No dia seguinte, depois de terminadas as suas tarefas nos vários templos c o ensino das danças sagradas às noviças, Arha esgueirou-se para a Casa Pequena e, depois de pôr o quarto na penumbra, abriu o orifício de observação e espreitou lá para dentro. Não havia luz. O estranho fora-se embora. A rapariga não pensara que ele fosse ficar tanto tempo junto da porta inútil, mas era o único sítio que conhecia onde o procurar. Como poderia agora encontrá-lo se ele se perdera?
Os túneis do Labirinto, segundo as indicações de Thar e a sua própria experiência, estendiam-se, com todas as suas voltas, bifurcações, espirais e becos sem saída, por mais de vinte milhas. O beco que ficava mais afastado dos Túmulos não estaria provavelmente a mais de uma milha de distância, em linha reta. Mas lá em baixo, no subsolo, nada corria a direito. Todos os túneis encurvavam, se dividiam, voltavam a reunir, se ramificavam, entrelaçando-se, formando nós, traçando rotas elaboradas que acabavam onde tinham começado, porque não havia início nem fim. Podia ir-se continuando, continuando, continuando e mesmo assim não chegar a lado algum porque não havia lado algum onde chegar. Não havia um centro, um coração, daquela teia. E, uma vez fechada a porta, deixava de ter fim. Nenhuma direção era certa.
Embora os caminhos e voltas para alcançar as várias salas e regiões estivessem firmemente implantados na memória de Arha, mesmo ela levara consigo um novelo de fio fino, deixando-o desenrolar atrás de si e voltando a enrolá-lo ao segui-lo, de regresso das suas mais longas explorações. Porque se uma das voltas e passagens que era necessário contar lhe escapasse, até ela se perderia. Uma luz não seria de qualquer ajuda, pois não havia pontos de referência. Todos os corredores, todas as entradas e aberturas eram idênticas.
O estranho podia ter andado já milhas e, mesmo assim, não estar a mais de dez metros da porta por onde entrara.
Arha foi à Mansão do Trono e ao templo dos Irmãos-Deuses, bem como à cave por baixo das cozinhas e, escolhendo um momento em que se encontrava sozinha, olhou por todos os orifícios de observação para dentro da fria e espessa escuridão. Quando a noite chegou, gélida e resplandescente de estrelas, foi a certos pontos da Colina e levantou determinadas pedras, espreitou lá para baixo e voltou a deparar a escuridão sem estrelas.
Ele estava ali. Tinha de lá estar. E no entanto escapara-lhe e ia morrer de sede antes que o encontrasse. Teria de enviar Manane a procurá-lo pelo dédalo, logo que estivesse certa da sua morte. Era insuportável pensar nisso. Ajoelhada, sob a luz fria das estrelas, no chão amargo da Colina, sentiu lágrimas de raiva a brotarem-lhe dos olhos.
Voltou para trás, descendo o caminho que conduzia ao templo do Rei-Deus. As colunas, com os seus capitéis esculpidos, surgiam brancas de geada à luz das estrelas, como pilares de osso. Bateu à porta das traseiras e Kossil franqueou-lhe a entrada.
— A que vem a minha senhora? — perguntou a rotunda mulher, com a sua expressão de fria vigilância.
— Sacerdotisa, está um homem dentro do Labirinto.
Kossil foi apanhada desprevenida. Ao menos uma vez, acontecera alguma coisa de que não estava à espera. Limitou-se a ficar ali, ereta e de olhos arregalados. Os seus olhos pareceram inchar um pouco. Pelo espírito de Arha perpassou a idéia de que Kossil se parecia imenso com Penthé a imitar Kossil e um riso louco subiu por ela dentro, foi reprimido e desapareceu.
— Um homem? No Labirinto?
— Sim, um homem. Um estranho. — E logo, como Kossil a encarasse com descrença, acrescentou: — Eu sei reconhecer um homem, embora tenha visto poucos.
Kossil ignorou-lhe a ironia.
— Como é que um homem lá pôde entrar?
— Por feitiçaria, julgo eu. Tem a pele escura, talvez seja das Terras Interiores. Veio para assaltar os Túmulos. Comecei por o encontrar no Subtúmulo, por baixo das próprias Pedras. Quando deu por mim, correu para a entrada do Labirinto, como quem sabe para onde vai. Fechei a porta de ferro depois de ele ter entrado. Fez feitiços mas isso não abriu a porta. De manhã, entrou na teia de corredores. Agora não consigo encontrá-lo.
— Tem alguma luz?
— Tem.
— E água?
— Um cantil pequeno e que já não está cheio.
— A vela já se lhe terá esgotado — ponderou Kossil. — Quatro ou cinco dias. Talvez seis. Depois podes mandar os meus vigilantes lá abaixo para trazerem o corpo. O sangue deve ser derramado em oferta ao Trono e o…
— Não — interrompeu Arha com súbita ferocidade na voz aguda. — Quero encontrá-lo vivo.
Do alto da sua grande estatura, a sacerdotisa olhou para baixo, para a rapariga.
— Porquê?
— Para o fazer… para o fazer levar mais tempo a morrer. Ele cometeu sacrilégio contra Aqueles-que-não-têm-Nome. E profanou com luz o Subtúmulo. Veio para despojar os Túmulos dos seus tesouros. Deve ser punido com alguma coisa pior que ser deixado para morrer, sozinho, dentro de um túnel.
— Sim — pronunciou Kossil como se estivesse a considerar o assunto. — Mas como irá a minha senhora apanhá-lo? Não é uma coisa certa e segura. Da outra maneira não há incerteza nenhuma. Não existe uma câmara cheia de ossos algures no Labirinto? Ossos de homens que lá entraram e não voltaram a sair?… Deixa a sua punição ao cuidado d’Aqueles-que-não-têm-Nome, à sua própria maneira, nos seus próprios caminhos, os caminhos negros do Labirinto. É uma morte bem cruel, à sede.
— Bem sei — retorquiu a rapariga.
Virou costas e saiu para a noite, tapando a cabeça com o capuz contra o vento gelado e silibante. Ah, se sabia…
Fora infantil da parte dela, e estúpido, vir ter com Kossil. Dali não lhe podia vir ajuda. A própria Kossil não sabia nada, a não ser esperar friamente a morte. Ela não entendia. Não via que o homem tinha de ser encontrado. Não deveria ser como com aqueles outros. Ela não podia voltar a suportar tal coisa. Dado que a morte tinha de ser dada, que fosse rápida e à luz do dia. Decerto seria mais apropriado que este ladrão, o primeiro homem em séculos suficientemente corajoso para tentar assaltar os Túmulos, morresse sob o fio da espada. Se ele nem sequer tinha uma alma imortal para voltar a nascer. O seu fantasma arrastar-se-ia gemendo pelos corredores. Não, não se podia deixá-lo a morrer de sede, ali sozinho, na escuridão.
Nessa noite Arha pouco dormiu e o dia foi cheio de rituais e tarefas. Passou a noite seguinte a andar, silenciosa e sem lanterna, de um orifício de observação para outro em todos os escuros edifícios do Lugar e na colina varrida pelo vento. Finalmente dirigiu-se à Casa Pequena para se deitar, duas ou três horas antes do amanhecer, mas nem então conseguiu repousar. No terceiro dia, ao fim da tarde, encaminhou-se sozinha na direção do deserto, para junto do rio que corria agora com baixo caudal devido à seca de Inverno, com gelo entre os juncos da margem. Viera-lhe à memória a recordação de uma vez em que, no Outono, se internara até muito longe no Labirinto, para além do cruzamento dos Seis-Caminhos e, indo sempre por um longo corredor em curva, ouvira por trás da pedra o som de água a correr. Não seria provável que um homem sedento, viesse por ali, lá se deixasse ficar? Mesmo aqui tão longe havia orifícios de observação. Teve de os procurar, mas Thar mostrara-lhe cada um deles, no ano anterior, e voltou a encontrá-los sem muito trabalho. A sua memória de lugar e forma era como a de uma pessoa cega. Mais parecia apalpar o seu caminho até cada sítio oculto do que procurá-lo com a vista. No segundo orifício, o que ficava mais longe dos Túmulos que qualquer outro, quando levantou o capuz para tapar a luz e chegou um olho ao buraco aberto numa superfície plana de rocha, viu abaixo de si o brilho quase extinto da luz enfeitiçada.
Ali estava o estranho, meio fora de vista. O orifício dava precisamente para o fim daquele beco sem saída. Só conseguia ver-lhe as costas, o pescoço dobrado e o braço direito. Estava sentado perto do ponto onde as paredes se encontravam e ia picando as pedras com a sua faca, uma espécie de curta adaga de aço com um punho encastoado de pedras preciosas. A lâmina estava quebrada. A ponta partida jazia no chão diretamente por baixo do orifício de observação. Quebrara-a ao tentar afastar as pedras para chegar à água que ouvia correr, claramente e rumorejante naquela quietude mortal sob a terra, do outro lado da parede impenetrável. Os seus movimentos eram apáticos. Estava muito diferente, depois daquelas três noites e três dias, da figura que ela vira ágil e calma perante a porta de ferro, rindo da sua própria derrota. Continuava igualmente obstinado, mas o poder retirara-se dele. Não dispunha de encantamento que desviasse aquelas pedras. Em vez disso, tinha de usar a sua inútil faca. Mesmo a sua luz de bruxedo era agora pálida e indistinta. Enquanto Arha o observava, a luz vacilou, a cabeça do homem ergueu-se com uma sacudidela e ele deixou cair a adaga. Mas logo, obstinadamente, voltou a apanhá-la e tentou introduzir à força a lâmina entre as pedras.
Estendida no meio dos juncos unidos pelo gelo, inconsciente de onde estava e do que fazia, Arha levou a boca à fria abertura da rocha e pôs as mãos em concha ao redor dos lábios para aprisionar o som.
— Feiticeiro! — chamou. E a sua voz, deslizando por aquela garganta de pedra, foi sibilar friamente no túnel subterrâneo.
O homem sobressaltou-se e pôs-se atabalhoadamente de pé, saindo assim do ângulo de visão dela quando o voltou a procurar. A rapariga voltou a encostar a boca ao orifício e disse:
— Volta ao longo da parede do rio até à segunda volta. Na primeira seguinte voltas à direita, passas uma e outra vez à direita na outra. Nos Seis-Caminhos, mais uma vez à direita. Depois à esquerda, à direita, à esquerda e à direita. Deixa-te ficar aí, na Sala Pintada.
Ao mover-se para voltar a espreitar, Arha deve ter deixado entrar um raio de luz do exterior através do orifício e para dentro do túnel porque, quando olhou, ele estava de novo dentro do seu ângulo de visão e de olhos erguidos para a abertura. O seu rosto, que ela verificava agora estar marcado por cicatrizes, tinha uma expressão tensa e ansiosa. Os lábios estavam secos e enegrecidos, os olhos brilhantes. Ergueu o bordão aproximando cada vez mais a luz dos olhos dela. Assustada, Arha recuou, tapou o orifício com a sua tampa de rocha e o amontoado de pedras para proteção, ergueu-se e voltou rapidamente para o Lugar. Viu que tinha as mãos a tremer e, de vez em quando, enquanto caminhava, era tomada por uma espécie de vertigem. Não sabia o que fazer.
Se o estranho seguisse as indicações que lhe dera, voltaria na direção da porta de ferro, até à sala das pinturas. Não havia ali nada, nem motivo para que ele lá fosse. Mas havia um orifício de observação no teto da Sala Pintada, um bom, que se abria na sala do tesouro do templo dos Deuses Gêmeos. Talvez fosse por isso que ela pensara em lhe dar tais indicações. Não sabia. Por que motivo lhe falara?
Podia descer um pouco de água para ele por um dos orifícios e depois chamá-lo até esse sítio. Assim, poderia manter-se vivo por mais tempo. Enquanto a ela lhe desejasse, claro. Se lhe descesse água e alguma comida de vez em quando, ele podia ir vivendo, vivendo, vagueando pelo Labirinto. E ela podia observá-lo pelos orifícios, e dizer-lhe onde estava a água, e às vezes enganá-lo para ele ir a um sítio em vão, mas teria sempre de ir. Isso havia de o ensinar a não troçar d’Aqueles-que-não-têm-Nome, a não pavonear a sua virilidade idiota na necrópole dos Mortos Imortais!
Mas enquanto ele ali estivesse, a própria Arha nunca seria capaz de entrar no Labirinto. «Porque não?», perguntou a si própria e replicou: — «Porque ele podia escapar-se pela porta de ferro que eu teria de deixar aberta atrás de mim…» Mas não conseguiria ir mais além que o Subtúmulo. A verdade é que ela tinha medo de o enfrentar. Tinha medo do seu poder, das artes que usara para entrar no Subtúmulo, do bruxedo que mantinha viva aquela sua luz. E no entanto, haveria razão para tanto temer tais coisas? Os poderes que imperavam nos lugares da escuridão estavam do lado dela, não dele. Era evidente que ali, no domínio d’Aqueles-que-não-têm-Nome, o estranho não podia fazer muita coisa. Não conseguira abrir a porta de ferro. Não conjurara comida mágica, nem trouxera água através da parede, nem fizera aparecer nenhum monstro demoníaco que deitasse abaixo as paredes, tudo coisas que temera que ele pudesse ser capaz de fazer. Nem conseguira, vagueando durante três dias, dar com o caminho para a porta do Grande Tesouro que certamente procurara. A própria Arha nunca seguira as indicações de Thar até essa câmara, adiando e voltando a adiar essa jornada, por um certo temor respeitoso, uma relutância, uma sensação de que não chegara ainda o momento.
E agora pensava, porque não faria ele essa jornada por ela? O estrangeiro podia olhar tanto quanto lhe desejasse os tesouros dos Túmulos. Pelo bem que lhe podiam fazer! E ela poderia troçar dele, dizer-lhe que comesse o ouro e bebesse os diamantes.
Com a pressa nervosa, febril, que a possuíra durante todos aqueles três dias, correu para o templo dos Deuses Gêmeos, abriu a pequena câmara do tesouro e destapou o orifício de observação, bem oculto no chão.
A Sala Pintada ficava por baixo, mas estava escura como breu. O caminho que o homem tinha de percorrer era muito mais desviado, milhas mais longo talvez. Arha esquecera isso. E por certo o estranho estava cansado, não podia andar depressa. Talvez esquecesse as indicações que lhe dera e virasse onde não devia. Poucas pessoas conseguiam, como ela, reter indicações depois de as ouvir só uma vez. Talvez ele nem sequer entendesse a língua em que ela falava. Pois se assim fosse, que fosse vagueando até cair e morrer no meio da escuridão, o idiota, o estranho, o infiel. Que o seu fantasma gemesse pelas estradas de pedra dos Túmulos de Atuan até que o negrume mesmo isso devorasse…
Na manhã seguinte, muito cedo, após uma noite de pouco sono e maus sonhos, Arha regressou ao orifício de observação no pequeno templo. Olhou para baixo e nada viu. Negrume. Fez descer uma vela acesa numa pequena lanterna de estanho suspensa de uma corrente. Ele estava ali, na Sala Pintada. Viu, para lá do halo de luz da vela, as pernas do estranho, uma mão inerte. Falou para dentro do orifício, que era grande, tanto como todo um dos ladrilhos do soalho, chamando:
— Feiticeiro!
Não houve movimento. Estaria morto? Teria sido aquela toda a força que houvera nele? Sorriu trocistamente. Sentiu o coração bater mais rápido. «Feiticeiro!», bradou, com a voz a retinir na câmara oca por baixo dela. O estranho moveu-se e, lentamente, endireitou o tronco e olhou em volta, confuso. Um pouco depois, ergueu o rosto, pestanejando perante a pequena lanterna que balançava, suspensa do teto. O seu rosto estava terrível de se ver, inchado e escuro como o de uma múmia.
Estendeu a mão para o bordão que jazia no solo junto dele, mas não houve luz alguma que desabrochasse na madeira. Não havia já poder nele.
— Queres ver o tesouro dos Túmulos de Atuan, feiticeiro?
Ele olhou cansadamente para cima, semicerrando os olhos para a luz da lanterna que era tudo o que conseguia ver. Pouco depois, com uma careta que poderia ter-se iniciado como sorriso, assentiu com um único movimento de cabeça.
— Sai desta sala e volta à direita. Segue o primeiro corredor para a esquerda… — e foi desbobinando a longa série de indicações sem fazer uma única pausa. No fim, disse: — Aí vais encontrar o tesouro que te trouxe aqui. E lá, talvez encontres água. O que é que preferias ter agora, feiticeiro? O tesouro ou a água?
Amparando-se ao bordão, o estranho pôs-se de pé. Olhando para cima com olhos que não podiam vê-la, tentou dizer qualquer coisa mas não havia voz na sua garganta seca. Encolheu ligeiramente os ombros e saiu da Sala Pintada.
Ela não lhe daria água alguma. De qualquer maneira, o estranho nunca conseguiria dar com o caminho para a câmara do tesouro. As indicações eram demasiado extensas para ele as poder decorar. E, ainda que lá chegasse, havia o Poço. Ele agora estava na escuridão. Ia perder-se, acabaria por cair, morreria nalgum lado daquelas câmaras estreitas, ocas e secas. E Manane encontrá-lo-ia, arrastá-lo-ia cá para fora. E esse seria o fim. Arha agarrou com ambas as mãos as beiras do orifício de observação e pôs-se a balançar o corpo agachado para trás e para a frente, para trás e para a frente, mordendo o lábio inferior como se tentasse suportar alguma terrível dor. Ela não lhe daria água alguma. Não, não lhe daria água alguma. Dar-lhe-ia morte, morte, morte, morte, morte…
Nessa hora cinzenta da sua vida, Kossil veio ter com ela, penetrando na câmara do tesouro com passos pesados, volumosa nas suas negras roupas de Inverno.
— O homem já está morto?
Arha ergueu a cabeça. Não havia lágrimas nos seus olhos, nada a esconder.
— Julgo que sim — respondeu, levantando-se e sacudindo a poeira das saias. — A sua luz extinguiu-se.
— Pode ser algum truque. Os sem-alma são muito matreiros.
— Esperarei um dia para ter a certeza.
— Sim, ou talvez dois. Depois Duby pode ir lá abaixo e trazê-lo. É mais forte que o velho Manane.
— Mas Manane está ao serviço d’Aqueles-que-não-têm-Nome e Duby não. Há lugares dentro do Labirinto onde Duby não deve entrar e o ladrão está num deles.
— Mas, nesse caso, já está profanado e…
— Com a morte dele lá, voltará a ficar purificado — atalhou Arha. Pela expressão de Kossil, percebeu que devia haver algo de estranho na sua própria expressão. — E este é o meu domínio, sacerdotisa. Tenho de o cuidar tal como os meus Senhores me ordenam. Não preciso de mais lições sobre morte.
O rosto de Kossil pareceu recuar para dentro do capuz negro, como uma tartaruga do deserto a meter a cabeça na carapaça, fria, lenta e amarga.
— Muito bem, senhora.
Separaram-se em frente ao altar dos Irmãos-Deuses. Agora sem pressas, Arha encaminhou-se para a Casa Pequena e chamou Manane para que a acompanhasse. Desde que falara com Kossil, sabia o que havia a fazer.
Ela e Manane subiram juntos a Colina, entraram na Mansão, desceram ao Subtúmulo. Segurando o longo puxador e unindo esforços, abriram a porta de ferro do Labirinto. Aí, acenderam as lanternas e entraram. Com Arha a abrir o caminho, seguiram até à Sala Pintada e daí iniciaram a marcha para a Grande Câmara do Tesouro.
O ladrão não conseguira ir muito longe. Não tinham caminhado ainda quinhentos passos no seu tortuoso percurso quando deram com ele, amarfanhado no chão do estreito corredor, como um monte de farrapos deitados para ali. Antes de tombar, deixara cair o bordão que ficara a uma certa distância. Tinha sangue na boca e os olhos semicerrados.
— Está vivo — disse Manane ajoelhando e colocando a grande mão amarela no pescoço escuro, a sentir as pulsações. — Queres que o estrangule, senhora?
— Não. Quero-o vivo. Pega-o e traga-o contigo.
— Vivo? — exclamou Manane, confundido. — Para quê, senhorazinha?
— Para ser escravo dos Túmulos! Pára de falar e faz o que te mando.
Com o rosto mais melancólico que nunca, Manane obedeceu, lançando sem esforço o corpo do jovem para cima do ombro, como um saco comprido. Assim carregado, seguiu Arha com passos vacilantes. Mas não podia ir muito longe e de uma só vez com semelhante peso. Pararam uma dúzia de vezes no caminho de regresso para Manane recuperar o fôlego. A cada alto, o corredor era o mesmo: as pedras de um amarelo acinzentado, bem unidas e erguendo-se a formar a abóbada, o desigual chão de rocha, o ar parado, morto. Manane grunhindo e ofegando, o estranho totalmente inerte, as duas lanternas ardendo numa cúpula de luz que se ia estreitando e desaparecendo na escuridão do corredor, em ambas as direções. A cada parada, Arha deitava umas gotas da água que trouxera num cantil na boca seca do homem, pouco de cada vez, não fosse a vida, ao retornar, matá-lo.
— Para a Sala das Correntes? — perguntou Manane, enquanto estavam na passagem que conduzia à porta de ferro. E, perante esta pergunta, Arha pensou pela primeira vez para onde deveria levar o prisioneiro. Não sabia.
— Não, para aí, não — respondeu, mais enojada que nunca pela recordação do fumo e do fedor, dos rostos barbudos, sem fala, cegos. E Kossil poderia vir à Sala das Correntes. — Ele, ele tem de ficar no Labirinto, para que não possa recuperar a sua feitiçaria. Onde haverá uma câmara?…
— A Sala Pintada tem porta, fechadura e um orifício de observação, senhora. Se tens a certeza de que ele não consegue abrir portas…
— Ele aqui não tem poderes. Leva-o para lá, Manane.
E assim Manane voltou para trás com a sua carga, percorrendo uma boa metade do caminho já feito, demasiado atarefado e sem fôlego para protestar. Quando finalmente entraram na Sala Pintada, Arha tirou o seu longo manto de Inverno, em lã, e estendeu-o no chão empoeirado.
— Deita-o aí — disse.
Manane olhou a cena com consternada melancolia, arquejando:
— Senhorazinha…
— Eu quero que o homem viva, Manane. E de outra maneira vai morrer de frio. Olha como treme.
— O teu vestuário vai ficar profanado. O vestuário da Sacerdotisa. Ele é um infiel. E um homem — proferiu atrapalhadamente Manane, franzindo os olhos pequeninos como se lhe doesse alguma coisa.
— Então eu mando queimar o manto e tecer outro! Vá lá, Manane!
Perante isto, o eunuco inclinou-se, obediente, e deixou que o prisioneiro lhe caísse do ombro para cima do manto negro, com um som surdo. O homem ficou quieto, como se estivesse morto, mas via-se uma veia latejar-lhe fortemente no pescoço e, de quando em quando, um espasmo fazia-lhe estremecer todo o corpo.
— Devia ser acorrentado — sugeriu Manane.
— Parece-te perigoso?
E Arha soltou uma gargalhada de troça. Mas quando Manane lhe apontou um anel de ferro fixo na rocha e a que o prisioneiro podia ser preso, deixou-o ir buscar uma corrente e argola à Sala das Correntes. Resmungando, o eunuco lá foi pelo corredor, repetindo para si próprio as indicações. Já antes fora à Sala Pintada e voltara, mas nunca sozinho.
Para Arha, à luz da sua única lanterna, as pinturas nas quatro paredes pareciam mover-se, contorcer-se, as toscas figuras humanas com grandes asas pendentes, umas agachadas outras de pé, numa desolação intemporal.
Ajoelhando-se, deixou a água gotejar, muito pouco de cada vez, para dentro da boca do prisioneiro. Finalmente, ele tossiu e as suas mãos ergueram-se debilmente para o cantil. Ela deixou-o beber. Depois ele deitou-se para trás, o rosto todo molhado, sujo de pó e de sangue, e murmurou qualquer coisa, uma ou duas palavras numa língua que ela não conhecia.
Manane voltou por fim, arrastando uma corrente de aros de ferro, um grande cadeado com a respectiva chave e uma cinta de ferro com que rodeou a cintura do homem, fechando-a.
— Não está bem apertada. Ele é capaz de deslizar para fora — resmungou o eunuco, enquanto prendia a extremidade da corrente ao anel fixo na parede.
— Não. Vê!
Agora com menos temor do seu prisioneiro, Arha mostrou que não conseguia introduzir a mão entre a cinta de ferro e as costelas do homem, e acrescentou:
— A não ser que fique em jejum muito mais que quatro dias.
— Senhorazinha — interveio Manane, queixosamente —, não ponho em dúvida, mas… que préstimo tem ele como escravo d’Aqueles-que-não-têm-Nome? Ele é um homem, pequenina.
— E tu és um velho tonto, Manane. Vá, anda daí e pára com tantas preocupações.
O prisioneiro observava-os com os seus olhos brilhantes e fatigados.
— Onde está o bordão dele, Manane? Ah, além. Dê-me cá. Tem magia. Ah, e isto… Isto também levo.
E com um movimento rápido agarrou na corrente de prata que sobressaía da gola da túnica do homem e tirou-lha por cima da cabeça, embora ele tentasse agarrar-lhe os braços e fazê-la parar. Manane deu-lhe um pontapé nas costas. Ela fez a corrente descrever um arco sobre ele, fora do seu alcance.
— Este é que é o teu talismã, feiticeiro? É precioso para ti? Não parece grande coisa. Não podias arranjar nada melhor? Vou tomar conta dele por ti.
E, passando a corrente de prata sobre a sua própria cabeça, escondeu o objeto que dela pendia sob a pesada gola do seu vestido de lã.
— Tu não sabes o que fazer com isso — pronunciou o estranho, em voz muito rouca e pronunciando mal as palavras da língua karguiana, mas de modo suficientemente inteligível.
Manane voltou a dar-lhe um pontapé, o que o levou a emitir um pequeno rouquejo de dor e a fechar os olhos.
— Deixa-o, Manane. Vem.
Saiu do quarto e Manane, sempre resmungando, seguiu-a.
Nessa noite, quando já todas as luzes estavam apagadas, Arha voltou a subir a colina, sozinha. Encheu o seu cantil no poço da câmara atrás do Trono e levou a água, bem como um pão grande e achatado, ázimo, de trigo mourisco, até à Sala Pintada, no Labirinto. Colocou tudo ao alcance do prisioneiro, junto à porta. Ele dormia e nem se moveu. Arha regressou à Casa Pequena e nessa noite também ela dormiu um sono longo e repousado.
Ao princípio da tarde, voltou sozinha ao Labirinto. O pão desaparecera, a água acabara-se e o estranho estava sentado, de costas apoiadas na parede. O seu rosto ainda tinha um aspecto horrível, com sujidade e crostas, mas a expressão era atenta.
De pé, Arha permaneceu do outro lado da câmara, onde ele, acorrentado como estava, não podia de modo algum alcançá-la, e olhou-o. Depois desviou a vista. Mas não havia ali nada para onde olhar especialmente. Algo a impedia de falar. O coração batia-lhe como se estivesse com medo. Mas não havia razão para o temer. O estranho estava à sua mercê.
— É agradável ter luz — pronunciou ele na sua voz suave mas profunda, que a perturbava.
— Qual é o teu nome? — perguntou ela, decisivamente. A sua própria voz, pensou ela, soava desusadamente aguda e fina.
— Bem, na maior parte dos casos, chamam-me Gavião.
— Gavião? É esse o teu nome?
— Não.
— Então qual é o teu nome?
— Isso não te posso dizer. És tu a Grã-Sacerdotisa dos Túmulos?
— Sou.
— Como te chamam?
— Chamam-me Arha.
— Aquela que foi devorada. É isso o que quer dizer, não é? — E os seus olhos escuros observavam-na intensamente. Depois esboçou um ligeiro sorriso. — Qual é o teu nome?
— Não tenho nome. Não me faças perguntas. De onde vens?
— Das Terras Interiores, do Ocidente.
— De Havnor?
Aquele era o único nome de cidade ou ilha das Terras Interiores que ela conhecia.
— Sim, de Havnor.
— Porque vieste até aqui?
— Os Túmulos de Atuan são famosos entre o meu povo.
— Mas tu és um infiel, não és crente.
Ele abanou a cabeça.
— Ah, não, Sacerdotisa. Eu acredito nos poderes da treva! Já em outros lugares me encontrei com os Sem-Nome.
— Que outros lugares?
— No Arquipélago… nas Terras Interiores… há lugares que pertencem aos Velhos Poderes da Terra, tal como este. Mas nenhum tão grande como este. Em nenhum outro lugar têm eles um templo, uma sacerdotisa e um culto como o que recebem aqui.
Trocista, Arha perguntou:
— Então vieste prestar-lhes culto?
— Vim para os roubar — respondeu ele.
Arha estudou-lhe o rosto grave.
— Fanfarrão! — lançou-lhe.
— Sabia que não ia ser fácil.
— Fácil? É impossível. Se não fosses um descrente, saberias isso. Aqueles-que-não-têm-Nome olham pelo que lhes pertence.
— O que eu busco não é deles.
— É teu, claro?
— Meu para o reivindicar.
— Quem és, então? Um deus? Um rei? — E relanceou-o de cima abaixo, ali sentado e preso às correntes, sujo, exausto. — Não passas de um ladrão!
Ele nada disse mas o seu olhar encontrou o dela.
— Não podes olhar para mim! — disse ela em voz aguda.
— Senhora — argumentou ele —, não é minha intenção ofender-te. Sou um estranho e um transgressor. Não conheço os vossos costumes nem a cortesia devida à Sacerdotisa dos Túmulos. Estou à tua mercê e, se te ofendi, peço-te perdão.
Arha permaneceu em silêncio e, num momento, sentiu o sangue subir-lhe às faces, quente e insensato. Mas ele não estava a olhá-la e não a viu corar. Obedecera e desviara dela os escuros olhos.
Por algum tempo, nenhum deles voltou a falar. As figuras pintadas ao seu redor observavam-nos com olhos tristes, cegos.
Arha trouxera um jarro de pedra cheio de água. Os olhos do estranho desviavam-se para aí constantemente e, daí a pouco, ela disse:
— Bebe, se quiseres.
Sem mais delongas, o homem lançou-se para o jarro e, erguendo-o tão facilmente como se fosse uma taça de vinho, bebeu uma longa, muito longa golada. Depois, molhou uma extremidade da manga e, o melhor que lhe foi possível, limpou a sujidade, o sangue coalhado e as teias de aranha do rosto e das mãos. Levou algum tempo a fazer isto, com a rapariga a observá-lo. Depois de terminar, ficou com melhor aspecto, mas o seu banho à gato pusera a descoberto as cicatrizes de um dos lados da cara. Velhas cicatrizes, de há muito curadas, branquejando na sua pele escura, quatro vincos paralelos do olho ao maxilar inferior, quais sulcos deixados por enorme garra.
— O que é isso? — perguntou Arha. — Essa cicatriz.
Ele não respondeu logo.
— Algum dragão? — insistiu ela, tentando troçar. Pois não viera ela ali para escarnecer da sua vítima, para o atormentar com a sua impotência?
— Não. Não foi um dragão.
— Mas então não és, ao menos, um senhor de dragões?
— Não é isso — respondeu ele relutantemente. — Eu sou um senhor de dragões. Mas as cicatrizes foram antes disso. Eu disse-te que me tinha encontrado com os Poderes da Treva antes, noutros lugares da terra. Isto na minha cara é a marca de um dos da raça d’Aqueles-que-não-têm-Nome. Mas esse não é já um sem-nome porque, no fim, eu soube o seu nome.
— Que queres dizer? Que nome?
— Isso não te posso dizer — respondeu ele e sorriu, embora o seu rosto permanecesse grave.
— Tudo isso é disparate, conversa de tolos, sacrilégio. Eles são Aqueles-que-não-têm-Nome! Não sabes de que estás a falar…
— Sei ainda melhor do que tu, Sacerdotisa — contrapôs ele, a voz mais grave ainda. — Olha melhor! — E voltou a cabeça para que ela pudesse ver bem as quatro terríveis marcas que lhe sulcavam a face.
— Não te acredito — disse ela, mas a sua voz tremeu.
— Sacerdotisa — continuou o homem suavemente —, não tens muita idade. Não podes servir os Tenebrosos há muito tempo.
— Mas sirvo. Há muito! Eu sou a Primeira Sacerdotisa, a Renascida. Servi os meus senhores durante mil anos e outros mil anos antes desses. Sou a sua serva e a sua voz e as suas mãos. E sou a sua vingança sobre aqueles que profanam os Túmulos e lançam o olhar sobre o que não é para ser visto! Pára com as tuas mentiras e fanfarronadas. Pois não vês que se eu disser uma palavra que seja, o meu guarda virá e cortar-te-á a cabeça dos ombros? Ou, se me for embora e fechar esta porta, então ninguém aqui virá, nunca, e morrerás aqui, na escuridão, e aqueles que eu sirvo comerão a tua carne e a tua alma e deixarão os teus ossos no meio da poeira?
Tranqüilamente, ele assentiu com um aceno de cabeça. Arha gaguejou e, não encontrando mais nada que dizer, saiu da sala como um pé de vento, fechando a porta atrás de si com estrondo. Deixá-lo pensar que ela não voltaria mais! Deixá-lo suar, no meio da escuridão, deixá-lo praguejar e tremer e tentar lançar os seus nojentos e inúteis bruxedos!
Porém, com os olhos da mente, ela via-o estender-se no chão para dormir, tal como o vira junto à porta de ferro, sereno como um cordeiro num prado banhado pelo sol.
Ela cuspiu na porta trancada, fez o sinal para afastar a profanação e, quase correndo, dirigiu-se para o Subtúmulo.
Enquanto seguia ao longo da parede a caminho do alçapão na Mansão, os seus dedos iam perpassando pelos delicados planos e traçados de rocha, como renda gelada. Percorreu-a uma ânsia de acender a lanterna, para uma vez mais voltar a ver, nem que fosse por um momento, a pedra trabalhada pelo tempo, o maravilhoso brilho das paredes. Cerrou os olhos com toda a força e apressou o passo.