S a n sa
Septã Mordane informou Sansa, durante o desjejum, que
Eddard Stark partira antes da madrugada.
- O rei mandou chamá-lo. Outra caçada, creio. Dizem que
ainda há auroques selvagens nes tas terras.
- Nunca vi um auroque - disse Sansa, dando uma fatia de
bacon a Lady por baixo da mes a. A loba selvagem a tirou
da mão tão delicadamente como uma rainha.
Septã Mordane fungou, desaprovando.
- Uma senhora nobre não alimenta cães à mesa -
repreendeu a menina, partindo outro bo cado de favo e
deixando o mel pingar em sua fatia de pão.
- Ela não é um cão, é um lobo selvagem - Sansa a corrigiu
enquanto Lady lhe lambia os dedos com uma língua
áspera. - Seja como for, meu pai disse que podíamos
mantê-los conosco se quiséssemos.
A septã não estava satisfeita.
- Você é uma boa moça, Sansa, mas, juro, no que toca a
essa criatura, é tão teimosa como a sua irmã Arya -
franziu a sobrancelha. - E onde está Arya hoje?
- Ela não tinha fome - Sansa respondeu, sabendo
perfeitamente que a irmã tinha prova velmente se
esgueirado até a cozinha horas antes e convencido algum
ajudante de cozinheiro a dar-lhe um café da manhã.
- Lembre-a de que hoje deve se vestir bem. Talvez o
vestido de veludo cinza. Estamos todas convidadas para
acompanhar a rainha e a Princesa Myrcella na casa rolante
real, e devemos apresentar nossa melhor aparência.
Sansa já apresentava sua melhor aparência. Escovara os
longos cabelos ruivos até deixá-los brilhando e escolhera
suas melhores sedas azuis. Esperava aquele dia havia mais
de uma semana. Acompanhar a rainha era uma grande
honra e, além disso, Príncipe Joffrey talvez lá estivesse. O
seu prometido. Só de pensar nisso sentia uma estranha
agitação no peito, ainda que não pudes sem se casar antes
de se passarem anos e anos, Sansa ainda não conhecia
realmente Joffrey, mas já estava apaixonada por ele. Era
tudo como sonhara que seu príncipe poderia ser: alto,
bonito e forte, com cabelos que pareciam ouro. Eram -lhe
preciosas as oportunidades de passar algum tempo com
ele, por poucas que fossem, A única coisa que a assustava
naquele dia era Arya. Arya tinha tendência para estragar
tudo. Nunca se sabia o que ela poderia fazer.
- Eu vou lhe dizer - disse Sansa, em voz incerta -, mas ela
vai vestir o mesmo de sempre - esperava que não fosse
muito embaraçoso. - Com a sua licença.
- Com certeza - Septã Mordane serviu-se de mais pão e
mel, e Sansa ergueu-se do banco. Lady a seguiu de perto
quando saiu correndo da sala de estar da estalagem.
Lá fora, parou por um momento entre os gritos e pragas e
o ranger de rodas de madeira e a confusão dos homens
desmontando as tendas e pavilhões e carregando as
carroças para mais um dia de marcha. A estalagem era
uma vasta estrutura de pedra clara, com três andares, a
maior que Sansa já vira, mas mesmo assim só tivera lugar
para menos de um terço da comitiva do rei, que
aumentara para mais de quatrocentas pes soas com a
adição da comitiva do pai e os cava leiros livres que a eles
se juntaram na estrada.
Encontrou Arya na margem do Tridente, tentando manter
Nymeria quieta enquanto limpava seu pelo de lama seca
com a ajuda de uma escova. A loba gigante não pareci a
gostar. Arya vestia os mesmos couros de montar que
vestira no dia anterior e no outro antes desse.
- É melhor que vista alguma coisa bonita - disse-lhe
Sansa. - Foi Septã Mordane que disse. Hoje vamos viajar
na casa rolante da rainha com a Princesa Myrcell a.
- Eu não vou - disse Arya, tentando desfazer um nó no
emaranhado pelo cinzento de Ny meria. - Mycah e eu
vamos subir a corrente e procurar no vau por rubis.
- Rubis - disse Sansa, pensativa.
- Que rubis?
Arya a olhou como se ela fosse muito estúpida.
- Os rubis de Rhaegar. Foi aqui que o Rei Robert o matou e
conquistou a coroa. Sansa olhou sua magricela irmã mais
nova, incrédula,
- Não pode ir à procura de rubis. A princesa nos espera. A
rainha nos convidou a ambas.
- Não me importa - disse Arya. - A casa rolante nem
sequer tem janelas, não se pode ver nada.
- O que você poderia querer ver? - perguntou Sansa,
aborrecida. Ficara excitada com o con vite, e a estúpida da
irmã ia estragar tudo, tal como temera. - Só há campos,
fazendas e castros.
- Não, não é só - Arya teimou. - Se viesse às vezes
conosco, você veria.
- Detesto andar a cavalo - Sansa respondeu com fervor. -
Tudo o que isso faz é nos encher de terra, poeira e dores.
Arya encolheu os ombros.
- Fica quieta - ordenou a Nymeria -, não estou te
machucando - depois se dirigiu a Sansa: - Quando
atravessamos o Gargalo, contei trinta e seis flores que
nunca tinha visto antes, e My cah me mostrou um lagarto -
leão.
Sansa estremeceu. Tinham levado doze dias para
atravessar o Gargalo, chacoalhando por um talude torto
ao longo de um lodaçal preto sem fim, e ela detestara
cada momento da travessia. O ar era úmido e pegajoso, o
talude tão estreito que sequer podiam fazer um
acampamento digno deste nome à noite, e tiveram de
parar na própria estrada do rei. Densas matas de árvores
meio submersas apertavam -se contra eles, com os ramos
pingando sob o peso de cortinas de fungos pálidos.
Enormes flores desabrochavam na lama e flutuavam em
poças de água parada, mas havia areias movediças à
espera para apanhar quem fosse suficient emente estúpido
para deixar o talude e ir apanhá-las, e serpentes à
espreita nas árvores, e lagartos -leões a flutuar, meio
submersos na água, como troncos negros com olhos e
dentes.
Nada daquilo parava Arya, claro. Um dia regressara com
seu sorriso de cavalo, o cabelo todo emaranhado e as
roupas cobertas de lama, agarrada a um rude buquê de
flores purpúreas e verdes para o pai. Sansa acalentou a
esperança de que ele dissesse a Arya para se portar bem e
agir como a senhora de boas famílias que era suposto s er,
mas ele assim não fez, limitou -se a abraçá-la e a
agradecer-lhe pelas flores. E isto só reforçou seus maus
modos.
Então, descobriu-se que as flores purpúreas eram
conhecidas por beijos de veneno, e Arya acabou com uma
irritação nos braços. Sansa supôs que aquilo lhe ensinaria
uma lição, mas Arya riu do assunto e no dia seguinte
esfregou lama nos braços, de cima a baixo, como uma
mulher ignorante qualquer do pântano, só porque o amigo
Mycah lhe dissera que faria desaparecer a comichão.
Também tinha nódoas negras nos braços e ombros,
vergões púrpuros escuros e manchas desbotadas verdes e
amarelas; Sansa os viu quando a irmã se despiu para
dormir. Como tinha arranjado aquilo, só os sete deuses
sabiam.
Arya ainda continuava a falar sobre coisas que vira n a
viagem para o Sul enquanto desfazia com a escova os nós
no pelo de Nymeria.
- Na semana passada, encontramos uma torre de vigia
assombrada e, no dia anterior, perse guimos uma manada
de cavalos selvagens. Devia tê -los visto correndo quando
sentiram o cheiro de Nymeria - a loba retorceu-se e Arya
ralhou com ela. - Para com isso, tenho de limpar o outro
lado, você está cheia de lama.
- Você não deve abandonar a coluna - relembrou-lhe
Sansa. - Foi o que o pai disse. Arya encolheu os ombros.
- Não fui longe. Seja como for, Nymeria sempre esteve
comigo. E nem sempre saio da coluna. Às vezes é
divertido cavalgar junto às carroças e conversar com as
pessoas.
Sansa sabia tudo sobre o tipo de gente com quem Arya
gostava de falar: escudeiros, cavalariços e criadas, homens
velhos e crianças nuas, cavaleiros livres de linguagem
rude e nascimento incerto. Arya fazia amizade com
qualquer um. Aquele Mycah era o pior; filho de um
carniceiro, com treze anos e desenfreado, dormia na
carroça das carnes e cheirava a matadour o. Bastava olhá-
lo para Sansa sentir-se enjoada, mas Arya parecia preferir
a companhia do rapaz à sua.
Sansa estava agora perdendo a paciência.
- Você tem de vir comigo - disse firmemente à irmã. -
Não pode dizer não à rainha. Septã Mordane conta
contigo.
Arya a ignorou. Puxou com força a escova. Nymeria
rosnou e rodopiou para longe, irritada.
- Volta já aqui!
- Vai ter bolos de limão e chá - continuou Sansa, toda
adulta e racional. Lady esfregou-se contra sua perna.
Sansa coçou-lhe as orelhas do modo que a l oba gostava, e
Lady sentou-se ao seu lado, observando a perseguição
entre Arya e Nymeria. - Por que motivo ia querer montar
um velho cavalo malcheiroso e ficar toda dolorida e suada
quando pode se encostar em almofadas de penas e comer
bolos com a rainha?
- Não gosto da rainha - Arya respondeu com indiferença.
Sansa prendeu a respiração, choca da por alguém, mesmo
que fosse Arya, poder dizer uma coisa daquelas, mas sua
irmã continuou a tagarelar, sem cuidado algum. - Ela nem
sequer me deixa levar Nymeria - enfiou a escova no cinto
e passou a perseguir a loba. Nymeria vigiava com
prudência sua aproximação,
- Uma casa rolante real não é lugar para um lobo - disse
Sansa. - E você bem sabe que a Princesa Myrcella tem
medo deles.
- Myrcella é um bebezinho - Arya agarrou Nymeria pelo
pescoço, mas no momento em que tirou a escova do cinto,
a loba gigante libertou-se com uma contorção e saltou
para longe dela. Frustrada, Arya atirou a escova ao chão. -
Loba má! - gritou.
Sansa não conseguiu evitar um pequeno sorriso. O me stre
do canil lhe dissera uma vez que um animal sai ao dono.
Deu a Lady um pequeno e rápido abraço. Lady lambeu -lhe
o rosto. Sansa soltou um risinho. Arya ouviu e deu meia-
volta, olhando-a furiosa.
- Não me interessa o que você possa dizer, eu vou
montar - seu longo rosto de cavalo tinha a expressão
teimosa que significava que faria algo de propósito.
-Juro pelos deuses, Arya, às vezes você não passa de uma
criança - Sansa a repreendeu. - Sendo assim, vou sozinha.
Vai ser muito mais agradável. Lady e eu vamos comer
todos os bolos de limão e passar sem você o melhor dos
dias. - Virou-se para se afastar, mas Arya gritou às suas
costas:
- Também não vão te deixar levar a Lady - e foi embora,
antes de Sansa conseguir pensar numa resposta,
perseguindo Nymeria ao longo do rio.
Só e humilhada, Sansa iniciou a longa caminhada de volta
à estalagem, onde sabia que Septã Mordane estava à
espera. Lady caminhava em silêncio ao seu lado. Estava
quase chorando. Tudo o que desejava era que as coisas
fossem agradáveis e bonit as, como eram nas canções. Por
que Arya não podia ser doce, delicada e bondosa, como a
Princesa Myrcella? Ela gostaria de uma irmã assim.
Sansa nunca conseguira compreender como era possível
que duas irmãs, nascidas apenas com dois anos de
diferença, pudessem ser tão diferentes. Teria sido mais
fácil se Arya fosse bastarda, como o meio -irmão Jon. Ela
até era parecida com Jon, com o rosto longo e os cabelos
castanhos dos Stark, e nada de sua mãe no rosto ou nas
cores. E a mãe de Jon fora uma mulher plebeia, ou pelo
menos era isso que se segredava. Uma vez, quando era
pequena, Sansa até chegou a pergun tar à mãe se não teria
havido algum engano. Talvez os gramequins tivessem
roubado sua irmã verdadeira. Mas sua mãe limitara-se a rir,
dizendo que não, que Arya era sua filha e irmã legítima
de Sansa, sangue do sangue delas. Sansa não era capaz de
imaginar um motivo que levasse a mãe a querer mentir
sobre aquilo, e assim concluíra que tinha de ser verdade.
Ao se aproximar do centro do acampamento, sua aflição
foi rapidamente esquecida. Uma multidão tinha se reunido
em torno da casa rolante da rainha. Sansa ouviu vozes
excitadas que zumbiam como uma colmeia. Viu que as
portas tinham sido escancaradas e que a rainha estava no
topo dos degraus de madeira, sorrindo par a alguém.
Ouviu-a dizer:
- O conselho nos presta uma grande honra, meus bons
senhores.
- O que está acontecendo? - perguntou Sansa a um
escudeiro seu conhecido.
- O conselho enviou cavaleiros de Porto Real para nos
escoltar pelo resto do caminho - informou o homem. -
Uma guarda de honra para o rei.
Ansiosa por vê-los, Sansa deixou Lady abrir-lhe caminho
através da multidão. As pessoas afastavam -se às pressas
da loba gigante. Quando se aproximou, viu dois cavaleiros
que se ajoelhavam perante a rainha, usando a rmaduras tão
boas e esplendorosas que a fizeram pestanejar.
Um dos cavaleiros usava um intricado conjunto de
escamas brancas esmaltadas, brilhante como um campo de
neve recém-caída, com relevos e fivelas de prata que
brilhavam ao sol. Quan do tirou o elmo, Sansa viu que era
um homem idoso, de cabelos tão alvos como a armadura,
mas, apesar disso, parecia forte e gracioso. De seus
ombros pendia o manto de um branco puro da Guarda
Real.
O companheiro era um homem com perto de vinte anos
cuja armadura era uma placa de aço de um profundo
verde-musgo. Era o homem mais bonito em que Sansa já
pousara seus olhos; alto e de constituição poderosa, com
cabelos negros como breu que lhe caíam sobre os ombros
e rodeavam um rosto escanhoado, e risonhos olhos verdes
que combinavam com a armadura. Aninhado debaixo do
braço, estava um elmo provido de chifres, cuja magnífica
viseira brilhava de ouro.
A princípio, Sansa não reparou no terceiro estranho. Não
estava ajoelhado como os outros. Estava em pé, ao lado,
junto aos cavalo s dos recém-chegados, um homem magro
e sombrio que observava os acontecimentos em silêncio.
Tinha o rosto sem barba, marcado pela varíola, olhos
encovados e bochechas descarnadas, Embora não fosse
velho, restavam-lhe poucas madeixas de cabelo, brotando
por cima das orelhas, mas deixara-o crescer como o de
uma mulher. Sua ar madura era uma cota de malha de um
tom cinzento de ferro, posta sobre camadas de couro
fervido, simples e sem adornos, que revelava a idade e o
uso duro. Sobre o ombro direito via-se o manchado punho
de couro da lâmina que trazia atada às costas, uma espada
de duas mãos, gran de demais para ser presa ao flanco.
- O rei foi caçar, mas sei que ficará feliz em vê -los
quando regressar - dizia a rainha aos dois cavaleiros que
se ajoelhavam per ante ela, mas Sansa não conseguia tirar
os olhos do terceiro homem. Ele pareceu sentir o peso do
seu olhar. Lentamente, virou a cabeça. Lady rosnou. Um
terror tão esmagador como qualquer outra coisa que
Sansa Stark já sentira encheu-a de repente. Deu um passo
para trás e foi de encontro a alguém.
Fortes mãos agarraram-lhe os ombros e, por um momento,
Sansa pensou que era o pai, mas, quando se virou, foi a
face queimada de Sandor Clegane que encontrou olhando -
a de cima, com a boca torcida num terrível simula cro de
sorriso.
- Está tremendo, menina! - disse ele, com voz áspera. -
Assusto-a tanto assim?
Assustava, e assustava desde que ela pusera pela primeira
vez os olhos na ruína em que o fogo transformara seu
rosto, embora agora lhe parecesse que não causava nem
metade do terror daquela vez. Mesmo assim, Sansa
desviou-se para longe dele. O Cão de Caça soltou uma
gargalhada, e Lady interpôs-se entre ambos, rugindo um
aviso. Sansa caiu de joelhos e enrolou os braços em torno
da loba. As pessoas reuniram-se em volta dela, de boca
aberta. Sansa sentia os olhos postos nela, e aqui e ali
ouvia comentários murmurados e farrapos de risos.
"Um lobo", disse um homem, e alguém ecoou "Pelos sete
infernos, isto é um lobo gigante" e o primeiro homem
perguntou "Que faz ele no acampamento?" e a voz áspera
do Cão de Caça replicou: "Os Stark usam-nos como amas
de leite" e Sansa compreendeu que os dois cavaleiros
desconhecidos olhavam para ela e para Lady, com as
espadas nas mãos, e então ficou novamente assustada e
envergonhada. Lágrimas encheram-lhe os olhos.
Ouviu a rainha dizer:
- Joffrey, vá falar com ela.
E ali estava seu príncipe.
- Deixem-na em paz - disse Joffrey. Erguia-se acima dela,
belo em sua lã azul e couro negro, com os caracóis
dourados brilhando ao sol como uma coroa. Ofereceu-lhe
a mão e a ajudou a ficar em pé. - Que se passa, querida
senhora? Por que tanto medo? Ninguém lhe fará mal.
Guardem as espadas, todos. O lobo é seu animal de
estimação, não passa disso - olhou para Sandor Clegane: -
E você, cão, desapareça daqui, está assustando minha
prometida.
Cão de Caça, sempre fiel, fez uma vénia e esgueirou -se em
silêncio através da multidão. Sansa lutou por firmar-se.
Sentia-se tão pateta. Era uma Stark de Winterfell, uma
senhora nobre, e um dia seria uma rainha.
- Não foi ele, meu querido príncipe - ela tentou explicar. -
Foi o outro.
Os dois cavaleiros desconhecidos trocaram um olhar.
- Payne? - disse com um risinho abafado o homem mais
novo, da armadura verde. O homem mais velho vestido de
branco falou gentilmente a Sansa.
- Por vezes, Sor Ilyn também me assusta, querida senhora.
Tem um aspecto temível.
- E assim deve ser - a rainha descera da casa rolante. Os
espectadores afastaram-se a fim de lhe abrir caminho. -
Se os malvados não temerem o Magistrado do Rei, isso
quer dizer que o homem errado está no cargo.
Sansa finalmente encontrou o que dizer:
- Então, com certeza Vossa Graça encontrou o homem
certo - ela terminou o que dizia e uma rajada de
gargalhadas explodiu à sua volta.
- Bem dito, menina - disse o velho de branco, - Como é
próprio de uma filha de Eddard Stark. Estou honrado por
conhecê-la, por mais irregular que tenha sido o modo
como nos encon tramos. Sou Sor Barristan Selmy, da
Guarda Real - o homem lhe fez uma reverência.
Sansa conhecia o nome, e agora as c ortesias que Septã
Mordane lhe ensinara ao longo dos anos vinham -lhe à
memória.
- O Senhor Comandante da Guarda Real - disse - e
conselheiro do nosso rei Robert, e antes dele de Aerys
Targaryen, A honra é minha, bom cavaleiro. Mesmo no
longínquo Norte, os cantores gabam os feitos de
Barristan, o Ousado.
O cavaleiro verde riu novamente.
- Barristan, o Usado, a senhora quer dizer. Não o
lisonjeie com tanta doçura, criança, pois eleja tem uma
opinião grande demais de si próprio - e sorriu-lhe. - E
agora, menina-lobo, se conseguir também encontrar um
nome para mim, então terei de reconhecer que é, sim,
filha da nossa Mão.
Joffrey empertigou-se a seu lado.
- Tenha cuidado com o modo como se dirige à minha
prometida.
- Eu posso responder - disse Sansa depressa para aquietar
a ira de seu príncipe. Sorriu para o cavaleiro verde. - Seu
capacete tem chifres dourados, senhor. O veado é o selo
da Casa Real. O rei Robert tem dois irmãos. Por sua
extrema juventude, só pode ser Renly Baratheon, senhor
de Ponta Tempestade e cons elheiro do rei, e assim o
nomeio.
Sor Barristan soltou um risinho.
- Pela sua extrema juventude, só pode ser um arrogante
empinado, e é assim que o nomeio eu.
Ouviu-se gargalhada geral, liderada pelo próprio Lorde
Renly. A tensão de momentos antes tinha desaparecido, e
Sansa começava a se sentir confortável... até que Sor Ilyn
Payne abriu caminho entre dois homens à força de seu
ombro e surgiu à sua frente, sem sorrir. Não disse uma
palavra. Lady mostrou os dentes e começou a rosnar, um
rugido baixo cheio de ameaças, mas desta vez Sansa
silenciou a loba passando suavemente sua mão na cabeça
dela.
- Lamento se o ofendi, Sor Ilyn - disse.
Esperou por uma resposta, mas nenhuma veio. Enquanto o
executor a olhava, seus olhos claros sem cor pareciam
despi-la, inclusive a pele, deixando -lhe a alma nua à sua
frente, Ainda em silêncio, o homem se virou e foi embora.
Sansa não compreendeu. Olhou para seu príncipe.
- Disse algo de errado, Vossa Graça? Por que motivo ele
não falou comigo?
- Sor Ilyn não tem sido falador nestes últimos catorze
anos - comentou Lorde Renly, com um sorriso irônico.
Joffrey lançou ao tio um olhar de pura repugnância, e
depois tomou as mãos de Sansa nas suas.
- Aerys Targaryen mandou arrancar -lhe a língua com
tenazes quentes.
- No entanto, fala de modo bem eloquente com a espada -
disse a rainha -, e sua devoção pelo nosso reino está fora
de questão - então, sorriu amavelmente e disse: - Sansa,
os bons conselheiros e eu temos de conversar até que o
rei regresse com seu pai. Temo que tenhamos de a diar seu
dia com Myrcella. Transmita, por favor, as minhas
desculpas à sua querida irmã. Joffrey, talvez possa ter a
amabilidade de entreter a nossa convidada.
- Com todo o prazer, mãe - disse Joffrey, muito
formalmente. Tomou-a pelo braço e afastou --a da casa
rolante, e o estado de espírito de Sansa levantou voo. Um
dia inteiro com seu príncipe!
Olhou para Joffrey com adoração. Ele é tão galante,
pensou. O modo como a salvara de Sor Ilyn e do Cão de
Caça, ora, fora quase como nas canções, como daquela vez
em que Serwyn do Escudo Espelhado salvou a Princesa
Daeryssa dos gigantes, ou quando Príncipe Aemon, o
Cavaleiro do Dragão, defendeu a honra da Rainha Naerys
contra as calúnias do malvado Sor Morgil.
O toque da mão de Joffrey em sua manga fez seu coração
bater mais depressa.
- O que gostaria de fazer?
Estar contigo, pensou Sansa, mas, em vez disso, respondeu:
- O que quiser fazer, meu príncipe.
Joffrey refletiu por um momento.
- Podíamos ir montar a cavalo.
- Ah, eu adoro montar - ela exclamou.
Joffrey olhou de re lance Lady, que os seguia de perto.
- O lobo pode assustar os cavalos, e meu cão parece
assustá-la. Deixemos ambos para trás e vamos os dois
sozinhos, o que diz?
Sansa hesitou.
- Se assim desejar - disse, incerta. - Suponho que poderia
amarrar Lady - no entanto, não tinha certeza de ter
compreendido. - Não sabia que tinha um cão...
Joffrey riu.
- Na verdade, é da minha mãe. Ela o designou para me
guardar, e é o que ele faz.
- Fala do Cão de Caça... - Sansa entendeu. Quis bater em
si própria por ser tão lent a. Seu príncipe nunca a amaria
se parecesse ser estúpida. - É seguro deixá-lo para trás?
Príncipe
Joffrey
pareceu
aborrecido
por
ela
ter
perguntado.
- Nada tema, senhora. Sou quase um homem feito, e não
luto com madeira como seus ir mãos. Tudo de que
necessito é isto - desembainhou a espada e a mostrou;
uma espada longa destramente encolhida para se adequar
a um rapaz de doze anos, aço azul brilhante, forjada em
castelo e de duplo gume, com um punho de couro e um
botão de ouro em forma de cabeça de leão. Sa nsa
exclamou de admiração ao vê -la, e Joffrey pareceu
satisfeito. - Chamo-a Dente de Leão - disse.
E assim deixaram para trás a loba gigante e o guarda-
costas, e cavalgaram para leste ao longo da margem norte
do Tridente sem outra companhia que não Dente d e Leão.
Estava um dia glorioso, um dia mágico. O ar estava
quente e pesado com o odor das flores, e os bosques
tinham ali uma beleza suave que Sansa nunca vira no
Norte. A montaria do Prín cipe Joffrey era um corcel baio
vermelho, ligeiro como o vento, e e le o montava com
destemido abandono, tão depressa que Sansa teve
dificuldade em acompanhá-lo em sua égua. Estava um dia
para aventuras. Exploraram as grutas próximas da margem
do rio e seguiram os rastros de um gato -das-sombras até
sua toca, e quando ficar am com fome Joffrey localizou um
castro pela sua fumaça e, ao chegar, ordenou que
trouxessem comida e vinho para o príncipe e sua senhora.
Jantaram trutas frescas do rio, e Sansa bebeu mais vinho
do que alguma vez já bebera.
- Meu pai só nos deixa beber um a taça, e apenas nos
banquetes - confessou ao seu príncipe.
- Minha prometida pode beber tanto quanto desejar -
disse Joffrey, voltando a encher-lhe a taça.
Depois de comer, prosseguiram mais lentamente seu
caminho. Joffrey cantou para ela en quanto cavalgavam,
com uma voz aguda, doce e pura. Sansa estava um pouco
tonta do vinho.
- Não devíamos regressar? - perguntou.
- Em breve - ele respondeu. - O campo de batalha é logo
ali à frente, na curva do rio. Foi ali que meu pai matou
Rhaegar Targaryen, sabia? Esmagou-lhe o peito, crás,
mesmo através da armadura - Joffrey brandiu um martelo
de guerra imaginário para lhe mostrar como se fazia.
- Depois, tio Jaime matou o velho Aerys e meu pai tornou-
se rei. Que barulho é esse?
Sansa também o ouviu, flutuando atravé s dos bosques,
uma espécie de ruído de madeira, snac, snac, snac.
- Não sei - ela respondeu, já nervosa. - Joffrey, vamos
embora.
- Quero ver o que é aquilo - Joffrey virou o cavalo na
direção de onde vinha o som, e Sansa não teve escolha a
não ser segui-lo. Os ruídos foram ficando mais fortes e
mais distintos, o clac de madeira batendo em madeira, e
quando se aproximaram ouviram também respirações
pesadas e um gemido de vez em quando.
- Tem alguém ali - Sansa disse ansiosamente. Deu por si
pensando em Lady, desejando que a loba gigante estivesse
ali.
- Comigo está a salvo - Joffrey desembainhou sua Dente de
Leão. O som do aço raspando em couro a fez tremer. -
Por aqui - disse ele, levando o cavalo por entre um grupo
de árvores.
Para lá delas, numa clareira aberta a o lado do rio,
encontraram um rapaz e uma menina brin cando de
cavaleiros. Suas espadas eram paus, aparentemente cabos
de vassoura, e eles corriam pela clareira, batendo -se com
vigor. O rapaz era bem mais velho, uma cabeça mais alto,
e muito mais forte, e era ele quem atacava. A menina,
uma coisinha magricela vestida de couro manchado,
esquivava-se e conseguia pôr sua "espada" no caminho da
maior parte dos golpes do rapaz, mas não de todos.
Quando ela tentou uma estocada, ele parou o pau dela
com o seu, varreu-o para o lado e golpeou-lhe duramente
os dedos. Ela gritou e deixou cair a "espada".
Príncipe Joffrey soltou uma gargalhada. O rapaz olhou em
volta, com os olhos muito abertos e sobressaltado, e
deixou cair a"espada" sobre a relva. A menina olhou para
eles furiosa, chupando os nós dos dedos para afastar a
dor, e Sansa ficou horrorizada.
- Arya? - gritou, incrédula.
- Vá embora - gritou Arya de volta, com lágrimas de fúria
nos olhos. - O que você está fazendo aqui? Deixe -nos em
paz.
Joffrey olhou de relance para Arya, depois para Sansa, e
depois de novo para Arya.
- É a sua irmã? - ela confirmou com um aceno, corando.
Joffrey examinou o rapaz, um jovem desajeitado com uma
cara grosseira, sardenta, e espessos cabelos ruivos. - E
quem é você, rapaz? - perguntou, num tom de comando
que não dava qualquer importância ao fato de o outro ser
um ano mais velho que ele próprio.
- Mycah - o rapaz murmurou. Reconheceu o príncipe e
desviou os olhos. - Senhor.
- É o filho do carniceiro - disse Sansa.
- É meu amigo - retrucou Arya em voz penetrante. -
Deixem-no em paz.
- Um filho de carniceiro que deseja ser cavaleiro, é isso? -
Joffrey saltou da montada, de espada na mão. - Pegue a
sua espada, filho de carniceiro - disse, com os olhos
brilhantes de diver timento. - Vamos lá ver como se
comporta,
Mycah ficou imóvel, congelado de medo.
Joffrey caminhou na sua direção.
- Vá lá, pega ela. Ou será que só luta com menininhas?
- Ela me pediu, senhor - disse Mycah, - Ela pediu.
Sansa só teve precisou olhar para Arya e ver seu rosto
corado para saber que o rapaz falava a verdade, mas
Joffrey não estava com disposição de ouvi -lo. O vinho o
deixara excitado.
- Vai pegar sua espada?
Mycah abanou a cabeça.
- É só um pau, senhor. Não é espada nenhuma, é só um
pau.
- E você é só o filho do carniceiro, n ão é nenhum
cavaleiro - Joffrey ergueu Dente de Leão e pousou sua
ponta na bochecha de Mycah, abaixo do olho, enquanto o
filho do carniceiro per manecia imóvel, tremendo. - Aquela
em quem batia é a irmã da minha senhora, você sabe
disso? - um brilhante botão de sangue rebentou onde a
espada fazia pressão na pele de Mycah e uma lenta linha
vermelha deslizou pela bochecha do rapaz.
- Para com isso! - gritou Arya, e agarrou seu pau no chão.
Sansa sentiu medo.
- Arya, mantenha-se fora disto.
- Não vou machucá-lo... muito - disse o Príncipe Joffrey a
Arya, sem desviar os olhos do filho do carniceiro.
Arya saltou sobre ele,
Sansa deslizou de cima da égua, mas foi lenta demais.
Arya brandiu a "espada" com ambas as mãos. Ouviu -se um
sonoro crac quando a madeira se quebrou contra a nuca
do príncipe, e então tudo aconteceu ao mesmo tempo
perante os horrorizados olhos de Sansa. Joffrey cambaleou
e rodopiou, rugindo pragas. Mycah fugiu para as árvores
tão depressa quanto as pernas podiam levá -lo. Arya
atacou de novo o prínc ipe, mas desta vez Joffrey parou o
golpe com a Dente de Leão e arrancou -lhe a "espada" das
mãos. Tinha a nuca cheia de sangue e os olhos em fogo.
Sansa gritava: - Não, não, parem, parem os dois, estão
estragando tudo -, mas ninguém a ouvia.
Arya pegou uma pedra e atirou-a na cabeça de Joffrey. Em
vez de atingi-lo, acertou o cavalo, e o baio vermelho
empinou-se e partiu a galope atrás de Mycah. - Parem, não,
parem! -, gritou Sansa novamente. Joffrey avançou em
direção de Arya, espada em punho, gritando obsc enidades,
palavras terríveis, nojentas. Arya saltou para trás, agora
assustada, mas Joffrey a seguiu, levando -a na direção do
bosque, encurralando-a contra uma árvore. Sansa não
sabia o que fazer. Ficou vendo, impotente, quase cega
pelas lágrimas.
Então, uma mancha cinzenta passou por ela como um
relâmpago e, de súbito, Nymeria estava ali, saltando,
cerrando as mandíbulas em torno do braço de Joffrey que
manejava a espada. O aço caiu -lhe dos dedos quando a
loba o atirou ao chão, e rolaram na relva, com a loba
rosnando e abocanhando o príncipe, que guinchava de
dor.
- Tirem-na daqui! - ele gritou. - Tirem-na daqui!
A voz de Arya estalou como um chicote.
- Nymerial
A loba gigante largou Joffrey e foi até junto de Arya. O
príncipe ficou estendido na relva, choramingando,
agarrado ao braço retalhado. Sua camisa estava empapada
de sangue. Arya disse:
- Ela não te machucou... muito - ela ergueu Dente de
Leão do lugar onde caíra e levantou-se sobre ele,
segurando a espada com as duas mãos.
Joffrey soltou um som choros o e assustado quando olhou
para cima, para Arya.
- Não - disse -, não me machuque, Vou contar para minha
mãe.
- Deixe-o em paz! - gritou Sansa à irmã.
Arya girou e atirou a espada ao ar, colocando todo seu
corpo no movimento. O aço azul relampejou à luz do sol
quando a espada rodopiou sobre o rio. Atingiu a água e
desapareceu com um borbulhar. Joffrey gemeu. Arya
correu para seu cavalo, com Nymeria a trotar logo atrás.
Depois de terem desaparecido, Sansa foi até junto do
Príncipe Joffrey, que tinha os olhos ce rrados de dor, a
respiração entrecortada, e ajoelhou-se a seu lado.
-Joffrey - soluçou. - Ah, veja o que eles fizeram, veja o
que eles fizeram. Meu pobre prín cipe. Não tenha medo.
Eu vou a cavalo até o castro e lhe trarei ajuda - com
ternura, ela estendeu a mão e afastou para trás os suaves
cabelos louros.
Os olhos dele abriram-se de repente e olharam-na, e neles
nada havia além de repugnância, nada além do mais vil
desprezo.
- Então vai - ele cuspiu. - E não me toque.
Eddard
- Encontraram-na, senhor.
Ned pôs-se em pé de um salto.
- Os nossos homens ou os dos Lannister?
- Foi Jory - respondeu o intendente Vayon Poole. - Não lhe
fizeram mal.
- Graças aos deuses - Ned respondeu. Seus homens
andavam à procura de Arya já há qua tro dias, mas os
homens da rainha também participavam da busca. - Onde
ela está? Diga a Jory que a traga para cá imediatamente.
- Lamento, senhor - disse Poole. - Os guardas do portão
eram homens dos Lannister e informaram a rainha quando
Jory a trouxe. Ela foi levada diretamente perante o re i...
- Maldita seja aquela mulher! - Ned amaldiçoou, caminhando
a passos largos para a porta. - Vá à procura de Sansa e a
traga à sala de audiências. Sua versão pode ser necessária
- desceu os degraus da torre submerso numa raiva rubra.
Ele próprio dirigira as buscas durante os primeiros três
dias, e quase não dormira uma hora desde o
desaparecimento de Arya. Naquela manhã estivera tão
desanimado e cansado que quase não conseguira se
levantar, mas agora tinha no corpo sua fúria, enchendo -o
de força.
Homens o chamaram quando atravessou o pátio do
castelo, mas, em sua pressa, Ned os igno rou. Teria
corrido, mas ainda era a Mão do Rei, e uma Mão deve
manter a dignidade. Estava cons ciente dos olhares que o
seguiam, das vozes murmuradas que interrogavam sobre o
que ele faria,
O castelo era um modesto domínio a meio dia de viagem
para sul do Tridente. A comitiva real impusera -se como
um hóspede não convidado do senhor do domínio, Sor
Raymun Darry, enquanto eram conduzidas as buscas por
Arya e pelo filho do carnicei ro em ambas as margens do
rio. Não eram visitantes bem -vindos. Sor Raymun vivia
sob a paz do rei, mas a família lutara no Tridente pelos
estandartes do dragão de Rhaegar, e os três irmãos mais
velhos tinham mor rido ali, uma verdade que nem Robert
nem Sor Raymun tinham esquecido. Com os homens do
rei, os de Darry, os dos Lannister e os dos Stark, todos
apinhados num castelo que era muito menor que o
necessário para recebê -los juntos, as tensões ardiam
quentes e pesadas.
O rei apropriara-se da sala de audiências de Sor Raymun,
e foi aí que Ned os encontrou. A sala estava cheia de
gente quando entrou num impulso. Demasiado cheia,
pensou; a sós, ele e Robert poderiam ser capazes de tratar
o assunto de forma amigável.
Robert estava afundado na cadeira alta de Da rry, na
extremidade mais distante da sala, com uma expressão
fechada e carrancuda. Cersei Lannister e o filho
encontravam-se em pé ao seu lado. A rainha tinha a mão
pousada no ombro de Joffrey, Espessas ataduras de seda
ainda cobriam o braço do rapaz.
Arya estava no centro da sala, só com Jory Cassei, com
todos os olhos pousados nela.
- Arya - chamou Ned em voz alta. E foi falar com ela,
fazendo ressoar as botas no chão de pedra. Quando o viu,
ela gritou e começou a soluçar.
Ned caiu sobre um joelho e a to mou nos braços. Ela
tremia.
- Lamento - soluçou -, lamento, lamento.
- Eu sei - ele disse, Ela parecia tão minúscula nos seus
braços, nada mais que uma menininha magricela. Era
difícil compreender como causara tantos problemas. - Está
ferida?
- Não - seu rosto estava sujo, e as lágrimas deixaram
trilhos cor-de-rosa nas bochechas. - Tenho alguma fome.
Comi umas frutinhas, mas não havia mais nada.
- Em breve a alimentaremos - prometeu Ned, erguendo-se
para encarar o rei. - O que significa isto? - seus olhos
varreram a sala em busca de rostos amistosos. Sem contar
com seus homens, eram muito poucos. Sor Raymun Darry
reservava bem a expressão. Lorde Renly ostentava um
meio sorriso que podia significar qualquer coisa, e o velho
Sor Barristan tinha uma expressão grave; o resto eram
homens dos Lannister, hostis. Sua única sorte era que
tanto Jaime Lannister como Sandor Clegane não se
encontravam ali, porque ainda dirigiam buscas a norte do
Tridente, - Por que motivo não fui avisado de que minha
filha foi encontrada? - Ned exigiu saber, fazendo a voz
ressoar. - Por que não me foi trazida de imediato?
Falava para Robert, mas foi Cersei Lannister quem
respondeu.
- Como ousa falar assim ao seu rei?
Ao ouvir aquilo, o rei agitou -se.
- Silêncio, mulher - ele a silenciou. Endireitou-se no
assento. - Lamento, Ned. Não quis assustar a menina.
Pareceu melhor trazê -la aqui e despachar o assunto
rapidamente.
- E que assunto é este? - Ned tinha a voz gelada.
A rainha deu um passo à frente.
- Sabe perfeitamente bem, Stark. Esta sua meni na atacou
meu filho. Ela e o filho de carni ceiro. Aquele animal que
ela tem tentou arrancar o braço de Joffrey.
- Isso não é verdade - disse Arya em voz alta. - Ela só o
mordeu um pouco. Ele estava fazendo mal a Mycah.
- Joff contou-nos o que aconteceu - disse a rainha. - Você
e o filho do carniceiro bateram nele com paus enquanto
você atiçava o lobo.
- Não foi assim que as coisas se passaram - disse Arya, de
novo perto das lágrimas. Ned pôs-lhe a mão no ombro.
- Foi, sim, senhora! - insistiu Príncipe Joffrey. - Todos me
atacaram, e ela atirou a Dente de Leão ao rio! - Ned
reparou que ele sequer olhava para Arya enquanto falava.
- Mentiroso! - gritou Arya.
- Cale-se! - gritou o príncipe.
- Basta! - rugiu o rei, erguendo-se da cadeira, com a voz
carregada de irritação. Ca iu o silêncio. Robert lançou um
olhar ameaçador a Arya.
- E agora, criança, vai me contar o que aconteceu. Vai
contar tudo, e somente a verdade. Men tir a um rei é um
grande crime - depois olhou para o filho. - Quando ela
acabar, será a sua vez. Até lá, ten ha cuidado com a língua.
Quando Arya começou sua história, Ned ouviu a porta
abrir atrás de si, olhou de relance por cima do ombro e
viu Vayon Poole entrar com Sansa. Ficaram em silêncio no
fundo da sala enquanto Arya falava. Quando chegou à
parte em que atirava a espada de Joffrey no meio do
Tridente, Renly Baratheon desatou a rir. O rei ficou
irritado.
- Sor Barristan, escolte meu irmão para fora da sala antes
que se engasgue.
Lorde Renly abafou o riso.
- Meu irmão é demasiado bondoso. Eu consigo encontr ar
a porta sozinho - fez uma reverência a Joffrey. - Talvez
mais tarde tenha oportunidade de me contar como foi que
uma menina de nove anos e do tamanho de um rato -dagua
conseguiu desarmá-lo com um pau de vassoura e atirar
sua espada ao rio - quando a porta se fechava atrás dele,
Ned o ouviu dizer: - Dente de Leão - e soltar outra
gargalhada.
Príncipe Joffrey estava pálido ao iniciar sua versão muito
diferente dos acontecimentos. Quando o filho acabou de
falar, o rei ergueu-se pesadamente da cadeira com um a
expressão de quem queria estar em qualquer lugar, menos
ali.
- O que, com todos os sete infernos, devo eu pensar? Ele
diz uma coisa e ela, outra.
- Eles não eram os únicos presentes - disse Ned. - Sansa,
venha cá - Ned ouvira sua versão da história na noite em
que Arya desaparecera. Conhecia a verdade. - Conte-nos o
que se passou.
A filha mais velha deu um passo hesitante à frente. Vestia
veludo azul debruado de branco e usava uma corrente de
prata em volta do pescoço. Os espessos cabelos ruivos
tinham sido escovados até brilharem. Olhou para a irmã, e
depois para o jovem príncipe.
- Não sei - disse com voz chorosa, com uma expressão de
quem queria fugir. - Não me lembro. Aconteceu tudo tão
depressa, não vi...
- Sua nojenta! - Arya guinchou. Saltou sobre a irmã como
uma seta, atirando Sansa ao chão, enchendo -a de socos. -
Mentirosa, mentirosa, mentirosa, mentirosa.
- Arya, pare com isso! - Ned gritou. Jory a puxou de cima da
irmã ainda agitando os braços. Sansa estava pálida e
tremendo quando Ned a colocou de novo em pé. - Está
machucada? - perguntou, mas ela estava de olhos fixos em
Arya e não pareceu ouvi-lo.
- A menina é tão selvagem como aquele seu animal
nojento - disse Cersei Lannister. - Robert, quero vê-la
punida.
- Sete infernos - praguejou Robert. - Cersei, olhe para ela.
É uma criança. Que quer que eu faça, que a chicoteie
pelas ruas? Com os diabos, as crianças lutam. Já acabou.
Não foi feito nenhum mal duradouro.
A rainha estava furiosa.
- Joff ficará com aquelas cicatrizes para o resto da vida.
Robert Baratheon olhou para o filho mais velho.
- Pois que fique. Talvez lhe ensinem uma lição. Ned, trate
de disciplinar sua filha. Eu farei o mesmo com meu filho.
- De bom grado, Vossa Graça - Ned respondeu, bastante
aliviado.
Robert começou a se afastar, mas a rain ha ainda não tinha
terminado.
- E o lobo gigante? - ela gritou para suas costas. - E o
animal que mordeu seu filho? O rei parou, virou -se,
franziu a sobrancelha.
- Tinha me esquecido do maldito lobo.
Ned pôde ver Arya ficar tensa entre os braços de Jory,
que falou rapidamente.
- Não encontramos nenhum sinal do lobo gigante, Vossa
Graça.
O rei não pareceu infeliz com a notícia.
- Não? Pois que assim seja.
A rainha ergueu a voz.
- Cem dragões de ouro ao homem que me trouxer sua
pele!
- Uma pele bem cara - resmungou Robert. - Não tomarei
parte disto, mulher. Bem pode comprar as suas peles com
o ouro dos Lannister.
A rainha o olhou com frieza.
- Eu não o imaginava capaz de tamanho avaro. O rei com
quem pensei casar -me teria disposto uma pele de lobo
sobre a minha cama antes de o sol se pôr.
O rosto de Robert escureceu de ira.
- Isso seria um belo truque sem um lobo.
- Nós temos um lobo - disse Cersei Lannister. Sua voz
estava muito calma, mas seus olhos verdes brilhavam de
triunfo.
Precisaram todos de um momento para compre ender suas
palavras, mas, quando consegui ram, o rei encolheu os
ombros, irritado.
- Como quiser. Que Sor Ilyn trate do assunto.
- Robert, não pode estar falando a sério - Ned protestou.
O rei não estava com disposição para mais discussões.
- Basta, Ned, não quero ouvir mais nada. Um lobo gigante
é um animal selvagem. Mais cedo ou mais tarde teria se
virado contra sua filha tal como o outro se virou contra
meu filho. Arranje-lhe um cão, ela ficará mais feliz assim.
Foi então que Sansa pareceu finalmente compreender.
Seus olhos estavam assustados ao dirigi -los para o pai.
- Ele não está falando da Lady, está? - ela viu a verdade
no rosto de Ned.
- Não - disse. - Não, a Lady não, a Lady não mordeu
ninguém, ela é boa...
- Lady não estava lá - gritou Arya em tom zang ado. -
Deixem-na em paz!
- Impeça-os - suplicou Sansa. - Não deixe que façam isto,
por favor, por favor, não foi a Lady, foi a Nymeria, foi
Arya, não podem, não foi a Lady, não deixe que eles
machuquem Lady, eu faço com que ela seja boa, prometo,
prometo... - começou a chorar.
Tudo o que Ned pôde fazer foi tomá -la nos braços e
consolá-la enquanto chorava. Olhou para o outro lado da
sala, para Robert. Seu velho amigo, mais próximo que um
irmão.
- Por favor, Robert. Pelo amor que me tem. Pelo amor que
tinha à minha irmã. Por favor. O rei olhou para eles por
um longo momento, depois virou -se para a mulher,
- Maldita seja, Cersei - disse com repugnância,
Ned pôs-se em pé, libertando-se gentilmente do abraço de
Sansa. Todo o cansaço dos últi mos quatro dias tinha
regressado.
- Então o faça, Robert - disse, numa voz fria e afiada
como aço. - Pelo menos, tenha a cora gem de fazê-lo.
Robert olhou para Ned com olhos baços e mortos, e saiu
sem uma palavra, com passos pesa dos como chumbo. O
silêncio encheu a sala.
- Onde está o lobo gigante? - perguntou Cersei Lannister
quando o marido saiu. Ao seu lado Príncipe Joffrey sorria.
- O animal está acorrentado ao lado da casa do portão,
Vossa Graça - respondeu relutante mente Sor Barristan
Selmy.
- Mande chamar Ilyn Payne.
- Não - disse Ned. - Jory, leve as meninas para os quartos
e me traga Gelo - as palavras tinham o gosto da bílis na
garganta, mas ele as forçou sair. - Se tem de ser feito, eu
o farei.
Cersei Lannister olhou-o com suspeita.
- Você, Stark? Isto é algum truque? Por q ue faria uma
coisa dessas?
Todos o olhavam, mas era o olhar de Sansa que cortava.
- Ela pertence ao Norte. Merece mais que um carrasco.
Saiu da sala com os olhos ardendo e os lamentos da filha
ecoando em seus ouvidos, e encontrou a cria de lobo
gigante onde a tinham acorrentado. Ned sentou -se a seu
lado por um momento.
- Lady - disse, saboreando o nome. Nunca prestara
grande atenção aos nomes que as crian ças tinham
escolhido, mas olhando -a agora compreendeu que Sansa
tinha escolhido bem. Era a menor da ninhada, a mais
bonita, a mais gentil e confiante. A loba o olhou com
brilhantes olhos dourados, e ele afagou -lhe o espesso pelo
cinzento.
Pouco tempo depois, Jory trouxe-lhe Gelo.
Quando acabou, disse:
- Escolha quatro homens e ordene que transportem o
corpo para o Norte. Enterrem-na em Winterfell.
- Toda essa distância? - perguntou Jory, espantado.
- Toda essa distância - Ned afirmou. - A mulher Lannister
nunca terá esta pele. Regressava à torre para se abandonar
por fim ao sono, quando Sandor Clegane e seus ca valeiros
atravessaram com estrondo o portão do castelo,
regressando de sua caçada.
Havia algo atirado sobre a garupa de seu cavalo de
batalha, uma forma pesada enrolada num manto
ensanguentado.
- Nenhum sinal da sua filha, Mão - disse o Cão de Caça
com voz áspera -, mas o dia não foi um desperdício
completo. Encontramos seu animalzinho de estimação -
esticou o braço para trás e atirou o fardo de cima do
cavalo, fazendo-o cair com um baque surdo à frente de
Ned.
Dobrando-se, Ned afastou o manto, temendo as palavras
que teria de encontrar para Arya, mas afinal não se
tratava de Nymeria. Era o filho do carniceiro, Mycah, com
o corpo coberto de sangue seco. Tinha sido quase cortado
ao meio, do ombro à cintura, por um terrível golpe dado
de cima.
- Você o matou de cima do cavalo - disse Ned.
Os olhos do Cão de Caça pareceram cintilar através do
aço daquele hediondo elmo em forma de cabeça de cão.
- Ele fugiu - olhou para a cara de Ned e soltou uma
gargalhada. - Mas não muito depressa.
Bran
Era como se estivesse caindo há anos.
Voe, sussurrou uma voz na escuridão, mas Bran não sabia
voar e, portanto, tudo o que podia fazer era cair.
Meistre Luwin moldou um rapazinho de barro, cozeu -o
até ficar duro e quebradiço, vestiu-o com a roupa de Bran
e atirou-o de um telhado. Bran recordou o modo como se
estilhaçara.
- Mas eu nunca caio - disse, já caindo.
O chão estava tão longe que quase não conseguia
distingui-lo
através
das
névoas
cinzentas
que
turbilhonavam à sua volta, mas podia sentir que caía
muito depressa, e sabia o que o esperava lá embaixo.
Mesmo nos sonhos, não é possível cair para sempre. Sabia
que acordaria um instante antes de atingir o solo. Sempre
se acorda um instante antes de atingir o solo.
E se não acordar?, perguntou a voz.
O chão estava agora mais per to, ainda distante, a um
milhar de milhas de distância, mas mais perto do que
estivera. Ali, na escuridão, fazia frio. Não havia sol, nem
estrelas, apenas o solo, lá embaixo, que subia para
esmagá-lo, e as névoas cinzentas, e a voz sussurrada.
Desejou chorar.
Não chore. Voe.
- Não posso voar - disse Bran. - Não posso, não posso...
Como sabe? Alguma vez já tentou?
A voz era aguda e fraca. Bran olhou em volta para ver de
onde vinha. Um corvo descia com ele, em espiral, longe de
seu alcance, seguindo-o na queda.
- Ajude-me - disse.
Estou tentando, respondeu o corvo. Olha, tem algum milho?
Bran levou a mão ao bolso enquanto a escuridão girava,
estonteante, à sua volta. Quando ti rou a mão, grãos
dourados deslizaram por entre os dedos, para o ar. E
passaram a cair com ele. O corvo pousou em sua mão e
pôs-se a comer.
- É mesmo um corvo? - perguntou Bran.
Está mesmo caindo?, retorquiu o corvo.
- É só um sonho - disse Bran.
- Será?, perguntou o corvo.
- Eu acordo quando atingir o chão - Bran respondeu à ave.
Você morre quando atingir o chão, disse o corvo. Pôs-se de
novo a comer milho.
Bran olhou para baixo. Conseguia agora distinguir
montanhas, com picos brancos de neve, e as fitas
prateadas de rios em bosques escuros. Fechou os olhos e
começou a chorar.
Isso não serve para nada, disse o corvo. Já te disse, a resposta é
voar, não chorar. Quão difícil pode ser? Eu estou voando. O corvo
entregou-se ao ar e esvoaçou em torno da mão de Bran.
- Você tem asas - fez notar Bran.
Talvez você também tenha.
Bran apalpou os ombros, à procura de penas.
Há diferentes tipos de asas, disse o corvo.
Bran olhava os braços e as pernas. Era tão magro, só pele,
toda esticada por cima de ossos. Teria sido sempre assim
tão magro? Tentou se lembrar. Um rosto nadou até ele,
saído da névoa cinzenta, brilhando, luminoso, dourado.
- As coisas que eu faço por amor - disse o rosto.
Bran gritou.
O corvo levantou vôo, grasnando.
Isso, não, guinchou para Bran. Esquece, não precisa disso agora,
ponha-o de lado, faça-o desaparecer. Pousou no ombro de Bran,
deu-lhe bicadas, e o brilhante rosto dourado desapareceu.
Bran estava caindo mais depressa do que nunca. As
névoas cinzentas uivavam em seu redor enquanto
mergulhava para a terra, embaixo.
- O que você está me fazendo? - perguntou ao corvo,
choroso.
- Estou lhe ensinando a voar.
- Não posso voar!
Está voando agora mesmo.
- Estou caindo!
Todos os vôos começam com uma queda, disse o corvo. Olhe para
baixo.
- Tenho medo...
- OLHE PARA BAIXO!
Bran olhou para baixo e sentiu as entranhas se
transformarem em água. O chão corria agora em sua
direção. O mundo inteiro espalhava -se por baixo dele,
uma tapeçaria de brancos, marrons e verdes. Via tudo
com tanta clareza que, por um momento, se esqueceu de
ter medo. Conseguia ver todo o reino e toda a gente que
nele havia.
Viu Winterfell como as águias o viam, as grandes torres
que pareciam baixas e atarracadas vistas de cima, as
muralhas do castelo transformadas em simples linhas
traçadas na terra. Viu Meistre Luwin em sua varanda,
estudando o céu através de um tubo de bro nze polido e
franzindo a testa enquanto tomava notas num livro. Viu o
irmão Robb, mais alto e mais forte do que se lembrava,
praticando esgrima no pátio com aço verdadeiro nas
mãos. Viu Hodor, o gigante simplório dos estábulos,
transportando uma bigorna para a forja de Mikken,
levando-a ao ombro com tanta facilidade como outro
homem levaria um fardo de palha. No coração do bosque
sagrado, o grande represeiro branco pairava sobre o seu
reflexo na lagoa negra, com as folhas a bater sob um
vento gelado. Quando sentiu que Bran o observava,
ergueu os olhos das águas paradas e devolveu -lhe um
olhar sábio.
Olhou para leste e viu uma galé que se apressava através
das águas da Dentada. Viu sua mãe, sentada, só, numa
cabine, olhando para uma faca manchada de sangue
pousada sobre a mesa à sua frente, enquanto os
remadores puxavam pelos remos e Sor Rodrik se dobrava
sobre uma amurada, tremendo com convulsões. Levantava -
se uma tempestade à frente do barco, um vasto bramido
escuro flagelado por relâmpagos, mas, de alguma maneira,
eles não conseguiam vê -la.
Olhou para o sul e viu a grande corrente azul -esverdeada
do Tridente. Viu o pai suplicar ao rei, com dor gravada no
rosto. Viu Sansa chorar até adormecer, à noite, e Arya
guardar seus se gredos bem fundo no coração. Hav ia
sombras a toda a volta. Uma das sombras era escura como
cinza, com o terrível rosto de um cão de caça. Outra
estava armada como o sol, dourada e bela.
Sobre ambas erguia-se um gigante numa armadura de
pedra, mas, quando abriu a viseira, nada havia lá de ntro a
não ser escuridão e um espesso sangue negro.
Ergueu os olhos e viu com clareza para lá do mar estreito,
viu as Cidades Livres, o mar verde dothraki e, mais além,
até Vaes Dothrak, no sopé de sua montanha, até as terras
fabulosas do Mar de Jade, até Ashhai da Sombra, onde se
agitam dragões ao nascer do sol.
Finalmente olhou para o norte. Viu a Muralha brilhar
como cristal azul, e o irmão bastardo Jon dormir sozinho
numa cama fria, com a pele ficando branca e dura à
medida que a memória de todo o calor ia escapando dele.
E olhou para lá da Muralha, para lá de florestas sem fim
sob um manto de neve, para lá da costa gelada e dos
grandes rios azuis esbranquiçados de gelo e das planícies
mortas onde nada crescia nem vivia. Olhou para o norte,
e para norte, e para norte, para a cortina de luz no fim
do mundo, e então para lá dessa cortina. Olhou para as
profundezas do coração do inverno, e então gritou, com
medo, e o calor das lágrimas queimou-lhe o rosto.
Agora você sabe, sussurrou o corvo ao pousar no seu ombro.
Agora sabe por que deve viver.
- Por quê? - disse Bran, sem compreender, e caindo,
caindo.
- Porque o inverno está para chegar.
Bran olhou para o corvo em seu ombro, e o corvo
devolveu-lhe o olhar. Possuía três olhos, e o terceiro
estava cheio de u ma terrível sabedoria. Bran olhou para
baixo. Nada havia agora abaixo dele além de neve, frio e
morte, um vazio gelado onde agulhas denteadas de gelo
azul esbranquiçado esperavam para abraçá-lo. Voavam em
sua direção como lanças. Viu os ossos de mil outro s
sonhadores empalados em suas pontas. Sentia um medo
desesperador.
- Pode um homem continuar a ser valente se tiver medo?
- ouviu sua voz dizer, uma voz pequena e distante.
E a voz de seu pai lhe respondeu.
- Essa é a única maneira de um homem ser valente . E
agora, Bran, insistiu o corvo. Escolhe. Voa ou morre. A morte
estendeu as mãos para ele, gritando.
Bran abriu os braços e voou.
Asas invisíveis beberam o vento e encheram-se, e
empurraram-no para cima. As terríveis agu lhas de gelo
afastaram-se lá embaixo. O céu abriu-se lá em cima. Bran
pairou. Era melhor que escalar. Era melhor que qualquer
outra coisa. O mundo encolheu por baixo dele.
- Estou voando! - gritou, deliciado.
Já percebi, disse o corvo de três olhos. Levantou vô o,
batendo as asas contra o rosto de Bran, reduzindo -lhe a
velocidade, cegando -o. O rapaz hesitou no ar quando as
asas da ave bateram no seu rosto. O bico do corvo
apunhalou-o ferozmente, e Bran sentiu uma súbita dor
cegante no meio da testa, entre os olhos.
- O que está fazendo? - guinchou.
O corvo abriu o bico e grasnou, um estridente grito de
medo, e as névoas cinzentas estreme ceram, rodopiaram à
sua volta e rasgaram-se como um véu, e ele viu que o
corvo era na realidade uma mulher, uma criada com
longos cabelos negros, e ele a co nhecia de algum lugar, de
Winterfell, sim, era isso, agora se lembrava dela, e então
compreendeu que estava em Winterfell, numa cama, num
quarto gelado qualquer, numa torre, e a mulher de
cabelos negros deixara uma bacia de água estilhaçar-se no
chão e corria pelos degraus abaixo gritando: "Ele está
acordado, ele está acordado, ele está acordado".
Bran levou a mão à testa, entre os olhos. O lugar onde o
corvo bicara ainda ardia, mas não havia nada, nem sangue,
nem ferida. Sentiu-se fraco e tonto. Tentou sai r da cama,
mas nada aconteceu.
E então sentiu um movimento ao lado da cama, e algo
pousou agilmente sobre suas pernas. Nada sentiu. Um par
de olhos amarelos olhava os seus, brilhando como o sol. A
janela estava aberta e fazia frio no quarto, mas o calor
que vinha do lobo envolveu-o como um banho quente.
Bran compreendeu que se tratava de sua cria... ou não? O
lobo estava tão grande. Estendeu a mão para lhe fazer uma
festa, uma mão que tremia como uma folha.
Quando o irmão Robb entrou correndo no quarto, sem
fôlego por causa dos degraus da torre acima, o lobo
gigante lambia o rosto de Bran.
Bran ergueu os olhos calmamente.
- O nome dele é Verão - ele disse.
Catelyn
- Chegaremos a Porto Real dentro de uma hora. Catelyn
afastou-se da amurada e forçou-se a sorrir.
- Vossos remadores trabalharam bem por nós, capitão.
Cada um receberá um veado de prata, em sinal da minha
gratidão.
Capitão Moreo Tumitis concedeu-lhe uma meia reverência.
- E demasiado generosa, Senhora Stark. A honra de
transportar uma grande senho ra como vós é toda a
recompensa de que necessitam.
- Mas mesmo assim receberão a prata.
Moreo sorriu.
- Como desejar - falava a língua comum fluentemente,
com não mais que um ligeiro sinal de sotaque tyroshi.
Dissera-lhe que já percorria o mar estreito ha via trinta
anos, como remador, contramestre e, finalmente, capitão
de suas próprias galés comerciais. O Dançarino da Tempes-
tade era seu quarto navio, e o mais rápido, uma galé de
dois mastros e sessenta remos.
Fora certamente o mais rápido dos navios disp oníveis em
Porto Branco quando Catelyn e Sor Rodrik Cassei
chegaram do seu impetuoso galope ao longo do rio. Os
tyroshis eram célebres pela sua avareza, e Sor Rodrik
argumentara em favor de contratarem uma corveta de
pesca vinda das Três Irmãs, mas Catelyn insistira na galé.
Ainda bem. Os ventos tinham soprado contrários durante
a maior parte da viagem, e sem os remos da galé ainda
estariam tentando ultrapassar os Dedos, em vez de
deslizarem em direção a Porto Real e ao fim da travessia.
Tão perto, pensou. Sob as ataduras de linho, seus dedos
ainda latejavam nos lugares onde o punhal penetrara.
Catelyn sentia a dor como seu chicote, que existia para
que não esquecesse. Não conseguia dobrar os últimos dois
dedos da mão esquerda, e os outros nunca mais seriam
destros. Mas era um preço bem pequeno a pagar pela vida
de Bran.
Sor Rodrik escolheu aquele momento para aparecer no
convés.
- Meu bom amigo - disse Moreo através da barba verde e
bifurcada. Os tyroshis adoravam cores viv as, mesmo nos
pelos faciais. - É tão bom vê-lo com melhor aspecto.
- Sim - concordou Sor Rodrik. - Já há quase dois dias que
não desejo morrer - fez uma reverência a Catelyn. -
Minha senhora.
E estava com melhor aspecto. Um pouco mais magro do
que era quando partiram de Porto Branco, mas quase ele
próprio de novo. Os ventos fortes da Dentada e a dureza
do mar estreito não se conjugavam com ele, e quase fora
atirado borda afora quando a tempestade os apanhara
inesperadamente ao largo de Pedra do Dragão, mas de
algum modo conseguira agarrar -se a uma corda, até que
três dos homens de Moreo lograram salvá-lo e o levaram
em segurança para o interior do navio.
- O capitão acaba de dizer-me que a nossa viagem está
quase no fim - disse ela. Sor Rodrik conseguiu lhe dar um
sorriso fatigado.
- Tão depressa? - parecia estranho sem as grandes suíças
brancas; de certo modo menor, me nos feroz e dez anos
mais velho. Mas na Dentada parecera prudente submetê -
las à navalha de um tripulante depois de terem se sujado
irremediavelmente, pela terceira vez, quando ele se
inclinou sobre a amurada para vomitar contra os
turbilhões de vento.
- Vou deixá-los discutindo seus assuntos - disse o capitão
Moreo. Fez uma vénia e afastou-se. A galé deslizava sobre
a água como uma libélula, com os remos subindo e
descendo em perfeita cadência. Sor Rodrik apoiou-se na
amurada e observou a costa que ia passando.
- Não tenho sido o mais valente dos protetores. Catelyn
tocou-lhe o braço.
- Estamos aqui, Sor Rodrik, e em segurança. É tudo o que
realmente importa - sua mão tateou sob o manto, com os
dedos rígidos e desajeitados. Ainda trazia o punhal junto
a si. Descobrira que precisava tocá-lo de vez em quando
para se tranquilizar. - Agora temos de encontrar o mestre
de armas do rei e rezar para que ele seja de confiança.
- Sor Aron Santagar é um homem vaidoso, mas honesto -
a mão de Sor Rodrik subiu ao rosto para afagar as suíças
e descobriu uma vez mais que elas tinham desaparecido.
Pareceu atrapalhado. - Ele pode conhecer a lâmina, sim... ,
mas, minha senhora, no momento em que desem -
barcarmos, ficaremos em risco. E há quem, na corte, a
reconheça à primeira vista.
A boca de Catelyn apertou-se.
- Mindinho - murmurou. Seu rosto surgiu -lhe em frente
aos olhos; um rosto de rapaz, em bora já não o fosse. Seu
pai morrera havia vários anos, e ele era agora Lorde
Baelish, mas ainda o chamavam Mindinho. O irmão de
Catelyn, Edmure, dera-lhe esse nome, há muito tempo, em
Correrrio. Os modestos domínios da família de Petyr
ficavam no menor dos Dedos, e ele tinha sido baixo e
magro para sua idade.
Sor Rodrik limpou a garganta.
- Uma vez, Lorde Baelish, ah... - seu pensamento partiu,
incerto, em busca das palavras delicadas. Mas Catelyn
parecia buscar mais que delicadeza.
- Ele foi protegido de meu pai. Crescemos juntos em
Correrrio. Eu pensava nele como um i rmão, mas seus
sentimentos por mim eram... mais do que fraternais.
Quando foi anunciado que eu deveria me casar com
Brandon Stark, Petyr lançou um desafio pelo direito à
minha mão. Era uma loucura. Brandon tinha vinte anos,
Petyr, pouco mais de quinze. Tiv e de suplicar a Bran don
que poupasse a vida de Petyr. Mas ele o deixou com uma
cicatriz. Depois disso, meu pai o mandou embora. Nunca
mais o vi - ergueu o rosto contra os borrifos das ondas,
como se o vento fresco pudesse levar as recordações para
longe. - Escreveu-me para Correrrio depois de Brandon
ser morto, mas queimei a carta sem ler. Já então sabia
que Ned casaria comigo no lugar do irmão.
Os dedos de Sor Rodrik tatearam uma vez mais em busca
das suíças inexistentes.
- Hoje Mindinho tem assento no pequeno conselho.
- Eu sabia que ele iria longe - disse Catelyn. - Sempre foi
inteligente, mesmo ainda rapaz, mas uma coisa é ser
inteligente, e outra é ser sábio. Pergunto a mim mesma o
que os anos lhe terão feito.
Bem acima de suas cabeças, os vigias cantaram do topo
das velas. Capitão Moreo precipitou--se pelo convés,
dando ordens, e o Dançarino da Tempestade rebentou numa
atividade frenética enquanto Porto Real surgia à vista em
cima de suas três grandes colinas.
Catelyn sabia que trezentos anos antes aquelas elevações
estavam cobertas por florestas, e só um punhado de
pescadores vivia na margem norte da Torrente da Água
Negra, onde esse rio rá pido e profundo desaguava no mar.
Então, Aegon, o Conquistador, zarpara de Pedra do
Dragão. Fora ali que seu exército desembarcara, e no topo
da colina mais alta construíra seu primeiro e rude
baluarte de madeira e terra.
Agora a cidade cobria a costa até tão longe quanto
Catelyn conseguia ver; mansões, caramanchões e celeiros,
armazéns feitos de tijolo e estalagens e estábulos
comerciais de madeira, tabernas, cemitérios e bordéis,
tudo empilhado, uns edifícios sobre os outros. Mesmo
àquela distância, conseguia ouvir o clamor do mercado de
peixe. Entre os edifícios, estendiam -se estradas largas
debruadas de árvores, sinuosas ruas vazias e vielas tão
estreitas que dois homens não poderiam nelas caminhar
lado a lado. A colina de Visenya estava coroada pelo
Grande Septo de Baelor, com suas sete torres de cristal.
Do outro lado da cidade, na colina de Rhaenys, erguiam-se
os muros enegrecidos do Poço dos Dragões, com sua
enorme cúpula caída em ruína, as portas de bronze
fechadas havia já um século. A Rua das Irmãs corria entre
os dois edifícios, reta como uma seta. As muralhas da
cidade erguiam-se a distância, altas e fortes.
Uma centena de desembarcadouros cobria a margem da
cidade, e o porto estava repleto de navios. Barcos de
pesca de águas profundas e correios do rio chegavam e
partiam, barqueiros remavam de um lado para o outro na
Torrente da Água Negra, galés comerciais d escarregavam
produtos vindos de Bravos, Pentos e Lys. Catelyn espiou a
ornamentada barcaça da rainha, amar rada ao lado de um
gordo baleeiro vindo do Porto de Ibben, com o casco
enegrecido de piche, enquanto a montante uma dúzia de
esbeltos navios de guerra dourados repousava em suas
docas, com as velas enroladas e os cruéis esporões de
ferro a afagar a água,
E acima de tudo, lançando um olhar carrancudo da grande
colina de Aegon, estava a Forta leza Vermelha, sete
enormes torres cilíndricas coroadas por ba luartes de
ferro,
um
imenso
e
sombrio
contraforte,
salões
abobadados e pontes cobertas, casernas, masmorras e
celeiros, maciças muralhas de barragem cravejadas de
guaritas para arqueiros, tudo construído de pedra
vermelha-clara, Aegon, o Conquistador, ord enara sua
construção. Seu filho, Maegor, o Cruel, a completara, E
depois exigira a cabeça de todos os pedreiros, carpinteiros
e construtores que nela trabalharam. Jurara que só o
sangue do dragão podia conhecer os segredos da fortaleza
que os Senhores do Dragão tinham construído.
E, no entanto, os estandartes que agora esvoaçavam em
suas ameias eram dourados, não negros, e onde o dragão
de três cabeças antes exalara fogo, agora curveteava o
veado coroado da Casa Baratheon.
Um navio de grandes mastros das Il has do Verão estava
saindo do porto com suas velas bran cas enormes. O
Dançarino da Tempestade passou por ele, aproximando -se
firmemente da costa.
- Minha senhora - disse Sor Rodrik -, enquanto estive
acamado, planejei a melhor forma de proceder. Não deve
entrar no castelo. Eu irei em vosso lugar e trarei Sor
Aron até algum lugar seguro.
Ela estudou o velho cavaleiro enquanto a galé se
aproximava do cais. Moreo gritava no valiriano vulgar das
Cidades Livres.
- Correrá tantos riscos como eu.
Sor Rodrik sorriu.
- Julgo que não. Há pouco olhei meu reflexo na água e
quase não me reconheci a mim mes mo. Minha mãe foi a
última pessoa a me ver sem suíças, e está morta há
quarenta anos. Acredito que estou suficientemente seguro,
minha senhora.
Moreo berrou uma orde m. Como se fossem um único,
sessenta remos ergueram-se do rio, depois inverteram a
rotação, e caíram. A galé perdeu velocidade. Outro grito.
Os remos deslizaram para dentro do casco. No momento
em que o navio esbarrava na doca, marinheiros tyroshis
saltaram para terra a fim de amarrá -lo. Moreo aproximou-
se em grande azáfama, todo sorrisos.
- Porto Real, minha senhora, tal como havia ordenado, e
nunca nenhum navio fez viagem mais rápida e segura.
Necessitará de assistência no transporte de vossas coisas
para o castelo?
- Não vamos para o castelo. Talvez me possa sugerir uma
estalagem, um lugar limpo e con fortável, e não muito
longe do rio.
O tyroshi passou os dedos pela barba verde e bifurcada.
- Com certeza. Conheço vários estabelecimentos que
podem lhe convi r. Mas primeiro, se me permite a ousadia,
há o assunto da segunda parte do pagamento que
acordamos. E, bem entendido, a prata extra que teve a
bondade de prometer. Sessenta veados, julgo que era esse
o montante.
- Para os remadores - lembrou-lhe Catelyn.
- Ah, com certeza - disse Moreo. - Embora eu talvez deva
guardá-los para eles até regressar mos a Tyrosh. Para o
bem de suas esposas e filhos. Se a prata lhes for dada
aqui, minha senhora, irão perdê -la para os dados ou
gastá-la por completo numa noite de pra zer.
- Há coisas piores em que gastar dinheiro - interveio Sor
Rodrik. - O inverno está para chegar.
- Um homem deve fazer as suas próprias escolhas - disse
Catelyn. - Eles ganharam a prata. Como a gastam não me
diz respeito.
- Como desejar, minha senhora - respondeu Moreo,
fazendo uma reverência e sorrindo.
Para se assegurar de que o dinheiro chegaria ao destino,
Catelyn pagou ela própria aos rema dores, um veado para
cada homem e uma moeda de cobre para os dois homens
que transportaram suas arcas até o meio da encosta de
Visenya, onde ficava a estalagem que Moreo sugerira. Era
um velho edifício de perfil irregular que se erguia na
Viela das Enguias. A dona era uma velha enrugada com
um olho preguiçoso, que os mirou com suspeita e mordeu
a moeda que Catelyn lhe ofereceu a fim de se certificar de
que era verdadeira. Mas seus quartos eram grandes e
arejados, e Moreo jurava que seu guisado de peixe era o
mais saboroso em todos os Sete Reinos. O melhor de tudo
era que não tinha nenhum interesse em seus nomes.
- Julgo ser melhor que se mantenha afastada da sala
comum - disse Sor Rodrik, depois de terem se instalado. -
Mesmo num lugar como este, nunca se sabe quem pode
estar à espreita - usava cota de malha, um punhal e uma
espada sob um manto escuro com capuz que po dia puxar
sobre a cabeça. - Estarei de volta antes de cair a noite
com Sor Aron - prometeu. - Agora descanse, minha
senhora.
Catelyn estava cansada. A viagem fora longa e fatigante, e
já não era tão jovem. As janelas de seu quarto davam para
a viela e para telhados, com uma vista do Água Negra por
cima deles. Observou Sor Rodrik partir e caminhar em
passo vivo pelas ruas movimentadas até se perder na
multidão, e depois decidiu seguir seu conselho. O colchão
era de palha, não de penas, mas não teve dificulda de em
adormecer.
Acordou com um toque na porta.
Catelyn sentou-se de repente. Da janela viam-se os
telhados de Porto Real, vermelhos à luz do sol poente.
Dormira durante mais tempo do que planejara. Um punho
voltou a martelar na porta e uma voz gritou:
- Abra, em nome do rei.
- Um momento - ela gritou. Envolveu -se no manto. O
punhal encontrava-se sobre a mesa de cabeceira. Agarrou -
o antes de destrancar a pesada porta de madeira.
Os homens que entraram no quarto usavam a cota de
malha negra e os mantos doura dos da Patrulha da Cidade.
Seu líder sorriu ao ver o punhal na mão de Catelyn e
disse:
- Não há necessidade disso, minha senhora. Temos ordens
de escoltá-la até o castelo.
- Sob autoridade de quem? - ela perguntou.
Ele lhe mostrou uma fita. Catelyn sentiu que sua
respiração estava presa na garganta. O selo era um tejo,
em cera cinzenta.
- Petyr - disse. Tão depressa. Algo devia ter acontecido a
Sor Rodrik. Olhou para o chefe dos guardas: - Sabe quem
eu sou?
- Não, senhora - disse ele. - O Senhor Mindinho só disse
para levá-la até ele, e evitar que seja maltratada.
Catelyn anuiu.
- Pode esperar lá fora enquanto me visto.
Lavou as mãos na bacia e enrolou -as em linho limpo.
Sentiu os dedos grossos e desajeitados enquanto lutava
para atar o corpete e prender um pesado m anto marrom
em torno do pescoço. Como podia Mindinho ter sabido
que estava ali? Sor Rodrik nunca lhe diria. Podia ser
velho, mas era teimoso e impecavelmente leal. Teriam
chegado tarde demais? Teriam os Lannister chegado a
Porto Real antes deles? Não. Se fosse isso, Ned também
estaria ali, e sem dúvida que viria vê -la. Como?...
Então pensou: Moreo, O maldito tyroshi sabia quem eles
eram e onde estavam. Catelyn espe rava que o homem
tivesse obtido um bom preço pela informação.
Tinham lhe trazido um cavalo. Os candeeiros estavam
sendo acesos ao longo das ruas por que caminhavam e
Catelyn sentiu os olhos da cidade postos nela enquanto
avançava, rodeada pelos guardas de mantos dourados.
Quando chegaram à Fortaleza Vermelha, a porta le vadiça
estava abaixada e os grandes portões trancados para a
noite, mas as janelas do castelo mostravam -se vivas com
luzes tremeluzentes. Os guardas deixaram as montarias
fora da muralha e escoltaram -na por uma estreita porta
lateral, e depois ao longo de uma infinidade de degraus
até uma torre.
Ele estava sozinho na sala, sentado a uma pesada mesa de
madeira, com uma candeia de azei te a seu lado enquanto
escrevia. Quando a introduziram no aposento, pousou a
pena e olhou-a.
- Cat - disse em voz baixa.
- Por que motivo fui aqui trazida desta maneira?
Ele se levantou e fez um gesto brusco para os guardas.
- Deixem-nos - os homens partiram. - Não foi maltratada,
espero - disse, depois de os ou tros terem saído. - Dei
instruções firmes - reparou nas ataduras. - Suas mãos...
Catelyn ignorou a pergunta implícita.
- Não estou habituada a ser convocada como uma meretriz
- disse com voz gelada. - Aindr: rapaz sabia o que
significava cortesia.
- Zanguei-a, minha senhora. Essa nunca foi minha intenção
- parecia contrito. A expressão trouxe a Catelyn v ivas
memórias. Fora uma criança maliciosa, mas depois de suas
travessuras parecia sempre contrito; era um dom que
possuía. Os anos não o tinham mudado muito. Petyi tinha
sido um rapaz pequeno, e crescera até transformar -se
num homem pequeno, quatro ou cinc o centímetros mais
baixo que Catelyn, esbelto e rápido, com as feições
inteligentes que ela recordava e os mesmos olhos risonhos
cinza-esverdeados. Usava agora uma pequena barbicha
pontiaguda, e tinha traços de prata no cabelo escuro,
embora ainda não tivesse trinta anos. Com binavam bem
com o tejo de prata que prendia ao manto. Mesmo quando
criança, sempre gostara de sua prata.
- Como soube que eu estava na cidade? - ela perguntou.
- Lorde Varys sabe tudo - disse Petyr com um sorriso
malicioso. - Ele se juntará a nós em breve, mas eu quis
vê-la a sós primeiro. Foi há tanto tempo, Cat. Quantos
anos?
Catelyn ignorou a familiaridade do homem. Havia
perguntas mais importantes.
- Então foi a Aranha do Rei que me encontrou. Mindinho
encolheu-se.
- Não deve chamá-lo assim. Ele é muito sensível. Imagino
que por ser um eunuco. Nada acontece nesta cidade sem
que Varys fique sabendo. Por vezes, ele sabe das coisas
antes de elas acontecerem. Tem informantes por todo o
lado. Chama-os de seus passarinhos. Um de seus
passarinhos ouviu falar da sua visita. Felizmente, Varys
veio falar comigo primeiro.
- Por que você?
Ele encolheu os ombros.
- E por que não? Sou o mestre da moeda, o conselheiro
do rei. Selmy e Lorde Renly foram para o Norte ao
encontro de Robert, e Lorde Stannis partiu para Pedra do
Dragão, deixando só Meistre Pycelle e eu. Era a escolha
óbvia. Sempre fui amigo de sua irmã Lysa, e Varys sabe
disso.
- Saberá Varys sobre...
- Lorde Varys sabe tudo... exceto o motivo de estar aqui -
ergueu uma sobrancelha. - E por que motivo está aqui?
- É permitido a uma esposa ansiar pelo marido, e se uma
mãe precisar das filhas por perto, quem lhe dirá que não?
Mindinho soltou uma gargalhada.
- Ah, muito bem, minha senhora, mas com certeza não
espera que eu acredite nisso. Co nheço-a bem demais.
Como eram as palavras dos Tully?
A garganta dela estava seca.
- Família, Dever, Honra - recitou rigidamente. Ele de fato a
conhecia bem demais.
- Família, Dever, Honra - repetiu ele. - E todas estas
coisas requeriam que tivesse perma necido em Winterfell,
onde a nossa Mão a deixou. Não, minha senhora, algo
aconteceu. Esta sua súbita viagem sugere certa urgência.
Suplico-lhe, deixe-me ajudar. Os velhos amigos íntimos
nunca deveriam hesitar em apoiar -se uns nos outros -
ouviu-se uma suave batida na porta. - Entre - disse
Mindinho em voz alta.
O homem que atravessou a porta era roliço, perfumado,
empoado e tão desprovido de cabelos como um ovo.
Trajava uma veste de fio de ouro trançado sobre um
vestido largo de seda púrpura e, nos pés, trazia chinelos
pontiagudos de suave veludo.
- Senhora Stark - disse, tomando-lhe uma mão nas suas -,
vê-la de novo após tantos anos é uma grande alegria - sua
pele era mole e úmida, e o hálito cheirava a lilases. - Ah,
suas pobres mãos. Queimaduras, querida senh ora? Os
dedos são tão delicados... Nosso bom Meistre Pycelle faz
um bálsamo maravilhoso, mando buscar um jarro?
Catelyn puxou a mão.
- Agradeço-lhe, senhor, mas meu Meistre Luwin já tratou
de minhas dores, Varys inclinou a cabeça.
- Fiquei atrozmente triste quando soube do que aconteceu
ao seu filho. E ele tão jovem. Os deuses são cruéis.
- Nisso concordamos, Senhor Varys - ela disse. O título
não passava de uma cortesia que lhe era devida por ser
membro do conselho; Varys não era senhor de coisa
nenhuma, a não ser da teia de aranha; mestre de ninguém,
a não ser de seus segredos.
O eunuco estendeu as mãos suaves.
- Em mais do que isso, espero eu, querida senhora. Tenho
grande estima pelo seu marido, nossa nova Mão, e sei que
ambos amamos o rei Robert.
- Sim - foi forçada a dizer. - Com certeza.
- Nunca um rei foi tão amado como o nosso Robert -
observou Mindinho, sorrindo mali ciosamente. - Pelo
menos ao alcance dos ouvidos do Senhor Varys.
- Minha boa senhora - disse Varys com grande solicitude.
- Há homens nas Cidades Livres com assombrosos poderes
curativos. Basta que me diga uma palavra e mandarei
chamar um para o seu querido Bran.
- Meistre Luwin está fazendo tudo o que pode ser feito
por Bran - ela informou. Não queria falar de Bran, não ali,
não com aqueles h omens. Confiava apenas um pouco em
Mindinho, e abso lutamente nada em Varys, Não queria
deixá-los ver sua dor. - Lorde Baelish disse-me que é a
vós que devo agradecer por me trazerem até aqui.
Varys soltou um risinho de moça,
- Ah, sim. Suponho que sou cul pado. Espero que me
perdoe, bondosa senhora - instalou-se numa cadeira e
juntou as mãos. - Pergunto a mim mesmo se podemos
incomodá-la pedindo que nos mostre o punhal?
Catelyn Stark fitou o eunuco com uma descrença
atordoada. Ele era uma aranha, pensou pre cipitadamente,
um encantador, ou coisa pior. Sabia coisas que ninguém
poderia de modo algum saber, a não ser que...
- O que fez a Sor Rodrik?
Mindinho tinha perdido o fio da meada.
- Sinto-me como o cavaleiro que chega ao campo de
batalha sem sua lança. De que punhal estamos falando?
Quem é Sor Rodrik?
- Sor Rodrik Cassei é mestre de armas em Winterfell -
Varys respondeu. - Asseguro-lhe, Senhora Stark, que
absolutamente nada foi feito ao bom cavaleiro. Ele veio
até aqui esta tarde. Visitou Sor Aron Santagar n o armeiro,
e conversaram sobre um certo punhal. Por volta do pôr
do sol, saíram juntos do castelo e dirigiram-se àquele
pavoroso casebre onde estão alojados. Ainda estão lá,
bebendo na sala de estar, à espera do seu regresso. Sor
Rodrik ficou muito aflito quando não a encontrou lá.
- Como pode saber tudo isso?
- Os sussurros de passarinhos - disse Varys, sorrindo. -
Eu sei coisas, querida senhora. É essa a natureza dos
meus serviços - encolheu os ombros. - Tem o punhal
convosco, não é?
Catelyn puxou-o de dentro do manto e o atirou em cima
da mesa à frente dele.
- Aqui está. Talvez seus passarinhos possam segredar o
nome do homem a quem pertence. Varys ergueu a faca
com uma delicadeza exagerada e percorreu-lhe o gume
com o polegar.
Jorrou sangue, e ele deixou escapar um guincho e largou o
punhal sobre a mesa.
- Cuidado - disse-lhe Catelyn -, é afiado.
- Nada mantém o gume como o aço valiriano - disse
Mindinho enquanto Varys sugava o polegar ferido e
lançava a Catelyn um olhar de carrancuda advertência.
Mindinho sopesou a faca com ligeireza, sentindo -a.
Atirou-a ao ar, e voltou a apanhá-la com a outra mão. -
Que belo equilíbrio. Quer encontrar o dono, é este o
motivo desta visita? Não há necessidade de Sor Aron para
isso, minha senhora. Devia ter me procurado.
- E se o tivesse feito - disse ela -, o que me teria dito?
- Teria dito que só existe uma faca como esta em Porto
Real - pegou na lâmina com o po legar e o indicador,
ergueu-a sobre o ombro e atirou-a pela sala com uma
torção hábil de pulso. O punhal atingi u a porta e
enterrou-se profundamente na madeira de carvalho,
estremecendo. - É minha.
- Sua? - não fazia sentido. Petyr não estivera em
Winterfell.
- Até o torneio no dia do nome de Príncipe Joffrey - disse
ele, atravessando a sala para arran car o punhal da
madeira, - Apostei em Sor Jaime na justa, tal como
metade da corte - o sorriso acanhado de Petyr fazia -o
parecer meio rapaz de novo. - Quando Loras Tyrell o fez
cair do cavalo, muitos de nós ficamos um nadinha mais
pobres. Sor Jaime perdeu cem dragões de ouro, a rainha
perdeu um pendente de esmeralda, e eu perdi a minha
faca. Sua Graça obteve a esmeralda de volta, mas o
vencedor ficou com o resto.
- Quem? - Catelyn exigiu saber, com a boca seca de medo.
Seus dedos latejavam de dor.
- O Duende - disse Mindinho enquanto Lorde Varys
observava o rosto dela. - Tyrion Lannister.
Jon
O pátio ressoava com a canção das espadas.
Sob a lã negra, o couro fervido e a cota de malha, o suor
corria gelado pelo peito de Jon, enquanto ele pressionava
o ataque. Grenn ca mbaleava para trás, defendendo -se de
forma desajeitada. Quando ergueu a espada, Jon fez passar
por baixo dela um golpe circular que se esmagou contra a
parte de trás da perna do outro rapaz e o deixou
mancando. A estocada baixa de Grenn respondeu com um
golpe de cima que lhe abriu um corte no elmo. Quando o
outro tentou um golpe lateral, Jon afastou sua lâmina e
atingiu-lhe o peito com o braço envolto em cota de malha.
Grenn desequilibrou-se e caiu com força, de traseiro na
neve. Jon arrancou-lhe a espada dos dedos com um golpe
no pulso que o fez gritar de dor.
- Basta! - a voz de Sor Alliser Thorne tinha um gume que
parecia feito de aço valiriano. Grenn agarrou -se à mão.
- O bastardo quebrou meu pulso.
- O bastardo o cortou, abriu -lhe esse crânio vazio e
decepou-lhe a mão. Ou o teria feito, se essas lâminas
tivessem gume. E sorte sua que a Patrulha precise tanto
de moços de estrebaria como de patrulheiros - Sor Alliser
fez um gesto para Jeren e para o Sapo. - Ponham o
Auroque em pé, que ele tem preparativos fun erários a
fazer.
Jon tirou o elmo enquanto os outros rapazes puxavam
Grenn. O ar gelado da manhã no ros to lhe fez bem.
Apoiou-se na espada, inspirou profundamente e permitiu -
se um momento para saborear a vitória.
- Isso é uma espada, não a bengala de um v elho -
repreendeu-o Sor Alliser com voz penetrante. - Suas
pernas doem, Lorde Snow?
Jon odiava aquele nome, uma zombaria que Sor Alliser
pendurara nele no primeiro dia em que viera treinar. Os
rapazes tinham-no adotado e agora o ouvia por todo lado.
Enfiou a espada na bainha.
- Não - respondeu.
Thorne caminhou em sua direção, com o duro couro
negro sussurrando levemente enquanto se movia. Era um
homem compacto de cinquenta anos, seco e duro, com
algum cinza nos cabelos negros e olhos que eram como
lascas de ônix,
- Agora a verdade - ordenou.
- Estou cansado - Jon admitiu. Seu braço ardia por causa
do peso da longa espada, e agora que a luta tinha acabado
começava a sentir as contusões.
- Você é fraco,
- Ganhei.
- Não. O Auroque perdeu.
Um dos rapazes soltou um risinho abafado, Jon sabia que
era melhor não responder. Vencera todos os que Sor
Alliser enviara para lutar contra ele, mas nada ganhara
com isso. O mestre de armas só oferecia escárnio. Thorne
o odiava, concluíra Jon; e, claro, odiava ainda mais os
outros rapazes.
- Chega - disse-lhes Thorne. - Não suporto mais que
certa quantidade de inépcia por dia. Se os Outros alguma
vez nos atacarem, rezo para que tenham arqueiros,
porque vocês só servem para alvos de palha.
Jon seguiu os outros de volta ao armeiro, cami nhando só.
Ali caminhava só com frequência. Havia quase vinte
rapazes no grupo com quem treinava, mas a nenhum
podia chamar de amigo. A maior parte deles era dois ou
três anos mais velho, mas nenhum chegava a ser sequer
metade do lutador que Robb fora aos catorze anos.
Dareon era rápido, mas tinha medo de ser atingido. Pyp
usava a espada como um punhal, Jeren era fraco como
uma mulher e Grenn, lento e desas trado. Os golpes de
Halder
eram
brutalmente
duros,
mas
atirava -se
diretamente aos ataques do adversár io. Quanto mais
tempo passava com eles, mais Jon os desprezava.
No armeiro, Jon pendurou a espada e a bainha num
gancho na parede de pedra, ignorando os outros à sua
volta. Metodicamente, começou a despir a cota de malha,
o couro e as lãs enchar cadas de suor. Bocados de carvão
ardiam em braseiros de ferro em ambas as extremidades
da longa sala, mas Jon começou a tremer. Ali, o frio o
acompanhava sempre. Dentro de alguns anos iria se
esquecer de como era sentir -se quente.
O cansaço o atingiu subitamente enq uanto vestia os rudes
tecidos negros que eram seu ves tuário de todos os dias.
Sentou-se num banco, brincando com as ataduras do
manto. Tanto frio, pensou, recordando os salões de
Winterfell, onde as águas quentes corriam pelas paredes
como sangue pelo corpo de um homem. Pouco calor se
podia encontrar em Castelo Negro; ali, as pare des eram
frias, e as pessoas, mais frias ainda.
Ninguém lhe dissera que a Patrulha da Noite seria assim;
ninguém, exceto Tyrion Lannister. O anão oferecera-lhe a
verdade na estrada para o norte, mas então já era tarde
demais. Jon perguntava a si mesmo se o pai saberia como
era a Muralha. Achava que tinha de saber; e isso só
aumentava sua dor.
Até o tio o abandonara naquele lugar frio no fim do
mundo. Ali, o genial Benjen Stark que conhecia se
transformara numa pessoa diferente. Era Primeiro
Patrulheiro, e passava os dias e as noites com o Senhor
Comandante Mormont, o Meistre Aemon e os outros altos
oficiais, ao passo que Jon fora entregue ao comando bem
pouco afável de Sor Alliser Thorne.
Três dias depois da chegada, Jon ouvira dizer que Benjen
Stark ia levar meia dúzia de homens numa patrulha pela
Floresta Assombrada. Naquela noite, procurou o tio na
grande sala de estar de madeira e pediu para ir com ele.
Benjen recusou rudemente .
- Isto não é Winterfell - disse-lhe, enquanto cortava a
carne com um garfo e o punhal. - Na Muralha, um homem
só obtém aquilo que ganha, Você não é um patrulheiro,
Jon, não passa de um rapaz verde ainda cheirando a verão.
Estupidamente, Jon argumentou:
- Farei quinze anos no dia do meu nome. Quase um
homem feito.
Benjen Stark franziu a sobrancelha.
- É e será um rapaz até que Sor Alliser diga que está
apto para ser um homem da Patrulha da Noite. Se pensava
que seu sangue Stark lhe traria favores fáceis, enganou-se.
Quando fazemos nossos votos, pomos de lado as velhas
famílias. Seu pai terá sempre um lugar no meu coração,
mas meus irmãos agora são estes - indicou com o punhal
os homens que os rodeavam, todos eles duros, frios e
vestidos de negro.
Jon levantou-se no dia seguinte de madrugada para
assistir à partida do tio. Um de seus ho mens, grande e
feio, cantava uma canção obscena enquanto selava um
pequeno mas forte cavalo, com a respiração formando
nuvens no ar frio da manhã. Ben Stark sorriu ao ouvi-lo,
mas não teve sorrisos para o sobrinho.
- Quantas vezes terei de lhe dizer que não, Jon?
Conversaremos quando eu regressar. Enquanto observava
o tio levar o cavalo para o túnel, Jon recordara as coisas
que Tyrion Lannister lhe dissera na estrada do rei, e vira,
com o olho da mente, Ben Stark morto, com o sangue
vermelho na neve. O pensamento lhe provocou náusea. Em
que estava se transformando? Mais tarde, procurou
Fantasma na solidão da cela e enterrou a cara no espesso
pelo branco do animal.
Se tinha de estar só, faria da solidão sua armadura.
Castelo Negro não possuía um bosque sa grado, apenas um
pequeno septo e um septão bêbado, mas Jon não sentia
vontade de rezar a deuses, fossem velhos ou novos. Se
existissem, pensava, eram tão cruéis e implacáveis c omo o
inverno.
Tinha saudade de seus verdadeiros irmãos: o pequeno
Rickon, com os olhos inteligentes bri lhando enquanto
suplicava um doce; Robb, seu rival, melhor amigo e
constante companheiro; Bran, teimoso e curioso, sempre
querendo seguir Jon e Robb e juntar-se ao que quer que
fosse que estivessem fazendo. Também sentia falta das
meninas, até de Sansa, que nunca o chamava de outra
coisa a não ser "o meu meio -irmão", pois já tinha idade
para saber o que bastardo queria dizer. E Arya... tinha
ainda mais saudades dela que de Robb, aquela coisinha
magricela,
sempre
de
joelhos
esfolados,
cabelos
emaranhados e roupas rasgadas, feroz e voluntariosa. Arya
nunca parecera ajustada, nunca mais do que ele... , mas
conseguia sempre fazer Jon sorrir. Daria qual quer coisa
para estar agora com ela, despentear -lhe os cabelos uma
vez mais e observá -la fazer uma careta, ouvi-la terminar
uma frase com ele.
- Quebrou meu pulso, bastardo.
Jon ergueu os olhos ao ouvir a voz carrancuda. Grenn
erguia-se a seu lado, de pescoço gro sso e rosto vermelho,
com três dos amigos atrás dele. Reconheceu Todder, um
rapaz baixo e feio com uma voz desagradável. Todos os
recrutas o chamavam Sapo. Lembrou -se de que os outros
dois tinham sido trazidos por Yoren, violadores apanhados
nos Dedos. Esquecera-se de seus nomes. Quase nunca
falava com eles, a não ser que não pudesse evitar. Eram
brutos e rufiões, sem um resquício de honra entre os
dois.
Jon ergueu-se.
- E quebro-lhe o outro se pedir com jeitinho - Grenn
tinha dezesseis anos e era uma cabeç a mais alto que Jon.
Todos os quatro eram mais altos que ele, mas não o
assustavam. Batera-os todos no pátio.
- Se nos for conveniente, podemos quebrar você - disse
um dos violadores.
- Tentem - Jon puxou a mão para trás em busca da
espada, mas um deles ag arrou-lhe o braço e torceu-o atrás
das costas.
- Você nos faz parecer maus - queixou-se Sapo.
- Você já parecia mau antes de conhecê -lo - disse-lhe Jon.
O rapaz que agarrava seu braço deu -lhe um puxão para
cima, com força. A dor assolou -o, mas Jon não queria
gritar.
Sapo aproximou-se.
- O fidalgote tem boa boca - disse. Tinha olhos de porco,
pequenos e brilhantes. - É a boca da tua mamãe,
bastardo? O que ela era, alguma rameira? Diga-nos seu
nome. Talvez eu a tenha possuído uma vez ou duas - e
riu.
Jon retorceu-se como uma enguia e esmagou um calcanhar
no peito do pé do rapaz que o segurava. Ouviu-se um
grito de dor, e Jon se livrou. Saltou sobre Sapo, atirou-o
para trás por cima de um banco e pisou sobre seu peito,
prendendo-lhe a garganta com ambas as mão s, e batendo
a cabeça dele na terra batida.
Os dois dos Dedos puxaram-no, atirando-o rudemente ao
chão. Grenn começou a dar-lhe pontapés. Jon rolava,
tentando afastar-se dos golpes, quando uma voz
trovejante soou na obscuridade do armeiro.
- PAREM COM ISTO JÁ!