QUARTA PARTE AS CIDADES

I — O ÊXODO

Uns dias depois, parti no «tanque», seguido por três caminhões carregados de material.

Outro levava o combustível que tinha que ser adicionado ao motor da perfuratriz Nos pusemos imediatamente ao trabalho. Como havia imaginado, a bolsa de petróleo não era muito profunda; encontramos aos 83 metros. Enchemos, não sem dificuldade, um caminhão cisterna. No povoado se havia instalado uma refinaria rudimentar, que nos proporcionou um combustível de qualidade razoável. Permaneci ausente dois meses e meio. Vzlik, que havia vindo comigo, fazia grandes progressos na língua francesa, e eu falava com ele com se fosse um compatriota. Como explorador, ele me foi muito útil. Sua resistência era extraordinária e, a toda velocidade, ultrapassava os 89km por hora.

Todas as noites entrava em contato com o Conselho, via rádio. Os planos do barco estavam terminados e estava iniciada a etapa de execução das peças. No povoado levavam uma vida infernal. As incursões das hidras eram continuas, difíceis de rechaçar, e perdemos dezessete homens e uma grande quantidade de gado. Também tínhamos noticias e cartas por meio dos condutores dos caminhões-cisterna, os quais se maldiziam todas as vezes que era preciso regressar à zona terrestre.

Ao cabo de um tempo voltei ao povoado com Vzlik, deixando a exploração sob a direção de um contramestre. Muitas coisas haviam mudado na minha ausência. Nos campos de lavoura, como uma orla, haviam sido construídos refúgios sólidos, com o fim de levar a termo os trabalhos da colheita, sem demasiado risco. A fábrica produzia grandes quantidades de trilhos. Eram um pouco grosseiros, porém bastavam para o que precisávamos. Uma nova via conduzia até a costa. Ali se alçava o estaleiro naval.

A quilha do navio já estava no lugar. Tinha 47 metros de comprimento por 8 de largura. Estranges opinava que poderia andar a 7 ou 8 nós. Perto, haviam construído os depósitos de combustível; no momento tínhamos 40.000 litros. No meio de uma atividade febril, passaram-se oito meses.

O lançamento, após terminado o casco do navio, foi feito em boas condições. Tiveram que terminar as instalações interiores e construir um dique de carga. Fizemos os primeiros testes quando chegava a seu término o segundo ano de nossa estadia em Tellus. O navio se portava bem, porem andava com lentidão, pois não passava do seis nós na velocidade de cruzeiro.

Michel e Breffort realizaram uma rápida incursão na região do cobalto, levando sementes de gramíneas terrestres, com a finalidade de que nosso gado, ao chegar, encontrasse pastos convenientes. Levaram também Vzlik, encarregado de negociar com sua tribo. Devia aguardar-nos na confluência do Dron e do Dordogne.

Antes de partir, ele nos fez uma revelação interessante: um rio profundo, embora estreito, que se unia ao Dron, passava a trinta escassos quilômetros do local que havíamos escolhido. Michel comprovou que era navegável até cinquenta quilômetros do mesmo.

Construímos também uma barcaça rebocável.

Vinte e nove meses terrestres, depois da nossa chegada, o primeiro comboio tomou a rota do Sul. O barco transportava setenta e cinco homens, armas, ferramentas, placas de alumínio, aço e trilhos. Eu o dirigia, ajudado por Michel e Martina. A barcaça carregava uma locomotiva, uma grua desmontável e combustível. Navegamos com prudência, a maior parte do tempo usando a sonda. Às vezes tivemos que nos afastarmos da costa. O mar estava calmo.

Eu me colocava de preferência na proa ou sobre-a ponte. A água era muito verde.

Ao redor do barco navegavam formas imprecisas. Eu estava intranquilo, ignorando que classe de monstros podia ocultar este oceano. «O Conquistador» — assim se chamava nosso barco — estava armado com uma metralhadora de 20mm e outra de 7mm. Porém me senti aliviado quando penetramos no estuário do Dordogne.

Entramos no rio a pequena velocidade. Foi bom que procedêssemos assim. Apesar da débil corrente, ficamos estancados por duas vezes no estuário, com maré baixa, por sorte.

Com exceção de Michel, Martina e eu mesmo, nenhum membro da tripulação conhecia outra fauna teluriana além das hidras. Sua admiração não tinha limites. Uma noite, um tigressauro conseguiu saltar da margem sobre a ponte do barco, ferindo dois homens antes de ser derrubado por uma rajada de metralhadora.

Quando chegamos a uns quilômetros da confluência do Dron, das ervas secas da margem saíram dois Sswis a toda velocidade. Minutos mais tarde vimos elevarem-se três colunas de fumo; era o sinal combinado com Vzlik.

Ele nos aguardava sozinho no extremo da língua de terra. Cem metros atrás estavam, formando um grupo triangular, uns cinquenta Sswis de sua raça.

— Salve. — disse com sua voz sibilante — Salve, Vzlik. — respondi.

O Conquistador se imobilizou, porém sem lançar âncoras, pois uma traição era sempre possível.

— Sobe a bordo. — continuei.

Ele lançou-se na água e trepou pela escada de cordas.

Naquele momento, o mecânico deu uma olhada no «olho de boi» da sala de máquinas.

— Então, é com esses cavalheiros que vamos viver? — disse.

Vzlik voltou-se e respondeu: — Verá que não são maus.

Me seria impossível descrever o estupor que se pintou na cara do mecânico.

— Chifres do diabo! Ele fala francês!

Sua admiração me surpreendeu. Depois recordei que a maior parte dos habitantes do povoado somente haviam entrevisto o Sswis, que durante sua estadia esteve quase sempre comigo em expedições.

Michel e Martina vieram ter conosco.

— Então, Vzlik, — disse ela — qual é a resposta à nossa proposta?

— Nós escolhemos a paz. Cedemos a vocês, em plena propriedade, o Monte-Sinal, que nós chamamos Nssa, e o território compreendido entre o Vecera, o Dordogne e o Dron, até os Montes Desconhecidos, a que chamamos Bsser, salvo o direito de passagem permanente para nós. Em contrapartida, vocês se comprometerão a fornecernos ferro, em quantidade suficiente para nossas armas, e a prestar-nos ajuda contra os Sswis negros, — os « Sslwips « — os trigressauros e os Golias. Vocês desfrutarão de direito de passagem sobre nosso território, como também para perfurá-lo; mas a caça será proibida, se não mediar acordo com o Conselho das tribos.

— Aceitamos. Disse — Quanto ao ferro, necessitamos de tempo para fabricá-lo.

— Já sabemos. Expliquei aos Sswis como o exploram. O Conselho dos chefes quer vê-los.

— De acordo. Vamos.

— Pusemos uma piroga na água. Eu desci com Michel e Vzlik. Martina ficou sobre a ponte e, discretamente, aproximou-se da metralhadora.

— Be quiet but careful (fica tranquila, porém alerta) — disse em mau inglês, para que Vzlik não pudesse entender.

Com quatro golpes de remos chegamos à margem. Doze Sswis haviam se adiantado e nos observavam. Para nossos olhos terrestres eles se pareciam extraordinariamente entre si, e se Vzlik se tivesse misturado entre eles teríamos sido incapazes de reconhecê-lo. Depois nos habituamos ao seu aspecto, e agora os distinguimos com facilidade, embora, para dizer a verdade, são muito mais semelhantes entre si que nós.

— Vzlik, em quatro palavras, comunicou-lhes nossa aceitação das suas condições.

Responderam dando-nos boas vindas, em termos concisos, muito diferente da linguagem florida que as novelas de aventuras da minha infância atribuíam aos selvagens terrestres. Então entreguei a cada um, com presente de amizade, uma excelente faca de aço, semelhante à que Vzlik possuía. Suas palavras de agradecimento demonstraram que haviam gostado do presente. Porém seus rostos permaneceram impassíveis.

Voltamos ao barco com Vzlik e lentamente começamos a subir a corrente. Chegamos à grande curva do «Ille», — assim havia sido batizado o novo rio — além do qual a navegação não era possível, pela existência de rápidas correntes. Era uma grande extensão de água, de uma largura superior a duzentos metros. Na margem norte se abria uma pequena baia, como um porto. Decidi efetuar ali o desembarque.

Ao cair da noite lançamos âncora.

Dedicamos o dia seguinte a derrubar árvores, destinadas à construção do embarcadouro.

Terminamos oito dias depois. Instalamos os trilhos e foi iniciada a delicada manobra de colocação de uma grua que, embora estivesse desmontada, era muito pesada. Cerca de meio-dia nos sobreveio um trágico acidente: um jovem operário de vinte e cinco anos, Leon Bellieres, foi esmagado por um andaime. Como tínhamos pressa, o enterramos imediatamente.

Em sua memória, adotamos o nome de «Porto Leon» Montada a grua, o trabalho foi mais fácil. Penosamente, desembarcamos a pequena locomotiva e os três vagões. O resto foi mais simples.

O Conquistador retornou, sobe o comando de Michel. Ficaram ali sessenta pessoas e começamos a edificação de um fortim de madeira para estar ao abrigo dos Tigressauros, como também de uma possível traição dos Sswis. Uma emissora de rádio nos mantinha em contato com o Conselho. Depois edificamos uns armazens, cobertos com placas de duralumínio, então os enchemos com todo o material que havíamos levado. Enquanto isso, uma equipe havia começado os trabalhos da via férrea, de cinquenta quilômetros, que conduzia a Cobalt-City.

Estávamos no quilômetro quatro, e já havíamos utilizado toda a reserva de trilhos, quando chegou o Conquistador com um novo carregamento, vinte e três dias mais tarde. Transportava grandes quantidades de combustível, trilhos, provisões e uma pequena escavadora. Levavaram mais cinquenta homens de reforço.

Na terceira viagem desembarcaram as primeiras mulheres e crianças.

No povoado a situação havia melhorado um pouco, porém as hidras continuavam aparecendo todos os dias.

Nas viagens seguintes nos mandaram gado bovino e caprino, aos quais encerramos em um terreno valado, semeado de ervas terrestres. Todas as noites, os conduzíamos para dentro do fortim, pois os trigressauros enxameavam, e antes que perdesse a fixação de visitar-nos, tive que matar cinco ou seis deles.

Conforme o pessoal ia chegando, novas cabanas iam sendo construídas Cada família dispunha de dois cômodos, sendo que os solteiros — que com certeza estavam diminuindo — dormiam em comum.

Porto Leon ia tomando o aspecto de uma povoação ao estilo do Oeste americano, sem os «saloons» e os revólveres. A moral havia aumentado; todos estavam contentes de terem se livrado da ameaça das hidras.

A via férrea ia se estendendo. Alcançou o quilômetro 20, depois o 30 e o 40. Na final, onde trabalhavam, estabeleceu-se um povoado provisório. Chegou finalmente ao vale, onde deveria ser edificada nossa capital. No povoado «terrestre» não restavam mais que cinquenta homens, encarregados de desmontar a fábrica, sob a direção dos engenheiros. Meu tio e Menard estavam decididos a permanecer até a saída do último barco: no momento não havia forma de desmontar o Observatório. Ficaria fechado com o maior cuidado, à espera de que nossos meios fossem mais potentes.

De toda forma, devia seguir uma lente de 50cm e um telescópio de 1,8m. Transportar o grande refletor de 5,50m estava acima das nossas forças.

Guardo uma recordação deliciosa deste primeiro estabelecimento. Nossas casas, metade obra, metade duralumínio, se esparramavam em desordem pelas ladeiras do vale. Os animais abundavam, porém não havia ali nem Tigressauros nem Golias. As formas que víamos todos os dias eram herbívoros ou pequenas feras, análogas às nossas raposas ou nossos gatos. Os gatos, aliás, se multiplicaram e nos foram muito úteis, destruindo os pequenos roedores que ameaçavam nossas colheitas. Um penhasco calcário nos forneceu cimento.

Em primeiro lugar, construímos a fábrica metalúrgica, a trezentos metros da mina de hulha. À medida que as máquinas iam chegando, iam sendo colocadas em seus lugares.

Na época em que a fábrica começou a funcionar, me casei com Martina. Foi uma cerimônia muito simples. Não tivemos a honra de ser o primeiro casal que se casara em Tellus: Beltaire e Ida haviam se casado em Cobalt dois meses antes de nós. Porém como se tratava, segunda a expressão de Vzlik, de um «matrimônio de chefes», os Sswis mandaram uma delegação carregada de presentes. Como Vzlik lhes havia explicado que eu apreciava as pedras de uma maneira especial, me trouxeram um monte, e entre elas uns cristais variados e muito belos e excelente minério de cobre.

Este último me interessou particularmente, face ao que perguntei o local onde havia sido encontrado. Provinha das colinas situadas ao Sudeste do Monte Tenebroso, onde abundavam.

Fazia tempo que eu desejava visitar a tribo de Vzlik, então aproveitei a ocasião e partimos em «viagem de bodas» no caminhão blindado.

Voltei a passar pela ponte que havíamos estendido sobre o Vecera, e que os Sswis havia respeitado e utilizavam. À noite chagamos às cavernas. Abriam-se sobre um alto penhasco, orientado para o Oeste, sobre o pico de um declive abrupto. Abaixo corria uma pequeno riacho.

Os Sswis, avisados por Vzlik, nos aguardavam. Fomos conduzidos à presença do chefe, um Sswis muito velho, cuja pele descolorida era de um cinza esverdeado. Estava recostado sobre uma grossa liteira de ervas secas, em uma gruta cujas paredes estavam cobertas de notáveis pinturas, que representavam Golias e Tigressauros atravessados por flechas. Pareciam ser utilizadas para rituais mágicos. Tivemos a satisfação de nos ver representados com o caminhão, em forma bastante parecida; porém, neste caso,as flechas rituais haviam sido cuidadosamente apagadas. Fiquei surpreendido com a limpeza dessas residências trogloditas. As aberturas estavam quase inteiramente fechadas por peles esticadas sobre armações de madeira. Lâmpadas de azeite, um azeite vegetal, iluminavam as grutas.

— Sua civilização é notavelmente humana. — disse Martina.

— Sim. Tenho a impressão de que entre sua forma de vida e as de nossos antepassados paleolíticos não deve existir outra diferença além da sua limpeza.

O velho Sliouk — tal era o nome do chefe — levantou-se ao ver-nos. Nos deu boas vindas, por meio de Vzlik, Atrás dele, contra a parede rochosa, estavam suas armas: um grande arco, flechas, lanças. Salvo um grande colar de pedras reluzentes, estava completamente nu. Eu lhe dei uma faca, umas pontas de flecha de aço e um espelho.

Ficou fascinado por este último e, durante o banquete que se seguiu, — então já sabíamos que podíamos comer a carne teluriana — não cessou de manipulá-lo.

Sua filha estava presente. Os Sswis são muito corteses com suas mulheres e, para um povo primitivo, as tratam muito bem. São menores que os machos, gordinhas e de pele mais clara. Tive a impressão de que Vzlik e Ssonai se entendiam muito bem, o que me alegrou, pois se Vzlik, após a morte do seu sogro chegasse a ser chefe da tribo, nossa posição estaria reforçada.

Permanecemos oito dias com eles. Tive longas conversas com Vzlik e lhe perguntei muitas coisas que até aquele momento ignorava. Pude assim fazer uma ideia da sua organização social.

Os Sswis são monógamos, ao contrário dos seus inimigos, os Sswis negros, ou Sslwips. A tribo compreendia quatros clãs, cada um deles governado por um chefe secundário, que não se uniam estreitamente mais que em tempos de guerra ou caça.

A tribo conta com oito mil indivíduos, compreendidas aí as «mulheres» e as crianças.

Em um grau mais elevado, onze destas tribos estavam confederadas, porém sua solidariedade se dava em função de uma grave ameaça. Além da caça, os Sswis têm como recurso alimentar um cereal que «cultivam», se é que podemos empregar esta palavra para designar um trabalho que consiste em semear e colher duas vezes ao ano. Conhecem a arte de defumar a carne, com o que podem fazer provisões.

Os Sswis estão rodeados, exceto pelo Norte, por seus inimigos negros. Outras destas tribos vivem mais distantes lá pelo Sul, onde a lenda situa sua origem.

São ovíparos. As fêmeas põem dois ovos por ano, do tamanho de um ovo de avestruz terrestre. Os filhos aparecem depois de trinta dias de incubação e são capazes de se alimentarem imediatamente Os laços familiares são muito relativos, a partir do segundo grau de parentesco. Os Sswis vivem bastante tempo, entre 90 e 110 anos terrestres, quando não morrem em combate, o que não é frequente. Geralmente são de uma bravura extraordinária e muito agressivos. Respeitam as alianças, matam os inimigos só por o serem. O roubo dentro da tribo é desconhecido. Fora é outro assunto!

Quase todos possuem uma inteligência semelhante à dos homens e estão bem dotados para o progresso.

Me dou conta de que estou divagando ao falar-vos de coisas que todos vós conheceis.

Já que hoje muitos deles se integraram em nossa vida, até o extremo de trabalharem como operários ou matemáticos!

Na volta, em lugar de regressar diretamente, passamos por Porto Leon. O Conquistador acabava de chegar da sua última viagem, carregado de telhas, ladrilhos, e o telescópio de 1,80m. Trazia também meu tio e Menard.

II — O AVIÃO

Passou-se mais um ano, segundo a medida terrestre. Desde nossa chegada a Tellus haviam transcorrido quatro de nossos antigos anos. Segundo os cálculos de Menard, isto correspondia a três anos telurianos.

Cobalt-City tomava forma. Já era uma população animada com mais de 2.000 habitantes, com sua central telefônica, sua fundição, sua fábrica metalúrgica, rodeada de campos de lavoura onde cresciam o trigo e o Skin, o cereal Sswis. Possuía um pequeno hospital, onde Massacre formava seus alunos, uma escola e, inclusive, um embrião de Universidade, na qual eu ensinava por cinco horas semanais. O gado pastava pelas colinas vizinhas, nas quais a vegetação terrestre aumentava dia a dia entre as ervas telurianas. As minas de carvão, de ferro e de outros metais eram exploradas de acordo com nossas necessidades. Uma via férrea nos comunicava com o casario de «Alumina», a 55 quilômetros ao Norte, onde quarenta homens formavam o pessoal da mina de bauxita. Porto Leon abrigava 600 habitantes.

Animado por meus projetos de exploração, mandei construir um estaleiro naval, onde estava sendo terminado um navio mais rápido que o Conquistador. O primeiro esforço dos engenheiros havia sido para fabricar ferramentas com o material básico que possuíamos.

Cada três semanas, partiam dois caminhões cisterna para os poços de petróleo, por uma autopista de 700 quilômetros. O poço se esgotava rapidamente e chegava o momento de fazer regressar os sessenta homens que ali permaneciam. Tínhamos dezenas de milhares de litros de combustível em reserva e já havia encontrado outros pontos petrolíferos apenas a 100 quilômetros.

Em resumo: se de vez em quando não encontrássemos os Sswis, que passeavam por nossas ruas, e sem os dois sois e as três luas, poderíamos afirmar que estávamos de regresso à Terra.

Foi então que aconteceu o feito mais importante da nossa história, depois da nossa projeção sobre Tellus.

Eu havia me deitado tarde, passando a limpo as minhas notas e desenhando planos geológicos rudimentares, em meu gabinete de trabalho, que ocupava o piso inferior da nossa pequena casa. Antes de subir para dormir, fui até o aparelho de radio e chamei o contramestre da guarda dos poços de petróleo pra dar-lhe instruções. Depois esqueci de desligar o receptor.

Ao cabo de meia hora, Martina me despertou.

— Escuta, estão falando lá em baixo!

— Deve ser do lado de fora.

Fui até a janela e abri. Tudo estava escuro e a rua deserta. O povoado dormia e todas as luzes estavam apagada. Somente o farol da torre de guarda varria o espaço, iluminando as casas.

— Você deve ter sonhado! — disse, e me deitei de novo.

— Escuta, falam novamente.

Prestei atenção e, com efeito, pude ouvir vagamente umas vozes. Logo, por um hábito terrestre: — Devo ter deixado o radio ligado. — disse meio dormindo. E imediatamente: — Santo céu! Quem poderia ser a estas horas?

Desci de um salto. O receptor, ligado, estava mudo. Pela janela via a noite cravejada de estrelas. As luzes se haviam ocultado.

De súbito, uma voz saltou do aparelho: — «Here is W.A. Calling New Washington… Here is W.A. Calling New washington…» (Aqui é W.A. Chamando New Washington). Houve um silêncio e… «Here is W.A…»

O som era muito claro. A estação emissora devia estar muito próxima.

— Escuta! — disse Martina de novo.

Eu estava imóvel, quase sem respirar. Ouvia-se um distante ruido de motor.

— Um avião?

Precipitei-me para a janela. Um ponto luminoso se movimentava pelas estrelas.

Voltei ao aparelho de radio, monitorei febrilmente com os controles, procurando a longitude da onda de recepção do avião.

— «W.A. Who are you? — disse em meu pobre inglês Finalmente encontrei a longitude de onda correta.

— «W.A. Who are you? Here New France!» (W.A. Quem é voce? Aqui nova França) Pude ouvir uma exclamação abafada, e uma voz me respondeu em excelente francês — Aqui W.A, avião americano. Onde estão?

— Abaixo de vocês Acenderei uma lâmpada no exterior.

O avião nos sobrevoava.

— Vejo sua luz. É impossível aterrizar à noite. Voltaremos mais tarde. Quantos sois?

— Uns quatro mil. Todos franceses. E vocês?

— No avião, sete. Em New Washington, onze mil: americanos, franco-canadenses e noruegueses. Conserve sua longitude de onda. Voltaremos a chamá-los.

— Quando decolaram?

— Há dez horas. Estamos explorando. Pela manhã voltaremos. Agora vamos para o Sul. Cessem suas chamadas, porém deixem um homem de guarda na escuta. Vamos chamar New Washington Estamos muito contentes de saber que não estamos sós.

Até breve…

Depois repetiu a sintonia: «Here is W.A…. Seguiu-se uma longa conversação que apenas compreendi. Anunciavam nosso descobrimento Não pudemos aguentar. Fomos despertar meu irmão, que morava, com Louis e Breffort, em uma casa a cem metros da nossa, e depois meu tio, Michel, Menard e todos os dirigentes. Finalmente, a efervescência acudiu a todas as partes, e a notícia por telefone chegou a Porto-Leon, com a ordem de ativar a construção do Temerário.

Afinal amanheceu. Fizemos os preparativos para receber dignamente os aviadores.

Balizamos um vasto prado, de solo duro, com uma seta branca que indicava a direção do vento. Depois voltei à emissora. Martina havia cuidado da vigilância.

— Nada?

— Nada.

— Não obstante, não foi um sonho!

Aguardamos durante duas horas, rodeados de uma multidão que se apertava sobre minha mesa de trabalho, meu móvel «tabu», que nem Matina tocava muitas vezes.

Na Câmara Municipal, onde havia outro rádio, o mesmo espetáculo.

De repente: — W.A. Chamando Nova França! W.A. Chamando Nova França!

— Aqui Nova França, na escuta…

— Estamos voando acima de terra equatorial, Dois dos quatro motores falharam.

Não podemos voltar. Impossível comunicarmo-nos com New Washington. Ouvimos muito mal. No caso que perecermos, eis aqui a posição de New Washington com relação à vossa: Latitude 41º 32' Norte. Longitude 62º 12' Oeste.

— Qual vossa posição atual?

— Em relação à vossa, uns 8 graus latitude Norte e 12 graus de longitude.

— Estão armados?

— Sim. Metralhadoras de bordo e fuzis.

— Tentem aterrizar Iremos em vosso socorro. Para chegar até aí, demoraremos — calculei rapidamente — uns vinte ou vinte e cinco dias. Uns animais que se parecem com os rinocerontes são comestíveis. Não comam frutos sem conhecê-los!

— Racionando, temos víveres para trinta dias. Vamos aterrizar, há outro motor falhando.

— Cuidado com as hidras se as virem! Não deixem que se aproximem!

— O que são hidras?

— Uma espécie de polvo voador. Vocês as reconhecerão facilmente. Disparem imediatamente se as virem.

— Entendido. Desceremos na planície, entre umas montanhas muito altas e o mar.

Até breve!…

A voz se calou. Aguardamos angustiados. A muitos quilômetros de distância, sete homens lutavam por sua vida.

Nossa espera durou uma hora; depois a voz continuou.

— Nós conseguimos. O avião ficou parcialmente destruído, porém todos estamos a salvo. Desgraçadamente nos vimos obrigados a esvaziar quase todo o combustível e nosso acumuladores estão quase descarregados. Emitiremos espaçadamente para orientá-los.

— E nós os avisaremos quando partirmos. Irradiaremos a cada vinte e quatro horas terrestres Aqui, agora, são 9:37h. Ânimo e até breve!

Segui imediatamente para Porto Leon.

O Temerário realizou as primeiras provas naquele mesmo dia. Era um barco de pequena dimensão, de 48 metros de comprimento por 5 de largura, que deslocava umas 140 toneladas. Dois motores diesel da antiga fábrica, muito potentes, lhe permitiam uma velocidade máxima de 25 nós. A 12 nós podia percorrer mais de 10.000 milhas. Levando em conta nossos meios limitados, era uma obra de mestre. Estava armado com uma metralhadora de 20mm e, uma vez que as munições eram relativamente escassas, com uma artilharia de lança-granadas. Estas armas haviam sido aperfeiçoadas desde os tempos heroicos da batalha das hidras. À proa e à popa, quatro tubos, aos pares, lançavam a até cinco quilômetros, com uma precisão aceitável, projéteis de 12 quilos. A bombordo e a estibordo, canhões de menor calibre, que alcançavam até sete quilômetros.

Feitos os ensaios com rapidez, — ida e volta até a desembocadura do Dordogne — mandei embarcar víveres e munições. Partimos no dia seguinte. A tripulação se compunha de doze homens. Michel como navegador e Byron como mecânico. Dentre aqueles, cinco haviam pertencido à marinha. Por minha parte, eu havia cruzado o Mediterrâneo três vezes com um pequeno veleiro de um amigo meu, e tinha algumas rudimentares noções de navegação. Levávamos uma camioneta equipada — uma miniatura do nosso caminhão-tanque — e um emissor de radio.

A pequena velocidade, descemos pelo rio. Ao sair do estuário lancei uma chamada.

Responderam brevemente do avião. Naquele momento o Temerário começou a balançar; acabávamos de entrar no oceano.

Ao cabo de uma hora, ordenei por a proa ao Sul. A costa era plana e povoada. Segundo os poucos Sswis que conseguiram regressar do território inimigo, tratava-se de uma imensa planície que se estendia até o interior, até uma elevada cadeia de montanhas, invisíveis a partir do mar.

Eu estava na ponte com Michel. O barco andava a 12 nós, os motores giravam plenamente, o mar estava tranquilo. Como não tinha outra coisa em que ocupar-me, tirei um pouco de água do mar e a analisei em um pequeno laboratório. Era muito rica em cloretos. Reduzindo momentaneamente a marcha, pusemos uma rede de feitio grosseiro a reboque. Capturou toda uma fauna, da qual certos elementos recordavam os peixes terrestres e, em troca, outros eram completamente distintos.

Naquela noite o sol se ocultou com uma demonstração de tons púrpuras. Por causa da maior espessura da atmosfera de Tellus, os pores de sol são mais coloridos que os da Terra, embora Helios seja mais azulado que nosso velho sol.

À noite reduzimos nossa velocidade para seis nós, apesar de uma brilhante lua.

Não me interessava jogar o Temerário contra um escolho desconhecido.

Quando amanheceu, havíamos percorrido 450 quilômetros. A Leste, a costa continuava sendo plana. Cerca de meio-dia, nos encontramos ante um inextrincável dédalo de ilhotas e bancos de areia e, para não nos aventurarmos em passagens incertas, ordenei entrar mar adentro e perdemos a terra de vista. Estabelecemos um turno de comando: eu fiquei com o primeiro, Michel com o segundo e nosso chefe de tripulação, montanhês de origem, porém que havia servido quinze anos na frota, com o terceiro.

Quatro dias depois sem haver desviado a proa para o Sul, avistamos terra, que se não se tratasse de uma ilha, flexionava para o Sudoeste. Nos encontrávamos aos 32º de latitude Norte. A temperatura era morna, porém suportável. Pela noite do mesmo dia vimos à distância uma forma enorme e negra brincando na água. Por precaução mandei carregar as armas e preparei os homens para fazer fogo, porém a forma se distanciou sem inquietar-nos. Entrei em comunicação com Cobalt-City e soube que, apesar de todos seus esforços, não haviam conseguido falar com New-Washington.

Nos distanciamos novamente da costa.

Uma manhã, quando ia dar ordem de virar para o Leste, o vigia sinalizou uma costa à frente. Decidi fazer um reconhecimento. Avançando com a sonda, chegamos a duzentos metros de uma praia desolada. A posição, verificada por Michel, foi de 19º 3' 44'' de latitude Norte e 28º 22' de longitude Oeste, com relação a Cobalt-City. Parecia tratar-se do cabo de uma ilha. Abandonando o anterior projeto de desembarcar, tomamos o rumo Sudeste. Uma mensagem enviada para o avião ficou, a principio, sem resposta. Duas horas depois, nos chamaram e nos disseram que acabavam de rechaçar uma ataque das hidras, que não eram verdes e sim escuras e de um tamanho enorme; de doze a quinze metros de comprimento.

Sem mais incidentes além de um pouco de mar grosso, que o Temerário enfrentou sem dificuldade, chegamos à vista do continente onde havia caído o avião, continente que, segundo disseram os aviadores, estava separado do de Cobalt-City por um estreito. Para encontrar-lo foi mister sondar no rumo Norte. Depois de haver contornado uma enorme península, percorremos a costa abaixo dos 10 graus de latitude. A temperatura era insuportável, e tivemos que usar grandes chapéus e regar com frequência a ponte metálica. As vezes o mar se cobria de uma bruma morna e sufocante, mais penosa ainda que a insolação de Helios.

Finalmente, em uma noite chegamos a um ponto da costa que, segundo nossos cálculos, nos deixava mais perto do avião. Desanimados, examinamos a margem. Era um verdadeiro labirinto. As árvores cresciam até o mar, sobre uma praia lamacenta cheia de vidas indistintas e que desprendia um mau cheiro terrível. Me perguntei com ansiedade como faríamos para desembarcar. Em segundo plano, distante, uma gigantesca cadeia lançava seus picos a mais de 15.000 metros.

Perscrutamos a costa em busca de um lugar mais hospitaleiro. Alguns quilômetros mais adiante encontramos um estuário de um rio e por ele penetramos, apesar da violência da corrente.

Usando a sonda, subimos 90 quilômetros. Aqui, uns bancos de limo nos detiveram.

Todas nossas armas estavam carregadas e a vigilância duplicada. As margens, sempre encharcadas, alimentavam uma vida imunda, quase protozoótica Estranhas massas de uma geleia viva, animada de um movimento ameboide, subiam pelo limo, com coloridos de cinza ou de verde ácido. O ar estava saturado de um odor putrefato, o termômetro marcava 48 graus à sombra. Chegada a noite, toda a margem se iluminou de fosforescências moveis de diversas cores.

Depois de muito procurar, encontramos na margem direita um banco de rochas, que pareciam nuas e desprovidas de seres vivos. Nos acercamos com o Temerário, manobrando com as duas hélices. Os cabos foram amarados com piquetes de ferro, plantados naquela terra macia e esquisita. Foi colocada a ponte de madeira, o que permitiu à camionete ganhar terra.

— Quem vai? — perguntou Michel — Tu, eu e quem mais?

— Tu não. É necessário que fique aqui alguem capaz de conduzir o Temerário.

— Então é a tua vez de ficar. És o único geólogo; em troca, há um monte de astrônomos.

— Eu sou o chefe, e te ordeno que fiques. Irás na segunda viagem. Fala com o avião da ponte. Em que direção se encontra ele e a que distância?

— Uns trinta quilômetros a Sudoeste.

Quando souberam que estávamos tão perto, gritaram de alegria: — Não tínhamos mais que dois litros de água potável e acabaram-se os comprimidos para esterilizar mais.

— Imagino que estaremos ai antes de duas horas. — respondi — Preparem-se. Se têm combustível, acendam um fogo. O fumo nos guiará.

Sentei-me ao volante. Andrés Etienne, um marinheiro, ocupou-se da torre armada com dois lança-granadas. Um pouco emocionado abracei Michel, cumprimentei os outros e partimos.

III — A MORTE VIOLETA

Com o olhar posto na bússola, tomei a direção Sudoeste. O solo rochoso se prolongou durante dois ou três quilômetros; depois o terreno tornou-se macio. Etienne teve que descer para colocar as correntes nos pneus. Apesar da minha proibição, quis colher uma espécie de ameba de quarenta centímetros de diâmetro e ficou com a mão queimada como por um ácido. Os animais pululavam. Alguns deles alcançavam um metro de largura. Travavam uma feroz luta em «ralenti», em que o vencido terminava submetido pelos pseudópodes do vencedor, e digerido.

Avançávamos com dificuldade. Em certos trechos, a água jorrava sob as rodas.

Afortunadamente, os vegetais eram escassos e flexíveis, e se curvavam sob o carro.

Um fedor de ovos podres, proveniente da decomposição destas ervas, e talvez também dos animais gelatinosos, nos incomodava terrivelmente. Afinal, duas horas depois da nossa partida, avistamos à distância uma coluna de fumo.

O sol ascendeu, e os repugnantes seres flutuantes desapareceram. A terra endureceu; aumentamos a velocidade e pudemos tirar as correntes. À distância percebi a silhueta de um avião com as asas destroçadas.

Quando nos viram, os americanos, esquecendo-se de toda prudência, correram para nós. Com a exceção de um deles, vestido de aviador, todos usavam o uniforme da «U.S Navy». Abri a porta traseira e os fiz entrar.

A camionete ficou apertada com nove pessoas. Quase me desmontaram o braço com os agradecimentos. Tirando uma garrafa debaixo do meu assento, ofereci-lhes conhaque com água, talvez não muito fresca, porém foi muito apreciado.

O mais velho, que devia contar uns trinta e cinco anos, o comandante, fez as apresentações.

Começou com uma espécie de gigante ruivo, que me passava por uma cabeça: o capitão Elliot Smith. Depois um homem moreno rechonchudo: capitão Donald Brewster. Um ruivo magricela se chamava Donald O'Hara, e era tenente. O engenheiro Robertt Wilkins, de trinta anos, tinha o cabelo castanho, olhos cor de avelã e um amplo tórax. O sargento John Pardy, gordo, era canadense. Finalmente, indicou o homem vestido de aviador: — Uma surpresa: Andrés Biraben, geógrafo, vosso compatriota.

— Curioso! Ouvi falar muito de voce na Terra. — disse.

— E finalmente, eu mesmo, Arthur Jeans.

Apresentei meu mecânico e acrescentei: — Senhores, temos de tratar de salvar tudo o que for possível do seu avião e seguirmos.

Voltaram a ver as hidras gigantes?

— Não. — respondeu Jeans — Vocês poderão ver os restos das que abatemos no outro lado do avião.

Chegamos ali na camionete. Enormes massas acabavam de apodrecer.

— Esse animais também deram o que fazer a vocês? — perguntou Biraben.

— Sim! Porém as nossas eram verdes e menores, o que não as impedia de serem perigosas. Seu avião é um bom refugio?

— Sim.

— Neste caso, vou levar quatro de vocês comigo. Os outros três ficam aqui com meu marinheiro. Desmontem as armas de bordo. Ainda têm munição?

— Estamos muito bem providos.

— Neste caso, as levaremos em uma terceira viagem.

Jeans designou Smith, Brewster, Biraben e Wilkins. Os demais se encerraram no avião.

Pus Smith ao meu lado. Eu falava mal o inglês, porém falava bem o alemão. Smith falava alemão sofrivelmente, e pudemos nos informar. Soube assim que New-Washington era um fragmento dos Estados unidos caído em pleno oceano teluriano. Houve nove mil sobreviventes e quarenta e cinco mil mortos.

A ilha, assim formada, se estendia sobre trinta e sete quilômetros de comprimento por sete de largura. Havia uma fábrica de aviões quase destruída pelo choque, que haviam reconstruído, campos de lavoura, grandes reservas de víveres e munições, e, coisa estranha, várias naves: o cruzador ligeiro francês, o Surcouf, um destroier americano, o Pope, um torpedeiro canadense e dois barcos mercantes: um cargueiro misto norueguês e um petroleiro argentino. Eu tinha, no Surcouf, um colega de escola e fui informado que ele havia desaparecido na catástrofe. Na ocasião, todos os navios se encontravam em alto-mar, conseguindo, ao cabo de um tempo, chegar a New Washington, com as árvores de mastros destruídas, como após um combate, navegando às vezes à vela, porém basicamente intactos. O cataclismo se lhes apresentou sob a forma de uma gigantesca tromba d'água.

— Porque vocês demoraram tanto a fazer explorações?

— Havia coisas mais urgentes! Enterrar os mortos, limpar as ruínas, reconstruir. O pouco combustível que possuíamos utilizamos para por em funcionamento um dos dezessete aviões, que foram pouco prejudicados; é o que está aqui caído — Receberam nossas mensagens?

— Não, jamais. Apesar de que permanecíamos na escuta há mais de um ano.

— É curioso. Como se mantinham?

— Tínhamos muitas reservas. Cultivamos trigo; pudemos pescar bastante, e algumas formas terrestres sobreviveram e se multiplicaram consideravelmente. Por falta de leite perdemos muitas crianças. — acrescentou com tristeza.

Eu o pus ao corrente do que havíamos feito.

Cerca das três da madrugada chegamos ao Temerário. Deixei ali os que havíamos resgatado e, apesar dos protestos de Michel, voltei imediatamente.

Eu iria presenciar uma espetáculo que me gelou o sangue.

Assim que avistei o avião, observei, um pouco à direita, uma enorme massa gelatinosa de cor violeta claro, que se movimentava a uma considerável velocidade, entre 30 e 40 quilômetros por hora. Media uns dez metros de diâmetro por um metro de altura. Intrigado me detive. O animal não se preocupou comigo e continuou sua rota perto do avião. O canadense abriu a porta e saiu. Viu a camionete parada e veio para perto dela. Após ele, apareceram Etienne, O'Hara e Jeans. Olhei novamente para o monstro: sua rica cor violeta havia desaparecido, convertendo-se em cinza opaco; parecia uma rocha coberta de líquens Prevendo o perigo, me pus em movimento e toquei a buzina. O mecânico agitou a mão outra vez e acelerou o passo.

Corri a toda a velocidade. Cheguei tarde. O monstro, novamente violeta, precipitou— se sobre ele. Pardy viu, titubeou um momento e correu para o avião. Então ocorreu algo estranho: ressoou um ruido seco e uma espécie de chispa alcançou o canadense, que desabou. Desapareceu englobado pelos pseudópodes.

Horrorizado, freei de vez. O animal voltou-se e vinha direto em minha direção. Saltei do meu assento, subindo até a cúpula do lança-granadas. Febrilmente, apontei os tubos, carregados pela manhã. A centelha azul saltou novamente, acertando o radiador.

Senti um solavanco. Não um solavanco de um choque elétrico, e sim um frio glacial que me obrigou a deter-me. Apertei o disparador. As granadas deram em cheio no monstro, a dez metros. Ouviram-se duas explosões surdas, uma série de crepitações violentas acompanhadas de chispas. Saltaram como se fossem tiras de gelatina.

O animal ondulou e ficou imóvel. Pus o motor em marcha e me acerquei com cuidado.

Umas iridescências percorriam ainda a geleia viva que ainda palpitava. Do canadense nem sinal. Lancei duas granadas incendiárias pela portinhola. Com o calor intenso, enrugou-se, encolheu e deixou de palpitar.

Chegaram os outros.

— What an awful thing — disse Jeans. Repetiu em francês: Que coisa mais horrível!

— Temo que não possamos fazer nada por nosso mecânico. A não ser enterrá-lo.

Quando abrimos, a machadadas, a rígida gelatina, que havia se tornada mais densa que madeira, não encontramos mais nada além de um anel de ouro!

Tristes, subimos no carro, carregando as metralhadoras. Etienne voltou ao seu posto do lança-granadas.

No dia seguinte fizemos mais expedições para levar o resto das armas, das munições, os motores elétricos e tudo que pode ser salvo. A última, conduzida por Michel, teve que lutar com a «morte violeta». Destruíram quatro desses ignóbeis animais.

Carregada com rapidez a camionete, partimos, saudando com uma chuva de granadas a uma hidra demasiadamente curiosa, que caiu destroçada. Eu estava mais confiante que na ida, cumprida minha missão e podendo encarregar a direção do navio a homens, os quais, pelo menos dois, sabiam realmente o que era um barco.

IV — DESCUBRI TERRAS DESCONHECIDAS…

Deixei a direção técnica nas mãos de Jeans e seus oficiais, reservando para mim e para Michel o comando geral. Enviei uma mensagem a Cobalt. Depois, aconselhado por Wilkins, tentei comunicar-me com New-Washington. Com grande surpresa minha, consegui. Jeans explicou-lhes sucintamente o que havia ocorrido e retransmitiunos o agradecimento do seu governo e um convite para uma visita.

— Sinto muito, mas não posso aceitar no memento. — respondi — Não temos bastante combustível para percorrer os 10.000 quilômetros que nos separam de New— Washington. Passaremos primeiro por Cobalt-City.

— Porque vocês, franceses, batizaram sua cidade com esse nome? — inquiriu O»Hara.

— Ora, porque é idêntica a uma das cidadezinhas do vosso «Far-West» nos idos de 1880. Ao menos como nós as imaginamos!

Apenas deixamos o rio, nos dirigimos para a direção Nordeste. Soprava um vento forte e o Temerário, com mal estar de alguns estômagos, dançava muito. Estávamos conversando, meio em francês, meio em inglês. Quando nos faltava uma palavra, Biraben fazia a interpretação.

Nosso primeiro dia no mar passou-se sem incidentes. À noite, embora o mar tivesse se acalmado, diminuímos a marcha do barco. Fui dormir, deixando Smith na ponte.

Uma mudança no ritmo de oscilação do Temerário me despertou. Escutei, com a sensação de que ocorria algo anormal. Imediatamente compreendi: os motores estavam parados. Vesti-me a toda pressa e subi para ponto.

Perguntei ao homem em serviço: — Que aconteceu?

— Não sei, senhor, acabamos de parar.

— Onde está o comandante americano?

— Na popa, com o engenheiro.

Michel passou a cabeça por uma claraboia.

— O que aconteceu? Por que paramos?

— Não sei. Vem comigo.

— Certo.

— Ao dizer isto, sentiu-se como uma tromba d'água contra o casco; depois uma sacudida fez o barco oscilar. Ouvi um sonoro «Damn it!» (Maldição!), depois uma exclamação de surpresa e um grito, um grito terrível: — Todo mundo para dentro!

Smith caiu em cima de mim, projetando-se sobre o corredor. Wilkins mergulhou literalmente no interior. Smith botou a cabeça acima da ponte, comprovou que estava deserta e fechou a porta. À luz de uma lâmpada vi seu rosto, lívido, desfigurado. Vi como a coberta do posto da tripulação se fechava com violência. Houve outra sacudida, e o Temerário deu uma guinada para estibordo. Eu tropecei e cai sobre o tabique.

— Pode-se saber o que está acontecendo?

Wilkins afinal respondeu: — Calamares gigantes!

Fiquei horrorizado. Desde a minha infância, quando lia Vinte Mil Léguas Submarinas, ficara atemorizado destes animais.

Consegui articular: — Como with me (Vem comigo!).

Com as pernas tremendo, subimos a escadaria que conduzia à coberta. Dei uma olhada através das claraboias: a ponte estava deserta e reluzia sob as luas. Na extremidade dianteira, uma espécie de cabo grosso oscilava atrás do fuste dos lança-granadas.

A dez metros a babor, emergiu, por um instante, uma massa em um mar de tinta; depois vimos um volutear de braços, iluminados pela luz lunar. Calculei o comprimento daqueles braços em vinte metros. Michel uniu-se ao grupo e, depois dele, os americanos.

Smith explicou o incidente: Quando as duas hélices pararam ao mesmo tempo, estava à popa com Wilkins e viu dois olhos enormes que brilhavam debilmente. O animal lhes lançou um tentáculo. Foi quando ouvimos o grito.

Tentamos pôr novamente o motor em marcha. Assim fizemos, as hélices bateram na água, o Temerário vibrou e avançou uns metros. Depois os motores se calaram após uma série de sacudidas.

— Esperemos pelo dia. — aconselhou Wilkins.

A espera resultou sendo longa. Ao amanhecer pudemos comprovar a extensão do perigo. Estávamos rodeados por no mínimo vinte monstros. Não se tratava de calamares, embora á primeira vista pudessem parecer. Tinham um corpo fusiforme, agudo na parte traseira, sem aletas, com dez ou doze metros de comprimento por dois ou três de diâmetro. Da parte dianteira partiam seis braços enormes, de uns vinte metros de comprimento e cinquenta centímetros de diâmetro. Estavam dotados de garras reluzentes e afiadas, e terminavam em ponta de lança. Os olhos, igualmente em número de seis, encontravam-se na base dos tentáculos.

— Aparentemente são primos irmãos das hidras. — disse.

— No momento, rapaz, não dou a mínima. — replicou Michel — Se eles se jogam sobre o Temerário…

— Sou um idiota! Como não lembrei de por lança-granadas nos torreões!

— Agora é tarde. Mas, e se passássemos uma das metralhadoras do avião por um olho de boi? Será necessário também livrar as hélices. Se sairmos desta!…

Gritei para a tripulação: — Levem uma metralhadora e cintas de munição. Acima de tudo, não passem pela ponte.

— Atenção! Gritou Michel.

Um monstro se aproximava com um grande volteio de tentáculos. Com um deles agarrou a cerca de estibordo e a arrancou.

— Se pudéssemos matar um com a metralhadora, talvez os demais parassem para comê-lo O tubo acústico da casa de máquinas sussurrou: — As hélices estão livres, Senhor.

— Bom. Fiquem atentos. Quando eu ordenar, sigam adiante à toda velocidade.

Os marinheiros subiram uma metralhadora. Baixei o vidro e fiz passar o cano da arma. No momento que ia disparar, Michel bateu nas minas costas.

— Espera. É melhor que um americano faça isto. Estão habituados às suas armas.

Passei a metralhadora a Smith, verdadeiro afuste vivo. Ele mirou cuidadosamente um calamar que estava entre duas ondas e disparou. O animal deu um verdadeiro salto fora d'água, depois mergulhou. No momento que Smith se dispunha a liquidar outro, desencadeou-se uma tempestade. Uma dezena de braços gigantescos despedaçou a ponte, arrancando corrimões, retorcendo a pequena grua e afundando a chapa de proteção da metralhadora pequena. Um tentáculo rompeu um vidro e penetrou pela tolda arrebentando a claraboia.Agitou-se furiosamente. Michel caiu sobre o tabique. Wilkins e eu, horrorizados e imóveis, não pudemos dar um passo.

Jeans jazia por terra, derrubado. O primeiro a reagir foi Smith. Pegou um machado fixado na parece e, com um magnífico golpe de açougueiro, cortou o tentáculo limpamente.

Através da porta entreaberta, saltei para o aparelho de radio e lancei um S.O.S., antes que os mastros fossem arrancados. O temerário inclinou-se sensivelmente enquanto eu ouvia um marinheiro que gritava: — Vamos afundar!

Pelo olho de boi vi o mar agitado de tentáculos. Depois chegou o deus ex machina que nos salvou.

A uns duzentos metros emergiu uma cabeça enorme e chata de mais de dez metros, presidida por uma boca imensa com dentes brancos e agudos. O recém-chegado precipitou-se sobre o primeiro calamar e o seccionou em dois. Depois, ele e dois de seus congêneres, que corriam ao seu lado, e os calamares,travaram um combate feroz. Não tenho certeza se durou uma hora ou um minuto! O mar se acalmou e não restou outra coisa mais que restos de carne flutuando à deriva. Foram necessários mais de dez minutos para nos darmos conta de que estávamos salvos. Então, rumamos para o Norte a toda velocidade.

À noite, avistamos a bombordo um arquipélago de arrecifes ásperos, parecendo silhuetas de ruínas postas contra o sol poente. Nos acercamos com precaução. A escassas amarras de distância, notamos, entre duas rochas denteadas, um movimento suspeito. Instantes depois, reconhecemos um bando de calamares, e, com o timão a estibordo, e a toda velocidade, os deixamos para trás.

A noite, muito clara, nos permitiu avançar bastante rápido. Roçamos um calamar isolado, meio adormecido, que foi fulminado por nossas granadas. Pela manhã estávamos diante de uma ilha.

O'Hara subiu à ponte, levando o mapa que havia desenhado segundo as fotografias de raios infravermelhos, tiradas do avião. Pudemos identificar a ilha que tínhamos diante de nós com uma terra muito abrupta orientada no sentido Leste-Oeste, situada entre o continente equatorial, de onde vínhamos, e o continente boreal. A fotografia, tirada do alto, não precisava os detalhes, porém se podia distinguir uma cadeia de montanhosa e grandes bosques. A Sudeste, além de um estreito, podia-se observa a ponta de outra terra. Decidimos alcançar o extremo Leste da primeira ilha, a Oeste da segunda e a grande península, ao sul do continente boreal.

Percorremos a costa Sul da primeira ilha. Era rochosa, abrupta e inospitaleira. As montanhas não pareciam muito elevadas. Ao entardecer chegamos ao extremo Leste e baixamos âncoras em uma pequena baia.

Na alvorada vermelha, o rio se desenhou plano e monótono, com alguma vegetação.

Quando Helios se levantou, divisamos com clareza uma savana que morria no mar por uma estreita praia de areia branca. Nos aproximamos e fizemos a feliz descoberta de que a praia terminava de súbito, de forma que a costa distava poucos metros com um fundo de dez braças.

Não foi fácil colocar a ponte móvel e desembarcar o carro, no qual havíamos substituído o lança-granadas por uma das metralhadoras do avião, mais manejável. Michel, Wilkins e Jeans se instalaram nele. Não foi sem apreensão que os vi desaparecer no alto de um declive. As ervas amassadas traçavam a pista do carro, o que, se necessário, facilitaria sua busca.

Com a proteção das armas de bordo, desci à terra e visitei os arredores. Entre as ervas, pude recolher uma duzia de espécies distintos de curiosos «insetos» telúricos.

Umas pegadas indicavam a presença de fauna mais volumosa.

Duas horas mais tarde, o ronco de um motor anunciou o retorno da camionete.

Michel desceu.

— Onde estão os outros?

— Ficaram lá.

— Lá onde?

— Vem. Já verás. Fizemos uma descoberta.

— De que se trata, então?

— Já verás…

Intrigado, passei o comando a Smith e ocupei um lugar no carro. A savana era ondulada, entrecortada de bosques. Perto de um deles, errava uma manada de animais parecidos com os Golias, mas sem seus chifres. Depois de aproximadamente uma hora de caminhada, vi um dólmen de vários metros de altura, bem reto, e em cima dele, Jeans. Michel se deteve ao pé do dólmen. Descemos e, pelo outro lado, entramos em um abrigo sob a rocha.

— Que achas disto? — perguntou-me Michel.

Sobre a parede haviam sido gravada uma série de sinais; sinais que se pareciam curiosamente aos caracteres primitivos. Primeiro imaginei que se tratava de uma brincadeira, porém a pátina da pedra me convenceu logo do meu erro. Havia aproximadamente trezentos ou quatrocentos sinais.

— Há mais, Vem ver.

— Espera, vou pegar uma arma.

Seguimos adiante, metralhadora na mão. A duzentos metros, o solo descia. Perto de um vale silencioso, em cujo fundo se encontrava um amontoado de placas de metal e vigas torcidas, todas as quais apresentavam um aspecto geral fusiforme, Wilkins andava entre os destroços.

— Que é isto? Um avião?

— Talvez sim, Mas não é terrestre, estou certo!

Me aproximei e entrei no meio da confusão dos restos. A chapa descansava sobre a fina areia. Era de um metal amarelado, que não reconheci, mas que Wilkins assegurou que era uma liga de alumínio O engenheiro me deixou examinando as placas e dirigiu-se para próximo da ponta daquela confusão. Ouvimos uma exclamação; depois ele nos chamou. O estranho engenho tinha ali menos imperfeições, conservando sua forma de ponta de charuto.

Em um tabique intacto havia uma abertura. Reinava uma semi-obscuridade na cabine transcônica em que penetramos, e a princípio não pude ver nada além das silhuetas imprecisas dos meus companheiros. Depois que meus olhos se habituaram à penumbra eu distingui uma espécie de mesa de bordo, com uns sinais parecidos aos da inscrição, uns sinais metálicos e estreitos, uns cabos de cobre rotos e pendentes e, crispada em uma alavanca de metal branco, uma mão mumificada. Enorme, negra, ainda com músculos apesar do ressecamento, não tinha mais que quatro dedos dotados de garras que deviam ser retráteis. A mão estava cortada.

Por instinto, nos olhamos. Quanto tempo fazia que esta mão estava se mumificando nesta ilha perdida, em uma última manobra? Quem era aquele ser que havia pilotado aquele engenho? Provinha de outro planeta do sistema de Helios, de outra estrela ou, como nós, havia sido desalojado do seu próprio universo? Eram perguntas às quais até muito tempo depois não acharíamos mais que uma resposta incompleta.

Ficamos esquadrinhando até à noite entre os restos do aparelho. Nossos achados foram medíocres. Alguns objetos de metal, caixas vazias, fragmentos de instrumentos, um livro de páginas de alumínio, porém, por desgraça, sem nenhuma ilustração, e um martelo de forma muito terrestre. Atrás, onde deveriam estar os motores, blocos informes e enferrujados e um espesso tubo de chumbo, um fragmento de metal branco que, analisado em New-Washington, descobriu-se ser urânio Tiramos fotos e voltamos. Era esperado que nossos achados fossem escassos: alguns passageiros daquela máquina deviam ter sobrevivido, como provava a inscrição, e devem ter levado tudo que podia ser de utilidade. Não tínhamos tempo de pesquisar a ilha. Depois de havê-la batizado de «Ilha Mistério», partimos para a próxima ilha situada a Nordeste.

Desembarcamos com dificuldade e não pudemos passar o carro para a terra. A pequena parte que visitamos era árida, povoada unicamente de «víboras», salvo alguns «insetos». Entretanto, encontramos algumas ferramentas Sswis, em obsidiana.

Mais movimentada e frutífera resultou a exploração da ponta Sul do continente boreal.

Ao amanhecer chegamos a uma pequena enseada rodeada de altos penhascos, fantasticamente recortados. O desembarque do carro foi trabalhoso e o sol estava alto quando parti com Michel e Smith. Não sem dificuldades, chegamos até uma meseta que se estendia na direção Norte e Leste até perder-se de vista. Ao sul elevavam— se pequenas montanhas. Nos dirigimos para elas, através de uma savana marcada por pequenos bosques.

O lugar estava extremamente povoado de animais variados: Golias, elefantes e pequenos animais, isolados ou em rebanhos. A nossa passagem despertou um casal de Tigressauros que não nos atacou, afortunadamente, pois nossa camionete não teria resistido ao choque.

Às três da tarde, quando terminávamos de comer, apareceu à distância uma enorme manada. Aproximaram-se e reconhecemos os Sswis da raça grande e vermelha, a raça de Vzlik. Recordei que este último me havia dito, em repetidas ocasiões, que sua tribo provinha do Sul, e que poucas gerações antes eles haviam se separado do seu povo por razões que continuei ignorando. Este encontro nos incomodava, pois nos fechava o caminho para as montanhas e, se avançássemos, dado ao seu temperamento belicoso, a batalha seria inevitável. Mas talvez eles não nos tivessem visto, porque dobraram à esquerda e desapareceram no horizonte.

Rapidamente fizemos um conselho de guerra. Eu me inclinei pelo retorno imediato, pois nos havíamos afastado do Temerário e estávamos em um pais desconhecido.

Mas Michel e Smith eram de opinião em seguir adiante, e não regressar até o dia seguinte.

Então continuamos.

Perto das montanhas, às quatro, estávamos ante um penhasco que se levantava diante da cadeia montanhosa. A uns trinta metros de altura, pareceu-me ver umas colmeias. Quando chegamos mais perto, pudemos observar umas fortificações constituídas por torres espaçadas com uns vinte passos entre si, e de uma altura de dez metros. Ao pé do penhasco, numa faixa de cinco ou seis metros, não havia nem árvore nem arbusto. Os Sswis galopavam entre as torres. Pareciam muito agitados, e com os binóculos, vimos que apontavam com o dedo para nós. Duvidando, reduzi a marcha.

De repente, uma coisa comprida e negra saiu do alto de uma torre que estava em nossa frente. Sibilante, uma gigantesca lança, que devia pesar uns bons trinta quilos, cravou-se na terra a poucos passos de nós. Freei, e depois, recuperando meu sangue frio, retornei acelerando.

— Em zig zag! — gritou Michel.

Olhei para trás e pude ver uma duzia de dardos nos ares. Vibrando, cravaram-se no solo ao nosso redor, e eu, com um golpe de volante, tive que evitar uma. Nossa metralhadora funcionou. Smith estava em casa! Havia sido campeão de tiro na aviação americana. Michel me contou depois que em um abrir e fechar de olhos ele havia incendiado seis torreões. Não pude ver nada desta fase do combate. Estava agachado sobre o volante, com o pé no acelerador, incomodado com o piso irregular, a cabeça afundada entre os ombros e temendo a cada instante sentir uma lança cravarse nas minhas costas. Na realidade, faltou pouco para isto! Ao chegar às primeiras árvores que limitavam com a zona devastada, produziu-se às minhas costas um choque violento, um ruido metálico. Eu alterei o rumo com violência.

Quando, minutos depois, passei o volante para Michel, vi que uma lança havia atravessado o teto, passado entre as pernas de Smith e terminando sua corrida com a ponta afundada contra uma lata de boi assado, cravando-se contra o solo. A haste sobrepassava o teto em mais de dois metros. Sem nos determos, nós a serramos e pudemos examinar a ponta: era triangular, dentada, e de aço!

À noite fizemos uma curta parada, e caminhando, discutimos nossa aventura.

— É curioso — disse — que estes Sswis conheçam o metal, e que além disto seja uma aço de boa têmpera. Trata-se certamento do povo de onde provem a tribo de Vzlik, o que significa que poucas gerações atrás ainda estavam na idade da pedra.

Os Sswis são realmente muito inteligentes, porém me surpreende tal rapidez de progresso.

Michel refletia.

— Talvez isto tenha relação com nosso descobrimento da ilha.

— Pode ser, têm catapultas, ou melhor, balestras, que alcançam a mais de quinhentos metros.

— Em todo caso, — disse Smith, em inglês — ao menos destruímos seis torres.

— Sim, mas agora vamos. Este pais não é seguro!

Rodamos a noite toda. Neste planeta eu já tinha vivido outras noites agitadas, porém nenhuma como aquela! As três luas havia se levantado e toda a fauna deste mundo parecia haver-se reunido naquele local. Tivemos que abrir caminho através de manadas de elefantes, atraídos pelos faróis. Depois foi um tigressauro à espreita quem, salvo um positivo pânico que compartilhamos amplamente, escapou do nosso fogo sem danos aparentes. Três Golias nos abrigaram a mudar a rota e nossos pneus sofreram mordidas de víboras. Entretanto, antes do raiar do dia, vimos foguetes sendo lançados do Temerário, e na alvorada já estávamos a bordo.

V — O PERIGO

Uns dias mais tarde, chegamos à embocadura do Dordogne, sem mais contratempo que uma avaria nos motores, o que nos obrigou a navegar um dia inteiro a vela.

Avisados por Cobalt pelo radio, não nos surpreendemos em encontrar na confluência da Ilha, Martina, Louis e Vzlik, em uma barca a motor. Subiram a bordo e sua embarcação foi rebocada até Porto Leon. Fazia mais de um mês que estávamos fora. É inútil que se diga que estive contente de ver Martina novamente. Muitas vezes, no curso da viagem, pensei que não voltaríamos Louis me estendeu o texto da última radio mensagem recebida de New-Washington.

Eu a li com assombro e a passei aos americanos. Biraben a traduziu. Seu conteúdo podia resumir-se assim: New Washington afundava lentamente no mar e, se não se modificasse a regressão, no máximo dentro de seis meses a ilha teria desaparecido totalmente. O governador nos lançava então um S.O.S.

O Conselho reuniu-se na presença dos americanos.

Jeans tomou a palavras, em francês: — Em New Washington temos um cruzador francês, dois torpedeiros, um cargueiro e um pequeno petroleiro. Temos também dezesseis aviões em estado de voar, entre os quais há três helicópteros, mas em troca não nos resta combustível. Vocês poderiam vender-nos?

— Não se trata disto. — respondeu meu tio — Acudir em vosso socorro é um dever elementar. Porém o grande problema é o transporte. Como barco, não temos mais que o Temerário, que é muito pequeno.

— Ainda conservamos o casco do Conquistador, — eu disse — e especialmente as barcaças rebocáveis que poderiam facilmente ser transformadas em petroleiros. Que opinam vocês? — perguntei aos nosso engenheiros.

Estranges refletiu.

— Dez ou doze dias de trabalho para construir os depósitos. Outro tanto, no mínimo, para os dispositivos de segurança. No total, um mês. Dois depósitos de 10x3x2m, com uma capacidade para 122.000 litros. Metade gasolina e metade óleos pesados.

— Preferimos menos gasolina e mais óleos pesados.

— É possível. Qual a cifra exata da nossa reserva?

— Seis milhões de litros. — eu disse — Parei a exploração por falta de lugar para o armazenamento.

— Qual a distância de New-Washington a Porto-Leon?

— Uns 450 quilômetros.

— Sim, — disse — mas em alto mar podem ser mais.

— Se lhe confiarmos o Temerário e alguns dos nossos homens, poderia voce consegui-lo? Perguntou meu tio a Jean.

— Respondo por ele. Vosso pequeno navio é excelente.

— De acordo, então. Tentemos.

Um mês depois, o Temerário partiu com um reboque carregado com 145.000 litros de combustível.

Como Michel me contou mais tarde, a viagem não teve história. Não encontramos calamares, nem monstro algum. New-Washington estava situado sobre uma terra baixa, com duas colinas semeadas de casas.

Foram acolhidos por salvas dos canhões dos navios de guerra. Toda cidade, situada à beira mar, estava adornada. A banda de música do cruzador tocou o hino americano e depois a Marselhesa. Os oficiais observavam com assombro o pequeno Temerário, que deslisava pelo porto. Os óleos pesados passaram diretamente aos paióis do petroleiro argentino, o qual aparelhou no ato. A gasolina foi transportada por caminhão ao campo de aviação.

Michel foi recebido pelo presidente de New-Washington, Lincoln Donaldson, e depois a bordo do Surcouf, cujos oficiais e tripulantes ficaram encantados em poder saudar um pedaço da França.

Os cidadãos de New-Washington entregaram-se a um trabalho encarniçado, desmontando e abarrotando os navios com tudo que podia ser salvo.

Depois que regressou o Porfírio Dias e o cargueiro norueguês, o Surcouf e os torpedeiros partiram, carregados até o topo de material e homens.

Michel me avisou da saída pelo radio. Por minha parte, informei-o que havíamos obtido de Vzlik, grande chefe dos Sswis, desde a morte do seu sogro, a concessão aos americanos de um território que na realidade pertencia aos Sswis negros, mas sobre o qual sua tribo tinha certos direitos, e uma parte de outro que lhes pertencia de fato, compreendido entre o Dron e os Montes Desconhecidos. Para nós, havia obtido uma passagem ao largo do Dordogne até sua embocadura, perto da qual queríamos construir um porto, Porto do Oeste. Não estávamos inativos.

Havíamos construído umas casas para os americanos, perto das montanhas, na parte propriamente Sswis do seu território, justamente no outro lado do Dron, em frente de nossa fábrica de «Cromo»

Pouco tempo depois chegou o primeiro comboio. Foi anunciado pelo vigia da embocadura do Dron. Era o Surcouf e o cargueiro, demasiados grandes, que não puderam ir mais adiante e baixaram âncoras. Os torpedeiros subiram o Ille.

Os emigrantes foram a suas novas terras por meio de pequenas embarcações rebocadas.

No momento, decidiu-se que os americanos se contentariam com o território propriamente Sswis, deixando para mais tarde a conquista — pois uma conquista seria necessária — do setor Sslwip.

Michel regressou de avião pouco antes do sétimo e último comboio. A ilha estava quase totalmente submersa, mas «Nova América» contava já com uma cidade e sete povoados e iam começar as primeiras colheitas.

Nossa população incrementou-se com seiscentos homens do Surcouf, sessenta argentinos, que preferiram viver em um «pais latino», e uns cinquenta franco-canadenses, aos quais, embora a principio desagradasse nosso coletivismo, limitado por outra parte às instalações industriais, aperceberam-se logo que ninguém ou nada lhes impedia da prática da sua religião.

Os noruegueses em número de duzentos e cinquenta — quando houve o cataclismo, haviam recolhido os sobreviventes de um paquete de sua nacionalidade — estabeleceram— se, por petição sua, em um enclave do nosso território, perto da embocadura do Dordogne. Criaram ali um posto de pesca.

Na realidade a segregação nacional não foi absoluta, já que houve matrimônios internacionais.

Afortunadamente, entre os americanos as mulheres eram maioria, e muitos dos marinheiros do Surcouf já haviam se casado na velha New-Washington.

Um ano depois deste êxodo, quando acabava de nascer meu primeiro filho, Bernard, Michel se casou com uma linda norueguesa de dezoito anos, Inga Unset, filha do comandante do cargueiro.

Ajudamos os americanos a estabelecer suas fábricas. Em contrapartida, nos cederam a utilização de quatro aviões. Com um dos colegas americanos, encontrei em seu território, mas em país SSslwip, importantes depósitos de petróleo.

Cinco anos mais tarde teve lugar a fundação dos Estados Unidos de Tellus. Porém antes devo consignar a conquista do território SSslwip. E que nós estivemos a um passo da guerra com os americanos!

Foram os Sslwips que desencadearam a batalha.

Uma noite, uma centena deles surpreendeu um pequeno posto americano, destroçando dez ou doze homens que compunham a guarnição. Os dois homens restantes conseguiram escapar em um carro. Tão logo a notícia foi conhecida, dois aviões decolaram à caça dos assassinos. Foi impossível encontrá-los, pois os bosques cobriam imensas extensões e as planícies estavam desertas. Uma coluna ligeira, em missão de represália, sofreu grandes perdas sem resultados positivos. Então os americanos pediram ajuda a nós, já que tínhamos mais experiência, e aos nossos aliados os Sswis.

Foi a guerra mais estranha que se possa imaginar! Os americanos e nós, utilizando caminhões, com quatro ou cinco aviões voando sobre nossas cabeças,um helicóptero observador, e rodeados por seres de outro mundo, armados com arcos e flechas.

A campanha foi dura e tivemos nossas derrotas. Compreendendo rapidamente que em combate aberto teriam desvantagens, os Sslwips começaram a fustigar nossas fronteiras, a envenenar os poços e as fontes, a fazer incursões sobre a Nova América, em território Sswis e inclusive, através das montanhas, sobre a Nova França.

Foi em vão que os torpedeiros descobriram e bombardearam a dois povoados deles na costa, e os aviões destruíram outros povoados. Quando adentramos em território inimigo, além da futura fronteira da Nova América, os Sslwips acreditaram ser praticável o assalto definitivo. Ao amanhecer, um bando que superava os cinquenta mil Sslwips precipitou-se de todas as partes sobre o nosso campo. Imediatamente, Jeans, chefe da expedição, lançou uma chamada aos aviões, os quais decolaram de New-Washington e de Cobalt. A 1.000 quilômetros por hora, chegariam em pouco tempo. Mas poderíamos nos aguentar enquanto isto? A situação era crítica: éramos 500 americanos e 300 franceses, certamente bem armados, e 5.000 Sswis, contra 50.000 inimigos armados com arcos que alcançavam 400 metros. Era impossível aproveitar-se da mobilidade dos caminhões: o inimigo nos rodeava a trinta de fundo.

Dispusemos nossos veículos em círculo, exceto nosso velho caminhão blindado, e, com as metralhadoras a postos, aguardamos.

A seiscentos metros, abrimos fogo; foi um erro haver aguardado tanto, pois pouco faltou para sermos engolfados. Era em vão que nossas armas automáticas derrubavam os Sslwips como trigo maduro, em vão que os Sswis lançavam flecha após flecha.

Em pouco tempo tínhamos dez mortos e mais de oitenta feridos, e os Sswis tinham cem mortos e o dobro de feridos. A bravura dos Sslwips era maravilhosa, sua vitalidade fenomenal. Vi um que, com o ombro destroçado por um projétil de 20mm, correu até a morte e caiu a dois passos de um americano.

No terceiro assalto, chegaram os aviões. Não puderam intervir porque a confusão havia começado novamente. Nesta fase do combate, Michel recebeu uma flechada no braço direito e eu levei outra na perna esquerda.; entretanto eram feridas sem gravidade. Tão logo o inimigo foi rechaçado, os aviões entraram em combate com as metralhadoras, granadas e bombas. Foi a vitória. Colhidos a descoberto, os Sslwips debandaram. Nossos caminhões os perseguiram, enquanto Vzlik, à cabeça dos Sswis, batia e despedaçava os isolados. Houve ainda algumas ofensivas: à noite, encontramos um dos nossos caminhões com todos os ocupantes mortos, crivados de flechas. Aproveitando a noite, os sobreviventes escaparam. Tivemos então que lutar contra os trigressauros que foram atraídos pela carniça, e que nos causaram seis baixas.

Nossas perdas totais ascenderam a 22 mortos americanos, 12 franceses, 227 Sswis; e a 145 americanos, 87 franceses e 960 Sswis feridos. Os Sslwips deixaram um mínimo de vinte mil dos seus no campo de batalha.

Depois deste extermínio, os americanos construíram uma serie de fortins na sua fronteira, cuja defesa foi facilitada por uma falha escarpada do terreno, de mais de setecentos quilômetros, que ia do mar às montanhas.

Os anos seguintes transcorreram em silencioso trabalho. Vimos, com pena, que os americanos se isolavam cada dia mais dentro do seu território. Somente fazíamos visitas, salvo em casos individuais, — como o da tripulação do avião e nós — pra trocar matérias primas e produtos manufaturados. Os americanos começaram suas explorações minerais, menos ricas que as nossas, mas que bastavam amplamente para suas necessidades.

Muitos poucos de nós falavam inglês, e vice-versa. Os costumes eram distintos.

Nosso coletivismo, embora parcial, era-lhes suspeitoso, e tachavam nosso Conselho de ditatorial. Tinham também tenazes preconceitos contra os «nativos», preconceitos que de modo algum poderíamos compartilhar, já que duzentos pequenos Sswis frequentavam nossas escolas.

Em troca, mantínhamos excelentes relações com os noruegueses. Havíamos fornecido os materiais necessários para a construção de chalupas, e eles nos aprovisionavam em abundância com os produtos do mar. Algumas espécies terrestres haviam sobrevivido e se multiplicaram em proporções surpreendentes. Os peixes telurianos são excelentes.

O «período heroico» havia passado e, para cortar pela raiz a critica dos americanos, reorganizamos nossa constituição, mas ao estilo francês.

Decidiu-se que a Nova França se comporia de: 1) O Estado de Cobalt, de cinco mil habitantes, com Cobalt-City(800 hab.) por capital, e a cidade de Porto-Leon (324 hab.); 2) O território de Porto do Oeste, com uma capital do mesmo nome, de 600 habitantes; 3) O território dos poços de petróleo, onde não restavam mais que 50 homens; 4) O território das minas, sobre o Lago Mágico, com Bealieu (400 hab.) e Porto do Norte (60 hab.) Ou seja, no total, Nova Franca contava com 6.000 habitantes. Porto-Leon, Porto do Oeste e Bealieu tinham Conselhos Municipais O governo se compunha do Parlamento, eleito por sufrágio universal, composto por cinquenta membros, que tinha função legislativa, votava todas as decisões e nomeava aos ministros; e do Conselho inamovível, de sete membros, que a princípio foram: meu tio, Estranges, Beauvin, Louis, o Senhor cura e eu mesmo.

Este conselho tinha veto suspensivo de seis meses, como igualmente a iniciativa das leis. Em caso de urgência, e por uma maioria de dois terços, podia arrogar-se o poder, por um período renovável de seis meses.

Se constituíram três partidos políticos: o partido coletivista, cujo chefe foi Louis, e que teve vinte representantes; o partido camponês conservador, igualmente com vinte representantes; o partido liberal, sob a direção de Estranges com os dez representantes restantes e, de acordo com a boa tradição francesa, que outorga o governo à minoria, indicou os ministros.

Nossa mudança de forma de governo transformou totalmente nossa maneira de viver.

Se as fábricas e as máquinas, como também as minas e a frota, eram propriedades coletivas, a terra pertencia, como sempre, aos camponeses que a cultivavam.

Desenvolvemos nossa rede ferroviária e rodoviária.

Os americanos fizeram outro tanto. Tinham mais máquinas a vapor que nós, que, em troca, conseguimos construir potentes motores elétricos. A via mais extensa ia de Cobalt-City a Porto do Oeste, passando por Porto Leon.

Nossas relações com os americanos esfriaram ainda mais. O primeiro incidente foi com o destroier canadense, servido por uma maioria de franco-canadenses. Estes decidiram vir morar conosco e quiseram, como era lógico, levar o barco. Aquilo foi a origem de numerosas dificuldades. Finalmente, cedemos o armamento aos americanos, transformando o barco em um cargueiro rápido. O segundo ponto de fricção foi nossa negativa em explorar em comum os depósitos petrolíferos situados a pouca profundidade, em território Sswis, ao lado do Monte Tenebroso. Os americanos tinham petróleo, embora mais profundo, e nós sabíamos que os Sswis veriam com muito maus olhos aos americanos em suas terras. Porém em 5 de julho do ano nove da era teluriana, produziu-se o conflito.

Naquele dia, uma duzia de Sswis quiseram, usando a faculdade que era reconhecida pelo tratado, atravessar a ponda do setor Este da Nova América, situada em seu próprio território. Dirigiam-se ao nosso porto dos montes Beaulieu, para trocar produtos de caça por pontas de flecha de aço.

Penetraram, pois na Nova América e, quando já estavam à vista do nosso porto, na outra margem do alto Dron, foram detidos por três americanos armados com metralhadoras que os interpelaram brutalmente, ordenando-lhes que voltassem atrás, coisa perfeitamente absurda, pois estavam a cem metros, em linha reta, de Beaulieu, e a quinze quilômetros da fronteira em sentido inverso. Em francês, o chefe dos Sswis, Awithz, falou isso para eles. Furiosos, dispararam três rajadas, matando dois Sswis e ferindo a ouros dois, um deles Awithz, que foram feitos prisioneiros. Os demais atravessaram o Dron sob uma chuva de balas. Comunicaram o ocorrido ao chefe do nosso posto, Pierre Lefranc, o qual para ficar a par da situação, foi com eles até a margem. Uma rajada desde o outro lado matou outro Sswis e feriu Lefranc.

Fora de si, os homens do povoado responderam com uma dezena de granadas que demoliram e incendiaram uma granja do setor americano.

Quis a sorte que eu passasse por ali acompanhado de Michel instantes mais tarde.

Colocando Lefranc e os Sswis feridos no meu caminhão, corri para Cobalt. Ali me identifiquei rapidamente na residencia do Conselho, que convocou o Parlamento, que votou estado de urgência.

Lefranc, deitado em uma cama, fez sua declaração, corroborada pelos dois Sswis.

Estávamos em dúvida sobre que decisão tomar, quando nos chegou uma radio-mensagem da ponte dos Sswis sobre o Vecera. Do posto se ouviam com clareza os tambores de guerra e se observavam numerosas colunas de fumo em território Sswis.

Por um procedimento desconhecido, Vzlik já estava a par do ocorrido e reunia suas tribos. Não cabia, duvida ante tal circunstância, que as tribos confederadas marchariam com eles.

Conhecendo o caráter vingativo e absolutamente desapiedado de nossos aliados, pensei imediatamente nas granjas americanas existentes ao largo da fronteiras e no que poderia ocorrer dentro de poucas horas. Por helicóptero, mandei um mensageiro a Vzlik, rogando-lhe que esperasse um dia e, rodeado pelo Conselho, foi à emissora de radio entrar em contado com New-Washington.

Os acontecimentos se precipitaram. Quando chegamos, o encarregado da radio estendeu— me uma mensagem: O destroier americano bombardeava Porto do Oeste. O Temerário e o Surcouf respondiam. Para estarmos prontos para qualquer eventualidade, lançou-se uma ordem de mobilização. Os aviões deveriam estra prontos para decolar, com as armas carregadas e os tanques cheios.

Por radio, suplicamos ao governo americano suspender as hostilidades e aguardar a chegada de plenipotenciários. Eles aceitaram e nos inteiramos que o bombardeio do nosso porto havia cessado. Por outro lado o destroier estava fora danificado por uma granada tele-dirigida do Surcouf, que o havia alcançado na proa.

Michel, meu tio e eu partimos imediatamente num avião. Meia hora depois estávamos em New-Washington. A entrevista foi tumultuada a princípio. Os americanos adotaram uma arrogância tal que Michel teve que lembrá-los que sem nós, aquelas horas eles teriam sido presas dos monstros marinhos ou derivariam, mortos de fome, em seus navios sem combustível.

Finalmente foi designada uma comissão de investigação, composta por Jeans, Smith, meu tio, eu e o irmão de Vzlik.

Os americanos jogaram limpo e reconheceram os erros dos seus compatriotas. Os culpados foram condenados a dez anos de prisão. Os Sswis foram indenizados com 10.000 pontas de flecha.

Depois desses incidentes, coisa curiosa, as relações se distenderam.

Ao término do ano 10, eram bastantes boas para que pudéssemos promover a fundação dos Estados Unidos de Tellus.

Em 7 de janeiro do ano 11, uma conferência reuniu os representantes americanos, canadenses, argentinos, noruegueses e franceses. Adotou-se uma constituição federal.

Esta reconhecia ampla autonomia a cada estado, porém estabelecia uma governo federal, situado em uma cidade que foi fundada na confluência do Dron e do Dordogne, no ponto em que havíamos derrubado o primeiro tigressauro.

Foi «União». Duzentos quilômetros quadrados foram declarados terra federal. Foinos difícil fazer os americanos reconheceram e inviolabilidade presente e futura dos territórios Sswis. Finalmente, esta se limitou aos territórios dos nossos aliados atuais, os Sswis, por um prazo de cem anos.

As colônias que se fundariam no futuro seriam terras federais, até que sua população chegasse a 50.000 almas. Então adquiririam o status de estados, com liberdade de escolher suas constituições internas.

Em 25 de agosto do ano 12, o Parlamento Federal se reuniu pela primeira vez, e meu tio foi eleito presidente dos Estados Unidos de Tellus. A bandeira federal flutuou afinal, azul escuro, com cinco estrelas brancas, simbolizando os cinco estados federados: Nova América, Nova França, Argentina, Canadá de Tellus e Noruega.

As duas línguas oficiais foram o inglês e o francês. Não vou entrar em detalhes sobre as leis que foram votadas, pois ainda estão vigentes. O governo federal foi o único autorizado a possuir uma frota, um exército, uma força aérea e uma fábrica de armas.

Prevendo o futuro, reconhecemos sua autoridade, também, sobre a energia atômica que, um dia sem dúvida, chegaremos a possuir em Tellus.

VI — O CAMINHO TRAÇADO

Já transcorreram cinquenta anos! Tellus deu muitas voltas.

A presidência do meu tio durou sete anos e foi consagrada inteiramente à organização.

Ampliamos nossas vias férreas, pensando mais no futuro que no presente, pois nossa população total não chegava a vinte e cinco mil almas, mas que crescia rapidamente. Os recursos abundavam, as colheitas eram magníficas e as famílias foram numerosas.

Eu tive onze filhos, todos vivos. Michel teve oito. A média das famílias da primeira geração foi de seis filhos e de sete na segunda.

Contrariamente aos nosso temores, não houve novas epidemias. Comprovamos uma surpreendente elevação na altura humana. Em nossa velha Terra as estatísticas situavam a altura em uma média de 1,65m. Aproximadamente a média francesa.

Hoje, em Nova França esta alcança 1,78m. Em Nova América é de 1,82m. Na Noruega, 1,86m. Unicamente os argentinos e seus descendentes puros ficaram com o máximo de 1,71m.

Sob os presidentes seguintes, o americano Grawford e o norueguês Jansen, intensificamos especialmente nosso esforço sobre a industria. Tivemos uma fábrica de aviões, não somente capaz de construir os tipos correntes, mas também de estudar novos modelos. O engenheiro americano Stone realizou em Tellus uma ideia que tinha tido na Terra, e seu avião, o «Comet» bateu todos os recordes de altura.

Fomos também exploradores. Passei o resto da minha vida confeccionando mapas geológicos ou topográficos, sozinho ou com meus dois colegas americanos, e logo depois com a ajuda dos três maiores dos meus sete filhos varões: Bernard, Jaime e Martin. Voei sobre todo o planeta, naveguei por muitos oceanos, explorei ilhas e continentes.

As grandes descobertas! Porém com um material com que jamais poderiam sonhar Colombo ou Vasco da Gama. Suportei o calor de 60 graus no equador, gelei nos polos; combati Sswis vermelhos, negros ou amarelos, ou conclui alianças com eles; afrontei os calamares e as hidras, não sem um medo terrível. E Michel sempre me acompanhou e Martina me esperou, às vezes durante meses.

Mas não quero atribuir somente para mim a gloria de todos estes descobrimentos.

Teriam sido impossíveis sem a coragem e a inteligência dos marinheiros e aviadores que vieram comigo. Michel foi incomparavelmente precioso, e sem a dedicação da minha mulher não teria teria podido resistir à terrível febre dos pântanos que me botou de cama no retorno da minha terceira expedição. Martina me acompanhou três vezes, compartilhando sempre as moléstias e os perigos, sem lamentar-se por isto.

E eu não estava sozinho. A paixão pelos descobrimentos se havia apoderado de todos nós. Que dizer da façanha de Paul Bringer e Nataniel Hawthorne, que partiram de carro para o Sul, que deram a volta no velho continente, perdendo seu carro a mais de 7.000 quilômetros de Nova França, e que regressaram a pé, em meio a a Golias, tigressauros e indígenas hostis? E que dizer, igualmente, da aventura do capitão Unset, sogro de Michel, que com seu filho Eric e treze homens deu a volta ao mundo a bordo do Temerário, em sete meses e vinte dias?

Vinte anos depois da nossa primeira visita, voltei novamente, com Michel, à Ilha Mistério. Nada havia mudado. Unicamente a terra havia coberto um pouco a estranha inscrição. Entrando de novo na cabine onde se conservava a mão mumificada, vimos o rastro dos nossos passos, que haviam se mantido ao abrigo da intempérie.

No regresso visitamos a cidade das catapultas. Nesta ocasião levávamos conosco o filho de Vzlik, Ssiou, que pode entrar em contato com os Sswis vermelhos, que já conheciam o aço. O chefe nos mostrou os fornos rudimentares onde o fabricavam.

Consentiu em explicar-nos a lenda. Há mais de trezentos anos teluriano, três estranhos seres haviam chegado em uma barca «que andava sozinha» em uma praia situada ao Sul da cidade atual. Ao serem atacados, haviam se defendido «lançando fogo». Não «flechas pequenas que fazem bum», como as nossas, esclareceu o chefe, e sim longas chamas azuladas. Dias depois foram surpreendidos enquanto dormiam e foram capturados. Por um esquecido motivo, houve, sobre esta questão, uma violenta disputa na tribo e a metade dos Sswis vermelhos haviam partido para o Norte.

Deles descendiam as tribos de Vzlik.

Os estrangeiros haviam aprendido a língua e ensinaram aos Sswis sobre a fundição do metal. Por duas vezes eles haviam salvo a tribo, debilitada pelo ataque dos Sslwips, «lançando fogo». Pareciam aguardar alguma coisa proveniente do céu Depois morreram; não antes de ter escrito um longo livro que se conservava como um objeto sagrado na gruta do templo, com os objetos que lhes haviam pertencido.

Tentei fazer com que me descrevessem os estrangeiros. O chefe não pode fazê-lo, mas nos conduziu ao templo. Ali, um Sswis muito velho nos mostrou umas pinturas rupestres: umas silhuetas pintadas em negro, bípedes, com uma cabeça e um corpo análogo aos nossos, porém com uns braços tão compridos que quase chegavam ao solo, e um só olho muito bem desenhado, situado na metade frontal do rosto. Comparando— os aos Sswis representados ao seu lado, calculei sua altura em dois metros e meio.

Pedi para ver os objetos: guardavam três livros de metal, parecidos ao que havíamos encontrado na Ilha Mistério, algumas ferramentas mais compreensíveis e o resto das armas que «lançavam fogo». Tratava-se de três tubos de 70cm de comprimento, mais largos em uma extremidade, chapados em seu interior de platina. Da outra extremidade saía um filamente que devia conectar com uma parte desaparecida. Provavelmente, aqueles seres não tinham querido deixar nas mãos daqueles selvagens uma arma demasiadamente potente.

Por fim, vimos o livro feito de pergaminho, de uma espessura de umas quinhentas folhas, cobertas dos mesmos sinais que os do livro de metal. Ao lamentar-me de que ninguem jamais saberia o que continha, o velho Sswis afirmou que estava escrito em sua língua, e que ele sabia lê-lo. Depois de muita reticência, pegou o livro e, colocando— o provavelmente ao contrário, começou a recitar: «Tilir! Tilir! Àqueles que venham após, saudamos! Aguardamos até o final. Agora, dois já estão mortos. Nós jamais voltaremos a ver Tilir. Sede bons para com os Sswis, que tão bem não tem tratado…»

O velho calou-se — Eu não sei ler mais. — acrescentou.

Consegui fazê-lo confessar que aquelas linhas, aprendidas de memória, eram transmitidas de sacerdote para sacerdote, e que «Tilir» devia servir de contrassenha, caso outros compatriotas dos estrangeiros desembarcassem novamente em Tellus.

Reconheceu também que o livro era de dupla linguagem, uma parte escrita em linguá Sswis e, a partir da metade, na dos estrangeiros. Seja como for, isso significava uma preciosa chave para a decifração e, cuidadosamente, fiz uma cópia.

Muitas vezes tenho pensado nessas folhas enegrecidas de curiosos caracteres.

Muitas vezes releguei meu trabalho habitual para começar a traduzir com a ajuda de Vzlik. Definitivamente, não tive jamais tempo suficiente. Extraindo o significado, com dificuldade, de frases dispersas, só consegui aumentar minha curiosidade e não satisfazê— la. Trata de Tillir, de monstros, de catástrofes, de gelo e de terror…

Hoje o livro está em União, onde meu neto Enrique e Hol, o neto de Vzlik, um Sswis «humanizado», tentam traduzi-lo. Parece que os seres que o escreveram vieram do primeiro planeta exterior, que é o mais próximo do nosso, ao qual chamamos Ares, homologando-o ao antigo Marte do nosso sistema solar. Talvez eu ainda viva o suficiente para conhecer o enigma. Porém é preciso que se apressem.

Nós traçamos o caminho, porém sois vós que devereis segui-lo. Não resolvemos todos os problemas. Para dois deles, os mais importantes, nem mesmo foram esboçadas soluções.

O primeiro é o da co-habitação, em um mesmo planeta, de duas especies inteligentes.

Para este não há mais que três soluções: nosso extermínio, que evidentemente é o pior para nós; o extermínio dos Sswis — que não queremos a preço algum — ou sua aceitação como nosso iguais, o que implica na sua integração aos Estados Unidos de Tellus, o que os americanos não querem nem saber, no momento. Por mim o problema não existe. São iguais a nós, e talvez superiores, se tomarmos, por exemplo, a obra matemática de Hol, que poucos entre nós compreendem.

O segundo problema é a coexistência de outra espécie inteligente, caso voltem de Ares os desconhecidos da Ilha Mistério. Se regressarem a Tellus antes que tenhamos conseguido dominar o espaço, estaremos mais que satisfeitos em ter os Sswis como aliados!

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