7. O GRANDE TESOURO

Nunca os rituais e deveres do dia lhe tinham parecido tantos, nem tão triviais, nem tão compridos. As garotinhas com os seus pálidos rostos e as suas maneiras furtivas, as noviças turbulentas, as sacerdotisas cujo aspecto era frio e severo, mas cujas vidas eram um secreto emaranhado de invejas e lamentações, de pequenas ambições e paixões estéreis — todas essas mulheres entre as quais sempre vivera e que constituíam para ela o mundo humano, pareciam-lhe agora a um tempo deploráveis e entediantes.

Mas ela que servia grandes poderes, ela que era sacerdotisa da sinistra Noite, ela estava livre de tal mesquinhez. Ela não tinha de se ocupar com a torturante mesquinhez da sua vida comum, dos dias em que a grande delícia era conseguir mais uma colherada de gordura de borrego em cima das lentilhas que a vizinha de mesa… Não, ela estava livre dos dias, de todos eles. No subsolo não havia dias. Era sempre e só noite.

E naquela noite sem fim, o prisioneiro. O homem de pele escura, praticante de escuras artes, envolto em ferro e preso à pedra, à espera que ela viesse ou não viesse, a trazer-lhe água e pão e vida, ou uma faca e a tigela do magarefe e a morte, como muito bem lhe aprouvesse.

Ela não falara a ninguém do homem, senão a Kossil, e Kossil não falara a mais ninguém. Havia já três noites e três dias que ele se encontrava na Sala Pintada e ela ainda nada perguntara a Arha sobre o prisioneiro. Talvez presumisse que estava morto e que Arha encarregara Manane de levar o corpo para a Sala dos Ossos. Não era costume de Kossil aceitar qualquer coisa como certa sem mais aquelas. Porém, Arha dizia para si própria que nada havia de estranho no silêncio da outra mulher. Kossil queria que tudo se passasse em segredo e odiava ter de fazer perguntas. Além disso, Arha dissera-lhe que não se metesse nos seus assuntos. Kossil estava simplesmente a obedecer.

Contudo, como se julgava que o homem estivesse morto, Arha não podia pedir comida para ele. Assim, para além de roubar algumas maçãs e cebolas secas das caves da Casa Grande, ela prescindiu de comer. Mandou que lhe enviassem as refeições da manhã e da tarde para a Casa Pequena, sob o pretexto de que desejava comer sozinha, e todas as noites levava a comida até à Sala Pintada no Labirinto, tudo menos a sopa. Estava habituada a jejuar desde um até quatro dias e aquilo não lhe pareceu nada demais. O indivíduo no Labirinto comia os seus frugais quinhões de pão, queijo e feijões como um sapo come uma mosca: zás! já está. Era evidente que podia devorar cinco ou seis vezes mais. Mas agradecia-lhe sobriamente, como se fosse seu hóspede e ela a anfitriã a uma dessas mesas de que ela ouvira falar em descrições de festas no palácio do Rei-Deus, mesas postas com carnes assadas, pão barrado com manteiga, vinho servido em taças de cristal. O estranho era muito estranho.

— Como é que é nas Terras Interiores?

Arha trouxera ali para baixo um pequeno banco de pernas em cruz, feito de marfim, para não ter de ficar em pé enquanto o interrogava, mas também sem ter de se sentar no chão, ao nível dele.

— Bom, há muitas ilhas. Quatro vezes quarenta, diz-se, só no Arquipélago. E depois há as Estremas. Jamais homem algum navegou por todas as Estremas ou contou todas as terras. E cada uma é diferente de todas as outras. Mas talvez a mais bela entre todas seja Havnor, a grande terra no centro do mundo. E no coração de Havnor, numa vasta baía cheia de navios, fica a cidade de Havnor. As torres da cidade são construídas de mármore branco. A casa de cada príncipe e de cada mercador tem a sua torre, de maneira que elas se erguem, umas acima das outras. Os telhados das casas são em telha vermelha e todas as pontes sobre os canais são cobertas de mosaico, vermelho, azul e verde. E os pendões dos príncipes são de todas as cores, flutuando no cimo das torres brancas. Na mais alta de todas as torres está colocada, como um pináculo, erguida para o céu, a Espada de Erreth-Akbe. Quando o Sol se ergue sobre Havnor e sobre a sua lâmina que primeiro brilha e, quando se põe, a Espada permanece ainda dourada por sobre o crepúsculo durante algum tempo.

— Quem era Erreth-Akbe? — perguntou Arha, dissimulada.

O estranho ergueu os olhos para ela. Não disse nada, mas arreganhou ligeiramente os dentes. Depois, como se considerasse melhor, disse:

— É verdade, pouco deves saber acerca dele por aqui. Nada para além do fato de ter vindo até às terras karguianas, talvez. E dessa história, o que saberás?

— Sei que perdeu o bordão, o amuleto e o poder… como tu — respondeu ela. — Escapou ao Grão-Sacerdote e fugiu para o Ocidente, onde foi morto por dragões. Mas se ele tivesse vindo até aqui, aos Túmulos, não teria havido necessidade de dragões.

— Bem verdade — retorquiu o prisioneiro.

Arha não queria falar mais de Erreth-Akbe, pressentindo um perigo no assunto. — Dizem que ele era um senhor de dragões. E tu também dizes ser um. Explica-me, o que é um senhor de dragões?

O seu tom era sempre trocista, as respostas dele diretas e sem arrebiques, como se o prisioneiro lhe aceitasse as perguntas de boa-fé.

— Alguém com quem os dragões falem — explicou ele — é um senhor de dragões. Ou, pelo menos, aí reside o centro da questão. Não é um truque para dominar os dragões, como muita gente pensa. Os dragões não têm amos. Com um dragão, a questão é sempre a mesma. Fala conosco ou come-nos? Se pudermos confiar em que ele faça a primeira coisa, e em que não faça a segunda, então somos senhores de dragões.

— Os dragões sabem falar?

— Certamente! Na Antiga Fala, a língua que nós, homens, aprendemos com tanta dificuldade e que usamos de forma tão deficiente, para fazermos os nossos encantamentos de magia e de dar forma. Nenhum homem conhece totalmente essa língua, nem um décimo dela. Não tem tempo para a aprender. Mas os dragões vivem mil anos… Vale a pena falar com eles, como já te deves ter apercebido.

— Há dragões aqui, em Atuan?

— Há muitos séculos que não, creio eu, nem em Karego-At. Mas na vossa ilha mais a norte, em Hur-at-Hur, dizem que ainda há grandes dragões nas montanhas. Nas Terras Interiores, mantêm-se agora pelas regiões mais longínquas a ocidente, na remota Estrema Oeste, ilhas onde não vivem homens e poucos lá vão. Se lhes dá a fome, assaltam as terras para leste deles, mas isso raramente acontece. Já vi a ilha onde se juntam para dançar. Com as suas grandes asas, voam em espirais, entrecruzando-se, subindo mais alto, cada vez mais alto por sobre o mar ocidental, como um redemoinho de folhas amarelas no Outono.

Perdidos na visão, os seus olhos atravessavam as pinturas negras das paredes, e para lá das paredes, do solo e do negrume viam o mar aberto estendendo-se ininterruptamente até ao pôr do Sol, os dragões dourados no dourado vento.

— Estás a mentir — acusou a rapariga com ferocidade. — Estás a inventar tudo isso.

Ele olhou-a, sobressaltado.

— Mas porque haveria eu de te mentir, Arha?

— Para me fazeres sentir idiota, e estúpida, e assustada. Para te mostrares inteligente, e corajoso, e poderoso, e mais um senhor de dragões e isto e aquilo. Viste dragões a dançar, viste as torres em Havnor, sabes tudo acerca de todas as coisas. E eu não sei nada de nada e nunca estive em lado nenhum. Mas tudo o que tu sabes são mentiras! Tu não és nada senão um ladrão e um prisioneiro, e não tens alma, e não deixarás nunca este lugar. Não interessa que haja oceanos e dragões, nem torres brancas nem nada disso, porque nunca mais os voltarás a ver, nunca mais verás a luz do sol. Tudo o que eu conheço é a escuridão, a noite subterrânea. E é tudo o que realmente existe. No fim, é a única coisa que há para conhecer. O silêncio e a escuridão. Tu sabes tudo, feiticeiro. Mas eu sei uma coisa, a única coisa verdadeira!

Ele inclinou a cabeça para o peito. As suas longas mãos, de um castanho de cobre, estavam calmamente pousadas nos seus joelhos. Ela olhou-lhe a quádrupla cicatriz na face. Ele fora mais longe que ela no negrume. Ele conhecia a morte melhor que ela, até a morte… Uma vaga de ódio contra ele ergueu-se no peito, sufocando-a por um instante. Porque estava ele para ali sentado, tão indefeso e tão forte? Porque não conseguia ela derrotá-lo?

— Foi por isto que eu te deixei viver — disse ela subitamente, sem a mínima premeditação. — Quero que me mostres como são feitos os truques dos bruxos. Enquanto tiveres alguma arte para me ensinares, continuas vivo. Se não tiveres nenhuma, se for tudo tolice e mentiras, então não me serves de nada. Estás a entender?

— Estou.

— Muito bem. Continua.

Durante um minuto, ele apoiou a cabeça nas mãos e mudou ligeiramente de posição. A cinta de ferro impedia-o de ficar verdadeiramente confortável, a não ser que se deitasse ao comprido. Finalmente, ergueu a cabeça e falou muito gravemente.

— Ouve, Arha. Eu sou um Mago, aquilo a que tu chamas um bruxo. Tenho certas artes e poderes. Isso é verdade. É verdade também que aqui, no Lugar dos Antigos Poderes, a minha força é pouca e o meu saber de pouco me serve. Ora eu podia criar ilusões para ti e mostrar-te toda a espécie de maravilhas. Essa é a parte menor da feitiçaria. Já podia criar ilusões quando era ainda uma criança. Mesmo aqui as posso criar. Mas se acreditares nelas, assustar-te-ão e poderás desejar matar-me se o medo te enfurecer. E se não acreditares nelas, vê-las-ás apenas como mentiras e idiotice, como tu dizes. E aí ponho eu de novo a minha vida em risco. Ora a minha intenção e desejo, neste momento, é continuar vivo.

Isto fê-la rir e ela disse:

— Oh, ainda vais ficar vivo durante algum tempo, não consegues ver isso? És tão estúpido! Pois bem, mostra-me essas ilusões. Agora que sei que são falsas, não terei medo delas. Aliás, não lhes teria medo se fossem reais. Mas anda lá. A tua preciosa pele está a salvo, pelo menos por esta noite.

Perante isto, ele riu, como ela o fizera um momento antes. Lançavam a vida dele de um para o outro como se brincassem com uma bola.

— Que queres que te mostre?

— Que podes mostrar-me?

— Tudo.

— Estás sempre a gabar-te!

— Não — retorquiu ele, evidentemente um pouco ressentido. — Não estou. Seja como for, não era essa a minha intenção.

— Mostra-me alguma coisa que tu aches que merece a pena ser vista. Qualquer coisa!

Ele inclinou a cabeça e, por momentos, fitou as mãos. Nada aconteceu. A vela de sebo continuava a arder na lanterna, a sua chama firme e fraca. As figuras negras da parede, com as suas asas de pássaro que não se abriam para voar, os seus olhos pintados de vermelho e branco, ambos baços, avultavam sobre ambos. Não se ouvia som algum. Ela soltou um suspiro, desapontada e, de certa maneira, magoada. Ele era fraco. Falava de grandes coisas, mas não fazia nada. Não era mais que um bom mentiroso e nem sequer um ladrão capaz.

— Bom — pronunciou ela por fim, aconchegando as saias para se levantar. Mas a lã sussurrou estranhamente a esse movimento. Olhou para baixo, para si própria, e pôs-se de pé, sobressaltada.

As pesadas roupas negras que havia anos usava tinham desaparecido. O seu vestido era de seda azul-turquesa, brilhante e macia como o céu do entardecer. Abria-se em grande roda a partir das ancas e toda a saia estava bordada com delicados fios de prata, minúsculas pérolas e pedacinhos de cristal, de modo que toda ela cintilava suavemente, como a chuva de Abril.

Incapaz de falar, olhou o mago.

— Gostas? — perguntou ele.

— Mas onde?…

— É como um vestido que vi certa vez uma princesa usar, no Festival do Regresso do Sol, no Palácio Novo em Havnor — informou o feiticeiro, olhando-o com satisfação. — Disseste-me que te mostrasse alguma coisa que valesse a pena ver. Mostro-te a ti.

— Faça… faça desaparecer.

— Mas tu deste-me o teu manto — insistiu ele em tom de censura. — Não poderei eu dar-te nada em troca? Mas pronto, não te preocupes. É só ilusão. Repara.

Não pareceu que levantasse sequer um dedo e de certeza que não disse uma palavra, mas o esplendor azul da seda desapareceu e ela envergava de novo a sua roupa de severo negro.

Por momentos ainda se deixou ela ficar imóvel.

— Como é que eu sei — disse por fim —, que tu és o que pareces ser?

— Não sabes — respondeu o mago. — Eu não sei o que te pareço ser.

A rapariga voltou a cismar.

— Tu podias levar-me a ver-te como…

E interrompeu-se porque ele levantara a mão e apontava para cima, no mero esboço de um gesto. Julgando que ele lhe lançava algum feitiço, Arha aproximou-se rapidamente da porta, mas, seguindo a direção do gesto, os seus olhos deram, lá no cimo do teto escuro e arqueado, com o pequeno quadrado que era o orifício de observação da câmara do tesouro, no templo dos Deuses Gêmeos.

Não vinha qualquer luz do orifício. Não conseguia ver nada, nem ouvir ninguém, lá no alto. Mas o olhar interrogativo do homem pousava sobre ela.

Durante algum tempo, permaneceram ambos perfeitamente imóveis. Finalmente, ela pronunciou distintamente:

— A tua magia não passa de tonteira para olhos de crianças. São truques e mentiras. Já vi que chegasse. Vais ser dado a comer Aqueles-que-não-têm-Nome. Não voltarei mais aqui.

Pegou na lanterna, saiu e fez correr os ferrolhos da porta firme e ruidosamente. Depois parou e, consternada, deixou-se ali ficar, do lado de fora da porta. Que havia de fazer? Quanto teria Kossil visto ou ouvido? Que tinham eles estado a dizer? Não conseguia lembrar-se. Parecia que nunca conseguia dizer ao prisioneiro aquilo que pretendia dizer-lhe. Ele confundia-a sempre com as suas conversas acerca de dragões e torres e dar nomes aos Sem-Nome. E mais o querer ficar vivo e agradecer o manto que ela lhe dera. Nunca dizia o que se esperava que dissesse. Nem sequer o interrogara a respeito do talismã que trazia ainda, oculto junto ao seio.

E ainda bem que assim fora, já que Kossil estivera a ouvir. E depois, que importava isso, que mal podia Kossil fazer? E ainda estava a formular a pergunta para si própria, já sabia a resposta. Nada é mais fácil de matar que um falcão engaiolado. O homem estava impotente, acorrentado dentro da sua gaiola de pedra. A Sacerdotisa do Rei-Deus só tinha de enviar o seu servo Duby para o estrangular naquela noite. E mesmo que ela e Duby não conhecessem o Labirinto até tão longe, bastava-lhe soprar pó-de-veneno pelo orifício de observação para dentro da Sala Pintada. Ela tinha caixas e frascos de maléficas substâncias, algumas para envenenar a comida ou a água, outras que contaminavam o ar e matavam alguém que respirasse esse ar durante muito tempo. E ele estaria morto de manhã c tudo se teria acabado. Não mais voltaria a brilhar uma luz sob os Túmulos.

Arha apressou-se a percorrer os estreitos caminhos de pedra até à entrada pelo Subtúmulo, onde Manane a esperava, agachado pacientemente no escuro, como um velho sapo. O eunuco não estava sossegado com as visitas de Arha ao prisioneiro. Como ela não o deixava ir até junto dele, tinham estabelecido aquele compromisso. Mas agora Arha estava satisfeita por tê-lo à mão. Ao menos nele podia confiar.

— Ouve, Manane. Tens de ir à Sala Pintada imediatamente. Dizes ao homem que o vais levar para ser enterrado vivo por baixo dos Túmulos.

Ao ouvir isto, os olhinhos de Manane faiscaram. Ela continuou:

— Dizes isso em voz alta. Depois, abres o cadeado da corrente e levá-lo…

E aqui interrompeu-se porque não decidira ainda onde melhor poderia esconder o prisioneiro.

— Para o Subtúmulo — disse Manane, animadamente.

— Não, idiota. Eu disse-te para dizeres isso, não para o fazeres. Espera…

Que lugar poderia estar a salvo de Kossil e dos seus espiões? Nenhum a não ser os mais profundos lugares do subsolo, os mais sagrados e melhor ocultos lugares do domínio dos Sem-Nome, onde Kossil não se atreveria a ir. Mas não era Kossil capaz praticamente de tudo? Poderia temer os lugares mais escuros, porém era alguém capaz de dominar o medo para atingir os seus fins? Ninguém saberia dizer até que ponto poderia ela ter aprendido o plano do Labirinto, com Thar ou com Arha da vida anterior ou mesmo através das suas próprias e secretas explorações, realizadas nos anos anteriores. Arha suspeitava de que ela soubesse muito mais do que demonstrava saber. Mas havia um caminho que ela certamente não poderia ter aprendido, o mais bem guardado dos segredos.

— Vais ter de levar o homem até onde eu te conduzir e terás de o fazer no escuro. Depois, quando eu te trouxer de volta aqui, vais abrir uma cova no Subtúmulo e fazer um caixão para lá meter. Em seguida, pões o caixão, vazio, na cova, voltas a encher a cova com terra, mas de maneira a que se possa sentir ao apalpar e descobrir, para o caso de alguém a procurar. Uma cova bem funda. Percebes?

— Não — retorquiu Manane, obstinado e inquieto. — Essa manha não é sensata. Não está bem. Não devia haver um homem aqui! Vai chegar algum castigo e…

— Como o de um velho tonto a ficar sem língua, não é? Atreves-te a dizer-me o que é sensato ou não? Eu sigo as ordens dos Poderes da Treva. Vem comigo!

— Peço perdão, senhorazinha, peço perdão… Regressaram à Sala Pintada. Ali, ela ficou à espera cá fora, no túnel, enquanto Manane entrava e soltava a corrente da argola na parede. Ouviu a voz profunda que dizia:

— E agora para onde, Manane?

E logo a voz rouquejante e aguda do eunuco, a responder de mau grado:

— Vais ser enterrado vivo, disse a minha senhora. Debaixo das Pedras Tumulares. Levanta-te!

E a rapariga ouviu a pesada corrente estalar como uma vergasta.

O prisioneiro saiu, trazendo os braços atados com o cinto de couro de Manane. Este vinha atrás, segurando-o como a um cão com trela curta, mas a coleira estava à roda da sua cintura e a trela era de ferro. Os olhos do mago viraram-se para a rapariga mas ela soprou para apagar a vela e, sem uma palavra, embrenhou-se na escuridão. Tomou imediatamente a passada lenta mas bastante regular que geralmente mantinha no Labirinto, quando não se servia de nenhuma luz, passando muito ao de leve, mas quase constantemente, as pontas dos dedos pelas paredes de ambos os lados. Manane e o prisioneiro seguiam atrás dela, com muito menos segurança por causa da trela, arrastando os pés, tropeçando aqui e ali. Mas era no escuro que tinham de seguir, pois ela não queria que nenhum deles aprendesse aquele caminho.

Voltar à direita depois da Sala Pintada e passar duas aberturas; ir para a direita nos Quatro Caminhos e passar a abertura para a direita; depois um longo caminho em curva e um lance de degraus a descer, longo, escorregadio, demasiado estreito para pés humanos normais. Para lá daqueles degraus nunca ela fora.

O ar era mais estagnado ali, muito parado, com um cheiro penetrante. As indicações estavam claras no seu espírito e até as tonalidades na voz de Thar ao recitá-las. Descer os degraus (atrás dela, o prisioneiro tropeçou naquela escuridão de breu e ela ouviu-o arquejar quando Manane o equilibrou com um forte puxão na corrente) e, ao fundo da escada, virar imediatamente para a esquerda. Manter-se à esquerda, depois passar três entradas, depois tomar pela primeira à direita e a partir daí permanecer encostada à direita. Os túneis tinham curvas e ângulos, nenhum seguia a direito. «Depois tens de tornear o Poço», dizia a voz de Thar na escuridão da sua mente, «e o caminho é muito estreito.»

Arha abrandou o passo, inclinou-se para baixo e apalpou o caminho em frente dela, percorrendo o chão com uma das mãos. O corredor estendia-se agora a direito por uma boa distância, dando ao caminhante uma falsa sensação de segurança. De repente a sua mão, que não cessara de tocar e varrer a rocha à sua frente, sentiu o vazio. Havia um rebordo de pedra, uma beira e, para lá da beira, o nada. Do lado direito, a parede do corredor mergulhava a direito no poço. Para a esquerda, havia um ressalto ou beiral que não teria muito mais que uma mão travessa de largura.

— Há um poço. Ponham-se de frente para a parede, do lado esquerdo, e avancem de lado. Façam deslizar os pés. Mantém a corrente bem segura, Manane… Já estão no rebordo? Vai estreitando. Não assentem o peso do corpo nos calcanhares. Pronto, já passei o poço. Dá-me a tua mão. Isso…

O túnel prosseguia agora em curtos ziguezagues, com muitas aberturas laterais. De algumas destas, ao passarem por elas, o eco dos seus passos soava de maneira estranha, cava. E, mais estranho ainda, sentia-se uma corrente de ar muito leve, como se o ar estivesse a ser chupado. Aqueles corredores deviam terminar em poços semelhantes àquele por onde tinham passado. Talvez houvesse, sob esta parte mais baixa do Labirinto, um lugar oco, uma caverna tão profunda e vasta que a caverna do Subtúmulo seria pequena em comparação, um enorme, um negro vazio interior.

Mas acima desse abismo, onde eles caminhavam pelos escuros túneis, os corredores iam-se tornando lentamente mais estreitos e mais baixos, até que a própria Arha se viu obrigada a andar curvada. Não teria fim aquele caminho?

E o fim surgiu subitamente. Uma porta fechada. Indo inclinada para a frente e um pouco mais depressa que o habitual, Arha foi de encontro a ela, ferindo a cabeça e as mãos. Às apalpadelas, procurou a fechadura e depois, na argola à cinta, a pequena chave de que nunca se servira, a chave de prata com o punho esculpido em forma de dragão. Entrou, rodou. E ela abriu a porta do Grande Tesouro dos Túmulos de Atuan. Uma aragem seca, azeda e apodrecida saiu pela abertura como um suspiro.

— Manane, tu não podes entrar aqui. Espera fora da porta.

— Ele sim, mas eu não?

— Se entrares nesta sala, Manane, não voltarás a sair. É essa a lei para todos menos para mim. Nenhum ser mortal a não ser eu deixou alguma vez esta câmara vivo. Queres entrar?

— Esperarei cá fora — aquiesceu a melancólica voz no meio do negrume. — Senhora, senhora, não feches a porta…

O seu temor enervou-a de tal modo que ela deixou a porta entreaberta. A verdade é que aquele lugar a enchia de um receio sombrio e, por muito preso que o prisioneiro estivesse, sentia alguma desconfiança em relação a ele. Uma vez lá dentro feriu lume. As mãos tremiam-lhe. A vela da lanterna acendeu-se com dificuldade naquele ar fechado e morto. Ao clarão amarelado que parecia brilhante depois da longa travessia da noite, a câmara do tesouro agigantou-se acima deles, cheia de sombras ondulantes.

Havia seis grandes arcas, todas de pedra, todas recobertas por uma espessa camada de uma fina poeira cinzenta, como bolor no pão. Nada mais. As paredes eram grosseiras, o teto baixo. A sala estava fria, um frio profundo e sem ar que parecia fazer parar o sangue no coração. Não havia teias de aranha, só a poeira. Nada ali vivia, absolutamente nada, nem sequer as raras e pequenas aranhas brancas do Labirinto. A poeira era espessa, espessa, e dela cada grão poderia corresponder a um dia que passara, aqui onde não havia tempo nem luz. Dias, meses, anos, milênios, eras, tudo se tornara poeira.

— Era este o lugar que procuravas — disse Arha e a sua voz era firme. — Este é o Grande Tesouro dos Túmulos. Vieste até ele. Não mais o poderás deixar.

Ele nada disse e o seu rosto estava calmo, mas havia nos seus olhos algo que a comoveu. Uma desolação, a expressão de alguém que foi traído.

— Disseste que querias viver. Este é o único lugar que eu conheço onde podes continuar vivo. Kossil matar-te-á ou obrigar-me-á a matar-te, Gavião. Mas aqui ela não pode chegar.

Ainda assim ele nada disse.

— Fosse como fosse, tu nunca poderias ter deixado os Túmulos, não vês isso? Isto não é diferente. E pelo menos chegaste ao… ao fim da tua jornada. O que procuravas está aqui.

Ele sentou-se numa das grandes arcas, parecendo esgotado. A corrente pendente retiniu asperamente contra a pedra. O homem olhou em volta, para as paredes cinzentas e as sombras, depois para Arha.

A rapariga desviou o olhar dele para as arcas de pedra. Não sentia o menor desejo de as abrir. Em nada lhe interessavam as maravilhas que pudessem estar a apodrecer lá dentro.

— Aqui, não precisas de andar com essa corrente — disse Arha e, chegando junto dele, abriu o cinto de ferro e desatou o cinto de couro de Manane que lhe manietava os braços. — Tenho de fechar a porta mas, quando vier, confiarei em ti. Tu sabes que não podes sair, que nem o deves tentar? Eu sou a sua vingança e cumpro a sua vontade. Mas se eu os iludir se tu iludires a minha confiança… então eles próprios se vingarão. Não deves tentar deixar esta sala, atacando-me ou iludindo-me quando aqui vier. Tens de acreditar em mim.

— Farei como dizes — assentiu ele suavemente.

— Trago-te comida e água sempre que puder. Não será muito. A água bastante, mas não muita comida durante algum tempo, porque estou a ficar esfomeada, percebes? Mas será o suficiente para continuares vivo. Não devo poder voltar por um dia ou dois, talvez mais. Tenho de despistar Kossil. Mas virei. Prometo. Aqui tens o cantil. Poupa-o, que eu não posso voltar breve. Mas volto.

Ele ergueu o rosto para ela. A sua expressão era estranha.

— Tem cuidado contigo, Tenar — disse.

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