrarei o seu resgate.
Trevalin olhou espantado para Montante Luzente. Palin fitou-o com estupefação. A Dama da Noite murmurou, resfolegou e abanou a cabeça.
— Onde fica a terra natal deles? — inquiriu Trevalin.
— Em Consolação, na Abanassínia Central, bem ao norte de Qualinost. O pai exerce lá as funções de estalajadeiro.
— Mas isso fica longe, em território inimigo. Correrá enorme perigo. Se te assistisse alguma missão especial relacionada com a Visão, então sim, aprovaria. Mas isto... — Trevalin esboçou um gesto com a mão. — Entregar corpos... Não, você é um soldado muito bom e não quero arriscar-me a perdê-lo, Steel. Impossível atender ao teu pedido. — O cavaleiro mais idoso olhou com curiosidade para o mais jovem. — Não costuma agir ao sabor dos caprichos, Montante Luzente. O que te leva a formular tão estranho pedido?
— O pai, Caramon Majere, é meu tio, meio-irmão de Kitiara Uth Matar, minha mãe. Os cavaleiros mortos e o mago são meus primos. Além disso... — O rosto de Steel mostrava-se impávido, inexpressivo, a voz saía-lhe pragmática. — Durante um combate, em que quase fui capturado na Torre do Sumo Sacerdócio, Caramon Majere lutou ao meu lado. Tenho para com ele uma dívida de honra. De acordo com Lorde Ariakan, há que resgatar uma dívida de honra na primeira oportunidade. Aproveito este ensejo para saldar a minha.
O subcomandante Trevalin não hesitou.
— Caramon Majere salvou-lhe a vida? Sim, lembro-me da história. E são estes os filhos dele? — O assunto mereceu ao cavaleiro uma ponderação mais séria, e mentalmente comparou-o com a Visão — o Grande Plano da Rainha das Trevas. Quando da investidura, a cada cavaleiro era concedida a Visão e a revelação de como o seu fio peculiar participava na tessitura da imensa tapeçaria. Nada deveria entrar em conflito com a Visão, nem sequer uma dívida de honra.
Contudo, a batalha terminara e o objetivo fora alcançado. Antes de se deslocarem para oeste, os cavaleiros das trevas levariam tempo a estabelecer o seu bastião na praia. Trevalin não previa mais baixas entre os cavaleiros, pelo menos no futuro imediato. E um dos interesses dos cavaleiros constituía em sempre obter o maior número de informações a respeito do inimigo. Na sua incursão pelo território do adversário, Steel iria decerto ver e ouvir muitas coisas que posteriormente se revelariam úteis.
— Concedo autorização para partir, Montante Luzente. A viagem será perigosa, mas quanto maior o perigo, maior se revelará a glória. Restituirá os corpos destes cavaleiros à sua terra natal, para que procedam às exéquias. Quanto ao resgate do Veste Branca, a decisão sobre o seu destino cabe à nossa prestimosa camarada.
Trevalin olhou para a Dama da Noite, que fervia de indignação por se ver excluída da tomada de decisão. Contudo, por não ser a comandante de Steel, não podia ter voz ativa neste processo de idas e vindas. Porém, o Veste Branca era seu prisioneiro, o que lhe conferia o direito de decidir quanto ao que fazer com ele.
Ponderou o assunto, debatendo-se, obviamente, entre o anseio de mantê-lo sob o seu jugo e o anseio quanto aos proventos que o resgate deste possivelmente lhe trariam. Quem sabe se algo mais a perturbava... Os seus olhos verdes e faiscantes fixavam-se ora em Steel ora em Palin.
— O Veste Branca foi condenado à morte — disse abruptamente.
— Quê? Porquê? Qual o motivo? — Trevalin mostrou-se estupefato e parecia impaciente. — Ele se rendeu! É um prisioneiro de guerra! Tem o direito a ser resgatado!
— O pedido de resgate já foi formulado — retrucou a Dama da Noite. — Recusou. Portanto, irá pagar com a vida.
— Jovem, é verdade? — perguntou Trevalin olhando com ar severo para Palin — Recusou o resgate?
— Pediram-me o que não posso dar — respondeu Palin, enclavinhando os dedos no bastão. Todos os presentes souberam de imediato qual o resgate pedido. — O bastão não me pertence. Foi-me emprestado, é tudo.
— O bastão? — Trevalin virou-se para a Dama da Noite. — Tudo o que pretende é o bastão? Se o recusou, confisque-o!
— Tentei — respondeu Lillith, exibindo a mão direita, cuja palma se mostrava cheia de vesículas e queimada.
— Veste Branca, foi você o responsável? — inquiriu Trevalin.
Palin enfrentou-o, com os olhos avermelhados pelas lágrimas derramadas, mas transparentes.
— Será que interessa, Senhor? — respondeu. — O Bastão de Magius foi-me confiado mediante um ato de fé sagrada. Não sou seu “dono”. Limitei-me apenas a controlá-lo. O bastão não pertence a ninguém a não ser a ele mesmo. Contudo, não me separarei dele, mesmo que isso me custe a vida.
Ambos os cavaleiros das trevas se mostraram impressionados com a resposta do jovem. O mesmo não aconteceu com a Dama da Noite. Esfregando a mão ferida, dardejou todos com um olhar ameaçador.
— Uma questão interessante — observou Trevalin. — Um homem não pode pagar com a vida pelo que não lhe pertence. Pode recorrer aos amigos e à família no sentido de obter para si o dinheiro necessário ao resgate, mas roubá-los é que não. A honra proíbe a este jovem a restituição do bastão. Assim sendo, Senhora, reivindicar a vida dele é um direito que lhe assiste. Contudo, parece que isso não combina com a Visão.
A Dama da Noite lançou um olhar contundente a Trevalin e abriu a boca para protestar. Contudo, a invocação da Visão transcendia todo o resto. Viu-se forçada a guardar silêncio até ele acabar.
— A Visão exige que, em todos os aspectos, coloquemos a causa de Sua Majestade das Trevas acima de todas as coisas. Tomar a vida deste jovem de nada servirá para engrandecer a causa. A alma dele voaria até Paladino e seria este o vencedor, não nós. Contudo, se conseguíssemos trocar a vida deste jovem por qualquer outra coisa, por algum objeto mágico de que os feiticeiros de Wayreth são detentores...
A expressão da Dama da Noite suavizou-se. Pousou os olhos em Palin, como que a conjecturar, e, fato estranho, também em Steel.
— Talvez — ouviu-se murmurar para consigo —, talvez seja este o motivo. Muito bem — disse em voz alta —, inclino-me perante a tua sapiência, subcomandante Trevalin. Há uma coisa que aceitaremos como resgate de Palin Majere. — Fez uma pausa, em jeito melodramático.
— O que é, Dona? — inquiriu Trevalin, impaciente por se libertar das suas obrigações.
— Queremos que os feiticeiros nos franqueiem o acesso ao Portal para o Abismo.
— Mas... é impossível! — exclamou Palin.
— A decisão não lhe pertence — retrucou a Dama da Noite com frieza. — Está sob a jurisdição do Conclave dos Feiticeiros. Cabe a eles decidir. Franquear o Portal não é o mesmo que entregar o Bastão de Magius. Tal opção pertence ao Conclave.
Palin abanou a cabeça.
— O que pede não pode... não será concedido. É impossível. Se quiser, acabe já com a minha vida. Não poderia — acrescentou em tom doce, pousando a mão no ombro do falecido irmão — morrer em melhor companhia.
— O julgamento já decorreu, Veste Branca. É nosso prisioneiro e tem que se curvar à nossa vontade. — Trevalin mostrava-se firme. — Viajará, na companhia do cavaleiro Steel, até à Torre de Wayreth, a fim do teu resgate ser comunicado ao Conclave dos feiticeiros. Se recusarem, pagará com a vida. Voltará à nossa presença a fim de morrer.
Palin encolheu os ombros e manteve-se em silêncio, indiferente ao destino que o aguardava.
— Você, Montante Luzente, responde pelo prisioneiro. Se escapar, pagará com a vida. Será condenado à morte no lugar dele.
— Compreendo, subcomandante — respondeu Steel —, e aceito o castigo.
— Tem quinze dias para completar a viagem. Na primeira noite, em que as luas vermelha e prateada forem ambas visíveis no céu, virá à minha presença, como teu comandante, consiga ou não ter êxito na tua incumbência. Se o prisioneiro fugir, deverá comunicar-me de imediato.
Steel fez a continência e afastou-se, a fim de selar o seu dragão. Aliviado, Trevalin retomou as tarefas e ordenou a um escudeiro que preparasse os dois cadáveres para a viagem. Os corpos dos outros cavaleiros foram dispostos numa carroça, a fim de serem conduzidos ao túmulo. Palin permaneceu junto dos irmãos, desvelando-se a limpar os corpos, retirar o sangue e fechando-lhes os olhos enevoados e fixos.
Lillith manteve-se perto de Palin, seguindo-o intensamente com os olhos. Não o fazia por receio que escapasse. Procurava, sim, alguma pista. Porque havia aquele jovem mago — dentre todos os jovens magos do mundo — sido enviado para ali, a fim de participar naquela batalha? Porque fora o único a sobreviver? E, fato mais importante, porque travara Palin Majere conhecimento com o seu primo, o Montante Luzente?
Invocou a imagem dos dois, caminhando lado a lado, falando um com o outro. Neles não detectou semelhanças congênitas imediatas. De fato, e à primeira vista, não podiam ser mais diferentes. Steel era alto, musculoso, bem constituído. Uma cabeleira longa, escura e encaracolada, emoldurava-lhe o rosto enérgico e de belos contornos, os seus olhos eram escuros, grandes e intensos. Era, inegavelmente, um homem bonito. Mas embora as mulheres olhassem pela primeira vez para Steel com admiração, não voltavam a fazê-lo. Sem dúvida era agradável, porém toda a atração acabava aqui. Tornava-se óbvio para todos que pertencia, de corpo e alma, a uma dama implacável: a Guerra.
Só a guerra conseguia satisfazer-lhe a luxúria, os desejos. O seu porte frio, orgulhoso, arrogante, só ganhava vida durante a investida, o combate. O entrechoque das armas constituía a música por ele adorada, a canção do desafio, a melodia de amor que entoava.
A contrastar, Palin Majere, o primo, possuía uma constituição franzina, cabelo castanho avermelhado e pele clara. De ossatura delicada e olhos inteligentes e penetrantes, a Dama da Noite identificara-o de imediato com o tio. Avistara-se uma vez com Raistlin Majere e, mal vira o sobrinho deste, reconhecera-o. Julgara ela que por via das mãos. Possuía o toque delicado e hábil do tio.
Primos, nas veias corria-lhes o mesmo sangue. Sim, a semelhança residia ali, na alma, e não no corpo. Steel conhecia a força que detinha. Palin ainda não a descobrira. Mas esta pulsava nele tal como no tio. Como utilizá-la em prol de Sua Majestade das Trevas? Pois decerto havia um motivo qualquer que determinara o encontro entre os dois!
Não se tratava de uma coincidência. Não, havia aqui a influência de um grande Plano, só que a Dama da Noite não conseguira ainda decifrá-lo. A resposta não tardaria. Disso não tinha dúvidas. Precisava ser paciente. Assim, ia observando e aguardando.
Palin — por se julgar a sós ou por indiferença — começou a falar com os irmãos.
— Tanin, a culpa foi minha — disse meigamente, embora com a voz enrouquecida pelas lágrimas. — Vocês morreram por minha culpa. Sei que me perdoarão. Perdoam-me sempre, faça eu o que fizer! Mas como poderei perdoar-me? Se tivesse sido mais forte na minha magia, mais zeloso nos estudos, se aprendesse mais encantamentos... Se não ficasse paralisado pelo medo e esquecesse tudo o que sabia, se, no fim, não tivesse falhado com vocês. Se fosse mais como o meu tio! Mais como o meu tio!
Estas palavras chegaram aos ouvidos de Lillith. Um frêmito de terror e de excitação percorreu-lhe os braços. Vislumbrou o Plano. Os pensamentos de Sua Majestade das Trevas começavam a parecer claros, ou pelo menos adquiriam a transparência possível aos olhos de uma mente humana. Tinha de ser! Tinha de ser esta a razão! Os dois homens — um debatendo-se com as suas dúvidas e insegurança, o outro transbordante de orgulho — constituiriam a ruína um do outro.
A Dama da Noite não confiava em Steel. Este nunca a inspirara, principalmente desde que descobrira o seu parentesco. Opusera-se por longo tempo à sua admissão nas fileiras dos Cavaleiros de Takhisis. Os prognósticos eram adversos, as pedras divinatórias haviam profetizado catástrofes.
Uma pedra branca à esquerda — era o pai, Sturm Steel, Cavaleiro Solâmnico de renome e até venerado pelos inimigos pelo seu corajoso sacrifício. Uma pedra negra à esquerda — era a mãe, Kitiara Uth Matar, chefe de um dos exércitos dos dragões, famosa pela sua perícia e temeridade no campo de batalha. Ambos se encontravam mortos — a Dama da Noite podia senti-lo —, ambos tentavam alcançar o filho trazido ao mundo por casualidade e não por um desígnio qualquer.
Embora aparentemente calmo e inabalável na sua lealdade e devoção para com a Rainha das Trevas, no íntimo de Steel devia agitar-se um torvelinho de raiva. Na melhor das hipóteses, assim especulara a Dama da Noite. E tinha bons motivos para tal. Steel usava a espada de um Cavaleiro Solâmnico — a espada do seu pai. E também usava (embora se tratasse de um segredo bem guardado) uma jóia concebida pelos Elfos. Conhecida por jóia das estrelas, não era nada mais do que um penhor trocado entre enamorados. Fora, durante a Guerra da Lança, dado a Steel por Alhana Brisa das Estrelas, Rainha dos Elfos de Silvanesti. E Sturm Montante Luzente — ou antes, o cadáver deste, se dermos crédito ao relato de Steel — oferecera a jóia ao filho.
Uma pedra branca à esquerda, uma pedra negra à direita e no centro uma pedra assinalada com uma fortaleza. Desabando sobre a fortaleza, uma pedra assinalada com fogo. Destas, Lillith fez a seguinte leitura: o jovem debatia-se entre duas emoções e este conflito interior redundaria em catástrofe. Que mais podia representar uma fortaleza a ser devorada pelas chamas?
A Dama da Noite porfiara por longo tempo nas suas argumentações, mas ninguém lhe dera ouvidos. Até a Dama da Caveira, uma poderosa sacerdotisa — uma mulher velha, muito velha que, afirmava-se, era uma das favoritas da rainha Takhisis — recomendara a admissão de Steel na cavalaria.
— Sim, ele usa a jóia das estrelas — murmurara a velha múmia através da boca desdentada. — A jóia constitui a única brecha na sua fachada de ferro. A utilizaremos para lhe devassar o coração e aproveitaremos tal vantagem para perscrutar o coração dos nossos inimigos!
Velha arrogante e idiota!
Mas, agora, a Dama da Noite compreendia. Arremessou a idéia para os recessos escuros da mente, muito ao jeito de quando lançava as pedras divinatórias. Esta tombou com transparência, não rolou nem oscilou de um lado para o outro, quedando-se ali com o lado direito para cima. Com ponderação e escolhendo cuidadosamente as palavras, abordou o jovem mago.
— Falou do teu tio — disse, pairando sobre Palin, com a cabeça inclinada, de olhos fitos nele, e os braços cruzados no peito. — Não o conheceu, não é? Claro que não. É muito jovem. — Palin nada disse, apenas apertou um pouco mais o Bastão de Magius. O jovem fizera o que pudera pelos irmãos. Só lhe restava a amarga tarefa de levá-los de volta à terra natal, de comunicar as novas ao pai e à mãe. Encontrava-se agora frágil e vulnerável. A tarefa da Dama da Noite era quase uma brincadeira de crianças.
— Raistlin deixou este mundo antes de você nascer.
Palin levantou os olhos, e nesse relancear, embora persistisse no silêncio, tudo revelou.
— Deixou este mundo. Optou por viver no Abismo, onde dia após dia é atormentado pela nossa temível Rainha.
— Não! — exclamou Palin, agrilhoado pela ânsia de falar. — Não, não é verdade! Pelo seu sacrifício, foi concedida ao meu tio a paz no sono eterno. Paladino iluminou o meu pai com esta percepção.
Lillith ajoelhou-se, para ficar ao nível do jovem e acercou-se dele. Era uma mulher atraente e, quando queria, revelava-se encantadora, tão fascinante como uma serpente.
— É o que teu pai afirma. Era o que afirmaria, não é?
Viu que o jovem se remexia, inquieto, e um frêmito de regozijo a percorreu. Não que Palin a olhasse, mas sentiu-lhe a suspeita que já lhe ocorrera antes. Acreditava no pai — contudo, parte dele não acreditava. Tal dúvida constituía a brecha do escudo dele. E através da mesma, insinuou a sua lâmina de mental envenenada.
— E se o teu pai não estiver certo? E se Raistlin Majere retornar à vida? — A Dama da Noite acercou-se mais. — Irá convocá-lo, não é verdade?
Não passava de uma conjectura, mas a Dama da Noite soube de imediato que acertara. Palin hesitou, baixou os olhos.
— Se Raistlin regressar a este mundo, o tomará como seu aprendiz. Estudará com o maior mago que alguma vez pisou este plano de existência. O teu tio já lhe concedeu uma preciosa oferta. Que mais não fará pelo adorado sobrinho?!
Palin olhou-a de relance, não passou de um vislumbre, mas ela detectou o fogo que lhe ardia nos recônditos dos olhos e soube que este iria consumi-lo.
Satisfeita, a Dama da Noite levantou-se e afastou-se. Já podia deixar o prisioneiro partir. Este encontrava-se em segurança — enleado nas malhas da tentação. E, inadvertidamente, arrastaria consigo o primo. Eis o motivo que levara a Rainha das Trevas a fomentar o encontro entre os dois.
Lillith enfiou a mão numa bolsa preta de veludo e, ao acaso, retirou um punhado de pedras. Murmurando o encantamento, arremessou-as ao chão. A Dama da Noite estremeceu.
Não falhara as adivinhações. Takhisis tinha de se apoderar das duas almas — e depressa.
A catástrofe aproximava-se a passos largos.
O estio do meio-dia derramava-se, qual lençol de óleo em chamas, nas águas da baía de Branchala. Esta era a hora mais buliçosa do dia nas docas de Palanthas e coincidiu com a chegada da embarcação de Usha, que foi se diluir no aglomerado que apinhava o porto. Não habituada a tal calor, barulho e confusão, Usha permaneceu sentada no barco, que ia oscilando, e, desanimada, olhou ao redor.
Enormes galeras mercantis, com tripulações de minotauros, roçavam os flancos contra as grandes embarcações de pesca, tripuladas pelos humanos de pele negra do Norte de Ergoth. Lanchas “mercantis” menores saltitavam e afocinhavam, forçando caminho por entre o aglomerado. E quando embatiam contra embarcações maiores, desencadeavam uma tempestade de maldições e o arremesso ocasional de baldes com água imunda ou cabeças de peixe. Para aumentar a confusão, acabara de entrar no porto um navio de gnomos. Os outros navios apressaram-se a levantar âncora, esforçando-se por interpor entre si e os gnomos uma barreira de mar tão vasta quanto possível. Ninguém em seu perfeito juízo arriscaria a vida mantendo-se perto da monstruosidade ambulante que gorgolejava vapor. O capitão do porto, no seu barco especialmente pintado, velejava de cá para lá, e esfregando a cabeça suada e calva, gritava, através de uma trompa falante, ordens aos comandantes.
Usha esteve prestes a içar a vela, virar o barco e regressar à sua terra. As pragas, de ressonância cruel, dos minotauros (ouvira falar deles, mas nunca vira nenhum) assustaram-na. As chaminés do navio dos gnomos, que se erguiam fumegantes a uma distância ameaçadora, deixaram-na apavorada. Não fazia a mínima idéia sobre o que fazer nem para onde ir.
Um homem idoso, que se mantinha ao largo do pandemônio balançando-se placidamente numa pequena embarcação pesqueira, avistou-a e, percebendo sua aflição, rumou na sua direção.
— Forasteira por estas bandas, hein? — inquiriu o velho por fim, Usha compreendeu que este lhe perguntara se ela era forasteira.
Respondeu afirmativa e perguntou-lhe onde podia ancorar
— Aqui não — respondeu o homem, aspirando a fumaça de um decrépito cachimbo. Retirou-o da boca e, com um gesto, apontou para as barcaças. — Há muitos lavradores p’ra lá.
Nesse instante, um veleiro minotauro agigantou-se por trás da embarcação de Usha, quase a mandando à pique. Debruçando-se na amurada, o comandante jurou que racharia o barco — e a ela — em dois, caso não se desviasse da trajetória.
Tomada de pânico, Usha pegou nos remos, mas o velho a deteve.
Postado de pé na sua embarcação — o que Usha considerou uma proeza incrível, visto que a mesma balançava freneticamente — o velho respondeu ao comandante no que devia ser o idioma dos minotauros, pois os sons lembravam alguém a esmigalhar ossos. Usha nunca saberia ao certo quais as palavras do velho, mas o comandante minotauro, com um resmungo, ordenou que afastassem o navio.
— Fanfarrões — murmurou o velho, voltando a sentar-se. — Mas os melhores marinheiros que há. Eu que o diga. Naveguei com eles uma “pancada” de vezes.
E olhando com curiosidade para o barco da jovem, observou:
— Tem aí uma bela embarcação. Construída por minotauros, se não me engano. De onde vêm, você e o barco?
Usha esquivou-se da pergunta. Antes de partir, o Protetor avisara-a para não revelar a ninguém o que quer que fosse a seu respeito. Fingiu não ter ouvido o velho — o que era fácil, no meio do chapinhar dos remos, das pragas e dos acordes estridentes da trompa do capitão do porto. Agradeceu-lhe a ajuda, e de novo lhe inquiriu onde podia ancorar.
— Para leste — respondeu o velho, apontando com o cachimbo. — Há um molhe público. Normalmente paga-se taxa mas... — Interrompeu-se, com os olhos fixos nela de novo e não no barco. — Com essa carinha e esses olhos, é provável que te deixem ficar de graça.
Usha sentiu-se corar de raiva e de vergonha e reprimiu o desejo de retribuir com um comentário mordaz. O homem fora simpático e prestativo. Se pretendia zombar do aspecto dela, paciência. Quanto à alusão de uma “taxa” e a deixarem-na “de graça”, não fazia a mínima idéia do seu significado. Perscrutando através do emaranhado de mastros, avistou o molhe a que o homem se referia e que, comparado com as docas principais, lhe pareceu ser um pedaço de Paraíso. Agradecendo de novo ao velho — com bastante frieza —, Usha manobrou o barco naquela direção.
O porto público encontrava-se bem menos congestionado, pois restringia-se às embarcações de pequeno porte, sobretudo aos barcos de passeio das pessoas abastadas. Usha baixou as velas, franqueou-o, descobriu um molhe e ancorou. Reunindo os seus pertences, pendurou um dos alforjes nas costas, enrolou o outro em volta da cintura e saltou para fora do barco. Em seguida, amarrou-o à doca, afastou-se e parou, para lhe lançar um derradeiro olhar.
Aquela embarcação constituía o último vínculo que a ligava à terra natal, ao Protetor e a todos os que amava. Quando se separasse dela, estaria cortando as amarras com o passado. Recordou o estranho clarão avermelhado que tingira o céu na noite anterior, e de repente sentiu relutância em afastar-se. Percorreu a mão pela corda que a unia ao barco, ao barco que a prendia à terra natal. Meio cega pelas lágrimas que lhe marejavam os olhos, virou-se e foi bater contra algo escuro e sólido, que lhe enredou a manga.
Uma voz que lhe ressoou ao nível da cintura, inquiriu:
— Onde acha que vai, garotinha? Falta tratar da questãozinha da taxa de utilização da doca.
Envergonhada por surpreenderem-na chorando, Usha limpou apressadamente os olhos. Quem a abordara era um duende de barba grisalha e hirsuta, com um rosto desgastado e os olhos semicerrados de quem passa dias a observar o sol refletindo-se na água.
— Taxa? Não entendo o que quer dizer com isso, senhor. — Usha virou-se, tentando não olhar. Nunca conhecera um duende, embora soubesse da sua existência através das histórias do Protetor.
— Uma taxa para deixar o barco onde o ancorou! Por acaso, garotinha, acha que o povo de Palanthas dirige esta operação só por causa dos lindos olhos das pessoas? Há uma taxa! Pretende deixar o barco ali por quanto tempo? Um dia? Uma semana? Um mês? É porque a taxa varia.
— Eu... Eu não sei — tartamudeou Usha, sentindo-se indefesa.
Os Irdas desconhecem o conceito de dinheiro. Dado as suas necessidades serem simples, cada Irda produz aquilo que precisa, seja por manufatura seja recorrendo à magia para dar existência ao objeto. Nunca ocorreria a um Irda permutar algo por outra coisa. Tal seria o mesmo que devassar a alma uns dos outros.
Começavam a ocorrer a Usha as histórias que o Protetor lhe contara a respeito dos duendes.
— Quer dizer então que se eu te der algo, permite em troca, que o meu barco fique aqui?
O duende dardejou-a com os olhos, semicerrando-os até quase fechá-los.
— Que se passa, garotinha? Bateu com a cabeça no dique? — O duende começou a falar em voz estridente, como se admoestasse uma criança. — Sim, garotinha, dê qualquer coisa ao lindo duende... de preferência, aço frio e duro... e o lindo duende te deixa guardar o barco ali. Se não der alguma coisa ao lindo duende... de preferência aço duro e frio... o lindo duende lhe confisca o maldito barco. Entendeu?
Usha sentiu o rosto arder. Não possuía aço nem tinha muita certeza quanto ao significado do termo. Mas começava a se formar um ajuntamento de homens sorridentes em volta dos dois, alguns com aspecto grosseiro. Usha só desejava sair dali. Ao vasculhar uma das bolsas, os seus dedos tocaram num objeto. Retirou-o e estendeu-o ao duende.
— Não possuo aço. Isto serve?
O duende pegou no objeto e examinou-o com atenção. Os olhos semicerrados esbugalharam-se como possivelmente não acontecia há uma centena de anos. Depois, reparando no interesse dos homens que os rodeavam, dardejou-os com uma expressão ameaçadora e fechou apressadamente a mão, ocultando o objeto.
— Pelas barbas de Reorx, é platina! Com um rubi! — ouviram-no murmurar. Depois, acenou com a mão aos homens, acrescentando:
— Vão andando, seus camponeses! Vão cuidar da vida, senão mando os guardas do suserano investir contra vocês!
Os homens riram, proferiram alguns comentários irreverentes, e afastaram-se. Segurando na manga de Usha, o duende puxou-a até esta ficar ao seu nível.
— Menina, sabe o que isto é? — perguntou num tom muito mais polido.
— É um anel — respondeu Usha, julgando que o duende possivelmente desconhecia do que se tratava.
— Pois é — respondeu este, passando a língua pelos lábios. Os seus olhos detiveram-se avidamente na bolsa. — Um anel. Será... Será que tem mais algum aí?
Usha não gostava do olhar dele. Apertando a bolsa com a mão, cingiu-a mais ao corpo. — O que te dei chega para poder guardar o barco?
— Oh, Menina, claro que sim! Durante o tempo que quiser! Vou cuidar muito bem dele! Lavarei os conveses, que acha? As lapas, retiro-as? E as velas, devo remendá-las?
— Faça como quiser, senhor. — Usha começou a afastar-se, encaminhando-se para a costa e para os grandes edifícios que a orlavam.
— Quando vem buscá-lo? — inquiriu o duende, dando corridinhas com as pernas curtas, a fim de se manter ao lado dela.
— Não sei — respondeu Usha, procurando disfarçar a confusão e parecer despreocupada e segura. — Só quero que o barco esteja aqui quando eu voltar.
— Vá descansada, menina, que estará. O guardarei bem — respondeu o duende. Usha viu-lhe os dedos de uma das mãos sujas agitarem-se, como se ele estivesse fazendo contas. — Talvez haja alguns encargos adicionais...
Encolhendo os ombros, Usha prosseguiu o caminho.
— Platina! — ouviu o duende dizer, com um suspiro cobiçoso. — com um rubi!
Usha esquivou-se das autoridades portuárias de Palanthas simplesmente porque não fazia a mínima idéia de quem se tratava nem do que deveria lhes dizer a seu respeito ou porque se encontrava em Palanthas. Passou pelos guardas e dirigiu-se para a parte reconstruída da muralha da cidade revelando um tal aprumo e perfeito autodomínio que não deu tempo a nenhum deles, obviamente atarefados, para a deterem ou interrogarem-na. Parecia ter o pleno direito de se encontrar ali.
O aprumo revelado não passava de inocência. O autodomínio era como que um invólucro de gelo, a ocultar o seu terror e confusão.
Passou as horas seguintes a perambular pelas ruas de Palanthas, quentes, poeirentas e apinhadas de gente. Avistava, em cada esquina, algo que lhe inspirava espanto, terror, deslumbramento ou repulsa. Não fazia a mínima idéia para onde se dirigia nem o que estava fazendo, a não ser que tinha que encontrar esse tal Lorde Dalamar. Depois, devia descobrir um lugar onde pernoitar.
O Protetor fizera umas quantas alusões vagas sobre “alojamentos”, “trabalho”, ganhar “dinheiro”. Fora-lhe impossível ser mais específico. No decurso da sua longa vida, o contato do Protetor com os humanos fora bastante limitado, e embora ouvisse falar de conceitos como “ganhar o sustento”, possuía uma idéia muito vaga do que tal significava.
Com Usha passava-se o mesmo.
Examinava tudo com ar incrédulo e aterrorizado. Os edifícios ornamentados — tão diferentes das casinhas térreas e simples dos Irdas — pairavam, sobranceiras, acima dela, mais altos do que os pinheiros. Viu-se perdida numa floresta de mármore. E as pessoas, tantas! Num minuto viu mais gente em Palanthas do que em toda a sua vida passada entre os Irdas. E todas aquelas pessoas pareciam frenéticas, aos encontrões e empurrões, andando muito depressa, com a cara ruborizada e uma respiração arquejante.
No início, receosa, interrogou-se se a cidade estaria passando alguma por alguma emergência. Quiçá a guerra. Mas, quando o inquiriu a uma jovem que retirava água de um poço, Usha ficou sabendo tratar-se apenas do “dia do mercado” e que a cidade se encontrava especialmente calma — possivelmente devido ao forte calor.
Junto à baía sentira o calor. O sol, ao refletir-se nas águas, queimava a pele clara de Usha, mesmo à sombra. Mas nas docas, ao menos, sentira o toque fresco da brisa vinda do oceano aflorá-la. A cidade propriamente dita nunca chegava a experimentar este bálsamo. Palanthas sufocava. O calor emanava das ruas pavimentadas, e para quem as percorria era como se caminhasse sobre uma chapa de ferro em brasa. Mesmo assim, comparadas com o interior das lojas e das casas, as ruas eram frias. Os proprietários, impossibilitados de abandonar os estabelecimentos, abanavam-se e esforçavam-se para não cochilar. Os pobres abandonavam as casas sufocantes, viviam e dormiam nos parques ou no alto dos telhados, na esperança de serem bafejados pela mais tênue aragem. Os ricos permaneciam nas suas residências com paredes de mármore, bebiam vinho morno (não havia gelo, pois a neve dos cumes das montanhas derretera quase toda) e, languidamente, queixavam-se do calor.
O fedor de tantos corpos suados e em tão grande promiscuidade, do lixo e dos detritos a torrar ao sol, deixavam Usha sem respiração. Interrogou-se como podia haver gente capaz de suportar uma atmosfera tão horrível, mas a garota lhe dissera tratar-se apenas do cheiro de Palanthas na época de Verão.
Usha percorreu toda Palanthas, andou por caminhos infindáveis. Passou por um grande edifício, e quando a informaram tratar-se “da Grande Biblioteca”, ocorreu-lhe que o Protetor a citara, em tom respeitoso, como a fonte de todo o conhecimento sobre todas as coisas do mundo.
Supondo-a lugar adequado para indagar sobre o paradeiro de Lorde Dalamar, Usha deteve o jovem de hábito castanho que passeava pelos recintos da Grande Biblioteca e pediu-lhe a informação. Arregalando os olhos, o monge afastou-se cerca de seis passos de Usha e apontou para uma rua.
Seguindo as indicações prestadas, Usha percorreu uma alameda e foi desembocar nas sombras projetadas por uma torre de aspecto medonho, rodeada por um bosque de árvores escuras. Embora momentos antes se encontrasse encharcada de suor, percorriam-na agora súbitos calafrios. Parecia que emanavam trevas úmidas e frias dos bosques. Tremendo, deu meia volta e afastou-se precipitadamente, experimentando um verdadeiro alívio quando sentiu o bafo asfixiante do sol de novo. Quanto a Lorde Dalamar, pensou que o monge se enganara. Era impossível alguém viver num lugar tão tenebroso.
Passou por um belo edifício que, segundo a inscrição, constituía um templo dedicado a Paladino. Atravessou parques e cruzou com as casas dos ricos, magníficas e, no entanto, com um aspecto estéril (Usha tomou-as por museus). Passou por lojas cheias de objetos prodigiosos que iam desde jóias faiscantes a espadas e armaduras idênticas às que os cavaleiros envergavam. E, onipresentes, as hordas de pessoas.
Perdida e confusa, sem saber bem porque fora enviada para aquela cidade alucinante, Usha prosseguiu a sua perambulação pelas ruas. Enfraquecida pelo calor e pelo cansaço, só gradualmente se deu conta de pessoas que a fitavam à passagem. Algumas chegavam até a parar, boquiabertas de espanto. Outras, homens em geral, que trajavam com elegância — tiravam o chapéu enfeitado de penas e sorriam-lhe.
Naturalmente Usha presumiu que zombavam do seu aspecto e considerou-o uma grande crueldade. Suja, infeliz, cheia de autocomiseração, admirou-se do Protetor ter a coragem de enviá-la para aquele lugar tão detestável. Mas, gradualmente, notou que os olhares, os cumprimentos com o chapéu e as vênias eram de admiração.
Com a vaga percepção da viagem ter lhe alterado o aspecto, Usha deteve-se para se examinar no vidro da vitrine de uma loja. O vidro era ondulado e distorcia-lhe o rosto, mas o mesmo acontecia com a água do pequeno lago que, na sua terra natal, costumava utilizar como espelho. Não mudara. O cabelo conservava a aparência da madeixa de linho, os olhos mantinham a tonalidade peculiar, as feições ainda eram regulares, embora lhes faltasse a beleza requintada, típica dos Irdas.
“Que gente mais estranha”, disse Usha para consigo mesma ao ver um homem bater contra uma árvore, tão absorto estava a contemplá-la.
Por fim, quando quase gastara as solas das botas de couro, Usha reparou que o Sol se punha e que as sombras dos edifícios se tornavam mais longas e um pouco mais frescas. O afluxo de gente nas ruas começou a diminuir. As mães assomavam às soleiras das portas, gritando aos filhos para voltarem para casa. Ao espreitar pelas janelas de várias casas de belo aspecto, Usha viu as famílias reunirem-se. Sentiu-se exausta, esgotada, sozinha. Não tinha lugar onde pernoitar e deu-se conta da fome que a atazanava.
O Protetor arranjara-lhe mantimentos para a viagem, mas comera tudo antes de ancorar em Palanthas. Felizmente, porém, nas suas perambulações fora parar na parte mercantil da cidade.
Os vendedores preparavam-se para fechar os quiosques e cuidar da vida. Uma das dúvidas de Usha prendia-se com a forma como as pessoas obtinham comida nesta cidade alucinante. Agora sabia a resposta. Ao que parece, as pessoas, em Palanthas, não serviam os alimentos à mesa. Distribuíam-nos nas ruas. Usha considerou o fato peculiar, mas naquela cidade tudo era peculiar.
Passou junto de uma tenda onde avistou algumas peças de fruta esquisitas. Por estarem expostas ao sol o dia inteiro, as mesmas encontravam-se murchas e ressecadas, mas achou-as deliciosas. Pegando em várias maçãs, Usha mordeu uma delas, devorou-a e encheu uma das bolsas com as restantes.
Afastou-se dos vendedores e, deparando com um padeiro, complementou a refeição com uma fatia de pão. E quando olhava em volta, em busca de uma tenda que oferecesse vinho, ouviu, em torno de si, um burburinho desusado.
— Pega! Pega! Ladra! Ladra!
Usha olhou, estupefata, para o homem alto e magro, com um avental de couro, que saltitava e se balançava em volta dela.
— Ladra! — gritou este, apontando para a jovem. — Me roubou as frutas!
— Foi embora levando meu pão! — exclamou, ofegante, uma mulher salpicada de farinha, que viera correndo atrás do homem. — Aí está, saindo da sua bolsa! Devolva-me já, sua leviana!
A padeira tentou recuperar o pão. Usha deu-lhe uma palmada na mão. A mulher começou a guinchar:
— Assassina! Tentou me matar!
Os ociosos e os alcoviteiros que geralmente perambulavam pelo mercado para beberem generosos tragos de vinho e procurarem confusão, acorreram a intrometer-se e Usha viu-se rodeada por uma multidão escarnecedora. Um homem esfarrapado e de aspecto grosseiro conseguiu manietá-la.
— Ofereço-me para inspecioná-la! — berrou. — Desconfio que meteu as maçãs na blusa!
A multidão soltou uma gargalhada e estreitou cerco.
Usha nunca sofrera um tratamento tão bárbaro. Tratada com grandes mimos, acarinhada, educada entre uma sociedade de pessoas que nunca erguiam a voz, e os punhos muito menos, o choque quase a deixou sem sentidos. Não possuía armas e, no pânico inicial, nem lhe ocorreu utilizar os objetos mágicos que os Irdas lhe tinham dado. De qualquer maneira, não saberia utilizá-los, pois quase não prestara atenção às instrução que estes lhe transmitiram.
Sentiu as mãos sujas do homem rasgarem-lhe a blusa e os dedos dele tentaram tocar-lhe a carne. Os comparsas incentivavam-no.
O pânico deu lugar à fúria. Usha sentiu-se avassalada pela ferocidade de um animal encurralado. Investiu com fúria, o terror redobrou-lhe as forças. Bateu, mordeu, desferiu pontapés, sem saber quem atacava, nem lhe interessava, queria apenas magoar a todos, investir contra todos os seres vivos que enchiam aquela cidade detestável.
Só quando mãos possantes lhe agarraram o braço, o prenderam e lhe deram um torção doloroso e uma voz firme e clara exclamou: — Pare já com isso, jovem! —, é que a névoa de sangue que lhe toldava os olhos se desvaneceu.
Usha pestanejou, a respiração veio-lhe aos haustos. Espreitou em redor, com ar desorientado.
Quem a segurara fora um homem alto e musculoso, vestido com uma pesada túnica carmesim e polainas e um aspecto de quem exerce um cargo oficial. À sua chegada, a multidão apressou-se a dispersar, tecendo comentários variados e pitorescos a respeito de guardas que lhes estragavam a diversão. O homem que a incomodara jazia no chão, a grunhir e agarrado às partes íntimas.
— Quem começou isto? — inquiriu o guarda, dardejando o olhar pelos presentes.
— Excelência, ela roubou pão do meu quiosque — disse a padeira aos gritos —, e depois tentou nos assassinar!
— Comeu as maçãs! — acusou o vendedor de fruta. — Pegou-as e foi embora na calma!
— Não era minha intenção roubar nada! — protestou Usha, fungando um pouco. Quando estava em apuros, as lágrimas tinham sempre funcionado com o Protetor, e depressa caiu nos velhos hábitos. — Achei que a fruta e o pão estavam expostos para quem quisesse levá-los. — Limpou os olhos. — Não tencionava magoar ninguém. Sinto-me cansada, estou perdida, tenho fome e depois aquele homem... tocou-me...
A horrível lembrança, fez com que vertesse lágrimas genuínas. O guarda olhou-a com uma expressão desamparada e tentou reconfortá-la.
— Ora, ora, não chore. Provavelmente o calor a perturbou. Dê a estes dois um pagamento justo e ficamos todos quites. Não ficamos? — acrescentou o guarda lançando um olhar carrancudo aos dois vendedores, que o retribuíram, mas acenaram com a cabeça, aquiescendo de má vontade.
— Não tenho dinheiro nenhum — respondeu Usha, engolindo em seco.
— Cabra! — atirou o homem.
— Pior do que isso! — acrescentou a mulher, com uma fungadela. — Salta à vista que deve ser uma ricaça! Olhem para essas roupas exóticas! Quero que a metam no cepo e lhe dêem umas boas chicotadas!
O guarda pareceu ficar aborrecido, mas não lhe restavam muitas opções. O pão que estivera na origem da discórdia, durante a briga caíra da bolsa de Usha e jazia no chão. Da jovem vinha um cheiro de maçã triturada e muito madura.
— Temos que resolver o assunto na presença do magistrado. Venha comigo, jovem. E vocês dois, se querem ser reembolsados, é bom que nos acompanhem também.
O guarda afastou-se, levando Usha consigo. Os dois vendedores seguiram-nos, a mulher toda empertigada com ar de justa indignação, o vendedor de maçãs constrangido e interrogando-se se a brincadeira não lhe iria custar dinheiro.
Entorpecida e exausta, Usha não prestou grande atenção para onde a levavam. Cabisbaixa, ia caminhando aos tropeções ao lado do captor, desejando nada mais ver daquele lugar horroroso. Quase não se deu conta de que deixara para trás as ruas e franqueava um grande edifício, todo construído em pedra, com uma porta enorme de madeira maciça vigiada por mais homens com túnicas carmesins idênticas às do guarda. Estes lhes abriram a porta e ele fez a jovem entrar.
Comparada com a claridade ofuscante e o calor das ruas, a sala com paredes de pedra para a qual foi conduzida parecia irradiar uma penumbra e uma presença balsâmicas. Usha levantou a cabeça e olhou ao redor. O guarda estava discutindo com os dois vendedores. Usha ignorou-os. Embora se tratasse de um assunto que lhe dizia respeito, parecia que nenhum destes tinha a mínima relação com a sua pessoa. Integravam aquela cidade horrível que abandonaria mal entregasse a carta.
Sentado a uma mesa e parecendo incomodado com o assunto, encontrava-se um homem corpulento que escrevia algo num livro de páginas ensebadas. Por trás dele, avistava-se uma sala enorme, apinhada de pessoas sentadas no chão frio de pedra ou dormindo. Numerosas grades de ferro, pregadas ao teto e ao chão, separavam as que se encontravam no interior das que esperavam no exterior.
— Carcereiro, tem mais uma aqui. Praticou um roubo menor. Tranque-a com o resto do grupo até o magistrado ouvir amanhã e caso dela — disse o guarda.
O grandalhão ergueu a cabeça e, ao avistar Usha, os seus olhos arregalaram-se.
— Se o Grêmio dos Ladrões anda recrutando gente com o aspecto dela, vou já me associar! — exclamou em voz baixa ao guarda. — Ora bem, menina, vai ter que deixar essas bolsas aos meus cuidados.
— Quê? Porquê? Não toque nelas! — Usha apertou fortemente contra si os valiosos pertences.
— Hão de devolvê-las — assegurou-lhe o guarda com um encolher de ombros. — Olhe, jovem, não procure mais confusão, já a tem de sobra.
Usha teimou em segurar os alforjes. O grandalhão franziu o cenho e disse qualquer coisa sobre tirá-los à força.
— Não, não me toque! — exclamou Usha e, relutante, libertou-se dos dois alforjes — o menor continha as roupas e o maior as prendas — e pousou-os na escrivaninha diante do carcereiro.
— Devo avisá-lo — disse numa voz embargada pela raiva — de que alguns objetos desta bolsa são mágicos, pelo que é melhor tratá-los com respeito! Trago também comigo um rolo de pergaminho que devo entregar a alguém conhecido por Lorde Dalamar. Desconheço quem é esse Senhor Dalamar mas tenho certeza de que lhe desagradaria saber que andou bisbilhotanto nas coisas.
A esperança de Usha era conseguir impressionar os captores, e assim foi mas não conforme previra. O carcereiro, que se pusera a vasculhar as bolsas com ar cobiçoso, retirou precipitadamente a mão, como se estas fossem possivelmente uma invenção qualquer dos gnomos, prestes a explodir a qualquer momento.
— Desisto de todas as queixas! — gritou o vendedor, fugindo às pressas.
— Uma bruxa — murmurou a padeira, mantendo-se onde estava. — Eu bem que desconfiava! Pois que seja queimada viva no poste!
— Já não fazemos essas coisas — resmungou o carcereiro, mas via-se que estava pálido e abalado. — Dalamar, você disse?
— Disse sim. — Usha ficara bastante assustada com toda a agitação, mas ao perceber que o nome se revestia de um certo significado para aquela gente, decidiu tirar proveito disso. — E é melhor que me tratem bem, caso contrário Lorde Dalamar ficará aborrecido.
Os dois homens puseram-se a conferenciar em voz baixa.
— Que vamos fazer? — sussurrou o carcereiro.
— Mande-a à Dama Jenna. Ela saberá como proceder — replicou o guarda.
— Meto-a nas celas?
— Quer que ande por aí à solta?
A conversa terminou com Usha sendo escoltada — de forma respeitosa — para a grande sala que ficava por trás das grades de ferro. Viu-se, quase de imediato, rodeada pelo que de início julgou tratar-se de crianças humanas. Interrogava-se sobre que crimes poderiam ter cometido quando ouviu o carcereiro praguejar.
— Afastem-se, seus kenders danados! E essa agora? Onde estão as minhas chaves? Ah, seus malandros! Devolvam já! Menina, veja se descobre um lugar para se sentar! — gritou-lhe o carcereiro, ao mesmo tempo em que fazia menção de agarrar os kenders. — Logo virá alguém. E o que está fazendo com o meu cachimbo? E você, devolva-me essa bolsa ou juro por Gileano que...
Murmurando e praguejando, o carcereiro abandonou a cela, aliviado por regressar à sua escrivaninha.
Então, aqueles eram kenders? Usha sentiu interesse em conhecer as pessoas que o Protetor alcunhara de “os alegres ladrões de Krynn”. Tal não constituía problema pois os kenders, sempre tão curiosos, apreciavam entabular contato com qualquer forasteiro que fosse colocado no que consideravam a prisão “deles”.
Falando todos ao mesmo tempo, fazendo-lhe 30 perguntas no espaço de cinco segundos, os kenders pareciam abelhas enxameando em volta dela, tagarelando, soltando risadinhas, tocando e dando palmadinhas. O barulho, a algazarra, o calor, o medo e a fome que Usha sentia — de repente, tudo se tornou insuportável. A sala começou a girar e a inclinar-se. Estrelas cintilantes fenderam o ar.
Quando Usha deu por si, encontrava-se deitada no chão, olhando para o rosto ansioso de um dos kenders. Este parecia mais velho do que os restantes. Tinha os olhos sulcados de rugas, que também lhe repuxavam a boca. O cabelo, grisalho, penteado em penacho, chegava-lhe aos ombros. O rosto era agradável, amistoso e com o misto de curiosidade que caracterizavam o de uma criança ou o de todos os outros kenders, mas parecia mais adulto do que o restante.
Quando outro dos kenders se aproximava muito, o mais idoso escorraçava-o. Até os elementos mais grosseiros da população humana encarcerada na cela pareciam respeitá-lo, pois também se mantinham à distância.
— Que aconteceu? — perguntou Usha, debatendo-se para se levantar.
— Desmaiou — explicou o kender. — E para ser sincero, acho que devia permanecer mais algum tempo deitada. Nunca desmaiei, pelo menos não me lembro de ter acontecido. Um dia gostaria de experimentar, mas nunca consegui. Como se sente? O guarda disse que provavelmente desfaleceu porque está sem comer a algum tempo e andou dando voltas por aí. Bem que se percebe! Tem fome? Dentro de cerca de uma hora nos trazem algum pão e sopa. A comida aqui é boa. A prisão de Palanthas é excelente, a melhor que há em Ansalon. Tem uns olhos extraordinários! São meio que dourados, não é? Parece-me familiar, disso estou certo, já nos conhecemos? Alguma vez esteve em Consolação?
— Acho que não — respondeu Usha em tom fatigado. A tagarelice do kender era reconfortante, mas o seu interminável interrogatório deixava-a confusa. — Nunca ouvi falar de Consolação.
Sentia-se péssima. A cabeça doía-lhe e a fome provocava-lhe contrações no estômago. O Protetor recomendara-lhe circunspecção com os kenders, mas este constituía a primeira pessoa que lhe falava com bondade. Olhando ao redor, reparou que a sua cabeça repousava no que provavelmente era a capa do kender — a avaliar pelo tom verde-vivo, o mesmo das calças que este usava.
Usha sentiu-se grata, e forçando um sorriso perguntou:
— Quem é você?
O kender pareceu chocado e, com uma expressão contrita, respondeu:
— Não me apresentei? Acho que não. Ia fazê-lo quando desmaiou — Estendeu-lhe a mão, pequena e castanha como uma noz. — Chamo-me Tasslehoff Pés Ligeiros. Todos os meus amigos me chamam de Tas. Como se chama?
— Usha — respondeu ela, retribuindo solenemente o aperto de mão.
— Só Usha? A maior parte dos humanos que conheço possuem dois nomes.
— Só Usha.
— Seja como for, é um nome bonito. Mais bonito do que dois nomes juntos — O kender examinava-a com ar pensativo. — Sabe, Usha, na realidade você me lembra alguém. Mas quem será?
Usha desconhecia e nem se importava. Sentindo-se protegida pelo novo amigo, fechou os olhos, descontraiu-se e mergulhou no sono.
Quando os frangalhos da sua consciência se envolviam no torpor, ouviu o kender murmurar em tom respeitoso:
— Descobri! Possui olhos dourados... tal como Raistlin!
Um cheiro de sopa quente arrancou Usha do seu torpor. O breve repouso fez com que se sentisse melhor. Apoiando-se à parede de pedra, bebeu o caldo de galinha de uma tigela de louça lascada e interrogou-se sobre o que lhe iria acontecer a seguir. Pelo menos arranjara lugar onde pernoitar.
Anoitecera. A cela encontrava-se mergulhada na escuridão, apenas quebrada pelos clarões bruxuleantes de alguns archotes colocados na parede que dava acesso à prisão.
Tas, o kender, depois de beber a sopa, estendeu a Usha o seu naco de pão escuro, dizendo:
— Toma, parece estar com fome ainda.
Usha, que devorara o seu em três dentadas, hesitou.
— Tem certeza que não o quer? — perguntou. Tas abanou a cabeça.
— Não, não há problema — respondeu. — Se sentir fome, descubro algo para comer nos meus bolsos. — E apontou para várias bolsas protuberantes que lhe cingiam o corpo magro.
Usha franziu o cenho.
— Como conseguiu ficar com as tuas coisas? Eles ficaram com as minhas.
— Oh, é o procedimento normal — respondeu Tas com um encolher de ombros. — Não sei porquê, nunca tiram nada de nós, os kenders. Talvez por não terem espaço para guardá-las. Durante as nossas viagens, costumamos arrecadar coisas. Ou talvez porque de manhã se torna difícil determinar a quem pertencem. Não que isso nos interesse particularmente. Nós... — e com um gesto indicou os restantes membros da sua raça, que atiravam pão uns nos outros —, partilhamos tudo.
— O meu povo também — disse Usha sem pensar.
— O teu povo. Quem é o teu povo? De onde você vem? Uma coisa é certa, não vem das redondezas. — Tas esboçou um aceno tão veemente com a cabeça que o penacho tombou-lhe para frente, batendo-lhe no nariz.
— Como sabe? — inquiriu Usha, esquivando-se à pergunta.
— Bom... — Tas olhou-a fixamente e fez uma pausa para refletir. — Primeiro, veste-se de maneira diferente. Fala de maneira diferente. As palavras são as mesmas, mas as pronuncia de um modo peculiar. E é quase cem vezes mais bonita do que qualquer mulher que conheci, com exceção da Laurana, é a esposa do Tanis, mas provavelmente você não sabe quem é, não é? Acho que não. Oh, e a Tika. Casou com o Caramon. Conhece-o? Tinha um irmão gêmeo chamado Raistlin.
Ao formular esta pergunta, Tas olhou para Usha de um modo estranho. A jovem lembrava-se de ter ouvido o nome Raistlin antes de mergulhar no sono, mas não conseguia recordar-se do que o kender dissera a este respeito. Os nomes eram-lhe desconhecidos, e foi isso que afirmou.
— Quanto a eu ser bonita, sei que é bem intencionado, mas não é necessário mentir. Sei o que valho — rematou Usha com um suspiro.
— Não estou mentindo! — protestou Tas. — Os kenders nunca mentem! E se não acredita em mim, pergunte aos homens que estão ali, no canto. Estiveram falando a seu respeito. Bom, talvez seja melhor não falar. São gente reles. São ladrões — acrescentou, num sussurro escandalizado.
Usha sentiu-se algo confusa.
— Você não é um ladrão? — perguntou.
— Pelas barbas do grande Paladino, não! — Os olhos de Tas ficaram redondos e arregalados de indignação.
— Sendo assim, por que está na prisão?
— Por engano — respondeu Tas em tom jovial. — É o que sempre nos acontece, aos kenders. E todos os dias, acredita? Claro que eles sabem que se trata de um erro. — E com a cabeça indicou o guarda. — Nunca nos acusam e pela manhã sempre nos libertam. Depois, passam o dia a nos rondar, e à noite voltam a nos trazer para cá. É a maneira que nos mantemos todos ocupados, entende?
Usha não compreendia e tentou pensar numa forma de obter informações do kender sem lhe despertar suspeitas.
— Tas, talvez consiga me explicar uma coisa. Do lugar de onde vim, a vida do meu povo tem muitas semelhanças com a sua. Partilhamos tudo. Mas aqui, todo mundo parece tão... bom... tão ambicioso. Tirei algumas maçãs de um homem. Sentia-me com fome. As maçãs estavam estragadas. De qualquer forma ia jogá-las fora. Porque ficou tão zangado? E a mulher... Na manhã seguinte o pão dela já estaria bolorento.
— Entendo o que quer dizer. Tudo tem a ver com as coisas — explicou Tas. — Os humanos são muito avarentos quando se trata de coisas. Gostam de possuir coisas e mesmo que se fartem delas, não as cedem, exigem outras em troca. Se se lembrar disso, nunca se verá em confusão. A propósito, Usha, de onde você vem?
Fora uma pergunta casual. O kender fizera-a possivelmente movido pela curiosidade, mas Usha lembrou-se que o Protetor a avisara para não revelar que vivera entre os Irdas.
— Para falar a verdade, sou uma cidadã do mundo — respondeu, semicerrando os olhos para observar a reação do kender. — Vagueio por aqui e por ali. Nunca permaneço muito tempo num lugar.
— Sabe de uma coisa, Usha? — disse Tas em tom de admiração. — Daria uma grande kender. Nunca chegou a viajar até Consolação, não é?
— Oh, talvez sim. Os lugares parecem-se muito uns com os outros. Quem consegue recordar os nomes?
— Eu! Elaboro mapas. Mas se te perguntei a respeito de Consolação, é por que você é mesmo parecida com...
Ouviu-se o tilintar de chaves na porta da cela. O carcereiro entrou. Desta vez trazia um bastão, com o qual costumava defender-se dos kenders. Perscrutando a escuridão que reinava na cela, inquiriu:
— Onde está a nova prisioneira? — E localizando Usha, disse: — Você, aí. Há uma pessoa que quer falar contigo.
— Comigo? — repetiu Usha, julgando tratar-se de um equívoco.
— Contigo. Acompanhe-me. A Dama Jenna não tem a noite toda.
Usha olhou para Tas com ar inquiridor.
— A Dama Jenna é uma maga Veste Vermelha — explicou este. — Dirige uma loja de magia na cidade. Um lugar bem bonito!
— Que quer de mim?
— O carcereiro recorre sempre a ela para que inspecione tudo o que confisca e que julga poder ser mágico. Tinha algo que pudesse ser mágico contigo?
— Talvez — respondeu Usha, mordendo o lábio.
— Ó você! Ladra de maçãs! — O carcereiro ameaçava o risonho kender com o bastão. — Aproxime-se já!
— Faça o que ele diz, Usha. — Tas levantou-se e estendeu-lhe a mão — Não tenha medo. A Dama Jenna é boa. Somos velhos amigos. Em inúmeras ocasiões fui expulso da loja dela.
Usha levantou-se e recusou a mão do kender. Procurando assumir uma expressão de indiferença, atravessou sozinha a porta com gradeamento de ferro.
O carcereiro deixou-a passar e reteve Tasslehoff no exato momento em que este se esgueirava, escudado pela sombra de Usha.
— Ora, ora, Senhor Pés Ligeiros — disse. — Onde é o passeio?
— Vou apresentar os meus cumprimentos à Dama Jenna, é evidente. Não desejo passar por indelicado.
— Ah não deseja? Então seja um lindo e educado menino e desanda já para dentro da cela!
O carcereiro brindou Tas com um encontrão e fechou a porta na cara do kender com estrépito. Tas pendurou-se nas grades, espreitando por entre elas e tentando ver.
— Olá, Dama Jenna! — gritou, agitando os bracinhos. — Sou eu! Tasslehoff Pés Ligeiros, um dos Heróis da Lança!
Junto à escrivaninha do carcereiro encontrava-se postada uma mulher com uma capa de veludo vermelho e capuz. Virou a cabeça na direção do grito do kender, sorriu, um sorriso frio e esboçou um leve aceno com a cabeça. Em seguida, retomou o que interrompera — separar os objetos de Usha, agora cuidadosamente alinhados em cima da escrivaninha.
— Ora aqui está ela, Dama Jenna, a pessoa que perguntou pelo Senhor da Torre.
A mulher retirou o capuz para ver melhor. Era humana e tinha um rosto lindo, embora frio, como que esculpido a partir da mesma pedra de mármore branco dos edifícios. Possuía uns olhos escuros que fitavam Usha com uma tal intensidade que quase a trespassavam.
Usha sentiu um aperto no estômago, as pernas trêmulas, a boca ressequida. Percebeu de imediato que aquela mulher sabia tudo. O que iria lhe acontecer agora? O Protetor avisara-a. Os humanos consideram os Irdas iguais — ou talvez piores — aos Ogros. E os humanos chacinam os Ogros sem piedade.
— Aproxime-se, minha linda — disse a mulher, acenando-lhe com a mão, delicada e de belos contornos. — Aproxime-se da luz.
A mulher não seria possivelmente muito mais velha do que Usha, mas a aura de mistério, poder e magia que envolvia a feiticeira Veste Vermelha, acrescentavam-lhe uma eternidade de anos.
Usha aproximou-se com ar decidido, determinada a ocultar da feiticeira o quanto se sentia intimidada e deteve-se junto da luz.
Jenna arregalou os olhos. Deu um passo em frente, arquejou e murmurou:
— Que Lunitari nos valha!
Com um movimento rápido, voltou a ocultar a cabeça sob o capuz e virou-se para o carcereiro:
— Liberte esta prisioneira, que ficará sob minha custódia — disse. — Levo-a comigo e também os seus pertences.
A mulher reuniu as oferendas de Usha, pegando em cada uma com cuidado e respeito, e as repôs em segurança na bolsa. O carcereiro examinava-as com um ar de profunda suspeita.
— Afinal eu tinha razão, não tinha, Mestra Jenna? São mágicas.
— Fez muito bem em me chamar. E fico satisfeita por verificar que aprendeu a lição a respeito do manuseio de objetos estranhos, Torg. Não foi fácil desfazer aquele feitiço que lançou acidentalmente sobre si mesmo.
— Juro que não tornarei a fazê-lo, Dama Jenna! — exclamou o carcereiro, estremecendo. — A prisioneira é toda sua. Mas tem de assinar um termo de responsabilidade. Ela que experimente roubar mais uma tenda de fruta e...
— Ela não vai roubar mais tendas de fruta — respondeu vivamente Jenna, pegando nos alforjes de Usha. — Venha comigo, filha. A propósito, como se chama?
— Usha. E quero as minhas coisas! — disse a jovem com um vigor inusitado.
Jenna ergueu os cenhos penugentos. Usha corou e mordeu o lábio.
— São minhas — respondeu com voz mal-humorada. — Não as roubei.
— Sei que são — replicou Jenna. — Objetos tão valiosos e arcanos não se deixam roubar. Lançariam uma maldição a quem tivesse a pretensão de tentá-lo. — O seu olhar dardejou o carcereiro, que corou, curvou a cabeça e pôs-se a escrever freneticamente no livro. Jenna estendeu-lhe os alforjes.
Usha pegou neles e seguiu Jenna, que se encaminhou para a entrada da prisão.
— Obrigada por me tirar daqui, Dona. Se eu puder fazer algo por ti, é só dizer. Onde fica a tua loja? Irei até lá um dia...
Jenna pôs-se de novo a sorrir.
— Sim, na verdade vai para lá. Agora mesmo. Usha, não se preocupe. Planejo levá-la justamente onde pretende ir.
— Onde me levará? — perguntou Usha, debatendo-se em grande confusão.
— À presença de Dalamar, é evidente. O Senhor da Torre terá grande interesse em conhecê-la, Usha.
— Pode crer que sim! — Soou uma voz estridente atrás. — Diga à Dalamar que Tasslehoff Pés Ligeiros manda cumprimentos. E, diga-me uma coisa, Dama Jenna, não acha que a Usha se parece muito com o Raistlin?
A feiticeira deteve-se. Por um instante, que pareceu uma eternidade, permaneceu completamente estática e calada. Depois, em movimentos lentos, deu meia volta e retrocedeu.
Usha permaneceu à entrada, interrogando-se se deveria ou não tentar fugir. Teve a sensação de que não iria longe. As pernas pareciam da consistência de geléia. E fugir para onde, afinal? Desanimada, encostou-se à porta.
Jenna aproximou-se do carcereiro e ordenou-lhe:
— Liberte o kender, ficará sob minha custódia também.
— Tem certeza, Dona? — retorquiu Torg, franzindo o cenho. — Ele é um grande chato...
— Tenho — disse Jenna em tom frio como aço e de uma rispidez extrema. — Liberte-o já!
Torg sacou das chaves, precipitou-se para a porta da cela e destrancou-a. Com o penacho balançando e os alforjes sacolejando, Tasslehoff saiu e estendeu polidamente a mão a Jenna.
— Como tem passado? Acho que ainda não fomos apresentados formalmente. Chamo-me Tasslehoff...
— Sei quem você é — disse ela. — Acho que Dalamar gostaria de dar uma palavrinha com você.
— Que maravilha! Não vejo Dalamar há anos! É verdade que é seu amante? Ora, não precisa me olhar com essa cara. Foi Caramon quem me contou. Disse que vocês dois...
— Vai andando — disse Jenna num tom algo severo, empurrando o kender para fora da prisão e encaminhando-o para a aia. — Cinco passos à minha frente e conserve as mãos onde eu possa vê-las. Usha, mantenha-se junto de mim.
— Sou eu quem indico o caminho? — Tas estava excitado.
— Se te alegra pensar assim — replicou Jenna. — Não, nessa direção não. Vamos pelo lado de fora da muralha da cidade, de volta à minha residência.
— Mas, achei que íamos visitar a Torre da Feitiçaria Suprema! — lamentou-se Tas. — Pretendia atravessar a Clareira de Shoikan! A vi uma vez, de longe. É verdadeiramente diabólica, horrível e mortal. Como sabe, quase matou Caramon. Por favor, não podemos seguir por esse caminho?
— Não seja ridículo! — replicou Jenna. — Ninguém no seu perfeito juízo, embora suponha que tal exclui os kenders, desejaria atravessar a Clareira de Shoikan, sobretudo à noite. Até eu a evito e efetuei os meus estudos na Torre. Se não se importa, optarei por um caminho mais tranqüilo para chegarmos até lá. Por isso regressamos à minha loja.
Tas mostrou-se por um momento abatido e depois encolheu os ombros.
— Oh, deixa pra lá! — disse, em tom mais animado. — Pelo menos vamos à Torre. — Vai ser divertido! — acrescentou virando a cabeça na direção de Usha, ao mesmo tempo em que ia saltitando à sua frente. Era tão cheio de vida que nem parecia idoso. — A Torre da Feitiçaria é um lugar fascinante! Não vou lá há anos, veja você! Está cheia de coisas mágicas de todos os gêneros, a maior parte diabólicas mas todas muito, muito poderosas. Dalamar é um feiticeiro com uma veste negra, mas se pretende vê-lo é porque o conhece, acho eu. É um elfo das trevas e atualmente o feiticeiro mais poderoso em toda a Ansalon...
Usha parou e olhou fixamente para o kender.
— Um Veste Negra? Um elfo das trevas? Mas... deve haver algum engano! O Protetor não iria enviar-me à presença de um deles! Com certeza... possivelmente existe outro Dalamar, não é verdade?
Da escuridão veio uma gargalhada, que lembrava o retinir de sinos de prata.
— Continue andando — disse Jenna refreando a hilaridade. — E descanse essa cabecinha... existe apenas um Dalamar.
À luz do dia, a Torre da Feitiçaria Suprema, em Palanthas, constituía um antro de terror, por todos evitado. À noite, era pavorosa.
Em tempos idos, houvera cinco Torres da Feitiçaria Suprema, disseminadas pelo continente de Ansalon. Agora, existiam apenas duas. Uma delas situava-se na Floresta de Wayreth e tornava-se impossível penetrar lá, a menos que fosse essa a vontade dos magos residentes. Em caso afirmativo, a floresta mágica que circundava a torre nos localizaria e orientaria.
O acesso à Torre da Feitiçaria Suprema de Palanthas também se tornara praticamente impossível. A mesma era vigiada pela Clareira de Soikan, um maciço de árvores habitado por guardas mortos-vivos. O pavor que o bosque inspirava era tão profundo, que vê-lo se tomava insuportável para a maior parte das pessoas. Só os que votavam lealdade à Rainha Takhisis ou os imbuídos de um encantamento especial, fornecido pelo senhor da torre, conseguiam atravessar o amaldiçoado bosque. E até esses não saíam impunes. Os que se deslocavam à torre por questões de negócios — ou, no caso de Jenna, por lazer —, em geral optavam por uma via menos perigosa. Trilhavam os caminhos da magia.
Jenna guiou os seus protegidos através da muralha velha e entrou no que era conhecido por Cidade Nova. Concebida e edificada por duendes durante a Idade do Poderio, Palanthas fora dividida em duas seções: a Cidade Velha e a Cidade Nova. A Cidade Velha, circundada por uma muralha, fora cuidadosamente edificada de modo a lembrar uma roda, com oito estradas que saíam de um eixo central, onde se localizava o palácio do senhor feudal. Como Palanthas ultrapassara há muito os estreitos confins da Cidade Velha, os seus habitantes optaram por construir a Cidade Nova.
Estendendo-se ao longo da parte exterior da muralha, a Cidade Nova constituía o centro do distrito mercantil. Aqui, podiam encontrar-se todos os edifícios públicos relevantes, assim como residências para mercadores.
A loja de magia de Jenna situava-se na parte mais favorecida da Cidade Nova, para grande desagrado dos proprietários de estabelecimentos das redondezas, que encaravam com profunda desconfiança a clientela arcana que afluía ali. Sabia-se que Jenna era favorita de Dalamar, o Senhor da Torre da Feitiçaria Suprema. E embora o Senhor de Palanthas fosse a autoridade incontestável da cidade, nenhum cidadão se atrevia a provocar a ira do Senhor da Torre.
Assim, os mercadores resmungavam contra Jenna, mas faziam-no em surdina.
Ao chegar à loja de magia, assinalada com uma tabuleta onde se via a imagem das três luas — a prateada, a vermelha e a negra —, Jenna tomou primeiro a precaução de atar as mãos do kender com uma corda de seda. Só depois é que desfez o encantamento que guardava a porta e empurrou os convidados para o interior.
— É mesmo necessário? — perguntou Usha com indignação, apontando para os pulsos amarrados do kender — Fique sabendo que ele não é nenhum ladrão!
Jenna olhou fixamente para Usha e ergueu as sobrancelhas. Usha, tentando imaginar o que dissera de tão notável, corou e mordeu o lábio.
— Não me importo, a sério! — interveio alegremente Tas, admirando a corda de seda que lhe cingia os pulsos. — Estou habituado.
— Fiz mais para a nossa proteção e a dele do que pela preocupação de perder dinheiro — replicou Jenna. Pronunciou uma palavra que, aos ouvidos de Usha, soou como pedaço de gelo quebradiço estalando, e de uma candeia da sala emanou um clarão de luz. Lançando um olhar penetrante à jovem, acrescentou: — Não está familiarizada com os kenders, não é?
Usha tentou freneticamente lembrar-se do que o Protetor lhe contara, lamentando não ter prestado mais atenção. Optou por fingir, embora experimentasse a opressiva sensação de estar desperdiçando tempo. — Que pergunta mais estranha! Claro que conheço tudo o que é preciso saber sobre os kenders. Não é assim com todos os que vivem em Ansalon?
— Infelizmente sim. Foi por isso que perguntei. Por aqui. Deixe isso aí! — ordenou Jenna a Usha em tom cortante. Esta detivera-se para pegar e examinar uma linda garrafa. — Uma gota disso na tua pele e a tua carne se desfaz em pedaços! Pelo que é, não toque em nada! É pior que um kender! Vocês dois, acompanhem-me.
Cautelosamente, Usha voltou a colocar a garrafa na prateleira. Enclavinhou as mãos atrás das costas e apressou o passo, esforçando-se para ver tudo de uma só vez. A principal impressão que lhe ficou da loja foi o cheiro, convidativo e ao mesmo tempo repugnante. Viam-se boiões de especiarias e de ervas de cheiro penetrante alinhados junto de boiões que continham coisas mortas e apodrecidas. Nas prateleiras, que forravam uma parede inteira, encontravam-se cuidadosamente dispostos livros de feitiços, alguns deles antigos e bolorentos. Havia cofres de vidro, que guardavam jóias cintilantes.
— O meu laboratório fica no porão — disse Jenna, abrindo uma porta. — Estão proibidos de tocar no que quer que seja lá também!
A porta, assinalada por símbolos estranhos e indecifráveis, desembocava num vão de escadas. Jenna escoltou Tasslehoff pessoalmente, segurando-lhe o penacho e dando-lhe uma dolorosa torcida sempre que o via tentado bisbilhotar algo. Fez sinal a Usha para que descesse as escadas depois deles.
O laboratório situava-se por baixo da loja, num piso subterrâneo. Ao entrarem, acendeu-se uma luz, mas esta era tênue, fantasmagórica, e irradiava um fraco clarão. Usha viu-se forçada a descer as escadas com precaução.
— Ora bem, vocês dois vão ficar aqui mesmo, sem se mexer! — ordenou Jenna, quando chegaram ao andar térreo. Desapareceu então nas sombras, e passado algum tempo a ouviram falar em voz baixa, indistinta, com alguém.
Usha segurou Tasslehoff pelo colarinho da sua camisa verde no exato instante em que este pretendia se afastar.
— Ela disse para não nos mexer! — ralhou.
— Desculpe — respondeu-lhe Tas num sussurro. Parecia realmente, contrito. — Não fiz por querer. São os meus pés. A minha cabeça diz para não se mexerem mas, por vezes, o que a minha cabeça pensa quase não vale nada. Parece que os pensamentos se interrompem ao nível dos meus joelhos. Mas não acha tudo isto terrivelmente excitante? Olhe para aquilo! — O terror cortou-lhe a respiração. — É uma caveira humana! Acho que ela não vai se importar se eu...
— Sim, acho que ela vai se importar! — gritou Usha zangada. — Fique quieto! — Continuou a segurar Tas. Não que a preocupasse de verdade o fato dele desobedecer a Jenna, mas necessitava desesperadamente de alguém a quem se agarrar.
— Estou contente por ela tê-lo trazido — acrescentou Usha num tom impulsivo —, embora na verdade não entenda bem porquê. Pareceu-me que a tua presença lhe desagradava.
— Oh, não tinha muita opção — respondeu Tas com um encolher de ombros. — Não depois do que mencionei a respeito de Raistlin.
— E o que queria dizer com aquilo... de eu me parecer com Raistlin? Não entendo. Quem é Raistlin?
— Quem é Raistlin? — repetiu Tasslehoff, e na sua estupefação esqueceu-se de baixar a voz. — Nunca ouviu falar de Raistlin Majere? Acho que todo mundo em Ansalon conhece Raistlin!
Percebendo que fizera asneira, Usha soltou uma risadinha.
— Oh, esse Raistlin! Ora, claro que ouvi falar dele. Só não sabia a qual Raistlin se referia. De onde eu venho, o nome Raistlin é muito comum. Na nossa aldeia vivem diversas pessoas chamadas Raistlin. É alto, não é?
— Acho que não — respondeu Tas com ar pensativo. — O Raistlin não era elfo e com toda a certeza o Caramon também não! Se o cortasse em fatias, a altura de Caramon perfaria, à vontade, três elfos. E depois temos a questão dos gêmeos, e se bem me lembro, gêmeos é coisa rara entre os elfos. Faz muito tempo que visitei Qualinesti. Embora eu conhecesse o novo Orador do Sol, o Gil, o filho de Tanis, não me permitiram cruzar a fronteira. Já ouviu falar de Tanis Meio Elfo, não ouviu?
— Quem não ouviu! — exclamou Usha, embora desconhecendo por completo de quem se tratava.
Pelo menos descobrira que Raistlin era um “ele”, algo do qual não estava bem certa. E que tinha uma relação qualquer com um indivíduo chamado Caramon. Congratulando-se com a sua esperteza, preparava-se para formular a pergunta seguinte quando Jenna voltou.
— Ela sabe quem é Raistlin! Não permita que ela te engane, kender. Agora venham, os dois. Estive falando com Dalamar e...
— Dalamar! Ele se encontra aqui? — Tasslehoff pôs-se a assobiar e a acenar com a mão. — IU-U! Sou eu, o Tas! Lembra-se de mim? Eu....
— Ele não se encontra aqui — interrompeu-o Jenna em tom ríspido e frio. — Não se encontra na torre. Eu e ele possuímos outros meios de comunicação. Ora bem, vêem aquele círculo de sal no chão?
Usha não conseguiu vislumbrá-lo. A penumbra que reinava impediu-a até de ver o chão. Nesse momento, porém, a luz da candeia intensificou-se, ficando o círculo bem à vista.
— Entrem lá para dentro com cuidado — ordenou Jenna. — Certifiquem-se de que não perturbam o sal.
— Já sei! — gritou Tas, preso de grande excitação. — Eu vi o Par-Salian fazer isso com o Caramon! Foi daquela vez em que, por acidente, me transformei em rato. Acontece, Usha, que me encontrava na Torre de Wayreth e me deparei com aquele anel branco com duas pedras vermelhas... meti-o no dedo e...
— Tenha tento na língua, pelo amor de Gileano! — interrompeu-o Jenna. — Senão sou eu quem te transforma num rato! E depois me transformo num gato!
— É mesmo capaz? Que tipo de gato? — Tas não parava de tagarelar. — E se em vez disso me transformasse num gato? Nunca fui gato...
— Vocês dois, peguem em minhas mãos — prosseguiu Jenna, ignorando o kender. — Fechem os olhos, assim não ficam tontos. E, aconteça o que acontecer, não larguem minhas mãos.
Proferiu então umas palavras que se insinuaram na cabeça de Usha e ali ficaram a rodopiar. De repente, parecia que o chão cedia e com ele o estômago de Usha. Experimentou a pavorosa sensação de ser fustigada pelo vento. Aterrorizada, segurou com força a mão da feiticeira, largá-la seria a última coisa que faria.
Depois, sentiu solo firme debaixo dos pés. O som e a sensação de vento desapareceram. A escuridão também. Uma luz brilhante obrigou-a a cerrar os olhos.
— Já pode olhar — chegou-lhe a voz de Jenna. — Chegamos. Encontrou a Torre da Feitiçaria Suprema, em Palanthas a salvo.
Usha não tinha certeza se desejava abrir os olhos. A avaliar pela descrição do kender, esta Torre da Feitiçaria devia ser um lugar endemoninhado, pavoroso. Tasslehoff já falava entusiasticamente com alguém, que lhe respondia no tom polido mas distraído de quem pensa noutra coisa.
— Abra os olhos, Usha — repetiu Jenna em tom severo. Pestanejando, Usha obedeceu e ficou estupefata por dar consigo não numa câmara de horrores, com corpos acorrentados e algemados suspensos em paredes, mas numa sala lindamente decorada. As paredes de pedra encontravam-se cobertas com tapeçarias que representavam animais fantásticos. Vários tapetes com padrões belos e intrincados cobriam o assoalho. Usha nunca vira tanta mobília reunida num único lugar.
— Bem-vinda, Usha. Bem-vinda à minha torre — disse uma voz.
Usha virou-se para o que, a avaliar pela descrição de Prot, só podia ser um elfo. Alto e esbelto, com feições cuja beleza quase rivalizava a dos Irdas, o homem envergava vestes negras macias, decoradas com símbolos cabalísticos.
— Sou Dalamar — disse o elfo.
Possuía uma voz doce, cristalina e sedutora como a música de uma flauta. Ao encaminhar-se para ela, viu-lhe os movimentos graciosos, fluidos, sinuosos. O seu cabelo era escuro e macio e caía-lhe pela altura dos ombros. Sentiu-se encantada com ele, cativada, até que o olhou nos olhos. Estes apanharam-na, agarraram-na, começaram a absorvê-la. Assustada, tentou desviar os seus, mas aqueles recusaram-se a libertá-la.
— Esses alforjes parecem pesados. Deixe que os pegue — sugeriu Dalamar.
Sem pensar, Usha entregou-lhe os alforjes.
— Está tremendo, minha querida — observou Dalamar em tom apaziguador. — Não receie. Não pretendo lhe fazer mal, muito pelo contrário. Sente-se por favor. Quer que te sirva um pouco de vinho? Comida?
Com um gesto, indicou uma mesa, e com esse gesto, libertou Usha do encantamento do seu olhar. A jovem examinou de relance a mesa. Cheiros tentadores emanavam de recipientes cobertos. O clarão vivo de um candelabro fazia reluzir taças contendo fruta gelada. Tasslehoff, que já se instalara, levantava as tampas e fungava, deliciado.
— Isto parece bom mesmo. Estou com fome. E você não tem, Usha? Não entendo porquê. Só comi há uma hora. Mas o estômago não retém por muito tempo a sopa da prisão. Não estou criticando a sopa de Palanthas! — acrescentou Tas olhando, ansioso, para Dalamar. — Não vai lhes contar que eu não gostei, não é? A acho bastante saborosa, na verdade. Não pretendo ferir os sentimentos do cozinheiro.
— Não direi uma palavra — prometeu Dalamar com um grande sorriso. — Só espero que o meu pobre repasto esteja bom. Frango assado, pão, fruta, doces, nozes com açúcar... é tudo o que posso oferecer a esta hora tardia da noite.
De repente, Usha sentiu-se completamente esfomeada.
— Parece uma maravilha! — exclamou, e antes de se aperceber do que fazia, afundou-se numa das cadeiras confortáveis e começou a encher o prato de comida.
— Nunca me senti com tanta fome na vida — confidenciou a Tas.
— Eu também não — murmurou ele em tom incoerente, depois de enfiar na boca uma maçã assada inteira. Com um esforço tremendo, mastigou, engoliu e serviu-se de mais. — Deve ser de toda esta excitação.
— Deve ser — disse Usha, mordiscando a pele tostada de um pedaço de peito de galinha assada.
O gosto era tão requintado que lhe arrancou um suspiro de prazer. Devorou o peito de galinha e serviu-se de mais. Só então percebeu que ela e Tas se encontravam sozinhos na sala.
— Onde acha que a Jenna e Dalamar foram? — perguntou Usha sem grande preocupação. Sorveu uma golada de cidra quente e condimentada, achou que nunca provara algo tão delicioso e bebeu mais dois copos.
— Sei lá! — respondeu Tas, que roía vigorosamente um naco de pão. — Não os vi sair. Mas não é coisa inusitada. Por estas bandas, as pessoas andam aparecendo e desaparecendo desta maneira a toda a hora. Olha lá, os teus alforjes também se foram.
— Pois foram! — Por um motivo qualquer, Usha achou graça ao fato.
Riu-se. Tasslehoff riu-se. As gargalhadas tornaram-nos sedentos e beberam mais cidra. A sede provocou-lhes fome e voltaram a comer... uma e outra vez.
Por fim, Usha parou e limpou as mãos em um pano limpo. Depois, recostou-se na cadeira e pediu a Tas:
— Conte-me mais coisas a respeito dessa pessoa chamada Raistlin.
Numa outra sala, Jenna espalhou o conteúdo do alforje de Usha sobre a mesa. Dalamar inclinou-se para examinar os objetos, tendo o cuidado de não tocá-los, mas avaliando-os um a um com uma expressão crítica.
— Está tudo aí — disse Jenna.
— O que há no outro alforje?
— Roupas, todas feitas de seda, como as que ela veste. Mais nada.
— Você afirma que ela mencionou algo relacionado com uma mensagem para mim.
— Foi o que ela disse ao carcereiro. Há três possibilidades: está mentindo, a tem registrada na cabeça ou entregou-a a outra pessoa.
Dalamar pôs-se a refletir.
— Duvido que esteja mentindo — disse. — Com que intenção? Obviamente não faz a mínima idéia de quem eu sou.
Jenna fungou.
— Também afirma desconhecer o nome Raistlin Majere — observou.
— É possível, se considerarmos todas as coisas. — Dalamar continuou a inspecionar o conteúdo do alforje. Colocando a mão sobre os objetos que se encontravam na mesa, estes começaram a emanar uma luz suave que em alguns era mais brilhante do que noutros. Baixando a mão, deu um suspiro de satisfação. — Tem razão. Todos eles são mágicos e alguns extremamente poderosos. E nenhum foi feito por magos de nenhuma ordem. Concorda comigo, meu amor?
— Em absoluto. — Jenna aflorou-lhe o ombro com a mão e beijou-o de leve na face.
Dalamar sorriu, mas não desviou a atenção da parafernália mágica.
— Que encantamentos estarão encerrados aqui? — observou, com uma entoação ansiosa.
Estendeu de novo a mão, desta vez na direção de uma pequena peça de âmbar, esculpida com perícia na forma de um veado. Hesitante e esboçando um esgar — como se soubesse o que ia acontecer — tocou no âmbar com a ponta do dedo.
Um clarão azulado, um som crepitante. Dalamar arquejou de dor e apressou-se a retirar a mão.
Jenna franziu os lábios e abanou a cabeça.
— Eu podia lhe dizer o que aconteceria. Foram concebidos para serem utilizados por uma única pessoa.
— Sim, também calculei.
Os dois entreolharam-se e chegaram à mesma conclusão.
— De fabricação Irda? — inquiriu Jenna.
— Sem dúvida — replicou Dalamar. — Temos alguns destes artefatos guardados na Torre de Wayreth. Reconheço a execução e... — sacudiu a mão magoada para afugentar a dor — ...os efeitos.
— Não podemos utilizá-los, mas visto que os Irdas os concederam, é óbvio que ela pode. Contudo, não lhe detectei sinais da arte.
— Porém, algum talento deve possuir. Se for quem julgamos que é.
Jenna olhou-o espantada.
— Ainda duvida? Viu bem os olhos dela? Parecem ouro líquido! Só um homem em Krynn possuía olhos assim. Até o kender a reconheceu.
— Tasslehoff? — Dalamar interrompeu o exame aos artefatos. — É mesmo? Perguntava-me por que se arriscou a trazê-lo contigo. O que ele disse?
— Falou demais. E muito alto — replicou Jenna com voz soturna. — As pessoas começaram a reparar.
— O kender também. — Dalamar dirigiu-se à janela e perscrutou a noite, que não parecia mais do que o adensar das permanentes trevas que pairavam sobre a torre. — Será possível a lenda se revelar verdadeira?
— Que mais pode ser? É óbvio que a garota foi criada em algum lugar distante de Ansalon. Trazia consigo objetos de grande valor fabricados pelos Irdas. O kender reconheceu-a e, fato mais importante, possui olhos dourados. Deve ter a idade certa. E depois, há o fato de ter sido guiada até aqui.
Dalamar franziu o cenho, algo desagradado com a perspectiva.
— Volto a lhe recordar que Raistlin Majere morreu, disse. — Morreu há uns bons 20 anos.
— Sim, meu querido. Não se aflija. — Jenna afagou o cabelo macio de Dalamar e beijou-o com meiguice na orelha. — No entanto, há aquele pormenorzinho do Bastão de Magius. Trancado no laboratório da torre. Guardado pelos mortos-vivos, com ordens para interditarem a passagem a quem quer que fosse, até mesmo a ti. Mas, quem possui o bastão agora? Palin Majere, o sobrinho de Raistlin.
— O bastão pode ter sido uma oferenda tanto de Magius como de Raistlin — disse Dalamar irritado, esquivando-se às carícias dela. — Tudo aponta para Magius, visto ser amigo do cavaleiro Huma e todos saberem que os irmãos de Palin planejavam ingressar na cavalaria. Expliquei tudo isto perante o Conclave...
— Sim, meu amor — respondeu Jenna, baixando os olhos. — Contudo, é você quem se recusa a acreditar em coincidências. Foi coincidência esta jovem ser trazida até aqui? Ou há algo mais?
— Talvez tenha razão — respondeu Dalamar, depois de refletir por um instante.
Encaminhou-se para um espelho de parede grande e com uma moldura ornamentada. Jenna foi para junto dele. Por um momento, apenas viram as suas próprias imagens. Dalamar estendeu a mão e passou-a pelo vidro. Os reflexos desvaneceram-se e foram substituídos por Usha e Tasslehoff, que comiam os alimentos encantados, bebiam a cidra encantada e riam por tudo e por nada.
— Que estranho — murmurou Dalamar, observando-os. — Julguei tratar-se apenas de uma lenda. No entanto, ali está ela sentada.
— A filha de Raistlin — disse Jenna suavemente. — Encontramos a filha de Raistlin!
A noite caía em Consolação. Pairava o calor que se fizera sentir durante o dia e que emanava da sujeira, das ruas e das paredes das casas. Mas pelo menos a noite afugentara o Sol tórrido e feroz que dardejava dos céus, qual olho maligno de um deus enraivecido qualquer. À noite, o olho fechava-se e as pessoas, soltando suspiros de alívio, começavam a se aventurar pelo exterior.
Aquele Verão era o mais tórrido e seco de que havia notícia em Consolação. As ruas sujas, sob o calor, abriam fendas. Pairava na atmosfera uma poeira sufocante, que se elevava sempre que uma carroça passava a troar, envolvendo o vale com o seu manto espesso. As lindas folhas das árvores gigantescas que ali se erguiam ficavam murchas e pendiam inertes e aparentemente sem vida dos galhos ressequidos, que rangiam ao vento.
Em Consolação, a vida estava virada do avesso. Em épocas normais, os dias decorriam movimentados e atarefados, as pessoas afluíam aos mercados, os agricultores trabalhavam nos campos, as crianças brincavam e as mulheres lavavam a roupa nos ribeiros. Agora, os dias pareciam vazios, sem vida, tão definhados como as folhas das árvores.
Nos campos, as colheitas, causticadas pelo braseiro do sol, murcharam e acabaram morrendo, de modo que os agricultores deixaram de ir ao mercado, e por isso a maior parte dos quiosques fechou. O calor era demais para as crianças brincarem, de modo que estas permaneciam em casa, desassossegadas, lamurientas, enfastiadas. Os ribeiros palpitantes converteram-se em poças labirínticas e lamacentas. As águas do lago Crystalmir encontravam-se inusitadamente quentes. Os peixes mortos flutuavam perto das margens. Durante o dia, raras eram as pessoas que abandonavam a relativa frescura das suas casas, preferindo sair à noite.
— Tal como os morcegos — disse, em tom soturno, Caramon Majere ao seu amigo Tanis Meio Elfo. — Todos nos transformamos em morcegos, dormimos durante o dia e voamos à noite...
— Voam por toda a parte exceto aqui — observou Tika. Postada atrás da cadeira de Caramon, abanava-se com uma bandeja. — Nem mesmo durante a guerra o negócio foi tão mau.
A Estalagem da Última Casa pairava, sobranceira, por cima dos ramos de uma árvore e encontrava-se profusamente iluminada, o que em geral constituía um farol de boas-vindas para os viajantes noturnos. Cintilando através dos vidros manchados, a luz cálida evocava imagens de cerveja fria, vinho aquecido com canela e açúcar, mel dos prados, cidra langorosa e, claro, as famosas batatas condimentadas de Otik. Mas, naquela noite, a estalagem encontrava-se vazia, como acontecia há muitas noites. Tika já desistira de atiçar o fogo do fogão. Também não fazia mal, pois o calor que fazia na cozinha era tanto que não dava para trabalhar em condições.
Os clientes já não se reuniam em volta do bar para contarem histórias da Guerra da Lança ou se deliciarem com os mexericos mais recentes. Corriam boatos de guerra civil entre os Elfos. E também rumores de que os duendes de Thorbardin haviam enviado mensagens ao seu povo para que regressassem à terra natal, caso contrário corriam o risco de ficarem de fora quando os duendes — receando um ataque dos Elfos — fechassem a fortaleza da montanha. Já não se viam vendedores ambulantes trilhando as rotas habituais. Os latoeiros já não acorriam para remendar as panelas, nem os menestréis apareciam para alegrar as pessoas com as suas canções. As únicas pessoas que, naqueles dias, ainda viajavam eram os kenders, e estes passavam em geral as noites nas celas das cadeias locais, não em estalagens.
— As pessoas sentem-se nervosas e angustiadas — observou Caramon, sentindo-se na necessidade de evocar uma desculpa qualquer que justificasse a falta de clientela. — Toda esta história de guerra. E se o calor não acabar depressa, adeus colheitas. No Inverno vai ser difícil arranjar comida. Por isso eles não aparecem...
— Eu sei, querido. Eu sei. — Tika pousou a bandeja no balcão. Colocando os braços em volta dos ombros musculosos do marido, estreitou-o contra si. — Falei por falar. Não ligue para o que eu digo.
— Como se eu nunca ligasse — respondeu Caramon, afagando o cabelo da mulher.
Os anos decorridos não haviam sido fáceis para ambos. Tika e Caramon trabalhavam arduamente para manter a estalagem e, embora adorassem o que faziam, não fora fácil. Enquanto a maior parte dos hóspedes cochilava, Tika mantinha-se acordada vigiando a confecção do desjejum. Durante o dia inteiro havia quartos para arrumar, comida para preparar, hóspedes que deviam ser acolhidos com um alegre sorriso, roupa para lavar. Quando caía a noite e os hóspedes iam se deitar, Tika varria o assoalho, limpava as mesas e planejava o que fazer no dia seguinte.
Caramon ainda possuía a força de três homens, ainda era grande como três homens, embora a corpulência tivesse mudado de periferia devido, afirmava ele, à sua obrigação de provar toda a comida. O cabelo tornara-se um pouco grisalho nas têmporas e na fronte se sulcavam o que ele designava por “linhas de reflexão”. Era jovial, afável, e aceitava as mercês e as agruras da vida. Sentia orgulho dos filhos, adorava as filhas e amava profundamente a esposa. O seu único desgosto, a única mágoa, era a perda do irmão gêmeo devido à perversidade e à ambição. Mas nunca permitira que essa pequena nuvem lhe ensombrasse a vida.
Embora casada há 25 anos e com cinco filhos, Tika, quando percorria o bar, ainda atraía as atenções. Com o passar dos anos, a sua silhueta fora-se tornando roliça e as mãos gretadas e avermelhadas devido à água com sabão das lavagens constantes. Mas o seu sorriso ainda era contagioso e era com orgulho que se vangloriava de não possuir um único fio branco a estragar-lhe a beleza da abundante cabeleira ruiva e encaracolada.
Já Tanis não podia dizer o mesmo. O seu sangue humano começava a esfriar — rapidamente, assim achava. O sangue elfo pouco contribuía para aquecê-lo. Era forte, calmo, e em combate ainda conseguia levar a melhor — embora acalentasse a esperança de não ter que chegar a esse extremo.
Seria possivelmente a mágoa, a preocupação, o torvelinho dos meses anteriores que lhe haviam imprimido tonalidades prateadas ao cabelo e tornado a sua barba grisalha.
Por um momento, Tika e Caramon mantiveram-se unidos num abraço afetuoso, saboreando um do outro um sentimento de paz e conforto.
— Além disso — acrescentou Tika, olhando de relance para Tanis —, para você é bom não estarmos ocupados. Eles devem chegar quando?
Tanis espreitou pela janela.
— Só depois de anoitecer — respondeu. — Pelo menos era esse o plano de Porthios. Depende de como Alhana se sentir...
— Percorrer o deserto a pé! Com este calor e no estado dela! Homens! — observou Tika, com uma fungadela. Endireitando-se e dando, de brincadeira, uma palmada na cabeça do marido.
— Me bateu porquê? — perguntou Caramon, esfregando o couro cabeludo e olhando para a mulher. — Eu não tive nada a ver com isso.
— Porque vocês são todos iguais — respondeu ela num tom vago. Perscrutou, através da janela, as trevas que começavam a adensar-se, enquanto retorcia o avental.
Ela tornou-se uma mulher de meia-idade, pensou Tanis, apercebendo-se de repente do fato. Estranho. Nunca dei por isso antes. Talvez porque, sempre que penso em Tika Waylan, vejo a atrevida garota ruiva que acertava na cabeça dos draconianos com a caçarola. Costumava reencontrar essa garota nos olhos verdes de Tika, mas esta noite não. Esta noite, vejo-lhe as rugas em volta da boca e os ombros curvados. E nos seus olhos... o medo.
— Está acontecendo alguma coisa de errado com os rapazes — disse ela de repente. — Aconteceu qualquer coisa. Eu sinto.
— Não aconteceu nada! — retorquiu Caramon em tom de amigável exasperação. — Você está cansada. É o calor...
— Não. Estou cansada. E não é o calor! — interrompeu-o Tika com modos exaltados. — Nunca senti isto antes! — Pousando a mão no coração, acrescentou: — É como se sufocasse. Tenho uma dor no coração que nem posso respirar... Eu... eu acho que vou ao quarto da Alhana ver como está.
— Tanis, desde que chegou ela vai àquele quarto de hora em hora — disse Caramon com um suspiro. Acompanhou a mulher, que subia as escadas, com uma expressão preocupada. — Andou esquisita o dia todo. Ficou assim a noite passada, depois de um sonho terrível que não consegue lembrar. Mas, desde que os rapazes entraram para a cavalaria, é sempre isso. Na cerimônia era ela quem mostrava mais orgulho, lembra-se Tanis?
Tanis sorriu. Sim, lembrava-se. Caramon abanou a cabeça.
— Mas nessa noite, quando ficamos sozinhos, chorou até adormecer. Quando ela era nova, só pensava em combater os Draconianos. Quando lhe recordei, me chamou de “palerma”. Disse que isso fora naquela época e que agora era assim e que possivelmente eu não podia compreender o coração de uma mãe. Mulheres.
— Onde se encontram os jovens Sturm e o meu homônimo? — perguntou Tanis.
— Da última vez que tivemos notícias deles, dirigiam-se para norte, rumo a Kalaman. Parece que, finalmente, os chefes solâmnicos estão te levando a sério, Tanis. Em relação aos Cavaleiros de Takhisis. — Caramon baixou a voz, embora se encontrassem apenas os dois na sala. — Palin escreveu dizendo que se dirigem para norte a fim de patrulharem toda a costa.
— Palin foi com eles? Um mago? — Tanis sentiu-se estupefato e por um momento esqueceu os seus problemas.
— Sem caráter oficial. Os cavaleiros nunca aprovariam a presença de um mago, mas como se tratava de uma missão de patrulha rotineira, permitiram a Palin acompanhar os irmãos. Pelo menos assim o disse o Alto Comando. É óbvio que Palin pensou haver outra coisa qualquer. Foi o que insinuou.
— O que o levou a pensar isso?
— Bom, para começar, a morte do Justarius.
— Quê!? — Tanis olhou-o fixamente. — O Justarius... morreu?
— Não sabia?
— Como poderia? — retorquiu Tanis. — Andei meses escondido nos bosques, esforçando-me ao máximo para manter os Elfos afastados da guerra civil! Desde que saí de Silvanesti, esta será a primeira noite em que dormirei numa cama de verdade! Que aconteceu a Justarius? E quem é agora o chefe supremo do Conclave dos Feiticeiros?
— Não adivinha? O nosso velho amigo. — Caramon mostrou-se soturno.
— Dalamar! Claro! Devia ter calculado! Mas, o Justarius...
— Não sei os pormenores. Palin não pôde contar grande coisa, mas em Ansalon, se mais ninguém o fez, pelo menos os feiticeiros das três luas levaram a sério as tuas advertências contra os cavaleiros das trevas. O Justarius ordenou um assalto mágico contra os Vestes Cinzentas do Baluarte das Tempestades. Ele e vários outros conseguiram infiltrar-se na torre. Quase não escaparam com vida e o Justarius perdeu a dele.
— Loucos! — disse Tanis com amargura. — Os feiticeiros do Ariakan são imensamente poderosos. Extraem a sua magia das três luas, pelo menos foi o que o Dalamar me contou. Uma pequena força de fazedores de magia de Waywreth entrando na Torre Cinzenta tinha de redundar em catástrofe. Não entendo como Dalamar foi concordar com um esquema tão imbecil.
— Não estava a par do mesmo — observou Caramon secamente. — É coisa para nos interrogarmos de que lado ele estará. Também serve a Rainha das Trevas.
— Mas a sua fidelidade vai primeiro para a magia. Tal como o shalafi dele lhe ensinou.
Velhas reminiscências arrancaram um sorriso de Tanis que, com prazer, viu o rosto de Caramon tornar-se igualmente risonho. Raistlin, o irmão gêmeo de Caramon, fora o Shalafi de Dalamar — o termo elfo para “professor”. E embora a relação redundasse em catástrofe — e quase na destruição de Krynn — Dalamar recolhera grandes ensinamentos do seu Shalafi. Uma dívida que se apressava sempre a reconhecer.
— Sim, bom, você conhece o elfo das trevas melhor do que eu — reconheceu Caramon. — Também é certo que tomou parte no assalto e foi um dos que regressou ileso. Palin disse que Dalamar ficou extremamente abalado e perturbado, recusando-se a falar do que aconteceu. Foi o elfo das trevas que resgatou o corpo de Justarius, embora eu ache que não lhe restavam muitas alternativas, visto Dalamar ser o companheiro de Jenna, a filha de Justarius. De qualquer forma, os feiticeiros sofreram grandes agressões. Embora ocupasse o mais alto cargo, Justarius não foi o único a morrer. E agora, Dalamar é o chefe supremo do Conclave.
— Acha que foi um dos que enviou Palin com os cavaleiros?
— Palin teria de obter consentimento para interromper os estudos — resmungou Caramon. — Os feiticeiros são agora mais rigorosos do que nos velhos tempos. Raistlin fazia o que entendia.
— Raistlin era a lei em pessoa — respondeu Tanis bocejando. Arrependia-se de ter falado em dormir numa cama. De repente, a visão dos lençóis lavados, do colchão macio e da almofada penugenta tornou-se irresistível.
— Preciso falar com Dalamar. É óbvio que sabe algo a respeito desses cavaleiros das trevas.
— E vai te contar? — perguntou Caramon com uma expressão duvidosa.
— Se achar que pode beneficiá-lo, conta — respondeu Tanis. — Porthios permanecerá aqui no mínimo algumas semanas. Alhana precisa de tempo para descansar e o próprio Porthios, embora não admita, encontra-se à beira da exaustão. Ainda bem, desse modo posso ausentar-me e fazer uma visita a Dalamar.
E pousando a sua na mão grande do corpulento humano, acrescentou:
— Antes que me esqueça, Caramon, não sei como agradecer-lhe por consentir que Porthios e Alhana fiquem aqui. Se alguém descobrisse a presença deles aqui podia pô-lo em perigo. Formalmente foram expulsos, exilados. São elfos das trevas, o que significa caça da grossa...
— Ora! — Caramon esboçou um gesto, como que para afastar o pensamento, e ao mesmo tempo sacudiu inadvertidamente uma mosca incômoda. — Que interessa ao povo de Consolação, se nada sabe a respeito das questões entre os Elfos? E muito menos que Porthios e Alhana foram exilados e designados “elfos das trevas”. Ninguém reparará na diferença, a menos que, de repente se tornem vermelhos. Para nós, um elfo é um elfo.
— No entanto, correm boatos por aí de que os Qualinesti e os Silvanesti enviaram assassinos no rastro de Porthios e Alhana — disse Tanis com um suspiro. — Outrora, foram os dirigentes das nações elfas mais poderosas de Ansalon. Através do casamento, forjaram uma aliança entre os dois reinos que faria dos Elfos uma das potências líderes do continente. Pela primeira vez, em séculos, vai nascer uma criança que se tornará a herdeira de ambos os reinos! E já há quem tenha jurado a sua morte!
Tanis cerrou os punhos e acrescentou:
— O que mais me deixa frustrado é a maior parte dos Elfos desejar a paz, não só com os primos mas com os vizinhos. São os extremistas de ambos os lados que estão pressionando no sentido de voltarmos à época do isolacionismo, fecharmos as fronteiras, abatermos qualquer humano ou duende que apareçam no caminho. O resto dos Elfos vai na conversa porque é mais fácil fazer do que falar, provocar confrontos.
Abanando a cabeça, Tanis rematou:
— Acho que os assassinos não se atreverão a atacar a estalagem mas, nestes dias, nunca se sabe...
— Sobrevivemos aos dragões — disse Caramon em tom jovial. — Sobreviveremos aos Elfos, à seca e a todas as catástrofes que possivelmente ocorram.
— Assim espero — disse Tanis, agora em tom sombrio. — Assim espero, meu amigo.
— Por falar em Qualinesti, o Gil, como passa?
Tani permaneceu por longo tempo em silêncio. A dor da partida de Gil não diminuíra, embora longos meses tivessem decorrido desde que o filho fugira de casa, ofuscado pela miragem de se tornar dirigente — ou regente fantoche dos elfos de Qualinesti.
Gilthas — assim chamado em memória de Gilthanas, o malogrado irmão de Laurana — fora o filho que ambos desejavam mas julgavam nunca poder gerar. Laurana passara por uma gravidez difícil. Gilthas era um bebê frágil que por diversas vezes esteve à beira da morte. Tanis sabia que ele e a mulher se constituíam declaradamente como protetores do filho, recusando-lhe a hipótese de visitar a terra natal dos pais, tentando protegê-lo de um mundo dividido por preconceitos raciais que consideraria difícil aceitar uma criança de sangue misto.
Quando Porthios, o Orador do Sol de Qualinesti, abandonou a pátria e pôs a vida em risco ao lutar a favor dos Silvanesti, os extremistas aproveitaram a sua ausência para o estigmatizarem por traição e escolherem um novo Orador. Optaram por Gilthas cuja mãe, irmã de Porthios, podia ascender à posição, mas que, ao casar com Tanis Meio Elfo, perdera tal direito.
Acreditando que Gil, em virtude do seu sangue humano, era um tolo e um fraco passível de ser manipulado no sentido de atuar como rei-fantoche, os extremistas persuadiram o jovem a fugir de casa e viajar até Qualinesti. Uma vez lá, Gil revelou-se mais duro do que os senadores imaginavam. Viram-se forçados a recorrer a ameaças de violência contra Alhana Brisa das Estrelas, regente dos Silvanesti e sua prisioneira, para persuadirem Gil a tornar-se Orador.
Tanis efetuara diligências — com a ajuda de Dalamar — para salvar o filho mas, o meio elfo falhara.
Ou antes, disse Tanis para consigo, com sofrido orgulho, eu fui bem sucedido. O Gil é que optou por ficar, por servir o seu povo, por fazer tudo ao seu alcance, no sentido de travar os extremistas e levar a paz às nações elfas.
Mas o tempo não fizera diminuir a dor sentida com a perda do filho e agora, para agravar as coisas, um Porthios enfurecido e clamando vingança andava a reunir as suas tropas a fim de declarar guerra aos Qualinesti, uma tragédia que Tanis tentava evitar. Quando sentiu a voz menos embargada, respondeu ao amigo:
— O Gil está bem, pelo menos é o que ouço dizer. Como sabe, não me é permitido vê-lo... caso contrário arrisco-me a que me matem.
Caramon aquiesceu, com uma expressão de simpatia a suavizar-lhe a cara grande.
— A Laurana ainda está tentando chegar a um acordo com os Qualinesti. Há meses que anda em negociações com eles. Disse na última carta que acha que começam a ceder. Que Gil tem algo a ver com isso. Ele é mais forte do que julgam. Mas... — Tanis encolheu os ombros e abanou a cabeça — ... Tenho saudades dele, Caramon. Nem imagina...
Caramon, que sentia a falta dos filhos, conseguia imaginar, mas sabia o que Tanis queria dizer. Havia uma diferença. O filho de Tanis praticamente era um prisioneiro do seu próprio povo. Os filhos de Caramon em breve regressariam para casa.
Os dois continuaram a falar dos tempos passados e atuais, quando uma suave pancada na porta veio interrompê-los. Sobressaltado, Caramon deu um salto.
— Em nome do Abismo, quem será? A esta hora da noite! Não ouvi ninguém subir as escadas...
— Nem ouvirá — disse Tanis, levantando-se. — Trata-se da escolta de Porthios. E estes soldados elfos são silenciosos, até mesmo para elfos. O luar brilhando na erva faz mais barulho do que eles.
Tanis encaminhou-se para a porta, pousou a mão no puxador e, lembrando-se da advertência que fizera a Caramon a respeito dos assassinos, emitiu um leve assobio.
A resposta veio num tom mais alto, e bateram de novo à porta.
Tanis abriu.
Um guerreiro elfo esgueirou-se para dentro. Relanceando o olhar em volta, acenou para si mesmo com a cabeça, à laia de aprovação. Concluída a inspeção, virou-se para Tanis.
— Tudo em ordem?
— Tudo em ordem. Apresento-lhe Caramon Majere, o teu anfitrião. Caramon, apresento-lhe Samar, o Protetor da Casa.
Samar examinou Caramon com frieza. O elfo não pareceu muito impressionado com a barriga rotunda e a cara jovial do homem.
Era freqüente os que lidavam com Caramon pela primeira vez tomarem erradamente o seu sorriso afável e a lentidão de pensamento como indício de uma mente apatetada. Conforme os amigos de Caramon viriam a constatar, isso não correspondia à verdade. Só chegava a uma resposta depois de percorrer a questão mentalmente, analisá-la a partir de todos os prismas, examiná-la de todos os ângulos. Concluído este processo, com frequencia chegava a conclusões caracterizadas pela extrema argúcia.
Porém, Caramon não era pessoa para se deixar intimidar por um elfo. O grandalhão retribuiu, dando mostras do maior aprumo e autoconfiança. Afinal de contas, aquela estalagem lhe pertencia.
O rosto frio de Samar desanuviou-se, e este esboçou um sorriso.
— Caramon Majere, um Herói da Lança. “Um grande homem, mas o seu coração ainda é maior do que o corpo.” São palavras da minha Rainha. Saúdo-o em nome de Sua Majestade.
Caramon pestanejou, algo confuso, e acenou desajeitadamente com a cabeça ao elfo.
— Obrigado, Samar. Grato por estar ao Serviço de Alhana, quero dizer... Sua... hum.... Majestade. Volte à presença dela e diga-lhe que está tudo preparado e que é desnecessário se preocupar. Mas, onde está Porthios? Achei que...
Tanis pisou o pé do grandalhão, murmurando:
— Não fale de Porthios a Samar. Depois te explico. — E em voz alta, apressou-se a mudar de assunto: — Porthios também virá, Caramon. Com uma escolta separada. Chegou cedo, Samar. Não esperava...
— Sua Majestade não se sente bem — interrompeu Samar. — Para ser sincero, suplico-lhes compreensão, pois tenho que voltar para junto dela. O quarto está preparado?
Tika desceu precipitadamente as escadas com o rosto carregado de ansiedade.
— Caramon! Que foi isto? Ouvi vozes! Oh! — exclamou ao avistar Samar. — Como vai?
— Tika, a minha esposa — disse Caramon com orgulho. Decorridos mais de 20 anos de matrimônio, ainda a via como a mulher mais bela do mundo, e ele como o homem mais felizardo.
Samar esboçou uma vênia graciosa, mas apressada.
— Minha senhora. E agora, queiram me desculpar, a minha Rainha não se sente bem...
Tika limpou o rosto com o avental.
— Já começou o trabalho de parto?
Samar corou. Entre os Elfos, tais assuntos não eram considerados adequados para conversas entre dois sexos.
— Não posso dizer, Senhora...
— Já rebentou a bolsa? — perguntou Tika, prosseguindo o inquérito.
— Minha Senhora! — O rosto de Samar parecia em fogo. Mostrava-se obviamente escandalizado e até Caramon corou.
Pigarreando, Tanis interveio:
— Tika, acho que não...
— Homens! — bufou Tika, indignada. Dirigiu-se a um cabide na porta e retirou a capa. — E como pensa você fazê-la subir as escadas? Talvez voando? Ou espera que o faça pelos seus próprios pés? No estado dela? Com o bebê prestes a nascer?
O guerreiro virou a cabeça para examinar os inúmeros degraus que desembocavam na estalagem. Era óbvio que o assunto nem lhe ocorrera.
— Eu... eu não sei...
Tika passou por ele e encaminhava-se já para a porta, distribuindo ordens:
— Tanis, acenda o fogo e coloque a chaleira para ferver. Caramon, corra para buscar a Dezra. É a nossa parteira — explicou a Samar, pegando-lhe na manga e arrastando-o consigo. — Avisei-a para estar preparada. Ande, Samovar, ou seja lá como se chama! Leve-me para junto de Alhana.
Samar retrocedeu.
— Minha senhora, não pode! É impossível! Tenho ordens para...
Tika fitou-o com os seus olhos verdes, e espetou o queixo. Caramon e Tanis entreolharam-se. Ambos conheciam aquela expressão.
— Hum, me dê licença, querida. — Caramon ultrapassou-a, franqueou a porta e dirigiu-se para as escadas.
Rindo-se para si mesmo, Tanis encaminhou-se rapidamente para a cozinha. Dali podia ouvir a voz de Tika:
— Se não me levar contigo, saio daqui e vou postar-me no largo do mercado e gritar a plenos pulmões...
Samar era um guerreiro destemido. Combatera tudo, desde ogros a draconianos. Mas, Tika Waylan Majere desarmou-o, vencendo-o por completo numa simples escaramuça.
— Minha senhora, não! — suplicou. — Por favor! Ninguém deve saber que nos encontramos aqui! A levarei à presença da minha Rainha.
— Obrigada, cavalheiro. — Tika era indulgente na vitória. — Agora, toca a andar!
Ao pôr do Sol, o dragão azul e quem o montava partiram de Valkinord.
O céu mostrava-se límpido e ali, pairando sobre Ansalon e as nuvens tênues, o frio perpassava a atmosfera. Steel retirou o elmo, talhado em forma de caveira, e sacudiu o longo cabelo negro, deixando que a turbulência provocada pelas asas do dragão secasse o suor que lhe escorria da cabeça e do pescoço. Retirara quase toda a pesada armadura que envergava em combate, ficando apenas com a couraça, sobre a qual vestia um manto de viagem azul-escuro, os anteparos de couro para os braços e para as pernas, estes últimos ajustados por cima das botas altas de couro. Ia fortemente armado, pois se aventurava por território inimigo. Atados à sela do dragão levava um arco, uma aljava com setas e uma lança. Transportava consigo uma espada — a espada do pai, a espada antiga de um Cavaleiro da Solamnia, a espada que pertencera outrora a Sturm Montante Luzente.
Montante Luzente seguia com a mão pousada no punho da espada, um hábito que adquirira. Olhou para baixo, perscrutando a escuridão e tentando vislumbrar algo no meio das trevas. Possivelmente luzes de uma aldeia ou a lua vermelha, refletidas num lago. Não enxergou nada.
— Onde estamos, Fulgor? — perguntou bruscamente. — Desde que abandonamos a costa não vejo sinais de vida.
— Achei ser esse o teu desejo — replicou o dragão. — Todos os indícios de vida com os quais nos deparamos nos seriam hostis.
Steel, com um encolher de ombros depreciativo, deu a entender que sabiam cuidar deles mesmos. Trevalin referira-se a um “perigo enorme”, pois atravessavam território inimigo, mas, na realidade, a ameaça era insignificante. O perigo maior vinha dos outros dragões, dos dourados e dos prateados. De acordo com os relatórios, os poucos que haviam permanecido em Ansalon, após o regresso dos irmãos à Ilha dos Dragões, achavam-se concentrados ao norte, ao redor de Solamnia.
Pouca gente desta parte do país correria o risco de travar combate com um cavaleiro das trevas e um dragão azul. Fulgor, embora pequena para os da sua raça — media apenas cerca de dez metros de comprimento — era jovem e, em batalha, revelava-se feroz e tenaz. A maior parte dos dragões azuis dava excelentes fazedores de magia. Fulgor constituía uma exceção. Era muito impetuosa, faltava-lhe a paciência necessária para lançar encantamentos. Preferia lutar com os dentes, as garras e o seu bafo ardente e devastador, com o qual podia arrasar muralhas de castelos e incendiar florestas. Fulgor tinha um fraco conceito a respeito de feiticeiros e desagradara-lhe a perspectiva de transportar um. Steel vira-se obrigado a desdobrar-se em súplicas e adulações e a banqueteá-la com carcaças de veado até finalmente persuadir o dragão a consentir que Palin viajasse na sua garupa.
— Sabe muito bem que não vai ser capaz — resmungara Fulgor com um sorriso de desprezo enquanto devorava o repasto. — Só de olhar para mim vai ficar tão assustado que borrará as lindas vestes brancas que usa.
Steel receara que isso acontecesse. Até o guerreiro mais bravo do mundo pode ser desencorajado pelo medo dos dragões, o terror e o receio que estes inspiram aos inimigos. Na realidade, ao ver o dragão fêmea, com as suas escamas azuis faiscantes, os olhos brilhantes e as fileiras de dentes trituradores, dos quais gotejava o sangue das presas, Palin assumira uma palidez cadavérica.
A princípio, Montante Luzente julgou que perdera o jovem, que teriam que descobrir outro meio de viagem mais lento. Mas a visão dos corpos dos irmãos, atados com tiras na parte de trás da sela, incutiram ao jovem mago um novo alento. Comprimindo os lábios, Palin encaminhara-se para o flanco do dragão e — ajudado por Steel — montara-o.
Steel sentira o corpo do jovem mago estremecer, mas Palin calou dentro de si os gritos e as palavras. Todo ele era aprumo e dignidade — a coragem do moço valeu-lhe a admiração de Montante Luzente.
— Se está pensando que me perdi, engana-se, pois sei onde me encontro — acrescentou Fulgor em tom melífluo. — Eu e a Sara percorremos esta rota... naquela noite. Na noite em que ela foi encontrar Caramon Majere. Na noite em que ela veio para te atraiçoar.
Steel sabia a que noite se referia o dragão e manteve-se obstinadamente em silêncio. No assento atrás dele — o cavaleiro trocara a sela para um homem só por uma adaptada a duas pessoas — Palin remexia-se e murmurava palavras incoerentes. Nem sequer o pavor do dragão o fazia resistir à exaustão. O mago mergulhara num sono que, pelo visto, pouco conforto lhe transmitia, pois o jovem estremecia, soltava gritos estridentes e roucos e começara a divagar.
— Cale-o — advertiu o dragão. — Pode não vislumbrar sinais de vida no solo ali em baixo, mas ela existe. Sobrevoamos as montanhas de Khalkist e é lá que vivem os duendes dos esgotos. As sentinelas encontram-se alertas e são astuciosas. A nossa silhueta escura perfila-se contra o céu iluminado pelas estrelas. Facilmente nos identificariam e passariam a palavra.
— Valeria muito, a eles ou a outra pessoa qualquer — observou Steel. Mas, como sabia que o melhor seria não enfurecer o dragão, virou-se na sela e pousou com firmeza a mão no braço do mago.
Ao sentir o contato, o mago aquietou-se. Dando um profundo suspiro, acomodou-se melhor. A sela para duas pessoas fora concebida para transportar dois cavaleiros, um empunhando aço, o outro encantamentos mágicos ou eclesiásticos, que eram úteis para neutralizar os ataques mágicos do inimigo. A sela era feita de madeira leve com revestimento de couro e encontrava-se equipada com alforjes e arreios destinados não só às armas como também aos componentes e artefatos para os encantamentos. Os cavaleiros ficavam separados por uma prateleira revestida com couro almofadado. No interior havia uma gaveta que servia para guardar rolos de pergaminho, mantimentos e outras parafernálias. Palin seguia com a cabeça apoiada nessa gaveta e o rosto, manchado de sangue, repousava sobre o braço. A outra mão, mesmo durante o sono, segurava o Bastão de Magius que — em conformidade com as suas instruções — fora preso com firmeza à sela.
— Está revivendo a batalha — observou Montante Luzente. Vendo que o mago sossegava, o cavaleiro retirou a mão e voltou o rosto para o vento turbulento.
Resfolegando, e dando um safanão com a cabeça coberta de escamas azuis, o dragão deu a entender o que pensava do comentário.
— Foi um tumulto. Não é por lhe chama de “batalha” que o dignifica.
— Os Solâmnicos combateram bravamente — replicou Steel. — Defenderam o terreno deles. Não fugiram nem se desonraram rendendo-se.
Fulgor sacudiu a crina, mas não fez comentários, e Montante Luzente teve a sensatez de não repisar o assunto. Há 25 anos, o dragão lutara nas Guerra dos Dragões. Nessa época, os soldados da Rainha das Trevas nunca perdiam uma oportunidade para ridicularizar ou desacreditar o inimigo. Se algum Senhor dos Dragões se atrevesse a louvar os Cavaleiros da Solamnia, como Steel acabara de fazer, teria sido rebaixado de posto e possivelmente perdia a vida. Fulgor, tal como a maior parte dos dragões leais a Takhisis, sentia dificuldade em se adaptar à nova corrente de pensamento.
Um soldado devia respeitar o inimigo — nisso concordava com Lorde Ariakan. Mas elogiá-los era, na sua perspectiva, ir um pouco longe demais.
Steel inclinou-se para frente, a fim de dar uma palmadinha no pescoço do dragão e deste modo transmitir-lhe que respeitava a opinião dele e não faria mais comentários.
Fulgor, que gostava bastante do dono — na realidade, amava-o loucamente —, mostrou o seu apreço mudando de assunto. Embora, como poderão constatar pelo tema que escolheu, os dragões azuis não sejam famosos pelo seu tato.
— Presumo que não tenha notícia de Sara, não é mesmo? — perguntou Fulgor.
— Não — respondeu Steel em voz dura e fria, num esforço para refrear as emoções. — E sabe muito bem que não deve mencionar o nome dela.
— Estamos sozinhos. Quem vai nos ouvir? Talvez venhamos a ter alguma informação durante a nossa visita a Solace.
— Não quero ouvir falar dela — replicou Steel, mantendo a dureza do discurso.
— Acho que tem razão. Se por acaso viéssemos a descobrir onde se esconde, seríamos obrigados a capturá-la e levá-la de volta. Lorde Ariakan pode elogiar todos os inimigos da sua simpatia, mas não quer nada com os traidores.
— Ela não é traidora! — exclamou Steel com um ímpeto que fez derreter o gelo das suas emoções. — Poderia ter nos traído inúmeras vezes e no entanto manteve-se leal...
— AH — respondeu Fulgor.
— Criou-me quando a minha mãe me abandonou. Claro que me amava! O contrário é que não seria natural!
— E você a amava. Não pretendo ser depreciativa — acrescentou Fulgor, ao sentir que Steel se remexia na sela, pouco à vontade. — Eu amava a Sara, se é que se pode dizer que nós, os dragões, amamos os mortais. Tratava-nos como seres inteligentes. Consultava-nos, pedia-nos opinião, escutava os nossos conselhos. A maior parte do tempo. A única vez que pude ajudá-la, não veio falar comigo. — Fulgor deu um suspiro. — Que pena nunca chegar a compreender a nossa causa! Deviam conceder-lhe a Visão. Bem que o sugeri, mas Lorde Ariakan não me deu a mínima, é claro.
— Pelo que ouvi dizer, nem posso assegurar que a minha verdadeira mãe fosse capaz de entender a nossa causa — replicou Steel em tom cáustico.
— Sua Eminência Kitiara? — cacarejou Fulgor, divertida com a perspectiva. — Sim, era daquelas que traçava o seu próprio caminho, e Takhisis espezinha todos os que se interpõem a ela. No entanto, que lutadora! Destemida, ousada, proficiente. Encontrava-me entre os que lutaram ao seu lado na Torre do Sumo Sacerdócio.
— Uma batalha que não abonou muito a seu favor — comentou Steel em tom seco.
— Foi derrotada, é verdade, mas ergueu-se das cinzas para derrubar Lorde Ariakus e ascender à Coroa do Poder.
— Que culminou com a nossa ruína. “Virou-se o feitiço contra o feiticeiro.” Um credo de ressentimento e traição que significou destruição. Nunca mais. Somos aliados, irmãos na Visão e tudo sacrificaremos para mantê-la viva.
— Nunca revelou a tua comparticipação na Visão, Steel — observou Fulgor.
— Não me é permitido. Como não a compreendia inteiramente, relatei-o a Lorde Ariakan. Ele, que tampouco a compreendia, disse-me que melhor seria guardá-la para mim, não a debater com os outros.
— Não me considero os “outros”! — exclamou Fulgor, ofendida.
— Eu sei — disse Steel em tom mais ameno e dando palmadinhas no pescoço do dragão. — Mas o meu senhor proibiu que falássemos dela a quem quer que fosse. Vejo luzes. Devemos estar perto.
— As luzes que avista pertencem à cidade das Sanções. Apenas sobrevoamos o mar Novo e vamos chegar à Abanasínia, muito próximo da Consolação. — Fulgor perscrutou os céus e verificou o vento, que parecia esmorecer. — É quase de madrugada. Te deixarei, e ao mago, nos arredores da aldeia.
— E durante o dia, onde vai se esconder? É muito difícil passar despercebida.
— Me refugiarei em Xak Tsaroth. Depois de todos estes anos, a cidade continua abandonada. As pessoas acreditam que está assombrada. É verdade que sim, mas pelos duendes dos esgotos. Antes de adormecer, comerei alguns. Regresso ao cair da noite ou espero que me chame?
— Espere que eu te chame. Ainda não estou bem certo quanto aos meus planos.
Ambos falavam em tom despreendido, não mencionando o fato de se encontrarem infiltrados nas linhas inimigas, a sua vida correr perigo a cada segundo e não poderem contar com nenhum apoio. Alguns cavaleiros da Ordem de Takhisis viviam no continente de Ansalon, a espionar, procurando infiltrar-se e recrutando adeptos para a causa. Mas mesmo que chegasse ao conhecimento de Montante Luzente a existência de tais cavaleiros, não poderia recorrer a eles, nada podia fazer susceptível de perturbar o véu sob o qual se ocultavam. De acordo com a Visão, uns e outros tinham incumbências específicas.
Só que ele não estava bem certo quanto à que seria a sua.
Fulgor deixou para trás a terra e sobrevoou o Mar Novo. A Lua Vermelha ainda não se pusera, mas a luz acinzentada da madrugada embaciava a refulgência de Lunitari. Esta mergulhou rapidamente no mar, como que grata por fechar o seu olho vermelho ao mundo.
— Sturm... — gemeu Palin durante o sono, evocando o nome do irmão morto.
Estranhamente, o nome surgira na festa de consagração da Visão. Sturm fora o nome do irmão do mago, mas esse irmão fora assim chamado em homenagem ao pai de Montante Luzente.
— Sturm... — repetiu Palin. Steel rodou na sela.
— Acorde! — exclamou, com voz exasperada. — Está quase em casa.
Steel e Palin desconheciam-no, mas o dragão deixara-os quase no mesmo local que, muitos anos atrás, constituíra o ponto de encontro entre dois amigos.
A época de antanho pouco diferia da época atual. A única diferença residia nas estações — outrora calhara no Outono e agora no Verão. Acontecera numa época de paz, tal como agora reinava a paz. E então, como agora, muitos afirmaram que a paz duraria para sempre.
Palin Majere tropeçou no mesmo seixo sobre o qual Flint Forjardente repousara outrora. Steel percorreu o caminho trilhado em tempos por Tanis Meio Elfo. Palin baixou os olhos em direção ao vale. Normalmente, as árvores, de grande porte, ocultavam todos os vestígios da aldeia que se abrigava nos ramos das árvores. Porém, a espessa folhagem verde exibia agora um tom acastanhado e poeirento. A maior parte das folhas morrera e tombara, tornando as casas visíveis, nuas, abandonadas e vulneráveis.
Embora fosse cedo e o povo de Consolação começasse a acordar para um novo dia, do vale não se elevava a fumaça das lareiras nem das forjas. Tornara-se perigoso atear qualquer tipo de fogo. Só semana na passada uma centelha atingira uma árvore ressequida, que explodira numa bola de fogo, destruindo várias casas. Felizmente não se registrara a perda de vidas. Os moradores tinham conseguido escapar a tempo. Mas, desde então, as pessoas não ousavam queimar o que quer que fosse.
A Estalagem da Última Casa era o maior edifício de Consolação e foi o primeiro a ser avistado pelos dois. Palin ficou a olhar para a casa que era a sua, ansiando precipitar-se para lá e, depois de um tempo, fugir. Steel retirara os corpos dos irmãos de Palin do dorso do dragão. Estes jaziam agora, envoltos em linho, num tosco trenó improvisado, que Steel construíra com ramos de árvores. Atava os últimos ramos, e quando terminasse iniciariam a descida até o vale.
— Já acabei — disse Steel, dando um safanão no trenó. Este bateu numa pedra e começou a deslizar pela estrada, levantando, à passagem, uma nuvem de poeira.
Palin desviou o olhar. Ouviu-o ranger, lembrou-se do fardo que o mesmo transportava e a dor lancinante obrigou-o a cerrar os punhos.
— Está em condições de andar? — inquiriu Steel, e embora a voz do cavaleiro fosse soturna e rude, nela se detectava uma entoação de respeito, não troçava da mágoa de Palin.
Palin sentiu-se grato por isso. Contudo, achou a pergunta humilhante. Sturm e Tanin haviam de querer que ele aparentasse força, e não fraqueza, diante do inimigo.
— Estou ótimo — mentiu. — O repouso ajudou-me, assim como o emplastro que me colocou na ferida. Vamos?
Levantou-se e, apoiando-se pesadamente no Bastão de Magius, começou a descer a colina. Steel o seguiu, puxando o trenó. Olhando para trás, Palin viu os corpos ressaltarem e ouviu o ranger das armaduras enquanto o trenó efetuava a descida pela estrada irregular e poeirenta aos solavancos. Tropeçou, perdendo o equilíbrio.
Estendendo a mão, Steel amparou-o.
— É melhor olhar para frente e não para trás — observou o cavaleiro. — O que está feito está feito, nada pode alterar.
— Fala como se eu tivesse derramado um pires de leite! — retorquiu Palin, exasperado. — Trata-se dos meus irmãos! Sabe que nunca mais lhes falarei, nem os ouvirei rir, nem... nem... — Viu-se forçado a parar, a engolir as lágrimas. — Acho que nunca perdeu ninguém que te fosse querido. Vocês não se ralam com nada... a não ser com a carnificina!
Steel não fez comentários, mas à menção da perda de alguém o seu rosto ensombrou-se. Prosseguiu a caminhada penosa, rebocando com facilidade o pesado trenó. Os seus olhos, ocultos sob as espessas sobrancelhas pretas, moviam-se constantemente, não à toa, pois iam registrando o que se passava ao redor, fixando-se sobretudo na vegetação rasteira e no emaranhado de matagal.
— Que se passa? — inquiriu Palin, olhando em volta.
— Este lugar seria ótimo para uma emboscada — observou Steel.
O rosto de Palin, contorcido pela dor, desanuviou-se um pouco.
— É verdade. Foi exatamente ali que o duende conhecido por Fewmaster Toede deteve Tanis Meio Elfo, Flint Forjardente e Tasslehoff Pés Ligeiros e lhes inquiriu sobre um bastão de cristal azul. Aquele instante mudou-lhes as vidas.
Fez uma pausa, recordando os momentos terríveis que haviam alterado a vida dele e posto termo à vida dos irmãos. Steel manteve-se calado, não lhe interrompendo os pensamentos, mas pôs-se a caminhar ao lado dele.
— Mestre Mago, acredita no destino? — inquiriu abruptamente Steel, fixando a estrada coberta de terra. — Esse momento, a emboscada, mudou a vida do meio elfo, foi o que afirmou. Daí se infere que a vida dele seria diferente se esse instante nunca se desse. Mas, e se tal instante estivesse predestinado a acontecer, se não houvesse forma de escapar? Quem sabe se, oculto na emboscada, esse momento, tão certo como os próprios duendes, o aguardava? E se... — Os olhos escuros de Steel pousaram em Palin. — E se os teus irmãos nasceram para morrer naquela praia?
A pergunta teve o impacto de um soco no estômago. Por um momento Palin sentiu-se incapaz de respirar. Parecia que o próprio mundo ia à pique, que todos os ensinamentos recebidos resvalavam dele. Será que por trás de um arbusto, um Destino inexorável qualquer se escondia e o aguardava? Seria ele um percevejo, enredado no emaranhado do tempo, a estrebuchar e a contorcer-se em débeis esforços para escapar?
— Não acredito nisso! — Inspirou fundo e sentiu-se melhor, com o espírito desanuviado. — Os deuses concederam-nos livre arbítrio! Os meus irmãos optaram por se tornar cavaleiros. Na verdade, por não serem solâmnicos e não possuírem antepassados na Cavalaria, tiveram de conquistar tudo a pulso...
— Sendo assim, optaram por morrer — respondeu Steel, com os olhos fixos nos corpos. — Podiam ter fugido, mas não o fizeram.
— Não o fizeram — repetiu Palin baixinho.
Aturdido com a pergunta do cavaleiro, interrogando-se sobre o que a mesma ocultaria, Palin examinou intensamente Steel. E, sob a máscara de ferro dura e fria, vislumbrou, por um instante, o rosto humano. Rosto que duvidava, procurava, sofria.
Pedia algo, mas o quê? Conforto? Compreensão? Esquecendo-se das suas agruras, Palin preparava-se para tocá-lo com a mão e oferecer-lhe os seus fracos préstimos. Foi nesse momento que Steel se virou e surpreendeu Palin a fitá-lo.
O seu rosto reassumiu a expressão férrea.
— Então fizeram boa escolha. Morreram com honra.
Palin sentiu-se de novo aguilhoado pela raiva e amargura.
— Escolheram mal! — exclamou. — Eu escolhi mal! O que tem isso de honroso? — acrescentou, apontando para os corpos que jaziam no rudimentar trenó. — Que honra existe em ter de contar à minha mãe... Ter de lhe contar...
Dando meia volta, Palin afastou-se do local onde Tanis ouvira pela primeira vez falar do bastão de cristal azul e prosseguiu a descida da estrada. Ouviu, atrás de si, a voz de Steel, sorumbática, pensativa.
— Mesmo assim, constitui um lugar excelente para uma emboscada.
E depois, o ruído do trenó, sacolejando e deslizando pela poeira.
Uma réstia de Sol matinal esgueirou-se pelos losangos de uma das vidraças miúdas das janelas da estalagem, acertando em cheio nos olhos de Tanis. Este acordou, pestanejou e deu-se conta de que cochilara num dos pequenos pavilhões de madeira, situados nos fundos da estalagem. Esfregando a cara e os olhos, levantou-se, algo furioso consigo mesmo. Fora sua intenção manter-se a noite inteira acordado, de vigília. E ali estava ele, a cambalear como um duende embriagado.
No outro extremo do quarto encontrava-se Pothios, o rei elfo exilado, sentado a uma mesa juncada de mapas, tendo junto do cotovelo um frasco de vinho elfo e um copo. Escrevia qualquer coisa. Tanis não tinha muita certeza de quê. Um relatório, uma carta para um aliado, talvez anotasse planos ou atualizasse o seu diário. Ocorreu a Tanis que a posição de Porthios era sensivelmente a mesma de quando sucumbira ao sono. A única diferença foi constatar que o frasco de vinho estava um pouco mais vazio.
Os dois eram irmãos, embora não consangüíneos. Tanis casara com Laurana, a irmã de Porthios. Todos haviam sido criados juntos, crescido juntos. Porthios, o mais velho, nascera para liderar o seu povo e levava muito a sério tal incumbência. Não aprovara o casamento da irmã com um meio elfo, que era como, invariavelmente, considerava Tanis.
A Porthios faltava o charme do pai, o falecido Orador do Sol. Por natureza, Porthios era austero, sério, rígido no que se referia a erros. Desprezava o recurso das mentiras diplomáticas. Era um homem orgulhoso, mas aos olhos dos que não o conheciam a sua reticência e acanhamento assumiam foros de arrogância. Porthios, em vez de se esforçar por combater este defeito, costumava isolar-se dos que o rodeavam, até mesmo dos que o amavam e admiravam. E merecia grande admiração, pois era um general experiente e um bravo guerreiro. Partira em auxílio aos Silvanesti, arriscara a vida a combater o terrível sonho de Lorac, que lhe dizimara a pátria. Fora a traição deles que o deixara amargurado. E Tanis achava que não podia, por isso, censurar o cunhado por pretender vingança.
A refrega cobrara dividendos. Porthios, que em tempos fora alto e bonito, com um porte régio, tornara-se algo corcovado, como que vergado sob o peso da raiva e da amargura que o oprimiam. O seu cabelo, agora longo e áspero, mostrava-se grisalho — algo quase inédito, mesmo entre os elfos mais idosos. Envergava uma armadura de couro, rígida e surrada. As suas belas vestes começavam a acusar desgaste, a esgarçar na bainha, a abrir nas costuras. O rosto, frio, implacável e amargo, lembrava uma máscara, que apenas ocasionalmente tombava, para revelar o homem que se ocultava por trás, o homem que chorava de dor pelo seu povo, mesmo quando planejava desencadear a guerra contra ele.
Tanis olhou de relance para Caramon que, bocejando, se arrastou pesadamente para o catre oposto ao do amigo, a fim de dar repouso ao corpanzil.
— Adormeci — disse Tanis, coçando a barba. Caramon esboçou uma careta risonha.
— Olha quem fala! — respondeu. — O teu ressonar era capaz de derrubar uma árvore do vale!
— Porque não me acordou? Eu devia ter ficado de vigia!
— Para quê? — replicou Caramon dando outro bocejo e alisando o cabelo. — Não nos encontramos numa torre cercada por 47 legiões de duendes maléficos. Cavalgou o dia inteiro. Precisava descansar.
— A questão não é essa — respondeu Tanis. — Parece mal.
Mirou de relance o cunhado. E embora o rei elfo não estivesse olhando para ele, Tanis, vendo o maxilar cerrado e a postura rígida de Porthios, percebeu o que este pensava de si: Fracote! Meio-humano desgraçado!
Caramon, que seguira o olhar de Tanis, observou com um encolher de ombros:
— Eu e você sabemos que ele pensaria da mesma forma caso se mantivesse acordado a vida inteira. Anda. Vamos nos lavar.
O grandalhão encaminhou-o pelas escadas até o térreo. O calor matinal já se fazia sentir. Pareceu a Tanis que o próprio ar podia incendiar-se a qualquer instante. Sob a estalagem, havia uma barrica para água que, a princípio, devia estar cheia. Caramon espreitou lá para dentro e suspirou. A barrica encontrava-se cheia pela metade.
— Que aconteceu ao poço? — perguntou Tanis.
— Secou. No final da Primavera, os poços de quase todo mundo secou. As pessoas têm retirado água do lago Cristalmir. Trata-se de uma longa jornada. Esta barrica encontrava-se cheia a noite passada. Algumas pessoas já começaram a montar guarda na água delas.
Caramon foi buscar uma concha, inclinou-se para a barrica e encheu-a de água, que estendeu a Tanis.
Tanis examinou as pegadas enlameadas que rodeavam a barrica. A lama ainda se encontrava úmida.
— Mas você não — disse. Sorrindo, bebeu a água salobra. — Você efetua essa viagem todos os dias, até o lago Cristalmir e volta, acartando água para a estalagem. E vê sempre a barrica meio-cheia, porque os teus vizinhos andam lhe roubando água.
Caramon corou e espalhou água na cara.
— Não andam roubando — retorquiu. — Fui eu quem lhes disse para retirarem quando precisassem. Mas alguns deles sentem vergonha. É quase como mendigar, e em Consolação ninguém precisava de esmolar. Nem sequer depois da guerra, quando os tempos eram difíceis. Tampouco havia quem precisasse roubar para sobreviver.
Soltando um suspiro, Caramon resfolegou, soprou e limpou o rosto na manga da camisa. Tanis lavou a cara, tomando o cuidado de poupar a preciosa água. Algumas das pegadas em volta da barrica eram pequenas, de criança.
Tanis voltou a pendurar a concha no gancho.
— O Porthios esteve acordado a noite inteira? — perguntou.
Ele e Caramon encontravam-se de novo no fundo das escadas, mas não subiram logo. Uma sala comum apinhada de elfos de rosto carrancudo e severo — metade dos quais sem falar à outra metade — não era propriamente o lugar mais agradável do mundo.
— Que eu visse, nem sequer pestanejou — observou Caramon levantando o rosto para a janela junto da qual se achava sentado o rei elfo. — Mas, não se esqueça que a mulher está quase para ter um bebê. Lembro-me que não dormi quando a Tika estava... na mesma situação.
— Isso consigo entender — replicou Tanis com voz soturna. — Qualquer marido entende. Mas o Porthios parece que se está se preparando mais para uma batalha do que para a paternidade. Acho que nem uma vez sequer perguntou por Alhana.
— Não falou muito — respondeu Caramon com lentidão. — Mas a Tika aparecia com freqüência para tranqüilizá-lo. Na verdade, ele nem precisava de perguntar. Estive a observá-lo e acho que faz uma idéia errada do Porthios. Penso que ama realmente a Alhana e que, neste exato momento, a esposa e a criança por nascer são para ele as coisas mais importantes do mundo.
— Quem me dera poder acreditar nisso! Pois eu acho que, para ter o seu reino de volta, era capaz de vender os dois. É que... Mas, valha-nos o Abismo, o quê...?
A ponte de cordame sob a qual se encontravam — eram pontes que serviam de “estradas” e ligavam as casas edificadas nas árvores de Consolação — oscilava e rangia. Um soldado elfo atravessou-a correndo. Pela expressão carrancuda, era portador de más notícias. Tanis e Caramon entreolharam-se e subiram os degraus a toda pressa. Quando chegaram à estalagem, o elfo já comunicava a ocorrência a Porthios.
— Que é? Que se passa? — inquiriu Caramon, chegando em último lugar, arquejante e afogueado com o esforço inusitado. — O que eles estão dizendo?
A conversa urgente decorria no idioma elfo dos Qualinesti. Tanis, que escutava, fez um gesto para mandar o grandalhão se calar. Virando-se para Caramon, arrastou-o para trás do bar.
— As sentinelas comunicaram ter visto um soldado humano, com cabelo preto e comprido, vestindo roupagens das trevas, percorrendo a estrada principal, em direção a Consolação. E, Caramon — Tanis estreitou o braço do grandalhão — vem acompanhado por um mago de vestes brancas. Um mago jovem.
— Palin! — disse Caramon de imediato. — E o outro? Está pensando o que eu estou pensando?
— A descrição ajusta-se a Steel.
— Mas, o que trouxe o Steel até aqui? Está sozinho?
— Excetuando o Palin, parece que sim.
— Então, em nome de todos os deuses, o que fazem os dois juntos aqui? Por que se encontram juntos aqui?
Tanis não se referiu ao resto do comunicado, ao fato do paladino das trevas arrastar consigo um trenó que transportava o que parecia ser os corpos de dois cavaleiros. Nem que o invadira o mau pressentimento de conhecer a resposta a tais perguntas. No entanto, podia muito bem estar enganado. Esperou e rezou a Paladino para que estivesse enganado.
Porthios já começara a dar ordens. Todo o contingente dos elfos se encontrava já de pé, munindo-se de arcos e flechas e de espadas em riste.
Caramon observou, alarmado, toda aquela agitação.
— O que eles estão fazendo, Tanis? Pode muito bem ser o Palin que vem aí!
— Eu sei. Vou tratar do assunto. — Tanis atravessou o quarto, encaminhou-se para Porthios e interrompeu-o: — Perdão, Irmão, mas a descrição do jovem mago leva-me a supor tratar-se do filho de Caramon Majere, o teu anfitrião. — acrescentou, dando ênfase à palavra. — O jovem é um Veste Branca. Com certeza não está pensando em atacá-lo.
— Não vamos atacá-lo, Irmão — respondeu Porthios em tom incisivo, impaciente com a interrupção. — Vamos lhes pedir que se rendam. Depois serão ambos interrogados. — Dardejou Caramon com um olhar sinistro e acrescentou em idioma comum. — O filho do teu amigo pode ser um Veste Branca, mas vem acompanhado de um soldado do Mal.
O rosto de Caramon afogueou-se de raiva.
— O que está querendo insinuar? — inquiriu.
— Porthios — interveio Tanis —, sabe perfeitamente que o paladino das trevas não se renderá. Vai lutar, a tua gente lutará e...
— Se fizer mal ao meu filho — disse Caramon com frieza, cerrando os punhos —, se arrependerá!
Dizendo isto deu um passo em frente.
Soldados elfos — os que eram Qualinesti — precipitaram-se para junto de Porthios, formando uma barreira. Ouviu-se o tinir das espadas, do aço brotaram faíscas.
— O que vocês, homens, pensam que estão fazendo?
Com o rosto pálido de fúria, a voz embargada de escárnio, Tika foi dando encontrões até chegar junto do marido e olhou-o, assim como a todos os que se encontravam na sala. Dirigindo-se ao bar, sacou da velha caçarola de ferro com a qual atingira outrora tantos draconianos na cabeça.
Avançando para o elfo mais próximo, ameaçou-o com a caçarola.
— Ficaram todos doidos? — exclamou num murmúrio sibilante. — Você, ó senhor! — A caçarola apontada para Porthios. — A tua mulher está tendo o teu filho! E se quer saber, está passando um mau bocado! Por ser elfa, ter ancas estreitas e tudo isso! E vocês, homens — acrescentou, descrevendo um arco com a caçarola —, aqui armados de espadas e a se comportarem pior do que crianças! Não admito! Ouviram? Não admito!
A caçarola abateu-se sobre uma das mesas e ouviu-se um bang.
Os elfos, parecendo, a um tempo, apalermados e ameaçadoramente determinados, mantiveram-se firmes nas suas posições. Caramon tão pouco se demoveu. Tika segurou com mais firmeza no cabo da caçarola.
Tanis esgueirara-se e encontrava-se postado junto de Porthios. Em voz baixa, falou-lhe em elfo, para que nem Tika nem Caramon percebessem:
— As tuas sentinelas citaram que o paladino das trevas puxava um trenó contendo dois corpos. Trata-se, possivelmente, dos filhos de Caramon e Tika. Iria perturbar o repouso dos mortos?
Era o único argumento susceptível de convencer Porthios a mudar de idéia. Dada a sua esperança de vida inusitadamente longa, os Elfos reverenciavam e honravam a morte.
Porthios olhou de relance para Caramon, parecendo indeciso.
Percebendo que ganhava terreno, Tanis insistiu:
— Pode ser que me engane, mas acho que conheço este paladino das trevas. Permita que fale a sós com ele e com o jovem mago. Se as minhas suspeitas se confirmarem, então o paladino, seja ou não servo da Rainha das Trevas, está procedendo de uma maneira honrosa e nobre, pondo em risco a vida. Deixe-me apurar a verdade antes que haja derramamento de sangue e a honra seja conspurcada.
Porthios ponderou o assunto.
— Os meus guardas te acompanharão — disse.
— Não é necessário, Irmão. Olha, o pior que pode acontecer é eu ser morto — acrescentou Tanis secamente.
Um dos lados do rosto carrancudo do elfo contorceu-se. Porthios exibia um genuíno sorriso.
— Acredite ou não, Meio Elfo, isso me deixaria pesaroso. Embora possa supor o contrário, sempre gostei de ti. Houve até mesmo épocas em que cheguei a admirá-lo. Apenas te considero um companheiro inadequado para a minha irmã.
O sorriso desapareceu, dando lugar a rugas de sofrimento, cansaço da fadiga que era avassaladora. Olhando na direção do quarto onde Alhana jazia, possivelmente se debatendo entre a vida e a morte, pela vida do filho dele.
— Vá, Meio Elfo — disse Porthios com voz suave, exausta. — Vá e fale com o venerável descendente do Mal. Faça as coisas à tua maneira. Sempre o fez. — Olhou para trás, com os olhos a cintilar. — Mas os meus guardas te acompanham.
Imperava a disposição reinante e Tanis sabia quão arriscado era tentar ganhar mais terreno. Vencera esta batalha apenas porque Porthios se sentia muito cansado e preocupado para argumentar.
No final das contas, refletiu Tanis enquanto afivelava a espada em volta da cintura, talvez este elfo carrancudo e obstinado ame a mulher. Tanis interrogou-se sobre o que pensaria Alhana, a Rainha elfa dos Silvanesti, a respeito do homem com quem casara por motivos políticos. Será que ela também acabara por se apaixonar?
— Não há problema — disse Tanis a Caramon e Tika, voltando ao idioma comum. — O Porthios concordou em me deixar tratar da situação. Tika, volte para junto de Alhana.
Sem compreender mas aliviada por ver a contenda resolvida, Tika fungou, pigarreou, voltou a arrumar a caçarola e subiu apressadamente as escadas.
Tanis encaminhava-se para a porta quando reparou que Caramon desatava cuidadosamente o avental que lhe cingia a rotundidade da cintura. Era óbvio que se preparava para acompanhar o amigo. Em passo rápido, Tanis encaminhou-se para Caramon e pousou a mão no braço do grandalhão.
— Deixe-me resolver o assunto, Caramon. A tua presença aqui pode ser necessária.
Caramon sacudiu a cabeça.
— Aquele homem pode ser o Palin. Se for, é porque alguma coisa lhe aconteceu.
Tanis tentou uma outra abordagem:
— Tem que ficar aqui, de olho nos elfos. O Porthios está desesperado, encurralado. Pode desencadear as hostilidades. E nós não queremos um banho de sangue.
Hesitando, Caramon relanceou o olhar pelo rei elfo proscrito.
— Se for o Palin, ficará sob meus cuidados — prosseguiu Tanis. — Como se fosse o meu próprio filho. — Ao recordar-se do adorado filho, que não via e de quem não recebia notícias há meses, a voz embargou-se um pouco.
Caramon pousou os olhos em Tanis, examinando-o com inabalável intensidade.
— Há qualquer coisa que você sabe e que não me disse.
Tanis corou.
— Caramon, eu...
O grandalhão suspirou, e com um encolher de ombros disse:
— Vai lá. Sei que cuidará do meu rapaz... e do Steel, se realmente for ele. Quem sabe se finalmente passou para o nosso lado. Ficarei de olho no Trombudo — acrescentou, espetando o dedo na direção de Porthios.
— Obrigado, meu amigo — respondeu Tanis, desaparecendo sem dar tempo a que Caramon ou Porthios mudassem de idéia.
Palin e Steel pararam para descansar nos bosques dos subúrbios de Consolação. Ou antes, Palin deteve-se para descansar. A ferida do jovem mago atormentava-o. Sentia-se destroçado e com dores. É verdade que se encontrava próximo de casa, mas esta visita não lhe traria consolo, apenas a tarefa horrível de comunicar aos pais que dois dos seus filhos se encontravam mortos. Sentou-se no cepo de uma árvore.
— Tome, beba isto — disse Steel estendendo ao mago um odre.
O jovem aceitou e bebeu, comedidamente, como aprendera a fazer na estrada com os cavaleiros e restituiu-o.
— Obrigado. Acho que perdi o meu durante o... regresso à praia.
Steel não lhe prestou atenção nem reparou no odre. Encontravam-se numa pequena clareira que — a avaliar pelos brinquedos ali abandonados e o lixo espalhado — era utilizada pelas crianças locais como área de recreio. Steel continuava a olhar para cima, para uma das árvores. Seguindo-lhe a trajetória, Palin avistou, nos ramos, um objeto escuro e pesadão. A princípio sobressaltou-se, depois as recordações o avassalaram.
— Não se alarme. É apenas um forte construído na árvore — disse. — Meus irmãos costumavam brincar ali de guerra quando éramos pequenos. Brincar de guerra. Na época, não passava de um jogo para nós. Eles eram os combatentes, e eu o seu mago. Quando “morriam”, eu costumava utilizar a minha “magia” para ressuscitá-los...
— Você diz que as crianças brincam aqui — interrompeu-o Steel, falando em voz alta.
Palin sentiu que a mão dele lhe apertava o ombro. Sobressaltado, Palin percebeu que o gesto do cavaleiro não era por simpatia. Tratava-se de uma advertência.
— Continue falando — disse Steel em voz baixa. Continuava com a mão direita pousada no ombro de Palin, enquanto a esquerda empunhava uma adaga. Palin viu o cintilar da lâmina sob a capa azul escura do cavaleiro.
Palin ficou tenso, e instintivamente estendeu a mão para o alforje dos ingredientes de encantamento. Foi quando lhe ocorreu que, por todos os deuses, se encontravam naquela que era a sua Consolação.
Com gestos algo vacilantes, pôs-se de pé.
— Talvez sejam só crianças do local que vêm brincar.
Steel dardejou Palin com um olhar breve e fulgurante.
— Não são crianças — respondeu, fitando de novo as árvores. — Elfos. Faça o que eu mandar e não interfira.
— Elfos! Deve estar...
Palin sentiu o abraço de Steel magoar-lhe o braço. Falando num sussurro, disse:
— Não há elfos num raio de 50 léguas...
— Cale-se! — disse Steel com frieza. — Que encantamentos mágicos você tem preparados?
Palin sentiu-se desconcertado.
— Eu... eu... Para falar a verdade, nenhum. Nunca pensei... Olha, aquela é a minha casa...
Um pftt, seguido de um baque abafado, interrompeu-o. Uma lança com penas fora cravar-se no cepo da árvore onde Palin se sentara. De fabricação e concepção de elfos.
Cinco guerreiros elfos saltaram das árvores, aterrando agilmente no solo. Mais rápidos que um raio, os elfos ergueram os arcos, com as setas já assestadas e prontas a disparar — quatro contra Steel e uma contra Palin.
Este os olhou boquiaberto e desconcertado. No seu desnorteio, o único pensamento palpável foi o de, uma vez mais, ter falhado. Mesmo que mentalmente recorresse aos encantamentos mágicos, os que possuía eram quase inócuos — pelo menos assim achava. De qualquer forma, provavelmente tombaria morto, trespassado por uma seta, mal começasse a recitar as palavras.
Largando Palin, Steel guardou a adaga no cinto e empunhou a espada, para enfrentar os inimigos.
— Você é uma criatura do Mal, embora não saibamos de que maneira — disse um dos elfos a Steel. — Poderíamos tê-lo morto ali na estrada. Mas interessou-nos a tua conversa com o Veste Branca. Isso e o fato de transportar contigo os corpos de dois Cavaleiros da Solamnia. O que vem confirmar os boatos que nos chegaram. O meu senhor há de querer falar contigo.
Steel arremessou a capa para cima do ombro, revelando com orgulho a insígnia que ostentava na couraça: a caveira e o lírio da morte.
— Contemplem isto e vejam o seu destino! — disse. — Sou um Cavaleiro de Takhisis. Não me interessam os boatos que possam ter ouvido e quanto ao teu senhor, bem pode ir para o Abismo!
Os elfos retesaram as cordas dos arcos.
— Se pretende atuar, Senhor Mago, sugiro que o faça já — disse Steel com voz suave e sinistra.
Palin passou a língua pelos lábios secos e proferiu a primeira e única palavra mágica que lhe veio à mente:
— Shirak!
A bola de cristal que sobrepujava o Bastão de Magius transformou-se num clarão fulgurante, cegando momentaneamente os elfos. Pestanejando, desviaram a cabeça.
— Conseguiu! — exclamou Steel, e dando um salto em frente executou, com a espada, um arco letal.
— Não! Espere! — Palin segurou no braço de Steel, tentando puxá-lo para trás.
A luz do bastão esmoreceu. Embora não por completo, os elfos recuperaram a visão. Uma seta trespassou a manga da veste de Palin. Outra foi bater na couraça de Steel e ressaltou. As duas que se seguissem acertariam nos alvos.
— Astanti — ressoou uma ordem estridente, e Palin reconheceu o idioma elfo dos Qualinesti.
Os elfos baixaram os arcos, virando-se para ver de onde partira a ordem.
— Deponham as armas, todos vocês! — prosseguiu a voz, agora no idioma comum. — Você também, Montante Luzente de Aço.
Ouvindo proferirem o seu nome atrás de si, Steel, sempre de espada desembainhada, recuou, mas o fez apenas para identificar o novo perigo que o ameaçava.
Tanis Meio Elfo, acompanhado por seis guerreiros elfos, precipitou-se para a clareira. Encontrava-se sozinho e não empunhava armas, embora a espada lhe pendesse do cinto. Olhou de soslaio para os dois corpos atados ao trenó, depois para Palin e Steel, e por fim para os guerreiros elfos que os haviam intimado.
— Fui enviado por Porthios, o teu senhor — disse Tanis aos elfos e continuou a falar no idioma comum, a fim de Palin e, sobretudo, Steel compreenderem o que dizia: — Se não acredita, pergunte aos teus camaradas que me acompanham.
Um dos elfos que chegara com Tanis esboçou um breve aceno de cabeça.
— Conheço estes dois homens — prosseguiu Tanis, postando-se em frente de Palin e Steel e protegendo-os com o corpo. — Creio que interpretaram mal as intenções deles.
— Que intenções você atribui a este escravo das trevas? — inquiriu um dos elfos. — Outras que não sejam a nossa aniquilação?
— É isso que pretendo descobrir — replicou Tanis. Pousando a mão no ombro de Steel, fez-lhe sinal para se dominar. — Confie em mim — disse em voz baixa. — Confie em mim agora tal como fez na Torre do Sumo Sacerdócio. Não te atraiçoarei. Acho que conheço o motivo da tua vinda.
Steel tentou desenvencilhar-se. O sangue fervia-lhe, tornando-o sedento de luta.
— Não pode ganhar — prosseguiu Tanis com suavidade. — Morrerá para nada. Será que a tua Rainha o deseja?
Steel hesitou, debatendo-se com o desejo libidinoso de sangue. O fogo que lhe ardia nos olhos esmoreceu, deixando-os escuros e gelados. A contragosto, voltou a embainhar a espada.
— É a sua vez — disse Tanis, relanceando o olhar pelos elfos. Lentamente, com modos carrancudos, estes baixaram os arcos. Talvez não o fizessem por obediência à ordem de Tanis, mas o elfo enviado por Porthios reforçou-a com um gesto.
— Voltem para os seus postos — ordenou Tanis. — Deixem-nos a sós por uns instantes — acrescentou, dirigindo-se aos soldados de Porthios.
Os elfos recuaram até às sombras das árvores, mas conservaram-se à vista, prontos a disparar.
Quando ficaram sozinhos, Tanis virou-se para Palin.
— Conte-me, filho. Conte-me o que aconteceu.
A voz bondosa, o rosto familiar, as notícias de que era portador, exerceram em Palin um efeito devastador. Os seus olhos marejaram-se de lágrimas e a voz embargou-se.
— Coragem — disse Tanis. E acrescentou: — Palin, as lágrimas não constituem vergonha, mas há uma hora certa para chorar e, acredite, não é este o momento! Preciso saber o que fazem aqui. Vocês dois. E preciso saber já, antes que todos nós acabemos parecendo uma almofada para alfinetes igual à da caixa de costura da tua mãe!
Coragem, jovem, veio-lhe um sussurro. Estou contigo.
Palin sobressaltou-se e começou a tremer, já ouvira aquela voz antes, conhecia-a tão bem como a do pai. Ou possivelmente melhor. Há muito, muito tempo que não se dirigia a ele.
É um sinal, pensou, com toda a certeza!
Secadas as lágrimas, relatou os acontecimentos do dia anterior, e que lhe pareciam já tão distantes.
— Fomos enviados a Kalamar para verificar as respectivas fortificações e comunicar qual a melhor estratégia de defesa, em caso de ataque vindo do norte. Formávamos um pequeno contingente, ao todo cerca de uns 50 homens. Mas os cavaleiros ascendiam apenas a 20. O resto eram escudeiros, pagens e homens do povo, que conduziam as carroças das bagagens. Permanecemos vários meses em Kalaman, vigiando os trabalhos de reforço das fortificações. Depois, rumamos para leste, com a intenção de chegarmos ao Baluarte do Norte. Foi no percurso que...
Fez uma pausa, soltou um suspiro entrecortado e prosseguiu:
— Viajávamos ao longo da costa. Nessa noite acampamos. O mar estava calmo, a maré baixa. Ao clarear, avistamos o primeiro navio...
— Mas, com certeza tinham dragões voando com as suas forças. Como foi possível não detectarem...
— Não tínhamos dragões, Tanis — respondeu Palin, e um tênue rubor coloriu-lhe as faces pálidas. — O Comandante considerou a medida desnecessária, não gosta de abusar deles.
— Estúpidos! — exclamou Tanis com amargura. — Os dragões deviam ter participado. E deviam encontrar-se presentes 500 cavaleiros, não 20. Eu bem que lhes disse. Eu os avisei!
— Na verdade, não acreditaram numa palavra tua — respondeu Palin com um suspiro. — Nos enviaram apenas para “aplacá-lo”. Lamento, Tanis. Foi o que ouvimos do nosso comandante. Nenhum dos cavaleiros levou a sério a nossa missão. Para eles foi... como uma viagem de lazer.
Tanis abanou a cabeça e olhou de relance para os corpos amortalhados.
— Por que não regressou ao Baluarte do Norte para avisar os outros?
— No início era só um navio — explicou Palin de modo pouco convincente. — Um dos Senhores Cavaleiros riu e disse mais ou menos isto: que se os tínhamos derrotado há 26 anos também os derrotaríamos agora.
— Loucos — repetiu Tanis, para para si.
— Percorremos a linha da costa e ficamos esperando. Todos brincavam e riam. Foi então que... — A voz de Palin tremeu — ...Avistamos um segundo navio. Depois um terceiro. Até que perdemos a conta.
— E ficaram para lutar. Ultrapassados em número. Desesperados.
— O inimigo conseguia nos avistar dos navios — respondeu Palin na defensiva. — O que pensariam se fugíssemos?
— Que eram sensatos? — sugeriu Tanis.
O rubor de Palin acentuou-se. Olhando para os corpos, pestanejou rapidamente.
Com um suspiro, Tanis cofiou a barba.
— Morreram todos? — inquiriu em voz baixa. Palin aquiesceu, engolindo em seco.
— Fui o único sobrevivente. — Falou tão baixinho que Tanis teve de se inclinar para ouvi-lo.
— Os teus irmãos, Tanin... Sturm...
Palin apontou para o trenó.
— Paladino os tem em sua guarda — disse Tanis, cingindo Palin com o braço. O jovem tremia, mas manteve o aprumo. — Foi feito prisioneiro, presumo — acrescentou, olhando de relance para Steel.
Incapaz de responder, Palin aquiesceu com a cabeça.
— Isso eu entendo — prosseguiu Tanis —, mas o motivo que te trouxe até aqui, Steel, me deixa confuso. — A voz de Tanis tornou-se mais dura. — É o responsável pelas mortes deles?
Steel assumiu um ar desdenhoso.
— E se fosse eu quem os matou, que diferença faria? — retorquiu. — Somos soldados. Guerra é guerra. Presumo que conheciam os riscos, caso contrário não se tornariam cavaleiros.
— Faz diferença, acredite — disse Tanis. — Vocês são primos. Do mesmo sangue. Pergunto de novo: aniquilou-os?
Palin interveio:
— Não foi ele, Tanis. Fomos atacados por homens estranhos, exóticos, com o corpo pintado de azul. Mas, os bárbaros eram liderados por cavaleiros.
— Eu sou cavaleiro. Luto montado no dorso de dragões — disse Steel com orgulho. — Os solâmnicos sucumbiram nas mãos das forças terrestres.
— Entendo — respondeu Tanis com ar pensativo, procedendo, sem dúvida, ao registro destas informações vitais, a fim de comunicá-las ao comandante dos Cavaleiros da Solamnia, que se encontrava na Torre do Sumo Sacerdócio. E olhando para Steel, acrescentou: — Continuo sem entender por que veio. Se foi por causa do resgate de Palin, podiam incumbir um mensageiro qualquer do pedido...
— Vim saldar uma dívida. Os corpos dos defuntos deviam ser colocados numa vala comum. Com as devidas honras, é evidente — apressou-se a acrescentar, com os olhos escuros faiscando. — Combateram com bravura. Não fugiram, como alguns poderiam ter aconselhado. Mas, durante algum tempo a notícia da sua morte não chegaria às famílias. Talvez nunca viesse a acontecer. Quando descobri o nome do jovem mago aqui e que os seus dois irmãos haviam perecido na batalha, aproveitei o ensejo para saldar a minha dívida para com Caramon Majere, o pai. Trouxe-lhe os corpos dos dois filhos para que recebam um enterro condigno.
— Trouxe os mortos — observou Tanis, com incredulidade para o cavaleiro —, pondo em risco a própria vida?
Steel encolheu os ombros, dizendo:
— De que serve a vida sem honra?
— Est Sularus Oth Milhas — murmurou Tanis. — “A minha honra é a minha vida.” É tal e qual o teu pai.
O rosto de Steel tornou-se sombrio. Apertando o punho da espada, exclamou:
— Sou um Cavaleiro de Takhisis! — disse com frieza. — Honro a memória do meu pai, mas não passa disso... de uma recordação. Vivo apenas para servir a minha Rainha.
O olhar de Tanis cravou-se no pescoço do cavaleiro. A espada não fora a única dádiva que o falecido pai dera ao filho. Como que por artes mágicas que ultrapassavam a compreensão de Tanis, a jóia em forma de estrela que Sturm Montante Luzente usara no pescoço, passara para o filho. Era um objeto do Bem, de confecção elfa, um penhor de afeto. Nenhuma pessoa cujo coração estivesse mergulhado nas trevas poderia sequer tocá-la e muito menos usá-la. Contudo, Tanis a vira brilhar no peito de Steel.
Será que ainda a ostentava, oculta sob a odiosa armadura e os símbolos da morte e da destruição? Ou será que a perjurara, a arrancara, sacrificando-a no altar manchado de sangue da Rainha das Trevas?
Tanis não conseguiu ver a jóia. Steel retribuiu com frieza, sem o mínimo constrangimento, o olhar do meio elfo. Se a trazia consigo, controlava-se o suficiente para ocultar quaisquer indícios nesse sentido.
Homem perigoso, pensou Tanis. Se todos os paladinos forem como este, estamos mesmo metidos em confusão.
— Kalamar está sofrendo alguma investida? — inquiriu, olhando para Steel.
— Irá sofrer — replicou o cavaleiro. — Neste momento é o Baluarte do Norte que está sob fogo. Não estou traindo nenhum segredo. Lorde Ariakan quer que os Solâmnicos saibam que foram desbaratados.
Tanis olhou para Steel guardando um lúgubre silêncio, depois virou-se para Palin, que parecia à beira de sucumbir.
— Mais tarde discutiremos isso tudo. Primeiro, temos de te levar para casa. Ajudarei a comunicar aos teus pais a notícia da morte dos teus irmãos. Palin, lembre-se, os teus pais foram soldados. Decerto ficarão penalizados, mas...
— Há outra coisa, Tanis — interrompeu-o Palin. Tanis já calculava o que fosse.
— Fizeram-te prisioneiro por causa do resgate — disse.
— Sim. E se o resgate não for satisfeito, pago com a vida.
— E a quanto ascende o resgate? Não interessa! — apressou-se Tanis a acrescentar. — Qualquer que seja o montante, conseguiremos o dinheiro. Contribuirei de bom grado. De modo que...
— Não é dinheiro que eles querem, Tanis — interrompeu-o Palin com alguma impaciência. — Afinal de contas, sou um fazedor de magia.
— Um aprendiz — disse Tanis, fingindo uma despreocupação que não sentia. Invadiu-o o terrível pressentimento de saber do que se tratava e esperou estar enganado. Batendo no ombro de Palin, acrescentou: — Olha, rapazinho, deixe de manias.
E olhando para Steel, observou:
— Como estava dizendo, este jovem mago é um aprendiz. Só recentemente passou no Teste. Os feiticeiros terão possivelmente cedido uns objetozinhos arcanos, mas nada que tenha valor. Vocês, cavaleiros, fariam melhor em exigir dinheiro...
— Palin Majere pode não passar de um aprendiz de mago. Mas Raistlin Majere, o tio, não era — replicou secamente Steel. — Concedeu ao sobrinho uma dádiva preciosa. — O cavaleiro apontou para o Bastão de Magius. — Ia asseverar que, se soubesse que a vida do jovem corria perigo, concederia mais.
— Será que o mundo inteiro endoidou? — inquiriu Tanis. — Raistlin Majere morreu! Morreu há 20 ou mais anos! Não foi ele quem deu a Palin o bastão, mas sim Dalamar o Sinistro.
Steel fitou-o com aqueles olhos escuros, impassíveis.
— Estou desperdiçando saliva! Qual é o resgate? — perguntou Tanis.
— Querem a abertura do Portal — respondeu Palin baixinho. — Os Cavaleiros Cinzentos pretendem descobrir o acesso para o Abismo.
— Quando o Portal for aberto — disse Steel —, a nossa Rainha franqueará o mundo. E deporemos esse mundo aos seus pés.
Steel passou pela porta que dava para a Estalagem da Última Casa e logo se deteve. Ali permaneceu, à distância, frio, orgulhoso, sem se mover nem trair as suas emoções, enquanto Tanis, da forma mais branda possível, comunicava a Tika e a Caramon a morte dos dois filhos mais velhos.
— Eu sabia! — foi a resposta inicial de Tika. E, enclavinhando as mãos no peito, acrescentou: — Que Paladino me valha, eu sabia! Senti aqui! Oh, santos deuses, por quê? Por quê? — prosseguiu, balançando-se na cadeira, com as mãos crispadas.
Palin cingiu os braços em volta da mãe.
— Lamento — disse, com voz entrecortada. — Lamento...
Caramon mostrou-se atordoado.
— Os meus meninos — murmurou. — Os meus meninos. — Depois, com um grande soluço, estreitou Palin contra si. — Pelo menos você está em segurança.
Tanis mantinha-se afastado, à espera de ver acalmados os primeiros acessos de dor, a fim de transmitir aos destroçados pais notícias ainda piores.. Palin, não se encontrava a salvo, corria um perigo muito maior do que eles imaginavam.
Por fim, limpando as lágrimas, Palin olhou para Tanis.
— Conte-lhes — disse baixinho.
— Contar? Contar o quê? — inquiriu Caramon com a cabeça inclinada, tenso, a tremer.
— Palin é prisioneiro dos cavaleiros das trevas — disse Tanis. — Exigem um resgate.
— Ora, é claro que pagaremos, não importa a soma! — respondeu Caramon. — Se for preciso, vendemos tudo o que possuímos...
— Caramon, não é dinheiro que eles pretendem — respondeu Tanis, procurando encontrar uma maneira fácil de comunicar a notícia e sem descobrir. — Querem que os feiticeiros abram o Portal que dá para o Abismo. Querem utilizar Palin para libertar a Rainha das Trevas.
Caramon levantou o rosto dilacerado pela dor e olhou sucessivamente para Tanis, Palin, e Steel.
— Mas... é uma farsa! — exclamou. — Devem estar brincando! Os feiticeiros nunca abrirão o Portal! Equivale a uma sentença de morte! Não vai levá-lo! Não vai!
Antes que alguém na sala pudesse detê-lo, Caramon levantou-se de um pulo da cadeira e investiu contra Steel. O peso e o ímpeto do grandalhão fizeram com que ambos fossem bater violentamente contra a parede.
— Caramon, pára! — Tanis e Palin esbracejaram para afastar Caramon do cavaleiro das trevas, pois aquele tentava pôr as mãos na garganta de Steel. — Não vai remediar nada com isso!
Steel não sacou as armas. Segurando nos braços de Caramon, tentou quebrar o abraço do grandalhão, e em seguida arremessou-o para os braços do filho e do amigo. Arquejante, esgotado e vigilante, Steel ficou à espera, na defensiva.
— Atendendo ao seu desgosto, desta vez, passa — disse com frieza. — Mas, não o farei de novo!
— Que o inferno te engula, leve a mim antes! — exigiu Caramon, desenvencilhando-se do terno abraço de Tika. — A minha vida em troca da do meu filho! Pode me manter prisioneiro até saber a resposta dos feiticeiros!
— Fala como um pai deve falar — replicou Steel —, mas decerto sabe que se trata de um pedido impossível de satisfazer. Os nossos feiticeiros conhecem o valor do sobrinho de Raistlin Majere. Previram que o próprio arquimago pudesse revelar algum interesse quanto à sorte do jovem.
— O meu irmão! — Caramon mostrou-se estupefato. — O meu irmão morreu! Que pode ele fazer?
— Pai — disse Palin em voz baixa —, preciso falar contigo...
— Caramon! Meu adorado marido! — Tika cingiu-se a ele, procurando reconfortá-lo. — Haveremos de resolver o assunto! O Tanis se encontra aqui e vai nos ajudar. Não permitirá que levem Palin de volta. Não é, Tanis?
Os seus olhos mostravam uma expressão assustada, suplicante. Tanis desejou, do fundo do coração, poder dizer-lhe o que tão desesperadamente ela queria ouvir. Não sendo possível, limitou-se a abanar a cabeça.
Tika afundou-se na cadeira, com as mãos enclavinhadas no avental, a retorcê-lo convulsivamente. Não derramou lágrimas. Ainda não chegara o momento. A ferida era profunda e sangrava muito. Não a sentia ainda, apenas um frio entorpecimento. De modo que ficou ali sentada, olhando para o chão, à espera que a dor chegasse.
— Pai! — murmurou Palin em tom insistente, puxando o pai pela manga. — Por favor! Precisamos falar!
Caramon não lhe prestou atenção.
Steel esboçou um sorriso escarninho e encolheu os ombros.
— Senhor, esperemos que ele possa fazer algo — respondeu, e o seu sorriso endureceu. — Caso contrário, perde o terceiro filho.
Arquejando, gemendo, Tika enfiou o punho cerrado na boca. Tanis encontrava-se ao lado dela, mas Dezra, que descia as escadas, afastou-o. Murmurando palavras de conforto, cingiu os braços em volta de Tika.
— Venha. Venha comigo, minha querida. Vamos lá para cima descansar.
Tika olhou para a amiga como se não a reconhecesse. Depois, cerrou os olhos, pousou a cabeça no regaço de Dezra e pôs-se a soluçar. Com os olhos marejados de lágrimas, Dezra olhou para Tanis.
— Pode comunicar ao suserano elfo que o trabalho de parto da sua senhora já quase terminou — disse-lhe. — Está com boa saúde e bem cuidada. Acho que vai correr tudo bem, com ela e com o bebê.
— O Porthios aguarda lá fora — disse Tanis. Por todos os deuses, esquecera por completo esta outra crise! — Vou lhe comunicar.
— Ele deveria se encontrar aqui, por perto! — respondeu Dezra, em tom colérico. — Que pretende ele, fugindo desta maneira?
— Dezra, foi melhor ele ter saído. Já me vi em dificuldades para convencê-lo a ficar onde está. A guerra quase estalou exatamente aqui.
Ao ouvir o elfo, Steel levou a mão ao punho da espada e mordeu o lábio.
— Guerra! — exclamou Dezra com amargura — Uma nova vida está prestes a vir a este mundo de sofrimento! Melhor seria que o bebê nascesse morto!
— Não diga isso, Dezra! — gritou Tika de repente. — Cada recém-nascido constitui a esperança de um mundo melhor! Preciso acreditar nisso! A vida dos meus filhos significou alguma coisa!
— Sim, querida. Significa. Perdoe-me. Falei à toa. Anda lá pra acima — respondeu Dezra chorando. — Eu... preciso que me ajude a assistir a Dama Alhana. Caso possa.
— Uma nova vida — murmurou Tika. — Uma parte. Outra chega. Sim, posso ajudar. Posso ajudar...
— Pai — disse Palin quando a mãe abandonou a sala. — Precisamos falar. Já!
Surpreendido com o tom de inusitada firmeza do filho, Caramon olhou em volta.
O rosto de Palin mostrava-se esgotado e com uma palidez de cera. Manchas cinzentas ensombravam-lhe os olhos.
— Eu... Desculpe, filho — murmurou Caramon, alisando o cabelo. — Eu... Nem sei bem o que estou fazendo. Deveria se deitar. Vai lá descansar...
— Irei, pai — respondeu Palin, em tom paciente e pegando-lhe no braço. — Venha comigo. Temos que conversar. Precisamos falar a sós, há problema?
Steel, a quem a pergunta era dirigida, condescendeu com um breve aceno de cabeça, dizendo:
— Mestre Mago, deu-me a palavra de honra que como não tentará fugir.
— E a manterei — retorquiu Palin com ar digno. — Por favor, pai.
— Caramon, vai com ele — insistiu Tanis. — Os teus dois outros filhos se encontram sob a guarda de Paladino. É o Palin que precisa de ti agora.
— Tanis, não compreendo! — disse Caramon, com o rosto contorcido num esgar de desgosto e de confusão. — Raistlin morreu! Que mais querem dele? Não compreendo!
Quanto a isto, Tanis tinha as suas dúvidas. Será que Raistlin morrera realmente? Ou será que os feiticeiros Vestes Cinzentas de Takhisis haviam descoberto algo? Tanis pressentia que Palin sabia mais do que aparentava.
— Preciso falar com Dalamar — murmurou Tanis quando Palin e Caramon abandonaram a sala. — Preciso falar com o Lorde Cavaleiro. Estamos em apuros... Em sérios apuros.
Mas, para já, a única pessoa com quem devia falar era com Porthios. Para lhe dizer que o filho nasceria em breve.
Há quem parta deste mundo. E há quem chegue.
Esperança?
Era algo que, na altura, parecia a Tanis impossível.
Anos atrás, Caramon construíra para Tika a mais bela casa de Consolação. A mesma era suficientemente espaçosa para acolher uma família em crescimento e, por longos anos, as paredes vibraram com as gargalhadas e as brigas dos três filhos varões dos Majere. Mais tarde vieram ao mundo duas filhas — com o exclusivo propósito de arreliarem os irmãos mais velhos, pelo menos era o que Palin afirmava com freqüência.
Nessa época, Caramon e Tika constituíam os donos e proprietários absolutos da Estalagem da Última Casa. Em tempo, os rapazes chegavam à idade adulta e partiam em aventuras. A casa situava-se próximo da estalagem. Os constantes vaivéns, a qualquer hora do dia ou da noite (Tika acordava, com frequência, com a firme convicção de que a estalagem pegara fogo e estava constantemente pedindo a Caramon que fosse verificar), faziam perder tempo e eram desgastantes. Por fim — embora o casal amasse a casa — Tika e Caramon decidiram que se tornaria mais fácil vendê-la e passarem a residir na estalagem.
Um dos quartos da velha casa passara a designar-se “O Quarto de Raistlin”. Outrora, depois do irmão gêmeo ter ingressado nos Vestes Negras e passado a viver na Torre da Feitiçaria Suprema, em Palanthas, Caramon mantivera o quarto como estava, na esperança, tênue mas ilusória, de que um dia Raistlin se capacitaria do seu erro e regressaria.
Após a morte de Raistlin, Caramon planejara converter o quarto simplesmente “noutro quarto”, mas as suas aspirações e sonhos concentraram-se de tal forma ali que, como fantasmas, se recusavam a ser desalojados. O Quarto de Raistlin assim permaneceu até o dia em que a casa foi vendida. Quando os Majere se transferiram para a estalagem, não ocorreu a ninguém criar outro “Quarto de Raistlin”. Até o dia em que, sobressaltado, Caramon ouviu as suas duas meninas referirem-se a uma das divisões — uma pequena dependência para arrumações, nos fundos — como o Quarto de Raistlin.
Tika atribuiu-o ao fato das filhas tentarem, tanto quanto possível, converter a casa nova e estranha à imagem e semelhança da que haviam deixado. Caramon concordara, mas ambos passaram a ter o hábito de designar a mesma por Quarto de Raistlin. Um mago que andava de viagem e pernoitava na estalagem, por acaso, ouviu-os e suplicou-lhes que lhe permitissem ver o quarto onde, sem dúvida, o famoso mago passara grande parte da existência.
Caramon tudo fez no sentido de dissuadir o feiticeiro do seu erro — aquela parte da estalagem nem sequer existira durante a vida de Raistlin. Mas o Veste Vermelha era obstinado e também um cliente regular e precioso (pagava em aço e não em dentes de lagarto), pelo que Caramon concordou em mostrar o quarto das arrumações ao hóspede.
O feiticeiro achou-o encantador, embora um pouco abarrotado com vassouras e a caixa de lenha. Pediu se podia deixar um anel mágico — como “penhor da sua estima”. Caramon não soube como recusar. O feiticeiro depositou o anel no alto de uma barrica de cerveja vazia e partiu.
Receando tocar no objeto arcano (Caramon vira magia suficiente para saber que podia acabar transformado num lagarto), deixou-o onde estava. Um mês depois, apareceram dois magos Vestes Brancas, que ali acorriam com o único intuito de ver o “relicário”. Ao que parece, o primeiro feiticeiro, depois de abandonar a estalagem, fora bafejado com um golpe de sorte fenomenal. O Veste Vermelha considerara o ocorrido bastante inusitado e atribuíra-o à complacência de Raistlin. Espalhada a lenda, aqueles outros dois encontravam-se ali para depositar os seus pequenos “penhores”.
A barrica de cerveja foi beneficiada com um rolo de pergaminho e uma poção. Os feiticeiros permaneceram duas noites, gastando dinheiro e conversando com Caramon, que ficava sempre agradado com as reminiscências sobre Raistlin. Passou-se um mês e apareceu uma Veste Negra, que chegou e partiu sem falar com ninguém, a não ser para inquirir a localização “do quarto”. Embora não ficasse para pernoitar, mandou vir o melhor vinho da casa e pagou em aço.
Em breve, a estalagem recebia a visita de magos vindos de todos os pontos de Ansalon. Alguns deixavam, como dádivas, objetos arcanos, outros, os seus ingredientes de encantamento para que fossem “reforçados”, voltando mais tarde para buscá-los. Estes últimos juraram que os poderes mágicos dos objetos aumentaram.
A idéia do quarto possuir “poderes” especiais, arrancava um sorriso de Tika, que a atribuía ao caráter sobrenatural típico dos feiticeiros em geral. Caramon concordara, até o dia em que, quando remexia alguns papéis velhos de Otik, o grandalhão deparara com um tosco diagrama da estalagem antiga, anterior à sua destruição pelos dragões, durante a Guerra da Lança. Ao examiná-lo, e revendo lembranças ao mesmo tempo doces e amargas, Caramon ficara estupefato (e consideravelmente abalado), ao descobrir que aquele “Quarto de Raistlin” se situava pertíssimo da lareira junto à qual o irmão costumava se sentar.
Após a descoberta (que até a Tika provocara “calafrios”, pelo menos fora o que esta afirmara), Caramon esvaziara o quarto das arrumações, retirara as vassouras e a caixa da lenha (embora não tocasse na barrica de cerveja, sobre a qual agora se viam inúmeros objetos de aspecto misterioso).
Procedera então a um minucioso inventário de todos os objetos arcanos. Nunca vendera nenhum como “recordação”, mas dera-os, com freqüência, a magos que atravessavam épocas difíceis, ou a jovens magos prestes a efetuar, na Torre da Feitiçaria Suprema, em Wayreth, o difícil e por vezes mortal Teste. Tinha a sensação dessas dádivas serem particularmente abençoadas, pois — apesar dos inúmeros defeitos — Raistlin sentira sempre uma empatia especial para com os fracos e desvalidos e de que, de onde se encontrava, o irmão continuaria a ajudá-los.
Era esse o quarto, ao Quarto de Raistlin, que Palin conduzia agora o pai.
Ao longo dos anos, o quarto sofrera alterações apreciáveis. A barrica de cerveja ainda se encontrava lá, mas também havia baús de madeira com entalhes peculiares, contendo os inúmeros anéis mágicos, broches, armas e alforjes de encantamento. Também havia uma prateleira, encostada à parede, que guardava todos os rolos de pergaminho, cuidadosamente atados com fitas brancas, vermelhas ou pretas. Outra parede encontrava-se forrada de livros de encantamentos. Os objetos arcanos mais sinistros encontravam-se ocultos num canto escuro. Uma pequena janela permitia a entrada da luz do Sol e — o que era mais importante para os magos — do clarão das luas vermelha e prateada, assim como do fulgor invisível da lua negra. Numa mesa sob a janela, havia uma taça com flores acabadas de colher. Para comodidade dos que ali afluíam para meditar ou estudar, havia, no interior da sala, uma cadeira confortável. Nenhum kender recebera permissão para se aproximar do quarto.
Caramon entrou, sem saber bem onde se encontrava e sem se importar, e instalou-se na única cadeira existente no quarto. Apesar da ferida e da exaustão, naquele momento Palin sentia-se mais forte do que o pai. O seu sofrimento terrível e debilitante começava a desvanecer-se. Talvez se devesse à influência balsâmica do quarto — que ele sempre amara. Ou talvez à voz que lhe ecoava dentro da cabeça — a voz que tão bem conhecia e que nunca ouvira em vida. Em algum lugar, sabe-se lá onde, Raistlin vivia.
— Se tenho de franquear o Abismo, a minha obrigação é encontrá-lo.
— Quê? — Caramon levantou bruscamente a cabeça e olhou para o filho de cenho carregado. — Que disse?
Palin não percebera que falara alto. Não pretendia abordar o assunto de forma tão básica, mas já que o fizera, e como se tornava óbvio que o pai sabia o que lhe ia no pensamento, Palin achou preferível continuar.
— Pai, quero pô-lo ao par disto. Engendrei um plano e tenciono concretizá-lo. Eu... não estou à espera que aprove. — Palin fez uma pausa, engoliu e prosseguiu, em tom calmo: — Mas deve saber o que pretendo fazer, para o caso de algo correr mal. Não vou à Torre de Wayreth....
— Bom menino! — exclamou Caramon, aliviado. — Há de nos ocorrer qualquer coisa. Se a tua segurança depender disso, eu mesmo lutarei contra Takhisis. Não permitirei que esses cavaleiros demoníacos te levem...
— Pai, por favor! — interrompeu-o bruscamente Palin. — Não vou à Torre de Wayreth porque pretendo ir à Torre da Feitiçaria Suprema, em Palanthas. Tenciono entrar no Abismo. Vou tentar encontrar o meu tio.
Caramon ficou boquiaberto, olhando com estupefação para o filho.
— Mas, filho, Raistlin não se encontra no Abismo! Paladino aceitou o sacrifício dele! O teu tio encontrou a paz no eterno repouso.
— Pai, como pode assegurar isso? A última vez que o viu, encontrava-se dentro do Abismo.
— Mas eu o vi, Palin! O vi dormindo, como costumava fazer quando éramos crianças.
— Pai, foi um sonho, você mesmo disse. Sabe o que os bardos contam: que Raistlin é mantido prisioneiro no Abismo, e o seu corpo, atormentado por Takhisis, todos os dias é dilacerado e sangra. Que todos os dias agoniza até à morte, só para ressuscitar e...
Caramon já não se sentia desconcertado. Em geral, levava tempo a refletir sobre um problema, mas para esta questão só podia haver uma resposta. Levantou-se.
— Eu sei o que os bardos contam — disse em tom soturno. — Sei que os bardos afirmam que Sturm Montante Luzente viajou até à Lua Vermelha! Tolices, só tolices! O Raistlin morreu! Morreu e descansa em paz todos estes anos! Eu o proíbo de ir! Vai ficar aqui e negociaremos com Lorde Ariakan. Tanis nos ajudará...
Palin sentiu na mão o calor do Bastão de Magras, um calor que o penetrou como se fosse vinho quente, encorpado, e que lhe deu ânimo.
— Quer acreditar que Raistlin morreu, pai! Pensar de outro modo significaria que o abandonou.
O golpe fora desferido, o arco disparado, a seta lançada, causando uma ferida pavorosa.
Caramon assumiu uma palidez cadavérica, igual à dos dois filhos no túmulo. Começou a respirar depressa e aos haustos. Abriu e fechou a boca, sem proferir uma palavra. Espasmos sacudiram-lhe o corpanzil.
Palin mordeu o lábio, apressando-se a procurar apoio no bastão. Sentia-se horrorizado com o que fizera e dissera. Não fora essa a sua intenção. As palavras tinham-lhe jorrado da boca antes que pudesse detê-las. Agora que as dissera, era tão impossível a Palin apagar o sofrimento infligido como suster a vida que se esvaíra dos corpos dos irmãos.
— Não fala a sério — disse Caramon em voz baixa e trêmula.
— Não, pai, não falo. Desculpe. Sei que arriscou tudo para seguir Raistlin. Sei que o sonho te trouxe conforto e que acredita sinceramente nele. Mas, pai — acrescentou —, é possível que esteja errado...
É possível que esteja errado...
As palavras ecoaram-lhe na cabeça, adquiriram vida e contornos ao ponto de quase imaginar que as via, ardendo, diante de si, diante do pai.
Caramon engoliu em seco e abanou a cabeça, parecendo que tentava desesperadamente encontrar argumentos.
Por causa disto, vai tentar falar comigo. Não posso permitir, pensou Palin. Possivelmente iria, com facilidade, me dissuadir. Recordo como foi, em tempos, na torre. E não passava de ilusão, era só o meu Teste. Mas o medo, o terror eram genuínos.
— Pai, já refleti no assunto. Steel Montante Luzente jurou me acompanhar. Me levará até à torre. Uma vez ali, falarei com Dalamar, vou convencê-lo a permitir que tente passar pelo guardião. Se não deixar — a voz de Palin endureceu —, tentarei pelos meus próprios meios. O espectro já me consentiu a passagem uma vez...
— Foi uma ilusão! — exclamou Caramon, agora zangado. — Os feiticeiros é que engendraram tudo! Sabe disso! Eles te contaram!
— Pai, será que engendraram isto? — Palin estendeu bruscamente o Bastão de Magius. — Trata-se de uma ilusão? Ou será o bastão do meu tio?
Pouco à vontade, Caramon olhou de relance para o bastão e não respondeu.
— O bastão encontrava-se trancado no laboratório do meu tio, juntamente com o Portal para o Abismo. Nem sequer o próprio Dalamar podia entrar naquela sala. No entanto, o Bastão de Magius saiu de lá não se sabe como, e veio parar em minhas mãos. Pai, vou entrar naquela sala. Vou encontrar o meu tio. Ele me ensinará tudo o que sabe. Nunca mais haverá pessoas morrendo por eu me encontrar muito fraco para salvá-las!
— Vai tentar abrir o Portal sozinho? E onde se encontra o verdadeiro sacerdote para te ajudar? Já se esqueceu? O Portal só pode ser franqueado por um mago investido de grandes poderes, que se faça acompanhar por um verdadeiro sacerdote. Foi por isso que o teu tio precisou da Dama Crysania...
— Pai, eu não pretendo abrir o Portal — respondeu Palin em voz baixa. — Não é por este lado que será aberto.
— Raistlin! — exclamou Caramon. — Está à espera que Raistlin o abra para você! Mas, isso é uma loucura! — Abanou a cabeça. — Os cavaleiros das trevas impuseram um resgate impossível de ser pago. Não lhes deve nada! Não se preocupe — acrescentou, em tom soturno —, eu e Tanis negociaremos com o Senhor Montante Luzente.
— Pai, dei-lhe a minha palavra de honra que não fugiria — replicou Palin, com azedume. — Vai me obrigar a quebrá-la, você, que sempre me ensinou a honrá-la?
Caramon olhou firmemente para o filho, com as lágrimas a perolar-lhe as pestanas.
— Se acha esperto, não acha, Palin? Encurralou-me, utilizou as minhas próprias palavras contra mim. O teu tio costumava fazer isso. Nisso, era bom. Era bom para impor a sua vontade, mesmo que para isso tivesse que magoar. Pois então vá. Faça o que pretende. Não posso detê-lo, tal como não pude deter a ele.
Dito isto, Caramon levantou-se e, com ar digno, passou pelo filho e abandonou o quarto.
Palin permaneceu sentado, sentindo-se gelado e abalado. Claro que o pai tinha razão. Recorrera, com frequência, à vivacidade do seu espírito e ao seu discurso fluente para traçar círculos em volta do raciocínio mais lento do pai e dos irmãos, tal e qual um cão mordiscando um urso acorrentado. E acabavam sempre desistindo. Fora após um desses atos de prestidigitação oratória que os irmãos lhe permitiram — muito a contragosto — cavalgar com eles até Kalaman. Suplicara, argumentara, manipulara, até desistirem. E agora, por terem se preocupado mais em protegê-lo do que em concentrar-se na luta, ambos se encontravam mortos.
Sentiu a ferida latejar. Palin olhou fixamente para a cadeira onde o pai se sentara, e as recordações avassalaram-no.
Fugir. Tratava-se da única coisa sensata a fazer.
Seria uma atitude sensata fugir do inimigo que se aproximava, e nos escassos momentos de agitação em que tiveram tempo para tal, o pequeno bando de cavaleiros e o jovem mago discutiram a hipótese.
Os navios de proa negra perfilavam-se no mar. Embarcações cheias de homens dirigiam-se rapidamente para a praia. As asas de inúmeros dragões azuis obscureciam a luz do Sol. Na praia, onde se reuniram para apreciar o dia e a beleza marítima, o pequeno bando de Cavaleiros da Solamnia, encurralados no descampado, encontravam-se em grande desvantagem numérica.
— Se fugirmos, nos separamos e dispersamos — dissera-lhes o comandante, gritando para que o fragor da rebentação não abafasse as palavras.
— E para onde poderíamos ir sem que os dragões nos seguissem? — perguntara Tanin. — Iriam nos perseguir, apanhar um a um, e zombariam para sempre da covardia dos Cavaleiros da Solamnia! Pois eu digo que devemos ficar e lutar.
— Fiquemos — dissera Palin em tom decidido.
— Não, Palin, você não — interviera Tanin, virando-se para ele. — A tua carga é leve, o teu cavalo veloz. Não é lugar para você. Volte a Kalaman e avise-os do que se passa.
— O quê? Ir embora e permitir que os meus dois irmão lutem sozinhos? — exclamara Palin, ultrajado. — Acham que eu faria uma coisa dessas?
Tanin e Sturm entreolharam-se. Sturm abanara a cabeça, evitara-lhe o olhar e examinara o mar, coalhado de embarcações pululantes de homens. Restava-lhes pouco tempo. Aproximando-se de Palin, Tanin apertara-lhe firmemente o braço.
— Eu e Sturm conhecíamos os riscos que corríamos quando fizemos o juramento de cavaleiros. Mas você não, Palin...
— Não vou! — exclamara Palin, com voz soturna. — Sempre que há confusão, me manda para casa! Pois desta vez não será assim!
Com o rosto afogueado pela cólera, Tanin inclinara-se na sela.
— Raios o partam, Palin! — exclamara. — Não se trata de nenhuma luta contra os rufiões da vizinhança! Vamos morrer! E como acha que a mãe e o pai se sentirão se tiverem de enterrar os três filhos? Em especial você, que é o mais novo?
Por um momento, Palin fora incapaz de proferir palavra. Perpassara-lhe o espírito uma imagem em que se via virando as costas e fugindo, obrigado a dizer, com vergonha, aos pais: “Não sei o que aconteceu aos meus irmãos...”
Palin levantara a cabeça.
— Tanin, você me deixaria para trás? — perguntara.
— Não, mas... — Tanin tentara argumentar. Palin prosseguira:
— Por ser feiticeiro, não possuo vínculos de honra? Também fazemos juramentos que nos são peculiares. Pela magia e por Solinari! Ficarei e lutarei ao seu lado contra esse demônio, mesmo às custas da própria vida!
Sturm esboçara um sorriso ambíguo.
— Ele te pegou, Tanin, não há nada que possa fazer — observou.
Tanin hesitara. Palin encontrava-se sob sua responsabilidade, pelo menos assim achava. Depois, estendera a mão de súbito.
— Muito bem, meus irmãos — dissera, abarcando Sturm e Palin com o olhar. — Hoje lutaremos por Paladino e — esboçara um leve sorriso —, por Solinari.
Os três irmãos apertaram as mãos. Em seguida separaram-se, para se juntarem aos outros cavaleiros, que se desdobravam em linha, ao longo da praia.
Era tudo o que Palin recordava com nitidez. A batalha fora breve, dura, amarga. Soltando guinchos desvairados, os bárbaros pintados de azul saltaram das embarcações e correram para a costa, de boca escancarada, como que a sorver o sangue do inimigo, com os olhos a reluzir de lubricidade beligerante. Investiram contra os cavaleiros, qual onda gigantesca, guerreando com uma ferocidade devastadora, deliciando-se na matança.
Mais disciplinados, melhores combatentes, os cavaleiros aguentaram o primeiro surto de atacantes. Uma das bolas de fogo, nascidas da magia de Palin, fora explodir justamente no meio dos bárbaros, dilacerando-lhes a carne e deixando um rasto de cadáveres carbonizados e retorcidos.
Mas sucedera-se uma segunda onda e depois uma terceira, os homens calcavam os corpos dos camaradas a fim de chegar até os cavaleiros que os haviam desbaratado. Palin lembrou-se de ver os irmãos cerrarem fileiras à sua frente, na tentativa de protegê-lo — ou pelo menos julgou recordar-se. Nessa altura, algo lhe batera na cabeça — possivelmente uma lança arremessada, que um dos irmãos conseguira, em parte, desviar.
Foi a última vez que os viu com vida.
Quando Palin recuperara os sentidos, a batalha chegara ao fim. Dois cavaleiros das trevas encontravam-se postados vigiando-o. Viera-lhe o desejo de perguntar pelos outros, mas contivera-se, receando conhecer a verdade.
Fora então que, ao avistar Steel, Palin soubera...
Suspirando, Palin levantou-se assomando à porta que dava para o Quarto de Raistlin, espreitou para o corredor e para as escadas que desembocavam na sala comum, agora deserta. Lá embaixo, Steel encontrava-se sozinho, sentado numa cadeira, numa postura rígida, renitente em baixar a guarda, em adormecer, embora só os deuses soubessem o quanto estava precisando.
Olhando fixamente para a sala comum, Palin sentiu saudades dos irmãos, das suas gargalhadas, do quanto o arreliavam e distraíam. Daria todas as riquezas de Ansalon para poder escutar mais um dos sermões de “irmão mais velho” de Tanin, para ouvir as gargalhadas ruidosas de Sturm. Sentiu saudades das irmãzinhas, que o arreliavam até deixá-lo maluco. Devido à chegada dos elfos e à possibilidade de confusão, Caramon e Tika tinham mandado as meninas para junto de Lua Dourada e Vento do Rio, os chefes tribais de Queshu. Contudo, sentia-se verdadeiramente grato por Laura e Dezra, as meninas, não se encontrarem ali para ver os irmãos mais velhos enterrados no solo. Para desgraças, já bastava quando regressassem para casa e deparassem com os túmulos. Esse momento iria constituir o fim da sua infância descuidada.
Tanis Meio Elfo subiu as escadas e deteve-se no patamar.
— Caramon me contou que decidiu partir — disse. Palin aquiesceu com a cabeça.
— Onde está o pai? — perguntou.
— Com a tua mãe. Palin, não vá ao encontro dele — aconselhou-o gentilmente Tanis. — Deixe que elabore a situação à sua maneira, que o faça no seu próprio ritmo.
— Não pretendia... — Palin calou-se, engoliu em seco e prosseguiu: — Tanis, preciso fazer isto. O meu pai não compreende. Ninguém compreende. É a voz dele. Ouço a voz dele...
Tanis olhou para Palin com ar preocupado.
— Fica para as exéquias fúnebres?
— É claro — respondeu Palin. — Mas partimos em seguida.
— Antes de ir onde quer que seja, tem que repousar, comer e beber. Você e o Steel Montante Luzente — disse Tanis. — Se eu conseguir persuadi-lo de que não vai ser envenenado nem apunhalado durante o sono. Parece tanto com o pai! — acrescentou, acompanhando Palin até à sala comum. — Quantas vezes vi Sturm Montante Luzente, sentado como ele está, morrendo de cansaço, mas muito orgulhoso para admitir!
À aproximação dos dois, Steel levantou-se. Se o fez por respeito para com Tanis, por cansaço ou por ambas as coisas, não se sabe. O seu rosto, duro e implacável, não revelava o mínimo indício dos pensamentos ou sentimentos que o agitavam.
— É tempo de partirmos — disse, olhando para Palin.
— Sente-se — respondeu este. — Não parto enquanto os meus irmãos não receberem um enterro condigno. Há comida e bebida. A carne está fria, mas o mesmo acontece com a cerveja. Vou arranjar-lhe um quarto. Pode dormir aqui esta noite.
O rosto de Steel ensombrou-se.
— Não preciso de...
— Precisa, sim! — replicou Palin. — Precisa descansar antes de prosseguirmos. De qualquer maneira, será mais seguro viajarmos até Palanthas depois do anoitecer.
— Palanthas! — Steel franziu o cenho. — Por que havíamos de ir até Palanthas... um baluarte dos Cavaleiros da Solamnia? A menos que se trate de alguma cilada...
— Não é cilada nenhuma — respondeu Palin, afundando-se pesadamente numa cadeira. — Vamos a Palanthas porque é lá que se encontra o Portal, na Torre da Feitiçaria Suprema.
— O que pretendemos é que os feiticeiros concordem em abrir o Portal. Isso contradiz as ordens que recebi — replicou Steel.
— Sou eu quem abrirá o Portal — disse Palin. — Com a ajuda do meu tio — acrescentou, ao ver a declarada expressão de desconfiança de Steel.
Este não deu resposta e examinou Palin, parecendo que ponderava o assunto.
— A viagem será perigosa — prosseguiu Palin. — Tenciono não só abrir o Portal como também transpô-lo, entrar no Abismo. Vou ver se encontro meu tio. Me acompanhará ou não, a escolha é tua. Acho — acrescentou em tom desenvolto — que possivelmente te agradará a hipótese de falar pessoalmente com a tua Rainha.
Um fulgor súbito fez reluzir os olhos negros de Steel. Palin dissera algo que trespassara a armadura fria e lhe atingira a carne. A resposta que deu foi caracteristicamente sóbria e lacônica.
— Muito bem. Iremos a Palanthas.
Palin soltou um suspiro. Vencera duas rijas batalhas. Vitorioso, já podia permitir-se sucumbir ao sono. Muito exausto para ir para o quarto, pousou a cabeça na mesa. E no exato momento em que se deixava embalar pelas ondas envolventes do sono, ouviu uma voz que lhe murmurava:
Muito bem, jovem. Muito bem! Fico aguardando a tua vinda.
— Aqui para nós, esta foi a refeição mais maravilhosa que comi em toda a minha vida! — observou Tasslehoff Pés Ligeiros. — Sinto-me absolutamente empanturrado!
Reclinado na cadeira, com os pés apoiados na mesa, pôs-se a examinar as colheres de prata. Estas eram extraordinárias, e em cada uma viam-se desenhos intrincados que Tas supôs serem elfos.
— Talvez as iniciais de Dalamar — disse para consigo em tom sonolento. Na verdade, comera muito, mas tudo tinha um sabor tão bom! Os seus dedos acariciaram com ternura a colher. Tencionava voltar a colocá-la na mesa, mas, sem que desse conta, os mesmos dedos levaram a colher ao bolso da camisa e ali a depositaram. Tas bocejou. Uma verdadeira delícia, a refeição!
Era evidente que Usha sentia o mesmo. Encontrava-se estirada numa cadeira, com as pernas esticadas, as mãos dobradas sobre o estômago, a cabeça inclinada para o lado e os olhos semicerrados.
Sentia-se quente, em segurança e maravilhosamente saciada.
— Acho que nunca provei nada assim! — murmurou, soltando um bocejo.
— Eu também não — respondeu Tas, com os olhos piscando e esforçando-se por se manter acordado. O penacho fazia-o parecer-se muito com uma coruja empalhada.
Quando Dalamar e Jenna entraram na sala, Tas e Usha, mergulhados num torpor ligeiramente ébrio e empanturrado, saudaram-nos com um sorriso.
Os feiticeiros trocaram um olhar cúmplice. O elfo das trevas efetuou uma rápida inspeção na sala, registrando o conteúdo.
— Só falta uma colher — observou. — E o kender ficou aqui sozinho por mais de uma hora. De certo modo, podemos considerar um recorde. — Inclinando-se e retirou a colher do bolso de Tas.
— Encontrei-a no chão — disse Tas que, sem na realidade saber o que fazia, começou, com voz sonolenta, a recitar uma litania completa, fazendo a apologia da sua pessoa enquanto kender. — Por acaso veio parar no meu bolso. Tem certeza que é sua? Pensei que já não a queria. Como saíu sem mais nem menos... Ia lavá-la e devolvê-la.
— Obrigado — respondeu Dalamar, repondo a colher na mesa.
— De nada — retorquiu Tas, com um sorriso e fechando os olhos. Dalamar virou-se para Usha, que sorria com ar apatetado e lhe acenou com a mão.
— Que grande refeição! — observou ela.
— Obrigado. Ouvi dizer que tem uma carta para mim — respondeu Dalamar.
— Pois é. Está aqui. Deve estar aqui. — Usha introduziu a mão num dos bolsos das calças de seda. Retirando o rolo de pergaminho, agitou-o no ar, com uma expressão jovial.
— Meu amor, o que colocou na cidra? — sussurrou Jenna a Dalamar. Pegando no rolo, examinou-o cuidadosamente.
— É isto, filha? Tem certeza?
— Não sou tua filha — respondeu Usha, zangada. — Além de não ser minha mãe, é pouco mais velha do que eu. Portanto, deixe de pose, minha menina!
— E é filha de quem? — inquiriu Dalamar em tom casual, aceitando a carta.
Não a abriu logo e ficou olhando para Usha com ar pensativo, procurando detectar alguma semelhança entre ela e o seu Shalafi — um homem que o elfo admirara, amara, receara e odiara.
Usha fixou-o, com as pálpebras semicerradas.
— Acha que sou filha de quem? — inquiriu.
— Não sei — respondeu Dalamar, instalando-se numa cadeira próxima da de Usha. — Fale-me dos seus pais.
— Vivíamos nas Planícies do Pó — começou Usha.
— Você não — interrompeu-a Dalamar, num tom contundente, que fustigou Usha como se fosse um chicote. — Não minta, garota!
A jovem titubeou, endireitou-se e olhou-o circunspecta.
— Não estou mentindo...
— Está sim. Estes objetos mágicos — e Dalamar atirou o alforje para o colo de Usha —, são de confecção Irda. Reconheço-os! — Segurando na carta, acrescentou: — Sem dúvida que contém a verdade...
— Não, não contém — replicou Usha. A cabeça começava a latejar, tinha a língua seca e sentia-se enjoada e confusa. Começava a não gostar daquele lugar nem do mago de vestes negras. Já cumprira a sua missão. Era hora de partir. — Não passa de uma história a respeito de uma pedra preciosa. Não sei porque Prot a considerou importante. — Pegando nos alforjes, algo titubeante, levantou-se. — E agora, já entreguei a carta e tenho que partir. Obrigada pela refeição...
Calou-se ao sentir a mão de Jenna no ombro.
— Não há saída — disse Dalamar, batendo com o rolo de pergaminho nos lábios —, a menos que seja eu a facultá-la. Usha, sente-se, por favor. Por uns tempos, irá permanecer aqui como convidada. Você e o kender. Isso mesmo, assim é melhor. Agora — prosseguiu num tom agradável, perigoso —, fale-me dos seus pais.
— Não sei nada — replicou Usha alarmada, circunspecta. — De verdade. Era órfã. Os Irdas ficaram comigo e me criaram desde bebê.
Jenna sentou-se no braço da cadeira de Dalamar.
— Devem ter contado algo mais.
— Não contaram — esquivou-se Usha. — Mas, consegui descobrir umas coisas sozinha. Já ouviram falar do Valum?
— Valin — corrigiu-a Tasslehoff. Este debatia-se entre a curiosidade e a vontade de dormir. Bocejando, beliscou-se para se manter acordado. — A palavra é Valin...
— Eu sei — replicou Usha, lançando ao kender um olhar rápido e sinistro. Sorrindo com candura, virou-se para Dalamar: — Valin, é claro. Deve ser da cidra, que me faz pronunciar mal as palavras.
Dalamar não respondeu e apertou a mão de Jenna quando esta se preparava para falar.
— Ora bem — prosseguiu Usha —, uma noite, quando eu já devia estar deitada, ouvi alguém entrar na nossa casa. Os Irdas quase nunca têm companhia, de modo que desci da cama para ver quem era. O visitante era um homem a quem os Irdas chamavam de Juiz. Ele e o Prot estavam falando a meu respeito! É claro que me pus a escutar.
— Conversaram sobre muitas coisas que eu não entendi... a respeito do Valin e da minha mãe não ser Irda, que deixara o seu povo para percorrer o mundo. Que conhecera um jovem fazedor de magia numa taberna existente numa floresta encantada. Que nessa taberna fora assediada por alguns rufiões e que o mago e o irmão mais velho deste...
— Irmão gêmeo — interveio Tasslehoff, mas as palavras perderam-se num desmesurado bocejo.
— ...e o mago olhou para a cara da minha mãe e pensou que era a mulher mais linda que já conhecera na vida. Então, ela olhou para ele e entre os dois aconteceu o Valin e...
— Explique-me o que é o Valin — pediu Dalamar calmamente. Usha franziu o cenho.
— Disse que sabia do que se tratava.
— Não — protestou Dalamar em tom ameno. — Você é que afirmou que eu sabia do que se tratava.
— Eu sei o que é! — exclamou Tas, endireitando-se na cadeira e agitando a mão no ar. — Deixem-me ser eu a dizer!
— Obrigado, Pés Ligeiros — disse Dalamar com frieza. — Mas prefiro ouvir a versão de Usha.
— Bom... O Valin é... uma coisa que acontece... entre um homem e uma mulher — começou Usha, com o rosto afogueado. — Faz... hum... com que se juntem. Acho que é isso. — Encolheu de novo os ombros. — O Prot não me contou grande coisa a respeito disso, a não ser que nunca irá acontecer comigo.
— E porque não? — inquiriu Dalamar, de mansinho.
— Porque em parte sou humana — respondeu Usha.
— Ah sim? E quem é o teu pai?
— O jovem fazedor de magia da história — replicou Usha com desenvoltura. — Chama-se Raistlin. Raistlin Majere.
— Bem que eu disse — interveio Tasslehoff.
Dalamar franziu os lábios e tamborilou a ponta do rolo neles. Em silêncio, fitou Usha por tanto tempo que esta começou a sentir-se cada vez mais nervosa e tentou esquivar-se ao jugo daqueles olhos insondáveis. Por fim, o elfo das trevas levantou-se com brusquidão e encaminhou-se para a mesa. Usha deu um suspiro de alívio, como se a libertassem da prisão de novo.
— Este vinho é muito bom — observou Dalamar, pegando na garrafa — Devia experimentar. Dama Jenna, ajuda-me a servir os nossos convidados?
— Que temos? — inquiriu Jenna em voz baixa. — De que se trata?
Dalamar encheu os copos de cristal com o vinho dourado.
— Não acredito nela — respondeu em surdina. — Está mentindo.
— Que disse? — perguntou Tasslehoff com voz estridente, intrometendo a cabeça entre os dois. — Não ouvi o que disse!
Irritada, Jenna enfiou a mão numa bolsa que trazia à cintura, retirou um punhado de areia e arremessou-o na cara do kender.
— Drowshi! — ordenou.
— Atchim! — Tas soltou um espirro e, quase de imediato, um suspiro de contentamento. Inclinando-se sobre a mesa, adormeceu depressa.
— Na história dela. Não acredito — repetiu Dalamar. — Obteve-a do kender. Foi um erro deixá-los sozinhos.
— Mas, os olhos dourados...
— Possivelmente, todos os Irdas nascem com os olhos dourados — replicou Dalamar. — Como podemos saber? Nunca vi nenhum. E você?
— Querido, não seja sarcástico! — replicou Jenna com vivacidade. — É claro que nunca vi nenhum! Ninguém em Ansalon viu! Que diz a carta?
Mal humorado, Dalamar retirou a fita preta que prendia o rolo, desdobrou-o e leu-o às pressas.
— Parece ser a Criação do Mundo — respondeu. — Não, minha querida, não é provável que aqui encontremos a resposta.
Pousou a carta na mesa onde Tasslehoff cochilava, ressonando baixinho. Havia grãos de areia presos no seu penacho grisalho. Dalamar sacudiu a areia da toalha de renda.
— Contudo, talvez haja uma forma de apurarmos a verdade — observou.
— Veja se ela possui o talento — sugeriu Jenna, adivinhando-lhe os pensamentos. Depois, pegou a carta e começou a lê-la com mais cuidado. — Enquanto faz isso, vou verificar melhor o teor da missiva. Para os Irdas a mandarem, é porque contém algo importante.
Dalamar virou-se para Usha, que agora se encontrava encolhida na cadeira, com a cabeça apoiada no braço, quase adormecida. Dalamar abanou-a pelo ombro.
— Hein? Que quer? Deixe-me em paz! — Usha remexeu-se e tentou esconder o rosto nas almofadas.
Dalamar apertou com mais força.
— Ai! — Usha soergueu-se e fitou-o. — Está me machucando!
Dalamar soltou-a lentamente.
— Se é filha de Raistlin Majere...
— Claro que sou! — replicou Usha com arrogante dignidade.
— ...então deve ter herdado dele alguns conhecimentos da arte.
— Qual arte? — retorquiu Usha, desconfiada.
— A arte arcana. A magia. Raistlin foi um dos feiticeiros mais poderosos que já existiu em Ansalon. Em geral, o talento para a magia é hereditário. Palin Majere, o sobrinho de Raistlin, herdou grande parte da perícia do tio. Portanto, a filha de Raistlin decerto possui poderes apreciáveis...
— Oh, possuo sim! — respondeu Usha, reclinando-se com indolência nas almofadas.
— Então, não vai se importar se te pedir que demonstre o teu talento perante mim e a Dama Jenna.
— Faria — respondeu Usha —, mas não me é permitido. Os Irdas avisaram-me, entende? Sou muito poderosa. — E, olhando em redor, acrescentou: — Detestaria destruir esta linda sala.
— Corro o risco — respondeu Dalamar em tom ríspido.
— Oh, não! É impossível — respondeu Usha com ar inocente, abrindo muito os olhos. — Prot me avisou para nunca...
— Lunitari seja louvada! — exclamou Jenna, arquejando ruidosamente. — Abençoadas sejam as deusas da Lua Vermelha! Se isto for verdade...
Dalamar virou-se.
— Se for verdade o quê? — inquiriu. Jenna estendeu-lhe a carta, dizendo:
— Meu amor, não prestou atenção. Vá ao final da carta.
Dalamar leu rapidamente e ergueu a cabeça.
— Os Irdas têm a Pedra Preciosa Cinzenta — acrescentou Jenna.
— Afirmam que... — Dalamar parecia absorto. — O que você sabe sobre isto, garota? — perguntou, virando-se para Usha.
Já completamente desperta, a jovem olhou-o com ar de perplexidade.
— Sei o quê? — inquiriu.
Dalamar parecia uma serpente, a ziguezaguear sob o Sol quente e brilhante. A voz doce, com a pronúncia sibilante dos elfos, tinha entoações suaves e enganadoras. Hipnotizava a presa com modos elegantes e a sua beleza delicada e, quando esta se encontrava completamente subjugada, devorava-a.
— Não se faça de tola! — Desenrolando-se, deslizou na direção dela. — O que sabe a respeito da Pedra Preciosa Cinzenta? E, minha menina, desta vez, acabaram-se as mentiras...
Usha engoliu em seco e passou a língua pelos lábios.
— Eu não estava mentindo — conseguiu dizer num fio de voz. — E não sei nada a respeito da Pedra Preciosa Cinzenta. Só a vi uma vez...
— Que aspecto tinha?
— Era uma gema... cinzenta — começou.
As sobrancelhas hirsutas de Dalamar uniram-se, em sinal de desagrado. Os olhos amendoados faiscaram.
Usha voltou a engolir em seco e prosseguiu atabalhoadamente:
— Tem muitas faces, nem consegui contá-las. E lançava uma espécie de clarão cinzento e repugnante. Não gostei de olhar para ela. Fez me sentir esquisita por dentro, como se desejasse fugir e fazer coisas malucas sem sentido nenhum. Prot disse ser assim que a pedra influenciava os humanos.
— E os Irdas tencionavam quebrar a pedra? — perguntou Dalamar com voz tensa.
— Sim — respondeu Usha, encolhendo-se, para evitar a intensidade pavorosa do olhar do elfo e voltando a refugiar-se precipitadamente nas almofadas da cadeira. — Por isso me mandaram embora. O Juiz disse que, por eu ser humana... ter uma parte humana — emendou —, ia interferir com a magia.
— Que acontece se racharem a Pedra Preciosa Cinzenta? — perguntou Jenna. — Que conseqüências teria?
— Não sei e duvido que alguém saiba, mesmo os próprios deuses. — Dalamar fixou o seu olhar devorador em Usha. — Sabe o que acontece? Antes de partir, viu alguma coisa?
— Nada — respondeu Usha. — A não ser... um clarão vermelho no céu. Parecia um incêndio. Acho... acho que foi a magia...
Dalamar não disse mais nada e ignorou Usha. Esta tomou a precaução de manter a boca fechada e enterrou-se nas almofadas, na esperança de passar despercebida. O elfo das trevas percorreu a sala várias vezes. Jenna observava-o, preocupada e ansiosa. Tasslehoff, mergulhado num sono agitado, retorcia-se e arquejava. Por fim, Dalamar tomou uma decisão.
— Vou reunir o Conclave. Hoje mesmo. Temos que partir imediatamente para Wayreth.
— Que está pensando?
— Não me agrada — respondeu Dalamar em tom agourento. — O tempo esquisito, o calor pavoroso, a seca inusitada e outras ocorrências incomuns. Pode ser a resposta.
— E o que vai fazer com a garota e o kender? Os levamos conosco?
— Não. Ela nos disse tudo o que sabia. Se chegar aos ouvidos do Conclave que a filha de Raistlin anda à solta em Ansalon, tal provocará um motim. De nada serviria. É melhor mantê-la aqui, quietinha e em segurança. O kender também. É amigo de Caramon Majere e poderia levar-lhe as notícias.
Ele e Jenna dirigiram-se para a porta.
— Esperem! — gritou Usha, levantando-se de um pulo. — Não podem me deixar aqui! Recuso-me a ficar! Vou gritar até alguém me ouvir...
Jenna virou-se e arremessou um punhado de areia para cima da jovem. Pestanejando, Usha esfregou os olhos e, cambaleando, sacudiu a cabeça.
— Recuso-me a ficar, vai ver...
— Está resistindo à magia — observou Jenna. — Interessante. Pergunto-me se o faz por si ou se lhe lançaram algum encantamento...
— Agora não há tempo para verificar.
Dalamar estalou os dedos e, balançando-se nos pés, Usha tombou no meio das almofadas, cerrando os olhos.
Havia uma porta que conduzia a uma escadaria em espiral que circundavam as paredes interiores da Torre da Feitiçaria Suprema. Para cima, os estreitos degraus de pedra iam desembocar no laboratório, que não era visitado por ninguém — nem sequer pelo Senhor da Torre. Para baixo, levavam aos quartos onde os aprendizes viviam e estudavam e, mais além, à Câmara dos Que Vêem. Fechando a porta, Dalamar trancou-a com uma chave de prata.
— Isso não deterá o kender — observou Jenna. — E é bem possível que o encantamento do sono se dissipe antes do nosso regresso.
— A fechadura é capaz de não detê-lo, mas isto sim. — Dalamar proferiu umas palavras numa linguagem fria e viperina.
Por ordem de Dalamar materializaram-se, nas trevas do interior da Torre, uma escuridão que nunca conhecera sequer sonhos de luz, dois olhos separados de qualquer corpo.
O espectro aproximou-se de Dalamar.
— Me chamou, Mestre. O que me ordena?
— Fique de vigia nesta sala. Não permita que ninguém entre ou saia. Se os dois que estão lá dentro tentarem, não lhes faças mal. Limite-se a impedir que escapem.
— Isso dificulta mais a minha tarefa — respondeu o espectro —, mas obedecerei às suas ordens, Mestre.
Dalamar começou a pronunciar as palavras de encantamento que os transportariam pelas estradas da magia até à longínqua Torre da Feitiçaria Suprema, em Wayreth. Jenna não foi logo junto dele. Ficou olhando para a porta, para o espectro e a sua vigilância incessante.
Dalamar interrompeu o encantamento.
— Apresse-se — disse, enfadado. — Não temos tempo a perder!
— E se ela falou a verdade? — perguntou Jenna em voz doce. — Pode ter poder suficiente para escapar do próprio espectro.
— Nem sequer teve poder para evitar ser apanhada roubando comida! — replicou Dalamar, irritado. — Ou é de uma perspicácia excepcional, ou uma tolinha mentirosa.
— Por que haveria de mentir? Que lucraria em fazer-se passar por feiticeira? Com certeza sabe que descobriríamos a verdade.
— Mas não descobrimos, não é? — retorquiu Dalamar. — Os Irdas são espertos, e a magia deles poderosa. Sabe-se lá o que têm em mente? Talvez a enviaram como espiã, sabendo que a única maneira de se infiltrar seria fingindo ser o que não é. Na minha opinião, ela mente e tem tantos poderes mágicos como o kender. No entanto, se não confia no meu discernimento...
— Confio, meu amor, confio — respondeu Jenna, apressando-se a juntar-se a ele. Depois, inclinou a cabeça para trás, à espera que ele a beijasse. — São outras partes de ti que não me inspiram confiança.
Amavelmente, Dalamar beijou-a, embora fosse óbvio que a sua mente estava ocupada com outros assuntos mais urgentes. — Minha querida, sou sempre fiel. À minha maneira.
— Sim — respondeu Jenna com um leve suspiro. — À sua maneira. Eu sei.
Entrelaçando as mãos, pronunciaram juntos o encantamento e penetraram nas trevas.
Trancados na sala da Torre, Usha e Tasslehoff, sob o efeito do encantamento, cochilavam. Usha era perseguida por sonhos tingidos de fogo, sonhos que a assustavam, mas não conseguia fugir deles e acordar.
Tasslehoff deixava-se embalar por sonhos de kender, querendo isto dizer que, embora continuasse adormecido, as suas mãos não paravam. Os dedos cerraram-se em volta do cabo da colher de prata e, ainda dormindo, introduziu-a no alforje.
— Deve tê-la deixado cair — murmurou.
A manhã despontara em Kalaman, uma efervescente cidade costeira do litoral nortenho, a leste de Palanthas. Kalaman não era tão grande nem tão requintada como Palanthas, mas — como os Kalamanitas gostavam de se vangloriar — possuía mais senso comum. Isso se devia, sem dúvida, à florescente classe média, que crescera em poder e riqueza desde os dias sombrios da Guerra da Lança. Palanthas era uma cidade de fidalgos, damas, cavaleiros e magos. Kalaman era uma cidade de homens de negócios e artesãos. Em Kalaman imperava o Grêmio, dirigido por um Governador eleito pelos respectivos membros.
Qualquer homem, mulher, elfo, humano, duende ou gnomo, que dirigisse um negócio, pertencia a um grêmio. Havia o Grêmio dos Ourives, que trabalham em Prata, o Grêmio dos Fabricantes de Espadas, o Grêmio dos Estalajadeiros, o Grêmio dos Fabricantes de Cerveja, o Grêmio das Costureiras, o Grêmio dos Alfaiates, o Grêmio dos Sapateiros, o Grêmio dos Joalheiros e mais uma centena, incluindo o único grêmio em Ansalon dirigido por um kender — o Grêmio dos Achados. Quem perdesse algo em Kalaman, recorria de imediato ao Grêmio dos Achados.
A cidade possuía uma milícia própria, composta por uma mistura de mercenários contratados e citatinos, liderados por soldados veteranos. Os mercenários não eram aventureiros turbulentos comuns que se disponibilizam a nos ajudar a combater os duendes maléficos pelo preço de um odre de vinho, e que ao mesmo tempo oferecem os seus préstimos aos duendes maléficos, para nos combater ao mesmo preço. Como parte do soldo, a todos os mercenários contratados para lutar por Kalaman, era concedida uma casa na cidade. Dirigiam o seu próprio grêmio e tinham direito de voto. Assim, os mercenários que aceitassem tal missão, logo se convertiam em cidadãos, com um papel a desempenhar na cidade e motivos de sobra para lutar por ela.
A milícia de Kalaman era leal, com treino adequado e a bravura que se esperaria. Não hesitava perante qualquer adversidade.
O Sol matinal derramou o seu fulgor pela muralha leste, e foi saudado pelos galos domésticos. A maior parte dos cidadãos ainda dormia. Os vigias do porto, que se preparavam para serem rendidos, bocejavam, saudosos do merecido repouso.
— Navio à vista — anunciou um deles. — Alguma chegada para esta hora?
O outro consultou o diário de bordo.
— Pode ser o Lady Jane, de Flotsam. Comunicou que vinha recolher aquela carga de cereais, mas, se for, adiantou-se. Só o esperávamos a partir do meio-dia.
— É porque o vento esteve à favor — respondeu o outro, virando-se para a ponte de embarque e tentando avistar os que iam rendê-los. Ao virar-se de novo, piscou os olhos e arregalou-os. De repente, no horizonte, perfilava-se uma segunda vela.
— Estranho. Avisto outro navio. E, lá vem outro!
A sua voz denotava preocupação:
— Por Hiddukel! Trata-se de uma frota! Passe-me esse telescópio!
Pegando no instrumento, o vigia descobriu mais uma embarcação.
— Quatro, cinco, seis — contou, apavorado. — Navios negros, com carrancas em forma de cabeça de dragão! Nunca vi nada semelhante! Que bandeira ostentam?
— Por ora, nenhuma. — O homem mostrou-se apreensivo. — Não me agrada. Acho que devemos tocar o alarme.
— Espere até termos certeza. Sete, oito.
Os navios, com as suas velas altas, iam deslizando pelo mar calmo, que o fogo do pôr do Sol tingira de rubro. Naquele dia, o vento estava à favor. Todas as velas se encontravam desfraldadas e velejavam a uma boa velocidade.
— Olhe! O navio da frente desfraldou a flâmula... uma caveira e um lírio da morte! Toque o alarme! Vou mandar o Hayes ao Governador, para que comunique a notícia!
O rebate do sino do porto atravessou as águas, retiniu pelos edifícios situados no paredão e acordou os que viviam nas casas junto ao porto. O alarme foi transmitido por outros sinos da cidade, sinos suspensos nos campanários dos grêmios ou nos templos em honra dos vários deuses de Krynn. Arrancado da cama, o Governador desceu apressadamente até o porto, e enquanto corria ia compondo a camisa para dentro das calças.
Quando chegou, conseguiu avistar os dragões.
Estes sobrevoavam os navios — que agora totalizavam 16 —, em três Beiras compridas e com uma distância regular, mantendo-se em formação e agitando cadenciadamente as asas. Ainda se encontravam muito afastados para que se visse a sua silhueta escura a perfilar-se contra o firmamento banhado de sol, mas de vez em quando percebia-se a cintilação de escamas azuis. O espetáculo dos dragões a sobrevoarem os navios revestia-se de uma beleza mortal. Um punhado de pequenas embarcações, percebendo o que avançava contra elas, já abandonava o porto, tentando alcançar a segurança do mar aberto.
— Chame a milícia! — ordenou o Governador. Era meio elfo, um ourives que trabalhava em prata e há três anos detinha o cargo de Governador.
— Talvez não se dirijam para cá — aventurou o vigia cheio de esperança. — Talvez rumem para Palanthas.
— Dirigem-se para cá — respondeu o Governador em tom soturno, baixando o telescópio. Combatera na Guerra da Lança e conhecia os indícios. Também sabia o que o povo de Kalaman estava prestes a enfrentar. Normalmente, não era dado a orações, mas naquele instante dirigiu uma prece a todos os deuses que possivelmente poderiam escutá-lo.
O Governador agia com rapidez. Só lhe restava uma tênue esperança: as defesas do porto. Depois da Guerra da Lança, as mesmas haviam sido construídas e reforçadas, e possivelmente teriam capacidade para repelir as embarcações e os homens a bordo. As duas grandes catapultas e as quatro balistas, todas elas viradas para a entrada do porto, eram manobradas por equipes experimentadas. Tais armas constituíam o orgulho da milícia e encontravam-se em bom estado de manutenção.
À entrada do porto, já aprontavam-se os brulotes. Estes, com os conveses e os mastros empapados em óleo, seriam incendiados por tripulações arrojadas, que permaneceriam a bordo dos navios a arder o tempo que fosse possível, guiando-os contra a esquadra inimiga e semeando entre a mesma a destruição.
Agora, os sinos da cidade tocavam com desvario e freneticamente a repique. Os homens corriam para ocupar os seus postos. As mulheres retiravam água dos poços e enchiam baldes, gamelas para cavalos, tudo o que a pudesse conter, e que serviriam para o combate aos incêndios. As crianças eram enviadas para os porões e aconselhadas a se portarem com coragem.
O governador viu os navios com proas em forma de dragão abrandarem, viu-os descerem as velas e lançarem âncora. A esperança agitou-lhes o espírito, mas um mensageiro, que arrastava consigo uma camponesa apavorada, dissipou-a de imediato.
— Um exército, senhor! — arquejou a garota. — Um exército de gigantes azuis dirige-se para cá! Passaram pela nossa fazenda e incendiaram as casas! O meu pai... morreu ... — Ficou sem fala, quase se descontrolou, mas conseguiu dominar as lágrimas. — Vim o mais depressa que pude. Vêm bem atrás de mim, a pé!
— Homens azuis? Gigantes? — O Governador desconfiou que o desgosto levara a jovem à loucura. — Acalme-se menina e conte-me tudo como deve ser. Tragam-lhe um copo de vinho.
A garota abanou a cabeça e respondeu:
— Estou lhe dizendo, senhor. Aqueles homens são tão altos como as nossas casas. Andam quase despidos, com o corpo pintado de azul. Eles ...
Um soldado chegou a cavalo, desmontou e correu para o grupo de homens.
— Governador, Excelência. O General comunica-lhe que foi avistado um exército e este avança pela estrada principal. Vêm equipados com engenhos para montar cercos, senhor! Engenhos para montar cercos puxados por animais monstruosos e nunca vistos até então!
O Governador parou de rezar.
A primeira baforada de pavor aos dragões atingiu os que defendiam as muralhas. Por sobre a cidade pairou a sombra das asas dos dragões azuis.
Entardecia. O Senhor de Ariakan encontrava-se a bordo do navio-almirante, rodeado pelos seus oficiais, a observar o cerco de Kalaman através de um telescópio. Viam-se bandeiras de sinalização que subiam e desciam, transmitindo as ordens de Ariakan ao resto da esquadra e aos oficiais desta, que se encontravam na costa.
Metido na pesada armadura, Ariakan transpirava. O Sol refletia-se na água e incidia no navio. Não se importava com o calor, pois sabia que o povo de Kalaman estava a suar mais do que ele. Suava de medo.
As suas esquadrilhas de dragões sobrevoavam em círculos a cidade, sem atacar, deixando que o medo que inspiravam semeasse o pânico entre os homens e os desalojasse das muralhas. Ocasionalmente, um dos dragões azuis vomitava uma faísca, indo derrubar o campanário de uma das corporações ou incendiar um armazém. Mas os dragões tinham ordens para não atacar.
As legiões de brutos deslocavam-se por sobre as muralhas, rodearam os seis pélagos da cidade e, com o corpo, investiram contra as muralhas, lembrando um oceano vivo e desenfreado. Impudicamente, ergueram os engenhos para efetuar o cerco e apenas um punhado se lançou à tarefa de tentar derrubá-las. Os brutos faziam entrechocar as espadas contra os escudos, gritavam ameaças no seu idioma bárbaro, e disparavam setas contra quem fosse bravo ou tolo o suficiente para se mostrar. Mas era tudo. Também eles evitavam atacar.
A esquadra mantinha-se ao largo, à exceção de duas fragatas, enviadas para parlamentar com as defesas do porto. Ao aproximarem-se do paredão, a primeira bateria de balistas abriu fogo contra a que seguia à frente, acertando-lhe no meio, embora acima do nível da água. A tripulação procedeu à reparação dos danos e retomou o avanço a toda a velocidade. As catapultas dispararam, falhando ambos os tiros. As fragatas arremeteram contra a desembocadura do porto e abordaram os brulotes, que tinham começado a incendiar-se. Dois dragões sobrevoaram em círculos baixos o paredão e atiraram ao mar as armas assestadas. As equipes lançaram-se às águas revoltas.
No extremo mais afastado, a única bateria da balista que restava abriu fogo contra os dragões, quando estes se aproximaram. Nenhum foi atingido, mas um dos condutores desequilibrou-se do dorso do animal e mergulhou na água.
As fragatas ataram os brulotes a longos cordames e começaram a arrastá-los para fora da desembocadura do porto, a fim de que ardessem ao largo. As valentes tripulações das balistas, receosas da cólera dos dragões, recuaram até o coração da cidade.
Pela tardinha, Ariakan chegou à conclusão de que a cidade já suara o suficiente. Convocou o arauto, transmitiu-lhe as suas ordens e enviou-o — munido de uma bandeira de tréguas — a Kalaman.
O enviado dirigiu-se para os portões da cidade, com uma bandeira branca a ondular sobre a cabeça. Era escoltado por três cavaleiros de Ariakan, sem cota de malha e sem armas, indicando que não pretendiam violência. A cidade recusou-se a franquear os portões ao enviado, mas o Governador concordou em parlamentar com ele do alto da muralha. Postou-se na linha de tiro, bem à vista, um ato de coragem que os cavaleiros das trevas que acompanhavam o arauto reconheceram dirigindo uma saudação ao meio elfo.
— O que vocês querem? — inquiriu o Governador —, escravos do mal, que sem nenhum motivo atacaram uma cidade pacífica?
— Viemos exigir que a cidade de Kalaman se renda ao poder de Ariakan, Senhor e Cavaleiro de Takhisis, que em breve governará todo o território de Ansalan.
— Outros servos de Takhisis se vangloriaram do mesmo no passado, e hoje servem-na no Abismo, que é para onde eu enviaria o vosso senhor! — O governador falou com arrojo, para dar ânimo àqueles dos seus homens que haviam tido a coragem suficiente para não sucumbir ao pavor inspirado pelos dragões. Contudo, não se sentia temerário, mas antes aniquilado e em desespero. Era impossível a Karaman ter esperança de lutar com um tão elevado número de efetivos, surgidos de terra, mar e ar. — Vamos então ouvir as condições — acrescentou em tom severo.
O arauto pôs-se a enumerá-las.
— O povo de Kalaman deve depor as armas, franquear os portões da cidade e permitir a entrada do Senhor de Ariakan e das suas tropas. O povo de Kalaman deve jurar obediência ao Senhor de Ariakan, enquanto seu suserano. Os homens em idade de combater deverão apresentar-se no largo da praça da cidade, onde lhes será dado o ensejo de ingressar nas fileiras das forças do Senhor de Ariakan. Os que se recusarem serão feitos prisioneiros.
Se aceitar as condições do Senhor de Arikan, este poupará a cidade e deixará em paz as suas mulheres e crianças. Se não aceitar as condições e teimar em impedir o acesso do Senhor de Ariakan à cidade, ele garante que arrasará as pedras dos seus edifícios, reduzirá as suas casas a escombros calcinados, que os teus homens serão levados como escravos, as mulheres entregues aos bárbaros para satisfazer seus apetites, e as crianças chacinadas em frente das mães.
O Senhor de Ariakan lhe dá até o pôr do Sol para que reconsider as suas condições.
— E como saberemos que esse Senhor de Ariakan honrará a palavra dada? — perguntou o Governador.
— O Senhor de Ariakan é um Cavaleiro de Takhisis — retorquiu o arauto em tom arrogante. — É um homem de palavra. A sua promessa é esta: rendam-se e conhecerão a paz; lutem e conhecerão a destruição.
O arauto afastou-se, seguido pelos cavaleiros que constituíam a guarda de honra. O Governador desceu das muralhas e foi consultar os dirigentes das corporações. Os dragões azuis continuavam a sobrevoar, em círculos, a cidade, reduzindo a cinzas quaisquer resquícios de coragem que possivelmente existissem ainda em Kalaman.
— Se há uma hipótese desse Ariakan honrar a palavra dada — disse o Governador aos dirigentes das corporações —, devemos aproveitá-la. De outro modo, estamos a condenar o nosso povo à morte, ou pior.
Os dirigentes dos grêmios concordaram com relutância.
A resposta chegou ao Senhor de Ariakan muito antes do pôr do Sol.
Os portões da cidade abriram-se e as suas tropas franquearam-nos. O povo aguardou, receoso, à espera de ser maltratado, ultrajado e chacinado.
Os homens aptos foram reunidos e levados para o largo da praça da cidade, onde um dos oficiais de Ariakan lhes fez um discurso a respeito dos homens e glórias que aguardavam os que ingressassem nas fileiras de Takhisis. Nenhum aceitou, pelo que foram acorrentados, algemados e levados, para que servissem uns nos navios enfeitados com carrancas de dragões negros, outros para os bosques, onde desbastaram árvores para a construção de jangadas que transportariam rapidamente as forças de Ariakan rio abaixo.
Quanto aos restantes cidadãos de Kalaman, ordenaram-lhes que regressassem às suas casas.
A esquadra de Ariakan franqueou o porto. Este entrou na cidade com pouco aparato, e de imediato se lançou ao trabalho. Os seus cavaleiros iniciaram a patrulha das ruas.
No dia seguinte, os cidadãos de Kalaman acordaram receosos, mas descobriram que os dragões haviam partido, o exército de homens pintados de azul desaparecido, e que a cidade permanecia incólume. Por ordem do Senhor de Ariakan, o mercado abriu as portas e os comerciantes receberam instruções para destrancar os postigos e começar os negócios, como se nada tivesse acontecido.
Aturdido, incrédulo, o povo começou lentamente a dirigir-se para os seus afazeres. A única diferença visível entre o dia de hoje e o de ontem, residia nos cavaleiros de armadura negra que patrulhavam as muralhas e percorriam as ruas da cidade. Aqui e ali, uma mulher chorava o marido feito prisioneiro, uma criança gritava pelo pai ausente, um pai carpia o filho perdido, mas pouco mais.
Kalaman caíra quase sem um queixume.
Na mansão do governador, sentado à escrivaninha deste, Ariakan desenrolou um mapa e os seus olhos fixaram-se em Palanthas.
Nessa tarde, antes do Sol se pôr, Caramon e Tika procederam às exéquias fúnebres dos filhos.
Em Consolação, mandava a tradição que se plantasse uma jovem árvore do vale em cada túmulo recém-aberto. Acreditava-se que, desta forma, a alma do defunto transitava para a árvore, e que, portanto, nunca chegava verdadeiramente a morrer. Era um dos motivos que levava o povo de Consolação a considerar as árvores do vale sagradas, um dos motivos porque nenhuma árvore viva era cortada.
Tanin e Sturm Majere iam ser enterrados num pequeno talhão da família, que se enxergava da Estalagem da Última Casa. Aqui repousava Otik, o fundador da estalagem, que fora amigo de Tika e de Caramon por toda a vida. Aqui repousariam um dia marido e mulher, quando abandonassem o mundo e as suas agruras. Nunca lhes ocorrera que dois dos seus filhos os iriam anteceder.
Caramon pôs-se a escavar sozinho a sepultura, mas logo a notícia se espalhou por Consolação, e não tardou que aparecesse um vizinho para ajudar, depois outro e outro, até todos os homens da cidade se reunirem ali, oferecendo seus préstimos. Trabalhavam no Sol à pique, fazendo turnos e parando para descansar à sombra que, devido ao vento abafado e constante, oferecia pouco frescor. A maior parte dos homens cavava a sepultura em silêncio, sendo que as breves palavras de condolências eram transmitidas na chegada. Quase todos ignoraram Porthios e os elfos dele, que se mantinham de guarda em volta da estalagem, onde se encontrava a Rainha. Quase todos os elfos os ignoravam.
As mulheres de Consolação também compareceram, trazendo oferendas de comida, flores e roupinhas de bebê — pois também correra a notícia do nascimento. Tika acondicionou as roupinhas para dar a Alhana em segredo, antes da realeza elfa exilada partir e prosseguir o esforço de recuperar o trono — e alcançar a paz e a estabilidade para as nações elfas. Tika tinha plena consciência de que Porthios nunca iria aceitar as “sobras”, mas conforme observou Dezra:
— Os pais só traziam consigo a roupa que vestiam. O que o pobre bebe vai usar? Folhas?
Tika trabalhou febrilmente o dia inteiro, recusando-se parar para descansar. Havia muita coisa a fazer, era a vinda do bebê, a chegada dos convidados, a comida a preparar para os habitantes da cidade.
— Por hoje, calarei as lágrimas — disse a Dezra. — Os deuses bem sabem que amanhã elas brotarão. Quanto a esta dor no coração... perdurará para sempre.
Palin dormiu o dia inteiro, um sono tão profundo que nem sequer se mexeu quando o pai o levantou da mesa e o transportou até o quarto. Steel também dormia, numa dependência nos fundos da estalagem, a mão repousando sobre a espada e a couraça contra a porta, a montar guarda. O cavaleiro resistira a todos os conselhoos para descansar, até Tanis Meio Elfo afirmar, em tom seco, que a recusa de Steel em confiar neles manchava a sua honra.
— Quando te escoltamos até à Torre do Sumo Sacerdócio, para que prestasse homenagem a teu pai, ambos arriscamos a vida para te proteger, para proteger o filho de Sturm Montante Luzente. É uma desonra da tua parte se recusar a aceitar tal penhor.
Com arrogância, Steel encaminhou-se para a cama e adormeceu quase de imediato.
Tanis passou o dia com Porthios, não por apreciar particularmente a companhia do cunhado, mas porque a proximidade de tantos humanos começava a irritar o suserano elfo.
O dia decorreu num clima de tensão e pesar. Um dos homens que cavava a sepultura, sucumbiu ao calor, desmaiou e teve de ser transportado para o interior da estalagem, onde se encontravam sentadas as mulheres, transpirando e se abanando, falando a respeito das más colheitas e interrogando-se como iriam subsistir durante o Inverno. As crianças pequenas, embora não entendendo bem o que estava acontecendo, sentiam não ser aquele o melhor dia para brincar e fazer barulho, e mantinham-se junto das mães.
Os elfos exilados permaneciam nos ramos das árvores, montando guarda e sonhando com a terra natal.
E, ao pôr do Sol, teve início o funeral.
Palin, Tika e Caramon, juntamente com um sacerdote de Mishakal, postaram-se diante da sepultura. Tanis ficou perto deles, dirigindo ternos pensamentos ao próprio filho que, embora vivo, se encontrava perdido para ele.
Os corpos dos dois irmãos, envoltos em mortalhas de linho, foram reverentemente baixados à última moradia, pois seriam enterrados juntos. O sacerdote pediu uma bênção. Os habitantes da cidade desfilaram junto da sepultura aberta, uns arremessando recordações lá para dentro, outros contando episódios relacionados com façanhas dos irmãos, que lhes haviam inspirado grande amor.
Concluída a pequena cerimônia, os homens começaram a encher o túmulo. Foi então que, para espanto de todos, chegou Porthios, acompanhado por um contingente de guerreiros elfos. Dirigiu-se a Caramon e a Tika em tom de desajeitada simpatia e depois, postando-se diante do sepulcro, o suserano elfo pôs-se a entoar, pelos mortos, uma canção fúnebre. Embora ninguém entendesse as palavras, a melodia triste e ao mesmo tempo esperançosa, arrancou lágrimas que vieram atenuar a dor amarga do desgosto e substituí-la por um terno pesar. Foi quando Tika chorou, aninhada nos braços do marido.
Depois de terminar a canção, Porthios recuou. Os homens pegaram nas pás e começaram a encher a sepultura com terra. Nesta fase da cerimônia, era costume atirarem-se flores para cima dos corpos, mas há muito que estas tinham murchado, causticadas pelo calor. O monte de terra que cobria os jovens cavaleiros foi alisado com amoroso desvelo. O sacerdote de Mishakal preparava-se para endereçar uma derradeira bênção quando, de súbito, a multidão que se comprimia junto do túmulo se afastou. As pessoas recuaram, alarmadas.
Steel Montante Luzente abriu caminho por entre elas.
Ultrajados perante este desacato ao seu desgosto, os habitantes da cidade exigiram-lhe que se retirasse. Porthios olhou-o com ar carrancudo. Os elfos levaram as mãos às armas e cerraram fileiras em torno do seu suserano.
Ignorando-os, Steel prosseguiu e foi postar-se diante da sepultura.
O sacerdote de Mishakal se dirigiu a ele em termos severos:
— Senhor, a tua presença aqui não é bem-vinda. Constitui um insulto para os defuntos.
Steel não fez comentários. Permaneceu em silêncio, austero e distante, ignorando o sacerdote, ignorando os insultos e as ameaças. Trazia nas mãos uma trouxa que foi atirada para a carreta que continha os corpos.
Perplexo, Caramon olhou para o filho. Palin limitou-se a abanar a cabeça. Não fazia idéia do que estava se passando. Em silêncio, tensos, todos observaram, à espera do que o cavaleiro das trevas iria fazer.
Steel apoiou-se num dos joelhos, desembrulhou a trouxa e espalhou-a por cima das ervas acastanhadas e murchas.
Os últimos raios do Sol moribundo foram incidir sobre a espada quebrada de Tanin. Ao lado jazia o cabo da lança esfrangalhada do irmão. Retirando as armas, Steel pousou-as com cuidado em cima do montículo de terra que servia de túmulo. Depois, ajoelhou-se, inclinou a cabeça e começou a entoar palavras num idioma estranho e desconhecido.
O sacerdote de Mishakal precipitou-se para Tanis e segurou-o pela manga.
— Detenha-o! — exclamou. — Está lançando algum encantamento maléfico contra os defuntos!
— Não, não está — respondeu Tanis com voz suave, os olhos marejados de lágrimas e o coração a transbordar de reminiscências. — O idioma que fala é o solâmnico. Está recitando a Oração dos Defuntos dos Cavaleiros:
Devolva estes homens ao regaço de Huma,
Para lá dos céus indomáveis e imparciais.
Conceda-lhes o repouso do guerreiro,
E imprima-lhes um derradeiro fulgor ao olhar.
Que seja límpido e não toldado pela nuvens das guerras,
E brilhe mais forte que as miríades de estrelas,
Deixe que o seu último hausto
Alcance refúgio no torpor do ar,
Que paire acima dos devaneios dos corvos,
Onde apenas o falcão recorda a morte.
Permita que as suas sombras em direção a Huma,
Se ergam para lá dos céus indomáveis e imparciais.
Todos permaneceram calados até ele terminar. Levantando-se em seguida, Steel desembainhou a espada e esboçou a saudação de cavaleiro. Levou o punho da espada aos lábios e, estendendo a arma, executou com ela um arco. Depois de uma vênia formal à aturdida família, o paladino das trevas deu meia volta e, em passos lentos e arrogantes, passou pela multidão que, receosa, se apartou para lhe dar passagem.
No percurso, Steel deteve-se em frente a Porthios, com um sorriso trocista a bailar nos lábios.
— Senhor, não se preocupe com a guerra civil entre as nações elfas. Dentro em breve, os Qualinesti e os Silvanesti se encontrarão reunidos... sob a bota de Lorde Ariakan!
Porthios desembainhou a espada e Tanis, que previra confusão, apressou-se em detê-lo.
— Não se esqueça de onde está, irmão. Pense em Alhana! — insistiu, falando em elfo. — Não passa de fanfarronice de quem tem sangue na guelra! Já as ouviu antes. Ignore-as!
Porthios tencionava possivelmente ignorar Tanis, mas nesse momento, um grito débil — o choro de um recém-nascido — pairou no ar. Lançando um derradeiro olhar sinistro, Porthios empurrou Steel para o lado e precipitou-se para a estalagem. A sua escolta de elfos seguiu-o, mas não sem antes trocar com o cavaleiro das trevas olhares que trespassavam como setas.
Steel agüentou com aquele seu sorriso trocista e, virando-se, olhou de relance por cima do ombro.
— Palin Majere! — disse. — Continua a ser meu prisioneiro. Proceda às despedidas, porque chegou a hora de partirmos.
— Palin! — gritou Tika, estendendo as mãos trêmulas na direção do filho.
— Não se aflija, mãe — respondeu Palin, olhando de relance para o pai. Ambos concordaram ocultar da mãe a intenção de Palin. — Os magos hão de pagar o resgate. Em breve voltarei para casa. — Inclinando-se para frente, beijou-a na face.
— Cuide-se — disse Tika com voz suave, embargada. Depois, sobressaltou Palin ao acrescentar: — Raistlin não era completamente mau. Havia nele algo de bom. Nunca o apreciei muito, mas também nunca o compreendi. Quem sabe ... — Fez uma pausa, inspirou fundo e disse rapidamente: — Quem sabe se o que vai fazer está correto.
Palin fitou-a, atônito. Olhou para o pai, que encolheu os ombros, comentando:
— Não lhe disse uma palavra, filho.
Tika sorriu com tristeza e pousou a mão na do filho.
— Eu sempre sabia quando se preparava para fazer maldades. Lembra-se? Você e os teus irmãos. — Engoliu em seco, com as lágrimas a rolarem pelos olhos. — Que Paladino te acompanhe, meu filho!
— Se cuide, filho — disse Caramon. — Se houver algo que eu possa fazer ...
— Obrigado, pai. Obrigado por tudo. Adeus, mãe.
Palin virou-se e afastou-se em passos rápidos, meio cego pelas lágrimas. Mas quando chegou perto de Steel, já recuperara o aprumo.
— Tem tudo o que precisa? — inquiriu o cavaleiro.
Palin corou. Levava consigo um único alforje com objetos de encantamento. Dada a sua baixa hierarquia, não precisava de nada mais. Envergava as mesmas roupas — vestes brancas, manchadas de poeira da viagem e de sangue. Não possuía livros de feitiços nem baús contendo rolos de pergaminho. Mas segurava na mão o Bastão de Magius.
— Estou pronto — respondeu.
Steel aquiesceu com a cabeça e dirigiu uma saudação fria e graciosa a Caramon e a Tika. Sem olhar para trás, Palin começou a descer a estrada. Os dois desapareceram nas sombras que começavam a ganhar contornos.
Nessa noite, na Estalagem da Última Casa, Caramon e Tika plantaram duas jovens árvores do vale na sepultura dos filhos.
Exausta, devido ao parto, Alhana Brisa das Estrelas dormia. Porthios permanecia a seu lado. Vendo-a dormir e depois de todos terem abandonado o quarto, inclinou-se e beijou-a com ternura.
Depois de se assegurar que a mulher se encontrava em segurança e o filho recém-nascido com boa saúde, Porthios voltou para a sala comum e sentou-se na companhia dos seus guerreiros. Planejara reunir os reinos elfos, mesmo que para isso fosse obrigado a matar todos os elfos de Ansalon.
Tanis partiu numa curta viagem até à Torre do Sumo Sacerdócio, para mais uma vez transmitir aos cavaleiros o que há cinco anos andava a lhes dizer: que as forças da Rainha das Trevas tinham entrado de novo em ação.
Deitado no berço e vestindo roupas humanas de bebê muito folgadas, o elfo recém-nascido pestanejou e fitou, atônito, aquele mundo novo e estranho no qual se encontrava.
A cerca de cinco léguas ao norte de Consolação, Palin e Steel reuniram-se ao dragão azul. Fulgor passara a noite na cidade arruinada de Xak Tsaroth. Como corria por aí que estava assombrada, excetuando os duendes dos esgotos e os bandos nômades de duendes maléficos e de draconianos, a cidade parecia deserta. Quando avistaram o dragão-fêmea, este ainda retirava pedaços de duendes maléficos dos dentes. Com desdém, afirmou ao dono que não comeria mais duendes.
Saciada e de novo na companhia de Steel, Fulgor mostrava-se bem humorada. Enquanto Steel examinava, num mapa, o percurso para o norte, o dragão deliciou-se tentando intimidar Palin, já atingido pelo medo dos dragões. Desdobrou as asas maciças, estirando-as para o Sol e agitou-as de leve para se refrescar e ao dono. Quando Steel se queixou que a brisa fazia flutuar o mapa, dificultando-lhe a leitura, Fulgor simulou uma pequena birra. Cravou as garras no solo e dilacerou-o, provocando nuvens imensas de terra e erva acastanhada. Agitou maldosamente a cauda de um lado para o outro e sacudiu a crina, sem nunca deixar de observar a reação de Palin com os seus olhos vermelhos, de réptil, que espreitavam através das pálpebras semicerradas.
Palin tentou dominar-se e manteve-se propositadamente junto do dragão, embora o maxilar contraído e a mão a tal ponto crispada no Bastão de Magius que ficara branca, traíssem de um modo visível os seus esforços.
— Se já acabou o espetáculo — disse Steel ao animal —, gostaria de examinar de novo o trajeto.
O dragão rosnou, mostrou os dentes, fingindo-se ofendido. Steel deu-lhe palmadinhas no pescoço desenrolou o mapa sobre um seixo e indicou o que considerava ser a melhor via. Palin limpou o suor que perolava as sobrancelhas e, sem nunca largar o bastão, aproximou-se ainda mais do animal, a fim de participar na discussão.
— Isso também me diz respeito — disse, como resposta ao olhar sinistro de Steel. — Sobrevoar Solamnia será muito mais perigoso do que sobrevoar Abanasínia.
Desde a época da Guerra da Lança, os Cavaleiros da Solamnia tinham reconquistado os favores da população local. Era agora considerado elegante uma família de princípios e importância — para não dizer riqueza — ter pelo menos um filho na cavalaria. O que veio engrossar as fileiras dos cavaleiros e enchido os seus cofres. Tinham procedido à reconstrução de muitas das torres de fortalezas arruinadas que circundavam Solamnia e despachado tropas para defendê-las. Os dragões prateados, seus aliados, montavam guarda nos céus.
Os outrora injuriados Cavaleiros de Solamnia eram agora encarados como os protetores dos fracos, os defensores dos inocentes. As hierarquias produziam suseranos dotados de maior sapiência. As leis formuladas por Vinas Solamnus há milhares de anos — leis que, na era moderna, haviam sido seguidas religiosa, estrita e, conforme afirmavam alguns, obtusamente — estavam sendo revistas, modificadas e atualizadas.
Quando percorriam uma aldeia, os Cavaleiros da Solamnia em vez de serem apedrejados — como acontecia nos tempos antigos — eram tratados como convidados de honra e o seu auxílio e conselhos eram ansiosamente procurados e recompensados de uma forma generosa.
O dragão e o seu dono tinham perfeita consciência da influência crescente dos cavaleiros. Depois da guerra, o Senhor de Ariakan fora seu prisioneiro durante vários anos e não passara esse tempo na ociosidade. Aprendera não só os seus métodos — que admirava e copiava, introduzindo alterações sempre que necessário — como também as suas táticas, estratégias e a localização dos seus baluartes. Descobrira os seus pontos fortes e — fato mais importante — também os fracos.
Quando, há cerca de cinco anos, Tanis ouvira falar dos Cavaleiros de Takhisis pela primeira vez, comparecera de imediato à presença dos Cavaleiros da Solamnia e avisara-os do perigo que corriam.
— O Senhor de Ariakan sabe tudo a seu respeito... desde a cor das roupas de baixo que vestem até às ordens de batalha que habitualmente dão — avisara Tanis. — Sabe quais as torres que se encontram fortificadas e quais estão vazias. Os seus cavaleiros são homens e mulheres aptos e inteligentes, recrutados por ele, treinados por ele e a quem Sua Majestade das Trevas concede a visão. Não trairão os seus senhores por causa da sede de lucros, como vimos acontecer na Guerra da Lança. Estes indivíduos prestam lealdade à Rainha das Trevas e a uns e outros. Sacrificam tudo em prol da causa deles. Meus senhores, urge que introduzam alterações já ou creio que o Senhor de Ariakan e os seus cavaleiros das trevas as efetuarão por nós.
Os senhores cavaleiros escutaram Tanis com ar polido, concordaram com ele na sua presença, mas na sua ausência, fizeram escárnio dele.
Todos sabiam que os que se aliavam à Rainha das Trevas eram egoístas, pretensiosos, cruéis e completamente destituídos de honra. A História provara-o e voltaria a provar. Os cavaleiros eram incapazes de conceber que tais mudanças drásticas nas fileiras das trevas pudessem ter ocorrido no curto espaço de 25 anos.
De modo que, entre as fileiras da luz, poucas alterações foram registradas.
Steel apontou para o mapa.
— Atravessamos aqui, os Estreitos de Schellsea e contornamos Caergoth, pois os cavaleiros implantaram uma fortaleza lá. Continuamos para leste, viajando sobre a água com Coastlund à nossa direita. Assim, evitamos a Torre de Thelgaard. A norte desta mesma, percorreremos o litoral, interpondo as montanhas de Vingaard entre nós e a Torre do Sumo Sacerdócio. Entramos em Palanthas pelo lado norte.
Ouvindo isto, Palin atreveu-se a sugerir:
— Só conseguirá penetrar na cidade se for disfarçado. Ocorreu-me isso — acrescentou com um certo orgulho — e trouxe algumas roupas do meu pai ...
— Não vou andar pelos subúrbios de Palanthas vestido de estalajadeira — respondeu Steel com voz áspera. — Envergo esta armadura pela glória da minha Rainha. Não ocultarei quem eu sou.
— Então, será melhor nos dirigirmos já para a Torre do Sumo Sacerdócio e nos trancarmos numa cela — replicou Palin. — Pois é onde vamos acabar.
— Você não vai, Veste Branca — observou Steel, com um pálido sorriso.
— Ah vou sim. Me prenderão logo que descobrirem que estou contigo. Os cavaleiros sentem pouca simpatia pelos fazedores de magia.
— Mas, você combateu nas suas fileiras.
— Foi por causa dos meus irmãos — respondeu Palin em voz baixa e sem fazer mais comentários.
— Não se preocupe Majere — retorquiu Steel, agora com o sorriso a bailar nos olhos escuros. — Entraremos em Palanthas com toda segurança.
— Supõe que conseguiremos mesmo nos infiltrar em Palanthas — argumentou Palin. — Ainda falta atravessar a Clareira de Shoikan.
— O bosque amaldiçoado? Já o vi... à distância. O teu pai não te contou? Eu cresci em Palanthas. Vivemos lá até eu completar 12 anos, na época em que o Senhor de Ariakan apareceu para nos alistar como cavaleiros. Como pode imaginar, a Clareira de Shoikan era uma tentação para qualquer criança traquinas da cidade. Já me esqueci do número de vezes em que atrevemos a nos aproximar dela. Claro que mal avistávamos os ramos superiores das árvores gigantescas, fugíamos correndo. Ainda hoje recordo os sentimentos, o medo...
Parou, franziu o cenho e afugentou as reminiscências, como o cão que sacode a água do pêlo. Depois, prosseguiu em tom mais ríspido:
— Dizem que aquela clareira é fatal para qualquer mortal que tente atravessá-la... Se é leal a alguém, não interessa. Mas, Mestre Magno, decerto que você consegue atravessá-la em segurança.
— Não me chame assim! — exclamou Palin, irritado. — Não é adequado. Na minha arte, pertenço a uma baixa hierarquia. Em termos militares, sou o equivalente a um soldado de infantaria.
Não conseguiu dominar a amargura que a sua voz deixou transparecer.
— Majere, todos nós começamos por baixo — disse Steel com modos graves. — Não deve se envergonhar. Perseverei dez anos para chegar ao meu posto e encontro-me longe do topo.
— Parece mesmo o meu irmão Tanin. Todo esse metal que vocês, cavaleiros, usam, deve subir à cabeça. Era o que eu costumava lhe dizer. E não. Não consigo atravessar a Clareira de Shoikan em segurança. Acho que podia solicitá-lo. Dalamar me tem em bom conceito...
À menção do nome, a expressão de Steel alterou-se. O rosto assumiu uma tonalidade carregada, o sorriso dos olhos desapareceu, consumido num clarão repentino e intenso.
Palin não percebeu a mudança. Estava absorto, sentia-se tentado a contatar Dalamar e solicitar uma forma de atravessar a clareira em segurança.
— Não — decidiu por fim. — Não posso pedir a Dalamar. Isso implicaria ter que explicar por que motivo pretendo entrar na torre. E se soubesse antecipadamente iria...
Palin viu de relance o rosto de Steel e olhou apressadamente ao redor, achando que estavam sendo atacados. Não vendo nada perguntou:
— O que se passa?
— O homem que mencionou, será Dalamar, o Sinistro?
— Sim — respondeu Palin —, o senhor da torre. O... — De repente ocorreu-lhe a história dele e lamentou-se de si para si.
— É o homem que matou a minha mãe — disse Steel, fazendo deslizar a mão para o punho da espada. — Estou ansioso para encontrar esse tal Dalamar.
Se o elfo das trevas matara a amante anterior, fizera-o em defesa própria. Kitiara atacara-o primeiro. Mas, para o filho, o argumento possivelmente carecia de sentido.
— Suponho que será inútil lembrá-lo que Dalamar é o feiticeiro mais poderoso de Ansalon — observou Palin com irritação. — Com um simples aceno de mão, te vira todo do avesso.
— Que interessa? — replicou Steel, furioso. — Acha que só ataco os que são mais fracos do que eu? Sou um homem de palavra e jurei vingar a morte de minha mãe.
Abençoado seja Paladino, por que não pensei nisso antes?, interrogou-se Palin, desesperado. Steel ainda vai acabar morto. Dalamar vai pensar que eu tentei contra sua vida. No meio da confusão é bem capaz de me destruir...
— Confie em mim jovem — chegou-lhe a voz. — Deixe Dalamar comigo.
Palin estremeceu, sentindo-se empolgado, exultante. Sabia agora que a voz era real e não fruto da sua imaginação. Falava-lhe, guiava-o, orientava-o, aguardava-o!
Apaziguados os temores, descontraiu-se.
— Ainda não chagamos à torre. Ainda temos que atravessar Palanthas e a Clareira de Shoikan com segurança. Vamos tratar das coisas com Dalamar e com aquilo que encontrarmos na torre, quando — se conseguirmos chegar lá.
— Chegaremos lá — previu Steel em tom soturno. — Você me deu um novo incentivo.
Os dois montaram o dragão e, banhados pela luz ensangüentada de Lunitari, voaram para norte, rumo a Palanthas.
Viajaram a noite inteira sem depararem com vivalma. Mas, ao nascer do Sol, o dragão mostrou-se inquieto.
— Me cheira a pratas — observou.
Após uma breve consulta com Steel, o animal aterrou nos sopés das montanhas de Vingaard.
— De qualquer forma, não tencionávamos entrar em Palanthas enquanto estivesse claro — disse Steel a Palin. — é melhor descansarmos de dia e retomamos a viagem ao escurecer.
Palin ficou irritado com o atraso. Ia confirmar que o tio se encontrava vivo e que apenas necessitava ser libertado da prisão horrorosa do Abismo. O jovem mago sentia-se repousado e em boa forma. Graças ao cataplasma de Steel, a ferida quase não o incomodava. Estava ansioso por viajar, mas contra um dragão azul ou o dono do animal, não possuía argumentos convincentes.
— Um de nós não deveria ficar de guarda? — perguntou Palin, vendo Steel desenrolar dois sacos-de-dormir.
— Precisamos descansar — replicou Steel. — O dragão vigiará o nosso repouso.
Após uma breve busca, descobriram um recesso escavado num rochedo que serviria de abrigo, embora não os ocultasse se por acaso alguém passasse. Palin estendeu o cobertor, comeu um pouco da grande quantidade de alimentos que Tika ainda arranjara tempo para lhes preparar. Steel comeu também, deitou-se e, habituado à disciplina de soldado que sabe que deve repousar quando e onde puder, logo mergulhou no sono. Palin estendeu-se no chão frio e preparou-se para passar o dia antevendo, insone, o cair da noite.
Acordou, por volta do pôr do Sol.
Steel já se encontrava de pé, selando o dragão. Fulgor se mostrava bem repousado e, pelo seu aspecto, bem saciado. Espalhadas ao redor, viam-se as carcaças de vários veados.
Palin levantou-se com movimentos lentos, sentindo-se rígido e dolorido por ter dormido no chão. Normalmente, o seu sono era perturbado por sonhos estranhos, que mal conseguia recordar. Desta vez não foi assim. Não se lembrava de ter dormido um sono tão reparador nem tão profundo na vida.
— Está se transformando num velho soldado de campanha — grunhiu Steel enquanto se esforçava para colocar a pesada sela no dorso do dragão. — Até no ronco.
Palin murmurou uma desculpa qualquer. Sabia por que motivo dormira tão bem e sentiu-se um pouco envergonhado. Parecia constituir uma traição à família, à sua casa, à educação que recebera. Pela primeira vez na vida, desde que sentira a ânsia, desde que tivera idade suficiente para atirar pretenso pó mágico na cara dos companheiros de brincadeiras, sentia-se em paz consigo mesmo.
— Não peça desculpas, Palin. Você fez bem. Precisamos da nossa força para o confronto que nos espera esta noite.
A Clareira de Shoikan. Um local terrível, mortal. Caramon tentara uma vez atravessá-la e quase perdera a vida. E agora Palin mal podia conter a impaciência. A clareira não lhe inspirava terror. Nem tampouco quem a manobrava. Raistlin prometera tratar do assunto com Dalamar. Os pensamentos de Palin achavam-se concentrados no que aconteceria depois de ultrapassada a clareira.
O Portal. O seu tio.
O dragão voava a grande altura, atravessando o céu que ia escurecendo, em círculos indolentes, utilizando as bolsas de ar e calor para impulsioná-los para cima.
Depois de poucas horas, começaram a se vislumbrar as luzes da cidade de Palanthas. Sobrevoaram-na, contornando a Cidade Nova pela direita. As muralhas da Cidade Velha rodeavam-na como o arco de uma roda de carroça. Os portões eram iluminados pelo fulgor vivo das tochas. A famosa biblioteca encontrava-se às escuras, excetuando a luz que tremeluzia numa das janelas. Possivelmente seria Astinus, que alguns afirmavam ser o próprio deus Gileano, acordado até altas horas registrando o fluxo da História que por ele passava.
Quem sabe se, nesse exato momento, estaria escrevendo sobre eles. Quem sabe se, em breve, estaria possivelmente a registrar a morte deles. O pensamento ocorreu-lhe espontaneamente quando Palin baixou os olhos e vislumbrou os trilhos gelados e de breu que constituíam a Clareira de Shoikan. Desviou rapidamente o rosto e concentrou-se na Torre da Feitiçaria Suprema. Viam-se luzes a tremeluzir no interior das janelas, a maior parte no andar inferior, onde se encontravam os magos aprendizes, acordados a decorar os encantamentos. Palin, que conhecia a localização do quarto de Dalamar, procurou ver se havia luz lá.
Encontrava-se às escuras.
Do lado oposto da torre, erguia-se o Templo de Paladino, com as paredes brancas envoltas num pálido fulgor, como se tivessem captado os raios da lua Solinari e os utilizassem para iluminar a noite. Lembrando-se da sua incumbência e da natureza do companheiro, Palin foi incapaz de olhar por muito tempo para o templo.
O dragão os conduziu ao palácio do Senhor de Palanthas. Encontrava-se todo iluminado. Sua Senhoria devia estar dando uma festa.
Como as pessoas podem divertir-se numa hora destas?, interrogou-se Palin, invadido pela raiva. Os irmãos dele encontravam-se mortos. Outros homens bons haviam sacrificado a vida. Para quê? Para isto... para que o Senhor de Palanthas e os seus abastados amigos pudessem beber, até ficarem inconscientes, vinho elfo de contrabando?
Palin interrogou-se sobre o que aconteceria se saltasse do dragão, aparecesse junto dos convivas com as suas roupas manchadas de sangue e gritasse:
— Abram os olhos! Olhem para mim! Vejam o que os espera!
Provavelmente nada, provavelmente seria expulso pelo despenseiro.
O dragão azul guinou para a esquerda, contornou o palácio, deixando para trás as luzes resplandecentes. Sobrevoou a muralha da Cidade Velha, passou pela Cidade Nova e pousou sobre a baía. Contrastando com a cidade, as águas mostravam-se incrivelmente escuras. Apenas uns minúsculos pontos de luz assinalavam as guaritas que efetuavam a vigia noturna.
Estes também deviam estar dormindo, pois ninguém deu pelo dragão descendo dos céus e aterrando no litoral.
Mandada construir na Idade do Poder por Vinas Solamnus, a Torre do Sumo Sacerdócio albergava a única passagem que atravessava as montanhas de Vingaard — a principal rota terrestre entre o resto de Ansalon e a grande cidade de Palanthas. A torre era imensa, maciça, uma poderosa fortaleza. Contudo, devido à sua inusitada concepção, havia quem tivesse ouvido Flint Forjardente, o duende e Herói da Lança, comentar que o construtor ou estava embriagado ou louco.
A torre fora construída por humanos, de modo que, para parafrasear os gnomos, as críticas do bom duende deviam ser aceitas como um grão de pimenta. E em abono da verdade, quando Flint fez tal declaração não estava ao par da verdadeira natureza do inusitado sistema defensivo da torre, que o duende veria ser posto em ação depois disso.
Pouco após o comentário de Flint, os dragões do exército de Sua Excelência Kitiara atacaram a torre. O cavaleiro solâmnico Sturm Montante Luzente veio a perecer nessa investida, mas graças ao sacrifício de Sturm, os outros cavaleiros conseguiram se reagrupar e, secundados por um kender, uma donzela elfa e um globo de dragão, salvar a torre.
A Torre do Sumo Sacerdócio possuía um aspecto formidável. Elevando-se no ar a uma altura de cerca de 300 metros, rodeada por todos os lados por montanhas pontilhadas de neve, com exceção da ala mais ao sul, a torre gozava da reputação de que, enquanto fosse defendida por homens de fé, nunca tombaria pelas mãos de nenhum inimigo. Na base, uma cortina de pedra exterior formava um octógono. Cada ponto da muralha octogonal era sobrepujado por um torreão. O topo da cortina, entre os torreões, encontrava-se pontilhado de seteiras. Uma parede octogonal interior formava a base de oito torres menores, construídas em torno da torre central maior.
O que tanto perturbara Flint Forjardente fora o fato de nada menos do que seis gigantescos portões de ferro atravessarem as muralhas exteriores, três dos quais abriam para a planície solâmnica, indo todos desembocar no interior da torre. Qualquer duende que fizesse jus ao seu peso em pedra, diria que uma fortificação, quando sólida e boa, possui apenas uma entrada, que podia ser fechada, prontamente ocupada e defendida contra a investida inimiga.
Os cavaleiros podiam ter respondido a Flint considerando os comentários deste como táticas de duende destituídas de imaginação e sutileza. A Torre do Sumo Sacerdócio era, na realidade, uma obra-prima de concepção hábil. Os seis portões abriam para pátios exíguos — campos de extermínio onde o inimigo podia ser dizimado pelo fogo cerrado dos cavaleiros postados no alto das muralhas. E os que, conseguindo escapar, subiam as escadas que desembocavam na torre central, ficavam presos em armadilhas ocultas.
Os que estavam familiarizados com a história da Guerra da Lança, sabiam que as três portas que davam para a planície solâmnica eram, na realidade, armadilhas para dragões. Um globo mágico de dragão, colocado no centro dos corredores convergentes, chamava os dragões do Mal, impelindo-os a voar até o interior da torre e não a atacá-la do exterior. Os dragões eram então chacinados pelos Cavaleiros da Solamnia, que investiam contra os animais encurralados, protegidos por defesas de pedra. Daí o outro nome, agora esquecido, que atribuíam à torre: a Morte do Dragão. Assim tinham perecido, durante a Guerra da Lança, inúmeros dragões do Mal.
Muitos anos se passaram desde que Sturm Montante Luzente permanecera sozinho nas ameias, aguardando a morte certa. Durante a Guerra da Lança, ficou se sabendo que os globos de dragão se achavam perdidos para o mundo, pelo menos era o que muita gente desejava do fundo do coração. Os dragões do Mal, agora ao par do segredo das defesas da torre, já não podiam ser atraídos para esta cilada mortal, e dado tais animais serem incrivelmente longevos, era provável que as recordações que guardavam daqueles corredores, empapados de sangue de dragão, os impedisse de cometer duas vezes o mesmo erro.
Após a guerra, a torre fora reconstruída, renovada e modernizada. Com a perda dos globos de dragão, a defesa contra dragões da torre central deixara de ser eficaz, e os três portões que serviam de armadilha passaram a funcionar mais como ornamento do que como engenho ativo. Os Cavaleiros da Solamnia entenderam a verdade contida na afirmação do duende a respeito das três portas de aço: “Podem muito bem servir para convidar o inimigo para o chá!”, resmungara Flint. Tomaram precauções no sentido de fechá-las com três “bujões” de granito branco, esculpidos de modo a parecerem-se com os portões originais.
Depois da guerra, a Torre do Sumo Sacerdócio converteu-se num centro principal e fervilhante de atividade. As estradas fervilhavam, nos dois sentidos, de viajantes. Acorriam cidadãos a solicitar aconselhamento, opiniões, justiça ou ajuda para a defesa das suas cidades contra os saqueadores. Mensageiros incumbidos de missões importantes dirigiam-se, a galope, para os portões. À noite, os kenders eram detidos, os seus alforjes revistados, e na manhã seguinte os soltavam, com ordens rigorosas de “darem o fora”, às quais os kenders obedeciam alegremente, apenas para serem substituídos por nova leva de irmãos.
No Verão, os viajantes montavam tendas ao longo da estrada que corria desde as planícies, ao fundo, até o portão principal da torre. Vendiam de tudo, desde fitas e lenços de seda (para as damas bonitas concederem, como favores, aos seus cavaleiros prediletos) a comida, cerveja, vinho elfo e (por baixo do balcão) bebidas alcoólicas feitas por duendes.
Regularmente, efetuavam-se torneios, que encenavam justas, concursos de tiro ao alvo, batalhas, paradas militares e exibições de alta-escola na arte de montar cavalos e dragões, que serviam para treinar os jovens cavaleiros, manter o espírito beligerante dos mais velhos em forma, e para regozijo do público.
Tempos bons para os cavaleiros... até àquele Verão.
A medida que o calor do Sol ia causticando as estradas empoeiradas, o fluxo através de Krynn foi diminuindo, até morrer como as colheitas nos campos. O homem cuja única colheita se resume a poeira e a terra seca, não pode pagar ao latoeiro para lhe remendar a chaleira. O latoeiro não pode pagar as contas na estalagem. O estalajadeiro não tem dinheiro para comprar comida para os hóspedes.
Os mensageiros ainda afluíam, agora mais do que o usual, e eram portadores de notícias pavorosas de fome e incêndios. Uns poucos viajantes ainda perambulavam por ali, meio mortos pelo Sol inclemente. Os comerciantes fecharam as tendas e mudaram-se para Palanthas. Já não se efetuavam torneios ali. Um número elevado de cavaleiros, comprimidos nas pesadas armaduras, haviam desmaiado sob o efeito do calor. Só os kenders, que sofriam da doença nacional conhecida por Luxúria do Errante, continuavam a freqüentar a cidade a intervalos regulares. Chegavam queimados do sol e cobertos de poeira, e alegremente comentavam a mudança surpreendente que se registrava nas condições atmosféricas.
Na noite em que Tanis Meio Elfo chegou, um grupo de kenders estava sendo enxotado. O cavaleiro de serviço soltara-os e ordenara-lhes que se afastassem dos portões. Depois de fazer um cálculo rápido, o guarda desapareceu precipitadamente, para voltar com mais dois kenders, que tinham se separado do grupo e se encontravam no salão de jantar. O cavaleiro aliviou-os de várias peças de cutelaria, seis travessas de estanho, enfeitadas com a chancela dos cavaleiros, dois guardanapos de linho e um pimenteiro.
Normalmente, os kenders vagueariam pelo lado de fora da torre, à espera de uma oportunidade para entrar de novo. Nessa manhã, porém, a chegada de Tanis, montado num grifo[2] distraiu-os.
Mal o grifo pousou do lado de fora do portão da frente, na estrada principal que desembocava na torre, viu-se rodeado por um enxame de kenders, que se puseram a admirar o exemplar com ar interessado e amistoso. O animal feroz — que não apreciava kenders — mirou-os com os seus olhinhos pretos e faiscantes. Quando algum chegava mais perto, o grifo, irritado, eriçava as penas e fazia ranger o bico com ar ameaçador, para grande regozijo dos kenders.
Receando que um ou outro acabasse servindo de desjejum ao grifo, Tanis, com múltiplas expressões de gratidão, despachou o bicho de volta a Palanthas. Este, aliviado e célere, levantou vôo. Os kenders soltaram um gemido de desapontamento, e de imediato viraram a sua atenção para Tanis.
Segurando a espada numa das mãos e a bolsa com o dinheiro na outra, o meio elfo pôs-se a atravessar penosamente aquele mar de kenders, esforçando-se para chegar à torre, mas sem grande êxito. Felizmente, o som de cascos, que galopavam à distância, levaram-nos a deixar Tanis em paz e virar-se para este recém-chegado. Tanis encaminhou-se rapidamente para a entrada.
O cavaleiro de serviço dirigiu-lhe uma saudação, pois Tanis visitava a torre com freqüência.
— Bem-vindo, meu senhor. Vou mandar alguém acompanhá-lo ao salão dos hóspedes, onde poderá repousar da tua longa...
— Não há tempo — interrompeu-o Tanis com modos bruscos. — Tenho de ver Sir Thomas imediatamente!
O Senhor de Gunthar uth Wistan, velho amigo de Tanis e o chefe anterior dos Cavaleiros, aposentara-se no ano anterior. Thomas de Thalgaard, o Senhor Cavaleiro da Rosa, era agora o Comandante da Torre do Sumo Sacerdócio. Homem na casa dos 40, Sir Thomas gozava da reputação de ser um comandante apto e inflexível. Possuía uma longa linhagem na cavalaria. O avô de Thomas fora Cavaleiro da Solamnia, mas durante os anos obscuros que procederam o Cataclismo, uma seita de falsos padres roubara-lhe as herdades. Engolindo o orgulho, o pai de Thomas fizera um contrato com os padres no sentido de trabalhar como assalariado nas terras que outrora constituíram patrimônia da família. Assim, a primeira montada do jovem Thomas fora um cavalo de tiro, e lutara as primeiras batalhas contra as lagartas e os gorgulhos. Observara o pai a trabalhar até à morte, vira-o morrer como um escravo e jurara que se tornaria cavaleiro.
A oportunidade surgiu a Thomas durante a Guerra da Lança. A sua pequena aldeia localizava-se na rota dos exércitos dos dragões. Receando a iminência de um ataque, os falsos padres puseram-se em debandada, levando consigo tudo o que fosse de valor e deixando o povo à mercê dos draconianos. Thomas, na altura um mancebo de 20 anos, reuniu os amigos e os vizinhos e insistiu para que procurassem abrigo no interior do castelo. Defendeu os seus haveres com tamanha perícia e arrojo, que o castelo resistiu ao jugo dos exércitos dos dragões até o fim da guerra.
Tanis não conhecia bem Sir Thomas, mas pelo que conseguira apurar dele, o meio elfo considerava o cavaleiro um homem de inteligência e de bom senso.
— Preciso falar imediatamente com Sir Thomas — repetiu Tanis. — Tenho notícias urgentes.
— Com certeza, meu senhor — respondeu o cavaleiro, enviando um mensageiro à procura do Comandante.
A espera de Tanis não foi longa. Pouco dado a praxes, Sir Thomas compareceu em pessoa. Cumprimentou Tanis com modos cordiais, e ao reparar na impaciência do meio elfo conduziu-o pelas amuradas, para uma conversa privada.
— Traz notícias — disse Thomas, mal ficaram a sós. — E, avaliando pela tua expressão, não são boas.
— Quer dizer, meu senhor, que não recebeu o meu relatório?
— Qual relatório? Desde a semana passada que não sei de nada.
— Lorde Ariakan desencadeou o ataque. O Baluarte do Norte e Valkinord tombaram. É possível que, nesta altura, Kalaman se encontre cercada. Tanto quanto posso avaliar, os cavaleiros das trevas estão procedendo a um ataque em duas frentes, um dos exércitos avança pelas montanhas de Khalkist e o outro, planeja descer o rio a partir de Kalaman.
O Comandante olhou atônito para Tanis.
— Meu senhor, os cavaleiros enviados para fortificar Kalaman foram dizimados e apenas um homem sobreviveu — disse Tanis baixinho. — Lutaram com bravura, mas foram largamente superados em número. Trouxe comigo a lista dos mortos. — Retirou um pacote dobrado e estendeu-o a Lorde Thomas. — Meu senhor, a crer nas palavras de Ariakan, os mortos mereceram-lhe todo o respeito.
— Sim, mereceram — comentou Thomas, examinando a lista de rosto sombrio e maxilares contraídos. — Conheço todos — disse, por fim. Voltando a dobrar a lista, meteu-a no cinto e acrescentou: — Efetuarei as diligências para comunicar a triste notícia às respectivas famílias. Acho que conhecia dois deles. Os rapazes Majere.
— Conheci e ajudei a enterrá-los — respondeu Tanis em tom soturno. — Palin, o irmão mais novo, foi feito prisioneiro e exigem por ele um resgate. Foi o seu captor, um Cavaleiro de Takhisis, o portador das notícias. Meu senhor, também conhece esse cavaleiro. Chama-se Montante Luzente. Steel Montante Luzente.
— Filho de Sturm Montante Luzente. Sim, lembro-me do incidente. Tentou salvar o jovem do Mal. Chegou a profanar o túmulo do pai, roubou-lhe a espada.
Não fora bem assim, mas Tanis — que, nesse “incidente”, fora preso e acusado de conluio — sabia ser preferível não argumentar. Apresentara os fatos perante o Conselho dos Cavaleiros e, por fim, lavara o seu nome e o do amigo Caramon. Mas, não conseguira persuadir os cavaleiros de que fora o próprio Sturm quem concedera a espada ao filho. E, olhando em retrospectiva, Tanis tampouco podia assegurar sobre o que acontecera realmente. Parecia que ele e Sturm haviam falhado. Pelo que podia avaliar, Steel Montante Luzente abraçara de forma incondicional a causa das trevas.
— Kalaman debaixo de cerco... — Desconcertado, Thomas abanou a cabeça. — Custa-me a acreditar, Meio Elfo. Não que esteja duvidando, mas Ariakan dispunha apenas de um punhado de cavaleiros.
— Excelência, de acordo com o relato de Palin, o exército de Lorde Ariakan está longe de se resumir a um punhado de homens. O exército dele é imenso. Recrutou bárbaros das regiões do Leste, homens tão altos como os minotauros, e que lutam com igual ferocidade. São liderados por cavaleiros de dragões, e entre as suas fileiras contam com fazedores de magia renegados. Dalamar, chefe do Conclave dos Feiticeiros em Ansalon, pode testemunhar o poderio desses feiticeiros.
— Sem dúvida que pode, visto estar do lado deles.
— Não, Excelência, está errado. Há um fato que em geral se desconhece, mas, recentemente, os feiticeiros das três luas conduziram um ataque contra os Cavaleiros Cinzentos, conforme são conhecidos. Os feiticeiros das três luas sofreram uma esmagadora derrota. Justarius, um deles, foi morto. Não posso assegurar de que lado se encontra Dalamar, mas não creio que defenda Ariakan. Dalamar não pode perdoar à Rainha o fato de lhe ter virado as costas para garantir maior poder aos magos dela.
Thomas franziu o cenho. Tal como todos os cavaleiros, não confiava nos fazedores de magia de cor nenhuma, e com eles pretendia o mínimo contato possível. Pelo que, considerando a questão da magia pouco importante e irrelevante, a pôs de lado.
— Kalaman tem condições para agüentar um cerco por longas temporadas. O tempo suficiente para nos permitir enviar-lhe reforços.
— Não estou tão certo assim... — começou Tanis.
— Excelência! — Um jovem pagem vinha subindo precipitadamente as escadas, arquejando. — Meu senhor! Chegou um mensageiro! Ele...
— Rapaz, o que é feito das tuas maneiras? — repreendeu-o Thomas. — Encontra-se comigo um senhor que merece o devido respeito, e eu também. Deve-se manter a disciplina — acrescentou em surdina, dirigindo-se a Tanis.
O pagem, ruborizado até às orelhas, recuperou o aprumo e em seguida executou uma vênia apressada, primeiro a Tanis, depois a Sir Thomas. Mas ainda não a terminara, e já se pusera a falar de novo.
— O mensageiro, meu senhor! Encontra-se lá embaixo. Tivemos que ajudá-lo a desmontar do cavalo! Veio num galope desenfreado... — O pagem calou-se, sem poder respirar.
— Receio que se trate de mais notícias desagradáveis — observou Sir Thomas em tom ambíguo. — Ninguém tem pressa em nos transmitir boas notícias.
Os dois homens desceram e encaminharam-se para o portão da frente.
O mensageiro jazia deitado no chão, com um capote sob a cabeça. Ao vê-lo, Sir Thomas franziu o cenho, pois o homem envergava o uniforme dos guardas da cidade de Kalaman. As roupas estavam manchadas de sangue seco.
— Estava tão duro que tivemos que retirá-lo do cavalo, meu senhor — relatou o cavaleiro de guarda do portão. — Ele afirma que não tinha nada para comer, mas que viajou dia e noite para chegar até nós.
— Excelência! — O homem, ao avistar Sir Thomas, fez um esforço supremo para se levantar.
— Não, não rapaz! Fique sossegado. Quais são as notícias? — disse Thomas, ajoelhando-se junto dele.
— Kalaman, meu senhor! — arquejou o soldado— Kalaman... caiu!
Thomas olhou para Tanis.
— Parece que tinha razão — disse baixinho.
— Vieram do mar, senhor — explicou o soldado em voz débil. — Do mar e do ar. Fomos... fomos apanhados desprevenidos. Atacaram... ao cair da noite. Dragões e... uns animais enormes que os cavaleiros designam por mamutes... A cidade... rendeu-se...
O homem tentou prosseguir mas, tombou para trás. Um Cavaleiro da Espada — seguidor do deus Kiri-Jalith, a quem fora concedido o poder da cura — pôs-se a prestar assistência ao cavaleiro ferido. Depois de examiná-lo, olhou para Sir Thomas.
— Os ferimentos não são graves, Excelência, mas sofre de perda de sangue e de exaustão — disse. — Precisa descansar.
— Muito bem. Arranjem-lhe uma cama confortável. Me informem quando for capaz de falar. Preciso saber pormenores. Quanto a vocês, homens, guardem segredo quanto ao que ouviram. Nem uma palavra deverá transpirar.
Os homens transportaram o mensageiro numa liteira e levaram o seu cavalo exausto para os estábulos.
— Seja como for, fiquei sabendo tudo o que precisava — observou Sir Thomas a Tanis. Os dois permaneceram sozinhos no átrio. O cavaleiro de guarda da entrada, retomou as suas ocupações. — Kalaman caiu. São notícias terríveis. Se chegarem a Palanthas, teremos um motim nas mãos.
Tanis pôs-se a efetuar uns cálculos rápidos.
— Como eu disse, Ariakan possui um exército imenso, que pode dividir à vontade.
— Entendo o plano dele — respondeu Sir Thomas com ar pensativo. — Ataca a costa leste com metade dos efetivos e os faz marchar para oeste, através das montanhas. Com a outra metade, ataca o nordeste e, no outro lado das Khalkists, reúne as tropas do sul com os que prosseguem o avanço. Pelo caminho, reunirá os ogros, os duendes maléficos e os draconianos que se esconderam nas montanhas. Terá que deixar tropas em Kalaman para mantê-la sob sua alçada e proteger as linhas de abastecimento, mas com os efetivos adicionais, quando chegar aqui, terá recuperado a plena força.
Sir Thomas esboçou um sorriso pesaroso.
— Eu o conheço, sabe? Nos bons e velhos tempos, eu e Ariakan costumávamos discutir planos muito parecidos com este. Enquanto se manteve prisioneiro aqui, nos tornamos amigos. Ariakan sempre foi um bom soldado — acrescentou Thomas com ar pensativo e abanando a cabeça. — O tornamos um dos melhores.
— Então, qual será a sua próxima manobra?
Virando a cabeça para o portão da frente, Sir Thomas olhou para leste.
— Está a caminho daqui — respondeu. — E não há absolutamente nada que possamos fazer para detê-lo.
— Não sei se no seu tempo era assim, mas, atualmente, há patrulhas, conhecidas por “patrulhas dos contrabandistas”, percorrendo as docas à noite — murmurou Palin ao companheiro. — E depois, temos as autoridades portuárias. O paredão da Cidade Velha foi reconstruído, e agora há guardas patrulhando. Nunca mais esquecerão o ataque lançado pelo dragão de Sua Eminência Kitiara.
Palin mal divisava Steel e o dragão. Iluminado pelos clarões suaves da Lua e das estrelas, que se refletiam nas águas, o cavaleiro procedia ao descarregamento dos mantimentos. Tinham pousado numa península que formava o litoral ocidental da baía de Branchala. Ocasionalmente, chegava até Palin o brilho da armadura, iluminada pelo luar, ou avistava a silhueta, alta e musculosa, perfilada contra o céu coalhado de estrelas.
Steel retirou a trouxa que continha as armas e que nunca era transportada na garupa do dragão, a menos que o cavaleiro voasse em combate. Afivelou a longa espada, enfiou uma outra, mais curta, no cinturão, e uma adaga na bota, deixando as setas, o arco e a lança ao cuidado do animal.
— Se a minha mãe e o seu tio tivessem unido esforços, em vez de lutarem cada um de um lado — observou Steel —, a essa hora eu poderia ser o anfitrião daquela festa na casa do suserano.
Não passou despercebida a Palin a sutil referência ao fato de Raistlin ter sido aliado das forças das trevas, tal como possivelmente ainda o era. No recôndito da sua mente, palpitava a lembrança do Teste na Torre da Feitiçaria Suprema, quando Palin conhecera o tio — pelo menos julgara tratar-se do tio. A imagem de Raistlin constituira pura ilusão, que Dalamar e os outros feiticeiros conjuraram para porem Palin à prova e verificarem se este sucumbia às mesma tentações que um dia haviam assediado o tio.
Os feiticeiros acreditavam que Caramon nunca permitiria que Palin se submetesse ao Teste, uma provação terrível pela qual todos os magos tinham que passar antes de aprofundarem a sua arte arcana. O Teste deixava seqüelas, alterações. Caramon não ia arriscar perder o adorado filho, tal como um dia perdera o adorado irmão. Os feiticeiros temeram que o amor superprotetor de Caramon levasse Palin a rebelar-se e a virar-se para o Mal, tal como acontecera ao tio. Assim, sonegaram a Caramon a decisão final, iludindo-o, e a Palin também.
No Teste, Palin acreditou que ultrapassara o Abismo, que aí fora deparar com o tio a ser torturado pela Rainha das Trevas. Libertando-o, conduzira-o de volta, através do Portal, só para constatar que Raistlin planejava deixar o Portal aberto, a fim de permitir o acesso à Rainha das Trevas. Em troca, esta concederia a Raistlin o governo do mundo.
Raistlin oferecera-se para tornar Palin seu herdeiro, mas só com a condição do sobrinho se dedicar ao Mal, fazer o voto das Vestes Negras. Palin recusara-se e preparara-se para sacrificar a sua vida, a fim de gorar os esforços do tio. Fora então que descobrira que tudo — o tio, o Portal e o Abismo — fazia parte do Teste. Nada fora real.
Ou seria?
Palin conseguia ainda ouvir as palavras de Raistlin.
Refreei a minha ambição. Nunca mais lutarei para me tornar um deus. Me contentarei com o mundo... Será esta a minha oferenda à Rainha das Trevas, como testemunho da minha lealdade — o acesso ao mundo. E o mundo constituirá a dádiva que ela me concederá. Será ela a governar e eu... eu a servir.
Foram estas as palavras do tio. Mas, tratara-se realmente do tio? Dalamar afirmara que a imagem de Raistlin não passara de ilusão, que o Raistlin que Palin encontrara fora um Raistlin criado por Dalamar.
Mas, o Bastão de Magius que Palin segurava com força, decerto não era ilusão.
— É melhor nos apressarmos — disse, em tom brusco. — É quase meia-noite.
Steel dava palmadinhas no pescoço do dragão fêmea, dirigindo-lhe palavras meigas. Palin apanhou a frase “Baluarte de Dargaard” e presumiu que seria onde Fulgor se esconderia. O senhor de Soth, o temível cavaleiro da morte, governava ainda aquela região. Outrora, Soth fora um Cavaleiro da Solamnia. Amores proibidos com uma elfa levaram-no a desonrar os seus votos de cavaleiro e a cometer assassínio. Sobre ele pairava a maldição dos deuses. Era eterno, mas vivia para sempre em amargo tormento, com ódio e inveja dos vivos. Fora leal à Rainha das Trevas e à sua causa. Num raio de cem léguas, nenhum mortal se atrevia a aproximar-se do castelo amaldiçoado. E rezava a lenda que a alma da falecida mãe de Steel fora obrigada a permanecer com o cavaleiro no Baluarte de Dargaard. O dragão azul se sentiria em segurança em tão sinistra companhia.
Inúmeras cabanas de pescadores pontilhavam a praia. Ou estavam desabitadas ou há muito os seus ocupantes se tinham deitado. Inquieto, Palin não desviava o olhar das mesmas, com receio que alguém acordasse.
— Depressa — repetiu, nervoso. — Acho que ouvi qualquer coisa.
— Não se preocupe, Majere. — Steel exibiu a adaga com o punho em forma de caveira. — Se alguém nos ver, fecho-lhe os olhos para sempre.
— Pelo amor dos deuses, nada de mortes! — protestou Palin. — Sei de cor um encantamento para dormir. Posso utilizá-lo no caso de nos descobrirem.
— Encantamento para dormir! — suspirou Steel com desprezo. — Acha que funcionará com os mortos-vivos que guardam a Clareira de Shoikan?
— Provavelmente, será tão útil como a tua adaga — respondeu Palin, zangado, desagradado com a idéia. A Clareira de Shoikan, que vira de relance do ar, deixara-o abalado.
Steel manteve-se calado. Nos olhos do cavaleiro perpassou um clarão que poderíamos considerar de júbilo. Em seguida, voltou a meter a adaga na bota.
Fulgor agitou as poderosas asas traseiras, a fim de conseguir levantar vôo do solo arenoso. Precipitou-se no ar, estendeu as asas, deixou-se embalar pela leve brisa marítima e elevou-se nos céus.
Vendo o dragão partir, Palin sentiu uma ponta de mágoa. Ele e Steel encontravam-se agora entregues a si mesmos e ambos pareciam terrivelmente desajustados.
— Você vem, Majere? — perguntou Steel, — Estava com tanta pressa!
Encontraram um pequeno barco de pesca ancorado na praia. Steel encheu-o com os mantimentos e arrastou-o para perto do mar, a fim de permitir que Palin — atrapalhado com as vestes — saltasse para bordo. Depois empurrou-o para as ondas, e só quando a água lhe chegou aos joelhos é que saltou para bordo.
Pegou nos remos e os fez deslizar pela água e, em silêncio, furtivamente, rumou para o porto.
— Há uma candeia aí ao fundo. Acenda-a — ordenou a Palin. — Não devemos levantar suspeitas.
No porto, as outras embarcações, de maior porte, estavam iluminadas por lanternas, a fim de evitar possíveis abalroamentos. Palin obedeceu, usando a pedra e a pederneira que encontrou na proa. Enquanto o fazia, pôs-se a cismar e achou estranho haver uma lanterna naquele pequeno barco de pesca e o fato de Steel conhecer a sua existência. E mais, como Steel sabia que a embarcação se encontrava ali? Talvez os pescadores utilizassem a luz para pescar à noite, ou para fazer contrabando — uma atividade muito mais lucrativa, nos dias que corriam.
Palin manteve a lanterna erguida, enquanto Steel impulsionava o barco para frente, tomando a precaução de evitar que a luz incidisse na armadura do cavaleiro das trevas.
A noite estava serena e abafada. Mal chegaram à zona resguardada do porto, deixaram de sentir a brisa marítima. Palin encontrava-se encharcado de suor. Steel devia se sentir ainda mais desconfortável, pois além da couraça e outros atavios envergava a capa. Ao passarem muito próximos de uma embarcação minotaura, alta e com três mastros, Palin olhou de relance para trás e vislumbrou o rosto do cavaleiro, a reluzir de transpiração. Tinha o cabelo preto molhado e encaracolado nas têmporas.
Sem se lamentar, manobrava vigorosamente os remos com uma facilidade e uma perícia que Palin, forçado ao papel de espectador por causa dos braços doloridos, invejou.
Chegou-lhes uma voz roufenha, vinda da embarcação dos minotauros, que lhes gritava. Olhando para cima, Palin avistou uma cabeça provida de chifres, perfilada contra as estrelas.
— Fiquem longe, seus camponeses! Mantenham-se a distância! Atrevam-se a fazer um buraco no meu barco e as suas miseráveis carcassas servirão de banquete aos peixinhos!
— Está bêbado — observou Steel. — Nem passamos perto dele.
Mas Palin reparou que Steel impulsionava o barco debruçando-se sobre os remos, de modo a este sulcar mais depressa pelas águas escuras. O mago agitou a lanterna, como forma de desculpa e, como resposta, recebeu uma praga.
— Apague a lanterna! — ordenou Steel, quando se aproximaram das docas.
Obedecendo, Palin apagou-a com um sopro.
Steel parou de remar e deixou que o barco deslizasse com o próprio impulso, ajudado pela maré enchente. De vez em quando, mergulhava um dos remos na água, para corrigir o rumo. Ao chegarem às docas, agarrou-se a um dos postes, enquanto o barco rodopiava, quase se enfiando por baixo da doca.
— Saia! — ordenou.
Palin procurou enxergar os degraus da doca, encontrou-os. Tinha que se levantar, equilibrar-se numa pequena embarcação balançante, agarrar-se às escadas e, içando-se, subi-las. Olhou então para as águas escuras de breu que gorgolejavam e batiam contra os postes.
— E o meu bastão? — perguntou, virando-se para Steel. — Não consigo levá-lo comigo!
— Eu te dou! — respondeu Steel, enclavinhando ambas as mãos no poste, a fim de lutar contra a correnteza que arrastava a embarcação para a margem.
— Não... — respondeu Palin, apertando o bastão com mais força.
— Então, peça-lhe que arranje uma maneira de subir ali! Apresse-se, Majere! Não consigo agüentar por mais tempo!
Palin hesitou, não por medo mas preocupado por largar o valioso bastão. Steel emitiu um ruído sibilante e dardejou o jovem mago com um olhar furioso.
— Diabos te levem! Já!
Palin não tinha outra alternativa senão acreditar, tal como Steel insinuara, que o bastão cuidaria de si mesmo. Pousando-o cuidadosamente no banco, lutou para manter o equilíbrio. Apelando a todas as forças, Steel conseguiu balançar a embarcação, de modo que ficasse perto da doca. Palin precipitou-se para a escada, conseguiu agarrá-la e, aterrorizado, pendurou-se, enquanto via o barco desaparecer debaixo de si.
Procurou, com os pés, uma superfície firme e encontrou o último degrau. Com um arquejo de alívio, tropeçando nas vestes, conseguiu subir em segurança. Ao chegar no alto, imediatamente se virou para recuperar o bastão.
Aterrorizado, não o avistou.
— O que fez ao meu bastão? — gritou, em pânico e ultrajado, esquecendo-se de que a presença deles devia passar despercebida.
— Cale-se! — respondeu Steel entredentes. — Não tive nada a ver com isso! Num minuto estava ali e logo a seguir, desapareceu!
Tomado de pânico, com o coração arrebentando de dor, Palin estava prestes a se atirar nas águas escuras e densas quando, ao pousar a mão no desembarcadouro, sentiu perto dos dedos algo de madeira que era macio e quente.
O Bastão de Magius repousava ao seu lado.
Palin arquejou, o alívio quase o deixou estonteado.
— Não importa — sussurrou, com voz tímida, a Steel. — Encontrei-o.
— Que Sua Majestade das Trevas seja louvada! — murmurou Steel. Pondo-se de pé no barco, o cavaleiro segurou as escadas e — apesar de carregado com a armadura e as armas — deu um balanço e içou-se com facilidade. A embarcação se afastou, levada pela correnteza.
Já no desembarcadouro, Steel levantou-se, mas quase de imediato, agachou-se atrás de uma barrica, arrastando Palin consigo.
— O que foi? — murmurou Palin.
— Aí vem a patrulha — respondeu Steel num sussurro. — As luzes dos barcos podem trair a nossa presença.
Palin não avistou nada, mas avisado pelo cavaleiro, percebeu o ruído de botas. Permaneceram ocultos atrás da barrica até o som se desvanecer à distância.
Levantando-se, Steel percorreu rápido e silenciosamente o desembarcadouro, procurando abafar os passos. Qualquer outro guerreiro que Palin conhecesse, teria caminhado com estrépito e aos tropeções, fazendo a espada tilintar contra a anca, com a armadura a chocalhar ou a ranger. Steel, porém, moveu-se tão silenciosamente como a própria escuridão.
Pelo espírito de Palin perpassou a imagem de cavaleiros assim, marchando sem um ruído contra Ansalon, conquistando, escravizando, matando.
E aqui estou eu, pensou, subitamente apavorado, aliado a um deles, ao meu inimigo, a um dos responsáveis pela morte dos meus irmãos. E vou conduzi-lo ao único lugar que talvez permita à Rinha das Trevas reforçar o poderio dos seus cavaleiros! O que estou fazendo? Será que fiquei louco? Deveria chamar os guardas já! Denunciá-lo! Entregá-lo!
— Não — chegou-lhe a voz. — Precisamos dele! Vai precisar da espada dele para conseguir ultrapassar a clareira. Vai precisar dele no interior da torre. Depois de te conduzir em segurança até lá, então poderá se livrar dele.
Não está certo, pensou Palin, mas os avisos da sua consciência não eram tão estridentes como a voz do tio, de modo que conseguiu ignorá-los. Além disso, refletiu, ambiguamente, dei a minha palavra a Steel. E depois de todos os argumentos que usei com o meu pai, não vejo como posso voltar atrás.
Acalmada a consciência — ou pelo menos racionalizada a rota a seguir — agarrou com força o bastão e apressou o passo.
Steel seguia na direção da muralha da Cidade Velha. Caminhava em passadas rápidas, e Palin atrapalhado com as vestes molhadas que se enrodilhavam nos tornozelos, viu-se forçado a acelerar a marcha para poder acompanhá-lo. As guaritas bem iluminadas das sentinelas viam-se com nitidez. As vozes das patrulhas faziam estremecer a quietude da noite. Palin engendrara uma dezena de mentiras que pretendia usar como passaporte de entrada na muralha e no interior da cidade. Infelizmente, nenhuma lhe pareceu, no mínimo, convincente. Ansioso, pôs-se a examinar a muralha, na esperança de descobrir algum ponto obscuro e não vigiado pelo qual pudessem trepar.
Desistiu da idéia ao ver o topo cravado de espigões de ferro, a intervalos mais ou menos da largura de uma mão.
Interrogava-se se ele e o primo seriam suficientemente parecidos para passarem por irmãos junto do portão dos guardas, quando reparou que não se encaminhavam para o portão principal. Em vez disso, Steel virara para a direita, em direção a um aglomerado de edifícios em ruínas, amontoados por sob a muralha.
Nesta zona, a escuridão adensava-se bastante, pois a sombra projetada pela muralha ocultava o luar, e um grande navio ancorado próximo, não permitia entrever as luzes do porto.
Um esconderijo ideal para contrabandistas, pensou Palin, algo incomodado. Ao sentir a mão de Steel no braço, deu um pulo, com o coração em alvoroço. O cavaleiro arrastou Palin para as trevas de uma viela.
Apesar da escuridão ser tão densa que o mago não via um palmo à frente do nariz — para utilizar uma expressão kender —, foi precisamente o nariz que lhe disse onde se encontravam.
— Peixeiros! — exclamou baixinho. — Ora essa...
Surgiu uma patrulha, que começou a caminhar lentamente pela zona, perscrutando cada viela. Steel achatou-se contra a parede da casa, no que foi secundado por Palin. Os guardas efetuaram uma patrulha minuciosa, partilhando obviamente a convicção do jovem mago, de que o lugar constituía um esconderijo ideal. Um deles, chegou até a se aventurar pela viela. Palin sentiu a mão de Steel afastar-se, e supôs que agarrava agora o punho da adaga.
Sem saber ao certo se devia impedi-lo, ou ajudá-lo, Palin aguardou, expectante, julgando que iam ser descobertos.
A alguma distância, ouviram-se barulhos de rixa, o que despertou a atenção dos guardas. O capitão chamou o subordinado e a patrulha dirigiu-se apressadamente para as docas.
— Avistei um!
— Onde?
— Consigo vê-lo! Lá está ele! — gritou um dos guardas.
O som das botas ecoou pelas docas. Depois, golpes vigorosos de bastonadas. Um grito estridente atravessou as águas. Palin remexeu-se, inquieto. Não lhe pareceu que viesse de um contrabandista malfeitor.
— Não se mexa — grunhiu Steel a Palin. — Não é da nossa conta.
Um dos guardas soltou um guincho.
— Raios! O tipo me mordeu!
Sucederam-se mais sons de pancadaria. O grito transformou-se em lamúria.
— Não bater! Não bater! Mim não fazer nada de mal! Mim andar à caça de ratazanas! Ratazanas gordas! Ratazanas suculentas!
— Duendes dos esgotos — sentenciou um dos guardas, com um tom de profundo asco.
— Ele me mordeu, senhor! — repetiu o guarda, parecendo agora bem inquieto. — Sinto-me enjoado!
— Meu capitão, o jogamos na cabana? — perguntou outro.
— Vamos dar uma olhadela no saco que traz com ele — ordenou o oficial.
Pareceu haver uma certa relutância em acatar esta ordem, pois o capitão viu-se obrigado a repeti-la diversas vezes. Por fim, houve alguém que obedeceu. Palin e Steel conseguiam ouvi-lo remexer nas coisas.
— São ratazanas mesmo, meu capitão! — disse outro. — Mortas ou morrendo!
— Eu te dar ratazanas todas! — exclamou a voz choramingas. — Levar todas, Senhor General, Vossa Senhoria! Fazer sopa ótima! Não magoar coitado do Slug! Não magoar!
— Soltem o desgraçado! — ordenou o capitão. — Se o levarmos, vão ter que desinfetar a prisão outra vez! É óbvio que não se trata de um contrabandista. Ande, tenente, não é a mordida de um duende dos esgotos que vai matá-lo.
— Como pode ter certeza, capitão? — lastimou-se o outro. — Ouvi falar de alguém que morreu. E não foi nada bonito de se ver. Espumava pela boca, tinha os queixos presos e...
— Vamos levá-lo ao Templo de Paladino — interrompeu-o o capitão. — Que dois dos teus homens te acompanhem. Sargento Grubb, venha comigo.
A patrulha se afastou marchando do portão principal. Depois de confirmar que os guardas se encontravam a uma distância segura, Steel abandonou a viela e foi tão repentino, que Palin teve de dar um salto para conseguir acompanhá-lo.
— Onde vamos? — perguntou.
Steel não respondeu e foi direito ao ponto de onde vinham os sons da briga. Mergulhando nas trevas, o cavaleiro colocou as mãos numa silhueta infame que se retorcia e cheirava um pouco pior do que a viela onde se escondia.
— Socorro! Socorro! Assassinos! Ladrões! Não bater! Não bater! — suplicou o duende dos esgotos. — Querer ratazanas? Mim dar...
— Cale essa cloaca! — ordenou Steel, abanando o duende até os dentes deste parecerem castanholas. — Pare de choramingar, que não lhe farei mal! Preciso de algumas informações. Onde fica a loja da Katie Zarolha de Um Olho?
O duende deixou de espernear.
— Mim saber — respondeu, com ar manhoso. — Quanto custar?
— Que tal a tua carcassa miserável? — respondeu Steel, abanando de novo a criatura.
Palin interveio:
— Dessa maneira não consegue nada dele — disse, remexendo num dos bolsos. — Por que nós vamos a uma peixaria? — acrescentou em voz baixa. — A menos que esteja com desejo de comer halibute...
— Eu é que sei, Majere. E está perdendo tempo — respondeu Steel, impaciente.
— Tome — disse Palin, sacando de uma moeda e estendendo-a ao duende. — Aceite isto.
O duende arrebanhou-a e pôs-se a examiná-la no escuro.
— Cobre? — fungou. — Mim querer aço.
Ouvindo o cavaleiro suspirar, exasperado, Palin apressou-se a estender outra moeda.
— Agora, diga onde fica essa Zarolha... qual era o nome?
— Katie — respondeu Steel, realçando a palavra com um ranger de dentes.
— Duas lojas abaixo — respondeu o duende. — Não mais que duas.
Palin suspirou.
— Pode ir de duas a vinte — disse. — Qual é o aspecto da loja?
— Ter um grande peixe na tabuleta. Com um olho só.
O duende quase ficou sem o dele, ao tentar examinar bem a recompensa. Ao que parece, ficou satisfeito, pois enfiou as moedas numa algibeira esfarrapada e fugiu de repente, possivelmente receoso que Palin mudasse de idéia e quisesse o dinheiro de volta. Steel encaminhou-se para as docas.
— Preciso de luz — disse. — Raios, não consigo ver nada! Que pena não termos trazido aquela lanterna!
— E os guardas? — perguntou Palin.
— Não podem nos ver, pois aquele navio grande lhes tapa a visão. Não é que isso interesse...
— Shirak — disse Palin.
O cristal do Bastão de Magius, que era sobrepujado por uma garra de dragão, começou a emitir um suave fulgor. Steel dirigiu ao mago um olhar de aprovação.
— Boa, Majere! — disse.
— Obrigado, mas eu não tive nada a ver com isto — respondeu Palin, de novo em tom amargo. — O bastão faz tudo sozinho. Nem estou bem certo como se pronunciam as palavras. — Levantou o bastão e foi iluminando as tabuletas das lojas pelas quais passavam.
— Por que se subestima? — perguntou Steel. — Um homem deve estar ciente do seu próprio valor.
— E estou. Não valho rigorosamente nada. Mas, isso há de mudar em breve.
— Quando encontrar o teu tio. Mas, ele envergava as vestes negras, não era? E você, as vestes brancas. Será que você vai mudar, Majere?
Boa pergunta. Palin também já a formulara.
— Não — respondeu por fim. — Tomei a minha decisão durante o Teste. Sinto-me contente com quem sou, embora possivelmente me desagrade o que sou. Se sou ambicioso, se quero aperfeiçoar-me não é crime nenhum. O meu tio há de compreender.
— E será que ele vai ensinar a sua arte negra a um Veste Branca? — retorquiu Steel com desdém. — Quando isso acontecer, me tornarei sacerdote de Paladino! — E olhando de esguelha para Palin, acrescentou: — Escreva as minhas palavras, Majere. Vai mudar.
— Espero que não aconteça — replicou Palin com frieza. — Porque, se for assim, deixarei de honrar a palavra dada e continuar teu prisioneiro. Quem sabe se não dará com a minha adaga espetada nas tuas costas.
Steel sorriu, quase soltou uma gargalhada.
— Boa resposta — retrucou. — Não a esquecerei.
— Aqui está a tua tabuleta — assinalou Palin, ignorando o sarcasmo. — Um peixe com um olho só.
— Ah! Excelente! — Steel encaminhou-se para a porta. Olhando ao redor, para se assegurar que não havia ninguém por perto, bateu de uma forma peculiar.
Desconcertado, Palin aguardou em silêncio.
O proprietário, se possivelmente chegava a dormir, possuía, ao que parece, um sono leve. Após um brevíssimo compasso de espera, o postigo da porta entreabriu-se, deixando entrever uma mulher com uma pala preta tapando um dos olhos.
— Meus bons senhores, estamos fechados — disse.
— No entanto, a maré está enchendo — respondeu Steel, como que puxando conversa. — Os que possuem barcos, deviam aproveitar para se por ao largo.
O postigo fechou-se com estrépito mas, quase de imediato, a porta se abriu.
— Entrem, meus senhores — disse a mulher. — Façam o favor de entrar.
Os dois penetraram na peixaria. Tinha um aspecto limpo, o chão fora esfregado e lavado. As bancas normalmente utilizadas para expor o peixe acabado de pescar, encontravam-se vazias e só as encheriam quando os barcos voltassem da pescaria da manhã. Numa prateleira, viam-se alinhados frascos castanhos contendo óleo de peixe. Pairava no ar um cheiro penetrante de peixe fresco sem, no entanto, ser desagradável. A mulher fechou a porta atrás deles e examinou, com o olho penetrante, o bastão de Palin, que continuava a emanar um suave fulgor.
— É mágico — explicou Palin —, mas não te fará mal.
A mulher riu.
— Oh, estou bem ciente disso, Mestre Mago — respondeu. — Conheço tudo a respeito do Bastão de Magius.
Palin, sem saber se devia ou não sentir-se agradado com o comentário, apertou ainda mais o bastão e observou de perto a mulher. Era de meia-idade e atraente, apesar da pala no olho. Encontrava-se completamente vestida, o que Palin possivelmente consideraria estranho àquela hora da noite, não fosse a sua presença ali ser tão estranha e ilógica como uma peixeira com uma pala no olho, de pé, e vestida como se fosse sair a meio da noite. Era como se sonhasse acordado.
— Senhora, sou Steel Montante Luzente — disse o cavaleiro, curvando-se para a mão rugosa e avermelhada da mulher, como se tratasse da mão suave de uma dama da nobreza —, Cavaleiro do Lírio.
— Comunicaram-me a tua vinda, Senhor Cavaleiro — respondeu a mulher. — E você, deve ser Palin Majere.
Virou-se para Palin, com o olho visível a refletir o fulgor do bastão. Vestia as roupas modestas e simples das camponesas, mas tinha uma postura régia e uma voz culta, educada. E se encontrava numa peixaria!
— Sim! Sou Palin... Majere, minha... minha senhora — replicou ele, atônito. — Como soube?
— Pelo dragão, é evidente. Sou Katherine, Guerreira do Lírio, membro da cavalaria de Sua Majestade das Trevas.
— Uma cavaleira de... de Takhisis? — disse Palin, quase sem fala.
— De um posto elevado — acrescentou Steel, realçando a palavra. — Lady Katherine combateu na Guerra da Lança.
— Sob o comando de Lorde Ariakus — explicou Katherine. — Foi assim que perdi o olho, numa luta com um elfo...
— Eu... lamento, senhora — gaguejou Palin.
— Não lamente. O elfo perdeu mais do que um olho. A propósito, conheço Raistlin Majere, o teu tio. Quando o encontrei, adotara o hábito negro a pouco. Achei-o... encantador. Doentio, mas encantador.
E virando-se rapidamente para Steel, Lady Katherine inquiriu:
— Pretende entrar incógnito em Palanthas, não é verdade?
— Sim, senhora, se for possível.
— Nada mais fácil. Claro que é um dos motivos por que me encontro aqui. E que me leva a manter este disfarce. — Ao dizê-lo, olhou diretamente para Palin, como que a adivinhar seus pensamentos.
Este sentiu o rosto afogueado, ao mesmo tempo que um calafrio o percorria.
Com que então, é através deste estabelecimento que os servos da Rainha das Trevas se infiltram em Palanthas!, pensou. Espiões a soldo dos cavaleiros, possivelmente assassinos, afluem à peixaria, onde a proprietária os ajuda a entrar incógnitos na cidade! Por que me deixaram saber disso? A menos que tenham certeza de que a minha língua será silenciada. Porque não? Afinal de contas, sou um prisioneiro.
Sentindo a tentação de fugir, Palin olhou de relance para a porta. Era capaz de, pelo menos, correr para o exterior antes que Steel o apanhasse. Os seus gritos atrairiam os guardas.
Palin imaginou-se a gritar por socorro — muito parecido com o duende dos esgotos — e sentiu o rosto a escaldar.
Lady Katherine dirigiu-lhe um sorriso e, mais uma vez, Palin teve a sensação de que esta sabia tudo o que lhe ia no íntimo.
— Se estão determinados a entrar, então me acompanhem. Foi difícil encontrar o estabelecimento, Montante Luzente? — A dama encaminhou-se para uma banca de madeira para peixe, encostada à porta dos fundos.
— Um duende dos esgotos nos indicou o teu paradeiro, senhora.
— Ah, devia ser o Alf. Sim, mandei-o ficar a espreita para me avisar da sua chegada.
— Não foi bem a espreita — comentou Palin. — Ele nos disse que nunca ouvira falar do lugar.
— E conseguiu te arrancar algum dinheiro, não foi, Veste Branca? Criaturas espertas, os duendes dos esgotos! As pessoas não lhes dão o devido valor. Ora cá estamos. — Katherine pousou as mãos na mesa. — Temos que deslocá-la.
— Dona, se me dá licença — ofereceu-se Steel, deslocando com facilidade a pesada mesa.
Katherine encaminhou-se para o que parecia ser uma sólida parede de pedra. Pousou a mão nela e empurrou. Uma seção da parede girou sobre um eixo, revelando uma passagem oculta.
— Atravessem o túnel. Vão dar numa viela. Fica na propriedade do Grêmio dos Ladrões, mas pagamos bem pelo silêncio... e pela sua proteção. O Olho Amarelo acompanha-os, a fim de se certificar de que não haverá problemas.
Katherine assobiou de uma maneira peculiar.
Julgando se tratar de um dos escudeiros da dama, Palin interrogou-se onde o homem estivera metido até então. Um crocitar rouco e o roçar de umas asas pretas deixaram o mago sobressaltado e quase o fizeram perder a compostura. Num gesto instintivo, Palin levantou os braços para se defender de um ataque, mas sentiu que a ave pousava suavemente no seu ombro. Verificou tratar-se de um corvo.
Empinando a cabeça, Olho Amarelo examinou Palin com curiosidade. À luz da candeia, os olhos da ave tinham a refulgência do âmbar.
— Ele gosta de você — observou Lady Katherine. — É um bom presságio.
— Para mim ou para você? — inquiriu Palin, sem pensar.
— Majere, não seja irreverente! — exclamou Steel, zangado.
— Montante Luzente, não se zangue — interveio Lady Katherine. — O jovem diz o que pensa... uma característica que deve ter herdado do tio. Palin Majere, se estivesse na presença de Paladino e Takhisis, a quem pedia ajuda? Qual deles você acha que estaria em melhores condições para ajudá-lo a alcançar o teu objetivo?
De consciência pesada, Palin subitamente se deu conta de que não solicitara a intervenção divina de Paladino.
— É tarde — disse, virando-se para Steel. — É melhor irmos.
O sorriso de Lady Katherine acentuou-se. O corvo soltou outro grito rouco e estridente, que mais parecia uma gargalhada. Empoleirado no ombro de Palin, com o bico pontiagudo mordiscou-lhe a orelha, brincando, causando-lhe uma sensação dolorosa. O mago sentiu as garras do animal enterrarem-se no ombro.
Steel exprimiu os seus agradecimentos à dama e esboçou um gesto de despedida cortês e gracioso.
Lady Katherine retribuiu o cumprimento e desejou-lhes êxito no seu empreendimento.
Acompanhados pelo corvo, que seguia com ar triunfante empoleirado no ombro do mago, Palin e Steel aventuraram-se pelo túnel estreito, com o bastão iluminando o caminho. À medida que as trevas se adensavam, o fulgor do bastão aumentava — um fenômeno que não passara despercebido de Palin antes. Verificou que o túnel se estendia sob a Cidade Velha e interrogou-se como fora possível aos cavaleiros escavá-lo sem levantar suspeitas.
Presumo que graças à magia, disse para consigo, lembrando-se dos feiticeiros dos Cavaleiros Cinzentos. Provavelmente, alguns deles encontravam-se em Palanthas, vivendo bem debaixo do nariz de Dalamar.
Não vejo a hora de lhe contar, pensou, deleitado com a idéia. Tal informação por certo lhe valeria a ajuda do feiticeiro!
O túnel não era muito comprido, apenas o equivalente à largura da muralha da cidade. Havia outra porta, que desembocava numa viela. Antes de abri-la, Steel se deteve.
— É melhor apagar essa luz — disse. Palin concordou.
— Dulak — murmurou, e o fulgor do cristal desvaneceu-se.
A escuridão era total. Palin não conseguia entrever o corvo que permanecia empoleirado no seu ombro. Ouviu a ave agitar as asas e Steel rodar a maçaneta da porta.
Esta se abriu com um chiar de gonzos. Do interior escoou um clarão prateado. Ocorria o crepúsculo de Lunitari, mas sucedia-lhe o dealbar de Solinari, e Palin sentia-se profundamente grato por isso. Com os seus encantamentos mágicos, podia invocar a lua, para que lhe reforçasse o poder. Quando atravessassem a mortal Clareira de Shoikan, iria necessitar de toda a ajuda possível. Dispunha-se a orar a Paladino, quando lhe ocorreu a pergunta de Lady Katherine.
Optando por confiar no seu instinto, Palin desistiu das preces.
— Mantenha-se junto a mim — avisou-o Steel baixinho.
Palin lembrou-se que se encontravam próximos ao Grêmio dos Ladrões. Introduzindo a mão no alforje, agarrou em algumas pétalas de rosa. Nos seus lábios bailavam as palavras adequadas ao encantamento do sono. Steel segurava o punho da espada.
Penetraram sorrateiramente na viela.
De súbito — nada ouviram, nada viram — uma figura alta e escura postou-se diante deles, vedando-lhes a passagem.
Antes que Steel pudesse desembainhar a espada ou Palin pronunciar as palavras do encantamento, Olho Amarelo emitiu um grasnido estridente e roufenho.
A figura desvaneceu-se, como se nunca tivesse existido.
— Impressionante — observou Palin, dando um suspiro de alívio.
— Insidioso como uma barata — respondeu Steel com desdém, mas sem largar a espada e perscrutando a viela.
— Que faremos com o Olho Amarelo? — Palin preparava-se para formular a pergunta quando a ave, batendo as asas, emitiu outro grasnido estridente e desferiu uma bicada violenta no pescoço do mago.
Este soltou um grito de dor e levou a mão à ferida.
— Mas, que diabo?... — Steel virou-se com tanta brusquidão que quase perdeu o equilíbrio.
— O maldito pássaro me deu uma bicada! — exclamou Palin, furioso e dolorido.
— Só isso? — retorquiu Steel, zangado. — Achei que tivesse sido atacado por uma legião de ladrões, no mínimo!
— O danado do pássaro me tirou sangue! — Palin retirou a mão e olhou para a mancha escura que se lhe alastrava pelos dedos.
O corvo soltou novo grasnido — que mais parecia uma risada — e sobrevoou a muralha, voltando para trás.
— Não vai morrer por causa da bicada de um corvo — disse Steel. Encaminhando-se para o extremo da viela, espreitou a rua.
Esta encontrava-se deserta, silenciosa. No edifício, com aspecto de armazém, que albergava o Grêmio dos Ladrões entreviam-se algumas luzes, que brilhavam desafiadoras, impudentes, mas nenhum dos seus membros percorria as aias. Ou se assim era, nem Steel nem Palin conseguiram avistá-los.
Com precaução, Steel examinou a ala de um extremo ao outro e depois o seu olhar deteve-se para lá dos beirais dos telhados.
— Lá está a torre — anunciou.
Apontou para uma estrutura que era a mais elevada de Palanthas. O fulgor de Solinari nunca conseguia penetrar na torre, que permanecia nas trevas que ela própria derramava. Contudo, ambos conseguiam vê-la com nitidez. Seria possivelmente a lua preta a irradiar o seu fulgor profano sobre os minaretes cor de sangue. Palin aquiesceu com a cabeça, incapaz de pronunciar palavra. Sentiu-se de repente avassalado pela amplitude da sua missão.
Enlouqueci, disse para consigo. Deveria dar meia volta e regressar imediatamente para casa,
Não o faria e sabia disso. Tanto que caminhara e arriscara...
Tanto que caminhara...
Confuso, Palin olhou em redor.
— Onde estamos? — perguntou. Steel esboçou um sorriso manhoso.
— Dentro das muralhas da cidade de Palanthas.
— Como... como conseguimos entrar? — inquiriu Palin, piscando os olhos.
— Não se lembra?
— Não... Eu... Não faço a mínima idéia. — Palin levou a mão à cabeça. Sentia-se tonto, desorientado.
— As bebidas alcoólicas dos duendes provocam isso — respondeu Steel sem hesitar. — Daqui a pouco se sentirá melhor.
— Bebidas alcoólicas dos duendes? Mas... Eu não bebo! E você nunca pararia numa taberna, numa hora em que corremos tanto perigo! — Palin sentiu de repente a fúria invadi-lo. — O que se passa aqui? Diga-me já!
— Não — respondeu Steel em tom calmo. — Não digo.
Palin sentiu um penetrante latejo de dor e algo quente a escorrer-lhe do pescoço. Aflorou-o com a mão e descobriu que se encontrava ferido e sangrando.
Tampouco conseguia se recordar como tinha acontecido.
Steel começou a percorrer a rua, encaminhando-se para a torre.
Desorientado, Palin seguiu-o.
Em algum lugar no céu, estalou a risada trocista e lúgubre de um corvo.
Era uma daquela noites de Verão escuras e abafadas. O sono dos cidadãos de Palanthas que conseguiam dormir era agitado. Em muitas casas se via o bruxulear de candeias. Havia pessoas debruçadas nas janelas, perscrutando os céus, na esperança vã de verem cair algumas gotas de chuva, ou percorrendo os quartos, na tentativa de acalmar crianças que gemiam de rabugice ou choravam. Steel e Palin prosseguiam a caminhada, privilegiando os locais obscuros, pois deste modo passavam despercebidos e evitavam perguntas, em especial as relacionadas com o fato de um homem conseguir agüentar tamanho calor envolto numa capa.
Os dois se encontravam próximos do seu destino. Steel conseguia avistar a torre, que pairava por cima dele, e no entanto frustrava-o não ser capaz de localizar a rua que desembocava na mesma. Não podia contar com a ajuda de Palin. O mago já estivera na torre antes, mas viajara sempre pelas estradas da magia. Ao chegarem a um cruzamento, pararam para discutir que rumo tomariam. Palin deixou que fosse Steel a decidir, mas, à primeira vista, o cavaleiro se enganou, pois foram dar em um largo trecho de gramado que se estendia, qual tapete de boas-vindas, desde a aia e terminava num edifício feito de mármore branco. Pairava na atmosfera o perfume das flores dos jardins, tenuemente iluminados pelo fulgor prateado de Solinari e o clarão esbranquiçado que vinha do próprio edifício.
Steel sentiu um baque de dor no coração, uma dor há muito esquecida e que veio agitar reminiscências do passado.
— Sei onde nos encontramos — declarou.
— O Templo de Paladino! O último lugar onde desejaríamos estar! — Palin parecia alarmado. — Caminhamos muito para leste. Devíamos ter virado ali à direita, e não à esquerda. — Olhando de relance para Steel, acrescentou: — Surpreende-me que conheça o templo.
— Quando eu era criança, Sara me trouxe aqui depois do ataque contra Palanthas. Perdemos a nossa casa devido aos incêndios que devastaram a cidade. Sara me trouxe aqui para agradecer não termos perdido a vida. Foi aqui que soube da morte da minha mãe... e quem foi o responsável!
Palin não deu resposta. Esfregou a zona do pescoço onde o corvo, o ajudante de Lady Katherine, lhe desferira uma bicada. A dor logo passaria. A magia da bicada perduraria para sempre, impedindo que Palin se lembrasse de ter conhecido um cavaleiro que era uma dama e se transformara em peixeira. Palin recomeçou o percurso oposto e Steel preparava-se para imitá-lo, mas deteve-se um momento diante do templo, chegando mesmo a dar uma ou duas passadas no espesso tapete de relva.
Nela se vislumbravam vultos escuros, e por um instante Steel julgou que ocorrera uma batalha e que se tratava de corpos. Percebeu em seguida que os mesmos se encontravam vivos e que a única batalha travada era contra o calor. As pessoas cochilavam pacificamente no gramado.
Steel conhecia bem o local, mais do que dera a entender. Quem sabe se a sua vinda não fora fortuita. Quem sabe se fora arrastado até ali, como lhe acontecera antes com freqüência.
Steel vivera uma juventude agitada. Nunca conhecera os dias fáceis e descuidados da infância louvada pelos poetas. A guerra entre a Luz e as Trevas, entre emoções e desejos antagônicos, não lhe era inédita. Desde muito cedo travara esta batalha. As Trevas, simbolizadas pela imagem da mãe na sua armadura draconiana azul, impeliram Steel, mesmo em criança, a governar, controlar — não importava a que preço, para ele ou para os outros.
E quando isso não era possível, quando as outras crianças se rebelavam contra a sua prepotência, recusando-se a obedecer-lhe, pressionavam-no a chicoteá-las, a magoá-las. A Luz, nos seus sonhos representada pela imagem de um cavaleiro desconhecido, vestido de prata, levava Steel a sentir-se depois avassalado pelo remorso. Lutava contra o torvelinho que lhe agitava a alma, sentindo-se arrastado em dois sentidos contrários, por forças poderosas que não compreendia. Receava por vezes ser dividido em dois se possivelmente não optasse por uma ou por outra. Quando isso acontecia, era ali que se refugiava. No Templo de Paladino.
Steel desconhecia porquê. Era jovem, tão imortal como os deuses, assim julgava, e por isso os deuses pouca falta lhe faziam. Nunca entrara propriamente no templo. As suas paredes de mármore eram sufocantes, causavam opressão. Não longe do lugar onde se encontrava, erguia-se uma faia preta, e sob a árvore havia um banco de mármore, antigo, relíquia de alguma família nobre dos tempos de outrora. Sendo frio, duro e desconfortável, em geral era evitado pela maior parte dos devotos.
Steel adorava-o. Nas costas do banco fora esculpido um friso de trabalhadores de contornos toscos, possivelmente executado por algum aprendiz. Retratava o funeral de um Cavaleiro da Solamnia e servia de monumento comemorativo. O friso representava o cavaleiro, deitado no túmulo de pedra, os braços cruzados no peito e o escudo encostado à tumba (uma imprecisão, mas que obedecia à veia artística). Do outro lado do corpo do cavaleiro — todos idênticos e todos parecendo muito solenes e carrancudos — viam-se 12 escudeiros.
Ocorreram a Steel os momentos em que se sentava na relva, com o queixo pousado nos braços e estes sobre o banco. Ali, por breves instantes, cessava o tumulto que lhe ia na alma, apaziguava-lhe a raiva febril que lhe queimava o cérebro, os seus punhos crispados relaxavam-se. Ficava a olhar para o friso, imbuindo-o de vida repassada de juventude e imaginação. Por vezes, tratava-se do seu próprio funeral. Claro que morrera praticando façanhas heróicas. Gostava de imaginar que morrera salvando a vida de outras crianças — os ditos amigos — e que agora, muito tarde, estes acorriam para lhe prestar as devidas homenagens. Também se imaginava presente no funeral de outro cavaleiro, e Steel via-se não como um dos que pranteavam o falecimento deste, mas como o responsável pela morte do cavaleiro. A justa fora honrosa, o cavaleiro tivera uma morte heróica e Steel comparecera ao funeral para lhe render homenagem.
Exatamente o que quase acontecera com os irmãos Majere.
O pensamento provocou-lhe um calafrio, se bem que, normalmente, Steel não se entregasse a sensações deste gênero.
Montante Luzente, está se portando como um piegas, disse severamente para consigo, envergonhado com este rasgo momentâneo de superstição. Contudo, é estranho, prosseguiu de si para si, perscrutando as trevas e tentando, sem êxito, ver refletida no frio mármore branco do banco uma réstia de luar. Já esquecera tudo sobre este banco velhinho... E, nas trevas, sorriu para si, um sorriso doce e triste.
Agora, encontrava-se familiarizado com os deuses. Dedicara a vida a um deles, a uma deusa das trevas, à deusa que governava o negrume da sua alma. Por ela seria castigado se procurasse aquele banco aprazível. Sem dúvida que também Paladino descarregaria a sua vingança contra qualquer servo de Sua Majestade das Trevas que se atrevesse a franquear o seu recinto sagrado. Pisar a relva, tal como fizera, seria considerado sacrilégio.
Palin examinava-o com atenção e preparava-se para falar, quando um som grave e profundo o silenciou.
O rosnar era selvagem, temerário, e vinha de trás.
— Não se mexa! — avisou Palin baixinho. Encontrava-se de frente para Steel e conseguia enxergar as costas do cavaleiro. — É um tigre. Está a cerca de dez passos atrás de ti. Ele...
— Não se alarmem, meus senhores. — A voz, fria e calma, ressoou na escuridão. — É Tandar, o meu guia. Não lhes fará mal. Não acham que é tarde para andarem pelas aias? Perderam-se? Meteram-se em confusão? Posso ajudá-los?
Steel se moveu, virando-se lentamente, com a mão no punho da espada. Palin apressou-se a juntar-se a ele.
Uma réstia da lua prateada foi refletir-se no animal. Tratava-se de um tigre branco, extremamente raro em Ansalon. Possuía listras pretas e cinzentas, e os seus olhos verdes, com laivos dourados, eram perigosamente inteligentes. O animal era enorme, com uma cilheira maciça e as garras do tamanho da cabeça de um homem. No pescoço, luzia-lhe uma coleira dourada, e desta pendia um medalhão com um dragão dourado — o símbolo de Paladino.
Não fora o tigre quem falara, embora o seu olhar inteligente talvez o permitisse, fora uma mulher. Emergiu das sombras para se postar ao lado do animal e pousou-lhe a mão na cabeça com gentileza. Designara o animal por “meu guia”. Quando o fulgor de Solinari a iluminou, Steel entendeu porque ela andava de noite na companhia daquele imponente exemplar.
E devia sempre caminhar nas trevas, pois era cega.
Steel reconheceu-a. Tratava-se da Venerada Filha Crysania, Suprema Sacerdotisa do Templo de Paladino, a chefe dos adoradores do deus em Ansalon.
Cerca de 20 anos tinham decorrido desde que, instigada por uma ambição tão tenebrosa como a do próprio mago, Crysania acompanhara Raistlin Majere até o Abismo. Quase perdera a vida lá. Quando se vira só e cega, naquele lugar de tormentos, é que conseguira, finalmente, vislumbrar a luz. Regressara ao mundo, cega para sua beleza, mas nunca mais cega para o seu sofrimento. Sob a sua sábia liderança, a igreja tornara-se forte e os seus sacerdotes amados.
Possuía uma pele tão branca como o fulgor de Solinari e o cabelo negro, matizado de prata. O rosto deixava entrever as seqüelas das provações e lutas pelas quais passara, e no entanto, a serenidade e a fé conferiam-lhe uma expressão graciosa. Era linda como o próprio templo — frio, sólido, abençoado.
Steel olhou para Palin, à espera que este falasse, mas, ao que parece, o mago ficara sem fala. Não fosse o tigre que os observava de perto, o paladino das trevas teria possivelmente sugerido que, sub-repticiamente, fugissem.
— Um mago e um cavaleiro — observou Lady Crysania, aproximando-se deles. — Suponho, que não são viajantes perdidos, mas receberam a incumbência de alguma missão. Vêm pedir a bênção de Paladino?
O tigre rugiu de novo, baixinho. Tornava-se óbvio que tinham de dizer alguma coisa. Steel deu uma cotovelada nas costelas de Palin.
— Não... não exatamente, Venerada Filha — disse Palin, com voz sumida. Tinha o rosto pálido e o suor, que o fazia luzir, só em parte se devia ao calor da noite.
Em princípio, esperava-se que os magos Vestes Brancas adorassem Paladino e seguissem os seus preceitos. Resgatar do Abismo um famoso mago Veste Negra talvez não constasse das prioridades que o deus gostaria de ver os seus seguidores terem em consideração.
— Palin Majere — disse Lady Crysania —, dou-lhe as boas-vindas.
— Como... como adivinhou? — exclamou Palin, com voz entrecortada. Crysania soltou uma risada tão cristalina como o repique dos sinos de prata.
— Como adivinhei? — respondeu. — Detectei o cheiro das especiarias e das pétalas de roda dos teus ingredientes de magia, e assim fiquei sabendo que era mago. Quando falou, reconheci sua voz. A entoação é a do teu pai, mas a maneira como fala... lembra-me o teu tio — rematou em voz baixa.
O rosto de Palin, normalmente pálido, tornou-se escarlate, como se recebesse em cheio o fulgor de Lunitari. Ficou sem fala e, ao que parece, a Venerada Filha também não esperava dele resposta. Com um sorriso agradável, fixou em Steel os olhos escuros e sem vida.
— Conheci o cavaleiro pelo retinir da espada. Decerto Palin Majere veio acompanhado por um dos seus irmãos guerreiros. Tenho o prazer de me dirigir a Tanin Majere ou a Sturm Majere?
Steel podia optar por uma série de respostas, e a mais fácil seria fazer-se passar por um dos irmãos Majere. Se usasse uma entoação rouca e áspera, atribuindo-a a uma friagem, disfarçaria a voz. Uma breve troca de amabilidades, e retomariam o percurso. Ao passo que se Steel contasse a verdade...
Olhou para o tigre e o animal examinou-o. Aqueles olhos refletiam uma sabedoria impossível de detectar em qualquer ser irracional, por mais inteligente que fosse. Se o tigre investisse, o seu peso arremessaria Steel ao chão. Talvez conseguisse apunhalá-lo, mas não antes dos dentes amarelados da fera lhe dilacerarem a garganta.
Ocorreram-lhe certas palavras temerárias.
Não entrarei em Palanthas vestido de estalajadeiro...
Nem me ocultarei sob o nome de outro homem.
— Engana-se, Venerada Filha — disse Steel em tom frio e polido. — Chamo-me Steel Montante Luzente, Cavaleiro do Lírio. Tenho a honra de servir Takhisis, Sua Majestade das Trevas.
Arregalando os olhos, Palin abanou a cabeça e murmurou:
— Agora é que são elas!
Da garganta do tigre veio um ronronar suave. Lady Crysania afagou o seu guia com a mão, para acalmá-lo. Tinha o cenho franzido e no rosto, uma expressão perturbada.
— Proclama-o assim abertamente na cidade de Palanthas? — inquiriu, não como uma ameaça, mas pretendendo ser esclarecida.
— Proclamo-o a ti, Venerada Filha — replicou Steel. — Os dotados de vista podem perceber quem eu sou. Mas não há honra nenhuma, apenas vergonha, em aproveitar-me de quem os deuses determinaram que caminhasse nas sombras. E maior vergonha seria enganar uma mulher tão nobre e corajosa como você, ó Senhora.
Os olhos sem vida de Crysania arregalaram-se.
— Era verdade então, o que Tanis Meio Elfo nos contou a respeito de vocês, cavaleiros! — murmurou. — Que Paladino nos valha! — Após um momento de reflexão, virou-se de novo para Palin.
— O que faz aqui, jovem mago? — inquiriu. — Porque motivo viaja na companhia deste cavaleiro que, embora honrado, abraçou a causa do Mal?
— Sou seu prisioneiro, Venerada Filha — replicou Palin. — Os meus irmãos morreram. Os Cavaleiros de Takhisis desembarcaram na costa norte, perto de Kalaman. Tanis Meio Elfo vai a caminho da Torre do Sumo Sacerdócio, a fim de transmitir as novas.
— Prisioneiro. Então, exigem um resgate.
— Sim, Venerada Filha. Por isso nos encontramos aqui. — Palin calou-se, obviamente na esperança de que a sacerdotisa não fizesse mais perguntas.
— Pretendem ir à Torre da Feitiçaria Suprema então.
— Sim, Venerada Filha — respondeu Palin.
De repente, o tigre abanou-se, como se tivesse acabado de sair do mar e sacudisse a água do pêlo. Sob os dedos de Crysania, a grande cabeça remexia-se, inquieta.
— Jovem mago, se pretendessem um resgate, deveriam dirigir-se à Torre da Feitiçaria Suprema, em Wayreth. O Conclave dos Feiticeiros é quem decide sobre estas questões — replicou Crysania, em tom brusco.
— Perdoe-me, Venerada Filha — respondeu Palin, calma mas firmemente. — Não estou autorizado a discutir o assunto. Dei a minha palavra de honra a este cavaleiro.
— E seremos menos merecedores de respeito do que os nossos inimigos? — perguntou Crysania, esboçando um sorriso. — É isso que insinua. O meu Senhor Dalamar sabe de sua vinda, não sabe?
— Não, senhora — respondeu Palin baixinho.
— Planejam atravessar a Clareira de Shoikan. Não irão sobreviver. Naquele lugar tenebroso, de pouco te valerá a tua palavra de honra. Sei o que digo — acrescentou a sacerdotisa, estremecendo. — Já o atravessei.
Calou-se, e de novo os olhos sem vida se recolheram em meditação. Steel desejava partir, mas não estava certo quanto à forma. Lady Crysania levantou a cabeça e desviou o olhar vazio para as duas silhuetas.
— Talvez se interroguem por que motivo não chamei os guardas para tratarem de vocês. Este encontro não ocorreu por acaso. Depois da meia-noite, é raro eu atravessar os terrenos do templo. Mas esta noite sentia-me incapaz de dormir. Julguei tratar-se do calor e saí para ver se apanhava uma lufada de ar fresco. Mas agora sei que foi por desígnio de Paladino que os encontrei. E seja o que for que pretendam fazer, sinto a vontade dele a nos guiar.
Palin remexeu-se e olhou de esguelha para Steel. Encolhendo os ombros, o cavaleiro das trevas sorriu. Era bem sabido que a rainha Takhisis atuava por vias misteriosas.
— Nunca conseguirão atravessar a clareira de Shoikan com vida. Olhem. — Lady Crysania levou a mão à garganta e segurou um medalhão que, sob o luar de prata, emitiu reflexos de ouro. Tirando-o, estendeu-o ao jovem mago. — Tome isto, Palin Majere. Não te protegerá dos guardas mortos-vivos daquele lugar maldito mas afastará o medo do coração, e dará coragem para caminhar nas trevas.
Palin ficou siderado, sentindo-se tão comprometido como o ladrão que é apanhado a roubar a caixa de esmolas dos pobres.
— Venerada Filha, não posso aceitar. Não... não está certo. Nem imagina... — Calou-se.
Lady Crysania procurou a mão do mago e, encontrando-a, introduziu nela o medalhão.
— Que Paladino te acompanhe — disse.
— Obrigado, Senhora. — Palin apertou o medalhão, sem saber o que mais dizer ou fazer.
— É hora de partirmos — interveio Steel, decidido a assumir o controle da situação. E esboçando uma vênia formal a Lady Crysania, acrescentou: — Senhora, me ofereceria para escoltá-la em segurança até seus aposentos, mas vejo que já se encontra bem protegida.
Lady Crysania sorriu, mas logo suspirou, dizendo:
— Sei que o faria, Senhor Cavaleiro. Penaliza-me ver tamanha nobreza de coração e alma dedicada às trevas. E, Senhor Cavaleiro, como você fará para entrar na Clareira de Shoikan? Lá, a tua Rainha não impera. O terrível monarca daquele lugar maldito é Nuitari, seu filho.
— Senhora, tenho a minha espada — respondeu Steel com simplicidade. Ela deu mais um passo na sua direção, fixando-o com os olhos sem vida e, surpreendentemente, de súbito parecia que conseguia vê-lo. A sacerdotisa estendeu a mão e pousou-a em seu peito, na armadura ornada com a caveira e o lírio da morte. O seu toque parecia lhe ressecar a alma e, ao mesmo tempo, era como a água fresca servindo de bálsamo. Pela primeira vez na vida, Steel sentiu-se vulnerável, sem saber o que fazer.
— Vejo que você também tem um guardião — disse Lady Crysania. — Dois guias! Um das Trevas, o outro, da Luz. O guia à tua esquerda, do lado do coração, é uma mulher. Veste uma armadura azul, numa das mãos segura o elmo de um Nobre Draconiano e na outra uma lança, cuja extremidade se encontra empapada de sangue. Está mais próxima do teu coração. O guia da direita é um homem, um Cavaleiro da Solamnia. Encontra-se desarmado, a bainha da sua espada está vazia. O corpo mostra um buraco ensangüentado, feito por uma lança. Este homem encontra-se mais próximo da tua alma. Ambos pretendem orientá-lo. Qual deles escolherá para teu guia?
Proferidas estas palavras, retirou a mão. Steel desequilibrou-se para trás, como se ela o tivesse agarrado até então. Procurou lembrar-se de palavras arrogantes, mas nenhuma lhe ocorreu. Limitou-se a fixá-la, com ar espantado. O que ela descrevera fora a Visão — concedida a ele pela rainha Takhisis.
O tigre pôs-se a andar sem ruído, apertando o corpo listrado de cinzento e branco contra Crysania com ar protetor. Esta deu boa-noite a Palin e a Steel.
— Eu os abençôo — disse-lhes em tom meigo.
Pousando a mão na cabeça do tigre, a sacerdotisa de Paladino foi retrocedendo até desaparecer nas sombras.
Palin ficou a olhar boquiaberto para Steel. O cavaleiro das trevas não se sentia predisposto a falar. Meio zangado, meio assustado, completamente embaraçado, Steel deu meia volta e, em passo rápido, voltou à rua que tinham percorrido e arrepiou caminho. Atrás de si ouviu os passos de Palin e o roçar das vestes do mago que, apressadamente, tentava acompanhá-lo.
Steel estugou ainda mais o passo, como que na tentativa de conjurar os demônios que lhe acossavam a alma.
— Não preciso de guias! — murmurou, furioso. — Cresci sozinho! Não preciso de nenhum de vocês... pai ou mãe!
Só abrandou quando, ao sair de uma viela, viu erguerem-se diante de si as árvores da secular e temida clareira de Shoikan.
Outrora, tinham existido em Ansalon cinco Torres da Feitiçaria Suprema. Bastiões dos magos, as torres eram vistas como uma ameaça pelos que receavam o poder dos feiticeiros. Estes, a fim de se salvaguardarem de possíveis ataques, dotaram cada torre de uma floresta que funcionava como guardião. A floresta da Torre de Daltigoth provocava uma letargia debilitante que dominava qualquer um que se atrevesse a atravessá-la e que, por via da mesma, mergulhava num sono profundo e sem sonhos. A Torre de Istar — destruída durante o Cataclismo — provocava nos que entravam lá uma amnésia total que os fazia esquecer o motivo da sua ida a tal lugar. A Torre das Ruínas provocava paixões de tal modo inflamadas nos que invadiam os seus domínios que estes perdiam por completo o interesse por todo o resto. A floresta que circundava a Torre de Wayreth, foge à alçada dos usurpadores. Por mais que se esforcem, não conseguem encontrá-la. Mas, de todas, a Clareira de Shoikan é a mais terrível. As outras eram abençoadas pelos adoradores de Solinari e Lunitari. Os Vestes Negras, seguidores de Nuitari, abençoavam a Clareira de Shoikan.
Os seus carvalhos gigantescos permaneciam imóveis, mesmo com os ventos, ciclones ou furacões mais violentos, sem que uma só folha tremesse. Os galhos maciços interligavam-se, formando um dossel tão espesso que nem a luz do Sol conseguia penetrar lá. A Clareira de Shoikan encontra-se amortalhada numa noite perpétua. As suas sombras, que não recebem o mais tênue calor, são geladas como a morte.
Foi o próprio Nuitari que lançou o encantamento do medo sobre o arvoredo. Todos os que dele se aproximem — mesmo os convidados pelo senhor da torre — experimentam um terror que paralisa e ataca o coração de todos os seres humanos vivos. Muitos nem sequer agüentam acercar-se das árvores. Os dotados de uma tão extraordinária bravura que conseguem chegar ao bosque, o fazem apenas engatinhando. Contam-se nos dedos os que se aventuraram mais longe. Um deles foi Caramon Majere. Outro foi a Venerada Filha Crysania. Um terceiro foi Kitiara. Às últimas duas concederam-lhes medalhões, destinados a neutralizar o medo, a ajudá-las a superá-lo. Quanto a Caramon, quase não escapou com a sanidade intacta.
Agora, era Steel Montante Luzente que se encontrava postado diante das sombras da Clareira de Shoikan. O encantamento apoderou-se dele, lançando o pavor sobre ele — terrível, irremediável, debilitante e irracional. Tratava-se do pavor da morte, uma certeza para os que pisavam o seu solo. O pavor dos tormentos e das torturas que antecediam o fim. E o pavor, ainda mais dilacerante, dos tormentos e das torturas que se avizinhavam depois.
Era incapaz de combater tal pavor, pois este vinha da inspiração de um deus. O pavor oprimiu-o, exauriu-o, revolveu-lhe os intestinos e o estômago. O pavor ressecou-lhe a boca, contraiu-lhe os músculos, empapou-lhe as palmas das mãos de suor. O pavor quase o obrigou a cair de joelhos.
Chegaram-lhe aos ouvidos as vozes dos mortos-vivos, tão secas e quebradiças como os ossos:
O teu sangue, o teu calor, a tua vida. Nos pertencem! Nos pertencem! Aproxime-se. Traga-nos o teu calor, sangue, a tua carne quente. Estamos frios, frios de uma friagem que transcende o que é possível suportar. Aproxime-se, aproxime-se.
As trevas do bosque se derramaram sobre Steel, uma escuridão eterna que nenhuma luz jamais iluminou, salvo, possivelmente, o fulgor invisível da Lua Negra. Dirigiu uma prece a Takhisis, embora soubesse que não seria atendida. O domínio de Sua Majestade das Trevas terminava na orla daqueles bosques. Aqui, era Nuitari, seu filho e senhor da magia negra, o rei e dono supremo. E todos sabiam que raramente dava ouvidos à progenitora.
Steel presumira sempre que o seu destino seria morrer em combate. O seu conceito de morte era jazer numa tumba de mármore, com as armas do inimigo aos pés, chorado e enaltecido pelos camaradas.
Mas isto nunca. Esfacelado pelas unhas cortantes e dilacerantes dos mortos-vivos, ver-se arrastado para debaixo do solo, estrebuchando, fincando-se com as unhas no chão, para logo soçobrar, sentindo-se agonizar na asfixia. E depois, depois de sobrevir a morte e a acolher como uma benção, a sua alma seria tomada como escrava e obrigada a servir Chemosh, o deus dos mortos-vivos.
Uma voz, uma voz inédita, veio interromper o ciclo gelado dos escravos de Chemosh. Uma mulher, vestida com uma armadura azul, emergiu das sombras das árvores gigantescas. Era linda, usava o cabelo curto, de modo a poder aconchegá-lo confortavelmente sob o elmo. Sorriu — um sorriso ambíguo — e riu. Riu dele.
— Olhe para você! Suando e a tremendo como uma criança na Noite do Olho! Será que gerei um filho covarde? Pela minha soberana, se assim foi, eu mesma me encarregarei de dá-lo como repasto a Chemosh!
A Dama Azul aproximou-se dele, caminhando com arrogância. Da anca pendia-lhe uma espada e vestia uma capa azul que esvoaçava sem cessar, embora nem uma brisa corresse no ar parado.
Steel conhecia-a. Nunca a vira em vida, mas conhecia-a. Em tempos, viera até ele uma vez... na visão.
— Mãe... — murmurou.
— Não me chame de mãe! — escarneceu Kitiara. — Não é filho da minha carne! O meu filho não é covarde! Eu atravessei aquele bosque pavoroso. E aqui está você, pensando em virar as costas e fugir!
— Não estou! — replicou Steel ainda mais furioso pelo fato de ter pensado em fugir. — Eu...
Mas a visão se desvaneceu, mergulhando nas trevas.
Rangendo os dentes, com a mão roçando o punho da espada, Steel adiantou-se e caminhou resolutamente na direção da clareira de Shoikan. Esquecera-se de Palin, esquecera-se mesmo que tal mago existia. Agora iria se desenrolar uma batalha, entre ele e o bosque. Não ouviu os passos apressados que ressoavam atrás de si. Quando sentiu uma mão tocar-lhe o braço, deu um pulo, sobressaltado, e virando-se desembainhou a espada. Arquejando, ao ver o olhar tresloucado de Steel, o mago retrocedeu.
— Steel, sou eu...
A luz do Bastão de Magius redobrou de brilho ao incidir no rosto do jovem mago. Steel soltou um profundo suspiro de alívio, do qual logo se envergonhou.
— Majere, onde se meteu?
— Tentando te alcançar, Montante Luzente! — respondeu Palin. — Correu tão depressa... Não é só você, mas ambos temos que atravessar aquele maldito bosque... se conseguirmos.
As vozes dos mortos-vivos chegaram-lhes aos ouvidos.
— Sangue quente, doce carne, venham até nós... venham.
Palin estava exangue. A mão, escorregadia de suor, enclavinhou-se no bastão até as articulações ficarem esbranquiçados.
— Que Paladino nos valha! — exclamou, segurando com força no braço de Steel. — Olhe! Que os deuses nos acudam! Vêm direitos para nós!
Steel virou-se para trás, de espada erguida, mas baixou-a.
— Que está fazendo? — Palin procurava com frenesi os componentes de encantar. — Temos que lutar...
— O meu pai não nos fará mal — disse Steel com voz doce. Dois guias, dissera Lady Crysania.
Das sombras do bosque emergiu um cavaleiro envergando uma armadura que, ao luar, brilhava como prata. Esta estava decorada com a rosa, a coroa e o pica-peixe. Tratava-se de uma armadura antiga, que remontava quase à época do Cataclismo. O cavaleiro não possuía espada, pois dera-a ao filho.
Aproximando-se, postou-se ao lado de Steel.
— Jurou, pela tua honra, atravessar aquele lugar amaldiçoado? — inquiriu Sturm Montante Luzente.
— Assim foi, meu Pai — replicou Steel, com voz calma. A mão que segurava a espada também se mostrava serena.
Os olhos de Sturm, atormentados, tristes, cheios de amor, orgulhosos, pareciam avaliar a grandeza do homem vivo. Solene, acenou uma vez com a cabeça e disse:
— Est Sularus Oth Mithas.
Inspirando fundo, Steel replicou:
— Compreendo, Pai.
Sturm sorriu. Erguendo a mão, apontou para a garganta do filho. Depois, deu meia volta e afastou-se, mas sem mergulhar nas sombras; estas é que pareciam afastar-se dele. Desapareceu envolto num clarão de luar prateado.
— Sabe o que ele queria dizer? — perguntou Palin em tom abafado. Steel passou a mão por baixo da armadura, segurou numa jóia que usava ao pescoço e puxou-a. A jóia era de concepção e fabricação elfa — um testemunho de amor muito freqüente entre os elfos apaixonados. Foi o presente de Alhana a Sturm: a prova do amor eterno. Fora a dádiva de Sturm ao filho. A jóia emitiu um clarão vivo e frio — um frio imaculado, penetrante como uma agulha de gelo. Ou como o gume penetrante de uma espada.
— A minha honra é a minha vida. Não envergonharei a minha mãe. Não desiludirei o meu pai. Vamos agora penetrar naquele bosque — declarou Steel Montante Luzente.
Tasslehoff Pés Ligeiros deu um suspiro. Deixando o corpo pequenino afundar-se numa cadeira, olhou em volta, voltou a suspirar e anunciou:
— Sinto-me aborrecido.
Quem vivesse há muito tempo em Ansalon, ao ouvir estas temíveis palavras fugiria correndo. Se quiserem, aproximem-se de um guerreiro calejado e perguntem:
— Diga-me, senhor, se tivesse que permanecer trancado numa sala, com quem preferia ficar — com um exército de ogros, um regimento de trolls[3], uma brigada de Draconianos, um dragão vermelho... ou um kender enfastiado?
É certo e sabido que o guerreiro optará sempre pelos ogros, os trolls, os draconianos e o dragão vermelho. E dirá, tal como todos que encontrarem, que não há nada mais perigoso em Krynn do que um kender enfastiado.
Usha, que infelizmente nunca vivera entre os kender, desconhecia o fato.
Os dois haviam passado a primeira noite da sua chegada, o dia seguinte, grande parte da segunda noite cochilando, sob o efeito do encantamento que Dalamar e Jenna haviam lançado sobre eles. Tas foi o primeiro a acordar e, sendo ele um kender, sofreu as torturas do inferno para não acordar Usha. Chegou até mesmo ao ponto de se dominar, o que lhe exigiu um esforço heróico de vontade — no sentido de não esquadrinhar os alforjes dela, um dos quais a jovem utilizava como almofada.
Efetuou uma exploração pela sala, cheia de objetos interessantes que Raistlin recolhera por todo o território de Krynn. Dalamar enriquecera a coleção e Tas pôs-se a admirar as delicadas estátuas de madeira esculpidas pelos elfos de Wilder, as conchas e as esponjas provenientes do Mar de Sangue de Istar, as caixas de porcelana decoradas com pinturas ornamentais de pavões provenientes do Norte de Ergoth, os enormes baús de madeira de cedro, produzidos pelos duendes de Thorbardin e vários outros objetos de interesse.
Qualquer um deles (à exceção dos baús de cedro) podia ter acabado nos bolsos de Tas e, na realidade, alguns foram parar lá por acaso, embora voltassem de imediato para os respectivos lugares de novo. Tornava-se óbvio que a sala fora concebida à prova de kenders.
— Santíssimos deuses! — exclamou Tas quando um ouriço-do-mar matizado de carmim saltou da algibeira do kender e voltou para a respectiva prateleira. — Viu aquilo?
— Vi o quê? — perguntou Usha, sonolenta.
— Ora, sempre que uma daquelas coisas pula para a minha algibeira, volta a pular para o lugar dela! Não é maravilhoso? Venha ver!
Usha obedeceu, sem mostrar grande interesse.
— Onde está Lorde Dalamar e aquela mulher... a Jenna? Onde foram?
Tas encolheu os ombros.
— As pessoas andam sempre desaparecendo por estas bandas. — respondeu. — Vão voltar. — Depois, a sua atenção foi atraída pelas fechaduras dos baús de cedro.
— Não quero que voltem! — disse Usha, com irritação. — Odeio este lugar! Não gosto de Dalamar. Quero ir embora. E é para já. Anda, vamos aproveitar enquanto não chegam.
Juntou as suas coisas, dirigiu-se para a porta, pegou no batente e puxou.
A porta não se mexeu.
Usha bateu repetidamente, puxou, até deu pontapés.
Inútil.
Olhando de relance, Tas observou, solícito:
— Cá para mim, está trancada.
— Ora essa, porquê? — retorquiu Usha, desorientada. — Tem certeza?
Tas aquiesceu com a cabeça, dado que, para o kender, este tipo de ocorrência não era inédito nem fora do comum.
— As pessoas andam sempre me trancando do lado de dentro, do lado de fora, ou ambos — disse. — Com o tempo nos habituamos.
As fechaduras dos baús de cedro também se revelaram imunes às remexidas do kender. O buraco onde devia ser introduzida a chave, saltitava sem descanso de um lado para o outro, de uma forma bastante inconveniente. Embora nos primeiros dez minutos estas manobras fossem consideradas altamente divertidas. Tas, que começava a sentir-se farto de perseguir as fechaduras por aqui e por ali, proferiu de novo a frase que faria muita gente correr, aos gritos, à procura de uma saída.
— Estou aborrecido.
Usha, que caminhava de um lado para o outro como uma fera enjaulada, não deu resposta. Ao passar pela janela, deteve-se e olhou, esperançosa, lá para fora. Seria uma longa queda até às grades pontiagudas da grande vedação de ferro, em baixo. Recuou precipitadamente.
— Bom — disse Tas, batendo com as mãos nos joelhos —, eu diria que tudo o que havia para fazer neste lugar está feito. Vamos embora.
Remexendo um dos bolsos, retirou um estojo “abre-cadeados” que constitui o patrimônio de qualquer kender.
— Se estamos trancados, Dalamar não o fez de propósito. Talvez, a lingüeta se soltou quando ele saiu. — Olhando para a fechadura, acrescentou, em tom severo: — Desde que se mantenha quieta, consigo abri-la.
Depois de retirar várias ferramentas com um aspecto interessante, Tas — que já não se sentia aborrecido — encaminhou-se para a porta e lançou-se à tarefa.
Usha aproximou-se para observá-lo.
— Quando sairmos desta sala para onde vamos? — perguntou. — Sabe o caminho?
— Sim — respondeu Tas com veemência. — É pela clareira de Shoikan, uma floresta horrorosa e assombrada, cheia de mortos-vivos que querem devorar a carne das pessoas e aprisionar, pela eternidade afora, a alma delas no mundo dos tormentos. Eu sei. Vi acontecer uma vez, mas nunca entrei lá. Só o Caramon conseguiu. Algumas pessoas têm sorte.
De olhos marejados, fez uma breve pausa para recordar os bons tempos. Depois, pôs-se a assobiar uma marcha dos duendes, limpou o nariz na manga e retomou alegremente o trabalho.
O “pica” retiniu no interior da fechadura.
Esta permaneceu trancada.
Tas franziu o cenho, voltou a guardar a ferramenta na caixa, escolheu outra e tentou de novo.
— Que interessa sairmos ou não. Como poderemos atravessar o bosque se continuamos presos aqui! — A voz de Usha deixava transparecer o seu desânimo.
Tas fez uma pausa para refletir.
— Eu sei que o bosque mantém as pessoas de fora, mas nunca ouvi dizer nada a respeito de manter as pessoas dentro. Talvez consigamos sem o menor problema.
— Acha que sim? — Usha olhou-o com renovada esperança.
— Vale a pena tentar. — Tas tentou espiar pela fechadura. — O pior que pode acontecer é vermos mãos de esqueletos sair do chão, tentando nos agarrar pelos tornozelos e nos arrastar para baixo da terra, onde morreremos numa agonia horrível.
Usha engoliu em seco, obviamente sem achar graça naquilo.
— Talvez... — disse. — Talvez seja melhor ficarmos aqui e esperar que Dalamar volte. — Dirigiu-se para a cadeira e voltou a se sentar.
— Consegui! — exclamou Tas, triunfante.
A fechadura deu um sonoro clique e Tas abriu a porta. Deparou com dois olhos frios, brancos, desencarnados, que o fitavam da escuridão.
— Oh, ora viva! — disse Tas para o espectro, algo surpreendido com o seu aparecimento repentino.
— Feche a porta! — gritou ansiosamente Usha. — Feche-a depressa! Antes que... que essa coisa entre!
— É só um espectro — disse Tas, estendendo polidamente a mão. — Como vai! Me chamo Tasslehoff Pés Ligeiros. Oh, desculpe, não me ocorreu que deve ser difícil para você dar um aperto de mão, dado que não possuis nenhuma. Espero que não te sintas desgostoso por isso. Se eu não tivesse mãos, ficava mesmo triste. Mas, é um prazer conhecer-te. Como te chamas?
O espectro não respondeu. Os olhos aproximaram-se flutuando e um frio gelado invadiu a sala.
Usha deu um pulo da cadeira e protegeu-se atrás dela.
— Feche a porta, Tas! Por favor, por favor! Feche a porta!
— Está bem, Usha — respondeu Tas, embora, num gesto involuntário, retrocedesse um ou dois passos. — Entre — disse ao espectro, em tom polido. — íamos saindo agora mesmo...
Os olhos fixos moveram-se inexoravelmente de um lado para o outro.
— Não saímos — adivinhou Tas, sentindo-se um pouco aborrecido. O certo é que já permanecera naquela sala o tempo que queria. Talvez o espectro se sentisse só e pretendesse entabular com eles uma conversa desagradável.
— É um morto-vivo, não é? Por acaso conhece Lorde Soth? É um cavaleiro defunto e um grande amigo meu.
Os olhos do espectro reluziram de uma forma declaradamente hostil. De repente, ocorreu a Tas que, por ter enganado Kitiara ao quase assassinar Dalamar, Lorde Soth provavelmente não gozava de grande estima entre os que guardavam a torre.
— Hum, hum, não é bem amigo — admitiu o kender, retrocedendo mais um ou dois passos. À medida que os olhos se aproximavam, a temperatura, na sala, descia para valores pouco confortáveis. — Digamos que é um conhecido. Nunca vai me visitar nem aparece para almoçar, entende? Bom, na verdade foi um prazer estar aqui proseando contigo. Agora, se fizer o favor de se desviar, nós saímos e não te incomodamos mais...
— Tas! — gritou Usha.
O kender se pendurara na toalha de mesa e caíra. O espectro pairou sobre ele por um instante e de repente sumiu. A porta se fechou com estrépito e deixaram de sentir frio. Tremendo, Usha agachou atrás da cadeira.
— O que era aquela coisa? — perguntou.
— Muitíssimo mal educado — observou Tasslehoff, levantando-se e sacudindo o pó. — Admito que a maior parte dos mortos-vivos que conheço não são bons conversadores, com exceção dos escravos espectrais que encontrávamos no Bosque Escuro e que foram muito simpáticos, pois nos contaram a história da vida deles, tudo sobre como tinham sido amaldiçoados e coisas do gênero. Só que falavam utilizando a boca do Raistlin. Tinham bocas próprias — sem lábios, apenas bocas. Era uma maravilha. Este espectro não tem boca nenhuma, o que me leva a presumir que nunca diz nada por isso. Gostaria de ouvir a história do Bosque Escuro? Dado que o Raistlin é o teu pai e...
— Só quero sair deste lugar horroroso! — interrompeu-o Usha. Tremia de medo mas começava também a ficar zangada. — Porque nos mantêm aqui prisioneiros? Não entendo!
— Talvez, por Raistlin ser teu pai — sugeriu Tas depois de ponderar o assunto. — Dalamar foi aprendiz de Raistlin, mas o elfo das trevas também foi enviado pelo Conclave para espiar Raistlin, por ser um feiticeiro renegado e não merecer confiança. Raistlin sabia que Dalamar era um espião e o castigou fazendo buracos na carne do elfo. Os buracos ensangüentados ainda continuam lá e ainda doem, mas não peça à Dalamar para ver, porque isso faz com que fique realmente furioso. Eu sei, porque um dia pedi.
— Depois disso, Dalamar pensou em matar Raistlin quando este tentava regressar através do Portal do Abismo, depois de quase ter derrotado a Rainha das Trevas, que estava lá quando Caramon tentou penetrar no bosque e Tanis quase lutou com Lorde Soth, só que não pôde porque eu roubei sua pulseira mágica...
Tas se viu obrigado a fazer uma pausa para respirar. Usha fitava-o, de olhos arregalados.
— Esse Raistlin... Quer dizer, o meu pai... O meu pai fez tudo isso?! Nunca me contou essa parte! — Voltou a se afundar, sem forças, na cadeira. — Não admira que Dalamar desconfie de mim! Nunca permitirá que eu saia daqui! Ele... ele é bem capaz de me matar!
— Acho que não — respondeu Tas, ponderando o assunto. — Mas podem te levar à presença do Conclave dos Feiticeiros. Se o fizerem, leva-me contigo?
Usha gemeu e levou as mãos à cabeça.
— Não quero ir a Conclave de Feiticeiros nenhum! Só quero voltar para casa!
Tas sentia dificuldade em entender tal conceito, pois desde tenra idade fora acometido da Luxúria do Andarilho. Em virtude de um encadeamento de fatos de muitos anos, sabia que sentir saudades de casa constituía uma fraqueza típica dos humanos.
— E se me dispuser realmente a isso, é provável que seja capaz de nos tirar daqui. Mas, e todos aqueles objetos mágicos que possui? — inquiriu Tas apontando para o alforje de Usha. — Disse à Dalamar que era uma feiticeira muito poderosa. É claro que sim, sendo filha de Raistlin e tudo isso. Eu adoro encantamentos mágicos! Me daria muito prazer ver alguns dos teus.
Usha olhou com nervosismo para os alforjes, em especial o que continha os objetos mágicos.
— Acho que não há nada aqui que possa ajudar — disse.
— Mas talvez não tenha certeza. Vamos ver! Ajudo a separar as coisas. — Ofereceu-se Tas, num rasgo magnânimo. — Sou bom para separar e encontrar coisas. É espantoso o que as pessoas descobrem quando examinam os meus alforjes. Encontram coisas que nem sequer sabiam que tinham perdido!
— Estou certa de que não há nada aqui, nada que possa ajudar — disse Usha, puxando os alforjes mais para si, o que provava que, afinal de contas, começava a aprender umas coisas a respeito dos kender — Mas porque não procura nos teus? Talvez encontre algo.
— Tem razão. Nunca se sabe. — Tas deixou-se cair no chão e começou a vasculhar os alforjes. Retirou metade de um pedaço bolorento de queijo, um morcego morto e incrivelmente inteiro, um fuso, um tinteiro (já seco), um livro com o nome “Haplo” escrito na folha branca inicial (“Nunca ouvi falar dele”), um ovo meio escalfado e uma colher de prata.
— Ahá! — gritou Tas.
Usha, que examinava, sub-repticiamente, o alforje dela, deu um pulo.
— O que foi? O que é isso?
— Descobri! — disse Tas em tom reverente. — Um artefato sagrado. — Segurando-o contra a luz, acrescentou: — A Colher Que Revolve dos Kenders!
— Tem certeza? — Usha inclinou-se para frente, a fim de examiná-la de perto. — Parece uma das Colheres que usamos a noite passada no jantar. Ainda está suja com geléia de morango.
— Usha, não se assuste, mas trata-se de sangue — disse Tas com voz solene. — É a Colher Que Revolve dos Kenders. A reconheceria em qualquer parte. O meu tio Salta-Pocinhas andava sempre com uma. Costumava dizer: “A maior parte dos mortos-vivos tem mais medo de nós do que nós deles. Só pedem que os deixem em paz para assombrarem, uivarem e arrastarem as correntes à vontade. Mas de vez em quando cruzamos com um que pretende nos sugar o fígado. É nessas “ocasiões” que precisamos da Colher Que Revolve dos Kenders.
— Como funciona? — inquiriu Usha com ar duvidoso. Tas retorceu-se todo para se pôr de pé.
— Temos de estende-la sem receios. Segurá-la diante do espectro, do guerreiro esqueleto ou de qualquer tipo de vampiro que possa encontrar. Em seguida dizemos, em tom firme, para que não restem dúvidas: “Vá embora” Ou: “Fora daqui”, não estou bem certo. Seja como for, quando o espectro estiver concentrado na colher...
— Eu me esgueiro pela porta afora — interrompeu-o Usha, entusiasmada. — Depois, quando o espectro for à minha procura, você se esgueira pela porta afora. Que tal?
Tas considerou a idéia desconcertante.
— Mas não precisamos nos esgueirar, Usha. Quando eu tiver acabado, o espectro já estará obedecendo a todas as minhas ordens. Talvez — acrescentou, inspirado — o levemos conosco!
Usha estremeceu.
— Não — respondeu. — Acho que não é uma boa idéia.
— Mas o espectro pode vir a nos ser útil, nunca se sabe! — respondeu Tas.
Usha recorreu a uma argumentação lógica para realçar que o espectro seria uma companhia bastante desagradável, para não dizer perigosa. Foi a opção certa na hora certa. Começava a se tornar uma perita em questões relacionadas a kenders.
— O que Dalamar pensaria de nós se lhe roubássemos o espectro? — disse, em tom solene, juntando os seus pertences em volta de si. — Ficaria danado e com muita razão.
— Mas, eu não ia roubá-lo! — protestou Tas, chocado com a acusação. — Só queria tomá-lo “emprestado” por uns tempos, a fim de mostra-lo a algumas pessoas... Oh, está bem, acho que tem razão. Posso voltar noutra ocasião e levar um comigo.
Atulhou os alforjes. Com os seus pertences. Por acaso alguns que não lhe eram devidos foram parar lá, mas esses saltaram de novo para os lugares respectivos.
Segurando a colher na mão esquerda, estendeu-a, com ar temerário, diante de si e encaminhou-se para a porta.
— Abra — pediu a Usha.
— Eu? — arquejou Usha. — Por quê eu?
— Porque tenho que me manter aqui segurando corajosamente a colher — replicou Tas, um tanto irritado. — Não posso ser destemido e abrir a porta ao mesmo tempo!
— Pronto, está bem!
Usha encaminhou-se vagarosamente para a porta e achatou-se contra a parede. Estendendo a mão, segurou com cuidado a maçaneta da porta, susteve a respiração e puxou.
A porta se abriu com um chiado. Os dois olhos desencarnados — agora consumidos de fúria — começaram a flutuar dentro da sala.
Tas espetou a colher contra o que presumiu ser da cara do espectro.
— Saia daqui imediatamente! Ponha-se daqui! Volte para... volte lá para o lugar de onde veio! — Quanto a este ponto, não estava bem certo, embora supusesse tratar-se do Abismo. Mas, nunca se sabe, e não desejava ferir os sentimentos do espectro.
— Nunca mais assombre esta porta. — Tratava-se de uma rima e Tas, que muito se orgulhava dela, repetiu: — Nunca mais assombre esta porta...
Sem saber que se encontrava perante a sagrada Colher Que Revolve dos Kenders, o espectro não a fitava com o devido respeito. De fato, os olhos mortos-vivos estavam fixos em Tas, com uma expressão das mais mortíferas. Um frio que lembrava o dos túmulos, fez com que os dentes do kender começassem a bater. Mas, pelo menos o espectro concentrava-se em Tas, e não em Usha, que já estava quase atravessando a porta, em direção ao corredor.
Nesse momento, os olhos começaram a se virar.
— Alto! — gritou Tas, fazendo apelo a toda a sua intrepidez. — Pare e desista!
Ouvira uma vez um condestável dizer isto e a expressão agradava-lhe bastante.
O olhar do espectro continuava a se mover ao redor.
— Usha, corra! — gritou Tas.
Mas Usha não conseguiu. O frio entorpecia-lhe os ossos e os músculos, gelou o sangue que lhe corria nas veias. Agitou-se e estremeceu, incapaz de avançar um milímetro. Agora, o espectro estava quase a alcançá-la.
Verdadeiramente ultrajado — afinal aquela era a Colher Que Revolve dos Kenders — Tas deu um salto em frente, em direção ao espectro.
Os olhos viraram-se para Tas e depois, para a colher. De repente, arregalaram-se, piscaram, fecharam-se e desapareceram.
A friagem começou a diminuir. A porta mantinha-se aberta.
À distância, ouviu-se o débil retinir de um sino de prata.
Usha tinha os olhos fixos, não na colher mas num ponto qualquer dos fundos da sala.
— O fiz correr! Viu aquilo?
— Vi qualquer coisa — respondeu ela com voz trêmula. — Atrás de você. Um homem. Usava vestes negras. Tinha um capuz escondendo a cara. Não consegui enxergar...
— Outro espectro, provavelmente — interrompeu-a Tas. Dando meia volta, estendeu intrepidamente a colher de novo. — Ainda está ali? Vou fazê-lo dar uma curva também.
— Não. Se foi. Desapareceu ao mesmo tempo que o espectro. Quando se ouviu aquele sino.
— Pronto, está bem. — Via-se que Tas se sentia desapontado. — Talvez noutra hora. Seja como for, a porta está aberta. Já podemos sair.
— É para já! — Usha encaminhou-se para a porta, hesitou e espiou para fora. — Acha que o espectro desapareceu mesmo?
— Claro! — Com a parte da frente da camisa, Tas deu um lustre na colher. Feito isto, meteu-a no bolso de cima, para tê-la à mão em caso de necessidade, e saiu porta afora.
Usha o seguia muito de perto.
Foram parar num patamar amplo. Havia escadas em espiral para cima e para baixo. No interior da torre reinava a escuridão, mas à aproximação deles começaram a surgir chamas bruxuleantes que ardiam num ponto invisível qualquer das paredes. Iluminados pelo tênue clarão dessas chamas sobrenaturais, Tas e Usha constataram que as escadas não possuíam corrimão nem proteção. O centro da torre era oco. Um passo em falso naqueles degraus estreitos, e seria o último.
— Não há dúvida que é uma longa descida — observou Tas, inclinando-se perigosamente sobre o rebordo das escadas, a fim de perscrutar as trevas.
— Não faça isso! — Usha agarrou firmemente o kender por uma das correias do alforje e puxou-o contra a parede. — Daqui para onde vamos?
— Para baixo? — sugeriu Tas. — A descida é para baixo.
— Acho que sim — murmurou Usha. Nem a subida nem a descida pareciam especialmente tranqüilizadoras. Olhou uma derradeira vez para trás, para a sala da qual tinham saído, meio receosa e com uma certa esperança de voltar a ver aquela figura estranha, com vestes negras.
A sala encontrava-se vazia.
Abraçados à parede, de mãos dadas — “Para o caso de um de nós escorregar”, dissera Tas pressurosamente —, começaram a descer as escadas devagar e com precaução. Até chegarem aos pisos inferiores, nada ou ninguém os perturbou.
Ali, no térreo, era onde os aprendizes que estudavam sob a tutela de Dalamar possuíam os seus aposentos. Tas acabara de dar um suspiro de alívio por chegarem ao fim da descida incrivelmente longa, quando lhe chegou aos ouvidos o roçar de vestes, o tropel de pés enfiados em sandálias e o som de vozes estridentes. Houve candeias que se acenderam, iluminando o vão das escadas.
— Ora essa! Que estará acontecendo? — comentou Tas. — Talvez seja uma festa! — Dito isto, começou a descer de novo as escadas, tomado de frenesi.
Usha puxou-o para cima.
— É Dalamar que voltou! — murmurou a jovem em tom receoso.
— Não, não me parece a voz dele. Talvez sejam alguns dos alunos de Dalamar. — Tas ficou um momento escutando as vozes. — Parecem terrivelmente excitados. Vou ver o que se passa.
— Mas, se os alunos dele nos apanharem, voltam a nos trancar na sala!
— Ora, se isso acontecer, nos divertimos tentando sair de novo — respondeu Tas alegremente. — Vamos, Usha. Pensaremos em alguma coisa. Não podemos ficar a noite toda rondando estas escadas velhas e aborrecidas!
— Acho que tem razão — respondeu Usha, acrescentando: — Parecem ser pessoas reais, vivas. Com pessoas vivas, reais, consigo lidar! Além disso, se ficarmos aqui, mais cedo ou mais tarde iriam nos descobrir e parecerá menos suspeito se não nos escondermos.
Tas fitou-a com admiração.
— Sabe de uma coisa? — disse. — Se não tivesse uma costela Irda, poderia jurar que tinha sangue kender. Isto é um elogio — apressou-se a acrescentar. É que às vezes, quando dizia isto, as pessoas tentavam bater nele.
Mas Usha parecia lisonjeada. Sorriu, endireitou os ombros, sacudiu a cabeça e desceu as escadas, encaminhando-se para a zona iluminada.
Tas viu-se obrigado a apressar o passo para acompanhá-la. Quase se chocaram com um mago que envergava vestes vermelhas e que contornara precipitadamente uma esquina. Sobressaltado, olhou-os, atônito.
— Aconteceu alguma coisa? — inquiriu Usha serenamente. — Podemos ajudar?
— Em nome do Abismo, quem são vocês e o que fazem aqui? — perguntou o Veste Vermelha.
— Eu me chamo Usha... — A jovem fez uma pausa.
— Majere — acrescentou Tas.
— Majere! — repetiu o jovem mago com ar chocado, quase deixando tombar o livro de encantamentos que segurava.
Usha fulminou o kender com o olhar.
— Viu o que você fez? — exclamou. — Ninguém deveria saber!
— Desculpe! — respondeu Tas, batendo com a mão na boca.
— Pronto, já ficou sabendo. — Usha emitiu um prolongado suspiro. — Torna-se tão difícil! — acrescentou. — A fama. As pessoas não me deixam em paz. Não vai contar, não é? Lorde Dalamar não ia gostar.
— Eu me chamo Tasslehoff Pés Ligeiros. Herói da Lança — interveio Tas, mas o Veste Vermelha não se mostrou impressionado. Olhava para Usha com uma expressão de enlevo, o coração e a alma escoavam-lhe pelos olhos.
— Prometo, Menina Majere — respondeu com meiguice. — Não direi a ninguém.
— Obrigada — respondeu Usha com um sorriso que significava “Somos eu e você, sós contra o mundo.”
O Veste Vermelha derreteu-se todo. Tas surpreendeu-se por não ver o coração do jovem mago escoar-se pelas sandálias.
— É possível que venha para cá estudar contigo — prosseguiu Usha, olhando ao redor, como avaliando se o lugar a agradava. — Ainda não decidi. — Olhou de novo para o mago. — Mas, acho que o lugar me agrada.
— Espero que sim — observou ele. — É muito confortável.
— Escuro, úmido e com um cheiro esquisito. — observou Tas. — já estive em prisões melhores. Mas acho que deve haver compensações.
O Veste Vermelha piscou os olhos, dando-se subitamente conta da presença de um kender na Torre da Feitiçaria Suprema. De cenho franzido, fitou Tas.
— O que você faz aqui? O meu senhor nunca iria permitir...
Usha pegou no braço do homem e inclinou-se para ele.
— Dormíamos profundamente... Lorde Dalamar concedeu-nos os seus melhores aposentos de hóspedes... quando ouvimos o retinir de um sino. Pensamos que podia ser por causa de...
— Um incêndio!... interrompeu Tas, em estado de transe. — Um incêndio? Vamos todos arder até ficarmos esturricados? Foi por isso que tocaram o sino?
— Sinos tocando? — O Veste Vermelha parecia que ouvia sinos desde que os seus olhos haviam pousado em Usha. Recuperando o aprumo, acrescentou: — Sinos! O sino de prata! Eu... eu tenho que ir! — rematou, procurando se afastar.
— Há um incêndio! — exclamou Tas, agarrando-se freneticamente a ele.
— Não, não há — respondeu o jovem, aborrecido. — Largue-me! E devolva-me isso! — Arrancou das mãos do kender um pergaminho, que, por uns milímetros, não desaparecia num dos alforjes de Tas.
— Ainda bem para você que o encontrei! — comentou Tas em tom grave. — Podia tê-lo perdido. Outra vez o sino! O incêndio deve estar se alastrando!
— Não é incêndio. O sino de prata significa que alguém penetrou na Clareira de Shoikan. Tenho que ir — disse de novo o Veste Vermelha, mas não conseguia desviar os olhos de Usha. — Fiquem aqui, onde estarão em segurança.
A Clareira de Shoikan!, disse Tas para consigo. E vão ser arrastados pelos esqueletos, que os levarão para os túmulos deles! E não estou lá para ver. A menos... Ocorreu-lhe uma idéia. A menos que eu me encontre lá para salvá-los!
Sacou a colher de prata do bolso e, antes que Usha ou o Veste Vermelha pudessem detê-lo, precipitou-se para a entrada da torre.
As vozes terríficas da clareira de Shoikan silenciaram-se. As mãos dos mortos-vivos, que tentavam arrastar as vítimas para se juntarem a eles nas trevas infinitas e ávidas, agitavam-se com frenesi sob as folhas apodrecidas, mas não atacavam. As árvores mantinham-se em lúgubre vigilância, mas pareciam preparadas para conceder a passagem do cavaleiro e do mago.
Lado a lado, penetraram juntos no terrível bosque. As vozes dos mortos orientavam-nos. As vozes dos mortos aliciavam-nos.
O caminho não era fácil. Na Clareira de Shoikan, pelo menos para Steel e Palin, não existia nenhuma trilha. Viram-se obrigados a abrir caminho à medida que iam forçando através da vegetação rasteira entrelaçada e eriçada de espinhos. O fedor atroz de morte e putrefação quase os asfixiava. No mundo que ficava para lá da Clareira de Shoikan, o solo encontrava-se seco, banhado pelo sol e coberto de poeira. No interior do bosque, o solo encontrava-se úmido e empapado, a lama corria, viscosa sob os pés e, à medida que iam avançando, uma água salobra inundava-lhes as pegadas. A atmosfera estava úmida e fria e o suor que lhes pingava do pescoço lembrava o que impregna um doente atacado pelos calafrios da febre.
Cada passo era uma antecâmara do inferno. Os mortos do bosque não diziam nada em voz alta. Ciciavam palavras quase inaudíveis, mas repassadas de desejos asquerosos e terríveis.
Steel caminhava na frente, empunhando a espada com ambas as mãos, pronto para investir. Mostrava-se atento, circunspecto, executando o menor movimento com extrema precaução. Palin seguia atrás, orientando-se pelo clarão do Bastão de Magius, que utilizava para iluminar o caminho. Talvez se devesse à sua imaginação exacerbada, mas pareceu-lhe que as mãos descarnadas e ávidas recuavam sempre que a luz do bastão lhe iluminava os ossos.
O percurso parecia infindável. O medo convertia os segundos em horas, as horas em anos. As trevas ciciantes, o fedor de cortar a respiração, o frio que chegava, doloroso, à medula dos ossos e entorpecia os dedos começavam a surtir efeito no guerreiro e no mago.
O solo ia ficando mais empapado, tornando a caminhada cada vez mais difícil. As pesadas botas de Steel e a armadura maciça obrigavam-no a afundar-se na lama viscosa e fétida até os tornozelos. Libertar os pés deste abraço, um após o outro, exigiam-lhe um grande esforço. Cada passo converteu-se numa batalha contra o solo empapado de lama, e logo sua respiração tornou-se arquejante. Sentia-se cada vez mais exausto. As pernas ardiam-lhe. Tentou encontrar terreno firme, vigiava cuidadosamente o solo que pisava, mas era inútil. Cada passo afundava-o um pouco mais e aumentava a dificuldade em se libertar. Esgotado, muito mais do que jamais estivera, respirando aos haustos, deteve-se e virou a cabeça para olhar para as suas pegadas.
Estavam empapadas em sangue.
Palin caminhava sem dificuldade. Percorria, o solo com passo ligeiro, sem deixar marcas à passagem. Conseguia andar, mas não respirar.
O ar sob as árvores parecia líquido, escorria-lhe para o nariz como se fosse água escura e oleosa. Engasgava-se, engolia e voltava a se engasgar. Os pulmões ardiam-lhe. Inspirava fundo, mas isso o fazia engasgar e provocava-lhe vômitos, era como se bebesse água dos pântanos. Minúsculos pontos luminosos perturbavam-lhe a visão. Começava a sufocar lentamente, a perder a consciência.
Arquejante, viu-se obrigado a parar junto de Steel.
A morte os aguardava.
Mãos descarnadas, só tendões e ossos, emergiram do lodaçal negro e cravaram-se nas canelas de Steel. Vozes esganiçadas zombavam e riam. Com uma força impiedosa, as mãos começaram a puxar, tentando arrastar o cavaleiro, para partilhar com elas a morte inquieta que os revolvia.
Com um grito, esgrimiu a espada, e a lâmina cintilou ao retalhar as mãos.
Outras mãos se enclavinharam nos pés do cavaleiro, rodeando-lhe os tornozelos. Manejando a espada, ia decepando-as dos pulsos mumificados. Quando uma das mãos tombava, inerte, era substituída por outra e depois por outra. Sentiu que perdia a batalha, que era inexoravelmente puxado para o fundo. O lodaçal já lhe chegava aos joelhos.
Palin acorreu em seu auxílio. Nos lábios palpitavam-lhe as palavras mágicas e estrebuchou para ganhar alento para pronunciá-las em voz alta. Mas não conseguia falar. O ar que lhe restava servia apenas para evitar que se sufocasse. Desesperado, pegou na extremidade do bastão e desferiu-a contra as mãos.
Os ossos esmigalharam-se, os tendões estalaram.
Exultante, prosseguiu a investida e percebeu que a respiração lhe vinha com mais facilidade. Steel também lutava com renovada esperança e já conseguia mover as pernas.
— Agarre! — gritou Palin, estendendo-lhe o bastão. Steel precipitou-se para apanhá-lo.
Dedos frios, que eram só osso, enterraram-se na nuca de Palin. Sentiu o corpo percorrido por uma dor penetrante e ardente, e os membros agitados por espasmos. O Bastão de Magius caiu no chão e a luz brilhante do cristal se apagou.
Uma escuridão espessa e palpável abateu-se sobre eles, era como se tivesse permanecido emboscada, à espera de uma oportunidade para atacar. Frenético, Palin pôs-se a golpear as mãos e o pânico foi crescendo dentro de si. De repente, soube o que fazer. Com uma nitidez que era fruto do desespero, recordou os irmãos, quando estes treinavam corpo-a-corpo. Viu Tanin aproximar-se de Sturm pelas costas e agarrá-lo pela garganta, e Sturm, fincando solidamente os pés, desferir um golpe para trás, libertando-se do abraço de Tanin e fazendo-o tombar de costas no chão.
Palin fincou os pés na lama o melhor que podia e fazendo apelo a toda a sua força, investiu para trás. Sentiu que tombava na escuridão, sem que nenhum corpo sólido lhe amortecesse a queda. Aterrou pesadamente no chão, e sentiu que o alento que lhe restava se consumia todo. Mas, as mãos afrouxaram o abraço em volta da garganta do mago.
Ficou ali, arquejando para recuperar a respiração e ciente de que tinha que se mexer, embora se sentisse muito abalado para tentar. Levantando a cabeça, julgou ter visto uma estrela brilhar entre as trevas e assombrou-se com o prodígio. Só depois percebeu que se tratava da luz da jóia que cintilava no pescoço de Steel.
— Apresse-se, Majere! — ordenou Steel, estendendo a mão para ajudar Palin a se levantar. — Foram embora... mas por pouco tempo.
Palin ignorou a mão que o outro lhe estendia. Ajoelhou-se e começou a esquadrinhar as folhas apodrecidas. Ouviu em seu redor, o sussurro das trevas.
— Que aconteceu? Se feriu? — perguntou Steel.
— O meu bastão! Onde está ele? Não o encontro! Não consigo ver! — respondeu Palin, remexendo nas folhas úmidas.
— Apresse-se, mago! — insistiu Steel.
O cavaleiro postou-se junto a Palin, protegendo-o com o corpo e de espada em riste.
— Achei-o! — exclamou Palin, com um arquejo de alívio. A sua mão fechou-se sobre a madeira macia e, de imediato, o bastão começou a irradiar luz. Transbordando de gratidão, apoiou-se no bastão e levantou-se.
E, diante deles, lá estava a Torre da Feitiçaria Suprema.
Perfilando-se contra o céu e toldando-o de escuridão, via-se um edifício alto, constando com magia e mármore negro. Nem sequer as estrelas se aproximavam da Torre de Palanthas. Sobre a mesma brilhavam três luas. As paredes de mármore cintilavam ao clarão de Solinari, pois embora fosse uma divindade adorada pelos Vestes Brancas, à semelhança dos irmãos ela também adorava toda a magia. Os raios avermelhados de Lunitari refletiam-se nas espiras cor de sangue que sobrepujavam a torre. Além das espiras e do balcão conhecido por “Passeio da Morte”, pairava Nuitari, a Lua Negra, a guardiã especial desta torre, apenas visível aos olhos dos Vestes Negras.
— Conseguimos — disse Palin, sentindo a garganta embargada. Chegara o momento há tanto tempo ansiado. Reprimiu o ímpeto de correr, pois os acontecimentos haviam-no ensinado a ser circunspecto. Aguardou que o cavaleiro o precedesse.
Apesar da fadiga, Steel avançou dando passadas rápidas. Ele também se sentia aliviado por ver a viagem chegar ao fim. Juntos, iluminados agora pelo clarão de duas luas, encaminharam-se para os portões de ferro.
Não havia cadeados à vista. Parecia que os portões se abririam com um simples empurrão. Contudo, nenhum deles teve vontade de tocar naquele ferro, do qual escorria o visco estranho e sobrenatural da Clareira de Shoikan.
Não avistaram vivalma. Não havia candeias iluminando as janelas, mas podia tratar-se de uma ilusão. Quem sabe — era o mais provável — se inúmeros olhos não estariam a observá-los.
— Bom, Majere, de que está esperando? — perguntou Steel, indicando com a espada o portão. — Entramos nos teus domínios. Avance.
Palin não tinha argumentos a contrapor. Aproximou-se e estendeu a mão para o portão.
Este se abriu.
Palin sentiu-se mais descontraído. Olhou para Steel com uma expressão de cansado triunfo. Chegara a sua vez de liderar.
— Ande — disse. — Estão nos convidando para entrar.
— Que sorte — murmurou Steel, sem baixar a espada. Cruzou o portão e foi desembocar num estranho jardim.
Cresciam ali inúmeras ervas e flores utilizadas na fabricação de componentes para encantamentos. Cultivadas e mantidas pelos magos aprendizes, muitas dessas plantas cresciam à noite e desenvolviam-se sob o fulgor invisível de Nuitari. No ar parado pairava a fragrância da erva-moura, do lírio da morte, das orquídeas negras, das rosas negras, da arruda, da dulcamara, do meimendro negro, da papoula, da mandrágora, do absinto e do visco — um perfume adocicado, enjoativo e pesado.
— Não apanhe nem toque em nenhuma das plantas — avistou Palin quando percorriam a calçada úmida e cinzenta do jardim.
— Não as queria nem de graça — respondeu Steel, embora parasse diante do lírio e esboçasse uma ligeira vênia, sendo o lírio o símbolo da sua ordem.
Palin interrogava-se quanto à maneira de atravessar a porta — lembrava-se vagamente da existência de um sino — quando os avistou. Por toda a parte. À sua volta.
Olhos. Olhos parados. Apenas olhos.
Sem crânios ou narizes. Sem braços, troncos ou pernas.
Olhos e mãos.
Mãos pavorosas. Mãos geladas como a morte.
Steel pôs-se atrás de Palin.
— Quem são estes? — murmurou ao ouvido do mago.
— Os guardiões da torre — avisou Palin. — Não... não os deixe chegar perto.
Os olhos se aproximaram deslizando. Deviam ser uma centena, brilhando, pálidos e frios, sob o fulgor de Nuitari.
— Em nome do Abismo, como faço para detê-los? — inquiriu Steel encostando-se a Palin, para lhe proteger os flancos, enquanto Palin lhe salvaguardava os seus. — Faça qualquer coisa: Diga qualquer coisa!
— Eu me chamo Palin Majere — anunciou Palin com voz estridente. — Deixem-me passar!
Majere... Majere... Majere...
O nome ecoou pelas muralha de pedra da torre, repercutiu pelo jardim como o repique de sinos discordantes e acabou numa gargalhada trocista.
Palin estremeceu. Steel cerrou os maxilares. O rosto do cavaleiro reluzia de suor.
Os olhos se aproximaram. Da escuridão emergiram mãos, brancas e desencarnadas. Dedos esqueléticos apontaram para os corações palpitantes dos dois seres vivos. Um toque e lhes gelaria o sangue, o coração deixaria de bater.
— Em nome de Chemosh, ordeno que se afastem! — gritou repentinamente Steel.
Os olhos chisparam de fúria.
— Se eu fosse você, não mencionaria esse nome outra vez — avistou Palin, com voz suave. — Aqui, só um deus é respeitado.
— Então, faça qualquer coisa, Senhor Mago! — respondeu Steel em tom áspero.
— Encontro-me aqui para falar com Dalamar — explicou Palin, em desespero. — Vim visitar o seu senhor.
Mentira... mentira... mentira...
As palavras lembravam o roçar de vestes invisíveis e esfarrapadas, o ranger de dedos descarnados, a cintilação dos olhos brancos e gelados.
Os guardiões espectrais acercaram-se ainda mais, formando um círculo em volta do mago e do cavaleiro, que se postaram de costas um contra o outro, Palin erguendo o bastão e Steel agarrando a espada. Mas, o cristal do bastão estava perdendo o fulgor rapidamente. Com a espada, Steel desferiu um golpe violento contra um dos espectros. A lâmina silvou, retalhando apenas a noite. Os espectros aproximaram-se ainda mais.
— Tio! — gritou Palin. — Venho te encontrar! Tio, preciso que me ajude!
A porta que dava para a torre se abriu, derramando escuridão. Os espectros se detiveram, os olhos frios e pálidos viraram-se naquela direção. Avassalado pelo receio, o júbilo e o terror, Palin sentiu-se estremecer. Inclinou-se para frente, para perscrutar as trevas.
— Tio? — gritou. Uma voz respondeu-lhe:
— Não se mexa! Fique onde está! Já vou! Já vou! Hei de salva-lo!
E Tasslehoff Pés Ligeiros emergiu da escuridão.
— Tio Tas! — exclamou Palin, atônito.
— Presumo não se tratar do tio que tinha em mente — disse Steel com voz soturna.
— Não. — Palin sentia-se frustrado. — Nunca...
— Consegui... está bem aqui! — o kender ancião bufava com o esforço da corrida. Deteve-se nas escadas que levavam à porta da torre, agitando algo brilhante no ar. — Não se preocupe...
— Tas, não se aproxime! — gritou Palin, em pânico. — Volte para trás! Volta para dentro!
— Não! Não — respondeu Tas. — Não compreende! Achei-a! Agora já está em segurança!
E antes que Palin pudesse dizer algo mais, o kender desceu precipitadamente as escadas e correu direto para os espectros.
A pálida luz do bastão incidiu no objeto que o kender segurava: uma colher de prata.
— Desapareçam, estúpidas aparições! — ordenou Tas, dirigindo-se num tom profundo, ríspido, autoritário, como os sacerdotes possivelmente utilizariam. Contudo, verificou que tamanha rigidez era excessiva para ele, pois acabou por ficar meio sufocado. Entre tossidas secas e muitos perdigotos, conseguiu repetir:
— Já disse para desaparecerem! Sumam! Vão embora!
E dizendo isto, agitava a colher para os espectros.
— Vamos morrer — disse Steel.
— Não — respondeu Palin, depois de observar, atônito a cena. — Não, não vamos.
Dois a dois, os olhos gelados foram se cerrando. As mãos brancas e mortíferas desapareceram no interior de mangas invisíveis. O jardim ficou deserto. A entrada para a torre permaneceu aberta.
Quando Tas se aproximou deles bamboleando para saúda-los, o brilho do bastão de Palin refletiu-se, radioso, nos olhos do kender.
— A Colher Que Revolve dos Kenders — anunciou com orgulho, levantando-a para que Palin a examinasse.
Palin preparava-se para fazê-lo, a fim de confirmar se a mesma era mágica, mas sem lhe dar tempo, Tas enfiou-a num bolso e virou-se para outros assuntos.
Estendendo a mãozinha a Steel, inquiriu polidamente:
— Como vai? Eu sou Tasslehoff Pés Ligeiros. Os amigos me chamam de Tas. Exceto Palin — acrescentou, depois de refletir um instante — Ele me chama “Tio Tas”. Na verdade, não sou tio dele. Eu e Caramon não somos parentes. Sou amigo da família. Quando eram menores do que eu, costumavam me chamar de “Vovô”. Mas, quando se tornaram crescidos, não tinha lá muita graça. De modo que, depois de alguma discussão, mudamos para “Tio”. Já tive um Tio Salta-Pocinhas. Era o que andava com a colher. Credo, a tua armadura é mesmo fantástica! A caveira e o lírio da morte lhe dão um aspecto diabólico, uma maravilha! Já sei! Deve ser um Cavaleiro de Takhisis! Já ouvi falar de vocês, mas não conhecia nenhum. É um verdadeiro privilégio. Será que já te disse que me chamo Tasslehoff Pés Ligeiros?
— Não falo com kenders — retrucou Steel.
— Mesmo os que salvam sua vida? — inquiriu Palin mansamente. Steel olhou para Tas com ar carrancudo, e por fim esboçou uma vênia rígida.
— Steel Montante Luzente.
— Eu o conheço! Tanis me falou de você! É o filho de Sturm! Eu e Sturm fomos grandes amigos! — Tas atirou-se para frente, a fim de receber um abraço.
Foi detido por Steel que, pousando a mão na cabeça do kender, manteve-o à distância de um braço.
— É provável, embora não muito verosímil, que lhe deva a vida, kender — disse Steel com frieza. — Sou um homem de palavra e gosto de saldar as minhas dívidas, mas não sou obrigado a te aturar perto de mim. Portanto, fica desde já avisado que deve se manter longe de mim. — Dito isto, empurrou Tas para trás.
Palin segurou-o.
— Me esqueci — replicou Tas num murmúrio que todos ouviram — que é filho de Kitiara também!
Palin ia avisar Tas de que seria mais benéfico para sua saúde manter-se afastado do cavaleiro quando, do interior da torre, lhes chegou uma voz de mulher:
— Tasslehoff! Onde você está? Tas? Onde se meteu?
Palin ergueu a cabeça e olhou na direção da porta. Deu um suave suspiro. Os espectros quase lhe haviam gelado o coração. Agora, o sentia em fogo.
Uma mulher, como nenhuma outra que conhecera na vida, encontrava-se postada à soleira. Madeixas de cabelo prateado emolduravam-lhe o rosto fascinante e misterioso. Contudo, os olhos, grandes, ansiosos e dourados, pareciam convidar os outros a confiar-lhe todos os seus segredos. As roupas que vestia, feitas de seda macia, de cores vivas, eram requintadas, não havia nenhuma mulher de linhagem daquela região que usasse vestimentas assim. Contudo, ficavam-lhe bem. Era tão exótica e fascinante que mais parecia ter caído de uma estrela.
— Tas! — exclamou, com uma entoação de alívio, correndo pelas escadas. — Louvados sejam os deuses, te encontrei! Agora já podemos sair daqui...
Calou-se e olhou fixamente para Palin e Steel.
— Oh! — exclamou. Olhando de esguelha para Tas, aproximou-se dele e inquiriu: — Quem são estes cavalheiros?
— Amigos meus! — respondeu Tas com entusiasmo. — Este é Steel Montante Luzente, o filho de Sturm. Sturm era um Cavaleiro da Solamnia e um dos meus melhores amigos. Também é filho de Kitiara, mas essa não foi cavaleira, mas sim uma Eminência Draconiana e não era propriamente amiga, antes conhecida. Esta é Usha.
— Senhora — disse Palin com voz meiga, olhando, fascinado, para a mulher. Mas ficou desapontado ao ver que ela fitava o cavaleiro e lhe dirigia um tímido sorriso.
Steel nem se dignou a olhá-la. Os seus olhos perscrutavam as janelas da torre, procurando sinais de perigo.
Usha olhou-o com mais atenção, em especial para a armadura, cujos contornos o luar realçava. O sorriso desapareceu, os olhos da jovem ensombraram-se e sua voz tremeu de fúria.
— Eles eram como você... os que apareceram! Nos trataram como se fôssemos a terra que pisavam. Por que apareceram para destruir nossas vidas? — gritou de repente. — Que foi que fizemos? Não constituíamos nenhuma ameaça!
Steel virou-se para fitá-la e examinou-a com interesse.
— Senhora, de que cidade você vêm? De Kalaman? Então é verdade que caiu em nossas mãos?
Usha abriu a boca, disposta a responder, mas sentiu dificuldade em fazê-lo. Por fim, disse:
— Não, não sou de Kalaman. Fica perto... — Por um momento a sua voz tornou-se sumida, mas ganhou alento de novo. — Não tinham o direito de invadir a nossa terra natal!
— Senhora, seja qual for o mal que supõe que lhe infligiram, aconteceu em nome do progrosso — replicou Steel. — Não é obrigada a compreender, de modo que não tentarei explicar. — De novo os seus olhos se detiveram na torre. Ainda empunhava a espada. — Majere, não se esqueça que temos assuntos a tratar ali — acrescentou.
— Não me esqueci — respondeu Palin, embora a contragosto. Usha pousara nele os lindos olhos.
— Senhor, como se chama? — perguntou, sentindo-se corar sob o olhar de franca admiração do mago.
— Palin Majere — respondeu este em tom meigo. — E você? Eu... Eu não entendi muito bem.
— Usha — respondeu ela com malícia.
— Usha Majere. — exclamou Tas, dando pulinhos de excitação. — Não é espantoso? A Usha é filha de Raistlin! Encontrei a filha de Raistlin!
— Não! — exclamou Palin, como que fulminado.
— O que foi? — Assustada com a sua veemência, Usha recuou um passo. — Que mal tem?
— Eu... Eu sou o sobrinho de Raistlin! Caramon Majere é o meu pai e o teu tio. Somos primos — respondeu Palin, desgostoso. — Primos-irmãos!
— Só isso? — Usha deu um suspiro de alívio. — Pronto, somos primos-irmãos. Não me importo com isso — rematou, dirigindo-lhe um sorriso.
O sorriso dela pairava em volta de Palin como um manto de pó de estrelas. Este sentia-se tão deslumbrado que mal conseguia enxergar.
— Os pais deles são irmãos gêmeos — explicou Tas.
— Agora que a questão da genealogia se encontra esclarecida — interveio Steel em tom casual — Será, Majere, que posso recordá-lo uma vez mais que o tempo está escoando e que temos importantes coisas a fazer no interior da torre?
— No interior? — repetiu Usha, olhando, receosa, para a torre, e virando-se para Palin. — Tencionam entrar lá dentro?
— Nós acabamos de sair! — informou-os Tas, acrescentando, com orgulho: — Dalamar nos mantinha prisioneiros.
Palin mostrou-se duvidoso.
— Por que Dalamar haveria de mantê-la prisioneira?
— E o que interessa isso? Vocês atravessaram o bosque — respondeu Usha falando rapidamente e não dando a Tas ensejo de responder. Pegou na mão de Palin e fitou-o nos olhos. — O Veste Vermelha que está lá dentro afirmou que, para conseguir uma façanha destas, deve ser um feiticeiro muitíssimo poderoso. — Inclinando-se para ele, murmurou-lhe ao ouvido: — Você e o cavaleiro poderiam nos levar de volta através do bosque e deste modo sairíamos deste lugar horrível!
A sua mão era macia, suave. Quando o tocou, foi como se o cintilante véu de poeira de estrelas lhe invadisse o sangue.
— Menina, não posso — respondeu Palin, segurando-lhe a mão ainda. — Há um assunto que preciso tratar aqui. E não deve tentar fugir tomando o percurso da Clareira de Shoikan. Por pouco não escapávamos com vida.
Virando-se para Tasslehoff, acrescentou:
— Não entendo. Por que Dalamar haveria de mantê-los prisioneiros?
— Porque ela é filha de Raistlin, ora essa — respondeu Tas em tom prosaico.
Claro. Mesmo antes de formular a pergunta, Palin já adivinhara a resposta. Que grande alegria para Dalamar poder por as mãos na filha de Raistlin Majere! Foi quando ocorreu a Palin que possivelmente seria ela o motivo que fizera a voz conduzi-lo até ali. Sentiu um aperto no coração. Talvez o tio só necessitasse de um guia que o levasse até à pessoa por quem se interessava de verdade — a filha.
Palin retirou a mão. Os ciúmes avassalaram-no, sentiu os dentes venenosos enterrarem-se profundamente no seu espírito. Sentia-se atraído por aquela mulher e ao mesmo tempo cioso dela e finalmente compreendeu a relação amor-ódio que existira entre o pai e o irmão gêmeo dele.
Sentindo a inesperada frieza da parte do mago, mais fria do que os espectros, Usha fitou-o por longo tempo com uma expressão confusa e desiludida e, num gesto involuntário, afastou-se dele.
— Não vai nos ajudar a fugir? Muito bem. Atravessarei o bosque sozinha — declarou com altivez.
— Não, Usha, receio que não — respondeu Palin em tom ferido. — Há um motivo para se encontrar aqui...
— Que é? Raistlin anda à procura dela? — Tas interrogou-se alegremente. — Achei que Raistlin tivesse morrido. Palin, acha que ele morreu? Malandro, acha que não! Por isso está aqui! — A excitação do kender o pôs frenético.
— Majere... — interveio Steel impaciente.
— Já sei! Já sei! Vamos lá — Palin pegou no braço de Usha e começou a levá-la para dentro da torre. — Vamos conversar com Dalamar.
— Mas, ele não está aqui! — exclamou Usha, libertando-se do abraço de Palin. — Foi não sei para aonde, a uma reunião qualquer de feiticeiros...
— À Torre da Feitiçaria Suprema, em Wayreth — rematou Tas. — Um Conclave. Uma vez fui a um. Já te contei que houve uma época em que o Par-Salian me transformou em rato? Bom, acho que fui eu mesmo que me transformei em rato, mas...
— Dalamar não está — murmurou Palin. Deixe Dalamar comigo...
O tio lhe prometera. Podia ser tudo coincidência, mas Palin duvidava. Raistlin se esforçava ativamente para ajudá-lo. Mas com que objetivo? Com que fim?
— Então, é melhor nos apressarmos antes que Dalamar volte — disse, fazendo menção de se dirigir para a porta da torre.
Lá dentro, encontrava-se postado um Veste Vermelha, impedindo a passagem.
— O que vocês dois fazem aqui? Como conseguiram atravessar a Clareira de Shoikan e passar pelos guardiões. Onde estão os guardiões?
Palin abriu a boca. Não era lá muito bom para mentir, mas neste caso a verdade de pouco valeria. Fez menção de falar, mas Tasslehoff interrompeu-o.
— Foram convocados por Dalamar — anunciou Tas dando-se ares de importante. — Quanto aos guardiões, mandei-os embora graças à Colher Que Revolve dos Kenders — Exibiu a colher, para que o outro a examinasse.
O mago mirou-a fixamente, olhou para Palin e Steel e relanceou o olhar pelo jardim vazio. Parecia confuso e desconfiado.
— Lorde Dalamar mandou chamá-los? — repetiu. — Um Veste Branca e um Cavaleiro das Trevas?
— Combinam um com o outro, não acha? — disse Tas, acrescentando: — E como poderiam atravessar o bosque sem os encantamentos que Dalamar lhes deu para ajudá-los? Agora, se nos permite, temos que subir aos aposentos de Dalamar — Tas olhou para Palin. — É onde pretende ir, não é? — perguntou, num murmúrio que todos ouviram.
O Veste Vermelha franziu o cenho. Steel ficou carrancudo. Voltara a embainhar a espada mas continuava a segurar o punho.
— Eu me chamo Steel Montante Luzente, Cavaleiro de Takhisis. Fui incumbido de uma missão. Lorde Dalamar não nos...
— ...esperava tão cedo. — assentiu Tas, em alto e bom som. — Diga ao primo Steel para ficar calado e me deixar cuidar do assunto — murmurou de novo a Palin, que desejou com veemência que Steel não tivesse escutado este novo apelo do kender.
Tas começou a se dirigir para a porta. Pondo a mão atrás das costas, fez um gesto para que o seguissem. — Esperamos por Dalamar no quarto dele. Se não desse muito trabalho, gostaríamos de beber um chazinho. Vamos, Usha.
Steel seguiu o kender. Palin preparava-se para fazê-lo, quando reparou que Usha recuava. Torcendo as mãos com nervosismo, a jovem olhou para a torre, apavorada.
— Vou embora daqui! — protestou. — Não quero voltar lá para dentro!
O Veste Vermelha mostrava-se agora francamente desconfiado.
— Menina, disse-me que ia estudar magia conosco, que se tornaria aprendiz de Lorde Dalamar. Mas o que se passa aqui?
— Eu... eu ainda não me decidi — replicou Usha. — Preciso ir para um lugar qualquer, a fim de meditar no assunto. Um lugar qualquer que não seja este! Quanto a estudar magia, talvez não precise de fazê-lo, não agora. Me satisfaço com o poder que tenho.
— Usha — começou Palin. Steel impediu-o.
— Deixe-a ir — disse o cavaleiro. — Estamos perdendo tempo.
Palin soltou-se, furioso.
— Por mais poderosa que seja a sua magia, não impedirá que morra caso penetre naquele bosque! Além disso — acrescentou em voz baixa — é bem possível que nos encontremos aqui por causa dela.
— O quê? Porquê? — Steel olhou de relance para a mulher, sem dar mostras de interesse.
— Porque é a filha de Raistlin, é possível que ele esteja tentando chegar até ela.
Steel olhou intensamente para Palin.
— É possível que Raistlin queira a filha e não o sobrinho. — Steel encolheu os ombros. — Será que pode abrir o Portal para ela? Talvez tenha razão. Não me interessa, contanto que o Portal se abra. Traga-a conosco.
Palin encaminhou-se em passos lentos para Usha.
— Menina, não pode ir embora — disse. — Peço que fique comigo. Que confie em mim. Descobriremos uma solução.
Ela fitou-o com os olhos dourados, que deixavam transparecer uma expressão de frieza. Mas agora que se encontrava mais próximo, o mago constatou que o gelo servia apenas para dissimular o medo. A jovem parecia tão aterrorizada como uma criança perdida.
— Vou contigo — respondeu com meiguice. — Mas tem que ficar junto de mim...
A jovem irradiava calor e a sua pele era macia. O cabelo prateado aflorou o rosto do mago, provocando-lhe ondas de desejo por todo o corpo. Nunca na vida experimentara tal sentimento delicioso nem se vira enredado num torvelinho tão amargo. Ficar junto dela! Tinha de atravessar o Abismo.
O Veste Vermelha, depois de ponderar o assunto, ao que parece concluiu que o kender tinha razão. Que melhor lugar para este estranho grupo, senão ficarem trancados nos aposentos do seu senhor?
— Subirei com vocês as escadas que conduzem ao quarto de Lorde Dalamar — declarou o Veste Vermelha. — Esperaremos juntos pelo meu senhor.
“Não vai dar certo”, era o que o olhar carrancudo de Steel parecia dizer a Palin. Tinham que descobrir o Portal que dava para o Abismo, e seria melhor que o encontrassem antes que Dalamar aparecesse.
— Obrigado, mas não vai ser necessário — respondeu Tas com modos polidos. — Sabemos o caminho. Além disso, Palin já esteve aqui antes. É amigo pessoal e íntimo de Dalamar.
O Veste Vermelha ergueu as sobrancelhas mostrando a sua descrença.
— Não o está reconhecendo? — exclamou Tasslehoff. — É Palin Majere. O sobrinho de Raistlin Majere! Usha é filha de Raistlin. E este... — o kender acenou com a mão para Steel Montante Luzente. — ...é o meio-sobrinho de Raistlin Majere! Se não estou enganado. — franzindo o cenho, o kender pôs-se a refletir. — Ora vejamos. Kitiara era meio-irmã de Raistlin. Talvez isso faça com que Steel seja apenas um quarto de sobrinho...
— Trata-se de uma reunião familiar — interveio Steel que, empurrando o Veste Vermelha contra a parede, passou rapidamente por ele e penetrou na torre.
O Veste Vermelha não os seguiu até os aposentos de Dalamar. Contudo, fez com que vários guardiões espectrais os acompanhassem. Os olhos pálidos e imóveis ficaram montando guarda até se encontrarem em segurança nos aposentos de Dalamar e terem fechado a porta.
— Mas ficarão à nossa espera — previu Palin. — Para não falar do que guarda o laboratório. Esse espectro recebeu ordens de Dalamar para não permitir a entrada de ninguém. O laboratório nunca mais foi aberto desde que o meu tio...
Palin calou-se, sem terminar a frase. O que afirmara não era bem verdade. A porta do laboratório fora aberta uma vez, pois o Bastão de Magius encontrava-se lá dentro e agora era ele quem o segurava.
— Ah, não precisam se preocupar com o espectro — disse Tas, em tom confidencial. — Nós temos a...
— Colher Que Revolve dos Kenders. Já sei — atalhou Palin com um suspiro. Estava sem disposição para aturar as tolices do kender — Olha, Tio Tas, estive examinando o timbre da colher. Não passa de uma colher comum de...
Seus olhos detectaram movimentos. Levantando a cabeça, avistou um mago de veste negra. Na Torre da Feitiçaria Suprema, o fato não era inusitado. No entanto, o mago possuía cabelo branco, pele dourada e olhos em forma de ampulheta. A língua de Palin colou-se ao céu da boca. Começou a falar.
— Tio...
Raistlin fez um rápido movimento negativo com a mão. Os seus olhos dourados foram pousar, por breves instantes, no kender. Em seguida, a aparição desapareceu.
— Sim? — perguntou Tas, que admirava a colher. — O que estava dizendo da colher ser comum?
Palin olhou de relance pela sala. Será que alguém mais percebera a visão?
Ao que parece, não.
Steel esquadrinhava a sala, experimentando as paredes, vendo por baixo das tapeçarias, na tentativa de descobrir outra saída. Meio dormindo, Usha aninhara-se, desconsolada, numa cadeira. Tasslehoff dava palmadinhas amigáveis na colher.
— Esta colher não é comum! — prosseguiu o kender — Trata-se de uma relíquia sagrada, que foi oferecida pela Mishakal em pessoa ao meu tio Saltador de Armadilhas. Ou seria Reorx? Esqueci. Seja como for, funciona. Você mesmo assistiu.
Ninguém mais avistara Raistlin. Este aparecera para Palin e à mais ninguém. O cansaço, a dor e o desapontamento tombaram sobre o mago como uma capa atirada ao mar. Ia entrar no laboratório. O caminho fora aplanado. Como alguém dissera a respeito de Raistlin Majere:
A porta se abrirá para ele...
— Deixa eu ver outra vez. — Palin retirou a colher da mão de Tas e examinou-a. Esta coincidia exatamente com as que se encontravam na mesa.
— Tas, tem razão — disse Palin com brandura. — É um artefato sagrado. Na verdade, muito sagrado.
Deixaram os aposentos de Dalamar e Tas foi indicando o caminho para o laboratório, sempre com a colher espetada na mão.
Steel não se mostrou satisfeito por ter o kender como companheiro, mas, para seu espanto e raiva, Palin não tentou dissuadi-lo.
— Só um kender pode usar a Colher de Revolver dos Kenders — disse Palin com um sorriso ambíguo.
— Eu e você sabemos que a colher não é mágica — retorquiu Steel.
— Viu o que aconteceu ao espectro.
— Vi? — perguntou Steel. — Ou foi você querendo que eu pensasse que vi?
Palin evitou a pergunta.
— Levamos o kender conosco e o mantemos debaixo dos olhos. Ou prefere que ande por aí bisbilhotando à vontade? Ouça o que os duendes dizem: “Nunca vire as costas a um kender.”
— Será? — replicou Steel com frieza. — O que eu ouvi foi: “Nunca vire as costas a um mago.”
Os olhos desencarnados piscaram, reluziram e em seguida desapareceram.
Uma colher na mão de um kender não conseguia repelir tais aparições. Steel sabia disso e o mesmo acontecia com Palin. Inesperadamente, este pareceu ansioso para chegar ao destino. Apaziguadas suas dúvidas e receios, mostrava-se descontraído, confiante. Alguma coisa acontecera. Vira algo, recebera algum sinal. Mas Steel não fazia idéia do que se tratava. Seria o jovem mago muito mais poderoso do que levara a crer? Será que aquela estranha mulher de olhos dourados fazia parte de um conluio? Estariam arrastando o cavaleiro para uma armadilha?
Como nunca tivera grande propensão para acreditar em fazedores de magia, Steel decidiu vigiar Palin e a mulher de perto.
Subiram as escadas sombrias, que se erguiam em espiral e provocavam dores nas pernas, agarrados à parede, para evitar tropeçar e despencar nas trevas que se adensavam por baixo dos seus pés. Ninguém se aproximou. Ninguém interferiu. Ninguém os deteve. Parecia que, à exceção deles, a torre se encontrava deserta.
O infame laboratório da Torre da Feiticeira Suprema situava-se perto do topo da torre. O único Portal para o Abismo ainda existente ficava dentro do laboratório.
Talvez.
— Majere, fale-me desse Portal — disse Steel, enquanto subiam. Palin pareceu mostrar grande relutância em falar.
— Não sei quase nada — começou.
— Eu sei! — exclamou o kender impetuosamente. Steel ignorou-o.
— É um mago, não é, Majere? Suponho que na escola para magos, lá no lugar onde você estudou, te ensinaram essas coisas.
— Conheço a história — replicou Palin, evasivo.
— Eu também! — assentiu Tasslehoff. — Participei bastante nela. Estava com Caramon e Raistlin quando o Raistlin não era o Raistlin mas sim o Fistandantilus e entrou no Portal e tentou lutar contra a Rainha das Trevas, só que falhou. Gostariam de ouvir a história?
— Não — respondeu Steel. — Quero que me fale do Portal já que nós vamos entrar lá — acrescentou em tom contundente, olhando com intensidade para Palin.
O brilho do Bastão de Magius derramou sobre o jovem mago um vivo fulgor. Palin tinha o rosto muito afogueado e os olhos reluziam, exultantes.
Reparando no olhar de Steel, Palin afastou o bastão de modo que ficasse oculto na escuridão.
Anda tramando algo, disse Steel para consigo, redobrando a vigilância.
— Vamos voltar ao Abismo? — inquiriu Tas, não mostrando o entusiasmo que qualquer kender revelaria face à perspectiva. — Espero que saiba que o Abismo não é um lugar lá muito bonito. De fato, é horrível. Não estou bem certo se quero acompanhá-lo.
— Ótimo — interveio Steel. — De maneira que não vai. Majere prossiga a história.
— Continue falando, só isso — disse Usha. — Com alguém falando não assusta tanto.
Contudo, Palin guardou silêncio. Foram subindo até desembocarem num patamar amplo. Arquejantes, com os músculos doloridos, todos concordaram em parar. Tinham que percorrer um longo trecho íngreme ainda até chegarem à porta que dava para o laboratório, o qual se via pelo clarão das tochas. Satisfeitos com a pausa, sentaram-se no chão e esticaram as pernas.
— O Portal? — insistiu Steel, dando um encontrão no mago.
— Na verdade, pouco há para contar — respondeu Palin com um descontraído encolher de ombros. — Existiram, em tempos remotos, cinco Portais, cada um deles localizado numa das cinco Torres da Feitiçaria Suprema. Criados por artes mágicas, os Portais foram concebidos para permitirem aos feiticeiros efetuar o percurso entre as torres sem necessidade de despenderem energia em encantamentos de teletransporte.
“Os feiticeiros tinham em mente apenas franquear as portas uns aos outros e não se aperceberam que, acidentalmente, estavam criando uma rota que estabelecia uma porta entre este mundo e o outro plano de existência. Contudo, a Rainha Takhisis sabia. Presa no Abismo, ela e os seus dragões do mal aspiravam, há muito, penetrar em Krynn, no que eram impedidos por Paladino e os seus dragões do Bem. Contudo, Paladino exercia pouco domínio sobre os fazedores de magia, que gozavam da fama de seguir por caminhos próprios.
“Takhisis descobriu um feiticeiro veste negra susceptível de cair em tentação. Assumindo a forma de uma bela mulher, Takhisis aparecia em sonhos todas as noites ao feiticeiro, murmurando-lhe sedutoras promessas. Este, que se tornara obcecado pela linda mulher, jurou que haveria de encontrá-la e torná-la sua.
“Encontro-me prisioneira noutro plano, noutra época — disse Takhisis ao feiticeiro. — Só você, com o teu poder, será capaz de libertar-me. Para isso, terá que atravessar o Portal. Guarde no espírito a minha visão que eu te guiarei.
Neste ponto, Palin calou-se inesperadamente. O seu rosto, iluminado pelo clarão do bastão, assumira uma palidez extrema.
Que eu te guiarei. As palavras continuavam a pairar no ar.
— Que aconteceu ao feiticeiro? — perguntou Usha.
— Eu sei! Eu sei! — exclamou Tas, levantando a mão. Palin pigarreou e continuou:
— O feiticeiro, dominado pela luxúria, atravessou o Portal, com a visão de Takhisis fervendo-lhe no sangue. O que lhe aconteceu ali, ninguém sabe, pois nunca mais voltou. Aberto o Portal, a Rainha Takhisis e a sua legião de dragões abateram-se sobre Krynn e, segundo reza a lenda, foi esta a causa da Primeira Guerra dos Dragões.
“Huma, o garboso Cavaleiro de Solamnia, conseguiu levar a Rainha das Trevas de novo para o Abismo. Muitíssimo penalizados, os feiticeiros tentaram selar os Portais. Infelizmente, os feiticeiros responsáveis pela sua concepção haviam perecido na Guerra dos Dragões, levando consigo os seus conhecimentos e poder. Os que sobreviveram, foram incapazes de selar os Portais, apenas puderam interditar o acesso aos mesmos, pelo menos assim julgaram. De modo que estabeleceram, como condição, que as únicas duas pessoas capazes de atravessar um Portal seriam um mago veste negra acompanhado por um sacerdote veste branca. Acreditavam ser impossível a celebração de tão ímpia aliança, de modo que os Portais ficariam a salvo.
“Com o decorrer do tempo, quando do advento de Istar, época em que os feiticeiros foram perseguidos pela igreja, três das Torres da Feitiçaria Suprema ou se perderam ou foram destruídas, assim como os respectivos Portais. Os feiticeiros que viviam na Torre de Palanthas concordaram em abandoná-la, recebendo em contrapartida a promessa do Sumo-Sacerdote de poderem praticar a sua magia em Wayreth. Contudo, antes de deixarem a torre, os feiticeiros, por razões de segurança, transferiram o Portal para a fortaleza situada na Calota, acreditando, ingenuamente, que ninguém iria descobri-lo ali.
— Eu o encontrei! — exclamou Tas. — Bom, mais ou menos. — Recuando no tempo, eu estava com Caramon e Raistlin, só que eu não devia estar lá. E com Crysania, que era uma sacerdotisa veste branca. E Raistlin atravessou o Portal e foi assim que entrou no Abismo. E Crysania foi com ele e a Rainha das Trevas quase matou a Crysania, mas ela conseguiu sobreviver, só que ficou cega, e Caramon entrou e tirou-a dali e Raistlin percebeu que cometera um erro terrível e que a Rainha das Trevas ia invadir o mundo, de modo que ele, quer dizer, o Raistlin, sacrificou a vida permanecendo no Abismo e mantendo o Portal hermeticamente selado. Caramon acredita que, pelo seu sacrifício, foi concedida a paz do repouso eterno, significando que, afinal, Raistlin não se encontra no Abismo...
— Oh! — exclamou Tas, dando pulos de excitação. — Então é por isso que vamos passar pelo Portal, Palin? À procura de Raistlin? Nesse caso, vou também! — disponibilizou-se o kender com ar magnânimo. — Eu e Raistlin éramos grandes amigos. Até ele ter matado Gnimsh, o gnomo. — Tas assumiu uma expressão solene. — Nunca consegui perdoá-lo.
— Majere, vai à procura de Raistlin Majere? — perguntou Usha, sem olhar para Palin e brincando, nervosamente, com a barra da túnica.
— Ainda nem conseguimos entrar no laboratório — salientou Palin.
— Dali a irmos ao Abismo procurar quem quer que seja, vai um longo percurso!
— E nenhum de nós é feiticeiro veste negra ou sacerdote veste branca — disse Steel. — O que, Majere, de acordo com a tua história, significa que não temos hipóteses de entrar, que nunca tivemos uma hipótese de entrar. — Pôs-se de pé de um salto e levou a mão ao punho da espada. — Sabia disso o tempo todo. O que anda tramando? Ou haverá algo que nos omitiu?
— Não ando tramando nada — respondeu Palin em tom suave. — Contei a verdade... tal como a conheço. — E levantando os olhos para Steel, acrescentou: — Não faço idéia de como irei entrar lá...
— Sabe sim. Caso contrário, não teria chegado tão longe. O que se passa? O que você sabe, Majere?
Apoiando-se no Bastão de Magius, Palin levantou-se.
— Sei que te dei a minha palavra de honra — respondeu. — E que a honrarei.
— A palavra de um feiticeiro é escorregadia como uma enguia — retrucou Steel em tom sardônico.
— A palavra de um Majere não é — respondeu Palin com ar digno. — Avançamos?
Continuaram a subir os degraus ventosos, que pareciam não acabar nunca mais. Sabiam que estavam sendo observados, mas quem quer que fosse se mantinha invisível.
Cada degrau trazia a Palin reminiscências, recordações do seu Teste, que se efetuara naquela torre. De acordo com Dalamar, fora tudo ilusão. Seria? Parecera-lhe tão real. No entanto, o Teste parecia sempre real aos magos que o efetuavam, que arriscavam a vida para possuírem a magia.
Quem sabe se o Teste não foi mesmo verdadeiro e se o resto da vida de Palin não passou de ilusão.
Fechando os olhos, Palin encostou-se à parede gelada da torre e, pela primeira vez na vida, rendera-se à magia. Sentiu-a fervilhar-lhe no sangue, acariciar-lhe a pele. As palavras por ele sussurradas já não eram de perdição, mas de boas-vindas, de sedução. Sentiu o corpo tremer com o êxtase da magia ...
Foi com um aperto no coração que Palin recordou aquele momento do Teste. Há muito, muito tempo que não experimentava o arroubo. Até esse instante, nunca o admitira a ninguém, nem mesmo a si mesmo. A magia tornara-se como que um vício. Aprendera os encantamentos sozinho nas profundezas da noite, recitara as palavras vezes sem conta, procurando aprimorar a inflexão adequada, a entoação correta. As palavras mágicas rodopiavam-lhe na cabeça quando tentava dormir, os componentes dos encantamentos perseguiam-lhe os sonhos. Sentira o sangue fervilhar quando lançava o encantamento, experimentara a sensação que advinha da magia produzir o que se esperava que produzisse. Mas esta nunca prevalecera sobre o sentimento de inaptidão, o vazio e o terror impotentes que o avassalavam quando o encantamento não funcionava.
E tornou-se cada vez mais freqüente a magia não funcionar. As palavras embaralhavam-se na cabeça, feito uma amálgama. Não conseguia se lembrar se pronunciara a primeira palavra com o acento na última sílaba ou a última palavra com o acento na primeira. Não conseguia encontrar o componente de encantamento que a poucos momentos antes se encontrava no seu alforje...
Quando foi que o medo começara a crescer dentro de si? Não aconteceu na sua primeira aventura, em que viajara com os irmãos, conhecera o duende Dougan Martelo Vermelho e se lançara em busca da Pedra Preciosa Cinzenta de Gargath. Não, nessa altura a magia fora inebriante e o perigo, estimulante.
Voltara a se dedicar avidamente aos estudos, embora sem mestre para ensiná-lo. Nenhum mago de Krynn desejava ter o sobrinho de Raistlin Majere como aluno. Palin compreendeu. Nessa fase da sua vida, não sentira necessidade de possuir um mestre. Trabalhava sozinho, tal como o tio.
De início, Palin saíra-se bem, só que nada tinha para mostrar. Os meses foram-se passando e os progressos eram poucos ou quase nulos. Por vezes, parecia que regredia. Viajou então à Torre de Wayreth e compareceu à presença do Conclave, para que o aconselhassem.
— Paciência — dissera Dalamar. — Paciência e disciplina. Os que abraçam as vestes brancas alcançam mais poder do que os que usam as vestes vermelhas ou negras, mas paga um preço. Tem que andar antes de correr.
— O meu tio não andou! — Palin sentira a frustração queimá-lo por dentro. Irritava-se com a aprendizagem repetitiva e maquinal, com o escrevinhar interminável de rolos de papiro, com as hora perdidas esgaravatando a terra do jardim, à procura de ervas. E subjacente a tudo aquilo, como água salobra que ia contaminando a vida e o trabalho, persistia o medo cada vez maior de não ser suficientemente bom, de nunca vir a tornar-se outra coisa que não um mago de baixa categoria, adequado à prática de magia em festas de aniversário para crianças.
Um dos motivos por que abandonara os estudos e partira com os cavaleiros, fora o desejo de provar a si mesmo que tinha valor. Falhara da maneira mais atroz ... e foram os irmãos que pagaram o preço.
Palin ia percorrendo as escadas, obrigando as pernas doloridas a subir mais um degrau, depois outro, e outro ainda. Até se alhear por completo do que o rodeava. Só se deu conta de que haviam chegado ao seu destino quando o kender lhe puxou as vestes brancas.
Atordoado, Palin olhou fixamente para Tas sem, de início, reconhecê-lo. Depois, pestanejou e voltou à realidade.
— Sim? Que foi?
— Acho que chegamos — disse Tas num murmúrio audível apontando com a mão. — É aqui?
Encontravam-se num vasto patamar, que ficava logo por baixo de uma porta de madeira com gonzos de ferro forjado. Um curto lance de escadas ia desembocar na porta.
— Conheço este lugar — respondeu Palin o melhor que podia. Tinha a garganta e a boca tão secas que lhe tornava penoso falar. — Fiz o meu Teste aqui. Sim... — calando-se, passou a língua pastosa pelos lábios ressequidos. — O laboratório fica aqui.
Ninguém falou, nem mesmo Tas, e todos se comprimiram dentro do círculo de luz do bastão. Fora do círculo, as trevas grulhavam e ciciavam. Sentiam o roçar de sombras mergulhadas numa semipenumbra, que afloravam com mãos etéreas. Se a luz do bastão esmorecesse, seriam tragados pela escuridão ofuscante.
— Vamos Majere! — A voz de Steel Montante Luzente tinha uma entoação áspera, agastada. — Avance. Abra a porta!
Ocorreu a Palin uma visão do passado.
Emergindo das trevas, viu que dois olhos brancos e frios o fitavam — olhos sem corpo, a menos que a sua carne, sangue e ossos fossem feitos de escuridão...
— Afaste-se!— ordenou Dalamar. — E deixe-nos passar.
— Isso não é possível, Senhor da Torre. A tua ordem foi: “Tome esta chave e a mantenha por toda a eternidade. Não a dê a ninguém, nem sequer a mim. E, doravante, ficará aqui postado, guardando a porta. Ninguém deve entrar. Faça com que a morte seja rápida para os que tentarem...
— Temos de passar pelo guardião — disse Palin.
— Que guardião? — perguntou Steel com impaciência. — Não há nenhum guardião!
Palin olhou atentamente. Reinavam as trevas e a única luz brilhando provinha do Bastão de Magins. E esse fulgor afastou a escuridão.
O espectro encontrava-se em algum lugar, invisível. De repente, Palin percebeu que os murmúrios vindos das trevas não eram ameaçadores, mas exultavam. Será que anteviam o regresso do verdadeiro Senhor da Torre?
— Tudo isto está errado! — murmurou Palin. Não, sobrinho. Isto é eminentemente correto!
Os olhos de Palin marejaram-se de lágrimas. Sentiu que tremia e que o fulgor do bastão bruxuleava sob o seu trêmulo abraço. “O que estou fazendo aqui?”, pensou. “Ele está me usando...”
— Ora, é claro que o guardião foi embora! — exclamou Tasslehoff Pés Ligeiros transbordante de satisfação. — Ouviu falar da minha colher! Anda, Palin! Eu vou na frente!
Metendo a colher no bolso, o kender subiu precipitadamente as escadas.
— Tas! Pare! Não entre aí!
Infelizmente, tais palavras não constavam do vocabulário do kender.
Palin ficou olhando, receoso, temendo ver surgir o guardião e o kender tombar morto pelas escadas.
Nada aconteceu.
Tasslehoff chegou à porta do laboratório incólume. Bateu na maçaneta, espiou pela fechadura e deu um empurrão na porta.
Silenciosamente, esta se abriu.
De dentro veio uma aragem gelada, um cheiro de bolor, umidade e outros mais desagradáveis. Usha tossiu e cobriu a boca e o nariz com o lenço. Steel fez uma careta e desembainhou a espada.
— Cheira a morte — disse.
Tasslehoff inclinou-se para a soleira, perscrutando o interior.
— Credo! — ouviram-no dizer. Depois, com um salto, transpôs a soleira e desapareceu nas trevas.
Ao espírito de Palin acudiram os boiões de componentes de encantamento, os artefatos mágicos, os livros de feitiços, os rolos de papiro — todos ao alcance dos dedos surripiadores de um kender. Havia mais perigo nisso do que qualquer situação que envolvesse guardiões espectrais.
— Tas! — Palin passou por Steel, empurrando-o. Pegando nas vestes, o mago subiu as escadas correndo. — Tas! Venha já para fora! Não toque em nada.
Parou na soleira, invadido pelo pânico, sentindo relutância em entrar. Tudo aquilo estava errado, errado. Estendeu o bastão para iluminar o interior.
Tasslehoff avançara até o meio da sala e encontrava-se diante de uma mesa enorme, fitando os objetos que se encontravam sobre ela, com os olhos arregalados de estupefação.
— Tas! — ralhou Palin, zangado e aliviado. — Venha para fora.
Ouviu os passos de Steel subindo as escadas atrás de si.
A luz do bastão se apagou. A escuridão abateu-se sobre eles, agitou-se em volta deles, colidiu contra eles, os fez submergir.
Steel começou a praguejar. Usha soltou um grito assustado.
— Que ninguém se mexa! — avisou Palin, e ao seu espírito acudiram visões terríveis de todos eles despencando pelas escadas em espiral, indo se esmagar no chão de pedra que ficava muito lá ao fundo. — Shirak!
A ordem não surtiu efeito. Ou então o bastão recusava-se a obedecer. A escuridão foi crescendo, tornando-se mais espessa.
— O que se passa Majere? — perguntou Steel. — Ilumine o maldito bastão.
— Estou tentando! — respondeu Palin, frustrado e zangado consigo mesmo. A magia voltara a falhar.
Ouviu o roçar da armadura contra a parede e o som de botas que desciam pesadamente as escadas. Steel tentava encontrá-lo.
— Palin! — gritou Usha, cheia de medo. — Vou contigo! Não se mexa!
— Usha, tenha cuidado! — Palin deu meia volta, tentando retroceder para alcançá-la.
— Palin! — O eco da voz de Tas chegou-lhe estridente. — Agarrei alguma coisa. Talvez isto possa ajudar!
— Tas! Não! — gritou Palin, virando-se.
Ouviu-se um estilhaço, o som pavoroso de vidros se quebrando.
Avançando aos poucos, tateando com o bastão como se fosse um cego no mercado, Palin foi abrindo caminho até à escuridão de breu do laboratório. Steel seguia bem atrás, tentando se equilibrar. O cavaleiro deteve-se à soleira e não entrou.
A porta se fechou com estrépito.
— Majere!
Steel Montante Luzente arremessou-se contra a porta, tentando arrombá-la. — Raios te partam Majere! Abra a porta!
— Palin! — Usha encontrava-se junto, batendo na porta com os punhos. Do outro lado, chegaram aos ouvidos do cavaleiro gritos fracos e o som de murros. Tanto podia ser Palin tentando abrir a porta... como a trancá-la.
Steel inclinou-se para a última hipótese e, virando-se para a jovem, ordenou-lhe:
— Volte para o patamar.
— Que vai fazer?
— Arrombar a porta. Há pouco, senti-a ceder, acho eu. Vá. Está estorvando.
— Mas ... está tão escuro! — protestou Usha com voz trêmula. — Não consigo ver! E se ... e se eu cair?
Embora não o preocupasse minimamente o fato dela cair ou não, Steel refreou a impaciência.
— Vai tateando enquanto desce. Mantenha-se junto à parede. Quando chegar, logo saberá. E depois, não saia dali.
Ouviu-a descer os degraus, lenta e cautelosamente e depois, concentrando-se na porta, esqueceu-a. Para chegar à mesma, teria de subir os degraus correndo, o que não lhe daria impulso adequado ...
Ouviu a jovem gritar:
— Cavaleiro! Atrás de você!
Steel virou-se, de espada em punho. Dois olhos pálidos brilharam na escuridão.
— Não se incomode, Senhor Cavaleiro. A passagem está interditada.
— Mas, permitiu que o mago entrasse! E o kender — retorquiu Steel.
— Não fui eu quem os deixou passar.
— Então quem foi?
— O Senhor da Torre.
— Lorde Dalamar já regressou? Então diga-lhe para me deixar entrar! — exigiu Steel.
Os olhos se aproximaram. A friagem mortal da região dos defuntos perpassou os ossos do cavaleiro até à medula. Cerrou os dentes para evitar que rangessem e apertou a espada com mais força.
— Não me refiro a Dalamar — respondeu o espectro. — Senhor Cavaleiro, abandone já este lugar ou nunca mais sairá daqui.
— Socorro! — gritou Usha. — Por favor, alguém nos acuda!
A voz da jovem ecoou lugubremente através da escuridão, girando em círculos em redor das paredes interiores da torre e esmorecendo como uma pedra que é atirada a um poço. O som era tão estranho e aterrador, que não se atreveu a repetir o apelo.
A ajuda podia ou não chegar. O prisioneiro de Steel encontrava-se do outro lado da porta. O dever de Steel também residia do outro lado da porta. Falhara uma vez. Hesitara na soleira, em vez de entrar. O mundo dos feiticeiros era turbulento, desencorajador. O próprio ar encontrava-se prenhe e viciado de feitiçaria, nas trevas palpitavam almas penadas. Ansiava por inimigos que pudesse ver, sentir. Ansiava respirar ar puro, ouvir o retinir cristalino de espada contra espada. Ansiava abandonar este antro dos magos, mas não podia esquivar-se ao dever, mesmo na morte.
Investiu contra o espectro. A espada silvou no ar e bateu contra a parede de pedra, provocando uma miríade de centelhas.
Os olhos pálidos e reluzentes tornaram-se enormes, intumesceram, ficaram salientes. Viram-se mãos estendidas, procurando matar com seu toque cruel.
Steel voltou a investir.
— Takhisis! — gritou. — Socorra-me!
— Reza em vão, Senhor Cavaleiro — disse uma voz. — A nossa Rainha não tem jurisdição aqui.
Uma esfera de luz amarela e cálida, que uma feiticeira de vestes vermelhas segurava, afugentou as trevas. Junto dela, postado no patamar, encontrava-se um feiticeiro — um elfo de vestes negras. De início, Steel ficou estupefato, depois percebeu que o homem devia ser um elfo das trevas, um dos que se revoltaram contra a luz e foram contra os preceitos do seu povo. Que devia ser Dalamar, o Sinistro, Senhor da Torre da Feitiçaria Suprema.
Ou seria apenas o sublocatário?
Dalamar ergueu a cabeça para olhar para o Cavaleiro que se encontrava postado no chão das escadas.
— Informaram-me da presença de intrusos, que um cavaleiro e um mago Veste Branca atravessaram sãos e salvos a Clareira de Shoikan. De início, não quis acreditar. Agora compreendo. Um Cavaleiro de Takhisis. Mas, onde se encontra o Veste Branca que te acompanhava? Onde está Palin Majere?
— Ali! — respondeu Usha, apontando para o laboratório. — Entrou naquela ... naquela sala. O kender foi com ele. Depois, a porta se fechou com estrépito e não fomos capazes ...
A voz embargou-lhe. O rosto de Dalamar tornou-se lívido. Irado, o feiticeiro virou-se para o espectro que continuava a vaguear por ali.
— Falhou na tua incumbência! Dei ordens para não deixa ninguém entrar! — gritou.
— Meu amo Dalamar, as tuas ordens foram anuladas — replicou a voz, em tom grave. — Pelo verdadeiro Senhor da Torre.
Dalamar não respondeu. O seu rosto mostrava-se lívido e frio, não estaria tão frio se as mãos geladas do morto-vivo o tivessem tocado.
Steel sentiu o poder do elfo das trevas, sentiu o calor da sua raiva. Não se surpreenderia se, por esse motivo, visse as paredes da torre começarem a arder. Usha encolheu-se e agarrou-se à parede de pedra. Até a feiticeira, companheira do elfo, involuntariamente retrocedeu um passo. Steel procurou manter-se firme pois, em abono da verdade, nada mais podia fazer.
Depois, Dalamar se acalmou. A chama que lhe inflamava os olhos esmoreceu e estes assumiram uma expressão abstrata. Recolhera-se em introspecção.
— Afinal de contas, talvez seja melhor assim. Ele é capaz de saber alguma coisa ...
Um sorriso sardônico retorceu a boca de Dalamar.
— Jena, parece que isto nos transcende. Pelo menos por hora.
— Parece que sim — concordou a feiticeira, olhando para a porta trancada, para o cavaleiro postado diante da mesma e para a mulher encolhida contra a parede. — Que vai fazer com estes dois?
Os olhos de Dalamar voltaram a pousar no cavaleiro e parecia que o elfo das trevas o estava vendo pela primeira vez.
— Será, por acaso, Steel Montante Luzente?
Steel disfarçou a estupefação, recordando a si mesmo que se encontrava na presença de um poderoso feiticeiro.
— Sou — respondeu com orgulho.
— O filho de Kitiara? — exclamou Dalamar. — Eu devia ter reparado na semelhança! Conheci a tua mãe — acrescentou, em tom ambíguo.
— Assassinou a minha mãe — replicou Steel com voz furibunda.
— É claro que considera uma dívida de honra que deverá ser resgatada com o meu sangue — respondeu Dalamar com um encolher de ombros. — Muito bem. Vai me desafiar e eu aceito. Ataca-me e eu te mato. Perde-se um bom soldado. Takhisis não ficaria satisfeita com nenhum de nós. Steel Montante Luzente, matei a tua mãe em combate. Ela atacou primeiro. Posso te mostrar aquela cicatriz. Infelizmente, não posso te mostrar as outras seqüelas que ela me provocou.
As últimas palavras foram proferidas em voz baixa. Como não estava certo de tê-las ouvido, Steel preferiu ignorá-las. Consultou a Visão, como faziam todos os Cavaleiros de Takhisis quando defrontados com um dilema. Seria vontade Sua que lutasse contra aquele elfo das trevas e, na tentativa, muito provavelmente perdesse a vida? Seria vontade Sua que se mantivesse, em vão, postado à porta do laboratório? Ou será que Ela lhe reservara outros planos?
Sondou a Visão. Uma imagem da mãe penetrou-lhe o espírito. Empunhava a espada, como se fosse usá-la. Mas vislumbrou, atrás dela, outra silhueta — um dragão com cinco cabeças. A mãe encontrava-se postada à sombra do dragão. A cena ainda lhe parecia confusa ...
— Senhor Cavaleiro! — Há algum tempo que Dalamar o chamava, ao que parece na tentativa de lhe captar de novo a atenção.
— Meu Senhor, que disse? — perguntou Steel, franzindo o cenho e tentando ainda sondar a vontade da Rainha das Trevas.
— Disse que alguém está tentando se comunicar contigo — repetiu Dalamar, em tom paciente. — Acho que é o teu comandante.
— Senhor, como é possível? — Steel sentia-se desconfiado. — Ninguém sabe que me encontro aqui. O que ele diz?
— Não faço idéia — replicou Dalamar, com uma pontinha de irritação. — Não sou nenhum garoto de recados. E se sabe que está aqui, presumo que foi alguém que lhe contou. Possivelmente o mesmo alguém que te guiou, são e salvo, através da Clareira de Shoikan. Montante Luzente, se abandonar o teu posto, o conduzirei a um local onde poderá se comunicar com o teu superior. Garanto-lhe — acrescentou —, o teu esforço é inútil. Nem sequer eu posso entrar naquele laboratório. O tio mandou vir o sobrinho. Temos que deixá-lo ao cuidado dos dois.
— Palin Majere era meu prisioneiro — respondeu Steel, ainda hesitante. — Aceitei a palavra dele.
— Ah! — exclamou Dalamar, revelando uma súbita empatia. — Nesse caso, encontra-se perante uma difícil tomada de decisão.
Um instante depois, Steel já a tomara. O comandante sabia que ele se encontrava ali. Tinha de ser Takhisis, querendo que o cavaleiro enveredasse por uma direção diferente. Também devia ser vontade Sua que permanecesse vivo. Steel embainhou a espada e desceu as escadas.
De imediato, os dois olhos pálidos reassumiram o seu posto, de guarda na porta.
— O conduzirei à Lagoa dos Que Vêem — disse Dalamar, quando o cavaleiro se juntou a ele no patamar. — Ali, poderá se comunicar com o teu comandante. Viajaremos através dos corredores da magia. São muito mais rápidos e menos cansativos do que estes degraus. — O elfo das trevas pousou a mão no braço de Steel e acrescentou: — É capaz de se sentir tonto...
— E eu? — Usha, que se mantivera tão quieta que bem podia passar por uma sólida estátua de pedra, de repente ganhou vida. — Que vão fazer comigo? E o que aconteceu a Palin? Quero ir até ele!
— Jenna, trate dela — ordenou Dalamar. Sorrindo, a feiticeira aquiesceu com a cabeça. Dalamar proferiu umas palavras mágicas. Diante de Steel, irromperam as trevas.
Ficou-lhe a lembrança de querer fugir, mas a feiticeira empurrou-o para frente.
Depois, sentiu os pés tocarem solo firme. Encontrava-se à beira de uma lagoa e viu-se refletido nas águas escuras e paradas.
Usha acompanhara os outros, sobretudo porque não desejava ficar sozinha na sala. E, admitia agora para si mesma, porque considerava o jovem mago muito atraente também. Dos que conhecia, era o primeiro homem que não se revelava estúpido nem enfadonho como os arruaceiros que a haviam atacado, nem manhoso e assustador, como o feiticeiro. Nem tampouco frio e cruél, como o cavaleiro.
Palin era diferente. Em muitos aspectos, lembrava-lhe o seu Protetor. Era gentil, vulnerável. Pressentia nele o medo, idêntico ao seu. Sobre ele pairava a sombra de um grande desgosto, de alguma mágoa secreta. No entanto, revelava-se forte na coragem e na vontade. Recordou-lhe o rosto e experimentou, no coração, uma sensação pungente e avassaladora, que era incômoda, dolorosa e, ao mesmo tempo, deliciosamente maravilhosa.
— Quero ir até Palin — disse Usha.
— Então avance — respondeu-lhe Jenna, indicando a porta do laboratório e os olhos desencarnados dos guardas.
Usha ponderou.
— Quero ir embora — declarou. — Todos os outros se foram. Não pode me manter aqui contra a minha vontade.
— Não, não posso — retrucou Jenna com frieza. — Sendo você uma feiticeira tão poderosa, é capaz de ir para onde quiser.
Mais do que tudo na vida, Usha desejava encontrar-se longe daquela torre maldita e nunca mais vê-la, nem às pessoas que a ocupavam... excetuando, talvez, Palin Majere.
Relanceou o olhar pela porta através da qual ele desaparecera. Os olhos do espectro continuavam a fixá-la..
— Pois bem, partirei — disse Usha, abrindo o alforje.
Fitou, perplexa, os objetos que continha. Sabia que eram mágicos, mas nada mais. Lamentou amargamente não ter prestado mais atenção às explicações. Havia diversos anéis, um amuleto de quartzo, outro de granada e um terceiro de obsidiana, dois papiros atados com fitas cor de púrpura; uma pequena bolsa contendo ervas de doce perfume, um pedacinho de corda, que lhe parecia inútil, várias figuras minúsculas de animais esculpidos e um frasquinho de vidro.
Fechou os olhos e, concentrando-se, tentou invocar a imagem e as palavras do seu povo.
As imagens afluíram, reconfortantes, quentes e para sempre perdidas. As lágrimas queimaram-lhe os olhos. Fora tão insensível, tão egoísta! Quem lhe dera poder apagar aquele momento e substituí-lo por outro, no qual se via a dizer-lhes quão grata se sentia para com eles, o quanto os amava, o quanto... ah, tanto... sentia a falta deles.
“Se alguma vez se vir em perigo e quiser fugir, use isto...”
Conseguia ver claramente o Protetor, ouvir os seus conselhos, senti-lo introduzir-lhe o objeto na mão.
Que objeto? Qual?
— Se não quer ficar encurralada aqui nas escadas, no escuro, sugiro que me acompanhe — avisou Jenna, acrescentando em tom ambíguo: — A menos que pretenda nos deixar.
— Vou partir — respondeu Usha.
O objeto era o amuleto de obsidiana ou o frasquinho de vidro. Um deles tinha a ver com sombras e possivelmente não lhe seria de grande utilidade. Para sombras já bastava as daquele lugar hediondo. O outro, a afastaria do perigo. Como? Usha era incapaz de se lembrar, mas qualquer coisa era preferível àquilo.
A obsidiana era negra, tal como as sombras. A lógica rejeitou o amuleto e aconselhou-a a experimentar o frasquinho.
Usha passara a vida inteira rodeada de magia, mas apenas a que era utilizada para fins benéficos e práticos. Nunca presenciara a magia maléfica ou perniciosa — até se ver naquela torre pavorosa. De modo que não se sentia particularmente assustada quanto ao experimentar uma magia desconhecida. O Protetor lhe deu e confiava nele.
Usha retirou o frasquinho do alforje, quebrou o bujão de cera que o tapava.
Jenna precipitou-se para a jovem, mas era tarde demais.
Do frasquinho emanou uma delgada coluna de fumaça amarela esbranquiçada. Tinha um cheiro adocicado, como a relva acabada de aparar e fez desaparecer o fedor de morte e putrefação que parecia pairar no ar.
Usha levou o frasquinho ao nariz e inalou a fumaça ... transformando-se em fumaça.
— Onde estamos agora? — perguntou Steel.
— Estamos na Câmara Dos Que Vêem. — Foi criada por Raistlin Majere, o meu shalafi.
Encontravam-se numa sala circular no centro da qual, ocupando quase toda a área, com exceção de um pequeno passadiço, se via um tanque de água escura. Do centro do mesmo brotava uma chama azul. A chama não produzia fumaça e o combustível utilizado — a menos que se inflamasse em contato com a água — era uma incógnita. E embora a chama cintilasse, fornecia pouca luz, pois a câmara permanecia às escuras.
— Além deste fedor pavoroso — inquiriu Steel, olhando ao redor com repugnância —, para que serve esta Câmara Dos Que Vêem?
Ao detectar movimentos em torno da borda da piscina, levou a mão ao punho da espada.
— Acalme-se, Senhor Cavaleiro — disse Dalamar em tom sereno. — Não podem lhe fazer mal.
Steel, sem confiar plenamente no Veste Negra, não largou a espada e olhou com atenção para o movimento, que era animado por uma respiração sibilante.
— Em nome da Rainha, o que é aquilo?
— Em dado momento da sua notável carreira, o meu shalafi tentou criar vida. Eis o resultado. São conhecidos por Os Que Vivem.
Massas ensangüentadas, que lembravam larvas, Os Que Vivem rastejavam, contorciam-se ou impulsionavam-se ao longo da borda do tanque. Emitiam ruídos, mas Steel não podia assegurar se falavam ou apenas se lamuriavam de dor e aflição. O cavaleiro já presenciara inúmeras cenas horríveis em combate, vira camaradas seus retalhados até à morte e dragões moribundos despencarem dos céus. Pela primeira vez na vida, viu-se forçado a desviar o olhar, forçado a aplacar o engulho que lhe revolvia o estômago.
— Sacrilégio! — exclamou, desejando que as criaturas parassem com os lastimosos queixumes.
— É verdade — concordou Dalamar. — O meu shalafi não sentia grande respeito pelos deuses... qualquer um. Mas, não desperdice a tua compaixão com estas criaturas. Os Que Vivem estão em melhores condições e sabem disso.
— Em melhores condições do que o quê? — perguntou Steel em tom agreste.
— Do que os que são conhecidos por Os Mortos. Mas, vamos lá, Senhor Cavaleiro. O teu comandante deseja lhe falar e estamos fazendo-o desperdiçar o seu precioso tempo. Parece-me bastante impaciente.
— Como irei falar com ele? Onde se encontra? — Steel perscrutou as sombras, como que à espera de ver o subcomandante Trevalin emergir das paredes de pedra.
— Não faço idéia. Não me disse. Procura ver no tanque.
Os Que Vivem puseram-se a uivar de excitação. Vários deles arrastaram o corpo até à borda e, com os seus apêndices disformes, apontaram para a água. Steel olhou desconfiado para as criaturas, para o elfo das trevas e para o tanque.
— Aproxime-se da borda — explicou-lhe Dalamar, impaciente —, e olhe para a água. Não te acontecerá nenhuma calamidade. Apresse-se, Senhor Cavaleiro, porque não é só o teu comandante que está perdendo tempo. Ocorrem neste mundo acontecimentos graves, acho que está prestes a constatá-lo.
Ainda duvidoso, mas habituado a acatar ordens, Steel encaminhou-se para a beira do tanque, tomando a precaução de, no percurso, não tropeçar em nenhum Dos Que Vivem. Perscrutou a água escura, e de início apenas viu o reflexo da chama azul. Depois, a chama e a água misturaram-se e ondularam. Invadido pela terrível sensação de que ia tombar no tanque, estendeu as mãos para se conter e quase tocou no subcomandante Trevalin.
Este encontrava-se nos escombros calcinados de um castelo, com as paredes chamuscadas, as traves do teto desabadas no chão, o céu como telhado.
Ao que parece, o subcomandante presidia a uma reunião com o estado-maior, pois se viam, numa sala ampla, reunidos inúmeros cavaleiros sob o seu comando. No extremo mais recuado da mesma, encontrava-se sentado outro cavaleiro, este envergando a armadura dos Cavaleiros de Solamnia. Steel podia tê-lo considerado um prisioneiro, não fosse a armadura se encontrar chamuscada e enegrecida como as paredes calcinadas do castelo. Olhos avermelhados como chamas chispavam através das fissuras do elmo de metal. Steel soube então o nome deste terrível cavaleiro e onde se encontrava o comandante.
No Baluarte de Dargaard, residência de Lorde Soth, o cavaleiro da morte.
— Subcomandante Trevalin — saudou Steel. O subcomandante virou-se.
— Ah, Montante Luzente! — disse. — Vejo que continua hóspede do meu senhor Dalamar. — O cavaleiro esboçou uma saudação. — Senhor, agradeço-lhe por transmitir a minha mensagem.
Dalamar executou uma vênia, a boca retorcida numa expressão que era um misto de sorriso e de troça. Encontrava-se numa posição bastante embaraçosa. Não sentia nenhuma simpatia pelos feiticeiros Vestes Cinzentas de Takhisis e, no entanto, assumira o compromisso — pelo menos para salvaguardar as aparências — de fazer tudo ao seu alcance para servir a causa da sua Rainha das Trevas.
— Montante Luzente, como decorre a tua missão? — prosseguiu Trevalin. — Os Cavaleiros Cinzentos estão ansiosos para ouvir as novas. — A sobrancelha erguida exprimia com rigor o que pensava dos Cavaleiros Cinzentos e da ansiedade destes.
Sem pestanejar, Steel encarou o seu superior com ar resoluto.
— Meu subcomandante, falhei a missão — respondeu. — Palin Majere, O Veste Branca, escapou.
Trevalin assumiu uma expressão grave.
— Muitíssimo lamentável, Montante Luzente. Há alguma possibilidade de recuperar o prisioneiro?
Steel olhou de esguelha para Dalamar. O elfo das trevas abanou a cabeça.
— Atendendo ao lugar onde se encontra, não — disse baixinho.
— Não, meu subcomandante — respondeu Steel.
— Que pena. — A voz de Trevalin adquiriu uma frieza repentina. — O Majere foi condenado à morte. Empenhou a tua palavra de que regressaria. Visto que o deixou escapar, será você a ocupar o lugar do prisioneiro.
— Estou a par disso, meu subcomandante.
— É evidente que concederão o direito de defender a sua causa na presença do Juiz. Neste caso, será o próprio Lorde Ariakan, na qualidade de seu padrinho. — Trevalin parecia aliviado. — Felizmente para você. Montante Luzente, e para mim, Lorde Ariakan encontra-se bastante ocupado no momento. Pelo que, por força das circunstâncias, o seu julgamento ficará adiado. É um soldado conhecedor e valente. Lamentaria perdê-lo agora que a guerra vai eclodir. O que leva a outra questão. Recebeu ordens para regressar ao seu batalhão.
— Sim, meu subcomandante. Quando?
— Já. Imediatamente. Não há tempo a perder. Já enviei Fulgor para apanhá-lo.
— Obrigado, meu subcomandante. Reúno-me ao batalhão no Baluarte de Dargaard?
— Não, Montante Luzente. Nessa altura já não estaremos lá. Encontre-se conosco nas Montanhas de Vingaard. Amanhã, pela alvorada, atacaremos a torre do Sumo Sacerdócio. Não terá dificuldade em nos descobrir — acrescentou Trevalin, e o seu vaticínio arrancou um coro de gargalhadas por parte dos cavaleiros reunidos. — Os próprios deuses se dignarão olhar para esse vasto exército e ficarão estupefatos. Mas receberá instruções minhas.
Dalamar observava e escutava esta conversa em silêncio. No início, Jenna entrara na câmara e fizera-lhe um sinal de que precisava lhe falar. Ele acenara-lhe para que esperasse. Depois de ouvir o que precisava ouvir, Dalamar encaminhou-se para a parte da frente da câmara e postou-se ao lado de Jenna.
— O que é? Fale baixo.
Jenna inclinou-se para o elfo.
— A garota foi embora!
Dalamar ergueu o cenho.
— Embora? Como?
Jenna encolheu os ombros.
— Através da magia. Que mais haveria de ser? Tirou um frasquinho, quebrou o bujão de cera e começou a sair fumaça dele. Antes que pudesse detê-la, já o cheirava e se transformava em fumaça. Não houve maneira de conseguir regredir a magia, pois desconhecia que encantamento os Irdas utilizaram.
— Fosse como fosse, seria incapaz de detê-la — observou Dalamar. — De modo que, desapareceu?
— A nuvem de fumaça desvaneceu-se, e com ela a Usha.
— Interessante. Agora pergunto eu, se possuía tal capacidade, porque não foi embora mais cedo?
— Porque, conforme disse, talvez os Irdas a enviaram para nos espionar. Pelo menos isto o convence de que em parte ela é Irda?
— Não, não convence. Um duende dos esgotos conseguiria utilizar aqueles objetos encantados se mostrassem como se faz. Tal não responde a nenhuma das nossas perguntas a respeito da garota. Bom, desapareceu e, quanto a isso, não há nada a fazer. Temos preocupações mais urgentes. Os Cavaleiros de Takhisis planejam atacar a Torre do Sumo Sacerdócio ao alvorecer.
— Bendito seja Gileano! — exclamou Jenna, com os olhos arregalados de espanto.
— E vão vencer — respondeu Dalamar, olhando, de cenho franzido, para Steel.
Jenna olhou calmamente para Dalamar.
— Será que tais novidades te desagradam? — inquiriu. — Não está do lado da tua rainha?
— Se Takhisis estivesse do meu lado, eu estaria do dela — respondeu Dalamar em tom amargo. — Mas não está. A minha rainha considerou vantajoso utilizar os seus próprios feiticeiros para executar o trabalho dele. Se a Torre do Sumo Sacerdócio cair nas mãos dos cavaleiros dela, com toda a certeza que a cidade de Palanthas se renderá. Estaremos atentos às ordens e chamaremos os Feiticeiros Cinzentos.
Jenna ficou chocada.
— Por certo não imagina que eles se atrevessem a tentar retirá-lo do domínio da Torre da Feiticeira Suprema, não é?
— Num abrir e fechar de olhos, minha querida! Claro que o Conclave lutará contra eles, mas já constatamos como trabalham bem quando atacamos o Baluarte da Tempestade.
Pálida e silenciosa, Jenna aquiesceu com a cabeça. Justanius, o pai, morrera nessa catástrofe.
— Nuitari deve achar difícil chegar a um consenso com a mãe — prosseguiu Dalamar em tom duro e referindo-se ao deus da magia negra, filho de Takhisis. — Reparei que ultimamente o poder dele tem vindo a declinar.
— Não é o único — observou Jenna. — A Lunitari tem andado estranhamente impotente e, de acordo com um Veste Branca com quem falei ontem em Wayreth, a Solinari também se distanciou do seu povo.
— Minha querida, acho que vou efetuar uma pequena viagem — disse Dalamar aquiescendo com a cabeça.
— Até à Torre do Sumo Sacerdócio — disse Jenna, entendendo. — Que farão com o cavaleiro?
— O dragão azul dele vem buscá-lo. Leve-o até o Passeio dos Mortos. Removerei o escudo mágico que protege a torre o tempo suficiente para permitir ao dragão descer e apanhar o dono.
— O deixaremos partir? Poderíamos torná-lo prisioneiro.
Dalamar ponderou o assunto.
— Não — respondeu. — O devolveremos ao seu exército. Não é um cavaleiro a mais ou a menos que contribuirá para o desfecho da batalha.
— Podemos usá-lo como refém ...
— Os Cavaleiros de Takhisis não fariam nada para salvá-lo. Com efeito, se voltar, será condenado à morte. Perdeu o prisioneiro, entende?
— Então, não voltará. Para quê?
— Est Sularus oth Mithasit. A minha honra é a minha vida. Foram os Cavaleiros da Solamnia os primeiros a declará-lo, mas os Cavaleiros de Takhisis regem-se pelo mesmo código estúpido. Experimente fazer com que o desonre. Estou certo que considerará a resposta dele muito interessante.
— Por outro lado — acrescentou Dalamar, em tom pensativo —, não posso garantir, mas podemos estar prestando um mau serviço a Sua Majestade das Trevas devolvendo-lhe este cavaleiro em particular, não se encontra inteiramente sob o seu comando.
Jenna abanou a cabeça.
— Meu amor, fala por metáforas. A mim parece-me estar bem vinculado a Takhisis. Que faria eu depois de me livrar dele?
Dalamar fixou o tanque escuro. Os seu olhos refletiam o fulgor da chama azul.
— Jenna, se eu fosse você, começaria a embalar as minhas coisas.
Steel acabou a conversa com o superior. O feitiço terminou e o encantamento dissipou-se.
O cavaleiro encontrava-se de novo postado à beira do tanque de água escura. Vários Dos Que Vivem amontoavam-se à sua volta, tocando-o e cutucando-o com interesse a armadura. Reprimindo um calafrio, saltou rapidamente para trás, quase batendo em Jenna.
— Senhor Cavaleiro, ouvi dizer que vai nos deixar.
— É verdade, Senhora — replicou Steel. — O meu dragão está chegando. — Olhando ao redor perguntou: — Onde foi Lorde Dalamar?
— O meu senhor foi afastar o escudo mágico que envolve este lugar. Vou levá-lo até o Passeio da Morte. Ele o encontrará lá com o teu dragão. Ou prefere atravessar de novo a Clareira de Shoikan? — acrescentou com malícia.
Sentindo que estava sendo alvo de chacota, Steel guardou um silêncio gélido.
— Senhor Cavaleiro, acompanhe-me por favor. — Jenna dirigiu-se para a porta. — Iremos pelo corredor. Não quero subir os mil degraus e prefiro não lançar nenhum feitiço sobre esta câmara. Os encantamentos não combinam bem.
Steel seguiu Jenna e abandonou, sem o mínimo desgosto, a Câmara Dos Que Vêem. Ao chegar ao lado de fora do patamar, soltou um profundo suspiro. O ar da torre estava úmido e cheirava a ervas e especiarias bolorentas e putrefatas, mas pelo menos servia para afastar o fedor pavoroso da câmara.
Jenna mirou-o com curiosidade.
— Senhor Cavaleiro — disse —, antes de mais nada devo perguntar se tem certeza mesmo de que pretende nos deixar.
— Porque não? — retrucou Steel, olhando-a circunspecto. — Há alguma hipótese de eu encontrar o Majere?
— Nesta vida não — replicou Jenna com um sorriso. — Não foi o que pretendi dizer. Dalamar me contou que, se voltar para o teu exército, será executado.
— Falhei o meu dever. O castigo é a morte — respondeu Steel com voz serena.
Jenna olhou-o com ar espantado.
— Então, porque regressa? Fuja enquanto pode! — E aproximando-se dele, acrescentou com meiguice: — Mando-o para onde você quiser. Enterre essa armadura e se tornará um novo homem. Ninguém saberá.
— Mas eu sim, Senhora — replicou Steel.
— Então, muito bem — respondeu Jenna, encolhendo os ombros. — O funeral é seu. Feche os olhos. Ajuda a afastar as tonturas.
Fechando os olhos, Steel ouviu a feiticeira começar a rir.
— Dalamar tinha razão! Muito interessante!
Usha encontrava-se perto de uma carroça cheia de faita, sem saber muito bem onde estava nem como conseguira chegar ali. O corpo zunia da cabeça aos pés, parecia ter a cabeça cheia de tênue e fumegante nevoeiro e sentia comichão no nariz.
Lembrava-se vagamente de ter pegado no frasquinho e que, ao cheirá-lo, inalara um perfume bastante agradável. Era tudo o que conseguia recordar até aquele momento, em que dava consigo no que parecia ser um mercado ao ar livre apinhado de gente. Por ter aparecido assim, de nenhum lugar, Usha estava à espera que todos se pusessem a examiná-la. Mas ninguém lhe prestou a mínima atenção.
As pessoas andavam muito ocupadas com as suas próprias ralações. No mercado ninguém vendia nada, a não ser boatos.
As pessoas juntavam-se em grupinhos, falando em voz baixa e urgênte. De vez em quando, alguém saía do grupo para se dirigir a outro, indagar as novidades. Usha ouviu várias vezes as palavras: “Kalaman caiu!”, pronunciadas em tom de medo e alarme. Usha nada podia fazer a este respeito. O que ouviu foi suficiente para se convencer de que se encontrava de novo em Palanthas.
Suspirou. A perspectiva de se encontrar de novo em Palanthas, próximo da terrível torre, não lhe agradava muito. Contudo, abandonar Palanthas e desistir de toda a esperança de rever Palin também a entristecia. Disse para consigo que, mesmo sendo remota, continuaria a acalentá-la. Já não se sentia só e sem amigos. Havia alguém que se preocupava com ela. E tinha alguém com quem se preocupava.
Do lugar onde se encontrava, não conseguia avistar a torre, mas também não conseguia enxergar os telhados dos edifícios altos que a rodeavam. Desejou poder esquivar-se, e antes que alguém começasse a importuná-la desapareceu na multidão. Tinha que fazer alguma coisa para ganhar aquelas peças de aço que os Palancianos consideravam tão valiosas. Refletia ela no assunto, interrogando-se o que poderia fazer, quando a fumaça que ainda sentia no nariz começou a irritá-la.
Tentou resistir, mas não conseguiu evitar um sonoro espirro. Alarmado, um duende de roupas coloridas que se encontrava perto dela deu um pulo, fazendo ressoar as botas no pavimento.
— Pelas barbas de Reorx, menina, pregou-me um susto! — arquejou o duende que, procurando recuperar o alento, levou a mão ao coração.
— Desculpe, senhor — começou Usha, mas um espirro obrigou-a a calar-se.
— Está constipada, não está menina? Ou muito afeita a constipações. — Olhando-a com nervosismo, o duende retrocedeu um passo.
Usha abanou a cabeça, e a iminência de um terceiro espirro impediu-a de explicar a situação. O duende recuou ainda mais, protegendo o rosto com o chapéu.
— Saúde! — disse.
Usha agradeceu, fungou e começou a remexer o alforje, à procura de um lenço. O duende estendeu-lhe o seu. Era branco, feito de renda e num dos cantos ostentava as iniciais DMV, bordadas com cuidado. O lenço parecia tão lindo e elegante que Usha, envergonhada, se assoou a uma das pontas e, corando, o devolveu.
O duende meteu-o numa algibeira e examinou Usha com uns olhos vivos e penetrantes.
— Menina, como se chama?
— Usha, meu senhor — replicou Usha em tom cortês, julgando, a avaliar pelas roupas, que aquele duende devia ser alguém importante, quem sabe o senhor de Palanthas em pessoa.
— Menina, não me trate por “meu senhor” — replicou o duende, embora cofiasse, com ar orgulhoso, a barba espessa e lustrosa. — Dougan Martelo Vermelho, ao seu dispor.
Usha sabia que os duendes eram artesãos qualificados, ótimos para trabalhar o metal e a pedra, mas desconhecia a sua supremacia na moda. A beleza lendária das muralhas da grande cidade-caverna de Thorbardin não era nada comparada com o colete de veludo encarnado com botões dourados do duende. A magnificência dos portões imensos de Pax Tharkas, quando comparada com a camisa de seda, com punhos de renda de Dougan ficava reduzida a uma insignificância.
Um par de culotes de veludo encarnado, meias pretas, sapatos pretos com saltos encarnados e um chapéu de aba larga com uma vistosa pluma vermelha, completavam a requintada indumentária do duende. Possuía uma barba preta comprida e acetinada, que chegava a sua roliça cintura. O cabelo, negro, comprido e encaracolado, emoldurava-lhe os ombros.
O perfume forte de fruta fresca, banhada pelo Sol do meio-dia, distraiu a atenção de Usha. Depois do festim na Torre da Feitiçaria Suprema, não esperava sentir-se com fome de novo, mas o estômago informava que isso acontecera já a algum tempo. Usha lançou um olhar rápido e furtivo ao vendedor e, aliviada, verificou não se tratar do que a mandara prender.
No entanto, servira-lhe de lição. Com um suspiro, desviou o olhar e ordenou às entranhas que pensassem noutra coisa. Estas recusaram-se emitindo um ronco.
Contudo, ao duende não passou despercebido o olhar da jovem, nem tampouco o suspiro e o ronco.
— Sirva-se à vontade, menina — disse-lhe, com um aceno de mão. — As ameixas não estão tão frescas como de manhã, mas às vezes encontram-se em bom estado, embora um pouco engelhadas do calor.
— Obrigada — respondeu Usha, recusando-se a olhar na direção da faita —, mas não tenho fome.
— Então engoliu um cãozinho — observou o duende com rudeza. — Daqui ouço o animal latindo. Coma. Eu já almocei, de modo que não fico ofendido.
— Não é isso — respondeu Usha, com o rosto afogueado. — Eu... não tenho nenhuma daquelas coisas que chamam de “moedas”...
— Ah, isso é aborrecido. — Dougan cofiou a barba e olhou para a jovem com ar pensativo. — É a primeira vez que vem à cidade, hein?
Usha aquiesceu com a cabeça.
— Onde vive?
— Em nenhum lugar especial — respondeu Usha em tom evasivo. O duende estava se interessando muito pelos seus assuntos particulares. — Se me dá licença...
— O que você faz para ganhar a vida?
— Oh, isto e aquilo. Olhe, senhor, foi um prazer falar contigo mas...
— Compreendo. Acaba de chegar à cidade, anda à procura de trabalho e está sendo difícil?
— Bom, senhor, sim, é isso ...
— Acho que posso ajudá-la. — Inclinando a cabeça para o lado, Dougan mirou-a com ar crítico. — Veio tão sorrateira que me apanhou desprevenido. Não a ouvi se aproximando, é o que é. — Inclinando-se para frente, pegou-lhe a mão e pôs-se a examiná-la. — Dedos esguios. Ladra, suponho. É rápida? Experiente?
— Acho que sim. — Usha olhou, confusa, para o duende.
Dougan largou-lhe a mão como se esta fosse uma peça de fruta exposta ao Sol, mirou-lhe por longo tempo os pés e depois o rosto, murmurando para consigo:
— Olhos que conseguiriam desviar a atenção de Hiddukel da contagem do dinheiro. Feições que arrancariam Chemosh da sepultura. Serve. Sim, é verdade, menina — acrescentou em voz alta. — Conheço umas pessoas que andam à procura de talentos como você.
— Que talento? — inquiriu Usha. — Eu não ...
Mas Dougan já não a escutava. Retirando um cacho de uvas, estendeu-o a Usha. Acrescentou várias ameixas, uma grande abóbora e teria dado também umas cabeças de nabo se as mãos de Usha pudessem agarrar tudo. Depois, o duende fez menção de ir embora.
— Eh! Oh! Não se esqueceu de nada? — O vendedor, um humano grandalhão, estivera falando com vários amigos a respeito dos boatos sobre a queda de Kalaman. Ver alguém tentar lhe roubar a mercadoria, o fez esquecer da guerra iminente. Precipitando-se para o duende, acrescentou:
— Falei contigo! Não se esqueceu de nada?
Detendo-se, Dougan pôs-se a retorcer o bigode.
— Acho que sim. Os nabos. — Pegando em vários, começou de novo a se afastar.
— Falta uma coisinha de nada. O meu dinheiro — disse o vendedor, impedindo-lhes a passagem.
Usha encheu a boca de bagos de uvas e engoliu-os apressadamente, determinada a comer o maximo que pudesse, antes de a obrigarem a devolver a faita.
— Põe na conta — disse Dougan com ar despreocupado.
— Ó galinho, isto não é nenhuma taberna! — rosnou o homem, cruzando os braços no peito. — Pague.
— Digo-lhe o que farei, meu bom homem — respondeu Dougan com voz afável, embora parecesse algo desagradado pelo homem chamá-lo de “galinho”. — Vou jogar uma moeda para o ar. — Mostrou uma moeda de ouro, que fez luzir os olhos do outro. — Se, em três vezes, a cara do senhor ficar duas para cima, a fruta é minha. Combinado? Combinado.
Dougan lançou a moeda. Convencido, o vendedor observou-a rodopiar no ar. A moeda aterrou na travessa da carroça, com a cara para cima. O homem mirou-a com atenção.
— Eh, não é uma moeda de Palanthas! E não é do suserano. Esta cara parece ser ...
Com um gesto rápido, Dougan apossou-se da moeda.
— Tirei a moeda errada — disse, e antes que o homem pudesse protestar, atirou-a de novo ao ar. Voltou a sair cara — de suserano ou de duende.
— Ah, que pena! — exclamou Dougan em tom complacente, estendendo a mão para guardar a moeda no bolso.
Porém, o vendedor adiantou-se.
— Obrigado — disse, agarrando-a. — Deve equivaler às compras que fez.
A cara de Dougan ficou escarlate.
— Você perdeu! — rugiu.
Examinando a moeda com mais atenção, o vendedor começou a virá-la.
— Ora, não importa — acrescentou Dougan. Afastando-se em passo lento, deu um puxão em Usha para que o acompanhasse. — Eu sempre digo que não importa perder ou ganhar, mas sim a forma como participamos do jogo.
— Ei! Duende! — gritou o vendedor. — Tentou me enganar! Esta moeda tem duas caras. E ambas parecem ...
— Apresse-se, menina! — insistiu Dougan, estugando o passo. — Não tem o dia todo!
— Ei! — O vendedor pôs-se a gritar a plenos pulmões. — O ouro está desaparecendo! Detenham aquele duende ...
Dougan pusera-se a correr, fazendo ecoar as grossa botas pelas pedras das calçadas.
Agarrada às frutas, Usha estugou o passo para conseguir acompanhá-lo.
— Vire à direita! Desça aquela viela! — gritou-lhe Dougan, bufando e arquejando.
Precipitara-se para uma viela escura. Olhando para trás, Usha reparou que os perseguidores se detinham à entrada da viela.
O vendedor apontava, bajulava, implorava.
Os homens afastaram-se, abanando a cabeça.
O vendedor — depois de gritar uns quantos impropérios contra Dougan — virou as costas e se foi, furioso.
— Não vieram atrás de nós — observou Usha, admirada.
— Pensaram duas vezes — respondeu Dougan. Abrandando o passo, começou a abanar-se com o chapéu. — Provavelmente repararam que eu trazia a espada.
— Mas não traz.
— Estão em dia de sorte — retrucou o duende, piscando, manhoso, o olho. Usha olhou ao redor com nervosismo. A viela encontrava-se mais limpa do qualquer outra que vira em Palanthas. E também mais escura, mais vazia e mais calma. Um corvo aterrou no chão, calmo e confiante, e começou a debicar uma ameixa que ela deixara cair. Usha estremeceu. Aquele lugar desagradava-lhe.
— Sabe onde estamos?
O corvo parou de debicar e, inclinando a cabeça, mirou-a fixamente com uns olhos amarelados que lembravam contas.
— Sei sim, menina — respondeu Dougan Martelo Vermelho com um sorriso. — Por estas bandas vivem umas pessoas que eu quero que conheça. Precisam de alguém como você que lhes faça uns trabalhinhos. Acho que é mesmo o que elas querem, menina. Tal e qual.
O corvo abriu o bico e soltou um crocito rouco e trocista.
— Ai credo! — sussurrou Tasslehoff, muito empolgado e aterrorizado para falar em voz alta.
— Não toque em nada! — Foram as primeiras palavras de Palin, pronunciadas em tom severo e insistente.
Mas, dado serem estas as palavras geralmente proferidas por alguém na presença de um kender, a advertência entrou por um ouvido de Tas e saiu pelo outro.
Não toque em nada!
Acho que se trata de um bom conselho, disse Tas para consigo visto que é o laboratório de um dos maiores e mais poderosos Vestes Negras que já existiu. Se eu tocasse em alguma coisa, poderia acabar dentro de um destes boiões, como aquela desgraçada criatura morta que está ali naquele pote e que nenhum mal poderia me fazer se eu só levantasse a tampa para ver melhor...
— Tas! — exclamou Palin, tirando o boião das mãos do kender.
— Estava empurrando para trás, para que não caísse — explicou Tas. Os olhos de Palin, incidindo nele, faiscavam.
— Não mexa! — repetiu.
Tsc! Está mesmo de mau humor, Tas continuava a falar de si para si e pôs-se a perambular por outra parte (mais escura) do laboratório. Vou deixá-lo sozinho por algum tempo. Ele não quer mesmo dizer “não toque em nada”, porque eu já estou tocando algo. Os meus pés tocam no chão, o que é bom, caso contrário andaria por aí flutuando, como toda esta poeira no ar. Daria um bom entretenimento. Será que conseguiria? Talvez aquele frasco com aquela meleca azul esverdeada seja alguma poção de levitação. Vou...
Palin, de rosto severo, arrancou a frasco da mão de Tas e impediu-o de retirar a rolha. Depois de retirar diversos objetos — o coto de uma vela coberta de pó, uma pequena pedra esculpida em forma de abelha e um carretel de linha preta, dos bolsos do kender, Palin encaminhou-o para um canto vazio e tenuemente iluminado e disse, no tom mais zangado que Tas já ouvira:
— FIQUE AQUI E NÃO SE MEXA!
Tas tinha plena consciência do despropósito da frase, pois enquanto bisbilhotara pelo laboratório, percebera vagamente o fato de Palin estar batendo com os punhos na porta, tentando abri-la e que uma vez até lhe acertara com o bastão, mas inutilmente. A porta nem estremecera.
O cavaleiro Steel Montante Luzente também esmurrara por algum tempo a porta, mas do lado de fora, e já não se ouvia.
— Deve ter ido embora — disse Tas. — Ou então foi o espectro que o apanhou.
Ora ali estava um espetáculo interessante e Tas ficaria desapontado se o perdesse. Mas, um kender não possui o dom da ubiqüidade, não pode estar ao mesmo tempo em todos os lugares, e nem por todos os espectros do mundo e possivelmente uma ou duas fadas más pelo meio perderia esta oportunidade.
— Não é intenção de Palin ser grosseiro. Só está assustado — observou Tas, em tom de simpatia. O kender não estava familiarizado com aquela emoção particularmente desagradável, mas sabia que a mesma atingira grande parte dos seus amigos, de modo que decidiu — movido por um sentimento de compaixão pelo jovem companheiro — fazer o que Palin lhe ordenava.
Tas postou-se a um canto, sentindo-se virtuoso e interrogando-se por quanto tempo duraria o sentimento. Possivelmente não muito, pois o virtuosismo anda a par com o tédio. Contudo, sossegou-o por uns instantes. Embora impedido de tocar no que quer que fosse, podia olhar, e o fez de corpo e alma.
Palin perambulava, em passos lentos, pelo laboratório. O Bastão de Magius derramava um vivo fulgor por toda a dependência, como se estivesse feliz por regressar a casa.
A sala era enorme, por certo muito maior do que se esperava, atendendo à localização e dimensões das outras divisões da torre. Tas experimentara a sensação irreal e excitante do quarto crescendo quando entrara lá e, fato mais excitante, de continuar a crescer. Confirmou tal impressão ao constatar que, sempre que desviava os olhos e depois os fixava de novo, via coisas que, podia jurar, não se encontravam lá antes.
O maior objeto do laboratório era uma mesa gigantesca, esculpida em pedra, que ocupava quase metade da sala. Considerando três vezes o tamanho de Tasslehoff deitado, ainda sobrava espaço para o penacho. Não que desejasse particularmente espojar-se naquela poeira, que era espessa e cobria tudo. As únicas marcas que sulcavam o chão, eram as deixadas por si e por Palin. Nem vestígios de ratinhos, nem sequer havia teias de aranha.
— No espaço de anos, somos os primeiros seres vivos a pisar esta câmara — disse Palin baixinho, fazendo, sem saber, eco dos pensamentos do kender.
O jovem mago passou por uma mesa de trabalho e, valendo-se da luz do bastão, iluminou as inúmeras prateleiras cheias de livros e pergaminhos. Tasslehoff reconheceu alguns livros, dotados de lombada azul-escuro, como pertencendo ao famigerado mago Fistandantilus. Outros, com lombada preta e gravações prateadas, ou com lombada vermelha e gravações douradas, seriam possivelmente do próprio Raistlin ou dos moradores anteriores da torre.
Palin se deteve junto desses livros de encantamentos e examinou-os com uma expressão admirada e ávida no olhar. Estendeu a mão para um, mas retirou-a bruscamente.
— Quem pretendo enganar? — disse, com amargura. — Bastaria olhar para a página em branco para, talvez, enlouquecer.
Tas, que fora companheiro de viagem de Raistlin, encontrava-se familiarizado com os fazedores de magia o suficiente para saber que um mago de categoria inferior que tentasse ler um livro não destinado a ele, enlouqueceria imediatamente.
— Há um dispositivo de segurança — salientou Tasslehoff, como se Palin não soubesse. — Raistlin explicou-me uma vez, quando me tirou um livro de encantamentos das mãos. Foi muito simpático, até disse que não queria ficar de braços com um kender maluco. Respondi que era muita gentileza e consideração da sua parte, mas que não me importava de ficar maluco. Ao que ele respondeu, sim senhor, que ele se importava, e acho que acrescentou qualquer coisa como preferir ter vinte ogros munidos de paus lhe batendo na cabeça e nos ombros, mas não posso assegurar.
— Tio Tas — interveio Palin com voz nervosa, meio sufocada e contida —, não pretendo ser grosseiro, em especial quando se trata de uma pessoa da sua idade, mas cale-se, por favor!
Continuou a divagar pela sala, aproximando a luz do bastão deste ou daquele objeto, mas sem nunca mexer em nada. Percorreu duas vezes o laboratório todo, com exceção de um cantinho.
O recesso ficava nos fundos da câmara, quase defronte do lugar onde Tasslehoff se encontrava. Estava muito escuro ali, e Tas começou a desconfiar que Palin mantinha a luz deliberadamente afastada do local.
Porém, o kender estava a par do que existia naquela parte do laboratório. Soubera-o de Caramon e de Tanis.
Palin continuava a olhar de relance naquela direção e depois fitava Tas, como que indeciso quanto ao que devia fazer.
Bom, Tas sabia exatamente o que havia de fazer.
— Mas continua assustado — comentou, sacudindo o penacho. — Tem de ser isso. Não vejo outro motivo para andar de um lado para o outro, quando deveríamos avançar com as coisas. Poderia dizer-lhe o que fazer.
— Pensando bem, é melhor não. Recordo-me quando era moço e sei que uma pessoa mais idosa, como é o meu caso, dar conselhos a outra mais jovem, como é o caso de Palin, em geral não é bem aceito. Talvez se lhe desse uma pista, um pequeno toque, por assim dizer. Afinal, não temos o dia todo. Daqui a pouco é hora de jantar e, se bem recordo, no Abismo, as refeições, embora nutritivas, são muito insípidas. De modo que... Bom... aproveito quando não estiver olhando.
Interessado, Palin examinava os pergaminhos ao acaso, mas era óbvio que outras coisas mais importantes lhe ocupavam a mente. Olhava-os de relance, suspirava e, com evidente relutância, voltava a colocá-los no lugar.
— Vamos lá... descubra um que possa usar! — murmurou Tasslehoff.
E pareceu que, de repente, Palin acertara. Examinando o sinete de cera na fita que unia o pergaminho e parecendo bastante animado, quebrou o selo e pôs-se a examinar o conteúdo.
Movendo-se tão sorrateiro como só um kender consegue, o que equivale a dizer que a poeira que cai no chão é tão ruidosa como ele, Tasslehoff Pés Ligeiros abandonou o pouso, atravessou o assoalho como uma sombra e subiu arrojadamente para o estrado onde se encontrava o Portal que dava para o Abismo.
— Tas, descobri aqui uma coisa interessante — disse Palin, virando-se para o lugar onde estivera o kender. A voz do mago deixou transparecer uma entoação preocupada quando deu pela falta dele. — Tas!
— Palin, olha o que eu descobri! — disse este, com orgulho. Segurando numa corda de seda dourada que pendia do reposteiro de veludo carmim, deu-lhe um puxão.
— Tas, não! — gritou Palin, deixando cair o pergaminho e precipitando-se para o kender. — Não faça isso! Pode...
Muito tarde.
O reposteiro ergueu-se, provocando uma nuvem de poeira que quase sufocou Tas.
Depois, chegaram aos ouvidos de Palin aquelas palavras agourentas — em geral as últimas que é dado escutar aos que caem na desgraça de viajar com um kender.
— Ai, ai!
O Grêmio dos Ladrões, em Palanthas, bem podia vangloriar-se — e em geral o fazia, com um certo orgulho — de ser o grêmio mais antigo da cidade. Embora não vigorasse uma data oficial comemorativa da fundação do mesmo, os respectivos sócios não se enganaram muito nos cálculos. É certo que, muito antes dos forjadores de prata, dos alfaiates, dos perfumistas e de inúmeros outros grêmios que agora floresciam, em Palanthas já havia ladrões.
O Grêmio dos Ladrões remontava a épocas imemoriais, a um cavalheiro de nome Pete o Gato que, nos ermos de Solamnia, chefiara um bando de salteadores que atacavam os viajantes que percorriam as estradas. Pete o Gato (o nome não se devia ao fato de ser um sujeito calado e possuir uma graciosidade felina mas sim porque, numa ocasião, fora espancado com um gato de nove rabos[4]) era muito seletivo no tocante às vítimas. Evitava os fidalgos que viajavam com escoltas armadas, todos os magos, os mercenários e quem usasse espada. Pete o Gato declarava ser avesso a derramamentos de sangue. E era — em especial do seu.
Preferia assaltar o viajante solitário e desarmado — o latoeiro itinerante, o menestrel errante, o laborioso caixeiro viajante, o estudante pé descalço, o sacerdote pobre. É desnecessário dizer que Pete o Gato e o seu bando descobriram que é muito difícil enriquecer. Pete acalentava a esperança de, um dia, abordar um latoeiro e descobrir que este escondia, entre as vestes, um carregamento de jóias. Mas isso nunca chegou a acontecer.
Durante um Inverno particularmente rigoroso, quando o bando se viu reduzido a tal miséria que foi obrigado a comer os sapatos e os salteadores já começavam a olhar uns para os outros com ar esfomeado, Pete o Gato decidiu dar um rumo à vida. Esgueirou-se do acampamento, determinado a procurar fortuna — ou pelo menos uma côdea de pão — na recém-formada cidade de Palanthas. Quando, pela calada da noite, trepava pelas muralhas, foi bater contra um dos guardas da cidade. Os que teceram em torno do Gato uma áurea romântica, afirmam que ele e o guarda se envolveram em furiosa luta, que Pete o arremessara da muralha abaixo, o homem estatelara-se no chão e o salteador entrara triunfante na cidade.
Os que se derem ao incômodo de ler a verdadeira história de Pete o Gato, descobrirão a versão autêntica da lenda. Reza esta que, depois do guarda encostá-lo à muralha e ameaçá-lo com a expulsão, o arrojado Pete o Gato prostrara-se de joelhos, agarrara o guarda pelas pernas e suplicara-lhe misericórdia. Nesse momento, o guarda pisara num pedaço de gelo e escorregara. Como os braços de Pete lhe cingiam firmemente os joelhos, o guarda, não podendo se equilibrar, caíra da muralha abaixo, com os braços a esvoaçar.
Pete o Gato, que tivera o bom senso de largá-lo na última hora, ficara com a gelada imagem do desgraçado retida na memória. Assim, e adotando meios mais ortodoxos, descera até o chão, roubara o corpo do morto e esgueirara-se para dentro da cidade, onde assentara acampamento num alpendre para gado.
Poderia se dizer que o grêmio nasceu dos excrementos de vaca.
Pete reivindicava sempre para si a criação do Grêmio dos Ladrões, mas julgava-se ter sido a amante — uma mulher duende de nome Bet Mãos Rápidas — a verdadeira fundadora. Diz o velho ditado: “Os ladrões andam à espreita” e, à medida que a cidade ia aumentando e prosperando, também os ladrões passaram, regularmente, a “andar à espreita”. Era freqüente constatarem que a casa que assaltavam já fora saqueada na noite anterior ou, conforme aconteceu numa ocasião digna de registro, três bandos separados de ladrões reuniram-se na mansão do mesmo fidalgo, na mesma hora, para roubá-la. Isso desencadeou uma rixa entre os malfeitores e o barulho acordou o senhor da casa. O fidalgo e os criados capturaram os larápios, trancaram-nos na adega e, na manhã seguinte, enforcaram-nos. Infelizmente, Pete o Gato encontrava-se entre eles e afirma-se que, antes do fim, estrebuchou que nem um danado, embora os registros indiquem que o sujeito, ao chegar junto do patíbulo, desfez-se num pranto desatinado e teve de ser arrastado escada acima pelo pescoço.
Em conseqüência de tal desgraça, Bet Mãos Rápidas convocou o maior número possível de corta-bolsas, corta-gargantas e batedores de carteiras que conseguiu desencantar das tocas, e proferiu-lhes um inflamado discurso. Disse ela que seria muito mais proveitoso explorar os talentos de cada um, definir territórios, dividir os espólios e não se meterem nos negócios uns dos outros. Todos tinham visto os corpos dos camaradas balançando nos cadafalsos, pelo que concordaram. E nunca se arrependeram.
O Grêmio dos Ladrões revelou tal êxito que muitos e melhores talentos se puseram a caminho de Palanthas. Graças a uma liderança inteligente, o grêmio foi prosperando. Os sócios redigiram estatutos e normas de conduta aos quais todos aderiram. O grêmio recebia uma parte do espólio de cada ladrão e, em troca, proporcionava formação, álibis, que de vez em quando se revelavam consistentes em tribunal, e esconderijos para os que eram perseguidos pelos homens dos fidalgos.
A atual sede do grêmio localizava-se num armazém abandonado que ficava no interior da muralha da cidade, junto às docas. Aqui, os ladrões prosperavam há anos, na maior das impunidades. Regularmente, o Suserano de Palanthas prometia aos súditos que encerraria o Grêmio dos Ladrões. Ao longo do ano, os guardas da cidade efetuavam rusgas periódicas no armazém. À chegada, deparavam sempre com as dependências desertas. Então, o Suserano comunicava aos cidadãos que o Grêmio dos Ladrões fechara as portas. Acostumados ao discurso, os súditos teimavam em, à noite, trancar as portas e, na manhã seguinte, em fazer estoicamente um inventário das perdas.
Verdade seja dita que, embora detestando os ladrões, os cidadãos de Palanthas sentiam um grande orgulho do seu Grêmio dos Ladrões. Quem se queixava era o burguês comum, que inflacionava os preços e roubava as pessoas numa menor escala. As jovens sonhavam com salteadores de estradas bonitos e audazes, que elas, com o seu amor, resgatariam de uma vida de crimes. Os cidadãos de Palanthas desprezavam as cidades menores que não possuíssem um Grêmio dos Ladrões. Referiam-se com desdém a cidades como Flotsam, onde os ladrões eram desorganizados e — como se acreditava — em geral de uma categoria muito inferior à dos ladrões de Palanthas. Os Palancianos adoravam contar histórias sobre o nobre ladrão que, depois de entrar na casa de uma pobre viúva para roubá-la, se sentira tão impressionado com a sua triste miséria que, ainda por cima, lhe dera dinheiro. As viúvas de Palanthas bem que desejavam reivindicar para si esta história, mas ninguém as consultou.
Foi para esse armazém — ou para o salão do grêmio, como o designavam com pompa — que Usha e Dougan se dirigiram. A viela encontrava-se deserta e escura. Usha penetrou sem hesitar, pois ainda a acossava a imagem da torre. Desde que se visse longe daquele antro pavoroso, qualquer outro a satisfaria. Apreciava os modos fanfarrões e rabugentos do duende, admirava-lhe o estilo elegante de vestir e, numa palavra, confiava nele.
Nem se apercebeu dos olhos que os vigiaram enquanto percorriam a viela. Desconhecia, para felicidade sua, o fato de, se andasse por ali sozinha, ser capaz de acabar com a garganta cortada.
Contudo, os olhos conheciam Dougan e aceitavam-no. Os gorjeios de pássaro e os miados de gato que, na sua inocência, Usha atribuiu a pássaros e a gatos, orientaram o percurso, em segurança, do duende e da companheira ao longo do cordão de espiões e de guardas.
O armazém era um edifício gigantesco, ligado no topo à muralha da cidade. Por ser feito da mesma pedra que esta, lembrava bastante uma excrescência, ou um tumor, que irrompia da superfície da muralha e se alastrava pelas aias. Era pardacento, sarapintado, inclinado e em ruínas. As janelas, ou estavam enegrecidas pela sujeira ou partidas. Havia cobertores tapando os buracos (retirados no caso do armazém sofrer um ataque, e que eram ideais para os arqueiros). A porta, espessa, maciça, de madeira com chapa de ferro, ostentava uma curiosa tabuleta.
Dougan bateu de uma maneira estranha e complicada.
Abriu-se um postigo que existia na parte inferior. Um olho espreitou, examinou Dougan, depois Usha, de novo Dougan, semicerrou-se e desapareceu quando o postigo se fechou.
— Não me diga que há pessoas vivendo aqui! — observou Usha, olhando ao redor com uma expressão de repugnância e desapontamento.
— Chiu! Calada! Fale baixo, menina! — advertiu-a Dougan. — Eles têm muito orgulho disso, entende? Muito orgulho.
Usha não conseguia entender porquê, mas obedeceu, pensando que se tratava apenas de boa educação. Olhou de relance por cima do ombro. Embora distante, a Torre da Feitiçaria Suprema encontrava-se visível. Conseguia até ver — ou imaginou — a janela do gabinete de Dalamar. Imaginou o mago postado à janela, perscrutando as ruas embaixo, tentando localizá-la. Estremeceu, aproximou-se de Dougan e desejou que quem quer que vivesse naquele prédio abrisse a porta.
Quando virou a cabeça, Usha deparou com a porta já aberta. Sobressaltada, ficou olhando, não ouvira nenhum som. No início, não enxergou ninguém à soleira. Reinavam as trevas e um fedor horrível — de lixo e pior — que a obrigou a torcer o nariz. Ocorreu-lhe primeiro que vinha de dentro do prédio, mas das sombras malcheirosas, chegou-lhe uma voz.
— O que você quer?
— Ora, é um duende! — exclamou Usha, aliviada.
— Tento na língua! — rosnou Dougan. — É um duende dos esgotos. Não tem nada a ver — acrescentou, em tom severo.
— Mas aquilo... quero dizer, ele... — Usha julgava que era um “ele” mas, com aqueles farrapos, tornava-se difícil confirmar — ...parece mesmo...
Ia dizer “você”, mas a expressão feroz do olhar de Dougan a fez se acautelar.
— Um duende — rematou, com pouca convicção.
Obviamente indignado, Dougan não respondeu e virou-se para o duende dos esgotos.
— Quero falar com o Linchado. Diga-lhe que Dougan Martelo Vermelho está aqui e que não posso demorar. Diga a Linchado que tenho uma coisa que lhe pode ser vantajosa.
Em três ocasiões distintas — sempre que Dougan terminava uma frase — o duende dos esgotos fez menção de ir transmitir o recado. Mas o outro começava a falar e o duende dava meia volta.
— Pára! — exclamou de repente. — Mim tonto. — Parecia agoniado. Usha começava também a se sentir nauseada, mas era do fedor.
— Mim sentir-se maldisposto — declarou o duende dos esgotos com voz espessa. — Parece que ir vomitar.
— Não, não! — exclamou Dougan, recuando precipitadamente. — Acalme-se. Isso, lindo menino!
— Vomitar não ser mau — replicou o outro, mais animado. — Se comida é boa quando ir para baixo, também é boa quando vir para cima.
— Seu vagabundo, vai chamar o Linchado, anda — ordenou Dougan, enxugando o rosto com um lenço. Na viela abafada, o calor era sufocante.
— Quem é Linchado? — perguntou Usha, enquanto o duende dos esgotos se afastava obedientemente, em passo de trote.
— O nome completo é Geoffrey Linchado — respondeu Dougan em voz baixa. — É o diretor do grêmio.
— Que nome esquisito — murmurou Usha. — Por que se chama assim?
— Porque foi.
— Foi o quê?
— Linchado. Não se refira à marca da corda no pescoço. É muito sensível quanto ao assunto.
Usha sentiu-se curiosa por saber como podia um homem que fora linchado andar por ali. Ia perguntar quando Geoffrey Linchado apareceu na soleira. Era alto, ágil e franzino, com dedos compridos que se agitavam em constante movimento — estalando, borboleteando, serpenteando, ondulando. Um batedor de carteira experiente, que afirmavam ter roubado a camisa de seda de um nobre, deixando-lhe o colete incólume. Linchado defendia que a prática de tais exercícios lhe mantinham a flexibilidade dos dedos. Em torno da garganta, sobressaía uma exuberante cicatriz de um vermelho quase violáceo. A mesma constituía a faceta mais interessante do seu rosto incaraterístico.
— Garota, o quê está olhando? — perguntou Linchado com voz zangada.
— N... nada, senhor — gaguejou Usha, tentando desviar os olhos da cicatriz e fixá-los nos do homem, que eram pequenos e lembravam os de uma doninha.
Pouco convencido, Linchado pigarreou e virou-se para Dougan.
— Ó amigão, por onde tem andado? Há dias falamos de você. Tínhamos um trabalhinho para escavar um túnel que devia lhe interessar. Vocês, duendes, são bons nesse tipo de coisas.
— Sim, pois é, andei ocupado com outros assuntos — murmurou Dougan, parecendo picado com a maneira escarninha como o homem dissera “Vocês, os duendes”, mas refreando a ira. — Vamos falar de negócios. Aqui a minha jovem amiga — acrescentou, indicando Usha — é nova na cidade. Precisa de um lugar para dormir.
— Isto não é um asilo — replicou Linchado, levando a mão à porta e fazendo menção de fechá-la.
Interpondo o pé gordo e calçado com uma pesada bota, Dougan entreabriu-a.
— Linchado, meu amigão — disse —, não me deixou acabar. Ia dizer que a menina aqui precisa arranjar um meio de ganhar a vida. Vai necessitar de uns treinozinhos na arte. Estou disposto a pagar os custos da formação dela — acrescentou, em tom mal-humorado.
Linchado voltou a abrir a porta. Examinou Usha com atenção e esta não gostou da forma como o fazia, parecia que, além das roupas, lhe despia também a pele. A jovem sentiu-se afogueada. Desagradava-lhe o lugar e aquele homem odioso, com umas mãos que pareciam antenas de uma barata. Nem sequer podia assegurar que queria aprender o que o sujeito tinha para ensinar, fosse lá o que fosse. Preparava-se para se despedir deles quando, olhando de relance para o extremo da viela, avistou um mago de vestes negras.
Em Palanthas, havia muitos magos Vestes Negras e mais de um tinha negócios com indivíduo do armazém. Contudo, Usha presumiu de imediato tratar-se de Dalamar.
O mago encontrava-se postado na entrada da viela. A cabeça, oculta pelo capuz, estava virada naquela direção, como que à procura de alguém. A viela era comprida, a escuridão cerrada e Usha e o duende encontravam-se no outro extremo. Talvez não a tivesse visto ainda.
Usha avançou, pegou na mão de dedos achatados de Geoffrey Linchado e apertou-a até quase arrancá-la.
— Tenho muito prazer em conhecê-lo — disse, ofegante. — Trabalharei duro! Sou uma ótima trabalhadora! — Passando, apressada, por ele, mergulhou na escuridão do armazém, saboreando com prazer a atmosfera fétida.
Dougan e o ladrão pareceram algo surpreendidos com o entusiasmo da jovem.
— O que posso afirmar é que se mexe depressa — comentou Linchado, torcendo a mão. — E também aperta bem...
Do cinturão preto, Dougan retirou uma bolsa com dinheiro e sopesou-a.
— Combinado — disse Linchado e, em tom polido, convidou Dougan a entrar. — Garota, como se chama?
— Usha — respondeu a jovem, olhando, ansiosa, ao redor.
O interior do armazém era cavernoso. Parte do assoalho encontrava-se juncado de mesas e de cadeiras, como uma sala comum de estalagem. Nas paredes ardiam tochas e sobre as mesas viam-se velas grossas acesas. Sentadas em volta das mesas havia pessoas que bebiam, comiam, jogavam, falavam ou dormiam. Ali, viam-se representantes de todas as raças e faixas etárias existentes em Ansalon. O Grêmio dos Ladrões podia ter os seus defeitos, mas o preconceito não era um deles. Dois humanos bebiam na companhia de três elfos. Um duende jogava dominó com um ogro. Um trasgo e um kender entretinham-se num concurso de bebidas. Uma feiticeira Veste Vermelha mantinha, com um minotauro, uma acesa discussão a respeito de Sargonnas. Havia crianças correndo em volta das mesas, brincando de pega pega. O resto do armazém encontrava-se mergulhado nas trevas, pelo que Usha não teve oportunidade de ver o que albergava.
Ninguém olhou para ela. Ninguém lhe prestou a menor atenção. Julgando que não fazia mal impressionar o futuro patrão, a jovem acrescentou:
— O meu nome completo é Usha Majere. Sou filha de Raistlin.
— Ah, pois — retrucou Geoffrey Linchado. — E eu sou a mãe dele — rematou, cuspindo no chão.
Usha olhou-o fixamente e replicou:
— Desculpe, não entendi.
— Filha de Raistlin! — replicou Linchado, com uma gargalhada desagradável. — É o que todas dizem. No ano passado, apareceram três afirmando a mesma coisa. — A voz do homem tornou-se mais agreste. Os olhos de doninha mostravam-se frios, inexpressivos. — Vamos ver então, quem é você na verdade? Espiã não é, é? — Em menos de um piscar de olhos, havia uma faca reluzindo na mão de Linchado. — Reservamos, para os espiões, um tratamento rápido e completo, não é verdade, irmãos?
Os outros sócios já tinham se levantado, retirado facas das botas e desembainhado espadas. No ar crisparam-se cânticos e palavras de encantamento, acompanhados pelo som feérico de uma braçadeira hoopak a rodopiar.
Usha recuou e foi bater na porta trancada. Dougan interpôs o corpo rotundo entre ela e o diretor do grêmio. Estendendo-lhe a bolsa, disse:
— Geoffrey Linchado, você me conhece! Para que haveria de trazer para cá um espião? Com que então, a menina afirma que o pai é Raistlin Majere. — Dougan, que parecia algo excitado com a frase, olhou de soslaio para Usha, mas prosseguiu em tom galhofeiro: — E quem pode assegurar que não é? Quantos de vocês — acrescentou, lançando um olhar mordaz à assistência —, podem, sob juramento, afirmar quem são os seus pais?
A avaliar pelos murmúrios e acenos de cabeça, a maior parte parecia concordar com o argumento do duende. A bolsa recheada também lhe dava uma certa consistência.
— Garota, desculpe se me precipitei — disse Linchado, desaparecendo-lhe a faca da mão de forma tão misteriosa e célere como aparecera. — Meus nervos são extremamente sensíveis. — Virando-se para Dougan, acrescentou: — Aceitamos a menina como aprendiz, como experiência. Quer que a treinemos para quê?
— Para um serviço especial — respondeu Dougan, em tom evasivo.
Linchado franziu o cenho.
— Duende, que tipo de trabalho? — inquiriu.
Fosse o tamanho da bolsa menor e Linchado não teria contemplações. Assim, limitou-se a pôr um ar carrancudo e dizer:
— Não se esqueça que o grêmio quer uma fatia.
Dougan relanceou o olhar pelos que presenciavam a cena, e quando se deteve nas crianças, a sua expressão rígida suavizou-se. Retirou o chapéu com a pluma elegante e cingiu-o ao peito, como se proferisse um juramento.
— Se formos bem sucedidos, todos receberão um quinhão. Juro. Se falharmos, ninguém é culpado. — Deu um suspiro, e por um instante pareceu abatido.
Linchado arrebanhou lestamente a bolsa.
— Combinado — respondeu. — O que lhe ensinamos? A apanhar, a baixar-se, a lançar a isca, a pôr a isca?
Ele e Dougan dirigiram-se para um canto e embrenharam-se numa interessante conversa.
Vendo uma cadeira vazia junto de uma mesa, Usha sentou-se. Uma criança esfarrapada trouxe-lhe um prato de guisado e uma caneca de cerveja. Comeu vorazmente. A única coisa a toldar-lhe a boa disposição era Palin e o seu destino. Mas o coração dos jovens é sempre otimista, em especial quando já sentiu as primeiras pungências agridoces do amor.
Os deuses não facilitariam o nosso encontro se o desígnio fosse nos separarem cruelmente depois. Era esta a convicção de Usha, em grande parte fruto da fé sentida e não da percepção da dura realidade.
Terminada a refeição, Usha sentia-se descontraída e feliz na sua nova situação. Por mais rudes que fossem as palavras daquelas pessoas, por estranhas e sinistras que parecessem, Usha deixara de temê-las.
Lançar a isca. Pôr a isca.
Claro, eram pescadores.