SEGUNDA PARTE OS ROBINSONS DO ESPAÇO

I — OS ESCOMBROS

Não posso descrever a avalanche de sentimentos que se abateu sobe mim. Inconscientemente, apesar de toda sua novidade, eu havia assimilado catástrofe segundo as normas terrestres: grandes ondas, sismos, erupções, etc, e subitamente me encontrei diante desse acontecimento impossível, enlouquecedor, mas real.

Encontrava-me em um mundo iluminado por dois astros solares!

Não, não saberia explicar a turvação que se apoderou de mim. Tentava negar a evidência.

— Mas… apesar de tudo, estamos na Terra, aqui está a montanha e o Observatório, e ali, abaixo, o povoado.

— Estou realmente sentado em um pedaço de Terra — disse meu tio. — Porém, a menos que eu seja tão ignorante para desconhecer um fato desta importância, nosso sistema terrestre não admite mais que um Sol, e aqui existem dois.

— Então onde estamos?

— Repito que não sei. Estávamos no Observatório. Quando ele tremeu, pensei que se tratava de um tremor de terra e saímos, Martina e eu. Encontramos Michel na escadaria e fomos projetados para fora. Perdemos a consciência e não vimos nada mais.

— Eu sei — disse com um calafrio. — Vi como as montanhas desapareciam com o Observatório em meio a um esplendor lívido. Depois me encontrei fora também, e o Observatório estava lá novamente.

— E pensar que com quatro astrônomos, nenhum foi testemunha disto — lamentouse.

— Michel viu como começou. Porém onde ele esta? Está demorando demais…

— É mesmo — disse Martina — Vou ver.

— Não, compete a mim ir procurá-lo. Tio, por piedade, onde acha voce que fomos parar?

— Repito que não sei. Porém, com certeza não é na Terra. Talvez — murmurou — não seja nem mesmo nosso Universo.

— Então a Terra acabou para nós?

— É o que eu temo! Enfim, agora te ocupa em procurar Michel.

Encontrei-o a uns poucos passos mais além. Dois homens o acompanhavam, um deles moreno, de uns trinta anos, e o outro aproximadamente com dez anos a mais.

Michel nos apresentou, o que me pareceu cômico, levando-se em conta as circunstâncias.

Tratava-se de Simon Beauvin, engenheiro eletricista e de Jaime Estranges, engenheiro metalúrgico, diretor da fábrica.

Vinhamos ver o que havia ocorrido — disse Estranges. — Antes de tudo descemos ao povoado, onde as equipes de socorro se organizaram imediatamente. Mandamos nossos empregados como reforço. A igreja caiu. O prefeito foi sepultado, junto com sua família, sob o prédio da prefeitura. Os primeiros cálculos foram de uns cinquenta feridos, alguns deles graves, e onze mortos, além do prefeito e sua família. Fora isto, a maioria das casas resistiram bem.

— E vocês? — inquiriu meu tio.

— Poucos estragos. Você sabe que essas casas pré-fabricadas são leves e feitas de blocos. Na fábrica, algumas máquinas arrancadas. Minha mulher tem uns cortes pouco profundos. É nosso único ferido — contestou Beauvin.

— Temos um cirurgião conosco. Vamos mandá-lo ao povoado.

Depois, voltando-se para Michel e para mim: — Ajuda-me. Vou para casa. Martina, leva Menard. Senhores venham conosco.

Quando chegamos à casa, vimos que Vandal e Massacre haviam trabalhado com eficácia. Tudo estava em ordem novamente. Meu irmão e Breffort repousavam em camas de campanha. Massacre preparava sua maleta.

— Vou descer. — disse — Deve haver trabalho para mim.

— Com efeito. — corroborou meu tio — Estes senhores vêm de lá; há muitos feridos.

Sentei-me perto de Paul.

— Como estás, garoto?

— Bem, apenas uma ligeira dor na perna.

— E Breffort?

— Também está melhor. Já voltou a si. Não é tão grave como se temia.

— Neste caso, vou descer para o povoado — disse.

— Certo. — disse meu tio — Michel, Martina e Vandal, vão também com ele. Menard e eu cuidaremos de tudo daqui.

Partimos. No caminho perguntei aos engenheiros.

— Sabe a extensão da catástrofe?

— Não. Temos que aguardar. Primeiramente ocupemo-nos do povoado e algumas granjas vizinhas. Depois, se for o caso, poderemos ir mais longe.

A rua principal estava intransitável, por causa das casas derrubadas. As outras ruas, perpendiculares, ao contrário, se conservavam praticamente intactas. Os maiores danos culminavam na Praça Maior, onde a prefeitura e a igreja não eram mais que um monte de escombros. Quando chegamos estavam liberando o corpo do prefeito.

Entre os que prestavam auxílio observei um grupo, cuja ação era de coordenar.

Num momento um homem se separou deles e veio até nós.

— Reforços, por fim! — disse alegremente — Como nos fazia falta!

Era jovem, vestido com um macacão azul, mais baixo que eu, de compleição robusta; devia possuir uma força pouco comum. Sob seus cabelos negros, uns olhos cinzas, agudos, brilhavam em um rosto decidido. A simpatia que então senti por ele deveria transformar-se, mais tarde, em amizade.

— Onde estão os feridos? — perguntou Massacre.

— No salão de festas. Você é médico? Seu colega não vai se ofender se você nos der uma mão!

— Sou cirurgião.

— Que sorte!. Ei, Jean Pierre, acompanha o doutor à enfermaria — Vou com você. — disse Martina — Eu o ajudarei.

Michel e eu nos juntamos aos que limpavam o terreno. O jovem, a que antes me referi, falava com animação aos engenheiros. Depois voltou para junto de nós.

— Foi difícil convencê-los de que seu primeiro trabalho deveria consistir em afornecer, se possível, água e eletricidade. Queriam trabalhar nos escombros! Se agora não utilizarem seus conhecimentos, quando o farão? Ah sim, qual é vossa profissão?

— Geólogo.

— Astrônomo.

— Perfeito, isto pode nos ser útil mais tarde. No momento há coisas mais urgentes.

Ao trabalho!

— Mais tarde, porque?

— Imagino que sabem que já não estamos na Terra. Não é necessários ser doutor para se dar conta disto! Não deixa de ser divertido. Ontem eram eles que davam as ordens; hoje, ao contrário, sou eu quem determina as tarefas dos engenheiros.

— Como te chamas?

— Louis Mauriere, contramestre da fábrica. E vocês?

— Este é Michel Sauvage; eu sou Jean Bournat.

— Então é da família do velho. É um bom sujeito!

— Atenção. — disse Michel — Ouço algo.

Sob o monte de ruínas se percebiam chamados débeis.

— Diz-me, Pierre. — Perguntou Louis a um dos obreiros — Quem ocupava esta casa?

— Mãe Ferrier e sua filha, uma bonita pintinha de dezesseis anos. Espera, um dia fui à sua casa. Aqui havia a cozinha. Eles devem estar nesta outra sala!

Indicava-nos uma parede meio destruída.

Michel inclinou-se, gritando através dos interstícios.

— Ânimo! Viemos buscá-las Todos nós escutávamos com ansiedade.

— Rápido! Rápido. — respondeu uma voz jovem e angustiada.

Rapidamente, porém metodicamente, escavamos um túnel entre os destroços, utilizando objetos os mais inverossímeis: uma escova, uma caixa de ferramentas e um receptor de radio. Meia hora mais tarde as chamadas cessaram. Continuamos, redobrando nossos esforços, aceitando o risco, e pudemos enfim salvar, a tempo, Rose Ferrier. Sua mãe estava morta.

Falo com detalhes deste salvamento, entre tantos outros realizados naquele dia, com êxito ou sem ele, porque Rose, embora involuntariamente, deveria personificar mais tarde o papel de Helena de Esparta e oferecer o pretexto da primeira guerra em Tellus.

Levamo-a à enfermaria e depois nos sentamos para comer um pouco, porque estávamos famintos. O Sol azul alcançava seu zênite quando meu relógio marcava 7h.

17m. Havia se erguido às 00:0h. O dia azul tinha, portanto, aproximadamente 14h 30m.

Trabalhamos toda a tarde sem parar. À noite, quando o Sol azul se escondeu detrás do horizonte, e o Sol avermelhado, minúsculo, nasceu no leste, não restava ferido algum sob as ruínas O número total ascendia a 81. Entre eles contavam-se 21 mortos.

Ao redor do poço, seco, claro, levantou-se um pitoresco acampamento. Trapos estendidos sobre estacas fizeram as vezes de tendas de campanha para aqueles que haviam ficado sem teto. Louis mandou montar uma para os operários que haviam participado no salvamento.

Sentamo-nos diante de uma tenda e tomamos uma ceia fria à base de carne e pão, regada a vinho tinto, que me pareceu o melhor da minha vida. Depois fui à enfermaria na vã esperança de ver Martina: Ela dormia. Massacre estava satisfeito; poucos casos graves. Havia ordenado que Breffort e meu irmão se deitassem. Os dois estavam bem.

— Desculpa-me, estou caindo de sono, — disse o cirurgião — e amanhã tenho uma operação que, nas presentes condições, será delicada.

Voltei à tenda e não demorei também a cochilar em cima de uma grossa cama de palha. Despertei por causa do ruido de um motor. Era «noite» ainda, ou seja, este semi-dia púrpura que conheceis pelo nome de «noite vermelha». O carro se deteve detrás de uma casa silenciosa. Dei a volta e vi meu tio. Havia descido com Vandal para saber das novidades.

— E então? — perguntei.

— Nada. A cúpula está imobilizada por falta de eletricidade. Passei pela fábrica. Estranges me disse que por algum tempo não poderemos dispor de corrente. A represa não nos acompanhou. Mudando de assunto, posso dizer-te que nos encontramos em um planeta que gira sobre si mesmo em 29 horas, e cujo eixo está pouco ou nada inclinado com relação ao plano de sua órbita.

— Como sabe disto?

— Muito simples: o dia azul durou 14h 30min. O Sol vermelho levou 7h 15min. para alcançar o zênite. Portanto, a duração total do dia bi-solar é de 29 horas. Por outro lado, os dias e as «noites» são iguais, e com certeza estamos no equador; mais exatamente em torno do grau 45 de latitude Norte. Por conseguinte, eu deduzo que o eixo do planeta está muito pouco inclinado, a menos que tenhamos caído justamente no equinócio. O Sol vermelho é exterior à nossa órbita e gira provavelmente conosco ao redor do Sol azul. Este é um momento em que os dois sois e nós mesmos estamos em situações opostas. Passado o tempo necessário, não deveremos estranhar se formos iluminados simultaneamente, algumas vezes, pelos dois ou por nenhum.

Então haverão noites negras ou, melhor dito, com luas.

— Com luas?

— Olha para o céu — Levantei a vista. Pálidas, em um céu rosa, havia duas: uma um pouco maior que nossa velha Lua terrestre, a outra aproximadamente igual.

— Faz pouco tempo, havia mais outra. — continuou meu tio — É a menor das três e já está escondida.

— Quanto nos resta de «noite»?

— Apenas uma hora. Na fábrica vimos alguns granjeiros dos arredores. Há poucas vítimas. Porém mais distante…

— É necessário ir vê-los. — disse — Vou no seu carro com Michel e Louis Mauriere.

Temos que saber a extensão do nosso território.

— Vou com vocês.

— Não tio. Tens um pé torcido, podemos ter avarias e ver-nos obrigados a andar.

Daremos uma volta ultra rápida.

— Está bem; ajuda-me a descer e leva-me à enfermaria. Você vem comigo Vandal?

— Eu gostaria de participar desta excursão. — disse o biólogo — Imagino que a parte terrestre não será muito extensa e vocês têm a intenção de seguir seus contornos.

— Enquanto encontrarmos caminhos praticáveis. Bem, venha conosco. Pode ser que tropecemos com alguma fauna inédita. Esta saída corre o risco, por outro lado, de ser demasiado calma, nesse caso sua experiência na Nova Guiné pode ser-nos muito útil. Despertei Michel e Louis.

— Certo, — disse ele. — porém antes queria falar com seu tio. Senhor Bournat. Poderia você, durante nossa ausência, fazer um censo da população e dos recursos existentes em víveres, armas, utensílios, et cétera? Depois da morte do prefeito, você é aqui o único a quem todos escutarão. Você está em boas relações tanto com o Senhor cura, como com o Senhor mestre. Não vejo ninguém mais que Juillet, o dono do bar, que talvez no goste muito de você. Embora, claro está, que estaremos de volta antes que termine tudo aqui.

Subimos no carro, um velho modelo sem capota, muito sólido. Eu havia sentado ao volante quando meu tio chamou: — Pega o que tenho na bolsa.

Abri-a e tirei uma pistola regulamentar, calibre 45.

— Esta é minha arma de oficial de artilharia. Toma. Quem sabe o que vais encontrar.

Na bolsa do carro há dois carregadores.

— É uma boa ideia. — disse Louis — Não teria você outra arma?

— Não, porém me parece que deve haver escopetas de caça no povoado.

— Certo. Pararemos na casa de Boru. É um ajudante aposentado da «Colonial» e um caçador empedernido Despertamos o velho e, apesar dos seus protestos, pegamos boa parte do seu arsenal: um «Winchester» e duas escopetas de caça, com as respectivas munições.

Partimos com a alvorada, para o Leste. Enquanto foi possível, seguimos a estrada que de vez em quando aparecia ligeiramente seccionada, mas mesmo assim conseguíamos seguir em frente. Um afundamento nos deteve durante uma hora. Três horas depois da nossa partida caímos em uma zona caótica: não se viam mais que montanhas derrubadas, montes de terra, pedras, árvores e, por desgraça, escombros de casas.

— Devemos estar perto do limite. — disse Michel — Vamos a pé.

Deixando o carro sem vigilância, talvez um pouco imprudentemente, pegamos nossas armas, algumas provisões e alcançamos a zona devastada. Avançamos penosamente durante mais de uma hora. Para um geólogo, o espetáculo era fantástico; um espesso caldo de rochas sedimentares, um magma das eras primária, secundária e terciária em tal estado de agitação que eu recolhi, em poucos metros, um trilobita, um amonita cenomaniano e numilitas.

Louis e Vandal, que seguiam na frente, tropeçaram com uma inclinação enquanto eu me atrasava recolhendo fósseis. Chegaram em cima e pudemos escutar suas exclamações.

Em poucos instantes, Michel e eu nos juntamos a eles. Tão distante quanto alcançava nossa vista, estendia-se um pântano de águas oleosas, povoadas de uma vegetação de ervas rígidas, acinzentadas, com se cobertas de pó. A paisagem era sinistra e grandiosa.

Vandal pegou seu binóculo e deu uma olhada para o horizonte.

— Montanhas. — disse.

Emprestou-me o binóculo. Longe, a Sudoeste, uma linha azulada se destacava no céu.

Ao redor do promontório que formava a zona terrestre, o limo havia deslizado, amontoando-se com cólera, sepultando e destruindo a vegetação. Com precaução, descemos até a borda das águas. De perto era quase transparente; o pântano parecia profundo e era salobro.

— Isto é um deserto. — observou Vandal — Nem peixes nem pássaros.

— Olha ali. Disse Michel.

Ele nos indicava em um banco de lama um ser esverdeado, de pouco mais de um metro. Em uma extremidade tinha a boca rodeada de uma coroa de seis tentáculos moles; na base de cada tentáculo se fixava um olho glauco. No outro extremo do corpo uma potente cauda se espalhava em forma de aleta. Não pudemos examiná-lo de mais perto por causa da sua situação inacessível. Enquanto subíamos novamente a elevação, um animal idêntico correu pela margem a grande velocidade, com os tentáculos ao longo do corpo. Apenas entrevisto, lançou-se nas águas.

Antes de voltar ao carro, fizemos uma última observação. Foi então que, pela primeira vez desde que chegamos a este mundo, divisamos uma nuvem. Era de um tom esverdeado e flutuava muito alto. Dias depois conheceríamos seu terrível significado.

Encontramos o carro com os faróis acesos.

— Mas, — disse — estou absolutamente certo de tê-los apagado. Algum curioso deve ter feito isto Entretanto, ao seu redor, no pó da estrada, não havia mais pegadas que as nossas.

Apaguei os faróis, lançando uma exclamação: o mostrador estava banhado de uma substância viscosa e fria, como a baba dos caracóis.

Seguimos até um ramal que se dirigia ao Norte e, imediatamente, fomos detidos pelas montanhas desmoronadas.

— O mais prático — disse Louis — será voltar ao povoado e tomar o caminho da estrada.

Aqui estamos muito próximos da zona morta.

Encontramos meu tio sentado em uma cadeira, com uma atadura no pé, conversando com o cura e com o mestre. Informamos que não deviam nos aguardar até o dia seguinte e partimos na direção Norte.

A estrada subia primeiro um pequeno desnível e então descia até um vale paralelo.

Achamos algumas granjas que não haviam sido muito danificadas; os camponeses cuidavam dos seus animais e dos seus labores, como se nada houvesse acontecido.

Alguns quilômetros mais distante nos vimos obrigados novamente a deter-nos.

Aqui a zona destruída era mais estreita e na sua metade se levantava, intacto, um montículo. Subimos nele e pudemos dar-nos conta do aspecto geral daqueles lugares.

Ali também, um pântano bordeava a «terra».

Como estava chegando a noite vermelha, nos deitamos em uma fazenda, esgotados por nossas escaladas.

Depois de seis horas de sono, marchamos para o Oeste. Nesta ocasião não foi uma pântano que nos deteve, e sim um mar desolado. Depois seguimos para o Sul. A «terra» alcançava uns doze quilômetros antes da zona morta. Por um milagre, a estrada se conservava quase intacta no meia do destruição, o que facilitou enormemente nossa exploração. Contudo, nos vimos obrigados a rodar a pouca velocidade, porque de vez em quando os penhascos obstruíam nosso caminho.

De súbito, depois de uma curva, desembocamos em lugar resguardado. Estava rodeado de bosques e pastos, em um vale menor, no qual havia se formado um lago por causa dos desprendimentos que haviam detido a torrente. A meia subida se alçava um pequeno castelo. Uma avenida de árvores conduzia à entrada.

Penetrei com o carro, embora tenha observado uma placa: «Estrada proibida, propriedade privada»

— Creio — disse Michel — que dadas as circunstâncias…

Apenas chegados em frente ao castelo, na entrada apareceram um jovem e duas moças. A fisionomia do primeiro expressava uma surpresa encolerizada. Era bastante alto e bem parecido, moreno e robusto. Uma das jovens, de aspecto agradável, era evidentemente sua irmã. A outra, mais velha, apresentava um cabelo excessivamente ruivo para ser natural. O jovem desceu as escadas com rapidez.

— Não sabem ler?

— Pensei — começou Vandal — que nestas circunstâncias…

— Aqui não há circunstâncias que justifiquem! Esta é uma propriedade privada e não quero ninguém que não tenha sido convidado.

Naquele tempo eu era jovem, vivaz e não muito cortês.

— Vamos ver, jovem impetuoso, nós viemos ver se, por azar, este glorioso castelo, que não é provavelmente de seus antepassados, não havia caído sobre isto que te serve de cabeça. Parece-lhe bem receber-nos desta forma?

— Saia da minha casa! — vociferou — ou mando que os expulsem, a ti e a teu comparsa.

— Ia avançar, quando Vandal interveio; — É inútil que briguemos. De qualquer forma vamos embora. Porém permita adverti— lo que nos encontramos em outro planeta e que vosso dinheiro corre o perigo de ficar sem curso legal.

— Que está acontecendo?

Um homem na plenitude da idade, de notável envergadura, acabava de aparecer, seguido de uma duzia de indivíduos de aspecto pouco tranquilizador.

— O que ocorre, pai, é que esta gente entrou sem permissão de ninguém e que…

— Cala-te Charles!

Dirigiu-se a Vandal: — Você falava de outro mundo, que há de verdade nisto tudo?

Vandou informou-o.

— Então não estamos na Terra? Isto é muito interessante. Em um pais virgem?

— Até o momento, a esse respeito nada vimos mais que um pântano que fecha-nos em duas direções e um mar por outra. Falta-nos explorar o último lado, o de vocês, sempre e quando seu filhe nos autorize.

— Charles é jovem e ignorava estes acontecimentos. Não havíamos compreendido absolutamente nada. Primeiramente acreditei que se tratava de um tremor de terra.

Porém, quando vi os dois sois e as três luas… Enfim, obrigado por haver-nos explicado a situação. Tomarão alguma bebida conosco…

— Obrigado, porém não temos tempo.

— Claro que sim! Ida, manda preparar…

— Sinceramente, não temos tempo. — disse — É essencial que cheguemos até o limite e estejamos no povoado à noite.

— Neste caso não insisto mais. Virei amanhã para conhecer o resultado de suas explorações.

Partimos.

— Não é muito simpática essa gente. Disse Michel.

— Ora! — disse Louis — Não sabem quem eles são? Os Honneger, suíços, assim afirmam, milionários, que se hão enriquecido com o tráfico de armas. O filho é pior que o pai. Está certo de que todas as garotas vão cair em seus braços por causa do seu dinheiro. Não existe sorte! Eles é que deveriam ter ficado sob as ruínas, e não o prefeito.

— E a ruiva?

É Magda Ducher. — disse Michel — Uma atriz de cinema, mas ela é mais célebre por suas aventuras escandalosas que por seu trabalho artístico. Sua foto estava em todos os jornais.

— E a duzia de indivíduos macabros?

— Provavelmente guarda-costas para seu negócio sujo. — disse Louis.

— Temo que essa gente nos dará o que fazer. — manifestou-se Vandal pensativo.

Adentramos na outra zona morta, o que nos levou quatro horas de marcha para atravessá-la, porém nesta ocasião tivemos o prazer de vê-la terminar em terra firme.

Eu estava emocionado. De pé, sobre um bloco calcário, meio enterrado em uma vegetação desconhecida, hesitei um momento antes de pisar no solo de outro mundo.

Louis e Michel, menos impressionáveis, me haviam antecedido.

Recolhemos algumas amostras de plantas. Eram umas ervas esverdeadas, duras e cortantes, sem inflorescências, arbustos de talo muito rijo, de casca cinza metálico.

Pudemos examinar também um representante da fauna. Foi Louis quem o descobriu.

Tinha a forma de uma serpente chata, de uns três metros de comprimento, cego e invertebrado. A «cabeça» armada de duas grandes mandíbulas fortes e tubulares, análogas a uma larga de dítico, como nos disse Vandal. Não tinha semelhança alguma com a fauna terrestre. Parecia dissecado. Observei com interesse que seu tegumento tinha uma abertura desmesurada, ao redor da qual havia se solidificado uma baba brilhante. Vandal teria querido levar este exemplar. Porém, examinandolhe mais de perto, vimos, e sobretudo percebemos, que somente o tegumento era seco e que o interior estava em plena decomposição. Contentamo-nos em fotografálo.

Como as altas ervas poderiam ocultar outros espécimes, estes vivos e perigosos, batemos em retirada, voltando à estrada do povoado.

A planície se perdia ao longe e no céu flutuava uma nuvem verde.

II — SOLIDÃO

Antes de pretender explorar o planeta, necessitávamos de um estabelecimento sólido sobre o pedaço da terra que nos havia seguido, e tínhamos que organizar ali uma sociedade.

Uma boa notícia nos aguardava no povoado: o poço tinha água de novo, que se revelou potável, apenas um pouco salobra, segundo análise que fez Vandal. O censo estava em marcha. Havia sido fácil para os homens, mas difícil para o gado, e andava muito mal com referência às reservas materiais. Pois, como disse meu tio: todos me conhecem, porem eu não sou ninguém, nem prefeito, nem sequer um vereador municipal.

Da recontagem, se depreendia que a população da vila ascendia a 843 homens, 1.007 mulheres e 897 meninos menores de dezesseis anos; um total de 2.847 almas.

O gado parecia abundante, em especial o bovino.

Louis disse então: — Amanhã, pela manhã, precisamos fazer uma reunião geral.

Mandou chamar o pregoeiro e passou a ele um pedaço de papel com um texto escrito a lápis Eis aqui exatamente seu conteúdo Ainda tenho em meu poder este papel, frágil e amarelado: «Cidadãs e cidadãos: amanhã pela manhã, na praça do poço, assembleia geral. O Senhor Bournat, astrônomo, lhes explicará sobre a catástrofe. Louis Mauriere e seus companheiros lhes comunicarão o resultado das suas explorações. A reunião terá lugar duas horas após a saída do Sol azul. Temos que tomar decisões para o futuro. É indispensável o comparecimento de todos.» Tenho uma clara recordação dessa assembleia Primeiramente, Louis tomou a palavra: «Antes que o Senhor Bournat explique, dentro do possível, o que ocorreu, vou dizer algumas coisas. Vocês sabem que não estamos na Terra. Concluído o salvamento dos feridos, vamos enfrentar tarefas difíceis. Antes de mais nada, temos que nos organizar.

Nenhuma comunidade humana pode subsistir sem leis. Uma parte da Terra nos acompanhou: mede aproximadamente 30 quilômetros de comprimento por 17 de largura, e tem mais ou menos a forma de um romboide, com uma superfície total de 300 quilômetros quadrados. Porém não se pode ter ilusões: somente uma quarta parte está apta para o cultivo; o resto não são mais que montanhas de cabeça pra baixo. Eu acredito que esta superfície será suficiente para alimentar-nos, ainda que nossa população aumente com relação ao censo atual.

O verdadeiro problema não é o de terras, que serão mais que suficiente para que todo mundo possua milhares de hectares, já que um planeta inteiro nos aguarda. O problema real é o da mão de obra. A partir deste momento, todo mundo é indispensável e todo mundo deve trabalhar. Temos a sorte de ter conosco sábios e técnicos.

Porém todos devemos nos considerar como pioneiros e adotar esta mentalidade.

Aquele que em lugar de ajudar o seu vizinho, o prejudique, é um criminoso, e assim deve ser considerado. Queiramos ou não, esta é, no futuro, nossa lei, e devemos respeitá-la ou perecer! Agora mesmo, com a ajuda de voluntários, vou organizar um comitê de inscrição por profissões. Os que estão aqui nos informarão sobre os ausentes.

Amanhá se reunirá a assembleia que vai eleger os deputados mandatários pra a constituição do nosso governo, continuando a jurisdição do conselho municipal sobre os assuntos ordinários. E agora cedo a palavra ao Senhor Bournat».

Meu tio levantou-se, apoiado em seu bastão.

«Meus amigos: como sabeis, uma catástrofe sem precedentes nos arrancou, temo que para sempre, da nossa velha Terra, e nos projetou neste mundo desconhecido.

Qual é este planeta? Não saberia dizê-lo. Haveis podido comprovar que existem dois sois e três luas. Nos vos assusteis por eles. O Senhor cura e o Senhor mestre, que têm vindo ver-me com frequência no observatório, os dirá que isto aconteceu „Por um azar providencial“ — aqui o pároco maneou a cabeça com ar de aprovação — caímos sobre um planeta que possui um ar respirável para nós, que em verdade difere apenas um pouco do da Terra. Segundo meus cálculos iniciais, este planeta deve ser ligeiramente maior que a Terra. Louis Mauriere, há pouco estabeleceu um esquema excelente da próxima tarefa a realizar. Tão logo saiba de alguma novidade deste mundo, que agora é nosso, os comunicarei».

A reação dos ouvintes foi, no geral, boa. Os camponeses haviam, evidentemente, aceitado o cataclismo. Rotineiros e apegados à terra, a maioria deles havia conservado suas famílias. Entre o pessoal do povoado a incredulidade foi maior: — Caramba! Que história a do velho e seu novo mundo! Não esperávamos isto nem depois de mortos.

— Mas… e os dois sóis?

— O mundo é muito pequeno. E depois temos que ver as coisas que se passam com sua ciência. Se queres minha opinião, trata-se de um novo experimento do mesmo gênero que o da bomba atômica.

Os dramas familiares foram também muito frequentes. Um rapaz estava aterrado ante a ideia de que nunca mais voltaria a ver sua noiva, que estava viajando, na casa de uma prima. Queria a toda custa mandar-lhe um telegrama. Outros tinham familiares soterrados sob as montanhas e sob as ruínas das suas casas.

O dia seguinte era domingo. Pela manhã fomos despertados por um carrilhão. O pároco, ajudado por seus fieis, havia recuperado os sinos que estavam nas ruínas da igreja, e agora os tocava em pleno ar, suspensos no ramo central de um carvalho.

Quando chegamos, havia terminado de celebrar uma missa de campanha. Era um homem excelente este sacerdote, e demonstrou mais tarde que sob sua rechonchuda pessoa ocultava vastas possibilidade de heroísmo Cheguei perto dele.

— Muito bem, Monsenhor, felicito-o. Seus sinos nos recordaram agradavelmente da Terra.

— Monsenhor? — perguntou.

— Claro, sois o Senhor Bispo agora. Diria ainda mais: o Santo Padre.

— Meu Deus! Não havia pensado nisto. É uma terrível responsabilidade — disse empalidecendo.

— Estou certo de que tudo seguirá perfeitamente.

Abandonei-o, muito assustado, e alcancei Louis instalado na escola. Estava sendo assistido pelo mestre e pela sua mulher, ambos jovens.

— Tua pesquisa avançou?

— Mais ou menos. O que uns omitem, os demais dizem em seu lugar. Tenho aqui uma recontagem provisória: 2 mestres, 2 carreteiros, 3 pedreiros, 1 carpinteiro, 1 aprendiz de carpinteiro, 1 garagista, 1 pároco e 1 clérigo, 1 sacristão, 3 cafeteiros, 1 padeiro, 2 camareiros, 2 camiseiros, 3 merceeiros de importados. 1 ferreiro e 2 ajudantes, 6 quebradores de pedra, 2 policiais, 5 contramestres, 350 operários, 5 engenheiros, 4 astrônomos, 1 geólogo, tu 1 cirurgião, 1 médico, 1 farmacêutico, 1 biólogo, 1 historiador, teu irmão, 1 antropólogo, 1 veterinário, 1 relojoeiro e especialista em radio, 1 alfaiate e 2 aprendizes, 2 modistas, 1 guarda oficial. Os demais são camponeses. Quanto ao velho Boru, quer ser classificado como «caçador furtivo». Ah! Ia esquecendo: o dono do castelo, seu filho, suas filhas, seu amante e ao menos doze capangas. Estes só nos causarão complicações!

— E quanto aos recursos materiais?

— Onze carros, sem contar o do teu tio e o 20Hp de Michel, que consome muito; 3 tratores, um deles com correntes; 18 caminhões, dos quais 15 são da fábrica; 10 motos e uma centena de bicicletas. Por desgraça, só dispomos de 12.000 litros de gasolina e 13.600 de óleo dieses. Poucos pneus de reserva.

— Não te preocupes pela gasolina, nós os faremos andar com gasogênio.

— E como produzirás o gasogênio?

— Na fábrica.

— Mas não há eletricidade. Temos geradores movidos a vapor, porém há pouco carvão e não muita madeira.

— Haverá hulha, não muito longe daqui, nas montanhas. Deve servir. Difícil de explorar, certamente, porém não temos escolha.

— Encontra-o. É teu ofício. Quanto aos víveres, estamos abastecidos, porém será necessário cuidar deles até a próxima colheita. Provavelmente serão necessários talões de racionamento. Me pergunto como os faremos aceitar isto!

As primeiras eleições em Tellus tiveram lugar no dia seguinte. Realizaram-se sem programa definido: os eleitores foram advertidos que iam eleger um comitê de Saúde Pública. Deveria compor-se de nove membros, eleitos por maioria relativa, votando, cada eleitor, em favor de uma lista de nove nomes.

O resultado foi uma surpresa: O primeiro eleito, com 987 votos sobre um total de 1.302 votantes, foi o primeiro prefeito adjunto, Alfred Charnier, um rico camponês. O segundo foi o mestre, seu primo distante, com 802 votos; o terceiro o Senhor cura com 890 votos. Depois vinham Louis Mauriere, com 802 votos; Marie Presle, camponesa ilustrada, ex conselheira municipal, com 801 votos; meu tio, 798 votos; Estranges, 780 votos, e, para nossa surpresa, Michel com 706 votos, — ele era muito popular entre a ala feminina! — e eu, com 700 votos. Soube depois que Louis havia feito campanha em meu favor, alegando que eu saberia encontrar ferro e carvão, necessários.

O dono do Café Principal, com grande despeito seu, só obteve 346!

O que mais nos surpreendeu foi a insignificante proporção de camponeses eleitos.

Talvez, naquelas estranhas circunstâncias, os eleitores se fixaram nos que, por seus conhecimentos, seriam mais capazes de tirar partido de tudo; pode ser também que desconfiassem uns dos outros, e optaram por eleger a homens alheios às querelas do povoado.

Como foi imposto, oferecemos a presidência a Charnier. Este recusou, e, finalmente, se designou por turno ao mestre e ao pároco.

À noite, Louis, que compartilhava uma casa com Michel e comigo, nos disse: — É necessário formar bloco. Vosso tio virá conosco. Creio que podemos contar com o mestre. Seremos cinco, ou seja, a maioria. Será preciso impor nossos pontos de vista, o que não será sempre fácil. Teremos o apoio dos operários, talvez dos engenheiros, e ainda de uma parte do pessoal do povoado. Não falo dessa forma por ambição pessoal, porém creio sinceramente que somos os únicos que sabemos claramente o que falta para dirigir este fragmento de terra.

— Na realidade, — disse Michel — tu nos propões uma ditadura.

— Uma ditadura? Não, apenas um governo forte.

— Não vejo, muito claramente, a diferença, — disse eu — mas creio que com efeito é necessário. Teremos oposição…

— O Senhor cura… — aventurou Michel.

— Não é certo. — cortou Louis — É inteligente, e como nós não vamos, de modo algum, meter-nos em questões religiosas, podemos tê-lo do nosso lado. Os camponeses?

Terão tanta terra quanto possam cultivar. Não há nada no coletivismo moderado que estou projetando, exclusivamente para a indústria, que possa inquietá-los. Não, as dificuldades virão do espírito de rotina. Ao menos num futuro próximo. Mais tarde, dentro de algumas gerações, o problema poderá ser outro. Hoje se trata da subsistência.

E se começamos a brigar ou a permitir que reine a desordem…

— Tudo bem, estou de acordo.

— Eu também. — disse Michel — Nunca pensei que faria parte de um Diretório!!

A primeira reunião do Conselho dedicou-se à distribuição das «pastas».

— Comecemos pela Educação Nacional. — disse Michel — Proponho que o Senhor Bournat seja nosso Ministro das Ciências. Não podemos, sob propósito algum, deixar que nossa herança seja perdida. Cada um de nós, «os cientistas», deverá escolher, entre os alunos da escola, aqueles que nos pareçam mais aptos. Lhes ensinaremos primeiramente o aspecto prático de nossas respectivas especialidades. A teoria será ensinada aos mais capazes, se houver. Será mister, também, escrever os livros necessários para completar a biblioteca do observatório, que é, afortunadamente, vasta e eclética, e a da escola também.

— Muito bem. — disse Louis — Proponho para a Indústria ao Senhor Estranges; O Senhor Charnier, Agricultura; tu, Jean, ficarás com o cargo das Minas, cargo de muita importância. O Senhor cura terá a administração de Justiça e Paz, e o Senhor mestre as Finanças, já que ele estudou economia política, era seu passatempo. Seria necessário estabelecer uma moeda o qualquer meio de câmbio.

— E eu? — perguntou Michel.

— Tu podes dirigir a polícia.

— Eu? Policial?

— Sim, um cargo difícil: o censo e padronização, requerimentos, Ordem Pública, etc. Tu és popular, isto te ajudará.

— Não vou durar muito tempo! E tu, que cargo terás?

— Um momento. Marie Presle se ocupará da Saúde Pública, assistida pelo Doutor Massacre e pelo Doutor Juillet. Para mim, se concordarem, o Exército.

— O Exército? E porque não a Frota?

— Quem sabe o que este planeta nos reserva? Não me surpreenderia muito se nosso habitante do castelo não faça alguma das suas muito em breve.

Louis não podia estar tão certo. No dia seguinte, numerosos exemplares de um cartaz «impresso» apareceu por nossas ruas. Seu texto era o seguinte: «Cidadãos e camponeses: um pretenso comitê de Saúde Pública empunhou o poder sob a aparência de democracia. Quem compõe este Conselho? Cinco estrangeiros entre nove membros! Um operário, três intelectuais, um engenheiro e um mestre.

Total de seis votos contra três votos camponeses e o do Senhor cura, arrastado nesta aventura. Que pode saber esta Junta de vossas legítimas aspirações? Quem, ao contrário, melhor que eu, grande proprietário rural, poderia compartilhá-las? Vinde comigo e poremos para correr toda essa quadrilha! Podeis encontrar-me no castelo Assinado: JOAQUIN HONNEGER.

Louis cantou vitória.

— Eu lhes disse, temos que tomar medidas.

A primeira delas foi a de requisitar todas as armas e distribuí-las entre uma guarda selecionada entre os elementos de confiança. Organizou-se com cinquenta homens sob o comando de Simon Beauvin, tenente da reserva. Este embrião de exército era, apesar de tudo, uma força apreciável.

Por aqueles dias, tivemos a confirmação da nossa solidão. Os engenheiros, ajudados por Michel e por meu tio, conseguiram montar um aparelho emissor de bastante potência, Radio Tellus. Havíamos designado o nome Tellus, designação latina de Terra, em homenagem ao nosso antigo mundo. A lua maior foi Febo, a segunda, Selene e a terceira Ártemis. O sol azul foi Helios, o sol vermelho, Sol; sob estes nomes vós os conheceis.

Com emoção, Simon Beauvin lançou as ondas ao espaço. Por quinze dias seguidos repetimos a experiência em uma gama muito variada de longitude de onda. Não chegou resposta alguma. Visto que o carvão escasseava, fomos espaçando nossas chamadas até somente uma por semana. Tivemos que nos resignar: ao nosso redor não havia nada mais que solidão. Ou talvez alguns pequenos grupos sem radio.

III — AS HIDRAS

Além de outros pasquins do mesmo estilo, rapidamente destruídos, Honneger não voltou a manifestar-se. Não pudemos pegar com a mão na massa os que pregavam os cartazes, porém o dono do castelo deveria, muito em breve, recordar-nos da sua existência de uma maneira trágica.

Recordam de Rose Ferrier, a moça que salvamos, no primeiro dia, das ruínas da sua casa? Embora muito jovem, — ela tinha então dezesseis anos — era a mais bonita do povoado. O mestre havia nos advertido que antes do cataclismo Charles Honneger lhe fazia a corte muitas vezes.

Uma noite vermelha, fomos despertados por uns disparos. Michel e eu saltamos da cama, precedidos, apesar de tudo, por Louis. Ao sair de casa topamos com pessoas excitadas, correndo na semi-noite púrpura. Pistola na mão, marchamos a toda pressa na direção dos disparos. O piquete da guarda já estava lá, e pudemos ouvir os fuzis de caça, misturados ao «craques» da «Winchester» do velho Boru, o qual fora designado como sargento, na guarda.

Produziu-se um resplendor, que foi aumentando: uma casa estava ardendo. A batalha parecia confusa. Quando chegamos à praça do poço, as balas silvavam ao nosso redor, seguidas pelos estalos de uma arma automática: os assaltantes tinham metralhadoras Subindo, nos juntamos a Boru.

— Peguei um. — nos disse ele satisfeito — Novo. Como fazia com as camurças, nos outros tempos — Quem? — inquiriu Michel.

— Não sei. Um desses porcos que nos atacam.

— Soaram entretanto alguns disparos, seguidos por um grito de mulher: — Socorro, me ajudem!

— Rose Ferrier! — disse Louis — Este canalha do Honneger a levou!

Uma rajada de fuzil metralhadora nos obrigou a baixar a cabeça. Os gritos decresciam na distância. Um carro se pôs em marcha.

— Espera um pouco, porco. — gritou Michel.

Uma risada de mofa lhe respondeu.

Perto do incêndio vimos alguns mortos e um ferido que se arrastava. Ante nossa estupefação reconhecemos o alfaiate. Ele havia sido atingido na coxa, e encontramos um carregados de metralhadora nos seu bolso.

Levou-se a cabo um rápido interrogatório. Pensando em salvar a pele, ele contou ou planos de Honneger, ou menos o que ele sabia: Ao amparo das armas automáticas e apoiado por um bando de uns cinquenta bandidos, tinha a intenção de apoderar— se do povoado e ditar sua lei a este mundo.

Afortunadamente para nós, seu filho, que há muito tempo desejava Rose, não tinha tido a paciência de aguardar e havia vindo raptá-la com um cortejo de doze bandidos.

O alfaiate era o seu espião e deveria ter seguido com eles. Ajudado pelo dono do Bar Principal, Juillet Maudru, era ele que pregava os cartazes. Ele foi enforcado naquela mesma noite, junto com seu cúmplice, no ramo de um carvalho.

Este episódio nos custou três mortos e seis feridos. Três moças, Rose, Micheline Audry e Paquita Presle, sobrinha de Marie, haviam desaparecido. Em compensação, esse ataque alinhou conosco todo os povoado e os camponeses.

Os bandidos tiveram dois mortos, além dos cúmplices justiçados.

No lugar da agressão recuperamos duas metralhadoras, uma pistola e uma boa quantidade de munição.

Antes do amanhecer azul, o Conselho, por unanimidade, decretou como fora da lei a Charles e Joachin Honneger e seus cúmplices e a mobilização de um pequeno exército. Porém graves acontecimentos iam atrasar o ataque ao castelo.

Pela manhã, enquanto o exército se reunia, apareceu, enlouquecido, um homem em uma moto. Três dias antes, este mesmo camponês que morava com sua mulher e seus dois filhos em uma granja isolada, a uns cinquenta quilômetros do povoado, nos havia comunicado que uma de suas vacas havia morrido em circunstâncias estranhas.

Pela manhã estava perfeitamente bem e à noite apareceu morta na pastagem, sem sangue e quase sem carne. Sobre sua pele apareciam uns buracos espalhados.

O homem desceu da moto com tanta precipitação que rodou rolou no pó. Estava lívido.

— Animais que matam! São polvos voadores e matam de um golpe só!

Depois de tê-lo confortado com um copo de aguardente, pudemos obter dados mais precisos.

— Esta manhã, ao amanhecer, fiz as vacas saírem. Queria limpar o estábulo. Meu filho Pierre as levou para pastar. Juro! eu havia visto perfeitamente uma nuvem verde, muito alta, porém não lhe dei importância. Senhor meu, em um mundo que tem dois sois e três luas, as nuvens bem podem ser verdes, pensei. Pois sim! Que asco!

Ela desceu, e vi cerca de uma centena de polvos verdes, com tentáculos que se agitavam. Se lançaram sobre as vacas e os pobres animais rolaram pelo solo, mortos.

Em seguida eu gritei para que Pierre se escondesse. Porém o desgraçado não teve tempo!

Um dos polvos nadou no ar e, a três metros de distância, lançou uma espécie de língua que alcançou meu filho pelas costas e o matou. Então encerrei minha mulher e meu caçula, a chave, mandei que não se movessem e peguei a moto. Aqueles asquerosos me perseguiram, porém eu pude escapar. Por piedade, venham comigo! Tenho medo que eles possam entrar na casa!

Pela descrição dos agricultor reconhecemos no mesmo instante o animal que vimos no pântano. O que nos surpreendeu foi que voasse. De qualquer forma, era um perigo terrível. Com Michel, subimos num veículo levando as duas metralhadoras e Vandal se instalou de vigia no assento traseiro. Beauvin formou um destacamento da guarda com um caminhão coberto e partimos.

Dois quilômetros mais adiante, encontramos a primeira Hidra. É o nome com que as designou Michel e que permaneceu. Estava sobrevoando uma ovelha. Um tiro de fuzil a abateu. Apesar das súplicas do lavrador, que não queria deter-se, mandamos a caravana parar.

— É preciso conhecer os inimigos antes de combatê-lo. — explicou-lhe Vandal.

O animal alcançava quatro metros de comprimento e tinha a forma de uma bota pelo avesso, com uma cauda potente e achatada. Na parte anterior, seis braços côncavos tinham nas suas extremidades uma abertura coroada de dentes afiados que segregavam uma baba viscosa. Tinha seis olhos na base dos tentáculos, e no centro uma protuberância cônica dotada de um longo filamento, rematada por um tubo em forma de chifre, seccionado obliquamente, com uma agulha de injeção.

— Uma cápsula de veneno. — disse Vandal — Aconselho combatermos dentro do caminhão, cujo toldo de lona grossa seguramente nos protegerá. É realmente o mesmo animal que vimos outro dia, porém maior e aéreo. Como são capazes de voar?

Na parte superior do corpo, a hidra possuía dois grandes sacos murchos, perfurados pelo chumbo. Atras da coroa de tentáculos, o grosso da carga havia provocado uma exposição considerável da carne esverdeada.

Partimos de novo. Baixei um pouco um vidro do meu lado, a fim de dar passagem ao cano da metralhadora. Michel dirigia. Vandal havia pegado a outra arma e vigiava o lado esquerdo. O caminhão nos seguia.

Após uma curva na estrada, descobrimos outra hidra. Flutuava no ar, imóvel, os tentáculos caídos e ondulando ligeiramente.

Por causa da surpresa, minha primeira rajada foi mal dirigida e a hidra, com uma rápida reação escapou em zig-zag, tomando altura a grande velocidade: ia pelo menos a sessenta por hora! Não pudemos alcançá-la.

A seiscentos metros dali estava a casa. Uma espiral de fumaça saia aprazivelmente da chaminé.

Ultrapassamos a casa e tomamos um caminho de areia. Seus profundos sulcos nos fizeram resvalar. Por trás dos vidros de uma janela entrevimos o rosto assustado da granjeira e do seu filho menor, um garoto de onze ou doze anos. Seguindo o campo e atravessando, chegamos aos pastos. Mais de sessenta hidras estavam atarefadas entre os cadáveres das vacas. Cada uma delas fincava um ou dois tentáculos em suas carnes.

— Havia mais, um momento atrás. — gritou o camponês — Cuidado!

Até a primeira carga, as hidras nem se preocuparam conosco. Algumas, de tão fartas, abandonavam os cadáveres para ir beber; ao menos foi assim como interpretamos seu comportamento. Voavam até uma balsa e afundavam na água um tentáculo, maior que os demais, parecido com um tronco. Depois de um instante, pareciam inchar— se e seu voo era claramente mais rápido.

Cada um escolheu seu alvo. Eu visei, cuidadosamente, o grupo mais próximo, composto por seis daqueles animais, entretidos com a mesma vaca.

— Fogo! — gritou Beauvin.

Produziu-se uma salva, como o som de seda rasgada. As cápsulas vazias da minha metralhadora crepitavam contra o parabrisas. Uma delas, encandecida, caiu pela abertura da camisa de Michel, que deu um grito. Entre as hidras formou-se o pânico.

Um bom número delas, feridas de morte, cairam ao solo desinfladas. Minhas rajadas acertaram no alvo. Vandal, mais afortunado ainda, o mais certeiro, matou duas delas com um só carregador. Os tiros das escopetas as despedaçavam.

As que ficaram vivas, tomaram altura a uma velocidade admirável. Segundos depois, somente se divisava uma mancha verde no alto.

Com as armas carregadas de novo, desci do carro com Michel e Vandal. Os demais permaneceram no caminhão, atentos e cobrindo-nos com seu fogo. A pele das vacas mortas aparecia perfurada por múltiplas aberturas quase circulares, produzidas, evidentemente, pelos dentes pontiagudos situados no extremo dos tentáculos. A carne havia se transformado em uma espécie de barro escurecido.

— Digestão externa, — explicou Vandal — com na larva de dítico. A hidra mata com seu mecanismo venenoso e depois injeta no corpo da sua vítima, através dos tentáculos, os sucos digestivos que transformam esta carna em uma sopa nutritiva, depois do que a absorve.

Desejoso de examinar o monstro mais de perto, Vandal aproximou-se de cócoras.

Ao roçar com a mão a carne verde, lançou um grito de dor: — Cuidado! Não as toquem.

Isto queima. Sua mão esquerda cobriu-se de pústulas esbranquiçadas.

— Como um celentério! Já conhecem o poder urticante das medusas. O mesmo resultado, talvez com idêntico procedimento. Se as toca é picado.

Sua mão inchou rapidamente, com dor sensível, porém o efeito não durou mais que dois dias.

Entretanto, a nuvem verde das hidras permanecia imóvel. Estávamos por ali, inquietos, temendo seguir, com medo que nos atacassem novamente, e também pelo fato de que talvez Honneger não tentasse um golpe de força sobre o povoado.

As próprias hidras deviam tirar-nos da indecisão.

— Em retirada! — gritou Michel, que as observava. Saltamos para o carro. Vandal entrou primeiro, após ele Michel e finalmente eu mesmo. Estava fechando a portinhola, quando uma hidra se precipitou sobre o carro, achatando-se contra o teto que, afortunadamente, resistiu ao embate. As demais, em uma roda infernal, rodeavam o caminhão a toda velocidade. Era um fantástico carrossel.

Apressadamente levantei o vidro, observando o espetáculo, disposto a intervir.

Produziu-se um nutrido fogo das escopetas. Certamente os da guarda não economizavam pólvora. As hidras feridas caíam ao solo, enquanto as demais continuavam sua enlouquecedora brincadeira de roda. De repente, como se obedecendo a um sinal, passaram ao ataque com o dardo distendido. Do caminhão ouviu-se um grito: uma hidra devia ter passado seu aparelho venenoso por uma fenda no toldo, picando um homem. O caminhão se pôs em marcha. Abrimos fogo. Em pouco tempo realizamos um bom trabalho. Era difícil, do modo como estavam pregadas no caminhão, alcançá— las sem ferir aos nossos camaradas, porém, como nenhuma delas se ocupava de nós, as acertávamos como em uma prova de tiro ao alvo. Derrubamos mais de trinta que, somadas às vitimas do primeiro assalto, aumentava o total das suas perdas em torno de setenta.

Desta vez aceitaram a lição e se elevaram definitivamente.

Uma delas, morta porém ainda inflada, derivava no ar a uns dois metros. Habilmente, um de nossos homens caçou-a com um laço e a levamos ao povoado, rebocada como um balão cativo.

Levamos também o granjeiro, sua mulher, seu filho menor e o cadáver maio digerido do maior. As doze vacas mortas ficaram ali, bem como as hidras, exceto uma delas, que Vandal mandou carregar com cordas, para dissecá-la mais tarde.

Contrariamente aos nossos temores, ninguém havia sido picado. O grito que havia ouvido foi devido ao medo. Porem, em resumo, agora já conhecíamos a gravidade da ameaça que a fauna selvagem de Tellus representava para nós.

Regressamos ao povoado como triunfadores. Os guardas, operários em sua maioria, cantavam estribilhos revolucionários. Michel e eu atroávamos o ar com as trompas de Aída, da maneira mais cursi possível.

Porém as notícias que Louis nos comunicou esfriaram um pouco nosso entusiasmo.

IV — VIOLÊNCIAS

Um reconhecimento efetuado no setor do castelo, por doze guardas, foi acolhido por uma rajada de metralhadora de 20mm. Uma prova disto foi um projétil que não detonou.

— Eis aqui os fatos. — disse Louis — Estes canalhas têm um armamento bastante mais poderoso que o nosso. Contra isto — mostrou o projétil — nossas escopetas para coelhos são como uma zarabatana… Realmente, só temos uma arma: o Winchester do velho Boru.

— E as metralhadoras. — disse eu.

— Perfeitas para o combate a trinta metros! E o que nos resta de munição apropriada?

Por outro lado, não podemos deixar-lhes o campo livre. Com certeza, Michel, tua irmã não está segura no observatório.

— Se esses canalhas se atreverem…!

— Se atreverão, rapaz. Dispomos de cinquenta homens, sem bom armamento e com pouca munição Eles são mais de sessenta e bem armados. E essas carniças de polpas verdes no meio! Se Constantino estivesse aqui!

— Quem é Constantino?

— Constantino é o engenheiro encarregado dos detonadores. Ah claro, não estás ao corrente. A fábrica tinha que fabricar, entre outras coisas, detonadores de explosivos para aviões. Temos um lote completo, porém somente as cápsulas metálicas, não as cargas. Claro que no laboratório de química deve haver o necessário para carregálas, porém nos falta o pessoal capaz de realizar isto.

Peguei suas mãos e sacudi.

— Luiz, rapaz, estamos salvos! Sabias que meu tio é comandante da reserva da artilharia?

— Bom, porém não temos canhões.

— Ele efetuou seu último período em antiaéreos. Estará ao corrente da questão.

Tudo se resolverá, se realmente encontrarmos os produtos químicos necessários. Ele e Beauvin se encarregarão disto. Em caso necessário poderão funcionar, para o que nós precisamos, com pólvora negra.

— Porém tudo isto nos levará dez ou quinze dias, e enquanto isto….

— Sim, enquanto isto teremos que mantê-los ocupados. Espera.

Corri ao hospital, onde estava meu irmão convalescente, acompanhado de Breffort.

— Diz, Paul. Poderias construir uma catapulta romana?

— Sim, é fácil. Porque?

— Para atacar o castelo. Que distância podemos alcançar?

— Isto depende do peso que se deseje lançar. Entre trinta a cem metros com facilidade.

— Certo, traça os planos.

Voltei para Louis e Michel e lhes expus meu plano.

— Não está mal, — observou Louis — porém cem metros são cem metros e uma metralhadora de 20 milímetros alcança mais longe.

— Perto do castelo há uma concavidade à qual se chega por um desfiladeiro, se bem me recordo. Trata-se de instalar a catapulta neste espaço.

— Ou seja, — disse Michel — queres lançar-lhes cargas de explosivos e metais. Onde obterás o explosivo?

— Temos trezentos quilos de dinamite no canteiro. A provisão foi renovada antes de ocorrer o cataclismo.

— Mesmo assim não tomaremos o castelo. — disse Michel balançando a cabeça.

— Mas não se trata disto, e sim de ganhar tempo, de fazê-los crer que desperdiçamos munição em ataques fúteis. Até que as granadas entejam prontas.

Por ordem do conselho, Beauvin mandou umas patrulhas sondar as defesas do inimigo.

Igualmente, se fosse o caso, deveriam também assinalar a presença das hidras.

Foram equipadas com um pequeno emissor de radio, fruto das horas de ócio de Estranges.

Depois, iniciamos a construção da catapulta. Sacrificou-se um freixo novo que foi transformado em pranchas. Terminamos a construção e ensaiamos com blocos de rocha.

Seu alcance se revelou satisfatório.

Nosso pequeno exército, sob o comando de Beauvin, encaminhou-se ao castelo, com três caminhões e três tratores rebocando a catapulta.

Durante oito dias não houve mais que escaramuças. Na fábrica se trabalhava febrilmente.

Ao nono dia fui ao fronte com Michel.

— E então, — perguntou Beauvin — está pronto?

— As primeiras granadas chegarão hoje ou talvez amanhã — respondi.

— Ufa! Devo confessar que não estava tranquilo. Se eles chegarem a fazer um ataque….

Fomos aos postos de vigilância.

— Para além desta crista, — disse-nos o velho Boru, que em sua qualidade de ex-sargento veterano da guerra de 1939-45 comandava os pelotões de vanguarda — ficamos sob o fogo das metralhadoras. Que eu saiba há quatro: duas de 20mm e duas mais de 7,5mm. Provavelmente têm também fuzis-metralhadora.

— Fora do raio das catapultas?

— Não tentamos alcançá-las. Temos nos resguardado cuidadosamente de revelar as possibilidade de nossas armas. — disse Beauvin.

— E do outro lado do castelo?

— Fortificaram o lugar com troncos de árvores. Além disse, a estrada está sob fogo.

Impossível levar o material pesado para lá.

— Aguardemos.

Trepando, chegamos até a crista. Uma metralhadora pesada a vigiava.

— Poderíamos tentar alcançá-la. — disse Michel — Sim, porém não atacaremos até que tenham chegado as granadas. Imagino que na próxima madrugada azul estarão aqui.

Naquele momento chegou um caminhão do povoado, com meu tio, Estranges e Breffort. Descarregaram várias caixas.

— Eis aqui as granadas. — Disse Estranges.

Eram formadas por um tubo fundido, armado de um detonador.

— E as espoletas. — disse meu tio — Testamos. Alcance: 3,5Km. Precisão bastante boa. Sua cabeça contém um quilo de resíduos de fundição e a correspondente carga de TNT. Chegará um outro caminhão com os cavaletes de lançamento e mais caixas.

Há 50 espoletas deste modelo. Fabricamos outras mais potentes.

— Nossa artilharia foi lançada! — disse Beauvin.

Naquele momento um homem desceu pela encosta.

— Agitam uma bandeira branca. — disse.

— Estão se rendendo? — perguntei, incrédulo.

— Não. Querem parlamentar.

— Responda. — ordenou Beauvin.

Do bando inimigo se destacou um homem que avançou agitando um lenço. Boru lhe indicou um lugar à meia distância, na «no man's land», e o escoltou. Era Charles Honneger, em pessoa.

— Que quereis? — perguntou Beauvin.

— Falar com vossos chefes.

— Aqui há quatro.

— Para evitar derramamento de sangue inutilmente, propomos o seguinte: vocês dissolverão o Conselho e entregarão as armas, nós tomamos o poder. Nada lhes ocorrerá.

— Exato, quereis reduzi-nos à escravidão. — disse eu — Eis aqui nossa contra-proposta: Devolvereis as jovens que raptastes e deporeis as armas. Vossos homens serão postos sob vigilância, e tu e teu pai será aprisionados para serem julgados.

— Não te falta cinismo! Já vens outra vez com tuas histórias.

— Eu os advirto — disse então Michel — que se os vencermos e houver morte entre nós, sereis enforcados.

— Me lembrarei disto.

— Neste caso, já que não quereis se entregar, — disse — proponho por as moças em segurança, o mesmo quanto à tua irmã e à Senhorita Ducher, sob aquela laje, por exemplo.

— Nem pensar! Minha irmão não tem medo, tampouco Magdalena. Se as demais morrerem, eu vou rir. Haverão outras, depois da vitória; tua irmã, por exemplo…

Imediatamente caiu no solo, com a cara inchada. Michel havia sido mais rápido que eu.

— Atacaste um parlamentar. — disse lívido.

— Tu não és um parlamentear, e sim um porco. Vem, anda!

Foi conduzido «manu militari». Mal havia cruzado o morro, quando chegou o segundo caminhão. Os cavaletes de lançamento foram montados rapidamente.

— Dentro de dez minutos abriremos fogo. — disse Beauvin — Pena não termos um observatório!

— Este montículo, — observei eu — designando, a cem metros atrás, um desnível de uns cinquenta metros de altitude.

— Está sob fogo inimigo.

— Sim, porém dali pode-se ver o castelo. Tenho uma vista excepcional. Vou levar este telefone comigo. O fio parece ser longo o bastante.

— Vou contigo. — disse Michel.

Partimos, desenrolando o fio. A meia altura, chispas de pedras saltando por todos os lados nos indicaram que havíamos sido descobertos. Nos agachamos e, contornando o cerro, chegamos à vertente abrigada.

Dali de cima víamos perfeitamente as linhas inimigas. O pequeno fortim da metralhadora pesada situava-se por trás de uma trincheira e estava franqueado de ninhos de fuzis metralhadoras. De tempos em tempos viam-se os homens movendo-se, através das pequenas aberturas.

— Quando estavam com o alfaiate, deveriam ser cinquenta ou sessenta. Porém agora, com seu sistema de fortificações, serão mais numerosos. — observou Michel.

A um quilômetro, visto de cima, a meia encosta, erguia-se o castelo. Pequenas formas negras entravam e saiam.

— É uma pena que Vandal tenha quebrado seus binóculos!

— Agora não temos mais que lunetas. São potentes, porém pouco manejáveis!

— Se pudesse desmontar um pequeno postigo.

— Terás tempo para fazer isto. Estranharia se não nos apoderássemos hoje do castelo.

— Atenção! Atenção! — ouviu-se pelo telefone — Dentro de um minuto abriremos fogo contra o castelo. Observem.

Dei uma olhada sobre nosso campo. A metade dos homens se plantou justo por trás do monte. Outros estavam atarefados ao redor das catapultas. Estranges e meu tio ultimavam cuidadosamente as plataformas de lançamento. Os caminhões haviam voltado.

Às 8h 30m, exatamente, seis riscas de fogo saíram de nosso entrincheiramento.

Tomaram altura, deixando um rastro de fumaça, que desapareceu. As espoletas consumiram sua carga explosiva Seis pequenos relâmpagos no pátio do castelo, transformando— se em seis pequenas nuvens de fumo. Segundos mais tarde, o som de secas detonações chegaram até nós.

— 30 metros, curto. — assinalei.

Lá em cima, quatro figuras negras fizeram sua aparição nas brancas ameias.

Novamente, outras seis cargas se elevaram. Uma delas explodiu na meio do portal do castelo, e as quatro pessoas caíram. Três se levantaram vacilantes, e arrastaram a outra para o interior da casa. Um dos explosivos desapareceu por uma janela. Os restantes explodiram nos muros, sem produzir danos graves, aparentemente.

— Isso! — gritei.

Uma após outra se dispararam dezesseis granadas; uma acertou o carro de Honneger, à direita da casa, e o incendiou.

— Basta de granadas. — telefonou Beauvin — Usem as catapultas.

Subiram três cargas. Erraram o fortim por pouco.

— Um pouco alto. — assinalou Michel.

— Empurrei-o ao solo. Não podendo alcançar nossos homens, escondidos atrás do monte, a metralhadora atirava acima de nós. Durante alguns minutos não ousamos mover-nos. As balas sibilavam por cima das nossas cabeças. Obuses de 20mm rolavam por terra, um pouco abaixo de nós.

— Afortunadamente não têm morteiros.

— Temos que mudar este posto de observação. Desçamos um pouco A metralhadora e os fuzis-metralhadora emudeceram.

— Tiro de fustigamento sobre território inimigo. Observe.

Os projéteis caíram ao azar ou desapareceram entre os abetos, sem outro resultado visível que o incêndio de um palheiro.

Os disparos recomeçaram, porém nesta ocasião apontavam à crista. Um dos nossos homens, ferido, se deixou cair pela elevação. Havia chegado outro caminhão, trazendo cargas de maior calibre.

Massacre abaixou-se.

— Atenção! Fogo de catapultas.

Desta vez, uma carga caiu em cheio sobre o fortim inimigo. Houve gritos de dor, porém a metralhadora continuava a atirar.

— Superioridade das armas de tiro curvo sobre as de tiro rasante, é a guerra de trincheiras. — fez notar Michel — Cedo ou tarde destruiremos sua guarida e eles, em troca, não nos podem atingir.

— Me pergunto porque não ocuparam a crista.

— Demasiado fácil de rodear. Olha o que te dizia! Atenção à esquerda. — telefonou — Seis homens sobem por lá.

Quatro guardas acudiram ao lugar ameaçado. O cimo da crista, batida pelas armas automáticas era insustentável para nós, e o velho Boru havia recuado com seus homens.

Das trincheiras inimigas surgiram uns trinta homens. Correram e se agacharam.

— Ataque de frente!

Na esquerda crepitavam as detonações. Beauvin deixou o inimigo se aproximar até quinze metros, depois mandou lançar as granadas. Os tubos de fundição, cheios de explosivos, cumpriram bem sua missão. Onze mortos e feridos ficaram sobre o campo.

Antes que o inimigo se refizesse, o Winchester de Boru causou duas baixas. Na esquerda, quatro mortos e três feridos, um dos quais foi capturado. Tinha o braço direito ligeiramente destroçado pelos cartuchos de caça e morreu enquanto Massacre tentava fechar o ferimento com uma venda.

Durante um quarto de hora, as catapultas não descansaram. Na décima segunda tentativa, uma carga acertou o ninho da metralhadora, reduzindo-a a um silêncio definitivo.

Dos fuzis-metralhadora, três foram neutralizados, o último deve ter travado, pois parou de atirar.

Nossos homens atacaram e, à custa de dois feridos, alcançaram as linhas inimigas, capturando três prisioneiros. Os demais conseguiram escapar.

Enquanto nosso pelotões de reconhecimento avançavam com prudência, saturamos o castelo com granadas. Houve uma dezena de tiros acertados. Com curiosidade segui a trajetória das seis primeiras do modelo superior. Desta vez os muros cederam e uma ala do castelo desabou.

Um rápido interrogatório dos prisioneiros nos informou sobre a força inimiga. Suas perdas eram de 17 mortos e 20 feridos. Restavam como defensores do castelo uns 50 homens. Nossa primeira vitória nos proveu de dois fuzis-metralhadora, uma metralhadora de 20mm, intacta, e munições em abundância. Nosso pequeno exército deixou de ser, num instante, uma piada.

Aguardando a volta dos exploradores, continuamos a saturação de fogo no castelo, quando se declarou um incêndio Finalmente, os exploradores regressaram. A segunda linha inimiga, a 200m do castelo, estava composta de trincheiras, com três metralhadoras e um certo número de fuzis-metralhadora. O belho Boru, depois do seu informe, acrescentou: — Eu me pergunto o que eles queriam com todas estas armas. Não podiam prever o que ia ocorrer. Será necessário informar a polícia.

— Mas homem, agora a polícia somos nós!

— Ah, isso é verdade! Isto simplifica as coisas.

Beauvin nos acompanhou até a colina, estudou minunciosamente a paisagem e pediu a Michel, excelente desenhista em seus momentos de folga, um croqui dos arredores.

— Vocês permanecerão aqui, com dois homens e a artilharia. Eu levo os demais, com as catapultas e a metralhadora. Levo também três projéteis de sinalização.

Quando os virem, cessem fogo. A linha inimiga está situada em pequena altura, bordeando o jardim. Atirem com precisão.

— Vais levar Massacre?

— Não, ele fica aqui. É o único cirurgião deste mundo.

— Certo. Porém recorde-se de que você é engenheiro.

Arrastando a metralhadora e as catapultas, a tropa partiu. Eu ordenei à artilharia que iniciasse o fogo sobre as trincheiras. Durante três quartos de hora, à cadência de duas granadas por minuto, — era mister economizar as munições, não tínhamos mais que 210 granadas, e a fábrica havia feito prodígios para isto! — estivemos fustigando o inimigo. Do nosso observatório, por falta de binóculos, não pudemos apreciar os danos com precisão. Em geral o tiro era centrado sobre a metade das duas extremidades, onde nos havia assinalado a presença de metralhadoras. Estávamos na salva 33, quando nossa metralhadora começou a atirar. A granada 45 acabara de explodir justamente em cima da colina, quando vi subir uma coluna de fumo de uma granada de sinalização.

— Alto ao fogo!

No outro lado do castelo produziu-se um tiroteio. Os nosso atacavam também aquele setor. Notei com alivio a ausência de armas automáticas. Durante vinte minutos a batalha se manteve ao vermelho rubro, acentuada pela explosão das granadas e o rumor surdo das cargas de catapulta.

Ao fim se fez silêncio. Nos perguntávamos, com ansiedade, em muda interrogação, sobre o êxito do ataque e quais seriam nossas perdas Saindo do bosque, apareceu um guarda, esgrimindo uma nota. Desceu a elevação e chegou perto de nós.

— Estamos progredindo — disse-nos ofegante.

Entregou-nos uma mensagem. Febrilmente, Michel a abriu e leu em voz alta.: «Forçamos as linhas, 5 mortos e 12 feridos. Fortes perdas inimigas. Uns vinte homens se entrincheiraram no castelo. Toma um caminhão e leva cavaletes lança-granadas e leva o doutor também. Detenham-se na casa da guarda. Tenham cuidado, pode haver elementos inimigos emboscados.

Encontramos Beauvin na casa da guarda.

— A coisa foi breve, mas interessante. Suas granadas deram um excelente resultado.

— disse ao meu tio — Sem elas… e sem suas catapultas… — acrescentou, voltandose para mim.

— Quem morreu dos nossos?

— Três operários: Salavin, Freux e Robert. Dois camponeses, cujo nome entretanto desconheço. Temos três feridos graves na casa ao lado.

Massacre foi para lá imediatamente.

— Nove feridos sem gravidade, entre os quais eu mesmo: — mostrou sua mão enfaixada — uma explosão na base do polegar.

— E entre eles?

— Muitos mortos e feridos. As três últimas salvas caíram em cheio sobres as trincheiras.

Venham ver.

Realmente, havia sido um «bom trabalho». A artilharia não o teria feito melhor (ou pior).

Ao levantar a cabeça, uma rajada de balas nos recordou a prudência.

— Conseguiram levar uma metralhadora ligeira e um fuzil-metralhadora. Senhor Bournat, ensine a estes homens o manejo dos seus cavaletes de lançamento.

— Não é necessário, vou eu mesmo.

— Não vou consentir que se exponha!

— Fiz toda a campanha da Itália no ano de 43. Eles eram piores que os «Fritz» de Hitler. Em segundo lugar, há excesso de astrônomos, E terceiro, sou comandante da reserva, e voce não é mais que um tenente. Vamos, pode retirar-se!. — concluiu, brincando — Está bem. Mas seja prudente.

Os lança-granadas foram dispostos em bateria, a uns escassos 200m do castelo. A temível residência estava muito depauperada Toda a ala direita fora incendiada. Portas e janelas haviam sido protegidas com barricadas. Sobre o gramado, um entulho decrépito e enegrecido era o que restava do luxuoso carro do Honneger.

— Que aconteceu com as moças? — perguntou Michel.

— Um dos prisioneiros afirmou que haviam sido encerradas em um porão resistente desde o começo do combate. A senhorita Honneger não parece compartilhar das ideias da sua família. Segundo parece, foi encerrada também por tentar advertir-nos do que tramavam seu pai e seu irmão. Aponte sobre a porta e as janelas. — disse, dirigindo— se ao meu tio.

Saudados por uma rajada, cada vez que levantava-mos a cabeça, apontamos os cavaletes.

Meu tio fez o contacto elétrico. Um suave deslizamento, uma explosão violenta.

— Isso!

Uma segunda salva entrou pelas aberturas assim criadas; as granadas estalavam no interior. A metralhadora se calou. Três salvas se seguiram. Atrás de nós, as metralhadoras cuspiram rajadas através das janelas destruídas Um braço passou através de uma escotilha sob o teto, agitando um pano branco.

— Rendem-se!

No interior do castelo houve uma série de disparos. Aparentemente, os partidários da luta até a morte e dos da rendição brigavam. A bandeira branca desapareceu, depois voltou a aparecer. Os fuzis se calaram. Receosos, abandonamos a trincheiras, porem cessamos o fogo. Através da porta destruída apareceu um homem exibindo um lenço.

— Acerca-te. — ordenou Beauvin.

Ele obedeceu. Era ruivo, muito jovem, porém tinha traços salientes e olhos encovados.

— Se nos rendermos, salvaremos nossa vida?

— Serão julgados. Se não vos renderes, todos estarão mortos antes de uma hora.

Entreguem-me os Honneger, e saiam ao jardim, com os braços para cima.

— Charles Honneger está morto. Seu pai, tivemos que manietar, porém está vivo.

Disparou contra nós quando içávamos a bandeira branca — E as moças?

— Estão na casa, com Ida, a Senhorita Honneger e madalena Ducher.

— Sãs e salvas?

Ele sacudiu os ombros.

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