Fat Charlie estava com sede.
Fat Charlie estava com sede, e sua cabeça doía.
Fat Charlie estava com sede, sua cabeça latejava, tinha um gosto horrível na boca, seus olhos eram comprimidos pela cabeça, seus dentes pareciam ter os nervos expostos, seu estômago queimava, suas costas doíam de um jeito que começava nos joelhos e terminava na testa, seu cérebro parecia ter sido substituído por bolas de algodão, alfinetes e agulhas, por isso doía tanto pensar, e seus olhos não eram só comprimidos pela cabeça — ele tinha a impressão de que tinham caído durante a noite e sido recolocados no lugar com pregos. Agora percebia que qualquer coisa que fizesse mais barulho que o movimento das partículas de ar passando suavemente umas sobre as outras estava acima de seu limite de dor. Além disso, queria morrer.
Fat Charlie abriu os olhos, o que foi um erro, porque deixou a luz do dia entrar, e isso doía. Abrir os olhos informou-lhe sobre seu paradeiro (estava em sua cama, em seu quarto) e, porque olhava o relógio sobre o criado-mudo, viu que eram 1 lh30 da manhã.
“Isso”, pensou, uma palavra de cada vez, “é a pior coisa que poderia acontecer.” Estava com uma ressaca que o Deus do Velho Testamento teria mandado como praga sobre os infiéis, e tinha certeza de que da próxima vez que visse Grahame Coats seria informado de que estava demitido.
Ficou pensando se soaria convincentemente doente pelo telefone, mas percebeu que o desafio seria parecer normal.
Não conseguia lembrar como havia chegado em casa na noite anterior.
Ele ligaria para o escritório assim que conseguisse lembrar o número. Pediria desculpas — uma gripe o pegou de jeito, o deixou de cama, não havia nada que pudesse fazer...
— Olha — disse alguém na cama, ao lado dele —, acho que tem uma garrafa de água aí do lado. Pode passar pra mim?
Fat Charlie quis explicar que não havia água do lado da cama e que a água mais a mão ficava na pia do banheiro, se limpasse antes a caneca da escova de dentes. Então se deu conta de que havia diversas garrafas de água sobre o criado-mudo. Ele esticou a mão, fechou os dedos (que pareciam pertencer a outra pessoa) em volta de uma delas e, fazendo uma força que em geral as pessoas reservam para se erguer quando faltam alguns centímetros para alcançar o topo de uma montanha íngreme, rolou na cama.
Era a vodca-com-laranja.
Além disso, estava nua. Ao menos as partes do corpo dela que ele podia ver estavam nuas.
Ela pegou a água e puxou o lençol para cobrir o peito.
— Brigada. Ele pediu pra avisar, quando você acordasse, que não precisa se preocupar em ligar pro trabalho e dizer a eles que está doente. Ele já resolveu tudo.
Mas Fat Charlie não se tranqüilizou. Seus temores e preocupações não foram embora. Também, na condição em que se encontrava, só havia espaço em sua cabeça para se preocupar com uma coisa de cada vez. Nesse momento, estava preocupado em saber se conseguiria chegar ao banheiro a tempo.
— Você precisa tomar mais líquido — sugeriu a moça. — Repor os eletrólitos.
Fat Charlie conseguiu chegar ao banheiro a tempo. Depois, vendo que já estava por ali, ficou embaixo do chuveiro até o banheiro parar de girar. Escovou os dentes sem vomitar.
Quando voltou ao quarto, a vodca-com-laranja não estava mais lá. Isso foi um alívio para Fat Charlie, que começava a rezar para que ela fosse uma ilusão induzida pelo álcool, como elefantes cor-de-rosa ou a idéia pavorosa de que ele tinha resolvido cantar num palco, na noite anterior.
Não conseguia achar seu robe, por isso pôs um moletom, de modo a estar minimamente vestido para ir até a cozinha, no fim do corredor.
Seu celular tocou. Ele procurou pelo paletó, que estava no chão ao lado da cama, até achá-lo, e o abriu. Grunhiu um alô do modo mais anônimo que podia, caso fosse alguém da Agência Grahame Coats querendo saber onde estava.
— Sou eu — disse a voz de Spider. — Está tudo bem.
— Você falou para eles que eu morri?
— Melhor que isso. Falei que eu sou você.
— Mas... — Fat Charlie tentou pensar com clareza. — Mas você ão é eu.
— Ora, eu sei disso. Mas disse a eles que sou.
— Você nem se parece comigo.
— Meu irmão, você está quase me tirando do sério. Eu já resolvi o problema. Opa. Tenho que ir. O chefão precisa falar comigo.
— Grahame Coats? Escuta, Spider...
Mas Spider já tinha desligado o telefone, e o visor ficou normal.
O robe de Fat Charlie entrou no quarto. Havia uma moça dentro dele. Ficava infinitamente melhor nela do que nele. Ela carregava uma bandeja, sobre a qual havia um copo com Alka-Seltzer e uma caneca com alguma bebida.
— Beba os dois. Beba o que tem na caneca primeiro. De uma vez.
— O que é isso?
— Gema de ovo, molho inglês, tabaco, sal, um pouco de vodca e por aí vai — respondeu ela. — Se você não morrer, vai ficar ótimo. Então — disse num tom contra o qual era impossível contra-argumentar — beba.
Fat Charlie bebeu.
— Deus do céu.
— É — concordou a moça. — Mas você ainda está vivo.
Ele não tinha muita certeza disso. Mesmo assim, bebeu o Alka-Seltzer. Um pensamento ocorreu-lhe.
— Ahm. Ahm. Olha. Na noite passada, a gente-? Ahm.
Nenhuma expressão no rosto dela.
— A gente o quê?
— A gente— você sabe. Fez— aquilo?
— Quer dizer que você não se lembra? — Ela parecia desapontada. — Você disse que nunca foi tão bom. Que era como se nunca tivesse feito amor com uma mulher antes. Você era um mistura de um deus e animal, uma máquina de fazer sexo insaciável.
Fat Charlie não sabia para onde olhar. Ela deu uma risadinha.
— Eu estou brincando. Ajudei o seu irmão a chegar em casa, nós limpamos você, e depois você sabe.
— Não — respondeu. — Não sei.
— Bom, você estava completamente desmaiado, e a sua cama é grande. Não sei ao certo onde o seu irmão dormiu. Ele deve ser forte como um touro. Já estava de pé assim que amanheceu, todo alegre e sorridente.
— Ele foi para o meu trabalho — explicou Fat Charlie. — Disse a eles que era eu.
— Mas eles não notariam a diferença? Quer dizer, vocês não são exatamente gêmeos.
— Receio que não — concordou, balançando a cabeça. E olhou para ela. Ela mostrou-lhe uma língua pequena e extremamente rosa. — Como você se chama?
— Você esqueceu? Eu me lembro do seu nome. E Fat Charlie.
— Charles — corrigiu. — Só Charles está ótimo.
— Eu sou Daisy — disse ela, e estendeu a mão. — Prazer em conhecê-lo.
Cumprimentaram-se de um jeito solene.
— Estou me sentindo um pouco melhor — informou Fat Charlie.
— Como eu disse, se você não morrer, vai ficar ótimo.
Spider estava tendo um ótimo dia no escritório. Quase nunca trabalhava em escritórios. Quase nunca trabalhava, na verdade. Tudo era novo, estranho e maravilhoso, desde o pequeno elevador que o levou até o quinto andar até os escritórios apertados da Agência Grahame Coats. Ele observava, fascinado, o armário de vidro na sala de espera, cheio de troféus empoeirados. Andou a esmo pelos escritórios e, sempre que alguém perguntava quem era, dizia “Eu sou Fat Charlie Nancy”. Dizia isso na sua voz de deus, que fazia com que tudo o que dissesse fosse praticamente verdade.
Achou a salinha em que tomavam chá e preparou várias xícaras. Levou-as para a mesa de Charlie e as organizou de um jeito artístico. Começou a brincar no computador, que pediu uma senha.
— Eu sou Fat Charlie Nancy — disse ao computador, mas ainda assim havia locais em que a rede não permitia que ele entrasse. Então ele disse: — Eu sou Grahame Coats.
A rede abriu-se para ele como uma flor.
Olhou as coisas no computador até sentir-se entediado.
Depois cuidou do que Fat Charlie tinha para fazer. Então atacou a pilha de coisas atrasadas.
Ocorreu-lhe que Fat Charlie poderia estar acordando mais ou menos àquela hora. Ligou para sua casa, para deixá-lo mais tranqüilo. Sentia que estava fazendo algum avanço quando a cabeça de Grahame Coats apareceu na porta. Grahame Coats correu os dedos pelos lábios de arminho e fez um sinal para ele.
— Tenho que ir — avisou Spider ao irmão. — O chefão precisa falar comigo. — E desligou o telefone.
— Fazendo ligações pessoais durante o período de trabalho, Nancy — observou Grahame Coats.
— De jeito nenhum.
— Foi a mim que você se referiu como “chefão”? — perguntou Grahame Coats. Eles caminharam pelo corredor até o escritório dele.
— Você é o maioral — disse Spider. — E o chefe mais “chéfico” de todos os chefes.
Grahame Coats pareceu confuso. Suspeitou que Fat Charlie estivesse caçoando dele, mas não tinha certeza, e isso o perturbou.
— Bom, sentai-vos, sentai-vos.
Spider sentou-se.
Grahame Coats tinha o costume de manter uma rotatividade de empregados. Algumas pessoas apareciam e logo iam embora. Outras vinham e ficavam até pouco antes de seus cargos receberem algum tipo de proteção trabalhista. Fat Charlie trabalhava ali havia mais tempo que todos os outros: um ano e 11 meses. Faltava um mês para que a indenização por demissão e os tribunais trabalhistas fizessem parte de sua vida.
Grahame Coats sempre fazia um pequeno discurso antes de despedir alguém.
— Na vida de todos nós — começou — há sempre alguma nuvem negra. Quando alguém fecha uma porta, Deus sempre abre uma janela.
— Quem semeia vento colhe tempestade — emendou Spider.
— Ah, sim. Sim. De fato. Bom. Quando atravessamos esse vale de lágrimas, devemos parar para refletir que...
— O primeiro golpe — continuou Spider — é sempre o mais profundo.
— O quê? Ah. — Grahame Coats tentou lembrar o que vinha depois. — A felicidade — anunciou — é frágil como uma borboleta.
— Ou um pássaro — concordou Spider.
— Certamente. Posso continuar?
— Claro. A vontade — disse Spider, alegremente.
— E a felicidade de cada pessoa dentro da Agência Grahame Coats é tão importante para mim quanto a minha própria.
— Não consigo dizer pro senhor o quanto isso me deixa feliz.
— Sim — respondeu Grahame Coats.
— Bom, é melhor eu voltar ao trabalho. Mas foi ótimo. Da próxima vez que quiser conversar mais, pode me chamar. O senhor sabe onde eu estou.
— A felicidade — continuou Grahame Coats. Sua voz começava a parecer esganiçada. — E nisso que eu fico pensando, Nancy. Charles. Você está feliz aqui? Não concorda que ficaria mais feliz trabalhando em outro lugar?
— Não é bem nisso que eu fico pensando — respondeu Spider. — O senhor quer saber no que eu fico pensando? — Grahame Coats ficou calado. Nunca as coisas haviam acontecido desse jeito. Em geral, nesse ponto os funcionários ficavam arrasados, chocados. Às vezes começavam a chorar. Grahame Coats não dava a mínima se eles choravam. — O que eu fico pensando é para que servem as contas nas Ilhas Cayman. E que, sabe, parece que o dinheiro que deveria ir para a conta dos nossos clientes às vezes vai para as contas das Ilhas Cayman. Parece um jeito meio estranho de organizar as finanças, com o dinheiro ficando naquelas contas. Nunca vi nada como aquilo na minha vida. Eu esperava que você pudesse explicar para mim.
Grahame Coats ficou branco, num daqueles tons que aparecem nos catálogos de tinta com o nome “pergaminho” ou “magnólia”. Perguntou:
— Como você conseguiu acesso a essas contas?
— Pelo computador. Os computadores me deixam doido. O que fazer com eles?
Grahame Coats pensou por longos momentos. Sempre gostou de imaginar que seus assuntos financeiros estavam tão profundamente emaranhados que, mesmo que o Batalhão da Fraude concluísse que houve um crime financeiro envolvido, teriam grande dificuldade de explicar a um júri que tipo de crime havia ali.
— Não há nada ilegal em ter contas no exterior — disse sem pensar direito.
— Ilegal? — perguntou Spider. — Espero que não. Quer dizer, se eu visse algo ilegal, seria obrigado a comunicar às autoridades.
Grahame Coats pegou uma caneta da mesa, mas colocou-a de volta no lugar.
— Ah. Bom, por mais que seja ótimo bater papo, conversar, passar o tempo e fraternizar com você, Charles, suspeito que ambos temos muito trabalho a fazer. O tempo, afinal, não espera por ninguém. Mente vazia, oficina do diabo.
— A vida é dura — sugeriu Spider —, mas também é doce.
— Que seja.
Fat Charlie começava a se sentir humano de novo. Não sentia mais dor. Não sentia mais ondas lentas de náusea tomando conta dele. Embora ainda não estivesse convencido de que o mundo era um lugar bom e alegre, não se sentia mais no nono círculo do inferno da ressaca, e isso era bom.
Daisy tinha ido ao banheiro. Ele ouviu as torneiras abertas e barulho de água espirrando.
Bateu na porta do banheiro.
— Eu estou aqui — respondeu Daisy. — Estou tomando banho.
— Eu sei. Quer dizer, não sabia, mas pensei que você provavelmente estava aí.
— Pode falar.
— Eu estava pensando.. — começou, do outro lado da porta. — Por que você voltou com a gente? Na noite passada.
— Bom. Você estava meio mal. E o seu irmão parecia precisar de ajuda. Hoje de manhã eu não trabalho. Então, voilà.
— Voilà — repetiu Fat Charlie. Por um lado, ela sentia pena dele. Por outro, realmente gostava de Spider.
Sim. Fat Charlie tinha um irmão havia apenas pouco mais de um dia e já achava que sua nova relação familiar lhe traria muitas surpresas. Spider era o sujeito descolado. Ele era o outro.
Então ela disse:
— Você tem uma voz fantástica.
— Quê?
— Você cantou no táxi, no caminho pra casa. “Unforgettable”. Foi lindo.
De algum modo, tinha colocado de lado o incidente do karaokê em sua mente, deixando-o encostado num lugar bem escuro, onde estão as coisas inconvenientes de que nos desfazemos. Agora o incidente tinha voltado, e ele não queria pensar naquilo.
— Você foi ótimo. Você canta pra mim mais tarde?
Fat Charlie tentou pensar desesperadamente em algo, mas foi salvo pela campainha.
— Vou ver quem está na porta.
Ele desceu as escadas e abriu a porta, e as coisas pioraram. A mãe de Rosie olhou para ele com um olhar capaz de azedar leite. Não disse nada. Segurava um grande envelope branco.
— Olá — disse Fat Charlie. — Sra. Noah. Bom vê-la. Ahm.
Ela fungou e segurou o envelope.
— Ah. Você está em casa. Então. Você não vai me convidar para entrar?
“Certo”, pensou Fat Charlie. “Gente do seu tipo sempre precisa ser convidada. Basta dizer não, e ela vai embora.”
— Claro, Sra. Noah. Por favor, entre. — “Então é assim que fazem os vampiros.” — Gostaria de uma xícara de chá?
— Não pense que pode me adular desse jeito. Porque você não pode.
— Ahm. Certo.
Subiram as escadas estreitas e entraram na cozinha. A mãe de Rosie olhava em volta e fazia uma cara que indicava que o lugar não se encaixava em seu padrão de higiene, já que continha comida.
— Café? Água? — “Não diga fruta de cera.” — Fruta de cera? — “Droga.”
— Rosie me disse que seu pai faleceu recentemente.
— Sim, é verdade.
— Quando o pai de Rosie faleceu, fizeram um obituário de quatro páginas na Cooks and’Cookery. Disseram que ele foi o único responsável pela chegada da comida caribenha neste país.
— Ah.
— Ele não me deixou em má situação. Tinha seguro de vida e era sócio de dois restaurantes famosos. Sou uma mulher rica. Quando eu morrer, irá tudo para Rosie.
— Quando a gente se casar, eu cuidarei dela. Não se preocupe.
— Eu não estou dizendo que você quer se casar com ela pelo dinheiro — observou a mãe de Rosie num tom de voz que deixava claro que isso era exatamente o que pensava.
A dor de cabeça de Fat Charlie ameaçava voltar.
— Sra. Noah, como posso ajudá-la?
— Eu conversei com a Rosie, e nós decidimos que vou ajudar vocês com o planejamento do casamento — explicou de um jeito afetado. — Preciso da sua lista de convidados. Aqueles que você planeja convidar. Nome, endereço, e-mail, telefone. Fiz um formulário para você preencher. Pensei que seria bom economizar o dinheiro dos correios e entregar pessoalmente, já que eu ia até Maxwell Gardens de qualquer jeito. Não esperava encontrá-lo em casa. — Ela deu o grande envelope branco para ele. — Haverá um total de 90 pessoas no casamento. Você tem permissão para convidar oito parentes e seis amigos próximos. Os amigos e quatro parentes ficarão na mesa H. O resto do grupo ficará na mesa C. O seu pai se sentaria conosco na mesa principal, mas, já que ele faleceu, nós cedemos o lugar para a tia Winifred, tia de Rosie. Você já decidiu quem será seu padrinho?
Fat Charlie fez que não com a cabeça.
— Bom, quando decidir, certifique-se de que ele não diga nada obsceno em seu discurso. Não quero ouvir nada no discurso do padrinho que não possa ser dito numa igreja. Você entendeu?
Fat Charlie imaginou o que a mãe de Rosie costumava ouvir na igreja. Talvez somente gritos de “Para trás! Criatura horrível dos infernos!”, seguidos de exclamações como “Está viva ou morta?” e de certo nervosismo por não saberem se alguém se lembrara de trazer uma estaca e um martelo.
— Acho que tenho mais de dez parentes. Quer dizer, tem os primos, as tias-avós, coisas assim.
— O que você obviamente é incapaz de compreender — começou a mãe de Rosie — é que um casamento custa dinheiro. Eu reservei 175 libras por pessoa, das mesas A a D, sendo que a mesa A é a principal, na qual ficam os parentes mais próximos de Rosie e minhas colegas do clube, e 125 libras para as mesas E até G, que acomodarão, você sabe, conhecidos, crianças e assim por diante.
— A senhora disse que meus amigos ficariam na mesa H.
— É a escala seguinte. Eles não terão petiscos de camarão com abacate ou a sobremesa.
— Quando a Rosie e eu falamos sobre isso da última vez, pensamos em fazer algo como um bufê com comida indiana.
A mãe de Rosie fungou.
— Ela às vezes não sabe o que pensa, aquela menina. Mas agora nós estamos de pleno acordo.
— Escuta. Talvez eu devesse falar com ela e depois voltar a falar com a senhora.
— Só preencha o formulário — disse a mãe de Rosie. Então ela perguntou, desconfiada: — Por que você não foi trabalhar?
— Eu. Ahm. Eu não estou. Digo, não estou trabalhando esta manhã. Não vou hoje. Não. É.
— Espero que você tenha avisado a Rosie. Ela planejava vê-lo na hora do almoço, foi o que me disse. Por isso não pôde almoçar comigo.
Fat Charlie processou a informação.
— Certo. Bom, obrigado pela visita, Sra. Noah. Vou conversar com a Rosie e...
Daisy entrou na cozinha. Usava uma toalha na cabeça e o robe de Fat Charlie grudado em seu corpo úmido. E perguntou:
— Você tem suco de laranja aí, né? Eu acho que vi suco quando estava procurando as outras coisas. Como está a sua cabeça? Melhorou?
Ela abriu a porta da geladeira e pegou um grande copo de suco de laranja.
A mãe de Rosie limpou a garganta. Não era o barulho de alguém limpando a garganta. Era mais o som de alguém pisando em cascalho.
— Oi — cumprimentou Daisy. — Eu sou Daisy.
A temperatura na cozinha começou a cair.
— Ah, é? — respondeu a mãe de Rosie. Havia pingentes de gelo pendurados no “é”.
— Imagino que nome teriam dado às laranjas — interrompeu Fat Charlie para quebrar o silêncio — se não fossem laranjas. Quer dizer, se fossem alguma fruta azul desconhecida, será que teriam sido chamadas de azuis? Será que a gente beberia suco de azul?
— Quê? — perguntou a mãe de Rosie.
— Caramba. Você diz cada maluquice — comentou Daisy, alegre. — Certo. Vou ver se acho as minhas roupas. Foi ótimo ver você.
Ela saiu. Fat Charlie continuava a prender a respiração.
— Quem. É. Ela — perguntou a mãe de Rosie, perfeitamente calma.
— Minha irm.... prima. Minha prima — respondeu Fat Charlie. — E que eu a considero uma irmã. A gente era muito próximo na infância. Ela decidiu vir para cá na noite passada. É meio maluquinha. Bom. Sim. Ela vai aparecer no casamento.
— Eu a colocarei na mesa H — observou a mãe de Rosie. — Ela se sentirá mais confortável lá.
Ela falou a última frase da mesma maneira como alguém diria algo como “Você quer uma morte rápida e piedosa ou prefere que o meu capanga se divirta um pouco antes?”
— Certo. Bom, foi ótimo revê-la. A senhora deve ter muito o que fazer. E eu preciso ir trabalhar.
— Pensei que você tivesse tirado o dia de folga.
— A manhã. Tirei a manhã de folga. E já está quase no fim. Preciso voltar ao trabalho, então tchau.
Ela segurou a bolsa perto do corpo com ambas as mãos e levantou-se. Fat Charlie a seguiu pelo corredor.
— Foi ótimo rever a senhora.
Ela piscou como piscaria uma cobra capaz de piscar antes de atacar.
— Tchau, Daisy — gritou. — Vejo você no casamento.
Daisy, agora de calcinha e sutiã, colocando uma camiseta, debruçou-se até aparecer no corredor.
— Tchau! — respondeu, e voltou para o quarto de Fat Charlie.
A mãe de Rosie não dizia mais nada enquanto Fat Charlie a conduzia escada abaixo. Ele abriu a porta para ela e, quando passou, ele viu em seu rosto algo terrível, algo que fazia seu estômago gelar ainda mais. Era o que a mãe de Rosie fazia com a boca, que estava repuxada nos cantos num sorriso horrível. Como uma caveira com lábios, a mãe de Rosie estava sorrindo.
Ele fechou a porta por trás dela e ficou de pé, tremendo, no corredor. Então, como um homem prestes a ir para a cadeira elétrica, subiu as escadas.
— Quem era ela? — perguntou Daisy, agora quase vestida.
— A mãe da minha noiva.
— Ela é uma simpatia, não é?
Ela vestiu as mesmas roupas que usara na noite passada.
— Você vai trabalhar vestida assim?
— Ah, não. Vou pra casa me trocar. Nunca vou pro trabalho assim. Será que você pode chamar um táxi?
— Para onde você vai?
— Hendon.
Ele chamou o táxi. Sentou-se no chão do corredor e ficou a contemplar os diversos prováveis acontecimentos futuros, todos não contempláveis.
Alguém estava de pé perto dele.
— Eu tenho umas vitaminas B na minha bolsa. Ou você podia tomar uma colher de mel. Nunca fez efeito em mim, mas a menina que mora comigo jura que é um santo remédio para ressaca.
— Não é isso. Eu disse a ela que você é minha prima. Para que não pensasse que você era minha... que a gente— Você sabe, uma moça estranha no apartamento, essas coisas.
— Prima, é? Bom, não se preocupe. Ela certamente vai se esquecer completamente de mim e, se não esquecer, você pode dizer que eu desapareci misteriosamente do país. Você nunca vai me ver de novo.
— Sério? Promete?
— Ei, também não precisa ficar tão contente. — Uma buzina soou na rua, lá fora. — Acho que é o meu táxi. Levante-se para a gente se despedir.
Ele se levantou.
— Não se preocupe — disse ela. E o abraçou.
— Acho que a minha vida acabou.
— Que nada.
— Estou arruinado.
— Obrigada por tudo. — Então ela inclinou-se e o beijou nos lábios, um beijo mais forte e mais longo do que seria apropriado para pessoas que mal se conheciam. Depois sorriu, desceu as escadas alegremente e saiu da casa.
— Isso — começou Fat Charlie, alto, quando a porta fechou — provavelmente não está acontecendo.
Ele ainda sentia o gosto dela nos lábios, um gosto de suco de laranja e framboesa. Aquilo é que era um beijo. Um beijo de verdade. Havia um desejo por trás desse beijo que ele nunca sentira antes, nem mesmo com..
— Rosie — disse.
Abriu o celular e pressionou a tecla de discagem rápida.
— Você ligou para o celular da Rosie — disse a voz da própria. — Estou ocupada ou perdi o telefone de novo. Ligue para minha casa ou deixe uma mensagem.
Fat Charlie fechou o telefone. Colocou o casaco por cima de seu moletom e, piscando só um pouco por causa da luz forte do dia, saiu para a rua.
Rosie noah sentia-se preocupada, fato que por si só já a deixava preocupada. Tudo era, como muitas coisas no mundo de Rosie, quer admitisse ou não, culpa de sua mãe.
Já estava acostumada a viver num mundo em que sua mãe odiava a idéia de que a filha se casasse com Fat Charlie Nancy. Via a oposição da mãe ao casamento como um sinal dos céus de que provavelmente estava fazendo a coisa certa, mesmo que não tivesse muita certeza, lá no fundo, de que era mesmo esse o caso.
Ela o amava, é claro. Ele era uma boa pessoa, alguém normal, que passava confiança...
A mudança da mãe de Rosie a preocupava, e o entusiasmo repentino da mãe pela organização do casamento a deixava perturbada.
Tinha telefonado para Fat Charlie na noite anterior para discutir o assunto, mas ele não atendia. Rosie achou que ele talvez tivesse ido dormir mais cedo.
Por isso resolveu almoçar com ele para conversarem.
A Agência Grahame Coats ocupava o último andar de um edifício vitoriano em Aldwych. Para chegar lá, era necessário subir cinco andares. Mas havia um elevador, um elevador antigo que fora instalado 100 anos antes pelo agente teatral Rupert “Binky” Butterworth. Um elevador extremamente pequeno, lento e sacolejante, cujas peculiaridades de projeto e função ficavam claras somente quando se descobria que Binky Butterworth tinha o tamanho, o formato e a habilidade para se espremer em locais onde caberia apenas um filhote de hipopótamo barrigudinho. Ele concebera o elevador para comportar, sem espaço extra, o próprio Binky Butterworth e outra pessoa bem mais magra: uma corista, por exemplo, ou um corista — Binky não fazia distinção. A única coisa de que precisava para ser feliz era alguém em busca de representação no mundo do teatro apertando-se contra ele dentro do elevador numa jornada bem lenta e sacolejante pelos seis andares até o topo. Muitas vezes, quando chegavam ao último andar, Binky estava tão transtornado pelas pressões da jornada que precisava se deitar um pouco, deixando à corista ou ao corista a tarefa de ficar abanando-o na sala de espera, preocupado, imaginando se a horrível falta de ar e a resfolegante vermelhidão no rosto de Binky, que o acometiam nos andares finais, não era sinal de que sofria algum tipo de embolia pré-eduardiana.
As pessoas usavam o elevador com Binky Butterworth apenas uma vez. Depois disso, subiam pelas escadas.
Grahame Coats, que comprara o restante da Agência Butterworth da neta de Binky havia mais de 20 anos, manteve o elevador, dizendo que fazia parte da história do lugar.
Rosie fechou a porta interna sanfonada, fechou a porta externa, entrou na recepção e disse à recepcionista que queria falar com Charles Nancy. Sentou-se debaixo das fotos de Grahame Coats com as pessoas que havia representado. Reconheceu nas fotos Morris Livingstone, o comediante, algumas dessas bandas só de garotos, de sucesso relâmpago, e um bando de estrelas do esporte que nos últimos anos haviam se tornado “celebridades”. Do tipo que aproveitava a vida ao máximo até conseguir um fígado novo.
Um homem entrou na recepção. Não se parecia muito com Fat Charlie. Tinha a pele mais escura e sorria como se se divertisse com tudo. De um jeito excessivo e perigoso.
— Eu sou Fat Charlie Nancy — disse o homem.
Rosie caminhou até Fat Charlie e deu-lhe um beijo na bochecha. Ele perguntou:
— Eu conheço você? — Isso era uma coisa muito estranha de se dizer, e ele emendou: — Claro que conheço. Você é Rosie. E está cada dia mais linda.
Ele devolveu o beijo, tocando os lábios dela com os seus. Seus lábios só roçaram os dela de leve, mas o coração de Rosie começou a bater como o coração de Binky Butterworth após uma subida de elevador particularmente tumultuada, pressionado contra uma corista.
— Almoço — disse Rosie com uma voz desafinada. — Eu estava passando e pensei que talvez a gente pudesse almoçar. Conversar.
— Sim — concordou o homem que Rosie acreditava ser Fat Charlie. — Almoço.
Ele colocou o braço de um jeito macio em torno dela.
— Quer almoçar em algum lugar específico?
— Ah. Em— qualquer lugar. Você escolhe.
“O cheiro dele”, pensou. “Por que nunca notara antes o quanto adorava o cheiro dele?”
— A gente decide. Vamos pela escada?
— Se você não se importa, eu gostaria de ir pelo elevador.
Ela bateu a porta sanfonada, e eles desceram até o térreo chacoalhando lentamente, pressionados um contra o outro.
Rosie não conseguia lembrar-se da última vez em que se sentira tão feliz.
Quando chegaram à rua, o celular dela sinalizou que tinha uma nova mensagem. Ela ignorou.
Entraram no primeiro restaurante que encontraram. Até um mês antes, aquele era um moderno restaurante de sushi, com uma esteira rolante que percorria a sala carregando pequenos pedaços de peixe cru, cujo preço era determinado pela cor do prato. O restaurante japonês fechou e imediatamente surgiu outro, como era o costume dos restaurantes de Londres. Dessa vez um restaurante húngaro, que manteve a esteira rolante como um toque moderno adicional à culinária típica. Isso significava que tigelas de goulash, esfriando rapidamente, bolinhos temperados com páprica e vasilhas com sour cream desfilavam de modo majestoso pelo recinto.
Rosie não achou que o restaurante fosse fazer muito sucesso.
— Onde você estava ontem à noite? — perguntou.
— Eu saí. Com o meu irmão.
— Você é filho único.
— Não, não sou. Parece que tenho um irmão.
— Sério? Mais uma surpresa do legado do seu pai?
— Querida — começou o homem que ela acreditava ser Fat Charlie —, você não sabe da missa a metade.
— Bom, espero que ele compareça ao casamento.
— Acho que não perderia nosso casamento por nada no mundo. — Ele fechou a mão sobre a dela, e ela quase derrubou a colher com goulash. — O que você precisa fazer hoje à tarde?
— Não muita coisa. Está tudo praticamente morto lá no escritório. Algumas ligações para angariar fundos, mas podem esperar. E... ahm... você... ahm... Por quê?
— Está um dia tão lindo. Você quer passear um pouco?
— Seria ótimo.
Andaram pela área do dique do rio e começaram a seguir a parte norte do rio Tamisa, um passeio lento, de mãos dadas, conversando, sem falar sobre nada muito sério.
— E o seu trabalho? — perguntou Rosie quando pararam para tomar sorvete.
— Ah. Eles não vão se importar. Talvez nem percebam que não estou lá.
Fat Charlie subiu correndo as escadas até a agência Grahame Coats. Sempre subia pelas escadas. Para início de conversa, era um jeito de fazer exercício. E nunca precisaria se preocupar em ter que ficar espremido num elevador com outra pessoa, perto demais para fingir que o outro não estava lá. Entrou na recepção arfando um pouco.
— A Rosie apareceu, Annie?
— Você se perdeu dela? — perguntou a recepcionista.
Ele foi até o escritório. A mesa estava muito organizada, de um jeito peculiar. A pilha de correspondência por enviar tinha desaparecido. Havia um post-it sobre a tela de seu computador: “Venha até a minha sala. GC”.
Ele bateu na porta do escritório de Grahame Coats. Uma voz respondeu:
— Sim?
— Sou eu.
— Sim. Entrai, senhor Nancy. Puxe uma cadeira. Eu pensei bastante na conversa que tivemos hoje de manhã. Parece que eu tinha uma imagem errada de você. Trabalha aqui há quanto tempo?
— Quase dois anos.
— Você trabalha muito, há muito tempo. Agora, com o triste falecimento do seu pai..
— Eu não o conhecia direito.
— Ah. Você é um homem de coragem, Nancy. Já que é a época de descanso da aragem, o que você diria se eu lhe oferecesse algumas semanas de folga? Com, nem é preciso dizer, salário integral?
— Salário integral?
— Sim, salário integral, mas, sim, eu entendo o seu lado. Gastar dinheiro. Estou certo de que gostaria de gastar um dinheirinho, não?
Fat Charlie tentou descobrir em que universo estava.
— Você está me despedindo?
Grahame Coats riu como uma doninha engasgada com um osso.
— De jeito nenhum. Exatamente o contrário. Na verdade, acho que agora é que nos entendemos perfeitamente. O seu emprego está são e salvo. Como uma criancinha dentro de casa. Contanto que você continue a ser esse modelo exemplar de circunspecção e discrição que tem sido até o momento.
— Uma criança dentro de casa está a salvo? — perguntou Fat Charlie.
— Totalmente a salvo.
— E que eu li em algum lugar que a maioria dos acidentes com crianças ocorre dentro de casa.
— Então imagino que seja de vital importância que você retorne a sua casa imediatamente. — Ele entregou a Fat Charlie um papel de formato retangular. — Aqui está. Um pequeno gesto de agradecimento por dois anos de devoção ao trabalho na Agência Grahame Coats. — Então, porque era sempre o que dizia quando dava dinheiro a alguém, falou: — Não gaste tudo de uma vez.
Fat Charlie olhou para o papel. Era um cheque.
— Duas mil libras. Nossa! Não, não vou gastar de uma vez.
Grahame Coats sorriu para ele. Se havia um tom de triunfo naquele sorriso, Fat Charlie estava perplexo, abalado e confuso demais para perceber.
— Passar bem.
Fat Charlie voltou ao escritório.
Grahame Coats encostou-se sobre a porta do escritório de Fat Charlie de um jeito casual, como um mangusto debruçado como quem não quer nada sobre a toca de uma cobra. E disse:
— Uma perguntinha. Se, durante o tempo em que você estiver de licença se divertindo e relaxando, algo que recomendo veementemente-. Se durante esse tempo eu precisar acessar os seus arquivos, você poderia me dar a sua senha?
— Acho que a sua senha dá acesso a todo o sistema — respondeu Fat Charlie.
— Sem dúvida nenhuma — concordou Grahame Coats com voz alegre. — Mas só por precaução. Você sabe como são os computadores.
— Sereia— respondeu Fat Charlie. — S-E-R-E-I-A.
— Excelente. Excelente — repetiu. Ele não fez o gesto de esfregar as mãos, mas bem que poderia.
Fat Charlie desceu as escadas com um cheque no valor de 2 mil libras no bolso, tentando imaginar como pôde ter uma imagem tão errada de Grahame Coats durante dois anos.
Virou a esquina, foi até seu banco e depositou o cheque.
Depois desceu a área.do dique para tomar um ar e pensar.
Estava 2 mil libras mais rico. A dor de cabeça que o acometia de manhã desaparecera. Sentia-se bem, próspero. Pensou se não poderia convidar Rosie para viajar alguns dias com ele. Era meio de repente, mas mesmo assim...
Então ele viu Spider e Rosie andando de mãos dadas do outro lado da rua. Rosie estava terminando de tomar seu sorvete. Ela parou, jogou o resto numa lata de lixo e puxou Spider para si. Com uma boca de sorvete, começou a beijá-lo com vontade e entusiasmo.
Fat Charlie sentiu a dor de cabeça voltar. Ficou paralisado.
Observou enquanto se beijavam. Achava que, mais cedo ou mais tarde, teriam que parar para respirar, mas não pararam. Caminhou para outra direção, sentindo-se péssimo, até chegar ao metrô.
E foi para casa.
Quando chegou em casa, sentia-se um trapo. Foi para a cama, que ainda tinha um cheiro leve de Daisy, e fechou os olhos.
O tempo passou, e agora Fat Charlie caminhava por uma praia com seu pai. Estavam descalços. Ele era criança de novo, e seu pai não tinha idade definida.
“Então”, disse seu pai, “você e Spider estão se dando bem?”
“Isto é um sonho”, pensou Fat Charlie, “e eu não quero falar sobre isso.”
“Vocês, meninos...”, começou o pai, balançando a cabeça. “Escute. Vou dizer uma coisa importante pra você.”
“O quê?”
Mas seu pai não respondeu. Algo que pairava sobre as ondas chamou sua atenção, e ele se abaixou e pegou alguma coisa. Cinco protuberâncias pontudas moveram-se languidamente.
“Uma estrela-do-mar”, disse seu pai, com ar alegre. “Quando você corta uma pela metade, ela cresce de novo até formar uma nova estrela.”
“Pensei que você fosse me dizer uma coisa importante.”
Seu pai agarrou o próprio peito, caiu na areia e parou de se mover. Vermes saíram da areia e o devoraram em poucos segundos, sem deixar nada além dos ossos. Pai?
Fat Charlie acordou em seu quarto com o rosto molhado de lágrimas. E então parou de chorar. Não tinha por que ficar triste. Seu pai não morrera. Era só um sonho ruim.
Decidiu que convidaria Rosie para jantar na noite seguinte. Comeriam filé. Ele cozinharia. Ficaria tudo bem.
Levantou-se e vestiu-se.
Vinte minutos depois, estava na cozinha comendo um Cup Noodles quando lhe ocorreu que, embora o que acontecera na praia tivesse sido um sonho ruim, seu pai ainda estava morto.
Rosie deu uma passada no apartamento de sua máe, na Wimpole Street, no fim da tarde.
— Vi o seu namorado hoje — disse a Sra. Noah. Seu primeiro nome era Eutheria, mas nas últimas três décadas ninguém usara esse nome na sua frente, com exceção de seu falecido marido. Depois da morte dele, o nome atrofiou até nunca mais ser usado uma vez sequer enquanto vivesse.
— Eu também. Deus do céu, como eu amo aquele homem.
— Mas é claro que sim. Você vai se casar com ele, não é?
— Sim, sim. Quer dizer, eu sempre soube que o amava, mas hoje realmente percebi o quanto o amo. Adoro tudo nele.
— Descobriu onde ele estava na noite passada?
— Sim. Ele explicou tudo. Saiu com o irmão.
— Não sabia que ele tinha um irmão.
— Ele não tinha falado do irmão para mim. Não eram muito próximos.
A mãe de Rosie estalou a língua.
— Deve ter sido uma bela reunião de família então. Ele falou da prima também?
— Prima?
— Ou irmã talvez. Ele não parecia ter muita certeza. Bonitinha, de um jeito meio vulgar. Parecia meio chinesa. Mas nada fantástico, se você quer saber. Como o resto da família dele.
— Mãe. Você não conhece a família dele.
— Conheci a moça. Estava na cozinha dele hoje de manhã, andando praticamente nua. Uma pouca-vergonha. Se é que era prima dele.
— O Fat Charlie não mentiria.
— Mas ele é homem, não é?
— Mãe!
— E por que ele não foi trabalhar hoje?
— Ele foi. Estava lá. Nós almoçamos juntos. — A mãe de Rosie examinou o batom num espelhinho de bolso e, com o dedo indicador, limpou as manchas vermelhas nos dentes. — Que mais você falou com ele?
— Nós conversamos sobre o casamento. Eu disse que não queria que o padrinho fizesse um desses discursos indecentes. Parecia que ele tinha bebido. Você sabe que eu lhe disse para não se casar com um homem que bebe.
— Bom, ele pareceu perfeitamente normal quando o vi — observou Rosie com um ar afetado. E acrescentou: — Ah, mãe, hoje foi um dia tão bom. Nós passeamos e conversamos. Eu já contei que o cheiro dele é maravilhoso? E as mãos dele são tão macias.
— Se quer saber, acho que ele tem um cheiro esquisito. Olha só, da próxima que vez que encontrá-lo, pergunte sobre essa prima dele. Não estou dizendo que ela é prima dele nem que não é. Só estou dizendo que, se ela é, então há prostitutas e mulheres da vida na família, e não é o tipo de pessoa com quem você deve se envolver.
Rosie sentiu-se melhor agora que a mãe voltava a criticar Fat Charlie.
— Mãe. Eu não quero ouvir mais nem uma palavra.
— Certo. Vou fechar a boca. Não sou eu quem vai se casar com ele, afinal de contas. Não sou eu quem vai jogar a vida fora. Não sou eu quem vai ficar chorando com a cara no travesseiro enquanto ele fica bebendo por aí com outras mulheres. Não sou eu quem vai ficar esperando, dia após dia, noite após noite, até ele sair da prisão.
— Mãe! — Rosie tentou soar indignada, mas o pensamento de Fat Charlie na prisão era muito engraçado, muito absurdo, e ela teve que tentar não rir.
O celular de Rosie tocou. Ela respondeu:
— Claro. Eu adoraria. Parece ótimo — e desligou. — Era ele. Vou lá na casa dele amanhã à noite. Ele vai cozinhar pra mim. Não é um fofo? — E acrescentou: — É, uma baita duma prisão.
— Eu sou sua mãe — começou a mãe de Rosie, em seu apartamento sem comida, onde a poeira nunca assentava —, e eu sei das coisas.
Grahame Coats estava sentado em seu escritório olhando para a tela do computador enquanto lá fora o dia dava lugar à noite. Abria documento após documento, planilha após planilha. Algumas ele modificava. A maioria, ele apagava.
Precisava viajar naquela noite a Birmingham, onde um ex-jogador de futebol, cliente dele, inauguraria uma casa noturna. Em vez disso, ligou e desculpou-se: não podia adiar certas pendências.
Logo a luz do lado de fora da janela desapareceu por completo. Grahame Coats ficou sentado à frente da luz fria do monitor do computador modificando, reescrevendo, apagando.
Certa vez, há muito, muito tempo, a mulher de Anansi plantou um canteiro de ervilhas. Eram as maiores, mais verdes e mais bonitas ervilhas já vistas. Você ficaria com água na boca só de olhar para elas.
Desde o momento em que Anansi viu a plantação de ervilhas, ele as quis para si. E não queria apenas algumas ervilhas, porque Anansi era um homem que tinha um apetite enorme. Não queria partilhá-las com ninguém. Queria todas as ervilhas.
Então Anansi deitou-se na cama e ficou suspirando, gemendo longamente, bem alto, e sua mulher e seus filhos vieram correndo.
— Estou morrendo — disse com uma voz pequena e fraca. — Minha vida está chegando ao fim.
Ao ouvir isso, sua mulher e seus filhos começaram a chorar. Com sua voz pequena e fraquinha, Anansi disse:
— Vocês têm que prometer duas coisas pra mim aqui no meu leito de morte.
— O que você quiser, o que você quiser — responderam a mulher e os filhos.
— Primeiro precisam prometer que vão me enterrar debaixo daquele pé de fruta-pão.
— O pé grande de fruta-pão perto da plantação de ervilhas? — perguntaram.
— Claro que é desse que estou falando — respondeu Anansi. Então, com a voz pequena e fraquinha, disse: — E vocês precisam prometer mais uma coisa. Prometam que, em minha memória, vão fazer uma fogueira perto da minha cova. Para mostrar que vocês não me esqueceram, vão deixar o fogo queimando, sem nunca deixar que se apague.
— Sim, sim! Prometemos! — concordaram a esposa e os filhos de Anansi, chorando e gemendo.
— Sobre o fogo, como símbolo de respeito e amor, quero ver uma panela pequena, cheia de água salgada, para me lembrar das lágrimas quentes e salgadas que vocês derramaram por mim no meu leito de morte.
— Prometemos, prometemos! — choraram eles, e Anansi fechou os olhos e não respirou mais.
Bom, eles carregaram Anansi até o grande pé de fruta-pão que crescia perto da plantação de ervilha e o enterraram a sete palmos do chão. Aos pés da cova, fizeram uma pequena fogueira e colocaram um pote com água salgada ao lado.
Anansi espera embaixo da terra o dia inteiro, mas, quando a noite cai, sai da cova, vai até a plantação de ervilha e pega as ervilhas mais redondas, mais saborosas e mais maduras. Ferve todas na panela e come tudo, até sua barriga ficar estufada e esticada como um tambor.
E então, antes do amanhecer, volta para a cova e dorme. Dorme enquanto a esposa e os filhos descobrem que as ervilhas sumiram. Dorme enquanto eles vêem que a panela de água estava vazia e a enchem de novo. Dorme enquanto eles se sentem tristes.
Toda noite, Anansi sai da cova, dançando, maravilhado com a própria esperteza, enche a panela de ervilhas e come as ervilhas, come até não conseguir comer mais nada.
Os dias passam, e a família de Anansi fica cada vez mais magra, porque tudo o que amadurece é colhido por Anansi durante a noite, e eles não têm nada para comer.
A mulher de Anansi olha os pratos vazios e diz aos filhos:
— O que o seu pai faria?
Os filhos pensam e pensam, e aí se lembram de todas as histórias que Anansi lhes contou. Eles vão até a loja de piche e compram umas seis moedas só em piche, o suficiente para encher quatro baldes grandes, e levam o piche até a plantação de ervilha. No meio da plantação, fazem um boneco de piche: cara de piche, olhos de piche, braços de piche, dedos de piche, tórax de piche. Fica bom, parece um homem tão negro e tão orgulhoso quanto o próprio Anansi.
Naquela noite, o velho Anansi, mais gordo do que jamais esteve em toda a vida, sai da terra e, redondo e feliz, o estômago esticado feito um tambor, arrasta-se até a plantação de ervilha.
— Quem é você? — pergunta ao boneco de piche.
O boneco de piche não diz uma só palavra.
— Este lugar é meu — diz Anansi ao homem de piche. — É a minha plantação. E melhor você ir andando se não quiser apanhar.
O boneco de piche não diz nada e não move um músculo.
— Eu sou o sujeito mais forte e mais poderoso que já existiu — avisa Anansi ao boneco de piche. — Sou mais feroz que o Leão, mais rápido que o Guepardo, mais forte que o Elefante, mais terrível que o Tigre. — Ele enche o peito de orgulho por sua força, seu poder e sua ferocidade, esquecendo-se de que era apenas uma pequena aranha. — Tenha medo — ameaça. — Tenha muito medo.
Pode sair correndo.
O boneco de piche não tem medo e nem corre. Para falar a verdade, fica lá parado. Então Anansi bate nele. A mão de Anansi fica grudada.
— Solta a minha mão — diz ao homem de piche. — Solta senão eu te bato na cara.
O homem de piche não diz nada, não mexe um dedinho sequer, e Anansi bate nele, um soco bem dado na cara.
— Certo. Brincadeira tem limite. Você pode segurar as minhas duas mãos se quiser, mas eu tenho mais quatro e duas ótimas pernas. Você não consegue segurar tudo isso, então me solta que eu pego leve com você.
O boneco de piche não solta as mãos de Anansi e não diz uma palavra, então Anansi bate nele com todas as mãos e o chuta com os pés, um de cada vez.
— Certo, então. Me solta senão eu te mordo. — E então o piche enche sua boca e cobre seu nariz e seu rosto.
Assim encontraram Anansi na manhã seguinte, quando a mulher e os filhos saíram pela plantação de ervilha para ir até o pé de fruta-pão: todo grudado no boneco de piche, e morto de verdade.
Não ficaram surpresos ao ver que ele estava ali morto.
Naquela época, era assim que as pessoas costumavam encontrar Anansi.