11. CÍRCULO COMPLETO

Foi com vaga surpresa que o Técnico Andrew Harlan, ao irromper no século 575, encontrou-se no período da noite. A passagem das fisio-horas havia-se dado sem ser notada, durante suas correrias desenfreadas ao longo das colunas de caldeira. Fitou profundamente os corredores escuros, a evidência ocasional da força dizimada da noite em ação.

Mas na força contínua de sua raiva, Harlan não parou muito tempo para observar inutilmente. Voltou-se em direção aos aposentos pessoais. Encontraria o quarto de Twissell na Galeria dos Computadores como havia encontrado o de Finge, e, da mesma forma, tinha pouco medo de ser notado ou detido.

O chicote neurônico estava ainda firme contra seu cotovelo quando ele parou diante da porta de Twissell (a placa com o nome assegurava-lhe o fato em letras claras e em baixo-relevo).

Harlan ativou impetuosamente a campainha da porta no nível zumbidor. Provocou o contato com a palma úmida e deixou o som tornar-se contínuo. Ele o podia ouvir vagamente.

Um passo soou atrás dele e ele o ignorou, na certeza de que o homem, fosse quem fosse, ignorá-lo-ia. (Oh, remendo vermelho-encarnado de Técnico!)

Mas o som de passos cessou e uma voz disse: — Técnico Harlan?

Harlan voltou-se. Era um Computador Júnior, relativamente novo no Setor. Harlan enfureceu-se intimamente. Este não era o século 482. Aqui ele não era simplesmente um Técnico, era o Técnico de Twissell, e os jovens Computadores, na ansiedade de se agraciarem com o grande Twissell, ofereceriam ao seu Técnico uma civilidade mínima.

— Deseja ver o Computador Sênior Twissell? — disse o homem.

Harlan impacientou-se e respondeu: — Sim, senhor.

(Imbecil! Para que achava ele que alguém ficaria tocando a campainha da porta de um homem? Para apanhar um caldeira?)

— Temo que não possa — disse o Computador.

— Isso é suficientemente importante para acordá-lo — disse Harlan.

— Pode ser — disse o outro — mas ele está fora. Não está no século 575.

— Exatamente onde está ele, então? — perguntou Harlan impacientemente.

O olhar do Computador tornou-se arrogante. — Eu não saberia.

— Mas tenho um encontro importante logo pela manhã — disse Harlan.

— Você tem — respondeu o Computador, e Harlan estava muito embaraçado para explicar seu próprio divertimento diante do pensamento.

O Computador continuou, já sorrindo agora: — Você está um pouco adiantado, não está?

— Mas preciso vê-lo.

— Estou certo de que ele estará aqui pela manhã — o sorriso se alargou.

— Mas…

O Computador passou por Harlan, evitando cuidadosamente qualquer contato, mesmo de roupas.

Os pulsos de Harlan cerraram-se e descerraram-se. Fitou desamparadamente o Computador e então, simplesmente porque nada mais havia a fazer, caminhou lentamente, e sem tomar completo conhecimento dos arredores, de volta ao seu próprio quarto, Harlan dormiu espasmodicamente. Disse consigo mesmo que precisava dormir. Tentou relaxar através de grande esforço e, naturalmente, fracassou. Seu período de sono foi uma sucessão de pensamento fútil.

Primeiro de tudo, havia Noys.

Não ousariam fazer mal a ela, pensou ele febrilmente. Não poderiam mandá-la de volta ao Tempo sem antes calcular o efeito na Realidade, e isso levaria dias, talvez semanas. Como alternativa, poderiam fazer a ela o que Finge ameaçara fazer a ele: colocá-la no caminho de um acidente insondável.

Ele não levou isso em consideração séria. Não havia necessidade de uma ação drástica tal como essa. Não arriscariam, por fazê-lo, o descontentamento de Harlan. (Na quietude de um dormitório escuro e naquela fase de semi-sonolência, onde as coisas muitas vezes ficavam estranhamente desproporcionais em pensamento, Harlan nada encontrou de grotesco em sua confiante opinião de que o Conselho Geral não se arriscaria a causar o desagrado de um Técnico.)

Naturalmente, havia ocupações para as quais uma mulher em cativeiro poderia ser aproveitada. Uma linda mulher de uma Realidade hedonística…

Resolutamente, Harlan expulsou o pensamento tantas vezes quanto ele retornou. Isso era ao mesmo tempo mais provável e mais inimaginável que a morte, e ele não desejava nenhum deles.

Ele pensou em Twissell.

O velho estava fora do século 575. Onde estaria ele durante horas em que deveria estar dormindo? Um velho precisa de seu sono. Harlan tinha certeza da resposta.

Havia conferências do Conselho em andamento. A respeito de Harlan. A respeito de Noys. A respeito do que fazer com um Técnico indispensável que não se ousava tocar.

Os lábios de Harlan repuxaram-se para trás. Se Finge relatasse o assalto de Harlan daquela noite, isso não afetaria de forma alguma as suas considerações. Seus crimes pouco poderiam ser piorados por isso. Sua indispensabilidade certamente não seria diminuída.

E Harlan não estava, de maneira alguma, certo de que Finge o denunciaria. Admitir ter sido forçado a encolher-se de medo diante de um Técnico colocaria um Computador-Assistente numa posição ridícula, e Finge poderia preferir não fazê-lo.

Harlan pensou nos Técnicos como um grupo, o que havia feito raramente nos últimos tempos. Sua própria posição, de certa forma anormal, como homem de Twissell e como meio Educador, conservara-o demasiadamente distante de outros Técnicos. Mas os Técnicos precisavam de solidariedade, de qualquer forma. Qual seria a razão disso?

Tinha ele de passar pelos séculos 575 e 482 raramente vendo ou falando com outro Técnico? Tinham eles de evitar até mesmo um outro Técnico? Tinham eles de agir como se aceitassem o status para dentro do qual a superstição dos outros os forçava?

Em sua mente, ele já havia forçado a capitulação do Conselho no que dizia respeito a Noys e agora estava fazendo mais exigências. Os Técnicos teriam de ser considerados uma organização própria, com encontros regulares — mais amizade — melhor tratamento por parte dos outros.

Seu pensamento final em si mesmo era como um heróico revolucionário social, com Noys a seu lado, quando finalmente afundou num sono sem sonhos.

A campainha da porta acordou-o. Sussurrou-lhe com rouca impaciência. Coligiu seus pensamentos a ponto de ser capaz de olhar o pequeno relógio do lado de sua cama e suspirou por dentro.

Pai Tempo! Depois de tudo aquilo, havia dormido demais.

Ele conseguiu alcançar da cama o botão certo e o retângulo de visão da porta ficou transparente. Ele não reconheceu o rosto, mas este aparentava autoridade, fosse quem fosse.

Abriu a porta e o homem, usando o distintivo alaranjado da Administração, entrou.

— Técnico Andrew Harlan?

— Sim, Administrador? O senhor tem algo a tratar comigo?

O Administrador não pareceu de forma alguma incomodado pela agressividade da pergunta. — Você tem uma entrevista com o Computador Sênior Twissell? — perguntou ele.

— Bem?

— Estou aqui para informá-lo de que está atrasado. Harlan fitou-o. — Que negócio é esse? O senhor não é do 575, é?

— Minha estação é o século 222 — respondeu o outro friamente. — Assistente de Administração Arbut Lemm. Estou encarregado dos arranjos e estou tentando evitar demasiada excitação, deixando de lado a notificação oficial através da Comunitela.

— Que arranjos? Que excitação? Que negócio é esse? Ouça, tive entrevistas com Twissell antes. Ele é meu superior. Não há excitação envolvida.

Um olhar de surpresa passou momentaneamente pela falta de expressão estudada que o Administrador até então tinha conservado no rosto. — Você não foi informado?

— Do quê?

— Ora, de que um subcomitê do Conselho Geral está presidindo sessão aqui no século 575. Este lugar, disseram-me, está animado com as notícias há horas.

— E eles querem ver-me?

Tão logo perguntou isso, Harlan pensou: É claro que querem ver-me. A respeito de que mais poderia ser a sessão, senão de mim.

E ele entendeu o divertimento do Computador Júnior na noite anterior, diante da porta de Twissell. O Computador sabia da reunião programada do comitê e divertiu-lhe pensar que um Técnico poderia possivelmente esperar ver Twissell uma hora como aquela. Bastante engraçado, pensou Harlan amargamente.

— Tenho minhas ordens — disse o Administrador. — Nada mais sei.

Então, ainda surpreso: — Você não ouviu nada a respeito?

— Os Técnicos — disse Harlan sarcasticamente — levam vidas camufladas.

Cinco, além de Twissell! Todos os Computadores Sêniores, nenhum deles com menos de trinta e cinco anos como Eterno.

Seis semanas antes, Harlan teria sido dominado pela honra de sentar-se à mesa com tal grupo, teria tido a língua atada pela combinação de responsabilidade e poder que eles representavam. Eles lhe teriam parecido possuir duas vezes o tamanho natural.

Mas agora eles eram seus antagonistas; pior ainda, juizes. Ele não tinha tempo de ficar impressionado. Precisava planejar sua estratégia.

Eles poderiam não saber de que ele estava consciente de que tinham Noys. Poderiam não saber, a menos que Finge lhes falasse de seu último encontro com Harlan. Na clara luz do dia, entretanto, ele estava mais que convencido de que Finge não era o tipo de homem para espalhar publicamente que havia sido intimidado e insultado por um Técnico.

Parecia aconselhável para Harlan, então, resguardar essa possível vantagem, por enquanto, e deixar que eles fizessem o primeiro movimento, que dissessem a primeira sentença que iniciaria o verdadeiro combate.

Eles não pareciam apressados. Fitaram-no placidamente por sobre um almoço abstêmio como se ele fosse um espécime interessante, preso, de membros abertos contra um plano de força, por leves repulsores. Harlan olhou para trás em desespero.

Conhecia todos eles por reputação e reproduções tridimensionais nos filmes fisiomensais de orientação. Os filmes coordenavam os desenvolvimentos por todos os vários Setores da Eternidade e suas projeções eram requeridas por todos os Eternos com grau de Observador para cima.

August Sennor, o careca (nem mesmo sobrancelhas ou cílios), naturalmente atraiu mais a Harlan. Primeiro, porque a estranha aparência daqueles olhos escuros e fixos contra pálpebras e testa nuas era notadamente mais forte em pessoa do que sempre parecera em tridimensional. Segundo, porque estava inteirado de colisões passadas de pontos de vista entre Sennor e Twissell. Finalmente, porque Sennor não se limitava a observar Harlan. Lançava-lhe perguntas em voz clara.

Na maior parte, suas perguntas foram irrespondíveis, tais como: — Como é que você veio a interessar-se pela primeira vez em tempos Primitivos, jovem? Acha o estudo compensador, jovem?

Finalmente, ele pareceu acomodar-se em sua cadeira. Empurrou seu prato casualmente para a rampa de transporte e afivelou despreocupadamente os grossos dedos diante dele. (Harlan notou que não havia pelos nas costas das mãos.)

Há algo que eu sempre quis saber — disse Sennor, — Talvez você possa me ajudar.

Certamente, agora, é o momento, pensou Harlan.

Em voz alta ele disse: — Se eu puder, senhor.

— Alguns de nós, aqui na Eternidade — não direi todos, ou mesmo vários (e lançou um rápido olhar ao rosto cansado de Twissell, enquanto os outros se aproximavam para ouvir) mas alguns, de qualquer forma, estão interessados na filosofia do Tempo. Talvez você saiba o que quero dizer.

— Os paradoxos da viagem no Tempo, senhor?

— Bem, se quer referir-se a isso melodramaticamente, sim. Mas isto não é tudo, é claro. Há a questão da verdadeira natureza da Eternidade, a questão da conservação de energia em massa durante Mudanças de Realidade e assim por diante. Agora nós da Eternidade estamos influenciados em nossa consideração de tais coisas por sabermos os fatos da viagem no Tempo. Suas criaturas da era Primitiva, entretanto, nada sabiam a respeito. Quais eram os pontos de vista deles quanto ao assunto.

O sussurro de Twissell espalhou-se pela extensão da mesa. — Armadilha!

Mas Sennor ignorou aquilo. — Quer responder minha pergunta, Técnico? — disse ele.

— Na verdade — disse Harlan — os Primitivos não pensaram na viagem no Tempo, Computador.

— Não a consideravam possível, hem?

— Creio que seja isso.

— Nem mesmo especulavam?

— Bem, quanto a isso — disse Harlan, incerto — creio que havia diversas especulações em alguns tipos de literatura escapista. Não estou bem informado a respeito, mas creio que um tema recorrente era aquele do homem que voltava no Tempo para matar seu próprio avô quando criança.

Sennor pareceu encantado. — Magnífico! Magnífico! Afinal, esta é pelo menos uma expressão do paradoxo básico da viagem no Tempo, se presumirmos uma Realidade indesviável, hem? Agora os seus Primitivos, aventuro-me a declarar, nunca presumiram nada senão uma Realidade indesviável. Estou certo?

Harlan esperou para responder. Ele não via o que visava a conversa ou quais eram os propósitos mais profundos de Sennor, e isso o enervava. — Não sei o suficiente para responder-lhe com certeza, senhor — disse ele. — Creio que possam ter havido especulação quanto a caminhos alternados de tempo ou planos de existência. Não sei.

Sennor empurrou para fora o lábio inferior. — Estou certo de que você se engana. Você pode ter sido iludido por ler seu próprio conhecimento em várias ambigüidades por que pode ter passado. Não, sem verdadeira experiência de viagem no Tempo, as complexidades filosóficas da Realidade estariam totalmente além da mente humana.

Por exemplo: por que a Realidade possui inércia? Todos nós sabemos que possui. Qualquer alteração em seu fluxo deve alcançar uma certa dimensão, antes que uma Mudança, uma verdadeira Mudança, seja efetuada. Mesmo então, a Realidade tem uma tendência a fluir de volta à sua posição original.

— Por exemplo, suponha uma Mudança aqui no século 575. A Realidade mudará, com efeitos crescentes talvez até o século 600. Este mudaria, mas com efeitos continuamente menores até talvez o século 650. Depois disso, a Realidade não será mudada. Todos nós sabemos que é assim, mas algum de nós sabe por que é assim? O raciocínio intuitivo sugeriria que qualquer Mudança de Realidade aumentaria seus efeitos sem limite, à medida que os séculos passassem; contudo, não é assim.

— Tomemos outro ponto. O Técnico Harlan, conforme me foi dito, é excelente em escolher exatamente a Mínima Mudança Requerida para qualquer situação. Aposto como ele não consegue explicar como se decide quanto às suas próprias escolhas.

— Imaginem quão indefesos os Primitivos devem ser. Preocupam-se com um homem que mata o próprio avô porque não entendeu a verdade sobre a Realidade. Tomemos um caso mais provável e mais facilmente analisado e consideremos o homem que em suas viagens através do Tempo encontra consigo mesmo…

— Que é que tem o homem que encontra consigo mesmo? — interveio Harlan estridentemente.

O fato de Harlan ter interrompido um Computador era, em si, uma falta de polidez. Seu tom de voz piorou a falta, tornando-a de alcance escandaloso, e todos os olhos fixaram-se no Técnico de modo repreensivo.

Sennor agitou-se, mas falou no tom forçado de alguém determinado a ser polido apesar das dificuldades quase insuperáveis. Continuando sua sentença quebrada e assim evitando a aparência de responder diretamente à pergunta descortês que lhe fora dirigida, ele disse:

— E as quatro subdivisões na qual tal ato pode cair. Chamamos de A o homem anterior em fisiotempo, e o posterior, de B.

Subdivisão um: A e B podem não ver um ao outro, ou fazer qualquer coisa que afete significantemente um ao outro. Neste caso, eles não se encontraram realmente, e podemos rejeitar esse caso como trivial.

— Ou B, o indivíduo posterior, pode ver A enquanto A não vê B. Aqui, também, não se precisa esperar por conseqüências sérias. B, vendo A, vê-o numa posição e empenhado numa atividade da qual já tem conhecimento. Não há nada de novo envolvido.

— As possibilidades três e quatro são que A vê B enquanto B não vê A, e que A e B vêem-se um ao outro. Em cada possibilidade, o ponto sério é que A viu B; o homem, num estágio anterior de sua existência fisiológica, vê a si mesmo num estágio posterior. Observem que ele percebeu que estará vivo na idade aparente de B. Sabe que viverá o tempo suficiente para desempenhar a ação que presenciou. Agora, um homem, sabendo seu futuro em seu pormenores, pode influenciar esse conhecimento e conseqüentemente mudar seu futuro. Segue-se que a Realidade deve ser mudada a ponto de não permitir que A e B se encontrem ou, no mínimo, de evitar que A veja B. Então, desde que nada pode ser detectado numa Realidade tornada não-Real, A nunca encontrou-se com B. Similarmente, em todos os aparentes paradoxos da viagem no Tempo, a Realidade sempre muda para evitar o paradoxo, e chegamos à conclusão de que não há paradoxos na viagem no Tempo e que não pode haver nenhum.

Sennor parecia bem satisfeito consigo mesmo e com sua exposição, mas Twissell levantou-se.

— Creio, cavalheiros — disse Twissell — que o tempo urge.

Muito mais subitamente do que Harlan teria imaginado, o almoço estava terminado. Cinco dos membros do subcomitê retiraram-se em fila, acenando-lhe com a cabeça, com o ar daqueles cuja curiosidade, branda, no melhor dos casos, havia sido satisfeita. Somente Sennor estendeu a mão e acrescentou ao aceno um áspero — bom dia, jovem.

Com sentimentos mistos, Harlan observou-os sair. Qual teria sido o propósito do almoço? Mais que tudo, por que a referência aos homens se encontrando? Eles não haviam feito menção a Noys. Teriam eles estado ali, então, apenas para estudá-lo? Examiná-lo da cabeça aos pés e deixá-lo para o jugo de Twissell?

Twissell retornou à mesa, agora sem alimentos e talheres. Ele estava sozinho com Harlan agora e, como se para simbolizá-lo, brandia novo cigarro entre os dedos.

— E agora ao trabalho, Harlan — disse ele. — Temos um bocado a fazer.

Mas Harlan não podia, não esperaria mais. — Antes de fazermos qualquer coisa — disse ele de modo categórico — tenho algo a dizer.

Twissell pareceu surpreso. A pele de seu rosto contraiuse em torno dos olhos sumidos, e ele bateu a cinza do cigarro pensativamente.

— Sem dúvida, fale, se quiser — disse ele — mas primeiro sente-se, sente-se, rapaz.

O Técnico Andrew Harlan não se sentou. Andou para lá e para cá ao lado da mesa, mastigando suas sentenças para não deixá-las esquentar e efervescer em incoerência.

A cabeça em forma de maçã amadurecida do Computador Sênior Laban Twissell virava para trás e para a frente, à medida que ele seguia os passos nervosos do outro.

— Durante semanas estive vendo filmes sobre a história da matemática — disse Harlan. — Livros de diversas Realidades do século 575. As Realidades não importam muito.

A matemática não muda. A ordem de seu desenvolvimento não muda também. Não importa quanto a Realidade se altere; a história da matemática continua quase a mesma. Os matemáticos mudaram; matemáticos diferentes fizeram descobertas, mas os resultados finais… De qualquer forma, consegui com esforço entender um bocado a respeito. O que lhe parece isso?

Twissell franziu os sobrolhos e disse: — Uma ocupação estranha para um Técnico.

— Mas não sou apenas um Técnico — disse Harlan.

— O senhor sabe disso.

— Continue — disse Twissell, fitando o relógio que usava. Os dedos que seguravam o cigarro brandiam-no com nervosismo incomum.

— Houve um homem chamado Vikkor Mallansohn que viveu no século 24 — disse Harlan. — Este século faz parte da época primitiva, o senhor sabe. A coisa pela qual ele é mais conhecido é o fato de que foi o primeiro a construir com êxito um Campo Temporal. Isso significa, naturalmente, que ele inventou a Eternidade, desde que esta é somente um tremendo Campo Temporal em curto-circuito com o Tempo comum e livre das limitações do mesmo.

— Foi-lhe ensinado isso quando Aprendiz, rapaz.

— Mas não me foi ensinado que Vikkor Mallansohn poderia não ter inventado o Campo Temporal no século 24. Nem ninguém mais poderia. Suas bases matemáticas não existiam.

As equações fundamentais de Lefebvre não existiam; nem poderiam ter existido antes das pesquisas de Jan Verdeer, no século 27.

Se havia algum sinal pelo qual o Computador Sênior Twissell pudesse demonstrar completo assombro, era o de soltar o cigarro. Ele o soltou então. Até mesmo seu sorriso se foi.

— Foram-lhe ensinadas as equações de Lefebvre, rapaz? — perguntou ele.

— Não. E não digo que as entendo. Mas elas são necessárias para o Campo Temporal. Isso eu aprendi. E não foram descobertas até o século 27. Sei disso, também.

Twissell inclinou-se para apanhar seu cigarro e fitou-o indeciso. — E daí se Mallansohn tivesse descoberto por acaso o Campo Temporal sem estar consciente da justificação matemática? E daí se fosse simplesmente uma descoberta empírica? Têm havido muitas iguais.

— Pensei nisso. Mas depois que o Campo foi inventado, levou-se três séculos para elaborar suas implicações e, findo esse prazo, não houve sequer uma maneira pela qual o Campo de Mallansohn pudesse ser aperfeiçoado. Isso não poderia ser coincidência. Por centenas de maneiras, o projeto de Mallansohn mostrou que ele deve ter usado as equações de Lefebvre. Se ele as conhecesse ou as tivesse desenvolvido sem o trabalho de Verdeer, o que é impossível, por que ele não o teria dito?

— Você insiste em falar como um matemático — disse Twissell. — Quem lhe contou tudo isso?

— Estive vendo filmes.

— Nada mais?

— E pensando.

— Sem treinamento matemático avançado? Eu o estive observando cuidadosamente durante anos, rapaz, e não teria adivinhado esse seu talento particular. Continue.

— A Eternidade nunca poderia ter sido estabelecida sem a descoberta do Campo Temporal por Mallansohn. Mallansohn nunca poderia tê-lo concluído sem um conhecimento de matemática que existia somente em seu futuro. Este é o número um. Entrementes, aqui na Eternidade, neste momento, há um Aprendiz que foi escolhido como Eterno contra todas as regras, desde que era idoso demais e, além disso, casado. O senhor o está educando em matemática e em sociologia Primitiva.

Este é o número dois.

— Bem?

— Digo que é sua intenção mandá-lo de volta ao Tempo de alguma forma, além do término da escala descendente da Eternidade, de volta ao século 24. Sua intenção é que o aprendiz, Cooper, ensine as equações de Lefebvre a Mallansohn. O senhor vê, então — acrescentou Harlan com tensa excitação — que minha posição como perito no Primitivo e meu conhecimento dessa posição dão-me o direito de tratamento especial. Tratamento muito especial.

— Pai Tempo! — murmurou Twissell.

— É verdade, não é? Chegamos a um círculo completo, com minha ajuda. Sem ela… — ele deixou a frase no ar.

— Você chegou bem perto da verdade — disse Twissell. — Contudo eu poderia jurar que nada havia para indicar… — ele caiu num pensamento profundo, do qual nem Harlan nem o mundo exterior pareciam tomar parte.

— Somente perto da verdade? — disse Harlan rapidamente. — Esta é a verdade.

Ele não poderia dizer por que estava tão certo do conteúdo do que disse, mesmo deixando-se totalmente à parte o fato de que ele queria desesperadamente que assim fosse.

— Não, não — disse Twissell — não exatamente a verdade. O Aprendiz, Cooper, não vai voltar ao século 24 para ensinar coisa alguma a Mallansohn.

— Não acredito no senhor.

— Mas deve acreditar. Você deve enxergar a importância disso. Quero sua cooperação para o que resta do projeto. Veja, Harlan, a situação é mais círculo completo do que você imagina. Muito mais, rapaz. O Aprendiz Brinel d'água d'águaey Sheridan Cooper é Vikkor Mallansohn!

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