11 No qual Rosie aprende a dizer náo a estranhos e Fat Charlie adquire um limão

Fat Charlie olhou para o túmulo de seu pai.

— Você está aí? Se estiver, saia. Preciso falar com você. Caminhou até a marcação do túmulo e olhou para baixo. Fat Charlie não sabia ao certo o que esperar — que uma mão brotasse do solo, talvez, erguendo-se e agarrando sua perna —, mas nada parecia prestes a acontecer.

Ele tivera tanta certeza.

Fat Charlie voltou pelo Jardim do Repouso sentindo-se estúpido como um participante de show programa de TV que tivesse apostado seu milhão de dólares na afirmação de que o Mississipi era mais extenso que o Amazonas. Ele já devia ter desconfiado. O pai estava morto, tão morto quanto um bicho atropelado na estrada. Ele gastou o dinheiro de Spider numa busca inútil. Perto dos cata-ventos da Babyland, Fat Charlie sentou-se e chorou. Os brinquedos embolorados lhe pareceram ainda mais tristes e solitários do que se lembrava.

Ela o esperava no estacionamento, encostada no carro, fumando um cigarro. Parecia perturbada.

— Olá, Sra. Bustamonte — cumprimentou Fat Charlie.

Ela tragou uma última vez, jogou o cigarro no asfalto e o esmagou sob a sola do sapato baixo. Estava vestida de preto. Parecia cansada.

— Olá, Charles.

— Eu achava que, se fosse encontrar alguém aqui, seria a Sra. Higgler. Ou a Sra. Dunwiddy.

— Callyanne foi embora. A Sra. Dunwiddy me mandou. Ela quer ver você.

“Que nem a máfia”, pensou Fat Charlie. “Máfia no pós-menopausa.”

— Ela vai me fazer uma oferta irrecusável?

— Duvido muito. Ela não anda muito bem.

— Ah.

Fat Charlie entrou em seu carro alugado e seguiu o Camry da Sra. Bustamonte pelas ruas da Flórida. Tivera tanta certeza quanto a seu pai. Certeza de que o encontraria vivo. Claro que ele o ajudaria...

Estacionaram em frente à casa da Sra. Dunwiddy. Fat Charlie olhou para o quintal, para os desbotados flamingos de plástico, os gnomos e a bola decorativa espelhada e vermelha em cima de um pequeno pedestal de concreto, como se fosse uma enorme decoração de árvore de Natal. Ele caminhou em direção à bola, que era igual à que ele havia quebrado quando ainda era criança, e viu a si mesmo, distorcido, encarando-se de volta.

— Pra que serve? — perguntou.

— Pra nada. Ela só gostou.

Dentro da casa, o cheiro de violetas pairava espesso e sufocante. A tia-avó de Fat Charlie, Alanna, sempre mantinha um tubo de balinhas de violeta em sua bolsa. Mesmo tendo sido um guri gorducho e louco por açúcar, Fat Charlie só recorria àquele doce quando não havia nenhum outro. O cheiro da casa lembrava o gosto daqueles doces. Fat Charlie não pensava em violetas havia 20 anos. Ele se perguntou se ainda fabricavam aquilo, e o que teria levado alguém a criar o doce para começo de conversa.

— Ela está no quarto ao final do corredor — disse a Sra. Bustamonte, parando e apontando. Fat Charlie entrou no quarto da Sra. Dunwiddy.

Não era uma cama grande, mas a Sra. Dunwiddy deitada ali parecia uma boneca gigante. Ela estava de óculos e, por cima deles, usava o que Fat Charlie reconhecia como a primeira touca de dormir que via na vida, uma Coisinha do tipo vovó-toma-chá-com-biscoitos, já amarelada, com rendinha na borda. Ela estava recostada numa montanha de travesseiros, boca aberta, e roncava suavemente quando ele entrou.

Ele tossiu.

A Sra. Dunwiddy ergueu a cabeça de súbito, abriu os olhos e o encarou. Apontou para o criado-mudo ao lado da cama. Fat Charlie apanhou o copo d’água que ali estava e o passou para ela. Ela segurou o copo com as duas mãos, como um esquilo segura uma noz, e sorveu um bom gole antes de devolvê-lo.

— Minha boca fica seca. Você sabe quantos anos eu tenho?

— Ahm.

Fat Charlie preferiu não arriscar uma resposta errada.

— Não.

— Tenho 104 anos.

— Fantástico. A senhora parece tão bem. Sério, acho maravilhoso...

— Cale-se, Fat Charlie.

— Desculpe.

— Também não diga “desculpe” desse jeito, como se fosse um cachorro que recebeu bronca por sujar o tapete da cozinha. Erga a cabeça. Olhe o mundo nos olhos. Tá entendendo?

— Sim. Desculpe. Digo., sim, senhora.

Ela suspirou.

— Querem me levar pro hospital. Eu digo que quando você chega aos 104 tem o direito de morrer na própria cama. Fiquei grávida nesta cama, muito tempo atrás, e tive filhos aqui. De jeito nenhum vou morrer em outro lugar. E outra..

Ela parou de falar, fechou os olhos e deu um suspiro longo e profundo. Quando Fat Charlie já começava a achar que ela estava dormindo, os olhos da Sra. Dunwiddy se abriram e ela disse:

— Fat Charlie, se alguém um dia perguntar se você quer viver até 104 anos, diga que não. Dói tudo. Tudo. Dói em lugares que ainda nem descobriram.

— Vou tentar me lembrar.

— E não me responda.

Fat Charlie ficou olhando pra pequena mulher em sua cama branca de madeira.

— Devo pedir desculpas? — perguntou.

A Sra. Dunwiddy desviou o olhar, sentindo-se meio culpada.

— Eu fiz mal a você. Muito tempo atrás, eu fiz mal a você.

— Eu sei.

A Sra. Dunwiddy podia estar à beira da morte, mas ainda fitou Fat Charlie de um jeito que teria feito crianças de 5 anos correrem gritando pelas mães.

— Como assim, você sabe?

— Eu deduzi. Não tudo, provavelmente, mas alguma coisa. Não sou burro.

Ela o examinou friamente através do grosso vidro dos óculos e então disse:

— Não. Não é. Isso é verdade.

Ela estendeu a mão nodosa.

— Me dê mais água. Assim é melhor.

Ela bebeu, mergulhando a língua pequena e roxa na água. Continuou a falar.

— É bom que você esteja aqui hoje. Amanhã a casa inteira vai estar cheia de netos e bisnetos chorando, todos querendo que eu vá morrer no hospital, me agradando para ganhar alguma coisa. Eles não me conhecem. Eu vivi mais que os meus filhos. Cada um deles.

— A senhora vai me contar sobre o mal que me fez?

— Você não devia ter quebrado meu globo de vidro.

— Claro que não.

Ele se lembrava do ocorrido, da maneira como recordamos episódios da infância — em parte memórias, em parte memórias das memórias. Seguindo a bola de tênis até o jardim da Sra. Dunwiddy e, uma vez lá, experimentando erguer a bola de vidro ornamental para ver seu rosto nela, enorme e distorcido, sentindo-a cair no caminho de pedra, observando quando ela se despedaçou em milhares de pequenos estilhaços de vidro. Ele se lembrava dos dedos velhos fortes que o agarraram pela orelha e o arrastaram para fora do quintal e para dentro da casa...

— A senhora afugentou o Spider. Não foi?

O maxilar da Sra. Dunwiddy parecia o de um buldogue mecânico. Ela fez que sim com a cabeça.

— Eu bani o seu irmão. Mas não queria que acontecesse como aconteceu. Todo mundo sabia um pouco de magia naquele tempo. Não tínhamos esses DVDs, celulares, microondas, mesmo assim sabia bastante. Eu só queria ensinar uma lição a você. Você se achava tão importante, era encrenqueiro, insolente, azedo. Um moleque bagunceiro, respondão, malcriado. Eu o arranquei de você pra te ensinar uma lição.

Fat Charlie ouviu as palavras, mas não entendeu.

— Você o arrancou?

— Eu separei o Spider de você. Toda a esperteza. Toda a perversidade. Toda aquela diabrura. Tudo aquilo.

Ela suspirou.

— Erro meu. Ninguém me disse que fazer magia em um... Em pessoas da linhagem do seu pai deixa tudo maior. Tudo ficar maior.

Outro gole d’água.

— Sua mãe nunca acreditou. Não de verdade. Mas aquele Spider, ele era pior que você. Seu pai nunca dizia nada a respeito até eu o afugentar. Mesmo então, tudo o que ele me disse foi que, se você não consertasse tudo isso, não era mais filho dele.

Ele queria argumentar, dizer que aquilo era tudo bobagem, que Spider não era parte dele, não mais do que Fat Charlie era parte do mar ou das trevas. Em vez disso, perguntou:

— Onde está a pena?

— Que pena?

— Quando eu voltei daquele lugar. O lugar com os rochedos e as cavernas. Eu estava segurando uma pena. O que você fez com ela?

— Eu não lembro. Eu sou velha. Tenho 104 anos.

— Onde ela está?

— Eu esqueci.

— Por favor, me diga.

— Não estou com ela.

— Quem está?

— Callyanne.

— A Sra. Higgler?

Ela se inclinou para a frente e, em tom de confidencia, disse: — As outras duas, elas são apenas meninas. São irresponsáveis.

— Eu liguei para a Sra. Higgler antes de sair. Parei na casa dela no caminho para o cemitério. A Sra. Bustamonte diz que ela foi embora.

A Sra. Dunwiddy balançou suavemente de um lado pro outro, como se estivesse se embalando para dormir.

— Não tenho muito tempo aqui. Parei de comer comida sólida depois que você partiu da última vez. Não dá mais. Só água. Algumas mulheres dizem que amam o seu pai, mas eu o conheci bem antes delas. Quando eu ainda era bonita, ele me levava pra dançar. Me buscava e me levava por aí. Ele já era um homem velho na época, mas sempre fazia a garota se sentir especial. Eu não me sentia— — Ela parou, tomou outro gole d’água. Suas mãos tremiam. Fat Charlie pegou o copo vazio. — Cento e quatro anos. E nunca fiquei de cama durante o dia, a não ser de resguardo. E agora já era.

— Tenho certeza de que a senhora vai chegar aos 105 — consolou Fat Charlie, sem jeito.

— Não diga isso! — Ela parecia alarmada. — Não! Sua família já criou problemas demais. Não faça isso acontecer.

— Eu não sou como o meu pai — observou Fat Charlie. — Não sou mágico. Spider herdou todo esse lado da família, lembra?

Ela não parecia escutar. Disse:

— Quando a gente ia dançar, bem antes da Segunda Guerra, seu pai falava com o líder da banda, e muitas vezes o chamavam pra cantar. Todo mundo ria e saudava. Assim ele fazia as coisas acontecerem. Cantando.

— Cadê a Sra. Higgler?

— Foi pra casa.

— A casa dela está vazia. O carro não está lá.

— Ela foi pra casa.

— Ahm... Você quer dizer que ela morreu?

A velha senhora nos lençóis brancos soprou e engasgou procurando fôlego. Ela já não parecia ser capaz de falar, e fez um gesto na direção de Fat Charlie.

— A senhora quer que eu chame alguém?

Ela fez que sim com a cabeça, e continuou a engasgar e tossir enquanto Fat Charlie saía para procurar a Sra. Bustamonte. Ela estava sentada na cozinha, assistindo ao programa da Oprah numa antiga televisão bem pequena que ficava sobre o balcão da cozinha.

— Ela precisa da senhora.

A Sra. Bustamonte saiu. Voltou trazendo a jarra de água vazia.

— O que você disse pra ela ficar daquele jeito?

— Ela estava tendo um ataque ou algo assim?

A Sra. Bustamonte o encarou.

— Não, Charles. Estava rindo de você. Diz que você faz ela se sentir bem.

— Ah. Ela disse que a Sra. Higgler tinha ido pra casa. Eu perguntei se queria dizer que ela tinha morrido.

A Sra. Bustamonte então sorriu.

— Saint Andrews. Callyanne foi pra Saint Andrews.

Ela encheu a jarra na pia.

— Quando tudo isso começou, eu achava que era eu contra Spider, e que vocês quatro estavam do meu lado. Agora levaram Spider embora, e sou eu contra vocês quatro. — Ela fechou a torneira e o olhou de um jeito sombrio. — Eu não acredito em mais ninguém. A Sra. Dunwiddy deve estar só fingindo que está doente. Provavelmente assim que eu for embora ela vai pular da cama e dançar o charleston pelo quarto.

— Ela não come. Diz que faz ela se sentir mal por dentro. Não quer nada pra encher a barriga. Só água.

— Para onde em Saint Andrews ela foi?

— Vá embora logo. Sua família, vocês todos já fizeram mal o suficiente por aqui.

Fat Charlie parecia prestes a dizer alguma coisa, mas não disse nada e saiu sem mais palavra.

A Sra. Bustamonte levou a jarra de água para a Sra. Dunwiddy, que permanecia quieta na cama.

— O filho do Nancy odeia a gente — disse a Sra. Bustamonte. — Que que cê disse pra ele, afinal?

A Sra. Dunwiddy não falou nada. A Sra. Bustamonte ficou ouvindo e, quando teve certeza de que a velha senhora ainda respirava, tirou-lhe do rosto os grossos óculos, colocou-os ao lado da cama e puxou os lençóis para cobrir seus ombros.

Depois disso, simplesmente esperou pelo fim.


Fat Charlie saiu dirigindo sem ter muita certeza de aonde iria. Ele atravessara o Atlântico pela terceira vez em duas semanas, e o dinheiro que Spider lhe dera estava quase no fim. Estava sozinho no carro e, por estar sozinho, começou a cantarolar.

Fat Charlie passou por uma aglomeração de restaurantes jamaicanos quando notou um aviso na vitrine de uma loja: Desconto Para as Ilhas. Parou o carro e entrou na loja.

— Nós da A-One estamos aqui para suprir todas as suas necessidades de viagem — disse o agente no tom de voz cuidadoso e algo tímido que os médicos geralmente usam para dizer a alguém que o membro em questão terá que ser amputado.

— Ah. Sim. Obrigado. Ahm... Qual a maneira mais barata de chegar a Saint Andrews?

— Você está indo de férias?

— Na verdade, não. Só quero ficar lá um dia. Talvez dois.

— Quando pretende partir?

— Nesta tarde.

— Você deve estar brincando.

— De jeito nenhum.

O homem lançou um olhar lúgubre para a tela do computador e teclou alguma coisa.

— Parece que aqui não há nada por menos de 1.200 dólares.

— Ah.

Fat Charlie murchou.

Mais batidas no teclado. O homem fungou.

— Isso não pode estar certo— Espere um pouco.

Um telefonema.

— Essa tarifa ainda é válida? — perguntou o homem. Rabiscou alguns números num bloco e olhou para Fat Charlie. — Se você puder ficar uma semana lá, no Hotel Dolphin, eu conseguiria uma semana de férias por 500 dólares, com refeições incluídas. O vôo custará apenas a taxa de embarque.

Fat Charlie piscou, incrédulo.

— Isso é uma pegadinha?

— E uma promoção de turismo da ilha. Alguma coisa relacionada com o festival de música. Eu achava que já tinha terminado. Mas você sabe como é: você só tem direito ao que pagou. Se quiser comer em outro canto, vai sair do seu bolso.

Fat Charlie deu ao homem cinco notas amassadas de 100 dólares.


Daisy já começava a se sentir como aquele tipo de policial que você só vê nos filmes: durona, experiente e sempre disposta a desafiar o sistema. O tipo de tira que pergunta se você é um cara de sorte ou se você está interessado em deixar o dia dele mais alegre. Principalmente o tipo de tira que diz “estou velho demais pra essa merda”. Ela tinha 26 anos e queria dizer às pessoas que estava velha demais para aquela merda. Bem sabia que aquilo soava meio ridículo.

Naquele momento, Daisy estava no escritório do superintendente Camberwell, dizendo:

— Sim, senhor. Saint Andrews.

— Fui lá em férias, faz alguns anos, com a ex-Sra. Camberwell. Lugar bem agradável. Bolo de rum.

— Parece que é esse lugar mesmo, senhor. O vídeo do circuito fechado de Gatwick que nós temos sem dúvida mostra o suspeito. Viajando com o nome de Bronstein. Roger Bronstein viaja pra Miami, muda de avião e pega uma conexão para Saint Andrews.

— Você tem certeza de que é ele?

— Certeza.

— Bem. Isso acaba com a gente, né? Eles não têm tratado de extradição.

— Deve haver alguma coisa que possamos fazer.

— Humm. Nós podemos congelar as contas dele e confiscar os bens. É o que vamos fazer, e isso vai adiantar tanto quanto estar na chuva com um guarda-chuva de açúcar, porque ele tem muita grana em lugares onde não podemos mexer.

— Mas isso é trapaça.

O superintendente Camberwell olhou para ela como se não tivesse certeza do que via diante de seus olhos.

— A gente não está brincando de pega-pega. Se jogassem de acordo com as regras, estariam do nosso lado. Se ele voltar, então o prendemos. — Ele rolou um homenzinho de massinha, transformando-o em uma bola, e depois o esmagou entre o indicador e o polegar. — Antigamente as igrejas eram santuários onde uma pessoa ficava protegida da lei, mesmo se tivesse matado alguém. Claro que isso limitava sua vida social.

Camberwell olhou para Daisy como quem esperava que ela saísse. Ela disse:

— Ele matou Maeve Livingstone. E há anos enrola os próprios clientes.

— E?

— Deveríamos levá-lo a julgamento.

— Não se deixe afetar por isso. — Daisy pensou “Estou ficando velha demais pra essa merda”. Manteve a boca fechada, e as palavras simplesmente ficaram rodando em sua cabeça. — Não se deixe afetar por isso — repetiu ele. — Faça de conta que é um guarda de trânsito. Grahame Coats é um carro que estacionou em fila dupla, mas arrancou antes que você pudesse lhe dar uma multa. Certo?

— Claro. Claro. Sinto muito.

— Ok.

Daisy voltou para sua mesa, acessou o site interno da polícia e ficou examinando suas opções por várias horas. Finalmente foi para casa. Carol estava sentada vendo novela, comendo um korma de galinha esquentado no microondas.

— Vou tirar uma folga — disse Daisy. — Sair de férias.

— Mas você não tem mais dias de férias — observou Carol, corrigindo-a.

— Que seja. Estou velha demais pra essa merda.

— Ah. Pra onde você vai?

— Vou pegar um bandido — respondeu Daisy.


Fat Charlie gostou da Caribbeair. Embora se tratasse de uma companhia aérea internacional, dava a sensação de uma pequena empresa de ônibus. A aeromoça chamou Charlie de “querido” e disse que ele podia sentar onde desse na telha.

Fat Charlie estirou-se sobre três assentos e dormiu. Em seu sonho, caminhava sob céus de cobre, e o mundo permanecia imóvel, em silêncio. Charlie andava na direção de um pássaro, maior que muitas cidades, de olhos em chamas e bico aberto, pelo qual entrou e seguiu descendo garganta da criatura abaixo.

Então, como acontece nos sonhos, estava em uma sala de paredes cobertas com penas macias e olhos redondos, como olhos de coruja, que nunca piscavam.

Spider estava no centro da sala, com as pernas e os braços estendidos, preso em correntes feitas do que pareciam ser ossos de pescoço de galinha. As correntes vinham dos cantos da sala e o mantinham bem preso, como se fosse uma mosca numa teia.

— Ah — disse Spider. — É você.

— Sim — respondeu Fat Charlie no sonho.

As correntes de osso se retesaram e puxaram a carne de Spider, e Fat Charlie pôde ver a dor em seu rosto.

— Bom — começou Fat Charlie. — Podia ser pior.

— Acho que isso aqui não é tudo — observou seu irmão. — Acho que ela tem planos para mim. Para nós. Só não sei o quê.

— São só pássaros — disse Fat Charlie. — Não pode ser tão ruim.

— Já ouviu falar de Prometeu?

— Ahm...

— Roubou o fogo para os homens. Foi punido pelos deuses, acorrentado numa rocha. Todo dia, uma águia vinha e arrancava o fígado dele.

— Não acabava nunca, o fígado?

— Crescia um novo a cada dia. Coisa de deus.

Houve uma pausa. Os dois irmãos se encararam.

— Eu vou ajeitar as coisas — prometeu Fat Charlie. — Vou consertar tudo.

— Que nem você consertou o resto da sua vida, aposto. — Spider sorriu sem alegria.

— Sinto muito.

— Não. Eu é que sinto. — Spider suspirou. — Escuta, você tem um plano?

— Um plano?

— Vou interpretar isso como um não. Faça o que você tiver que fazer. Mas me tire daqui.

-Você está no Inferno?

— Eu não sei onde estou. Se for o inferno, deve ser o Inferno dos Pássaros. Você tem que me tirar daqui.

— Como?

-Você é filho do papai, não é? E também é meu irmão. Dê um jeito. Só me tire daqui.

Fat Charlie acordou com um arrepio. A aeromoça lhe trouxe café, e ele bebeu agradecido, sentindo-se alerta e sem vontade de dormir. Ficou apenas lendo a Caribbe Air Magazines acabou aprendendo muitas coisas úteis sobre Saint Andrews.

Aprendeu, por exemplo, que Saint Andrews não era uma das menores ilhas caribenhas, mas devia ser uma daquelas ilhas em que a maioria das pessoas não prestava atenção. Havia sido descoberta pelos espanhóis por volta de 1500. Consistia basicamente numa elevação vulcânica com exuberante vida animal e vegetal. Dizia-se que em Saint Andrews, em se plantando, tudo dava.

Saint Andrews pertencera aos espanhóis, depois aos ingleses, aos holandeses, aos ingleses novamente e, por um curto período após sua independência em 1962, ao major F. E. Garrett, que assumiu o governo, rompeu relações diplomáticas com todos os países, exceto a Albânia e o Congo, e governou-a com mão de ferro até sua infeliz morte ao cair da cama, vários anos depois. Ele caíra da cama com força o bastante pra quebrar um bom número de ossos, apesar da presença em seu quarto de um batalhão de soldados que, um a um, testemunharam ter tentado sem sucesso aparar sua queda. Apesar de todos os esforços, ele já estava morto quando chegou ao único hospital da ilha. Desde então, Saint Andrews era governada por um governo local eleito e se dava bem com todos os seus vizinhos.

A ilha possuía quilômetros de praia e uma floresta tropical bem pequena no centro do território. Tinha bananas e cana-de-açúcar, um sistema bancário que encorajava investimentos estrangeiros, transações bancárias corporativas do exterior e nenhum tratado de extradição conhecido, exceto talvez com a Albânia e o Congo. Se algo a fazia famosa, era sua culinária: os habitantes da ilha gabavam-se de ter carne-seca de galinha antes dos jamaicanos, de usar curry no carneiro antes do pessoal de Trinidad e de fritar peixe-voador antes dos habitantes de Baja.

Havia duas cidades em Saint Andrews: Williamstown, no lado sudeste da ilha, e Newcastle , no norte. Havia feiras onde tudo o que crescia por lá podia ser comprado. E vários supermercados onde os mesmos produtos podiam ser comprados pelo dobro do preço. Um dia, Saint Andrews ganharia um aeroporto internacional de verdade.

Discutia-se muito se o porto de Williamstown era uma coisa boa ou ruim. Mas graças a ele era que chegavam lá os navios de cruzeiro, ilhas flutuantes repletas de gente que vinha e mudava a economia de Saint Andrews, assim como a de muitas outras ilhas caribenhas. Na alta temporada, contava-se por volta de meia dúzia de navios de cruzeiro na baía de Williamstown, e milhares de pessoas esperavam o desembarque para esticar as pernas e fazer compras. O povo de Saint Andrews resmungava, mas dava as boas-vindas aos visitantes, vendia coisas para eles, os alimentava até que não conseguissem mais comer e então os enviava de volta aos navios.

O avião da Caribbe Air aterrissou com um baque que fez Fat Charlie derrubar a revista. Ele a pôs de volta no bolso de trás do assento à sua frente, desceu os degraus e atravessou a pista. Era fim de tarde.

Fat Charlie tomou um táxi do aeroporto até o hotel. Durante a corrida, aprendeu algumas coisas que não eram informadas na revista da Caribbe Air. Por exemplo, que música, música de verdade, música mesmo, era country e western. Em Saint Andrews, até os rastafáris gostavam. Johnny Cash? Era deus. Willie Nelson? Um semideus.

Aprendeu que não havia razão para deixar Saint Andrews. O próprio taxista jamais havia conseguido encontrar um bom motivo para sair de lá, e já havia pensado bastante no assunto. A ilha tinha uma caverna, uma montanha e uma floresta. Hotéis? Vinte. Restaurantes? Dúzias. Tinha uma capital, três cidades e várias vilas. Comida? Tudo crescia em Saint Andrews. Laranjas. Bananas. Nozes. Até, disse o taxista, limões.

Fat Charlie disse um “Não!”, incrédulo, mais para sentir que participava da conversa, mas o motorista pareceu levar aquilo como um desafio à veracidade da sua história. Pisou no freio, fazendo o carro deslizar até o lado da estrada, saiu do táxi e, aproximando-se de uma cerca, arrancou algo de uma árvore e voltou.

— Olhe aqui! Ninguém nunca me chama de mentiroso. Isto aqui é o quê?

— Um limão?

— Exato.

O taxista fez o carro voltar aos trancos para a estrada, enquanto dizia a Fat Charlie que o Dolphin era um excelente hotel. Fat Charlie tinha família na ilha? Ele conhecia o lugar?

— Na verdade, vim pra procurar alguém. Uma mulher.

O taxista achou essa uma esplêndida idéia, porque Saint Andrews era o lugar perfeito para visitar se você estava procurando mulheres. Ele entrou em detalhes, dizendo que as mulheres de Saint Andrews tinham mais curvas que as da Jamaica e davam menos dor de cabeça que as de Dominica, além de serem as melhores cozinheiras que se podia encontrar na face da Terra. Se Fat Charlie procurava por uma mulher, não poderia ter escolhido um lugar melhor.

— Mas não é qualquer mulher. É uma mulher específica — explicou Fat Charlie.

O taxista respondeu que aquele era o dia de sorte de Fat Charlie, porque ele mesmo conhecia todo mundo na ilha, e se orgulhava disso. Quando você passa a vida num lugar isso acontece, ele disse, e apostou que Fat Charlie não conhecia todo mundo da Inglaterra. Fat Charlie admitiu que de fato não conhecia.

— Ela é uma amiga da família. Seu nome é Sra. Higgler. Callyanne Higgler. Já ouviu falar?

O taxista ficou quieto algum tempo, parecendo pensar no assunto. E disse que não, nunca ouvira falar dela. O táxi parou em frente ao Hotel Dolphin. Fat Charlie pagou a corrida e entrou.

Havia uma jovem na recepção. Ele mostrou a ela seu passaporte e o número da reserva, e depositou o limão no balcão.

— Você tem alguma bagagem?

— Não — respondeu Fat Charlie, em tom de desculpa.

— Nada?

— Nada. Só o limão.

Ele preencheu vários formulários. A mulher deu-lhe as chaves e indicou-lhe como chegar ao quarto.

Fat Charlie estava no banho quando bateram à porta. Ele enrolou uma toalha na altura da barriga. Era o mensageiro do hotel.

— Você deixou seu limão na recepção — disse, e entregou o limão a Fat Charlie.

— Obrigado — agradeceu Fat Charlie, e voltou para o banho.

Depois foi para a cama e teve sonhos ruins.


Em sua casa, no topo da colina, Grahame Coats também tinha sonhos estranhos e sombrios, que beiravam o desagradável. Não conseguia se lembrar dos sonhos direito mas, ao abrir os olhos na manhã seguinte, ficava com a vaga impressão de haver passado a noite perseguindo criaturas menores em meio à grama alta, despachando-as com um golpe possante de sua pata, rasgando seus corpos com os dentes.

Nos sonhos, seus dentes eram verdadeiras armas de destruição.

Grahame acordou sentindo-se perturbado, como se o dia estivesse levemente carregado.

A cada manhã, começava um novo dia. Depois de apenas uma semana distante de sua antiga vida, Grahame Coats já experimentava a frustração do fugitivo. Tudo bem, possuía uma piscina, cacaueiros e pés de pomelo e de noz-moscada. Tinha uma adega cheia, um freezer para carnes vazio e um home theater. TV via satélite, uma extensa coleção de DVDs, sem falar na arte que cobria as paredes. Um cozinheiro vinha todos os dias preparar suas refeições. Contava com arrumadeira e jardineiro (um casal que ficava por algumas horas todos os dias). A comida era excelente, o clima — se você gostasse de dias ensolarados e tépidos — parecia perfeito, e nenhuma dessas coisas tornava Grahame Coats feliz como achava que deveria se sentir.

Não se barbeava desde que deixara a Inglaterra, mas até o momento não havia sinal de barba, apenas uma fina camada do tipo de pêlo facial que faz os homens parecerem não-confiáveis. Havia manchas como as de um panda ao redor de seus olhos e, sob eles, bolsas que de tão escuras pareciam hematomas.

Grahame nadava na piscina uma vez por dia, pela manhã, mas evitava o sol pelo resto do tempo. Vivia se dizendo que não juntara uma fortuna suspeita só para perdê-la para um câncer de pele. Ou para qualquer outra coisa.

Pensava muito sobre Londres. Em Londres, todos os seus restaurantes favoritos tinham um maitre que o conhecia pelo nome e fazia questão de que saísse satisfeito. Em Londres, havia pessoas que lhe deviam favores, e nunca era difícil conseguir ingressos para as estréias. Grahame sempre achara que daria um belo exilado, mas começava a suspeitar que estava errado.

Precisando responsabilizar alguém, chegou à conclusão de que tudo tinha acontecido por culpa de Maeve Livingstone. Ela o enganara. Ela tentara roubá-lo. Ela era uma pessoa astuta e trapaceira e mereceu o que ele fez. Ela se safou facilmente. Se ele fosse entrevistado na televisão, até já podia ouvir o tom de inocência ferida em sua voz enquanto explicava que estava apenas defendendo seus bens de uma mulher louca e perigosa. Para ser sincero, era provavelmente um milagre que ele tivesse saído vivo daquele escritório..

E ele gostava de ser Grahame Coats. Como sempre acontecia quando estava na ilha, agora era Basil Finnegan, e aquilo o incomodava. Grahame não se sentia um Basil. Havia dado duro por sua Basilidade — o Basil original morrera ainda criança e tinha uma data de nascimento próxima à de Grahame. Uma cópia da certidão de nascimento aliada a uma carta de um padre imaginário um pouco mais tarde, e Basil pôde ter um passaporte e uma identidade. Mantivera a identidade viva: Basil tinha uma sólida fortuna, viajava para lugares exóticos e comprara uma casa luxuosa em Saint Andrews sem jamais tê-la visto. Mas, na mente de Grahame, Basil não passava de alguém que trabalhava para ele. Agora o criado havia se tornado o mestre. Basil Finnegan o havia devorado vivo.

— Se eu continuar por aqui, vou ficar louco.

— O que o senhor quer dizer? — perguntou a arrumadeira, de aspirador na mão, limpando perto da porta do quarto.

— Nada.

— Parece que o senhor tava dizendo que se ficasse iria enlouquecer. Vai caminhar um pouco. Faz bem.

Grahame Coats não fazia caminhadas. Ele pagava a alguém para fazer isso por ele. Mas, pensou, talvez Basil Finnegan saísse para caminhar. Sendo assim, pôs um chapéu de aba larga e trocou suas sandálias por sapatos leves. Grahame levou o celular e deu instruções ao jardineiro para ir buscá-lo quando ligasse. Saiu da casa em direção à cidade mais próxima.

É um mundo pequeno. Você nem tem que viver muito para aprender uma coisa dessas sem que ninguém lhe ensine. Existe uma teoria sobre como no mundo inteiro só existem 500 pessoas reais (o elenco, por assim dizer; todas as outras pessoas no mundo, diz a teoria, são figurantes) e todas se conhecem. E isso é verdade, na medida do possível. Na realidade, o mundo contém milhares e milhares de grupos de mais ou menos 500 pessoas que passarão a vida se encontrando, se evitando, se esbarrando numa improvável casa de chá em Vancouver. O processo é inevitável. Não é sequer coincidência. E apenas a maneira como o mundo funciona, sem consideração pelos indivíduos ou pela adequação.

Grahame Coats entrou num pequeno café, na estrada para Williamstown, para comprar um refresco e ter algum lugar para sentar quando resolvesse ligar para seu jardineiro pedindo para buscá-lo.

Pediu uma Fanta e sentou-se a uma mesa. O lugar estava quase vazio: duas mulheres, uma jovem e uma mais velha, sentavam-se em um canto mais distante, bebendo café e escrevendo cartões postais.

Grahame Coats olhou para a praia lá fora, além da estrada. Era o paraíso, pensou. Talvez fosse bom se envolver um pouco com a política local, quem sabe como um patrocinador das artes. Já fizera várias doações substanciais para a força policial da ilha, e talvez fosse até necessário se assegurar de que...

Uma voz atrás dele, emocionada e hesitante, disse:

— Senhor Coats? — O coração de Grahame pulou. A mulher mais jovem se sentara atrás dele e lhe sorria amigavelmente. — Que engraçado encontrar o senhor aqui. Está de férias também?

— É, mais ou menos.

Ele não fazia idéia de quem era a mulher.

— O senhor se lembra de mim, não é? Rosie Noah. Eu costumava sair com o Fat... Com o Charlie Nancy. Lembrou?

— Ah, oi, Rosie. Claro, claro que sim.

— Estou num cruzeiro com a minha mãe. Ela está escrevendo uns postais pra casa.

Grahame Coats deu uma olhada por cima do ombro, para os fundos do café, e algo que lembrava uma múmia sul-americana num vestido com estampa floral o encarou de volta.

— Pra ser sincera, não sou muito fã de cruzeiros. Dez dias pulando de ilha em ilha. E bom ver um rosto conhecido, não acha?

— Absolutotalmente — concordou Grahame Coats. — Suponho que você e o Charles já não estão mais juntos?

— Sim. Acho que sim. Quer dizer, não estamos.

Grahame Coats sorriu para ela demonstrando empatia, mas só do lado de fora. Pegou sua Fanta e caminhou com Rosie até a mesa no canto, onde a mãe de Rosie irradiava má-vontade como um aquecedor velho irradiava frio para dentro de uma sala. Mas Grahame Coats foi absolutamente encantador e compreensivo, e concordou com ela em cada ponto. Era mesmo uma vergonha que as companhias de cruzeiro achassem que poderiam se dar bem com tudo o que aprontavam. Era repulsivo o quão desleixada a administração do navio havia ficado. Era chocante não haver nada para fazer nas ilhas. Era ultrajante que os passageiros tivessem que suportar inconveniências como passar dez dias sem uma banheira, usando apenas minúsculos banheiros com ducha. Era chocante.

A mãe de Rosie contou a Grahame as várias e até impressionantes inimizades que conseguira cultivar com certos passageiros americanos cujo maior crime, da forma como Grahame entendeu a coisa, havia sido sobrecarregar seus pratos na fila do bufê do Squeak Attack e tomar banho de sol no local perto do deque que a mãe de Rosie decidira ser indisputavelmente dela já no primeiro dia de viagem.

Grahame Coats acenava com a cabeça e fazia pequenos ruídos de simpatia enquanto a bile respingava por toda a parte. Ele fazia “tsc-tsc”, concordava e estalava a língua, até que a mãe de Rosie se sentiu à vontade o bastante para fazer vista grossa à sua antipatia por estranhos e pessoas ligadas de alguma forma a Fat Charlie.

Ela falou, falou e falou. Grahame Coats mal ouvia. Ele apenas ponderava.

“Seria bem desagradável”, ele pensou, “se alguém voltasse a Londres e informasse às autoridades que Grahame Coats havia sido visto em Saint Andrews justo agora.” Inevitavelmente ele seria notado algum dia, mas o inevitável talvez pudesse ser adiado.

— Me permita — Grahame Coats interrompeu — sugerir uma solução para ao menos um dos seus problemas. Um pouco adiante na estrada está a minha casa de férias. Uma boa casa, eu acho. E uma coisa que não falta por lá são banheiros. Talvez vocês queiram voltar comigo e se permitir esse prazer?

— Não, obrigado — agradeceu Rosie. Se ela tivesse aceitado, era de se esperar que sua mãe dissesse que deveriam encaminhar-se ao porto de Williamstown para voltar ao navio no final da tarde. Então lhe daria um sermão sobre aceitar esse tipo de convite de estranhos. Mas Rosie disse não.

— Isso é muito gentil de sua parte — disse a mãe de Rosie. — Ficaremos muito gratas.

Logo depois, o jardineiro parou em frente ao café numa Mercedes preta. Grahame Coats abriu a porta de trás para Rosie e sua mãe. Ele assegurou a ambas que as levaria de volta ao porto bem antes do último barco partir para o navio.

— Pra onde, sr. Finnegan? — perguntou o jardineiro.

— Pra casa.

— Sr. Finnegan? — perguntou Rosie.

— E um velho nome de família — respondeu Grahame Coats, e sabia que era verdade. Da família de uma outra pessoa. Grahame Coats fechou a porta traseira e caminhou para a frente do carro.


Maeve Livingstone estava perdida. Tudo começara tão bem. Ela desejara estar em casa, em Pontefract, então houve um brilho suave e um vento muito forte. Num sopro ectoplásmico, chegara em casa. Maeve vagou por lá uma última vez e saiu para o dia de outono. Quis ver a irmã e, antes mesmo que pudesse pensar, lá estava ela, no jardim em Rye, vendo a irmã passear com seu springer spaniel.

Parecera tão fácil.

Foi naquele ponto que ela quis ver Grahame Coats, e ali tudo se perdera. Viu-se de volta, por alguns instantes, ao escritório em Aldwych, depois numa casa vazia em Purley, e Maeve ainda se recordava do lugar por causa de um pequeno jantar que Grahame Coats dera havia dez anos, e então...

Então se perdeu. Todos os lugares para onde tentou ir só pioraram as coisas. Maeve não fazia idéia de onde estava. Parecia um tipo de jardim.

Um breve dilúvio encharcara o lugar, deixando-a intocada. Agora o solo fumegava, e Maeve sabia que não estava na Inglaterra. Começava a escurecer.

Ela se sentou no chão e começou a fungar.

“Francamente”, ela observou. “Maeve Livingstone. Componha-se.” Mas só chorou mais.

— Você quer um lenço? — perguntou alguém.

Maeve olhou para o alto. Um cavalheiro idoso, de chapéu verde e com um bigode tão fino que parecia traçado a lápis, lhe oferecia um lenço.

Ela fez que sim com a cabeça e disse:

— Mas acho que nem adianta, eu não vou conseguir pegar.

O homem deu um sorriso de cumplicidade e lhe passou o lenço, que não caiu através dos dedos de Maeve. Ela assoou o nariz e secou os olhos.

— Obrigada. Desculpe. Foi demais pra mim.

— Acontece — disse o homem, avaliando Maeve de cima a baixo. — O que você é? Uma duppy?

— Não — ela respondeu. — Acho que não.. O que é duppy?

— Um fantasma — respondeu o homem. Com um bigode tão fino, ele parecia Cab Calloway aos olhos de Maeve, ou Don Ameche.

Um desses astros que envelhecem mas nunca deixam de brilhar. Quem quer que o velho fosse, sem dúvida ainda era um astro.

— Oh, sim, claro, eu sou um fantasma. Ahm... E você?

— Mais ou menos. De qualquer maneira, estou morto.

— Ah. Pode me informar onde estou?

— Estamos na Flórida — ele explicou a Maeve. — No cemitério. Que bom que você me pegou aqui. Eu ia dar um passeio. Quer vir comigo?

— Você não deveria estar num túmulo? — perguntou Maeve, hesitante.

— Fiquei entediado — o velho respondeu. — Achei que uma caminhada cairia bem. Quem sabe uma pescaria.

Maeve hesitou, mas concordou com a cabeça. Era bom ter alguém com quem conversar.

— Você quer ouvir uma história? — perguntou o velho.

— Acho que não — respondeu ela, sincera.

Ele a ajudou a se levantar, e ambos saíram do Jardim do Repouso.

— Tudo bem. Então vou ser bem rápido. Não vou me estender.

Sabe, posso contar uma história assim de maneira que dure semanas. Tudo está nos detalhes. O que você conta, o que deixa de fora. Por exemplo, você não menciona o clima nem as roupas das pessoas, ou pode pular metade da história. Uma vez eu contei uma...

— Olha — interrompeu Maeve. — Se você quer contar uma história, então conte, tá bom?

Já era ruim o suficiente caminhar à beira da estrada no crepúsculo crescente. Maeve dizia a si mesma que era impossível ser atropelada por um carro, mas aquilo não a fazia se sentir melhor.

O velho começou a falar num tom suave de cantiga e dizia:

— Quando eu digo “Tigre”, você tem que entender que não se trata apenas do felino listrado, o indiano. Mas sim do que as pessoas chamam de grandes felinos. Leopardos, linces, onças, todos eles. Entendeu?

— Sim.

— Bom. Então... muito tempo atrás — começou —, o Tigre era dono das histórias. Todas as histórias que existiam eram histórias do Tigre, todas as canções eram canções do Tigre, todas as piadas eram piadas do Tigre, exceto que não havia piadas sendo contadas na época do Tigre. Nas histórias do Tigre, tudo o que importa é quão forte seus dentes são, como você caça e como você mata. Não há suavidade nas histórias do Tigre, ninguém faz coisas espertas e não há paz.

Maeve tentou imaginar que tipo de histórias um grande felino contaria.

— Então eram histórias violentas?

— Aqui e ali, mas no geral eram ruins. Quando todas as histórias e canções eram do Tigre, era um tempo ruim pra todo mundo. As pessoas adquirem a forma das histórias e canções que as cercam, especialmente quando não têm uma canção só delas. Na época do Tigre, todas as canções eram sombrias. Começavam em lágrimas e terminavam em sangue, e eram o único tipo de história que as pessoas do mundo conheciam. Então Anansi entra na história. Você deve saber tudo sobre Anansi...

— Acho que não.

— Bem, se eu fosse te dizer o quão esperto e bonitão, charmoso e sabidão Anansi era, eu começaria hoje e só terminaria na quinta que vem.

— Então não me conte — pediu Maeve. — Vamos deixar por isso mesmo. E o que esse tal de Anansi fez?

— Bom, Anansi ganhou as histórias.. Ganhou? Não. Ele as recebeu porque as merecia. Ele as tomou do Tigre, e fez com que o Tigre não pudesse mais entrar no mundo real. Não em carne. As histórias que as pessoas passaram a ouvir eram de Anansi. Isso foi há uns 10, 15 mil anos. As histórias de Anansi, elas têm esperteza, sagacidade, sabedoria. E por todo o mundo as pessoas não se concentram mais apenas em caçar e ser caçados. Agora elas começam a pensar para sair das enrascadas. Algumas vezes, entrando em enrascadas ainda maiores. Elas ainda precisam comer, e é nesse ponto que as pessoas começam a usar a cabeça. Há quem diga que as primeiras ferramentas foram as armas, mas isso não é verdade. Antes de mais nada, as pessoas pensam sobre as ferramentas. E sempre a muleta antes do tacape. Porque agora as pessoas estão contando as histórias de Anansi e começando a pensar como fazer para ganhar um beijo, para ganhar alguma coisa sem precisar fazer esforço. Sendo engraçados ou espertos. E aí se começa a construir o mundo.

— Isso é só uma história folclórica. São histórias que as pessoas criaram.

— E isso muda alguma coisa? — perguntou o velho. — Talvez Anansi seja só um velho numa história inventada na África, na infância da humanidade, por algum garoto com varejeiras na perna, metendo a muleta na terra e criando alguma história tola sobre um homem feito de piche. Isso muda alguma coisa? As pessoas respondem às histórias e as passam adiante, são mudadas por elas. Porque agora o pessoal que antes só pensava em correr dos leões e ficar longe dos crocodilos nos rios pode sonhar com um novo lugar para morar. O mundo pode ainda ser o mesmo, mas o papel de parede mudou. Certo? As pessoas ainda carregam a mesma história, uma em que nascem, crescem, fazem coisas e morrem, mas agora a história significa uma coisa nova a cada vez.

— Você está me dizendo que, antes das histórias de Anansi, o mundo era selvagem e mau?

— Sim. Bem isso.

Maeve digeriu aquilo.

— Bem — disse ela, animada —, que bom então que as histórias agora são de Anansi. — O velho meneou a cabeça, fazendo que sim. — E o Tigre não quer as histórias de volta?

— Ele quer as histórias de volta faz 10 mil anos.

— Mas ele não vai consegui-las, né?

O velho não disse nada. Assumiu um olhar distante e deu de ombros.

— Seria ruim se conseguisse.

— E Anansi?

— Anansi morreu. E não há nada que um duppy possa fazer.

— Bom, eu sou uma duppy. Veja lá como fala.

— Bem. Os duppies não podem tocar os vivos, lembra?

Maeve pensou nisso por um instante.

— Então o que eu posso tocar?

A expressão que tomou aquele rosto antigo era matreira e astuta.

— Bem... Você pode me tocar.

— É bom que você saiba que eu sou uma mulher casada.

O sorriso do velho apenas cresceu. Era um sorriso gentil e caloroso, tão reconfortante quanto perigoso.

— Em geral, esse tipo de contrato termina com “até que a morte os separe”. — Ela não pareceu impressionada. — É o seguinte. Você não é mais matéria, portanto pode tocar coisas imateriais. Como eu. O que quero dizer é que poderíamos sair e dançar se você quisesse. Há um lugar ali no fim da rua. Ninguém lá vai notar um par de duppies na pista.

Maeve pensou a respeito. Fazia muito tempo desde a última vez que dançara.

— Você dança bem? — perguntou.

— Ninguém nunca reclamou.

— Eu preciso encontrar um homem. Um homem vivo chamado Grahame Coats. Você pode me ajudar a encontrá-lo?

— Sem dúvida posso indicar-lhe a direção correta. E então., você vai dançar?

Um sorriso se insinuou nos lábios de Maeve.

— Você está me convidando?


As correntes que mantinham Spider cativo caíram. A dor que tomara seu corpo, cortante e contínua como uma dor de dente, começava a passar.

Spider deu um passo à frente.

Ele se dirigia para o que parecia ser um rasgo no céu a sua frente, onde podia ver uma ilha com uma pequena montanha no centro. E céu azul, com palmeiras e uma gaivota voando alto. Mas aquele mundo parecia afastar-se, como se Spider olhasse pelo lado errado do telescópio. A visão diminuiu e escapou dele e, quanto mais Spider corria, mais longe parecia ficar.

A ilha era como um reflexo numa poça d’água. Depois já não era mais nada.

Ele estava numa caverna. Todas as coisas tinham bordas nítidas, mais reais que em qualquer lugar que Spider já visitara. Esse era um tipo de lugar diferente.

Ela se encontrava à entrada da caverna, entre Spider e o ar fresco. Ele a conhecia. Ela o havia encarado em um restaurante grego em South London, e pássaros haviam saído de sua boca.

— Sabe — disse Spider —, eu preciso dizer: você tem umas idéias estranhas sobre o que é ser hospitaleiro. Se aparecesse no meu mundo, eu prepararia um jantar, abriria um vinho, colocaria uma música suave... Eu lhe proporcionaria uma noite inesquecível.

O rosto dela era impassível, esculpido em rocha negra. O vento repuxava as pontas de seu velho casaco marrom. Então ela falou, com sua voz ressoando alta e solitária como o chamado de uma gaivota distante.

— Eu peguei você. Agora vou chamá-lo.

— Chamar quem?

— Você vai chorar. Você vai choramingar, e o seu medo irá deixá-lo nervoso.

— Spider nunca grita — discordou, sem muita certeza de que aquilo era verdade. Olhos negros e reluzentes como lascas de obsidiana o encararam. Eram como buracos negros que não deixavam nada sair, nem mesmo qualquer tipo de informação. — Se você me matar, minha maldição cairá sobre você.

Ele não tinha certeza de que possuía o poder de amaldiçoar. Provavelmente sim. Se não tivesse, tinha certeza de que poderia fingir.

— Não serei eu quem o matará — disse ela, e levantou uma mão que era uma garra de ave de rapina. A garra desceu sobre o rosto de Spider, por seu peito, com as garras cruéis afundando em sua carne, rasgando sua pele.

Não doeu, mas Spider sabia que não demoraria muito para começar a doer.

Gotas de sangue banharam seu peito de vermelho e escorregaram de sua testa até seu queixo. Seus olhos arderam, e ele sentiu nos lábios o gosto do ferro no sangue.

— Agora — continuou ela, com sua voz envolta pelos gritos de diferentes pássaros —, aqui começa sua morte.

— Somos ambos entidades sensatas. Deixe-me falar sobre uma alternativa mais viável, que oferece benefícios para nós dois.

Ele disse isso com um sorriso tranqüilo, de um jeito bem convincente.

— Você fala demais — ameaçou ela, e balançou a cabeça. — Chega de falar.

Suas garras afiadas entraram na boca de Spider e, com um movimento de torção, ela arrancou fora a língua dele.

— Pronto.

Então, parecendo apiedar-se de Spider, tocou seu rosto de maneira quase gentil e disse:

— Durma.

E ele adormeceu.


A mãe de Rosie, agora refrescada por um banho, reapareceu revigorada e sem dúvida radiante.

— Antes de lhes dar uma carona até Williamstown, será que eu poderia lhes oferecer um tour rápido pela casa? — perguntou Grahame Coats.

— Nós temos mesmo que voltar ao navio, mas obrigada — respondeu Rosie. Ela não conseguira se convencer da necessidade de tomar um banho na casa de Grahame Coats.

Sua mãe checou o relógio.

— Temos 90 minutos. Não vai levar mais de 15 minutos até o porto. Não seja grossa, Rosie. Adoraríamos ver sua casa.

Assim Grahame Coats lhes mostrou a sala de estar, o estúdio, a biblioteca, a sala de TV, a sala de jantar, a cozinha e a piscina. Ele abriu uma porta debaixo da escada da cozinha, que parecia dar num armário de vassouras, e levou suas convidadas pelos degraus de madeira até a adega com paredes de pedra. Grahame Coats mostrou-lhes o vinho, a maior parte do qual já estava na casa quando a comprou. Levou-as até o final da adega, a uma pequena sala vazia que, antes do advento da refrigeração, servira como depósito de carne. Ali era sempre frio, e correntes pendiam do teto com ganchos mostrando as marcas onde carcaças sangrentas haviam sido penduradas havia muito tempo. Grahame Coats educadamente segurou a pesada porta de ferro enquanto as duas mulheres entravam.

— Sabe — disse ele, solícito. — Acabei de me dar conta. O interruptor fica ali atrás, de onde viemos. Um momentinho.

Então ele bateu a porta e fechou as trancas.

Ao sair, apanhou uma garrafa empoeirada de Chablis Premier Cru, safra de 1995, de uma prateleira.

Grahame Coats subiu as escadas confiante para informar a seus três empregados que lhes daria uma folga de uma semana. Enquanto subia, ouviu passos abafados às suas costas, mas, ao se virar, não viu nada. Estranhamente aquilo o deixou tranqüilo. Apanhou o saca-rolhas, abriu a garrafa e se serviu uma taça de vinho. Grahame Coats bebeu e pensou que, muito embora jamais tivesse dado muita atenção ao vinho tinto, agora se via querendo beber algo ainda mais rico e escuro. “Da cor do sangue”, pensou.

Enquanto terminava sua segunda taça de Chablis, percebeu que responsabilizara a pessoa errada por seus infortúnios. Maeve Livingstone, agora percebia, não passava de uma idiota. Não, a pessoa a quem responsabilizar, óbvia e inegavelmente, era Fat Charlie. Sem sua indiscrição, sem sua invasão criminosa do sistema de computadores do escritório, Grahame Coats não estaria ali, exilado como um Napoleão loiro numa Elba ensolarada e perfeita. Nem se encontraria na infeliz situação de ter duas mulheres trancadas em seu depósito de carne. “Se Fat Charlie estivesse aqui”, pensou, “eu rasgaria sua garganta com os dentes.” A idéia o deixou tão chocado quanto animado. Ninguém deveria mexer com Grahame Coats.

Veio a noite, e Grahame Coats via de sua janela o Squeak Attack passar por sua casa no rochedo e partir em direção ao pôr do sol. Ele imaginou quanto tempo levaria para sentirem falta de duas passageiras. Grahame Coats até acenou.

Загрузка...