Havia uma formigante incerteza dentro de Harlan, uma irresolução que o estava consumindo. Tinha o revólver na mão. Estava apontado para Noys.
Mas por que ela nada dizia? Por que persistia naquela atitude impassível?
Como poderia ele matá-la?
Como poderia ele não matá-la?
— Bem? — disse ele roucamente.
Ela se moveu, mas apenas para enganchar as mãos frouxamente no colo, para parecer mais relaxada, mais indiferente. Quando falou, sua voz mal pareceu a de um ser humano. Frente à boca de um revólver, novamente adquiriu segurança e assumiu uma qualidade de força impessoal quase mística.
— Você não pode querer matar-me apenas para proteger a Eternidade — disse ela. — Se fosse essa a sua vontade, você poderia deixar-me sem sentidos, amarrar-me firmemente, prender-me dentro desta caverna e então partir para as suas viagens ao amanhecer. Ou poderia ter pedido ao computador Twissell para conservar-me em prisão solitária durante sua permanência no Primitivo. Ou poderia levar-me junto, ao amanhecer, perder-me no caminho. Se é somente matando que você se satisfará, isso é apenas porque você acha que eu o traí, que eu o logrei com amor, a princípio, de maneira que eu poderia lográ-lo em traição, depois. Isso é assassinato por orgulho ferido, e não a retribuição justa que você diz a si mesmo que é.
Harlan se contorceu. — Você é dos Séculos Obscuros? Diga-me.
— Sou — respondeu Noys. — Você atirará, agora?
O dedo de Harlan tremeu no ponto de contacto do revólver. Contudo, ele hesitou. Algo irracional dentro dele ainda poderia defendê-la e salientar as sobras de seu próprio amor e desejo fúteis. Estaria desesperada por sua rejeitação a ela? Estaria ela mentindo deliberadamente para procurar a morte?
Estaria ela perdendo-se em tolo heroísmo nascido do desespero pelas dúvidas dele em relação a ela?
Não!
Isso poderia ser encontrado nos livros-filme das tradições literárias doentiamente adocicadas do século 289, mas não numa garota como Noys. Ela não era do tipo de enfrentar a morte nas mãos de um falso amante com o jovial masoquismo de um lírio quebrado e sangrante.
Então estaria ela duvidando desdenhosamente de sua capacidade de matá-la por qualquer razão que fosse? Estaria ela contando confiantemente com a atração que sabia que exercia sobre ele ainda agora, certa de que ela o imobilizaria e paralizaria em franqueza e vergonha.
Isso acertava muito perto. Seu dedo se apertou um pouco mais no contacto.
Noys falou novamente. — Você está esperando. Isso significa que você espera que eu levante um resumo para defesa?
— Que defesa? — Harlan tentou dizê-lo zombeteiramente, contudo recebeu de bom grado a diversão. Esta poderia adiar o momento em que ele deveria abaixar os olhos para o seu corpo alvejado, para quais fossem os restos de carne ensangüentada que pudessem sobrar, e saber que o que havia sido feito à sua linda Noys fora feito por suas próprias mãos.
Encontrou desculpas para sua demora. Deixe-a falar, pensou ele febrilmente. Deixe-a dizer o que pode sobre os Séculos Obscuros. Muito melhor proteção para a Eternidade.
Isso colocou uma frente de firme astúcia em seus atos e, no momento, ele conseguiu fitá-la com rosto quase tão calmo quanto o dela.
Noys devia ter lido sua mente. — Você quer saber sobre os Séculos Obscuros? Se isso servirá como defesa, ela está facilmente pronta. Gostaria de saber, por exemplo, por que não há seres humanos na Terra depois do século 150.000? Estaria interessado?
Harlan não iria implorar por informações, nem iria comprá-las. Ele tinha o revólver. Tinha a firme intenção de não demonstrar fraqueza.
— Fale! — disse ele, e enrubesceu ao pequeno sorriso, que foi a primeira resposta dela à sua exclamação.
— Num momento em fisiotempo, antes que a Eternidade tivesse chegado muito acima na escala ascendente, antes que tivesse alcançado mesmo o século 10.000, nós, de nosso século — e você tem razão, era o século 111.394 — descobrimos sua existência. Nós, também, tínhamos viagens no Tempo, sabe, mas era baseada numa série de postulados completamente diferente da de vocês, e nós preferíamos ver o Tempo, ao invés de alterar massa. Além disso, lidávamos somente com nosso passado, nossa escala descendente.
— Descobrimos a Eternidade indiretamente. Primeiro, desenvolvemos o cálculos das Realidades e testamos nossa própria Realidade através dele. Ficamos assombrados por descobrir que vivíamos numa Realidade de probabilidade bem baixa. Era uma questão séria. Por que uma Realidade tão improvável?… Você parece distraído, Andrew! Está interessado, afinal?
Harlan ouviu-a dizer seu nome com toda a íntima ternura que ela havia usado em semanas passadas. Isso devia ofendê-lo, agora, irritá-lo com a cínica incredulidade.
E contudo não o ofendeu nem irritou.
— Continue e termine com isso, mulher — disse ele desesperadamente.
Ele tentou equilibrar a tepidez do seu “Andrew” com a fria irritação da “mulher” dele, porém, ela apenas sorriu de novo, palidamente.
— Voltamos procurando através do tempo e deparamos com a Eternidade em expansão. Pareceu-nos óbvio, quase de imediato, que tinha havido, em algum ponto do fisiotempo (uma concepção que tínhamos, também, mas sob outro nome), uma outra Realidade. A outra Realidade, a de probabilidade máxima, nós chamamos de Estado Básico. O Estado Básico tinha-nos circundado uma vez, ou a nossos análogos, pelo menos. Na ocasião não podíamos dizer qual era a natureza do Estado Básico. Não poderíamos saber.
— Sabíamos, entretanto, que cada Mudança iniciada pela Eternidade no distante passado tinha conseguido, através de efeitos de acasos estatísticos, alterar o Estado Básico até o nosso século e além dele. Começamos a determinar a natureza do Estado Básico, na intenção de desfazer o mal, se mal fosse. Primeiro construímos a área isolada que vocês chamam de Séculos Obscuros, isolando os Eternos para baixo do século 70.000. Essa armadura de isolamento proteger-nos-ia de tudo, exceto de uma porcentagem decrescentemente pequena das Mudanças que estivessem sendo feitas. Não era segurança absoluta, mas isso nos dava tempo.
— Em seguida fizemos algo que nossa cultura e éticas normalmente não nos permitiam fazer. Investigamos nosso próprio futuro, nossa escalada ascendente. Descobrimos o destino do homem na Realidade que então existia, de maneira que poderíamos, eventualmente, compará-lo com o Estado Básico. Em algum lugar depois do século 125.000, o homem descobriu o segredo da viagem interestelar. Aprenderam como conseguir o Pulo através do hiperespaço. Finalmente, a humanidade conseguiu alcançar as estrelas.
Harlan ouvia suas palavras medidas com crescente interesse. Quanta verdade haveria nisso tudo? Até onde seria uma tentativa calculada de iludi-lo? Tentou quebrar o encanto falando, interrompendo a fácil fluência de suas sentenças.
— E uma vez que conseguiu alcançar as estrelas — disse Harlan — ela o fez e deixou a Terra. Alguns de nós haviam imaginado isso.
— Então alguns de vocês imaginaram erradamente. O homem tentou deixar a Terra. Infelizmente, entretanto, não estamos sozinhos na Galáxia. Há outras estrelas com outros planetas, você sabe. Há até mesmo outras inteligências. Nenhuma, nesta Galáxia, pelo menos, é tão antiga quanto a humanidade, mas nos 125.000 séculos que o homem permaneceu na Terra, mentes mais jovens nos alcançaram e superaram; desenvolveram a viagem interestelar e colonizaram a Galáxia.
— Quando saímos pelo espaço, havia sinais. Ocupado! Não Ultrapasse! Afaste-se! A humanidade retirou seus exploradores e permaneceu em casa. Mas então ela conhecia a Terra pelo que ela era: uma prisão rodeada por uma infinidade de liberdade… E a humanidade extinguiu-se!
— Apenas se extinguiu — disse Harlan. — Absurdo.
— Não se extinguiu, apenas. Isso levou milhares de séculos. Houve altos e baixos mas, no total, houve uma perda de propósito, um senso de futilidade, um sentimento de desesperança que não podia ser superado.
Finalmente, houve um último declínio do índice de nascimento e, em seguida, a extinção. A sua Eternidade fez isso.
Harlan podia defender a Eternidade, agora, mais intensa e extravagantemente por tê-la atacado tão ardentemente, tão pouco tempo antes. — Deixem-nos penetrar nos Séculos Obscuros — disse ele — e nós corrigiremos isso. Ainda não falhamos em realizar o maior bem nos séculos que conseguimos alcançar.
— O maior bem? — perguntou Noys, num tom destacado que pareceu escarnecer da frase. — O que é isso? Suas máquinas dizem a vocês. Seus Computaplex. Mas quem ajusta as máquinas e diz a elas o que pesar na balança? As máquinas não resolvem problemas com maior critério do que os homens; apenas mais rapidamente. Apenas mais rapidamente!
Então o que é isso que os Eternos consideram bem? Eu lhe direi. Segurança e despreocupação. Moderação. Nada em excesso. Nada de riscos sem esmagadora certeza de uma retribuição adequada.
Harlan engoliu em seco. com súbita força, lembrou-se das palavras de Twissell, na caldeira, enquanto falava dos homens evoluídos dos Séculos Obscuros. Ele dissera:
“Nós extraímos o incomum.”
E não era assim?
— Bem — disse Noys — você parece estar pensando. Pense nisto, então. Na Realidade que agora existe, por que é que o homem está tentando continuamente a viagem espacial e continuamente falhando? Certamente, cada era da viagem espacial deve saber de falhas anteriores. Por que tentar novamente, então?
— Não estudei o assunto — respondeu Harlan. Mas ele pensou constrangidamente nas colônias de Marte, repetidamente estabelecidas e sempre falhando. Pensou na estranha atração que o vôo espacial sempre exercera, mesmo sobre os Eternos. Podia ouvir o Sociólogo Kantor Voy, do século 2456, suspirando pela perda do vôo espacial eletrogravitante de um século e dizendo saudosamente: “Isso tinha sido muito bonito.” E o Esboçador de Vida Neron Feruque, que, para aliviar seu espírito, tinha praguejado amargamente pela extinção do vôo espacial e tinha-se lançado a um acesso de maledicência ao manejo da Eternidade em relação aos soros anticâncer.
Haveria coisa tal como um desejo instintivo, por parte de seres inteligentes, de se expandir externamente, de alcançar as estrelas, de deixar para trás a prisão da gravidade? Seria isso que forçava o homem a desenvolver dúzias de vezes a viagem interplanetária, que o forçava a viajar mais e mais vezes aos mundos mortos de um sistema solar em que somente a Terra era habitável? Seria a falha final, a certeza de que devia retornar à prisão do lar, que trazia os ajustamentos defeituosos que a Eternidade estava sempre combatendo? Harlan pensou no adicionamento de drogas naqueles mesmos séculos fúteis dos eletrogravitantes.
— Eliminando os desastres da Realidade — disse Noys — a Eternidade exclui também os triunfos. É encarando as grandes provas que a humanidade pode elevar-se a grandes alturas com maior sucesso. Do perigo e da agitada insegurança vem a força que impulsiona a humanidade a conquistas novas e mais grandiosas. Pode compreender isso? Pode entender que, evitando as armadilhas e misérias que cercam o homem, a Eternidade o impede de descobrir suas próprias soluções amargas e melhores, as soluções reais, que se alcança vencendo a dificuldade, não evitando-a.
— O maior bem do maior número… — começou Harlan, sem jeito.
Noys interrompeu. — Suponha que a Eternidade nunca tivesse sido estabelecida?
— Bem?
— Eu lhe direi o que teria acontecido. As energias que foram gastas em engenharia temporal teriam sido gastas, ao invés, em estudos nucleares. A Eternidade não teria sido estabelecida, mas o vôo interestelar sim. O homem teria alcançado as estrelas mais de cem mil séculos antes do que o fez nesta Realidade corrente. As estrelas teriam estado desabitadas, então, e o homem teria se estabelecido por toda a Galáxia. Nós teríamos sido os primeiros.
— E o que teria ganho? — perguntou Harlan obstinadamente. — Nós seríamos mais felizes?
— A quem você se refere com “nós”? O homem não seria um mundo, mas um milhão de mundos, um bilhão de mundos.
Teríamos o infinito em nossas mãos. Cada mundo teria o seu próprio curso dos séculos, cada um os seus próprios valores, uma oportunidade para buscar a felicidade por meios próprios num ambiente próprio. Há muitas felicidades, muitos bens, infinita variedade… Isso é o Estado Básico da humanidade.
— Você está supondo — disse Harlan, e estava irritado consigo mesmo por sentir atração pelo quadro que ela havia invocado. — Como pode você dizer o que teria acontecido?
— Vocês riem da ignorância dos Tempistas, que conhecem somente uma Realidade — disse Noys. — Nós rimos da ignorância dos Eternos, que pensam que há muitas Realidades, mas que somente uma existe de cada vez.
— O que significa isso?
— Nós não calculamos Realidades alternadas. Nós as observamos. Nós as vemos em seus estados de não-Realidades.
— Uma espécie de fantasmagórica terra-do-nunca, onde os “poderiam-ter-sido” brincam com os “ses”.
— Sem o sarcasmo, sim.
— E como vocês o fazem?
Noys fez uma pausa e então disse: — Como posso explicar isso, Andrew? Fui educada a saber certas coisas sem realmente entender tudo sobre elas, exatamente como você.
Você sabe explicar o funcionamento de um Computaplex? Contudo, sabe que existe e funciona.
Harlan enrubesceu. — Bem, então?
— Nós aprendemos a observar as Realidades e descobrimos ser o Estado Básico assim como descrevi — disse Noys. — Descobrimos, também, a Mudança que havia destruído o Estado Básico. Não era qualquer Mudança instituída pela Eternidade; era o estabelecimento da própria Eternidade: o mero fato de sua existência. Qualquer sistema como a Eternidade, que permita aos homens escolherem seu próprio futuro, acabará preferindo segurança e mediocridade, e em tais Realidades as estrelas estão fora de alcance. A mera existência da Eternidade destruiu o Império Galáctico. Para restaurá-lo, deve-se acabar com a Eternidade.
— O número de Realidades é infinito. O número de subdivisões de Realidades é infinito. Por exemplo, o número de Realidades que contêm a Eternidade é infinito; o número em que a Eternidade não existe é infinito; o número em que a Eternidade existe, mas é abolida, também é infinito. Mas meu povo escolheu do infinito um grupo que me envolvia.
— Eu nada tinha a ver com isso. Eles me educaram para minha tarefa assim como você e Twissell educaram Cooper para a dele. Mas o número de Realidades nas quais eu era o agente na destruição da Eternidade era também infinito. Ofereceram-me uma escolha entre cinco Realidades que pareciam menos complexas. Escolhi esta, esta que envolve você, o único sistema de Realidade que envolve você.
— Por que escolheu esta? — perguntou Harlan.
Noys desviou o olhar. — Porque eu o amava, sabe. Eu o amava muito antes de encontrá-lo.
Harlan estava perturbado. Ela dissera isso com profunda sinceridade. Ela é uma atriz… pensou ele doentiamente.
— Isto é bem ridículo — disse ele.
— É? Estudei as Realidades à minha disposição. Estudei a Realidade em que eu voltava ao século 482 e encontrava primeiro Finge e, então, você. A Realidade em que você vinha a mim e me amava, em que você me levava à Eternidade e ao distante futuro de meu próprio século, em que você dava direção errada a Cooper e em que você e eu, juntos, retornávamos ao Primitivo. Nós viveríamos no Primitivo pelo resto de nossos dias. Vi nossas vidas juntas, e elas eram felizes e eu o amava. Portanto isso não é ridículo, de forma alguma. Escolhi esta alternativa, de maneira que nosso amor poderia ser verdadeiro.
— Tudo isto é falso — disse Harlan. — É falso. Como espera que eu acredite em você?
Ele se deteve, e então disse subitamente:
— Espere! Você diz que sabia tudo isso com antecedência? Tudo que iria acontecer?
— Sim.
— Então você está obviamente mentindo. Você teria sabido que eu a manteria aqui a ponta de revólver. Teria sabido que falharia. Qual é sua resposta para isso?
Ela suspirou levemente. — Eu lhe disse que há um número infinito de subdivisões de Realidades. Não importa quão corretamente focalizamos uma dada Realidade, ela sempre revela um número infinito de Realidades muito similares. Há pontos indistintos. Focalizamos o mais correto, o menos indistinto, mas a perfeita nitidez não pode ser conseguida. O menos indistinto, o de menor probabilidade de variação ao acaso estragando o resultado, mas a probabilidade nunca é absolutamente zero. Um ponto indistinto estragou as coisas.
— Qual?
— Era para você ter voltado ao distante futuro depois que fosse retirada a barreira do século 100.000, e você o fez. Mas era para você ter voltado sozinho. Foi por esse motivo que fiquei momentaneamente tão alarmada por ver o computador Twissell com você.
Novamente Harlan ficou agitado. Como ela fazia as coisas se encaixarem!
— Eu teria ficado ainda mais alarmada — disse Noys — se eu tivesse compreendido o significado completo dessa alteração. Se tivesse voltado sozinho, você teria me trazido ao Primitivo, como fez. Então, por amor à humanidade, por amor a mim, você teria deixado Cooper onde está. Seu círculo teria sido quebrado, a Eternidade teria acabado e nossa vida juntos, aqui, teria sido segura.
— Mas você voltou com Twissell, uma variação ao acaso. No caminho, ele lhe falou a respeito de suas idéias sobre os Séculos Obscuros e o encaminhou a uma série de deduções que terminaram por fazê-lo duvidar de minha boa fé. Terminou com um revólver entre nós… E agora, Andrew, esta é a estória. Pode atirar em mim. Não há nada para detê-lo.
A mão de Harlan doeu por seu espasmódico aperto no revólver. Ele o passou rapidamente para a outra mão. Não haveria falha na estória dela? Onde estava a resolução que ele devia ter ganho por saber com certeza que ela era uma criatura dos Séculos Obscuros? Ele estava mais do que nunca torturando-se em conflito, e o alvorecer aproximava-se.
— Por que dois esforços para terminar com a Eternidade? — perguntou ele. — Por que a Eternidade não poderia ter acabado de uma vez por todas quando mandei Cooper ao século 20? As coisas teriam terminado então e eu não teria tido essa agonia de incerteza.
— Porque — respondeu Noys — terminar com esta Eternidade não é o suficiente. Devemos reduzir a probabilidade de se estabelecer qualquer forma de Eternidade ao ponto mais próximo de zero que pudermos conseguir. Portanto há uma coisa que devemos fazer aqui no Primitivo. Uma pequena Mudança, uma pequena coisa. Você sabe como é uma Mínima Mudança Necessária. É uma carta para uma península chamada Itália, aqui no século 20. É agora no século 19,32. Dentro de alguns Centiséculos, desde que eu envie a carta, um homem da Itália começará a fazer experiências com o bombardeio neutrônico de urânio.
Harlan ficou horrorizado. — Vocês alterarão a história Primitiva?
— Sim. É nossa intenção. Na nova Realidade, na Realidade final, a primeira explosão nuclear ocorrerá não no século 30, mas no 19,45.
— Mas vocês sabem do perigo? Podem avaliar o perigo?
— Sabemos do perigo. Observamos o feixe de Realidades resultantes. Há uma probabilidade, não uma certeza, naturalmente, de que a Terra termine com uma crosta altamente radioativa, mas antes disso…
— Você quer dizer que pode haver compensação para isso?
— Um Império Galáctico. Uma verdadeira intensificação do Estado Básico.
— Vocês ainda acusam os Eternos de interferirem…
— Nós os acusamos de interferirem diversas vezes para conservar a humanidade em casa e aprisionada. Nós interferimos uma vez, uma vez, para voltá-la prematuramente ao estudo nuclear, de maneira que ela nunca, nunca, possa estabelecer uma Eternidade.
— Não! — disse Harlan desesperadamente. — Deve haver uma Eternidade.
— Se você preferir. A escolha é sua. Se deseja ter psicopatas ditando o futuro do homem…
— Psicopatas! — explodiu Harlan.
— Eles não são? Você os conhece. Pense!
Harlan fitou-a com violento horror, porém não pôde deixar de pensar. Pensou nos Aprendizes descobrindo a verdade sobre a Eternidade e no Aprendiz Latourette tentando matar-se, como resultado. Latourette tinha sobrevivido para tornar-se um Eterno, não se podia dizer com que cicatrizes na personalidade, ainda ajudando a decidir Realidades alternadas.
Pensou no sistema de classes da Eternidade, na vida anormal que transformava sentimentos de culpa em raiva e ódio contra os Técnicos. Pensou nos Computadores, lutando contra si mesmos, em Finge, conspirando contra Twissell e Twissell espionando Finge. Pensou em Sennor, que combatia sua cabeça calva por combater todos os Eternos.
Pensou em si mesmo.
Então pensou em Twissell, o grande Twissell, também infringindo as leis da Eternidade.
Era como se ele sempre houvesse sabido que a Eternidade era tudo isso. Por que mais deveria ele ter ficado tão ansioso por destrui-la? Porém nunca admitira isso completamente para si mesmo; nunca olhara o assunto claramente até, de súbito, agora.
E ele viu a Eternidade com grande clareza como um antro de psicoses profundas, uma cova retorcida de motivação anormal, uma massa de vidas desesperadas tiradas de contexto brutalmente.
Ele olhou para Noys inexpressivamente.
— Quer ver — disse ela amavelmente. — Venha comigo à entrada da caverna, Andrew?
Ele a seguiu, hipnotizado, intimidado pela integralidade com que havia ganho um novo ponto de vista. Seu revólver abandonou pela primeira vez a linha que o ligava ao coração de Noys.
Os pálidos raios da alvorada acizentavam o céu, e a volumosa caldeira, do lado de fora da caverna, era uma sombra opressiva contra o calor. Seu contorno estava embotado e obscurecido pela película atirada sobre ela.
— Esta é a Terra — disse Noys. — Não a eterna e apenas lar da humanidade, mas apenas um ponto de início de uma aventura infinita. Tudo que você precisa fazer é tomar a decisão. Ela fica a seu critério. Você, eu e o conteúdo desta caverna seremos protegidos por um campo de fisio-tempo contra a Mudança.
Cooper desaparecerá com seu anúncio; a Eternidade se irá e também a Realidade de meu século, mas nós permaneceremos para ter filhos e netos, e a humanidade ficará para alcançar as estrelas.
Ele se voltou para fitá-la, e ela lhe sorria. Era Noys como ela havia sido, com seu próprio coração batendo como costumara bater.
Ele nem mesmo havia notado que tomara sua decisão, até que a tonalidade acinzentada invadiu todo o céu, quando o casco da caldeira não se fez mais sentir em oposição a ele.
Com aquele desaparecimento, ele sabia que, mesmo quando Noys se moveu lentamente em seus braços, viera o fim, o definitivo fim da Eternidade.
— E o começo da Infinidade.