E d d a rd
Caminhava pelas criptas por baixo de Winterfell, como caminhara
mil vezes antes. Os Reis do Inverno olhavam-no ao passar com olhos
de gelo, e os lobos gigantes a seus pés viravam as grandes cabeças de
pedra e rosnavam. Por fim, chegou à tumba onde o pai dormia, com
Brandon e Lyanna a seu lado. " P r o m e t e - m e , N e d " , sussurrou a
estátua de Lyanna. T r a z i a , uma grinalda de rosas azul-claras e seus
olhos choravam sangue.
Eddard Stark saltou na cama, com o coração acelerado, os cobertores
emaranhados à sua volta. O quarto estava negro como breu, e
alguém batia à porta com força.
- Lorde Eddard - chamou sonoramente uma voz.
- Um momento - sonolento e nu, atravessou aos tropeções o quarto
escurecido. Quando abriu a porta, deparou com Tomard de punho
erguido e com Cayn com uma grande vela na mão. Entre os dois
encontrava-se o intendente do rei.
O rosto do homem podia ter sido esculpido em pedra, de tão pouco
que mostrava.
- Senhor Mão - entoou. - Sua Graça, o Rei, exige a vossa presença. De
imediato. Então Robert tinha regressado da caçada. Era mais que
tempo.
- Necessitarei de um momento para me vestir - Ned deixou o homem
à espera lá fora. Cayn o ajudou com a roupa, uma túnica de linho
branco e uma capa cinza, calças cortadas na perna envolvida em
gesso, o distintivo de seu cargo e por fim um cinto de pesados aros
de prata. Embainhou o punhal valiriano à cintura.
A Fortaleza Vermelha estava escura e quieta quando Cayn e Tomard
o escoltaram através da muralha interior. A lua pendia baixa sobre as
muralhas, quase cheia. Nos baluartes, um guarda de manto dourado
fazia a sua ronda.
Os aposentos reais ficavam na Fortaleza de Maegor, um maciço e
quadrado forte que se aninhava no coração da Fortaleza Vermelha
por trás de muralhas com três metros e meio de espessura e um
fosso seco coberto de espigões de ferro, um castelo dentro do
castelo. Sor Boros Blount guardava a extremidade mais afastada da
ponte, com a armadura de aço branco que o fazia parecer um
fantasma à luz da lua. Lá dentro, Ned passou por dois outros
cavaleiros da Guarda Real: Sor Preston Greenfield estava ao fundo
das escadas, e Sor Barristan Selmy esperava à porta do quarto do rei.
Três homens de manto branco, pensou, recordando, e sentiu-se
atravessado por um estranho frio. O rosto de Sor Barristan estava
tão pálido como a sua armadura, Ned não precisou mais do que
olhá-lo para saber que alguma coisa estava horrivelmente errada. O
intendente real abriu a porta.
- Lorde Eddard Stark, a Mão do Rei - anunciou,
- Traga-o aqui - disse a voz de Robert, estranhamente pesada.
O fogo ardia nas lareiras gêmeas situadas nas duas pontas do quarto,
enchendo-o com um lúgubre clarão vermelho. O calor que ali fazia
era sufocante. Robert jazia na cama coberta. Junto à cama pairava o
Grande Meistre Pycelle, enquanto Lorde Renly andava agitadamente
em frente das janelas fechadas. Criados iam de um lado para o outro,
alimentando o fogo de lenha e fervendo vinho. Cersei Lannister
estava sentada à beira da cama, ao lado do marido. Tinha os cabelos
em desordem, como se tivesse acabado de se levantar, mas nada
havia de sonolento nos olhos. Seguiram Ned quando Tomard e Cayn
o ajudaram a atravessar a sala. Parecia-lhe que se movia muito
lentamente, como se ainda estivesse sonhando.
O rei ainda trazia as botas. Ned viu lama seca e folhas de grama
agarradas ao couro onde os pés de Robert se projetavam da manta
que o cobria. Um gibão verde jazia no chão, rasgado e jogado fora,
com o tecido coberto de manchas vermelho-amarronzadas. O quarto
cheirava a fumaça, a sangue e a morte.
- Ned - sussurrou o rei quando o viu. O rosto estava pálido como
leite. - Vem.. mais perto. Seus homens levaram-no para mais perto.
Ned equilibrou-se com a mão na coluna da cama.
Bastava olhar para Robert para perceber como estava mal.
- Quê?.,. - começou, com um nó na garganta.
- Um javali - Lorde Renly ainda trazia as roupas verdes de caça, com
o manto pintalgado de sangue.
- Um demônio - revelou o rei. - Culpa minha. Demasiado vinho,
maldito seja eu. Errei a estocada.
- E onde estava o resto de vocês? - Ned exigiu saber de Lorde Renly.
- Onde estava Sor Barristan e a Guarda Real?
A boca de Renly retorceu-se.
- Meu irmão ordenou que nos afastássemos e o deixássemos abater o
javali sozinho.
Eddard Stark ergueu a manta.
Tinham feito o possível para fechar suas feridas, mas nem chegava
perto de ser suficiente. O javali devia ter sido um animal temível.
Rasgara o rei, com as presas, da virilha ao mamilo. As ataduras
embebidas em vinho que o Grande Meistre Pycelle aplicara já
estavam negras de sangue, e o cheiro que saía da ferida era
hediondo. O estômago de Ned deu uma volta. Deixou cair a manta.
- Fede - Robert disse, - O fedor da morte, Não pense que não o
sinto, O maldito me pegou, hã? Mas eu... eu paguei-lhe na mesma
moeda, Ned - o sorriso do rei era tão terrível quanto sua ferida, com
dentes vermelhos. - Enfiei-lhe a faca bem no olho. Pergunte-lhes se
não é verdade. Pergunte-lhes.
- É verdade - murmurou Lorde Renly. - Trouxemos a carcaça
conosco, por ordem do meu irmão.
- Para o banquete - sussurrou Robert. - Agora saiam. Todos. Preciso
falar com Ned.
- Robert, meu querido senhor... - começou Cersei.
- Eu disse s a i a m - insistiu Robert com uma sugestão da sua antiga
ferocidade. - Que parte não entendeu, mulher?
Cersei recolheu as saias e a dignidade e foi a primeira a se dirigir
para a porta. Lorde Renly e os outros a seguiram. O Grande Meistre
Pycelle deixou-se ficar, com as mãos tremendo quando ofereceu ao
rei uma taça de um espesso líquido branco.
- O leite da papoula, Vossa Graça - disse. - Beba. Para as dores -
Robert afastou a taça com uma pancada dada com as costas da mão.
- Vá embora. Dormirei em breve, velho tonto. Saia.
O Grande Meistre Pycelle lançou a Robert um olhar ferido e saiu do
quarto, arrastando os pés.
- Maldito seja, Robert - disse Ned quando ficaram sós. A perna
latejava tanto que estava quase cego de dor. Ou talvez fosse o pesar
que lhe enevoava os olhos. Deixou-se cair na cama, ao lado do amigo.
- Por que tem de ser sempre tão teimoso?
- Ah, vai se foder, Ned - disse o rei em voz rouca. - Matei o maldito,
não matei? - uma madeixa de cabelo emaranhado caiu-lhe sobre os
olhos quando os dirigiu para Ned. - Devia fazer o mesmo com você.
Não pode deixar um homem caçar em paz? Sor Robar me encontrou.
A cabeça de Gregor. Feio pensamento. Não contei a Cão de Caça.
Que Cersei o surpreenda - sua gargalhada transformou-se num
grunhido quando um espasmo de dor o atingiu. - Que os deuses
tenham misericórdia - murmurou, engolindo a dor. - A menina.
Daenerys. Só uma criança, tinha razão.. foi por isso, a menina... os
deuses mandaram o javali... mandaram-no para me punir... - o rei
tossiu, trazendo sangue à boca. - Errado, foi errado, eu... só uma
menina... Varys, Mindinho, até meu irmão... incapazes... ninguém para
me dizer n ã o , a não ser você, Ned.. só você... - ergueu a mão, um
gesto doloroso e fraco. - Papel e tinta. Ali, na mesa. Escreve o que lhe
ditar.
Ned alisou o papel no joelho e pegou a pena.
- Às vossas ordens, Vossa Graça.
- Esta é a vontade e a palavra de Robert, da Casa Baratheon, o
Primeiro do Seu Nome, Rei dos Ândalos e todo o resto... põe aí os
malditos títulos, você sabe como é. Ordeno por esta que Eddard, da
Casa Stark, Senhor de Winterfell e Mão do Rei, sirva como Senhor
Regente e Protetor do Território após a minha. . após a minha
morte... a fim de governar no meu... no meu lugar até que meu filho
Joffrey tenha idade...
- Robert... - ele quis dizer J o f f re y n ão é s e u f i lh o , mas as
palavras não vieram. A agonia estava escrita de forma muito clara no
rosto de Robert; não podia feri-lo mais. E assim Ned abaixou a
cabeça e escreveu, mas no lugar em que o rei dissera "o meu filho
Joffrey", escreveu "o meu herdeiro". O engano fê-lo sentir-se sujo. A s
m e n t i r a s q u e c o n t a m o s p o r a m o r , pensou. Q u e o s
d e u s e s m e p e r d o e m . - Que mais quer que eu escreva?
- Diz... o que tiver de ser. Proteger e defender, antigos e novos
deuses, você conhece as palavras. Escreve, Eu assino. Entregue-a ao
conselho quando eu morrer.
- Robert - Ned disse, numa voz pesada de desgosto -, não pode fazer
isto. Não morra. O reino precisa de você.
Robert pegou sua mão, apertando com força.
- Você é... um mentiroso tão mau, Ned Stark - ele disse através da
dor. - O reino.. o reino sabe.. que rei miserável eu fui. Tão mau
como Aerys, que os deuses me poupem,
- Não - Ned disse ao amigo moribundo -, não tão mau como Aerys,
Vossa Graça, Nem de perto tão mau como Aerys,
Robert conseguiu esboçar um frágil sorriso vermelho.
- Pelo menos, dirão eles... esta última coisa... isto fiz bem. Você não
me falhará. Irá agora governar. Irá detestar, mais ainda do que eu..
mas o fará bem. Já escreveu tudo?
- Sim, Vossa Graça - Ned ofereceu o papel a Robert. O rei
escrevinhou a assinatura cegamente, deixando uma mancha de
sangue na carta. - O selo deve ter testemunhas.
- Serve o javali no meu banquete fúnebre - disse o rei em voz áspera.
- Uma maçã na boca, pele seca e estalando. Comam o maldito. Não
importa se se engasgarem com ele. Prometa-me, Ned.
- Prometo - Promete-me, Neâ, disse a voz de Lyanna num eco.
- A menina - disse o rei. - Daenerys. Deixe-a viver. Se puder, se.. não
for tarde demais... fale com eles... Varys, Mindinho... não deixe que a
matem. E ajuda meu filho, Ned. Faz com que seja... melhor que eu -
estremeceu. - Que os deuses tenham misericórdia,
- Terão, meu amigo - disse Ned. - Terão,
O rei fechou os olhos e pareceu descontrair-se.
- Morto por um porco - murmurou. - Deveria rir, mas dói demais.
Ned não estava rindo.
- Devo chamá-los?
Robert fez um aceno fraco com a cabeça.
- Como quiser. Deuses, por que está tão frio aqui?
Os criados entraram correndo e apressaram-se a alimentar os fogos.
A rainha tinha partido; isto, pelo menos, era um pequeno alívio. Se
tivesse algum bom-senso, Cersei pegaria os filhos e fugiria antes do
raiar do dia, pensou Ned. Já se deixara ficar tempo demais.
O rei Robert não pareceu sentir sua falta. Pediu ao irmão Renly e ao
Grande Meistre Pycelle para servirem de testemunhas enquanto
pressionava seu selo na quente cera amarela que Ned derramara
sobre a carta.
- Dê-me agora qualquer coisa para as dores e deixe-me morrer.
Apressado, o Grande Meistre Pycelle preparou-lhe outra porção de
leite da papoula. Desta vez o rei bebeu tudo. A barba negra estava
semeada de espessas gotas brancas quando atirou a taça vazia para o
lado.
- Sonharei?
Ned deu-lhe a resposta.
- Sonhará, senhor.
- Ótimo - o rei disse, sorrindo. - Saudarei Lyanna por você, Ned.
Tome conta dos meus filhos por mim.
As palavras retorceram-se na barriga de Ned como uma faca. Por um
momento sentiu-se perdido. Não conseguia mentir. Então se lembrou
dos bastardos: a pequena Barra ao colo da mãe, Mya no Vale, Gendry
na sua forja, e todos os outros.
- Eu.. defenderei seus filhos como se fossem meus - respondeu
lentamente.
Robert fez um aceno e fechou os olhos. Ned observou o velho amigo
afundar-se suavemente nas almofadas à medida que o leite da
papoula lhe lavava o rosto da dor. Fora tomado pelo sono.
Pesadas correntes tilintaram suavemente quando o Grande Meistre
Pycelle se aproximou de Ned.
- Farei tudo o que estiver ao meu alcance, senhor, mas a ferida
gangrenou. Levaram dois dias para trazê-lo de volta. Quando o vi,
era tarde demais. Posso aliviar o sofrimento de Sua Graça, mas agora
só os deuses podem curá-lo.
- Quanto tempo? - perguntou Ned.
- Numa situação normal, ele já deveria estar morto. Nunca vi um
homem agarrar-se à vida tão ferozmente.
- Meu irmão sempre foi forte - disse Lorde Renly. - Sensato talvez
não, mas forte, sim - no calor abrasador do quarto, tinha a testa
molhada de suor. Podia ser o fantasma de Robert, ali em pé, jovem,
escuro e bonito. - Ele matou o javali. Tinha as entranhas saindo pela
barriga, mas de algum modo matou o javali - a voz estava plena de
espanto.
- Robert nunca foi homem de abandonar o campo de batalha
enquanto um inimigo permanecesse em pé - disse-lhe Ned.
A porta, Sor Barristan Selmy ainda guardava as escadas da torre.
- Meistre Pycelle deu a Robert o leite da papoula - disse-lhe Ned. -
Assegure-se de que ninguém perturbe o seu descanso sem a minha
autorização,
- Será como ordena, senhor - Sor Barristan parecia mais velho do
que a sua idade. - Falhei na minha obrigação sagrada.
- Nem mesmo o cavaleiro mais leal pode proteger um rei contra si
próprio - Ned disse. - Robert adorava caçar javalis. Vi-o matar um
milhar deles - Robert mantinha sua posição sem vacilar, de pernas
firmes, a grande lança nas mãos, e normalmente amaldiçoava o javali
enquanto este o ameaçava, esperando até o último segundo possível,
até o animal estar quase sobre ele, para matá-lo com uma única
estocada, segura e feroz. - Ninguém poderia saber que este o levaria
à morte.
- É bondoso de sua parte dizer isso, Lorde Eddard.
- Foi o próprio rei quem disse. Ele culpou o vinho. O cavaleiro
grisalho fez um aceno cansado.
- Sua Graça cambaleava na sela quando espantamos o javali para fora
do covil, mas ordenou a todos que nos mantivéssemos afastados.
- Estou curioso, Sor Barristan - perguntou Varys, em voz muito baixa
-, quem deu esse vinho ao rei?
Ned não ouvira o eunuco se aproximar, mas quando olhou em volta,
ali estava ele. Trazia uma toga de veludo negro que roçava pelo chão,
e o rosto tinha acabado de ser empoado.
- O vinho veio do odre do próprio rei - Sor Barristan respondeu.
- Só um odre? Caçar é tarefa que desperta tanta sede...
- Não os contei. Mais que um, certamente. Seu escudeiro levava-lhe
um novo odre sempre que ele pedia.
- Que rapaz tão atencioso - disse Varys - para se certificar de que
não faltava ao rei o seu refresco.
Ned tinha um sabor amargo na boca. Lembrava-se dos dois rapazes
de cabelos claros que Robert enviara à procura de uma extensão de
placa de peito. O rei contara a história a todo mundo, no banquete
daquela noite, rindo até perder o equilíbrio.
- Que escudeiro?
- O mais velho - disse Sor Barristan. - Lancei.
- Conheço bem o rapaz - disse Varys. - Um jovem vigoroso, filho de
Sor Kevan Lannister, sobrinho de Lorde Tywin e primo da rainha.
Espero que o querido rapaz não se culpe. As crianças são tão
vulneráveis na inocência da juventude, se bem me lembro.
Certamente que Varys fora jovem em tempos passados. Mas Ned
duvidava de que algum dia tivesse sido inocente.
- Por falar em crianças, Robert teve uma mudança de opinião a
respeito de Daenerys Targa-ryen. Quaisquer que sejam as
combinações que tenha feito, quero-as desfeitas. De imediato,
- Ai de mim - disse Varys. - De imediato pode ser tarde demais.
Temo que essas aves tenham levantado vôo. Mas farei o que puder,
senhor. Com vossa licença - fez uma vênia e desapareceu pelos
degraus, com os chinelos de sola mole sussurrando contra a pedra
enquanto descia.
Cayn e Tomard ajudavam Ned a atravessar a ponte quando Lorde
Renly emergiu da Fortaleza de Maegor.
- Lorde Eddard - chamou atrás de Ned -, um momento, por
obséquio. Ned parou.
- Como quiser. Renly caminhou até ele.
- Mande embora os vossos homens - estavam no centro da ponte,
com o fosso seco por baixo. O luar envolvia de prata os cruéis gumes
das hastes que lhe cobriam o fundo.
Ned fez um gesto. Tomard e Cayn inclinaram a cabeça e afastaram-
se respeitosamente. Lorde Renly olhou de relance para Sor Borós,
que se encontrava na extremidade mais distante da ponte, e para a
arcada atrás deles, onde Sor Preston montava guarda.
- Essa carta - aproximou-se. - É a regência? Meu irmão o nomeou
Protetor? - não esperou por uma resposta. - Senhor, tenho trinta
homens na minha guarda pessoal e mais alguns amigos, cavaleiros e
senhores. Dê-me uma hora e posso pôr cem espadas em suas mãos.
- E que farei eu com cem espadas, senhor?
- A t ac ar á! Agora, enquanto o castelo dorme - Renly voltou a olhar
para trás, para Sor Borós, e abaixou a voz, transformando-a num
murmúrio urgente. - Temos de afastar Joffrey da mãe e ficar com ele
na mão. Protetor ou não, o homem que possuir o rei possui o reino.
Devíamos capturar também Myrcella e Tommen. Com os filhos em
nossa posse, Cersei não se atreverá a se opor a nós. O conselho o
confirmará como Lorde Protetor e colocará Joffrey sob sua guarda.
Ned o olhou friamente.
- Robert ainda não está morto. Os deuses podem poupá-lo. Se não o
fizerem, convocarei o conselho para escutar suas últimas palavras e
refletir sobre o assunto da sucessão, mas não desonrarei suas últimas
horas na terra derramando sangue em seus salões e arrancando
crianças assustadas de suas camas.
Lorde Renly deu um passo para trás, tenso como a corda de um
arco.
- Quanto mais demorarmos, mais tempo tem Cersei para se
preparar. Quando Robert morrer, poderá ser tarde demais... para
ambos.
- Então devíamos rezar para que Robert não morra.
- Há poucas chances de isso acontecer - Renly justificou.
- Por vezes os deuses são misericordiosos.
- Mas os Lannister não são - Lorde Renly virou-se e voltou a
atravessar o fosso, dirigindo-se à torre onde o irmão estava
morrendo.
Quando Ned regressou aos seus aposentos, sentia-se cansado e
desolado, mas não se permitia voltar ao sono, agora não. Q u a n d o
s e j o g a o j o g o d o s t r o n o s , g a n h a - s e o u m o r r e , dissera-
lhe Cersei Lannister no bosque sagrado. Deu por si sem saber se
agira corretamente ao recusar a oferta de Lorde Renly. Não tinha
gosto algum por aquelas intrigas, e não havia honra em ameaçar
crianças, no entanto... se Cersei escolhesse lutar em vez de fugir,
podia bem necessitar das cem espadas de Renly, e de mais ainda.
- Quero Mindinho - disse a Cayn. - Se não estiver em seus aposentos,
leve os homens que forem necessários e o procure em todas as
tabernas e bordéis de Porto Real até encontrá-lo. Quero vê-lo antes
do raiar do dia - Cayn fez uma reverência e retirou-se, e Ned virou-
se para Tomard. - A B r u x a d o s V e n t o s zarpa na maré da noite.
Já escolheu a escolta?
- Dez homens, com Porther no comando.
- Vinte, e estará você no comando - Ned ordenou. Porther era um
homem corajoso, mas teimoso. Queria um homem mais sólido e
sensível para vigiar as filhas.
- Como queira, senhor - Tom respondeu. - Não posso dizer que fique
triste por dar as costas a este lugar. Tenho saudades da mulher.
- Passará perto da Pedra do Dragão quando virar para o norte.
Quero que entregue uma carta em meu nome.
Tom fez um ar apreensivo.
- Em Pedra do Dragão, senhor? - a fortaleza insular da Casa
Targaryen tinha uma reputação sinistra.
- Diz ao Capitão Qos para hastear a minha bandeira assim que
estiver à vista da ilha. Eles poderão estar desconfiados de visitantes
inesperados. Se ele se mostrar relutante, ofereça-lhe o que quiser.
Vou lhe dar uma carta para colocar na mão de Lorde Stannis
Baratheon. De mais ninguém. Nem do intendente, nem do capitão da
guarda, nem da senhora sua esposa, só do próprio Lorde Stannis.
- As vossas ordens, senhor.
Depois de Tomard deixá-lo, Lorde Eddard Stark sentou-se, de olhos
fixos na chama de uma vela que ardia ao seu lado sobre a mesa. Por
um momento foi subjugado pelo desgosto. Não desejou nada com
mais força do que ir até o bosque sagrado, ajoelhar-se perante a
árvore-coração e orar pela vida de Robert Baratheon, que fora mais
que um irmão para ele. Mais tarde, os homens sussurrariam que
Eddard Stark traíra a amizade do seu rei e lhe deserdara os filhos; ele
só podia ter esperança de que os deuses fossem mais sábios, e de
que Robert soubesse da verdade nas terras de além-túmulo.
Ned pegou a última carta do rei. Um rolo de quebradiço pergaminho
branco, selado com cera dourada, algumas curtas palavras e uma
mancha de sangue. Como era pequena a diferença entre vitória e
derrota, entre a vida e a morte.
Puxou uma folha limpa de papel e mergulhou a pena no tinteiro,
P a r a S u a G r a ç a , S t a n n i s d a C a s a B a r a t h e o n , escreveu,
Q u a n d o r e c e b e r e s t a c a r t a , s e u i r m ã o R o b e r t , n o s s o
r e i d u r a n t e o s ú l t i m o s q u i n z e a n o s , e s t a r á m o r t o , F o i
f e r i d o p o r u m j a v a l i e n q u a n t o c a ç a v a n o b o s q u e d o
r e i . . .
As letras pareceram estremecer e contorcer-se no papel quando a
mão abrandou e parou. Lorde Tywin e Sor Jaime não eram homens
para cair docilmente em desgraça; mais depressa lutariam do que
fugiriam. Não havia dúvida de que Lorde Stannis se tornara
cuidadoso depois do assassinato de Jon Arryn, mas era imperativo
que embarcasse imediatamente para Porto Real com todo o seu
poderio, antes que os Lannister se pusessem em marcha.
Ned escolheu cada palavra com cuidado. Quando terminou, assinou a
carta como E d d a r d S t a r k , S e n h o r d e W i n t e r f e l l , M ã o d o
R e i e P r o t e t o r d o T e r r i t ó r i o , secou a tinta no papel, dobrou-
o duas vezes e fundiu a cera para selar a carta na chama da vela.
Sua regência seria curta, refletiu enquanto a cera amolecia. O novo
rei escolheria sua própria Mão. Ned estaria livre para ir para casa.
Pensar em Winterfell trouxe-lhe um sorriso abatido no rosto.
Desejava ouvir uma vez mais o riso de Bran, ir caçar com Robb e os
falcões, observar Rickon brincando. Desejava cair num sono sem
sonhos em sua própria cama, com os braços bem apertados em
torno de sua senhora, Catelyn.
Cayn regressou no momento em que ele se encontrava pressionando
o selo do lobo gigante contra a cera mole e branca. Desmond estava
com ele, e entre ambos encontrava-se Mindinho. Ned agradeceu aos
guardas e os mandou embora.
Lorde Petyr trazia uma túnica de veludo azul com mangas estufadas
e uma capa prateada com desenho de tejos.
- Suponho que devo congratulá-lo - disse enquanto se sentava. Ned
franziu a testa.
- O rei está ferido e próximo da morte.
- Eu sei - disse Mindinho. - E também sei que Robert o nomeou
Protetor do Território. Os olhos de Ned desviaram-se para a carta do
rei pousada sobre a mesa ao seu lado, com o selo inteiro.
- E como é que sabe disso, senhor?
- Varys sugeriu - disse Mindinho -, e o senhor acabou de confirmar.
A boca de Ned retorceu-se de ira.
- Maldito seja Varys e seus passarinhos. Catelyn falou a verdade, o
homem possui alguma arte negra. Não confio nele.
- Excelente. Está aprendendo - Mindinho inclinou-se para a frente. -
No entanto, aposto que não me arrastou até aqui, na noite cerrada,
para discutir sobre o eunuco,
- Não - admitiu Ned. - Conheço o segredo pelo qual Jon Arryn foi
assassinado por saber, Robert não deixará nenhum filho legítimo.
Joffrey e Tommen são bastardos de Jaime Lannister, nascidos de sua
união incestuosa com a rainha.
Mindinho ergueu uma sobrancelha.
- Chocante - disse, num tom que sugeria que não estava
absolutamente nada chocado. - E a menina também? Sem dúvida.
Então, quando o rei morrer...
- O trono passa por direito para Lorde Stannis, o mais velho dos dois
irmãos de Robert. Lorde Petyr afagou a barba pontiaguda enquanto
refletia sobre o assunto.
- É o que parece. A não ser que...
- A n ã o se r o q uê , senhor? Não h á. p a re c e aqui. Stannis é o
herdeiro. Nada pode alterar isso.
- Stannis não pode tomar o trono sem a sua ajuda. Se for sensato,
assegure-se de que a sucessão seja de Joffrey.
Ned lançou-lhe um olhar de pedra.
- Será que não possui nem um farrapo de honra?
- Ah, um fa r ra po , certamente - respondeu Mindinho com
negligência. - Escute-me. Stannis não é seu amigo, nem meu. Até os
irmãos dificilmente o suportam. O homem é de ferro, duro e
inflexível. Elegerá uma nova Mão e um novo conselho, com certeza.
Sem dúvida que lhe agradecerá por lhe entregar a coroa, mas não lhe
terá amizade por isso. E sua ascensão significará a guerra. Stannis
não ficará sossegado no trono enquanto Cersei e seus bastardos não
estiverem mortos. Julga que Lorde Tywin ficará indolentemente
sentado enquanto tiram as medidas da cabeça da filha para espetá-la
numa lança? O Rochedo Casterly se erguerá em armas, e não estará
isolado. Robert achou por bem perdoar homens que serviram o Rei
Aerys, desde que lhe jurassem fidelidade. Stannis é menos clemente.
Não deve ter esquecido o cerco a Ponta Tempestade; e os Senhores
Tyrell e Redwyne não se atrevem a esquecê-lo. Cada homem que
lutou sob o estandarte do dragão ou se revoltou com Balon Greyjoy
terá bons motivos para temer. Sente Stannis no Trono de Ferro e
garanto-lhe que o reino sangrará. Olhe agora para o outro lado da
moeda. Joffrey tem apenas doze anos, e Robert deu a regência ao
s e n h o r . É a Mão do Rei e Protetor do Território. O poder é seu,
Lorde Stark. Tudo o que precisa fazer é estender a mão e apanhá-lo.
Faça a paz com os Lannister. Liberte o Duende. Case Joffrey com a
sua Sansa, Case vossa filha mais nova com o Príncipe Tommen e seu
herdeiro com Myrcella. Passarão quatro anos até que o Príncipe
Joffrey seja maior de idade. A essa altura, ele o verá como um
segundo pai, e se não o fizer, bem.. quatro anos é um tempo
bastante longo, senhor. Suficientemente longo para nos vermos livres
de Lorde Stannis. Então, se Joffrey se revelar problemático, nós
poderemos revelar seu pequeno segredo e colocar Lorde Renly no
trono.
- N ó s? - Ned repetiu. Mindinho encolheu os ombros.
- Precisará de alguém para partilhar seus fardos. Asseguro-lhe que
meu preço será modesto.
- Seu preço - a voz de Ned era gelo. - Lorde Baelish, o que está
sugerindo é traição.
- Só se perdermos.
- Esquece-se - disse-lhe Ned -, esquece-se de Jon Arryn. Esquece-se de
Jory Cassei. E se esquece disto - desembainhou o punhal e o pousou
na mesa entre eles; um bocado de osso de dragão e de aço valiriano,
tão afiado como a diferença entre o certo e o errado, entre a verdade
e a mentira, entre a vida e a morte. - Eles enviaram um homem
p a r a c o r t a r a g a r g a n t a d o m e u f i l h o , Lorde Baelish.
Mindinho suspirou.
- Temo que me tenha realmente esquecido, senhor. Peço-lhe perdão.
Por um momento não me lembrei de que estava falando com um
Stark - a boca torceu-se. - Será então Stannis e a guerra?
- Não é uma escolha. Stannis é o herdeiro.
- Longe de mim entrar em disputa com o Lorde Protetor. Que quer
então de mim? Não é certamente a minha sabedoria.
- Farei o possível para esquecer a sua.. sabedoria - disse Ned com
desagrado. - Chamei-o aqui para pedir a ajuda que prometeu a
Catelyn. É uma hora perigosa para todos nós. Robert nomeou-me
Protetor, é verdade, mas aos olhos do mundo Joffrey é ainda seu filho
e herdeiro. A rainha tem uma dúzia de cavaleiros e uma centena de
homens de armas que farão tudo o que ordenar... o bastante para
esmagar o que resta da guarda de minha casa. E pelo que sei, seu
irmão Jaime pode bem vir a caminho de Porto Real neste mesmo
momento, à frente de uma tropa Lannister.
- E o senhor sem um exército - Mindinho brincou com o punhal
sobre a mesa, fazendo-o girar lentamente com o dedo. - Pouco amor
se perde entre Lorde Renly e os Lannister. Bronze Yohn Royce, Sor
Balon Swann, Sor Loras, a Senhora Tanda, os gêmeos Redwyne..
todos eles têm um séquito de cavaleiros e soldados aqui na corte.
- Renly tem trinta homens na sua guarda pessoal, e os outros, ainda
menos. Não chega, mesmo se tivesse certeza de que todos eles
escolheriam aliar-se a mim. Tenho de controlar os homens de manto
dourado. A Patrulha da Cidade tem dois mil homens que juraram
defender o castelo, a cidade e a paz do rei.
- Ah, mas quando a rainha proclamar um rei e outro Mão, de quem
será a paz que eles protegerão? - Lorde Petyr deu um piparote no
punhal, pondo-o a girar no mesmo lugar. Girou e girou, oscilando
enquanto rodopiava. Quando por fim abrandou e parou, a ponta
apontou para Mindinho. - Ora, aí está a resposta - disse ele, sorrindo.
- Seguirão o homem que lhes paga - recostou-se e olhou diretamente
para o rosto de Ned, com os olhos cinza-esverdeados brilhantes de
troça. - Use sua honra como uma armadura, Stark. Julga que o
mantém a salvo, mas tudo o que ela faz é torná-lo pesado e
dificultar-lhe os movimentos. Olhe para você agora. Sabe por que
motivo me convocou a vir até aqui. Sabe o que quer me pedir para
fazer. Sabe que isso tem de ser feito.. mas não é h o n r o s o , por isso
as palavras se prendem em sua garganta.
O pescoço de Ned estava rígido de tensão. Por um momento ficou
tão zangado que não teve suficiente confiança em si próprio para
falar.
Mindinho soltou uma gargalhada.
- Devia obrigá-lo a dizê-lo, mas seria uma crueldade.. Por isso, nada
tema, meu bom senhor. Em nome do amor que sinto por Catelyn,
falarei com Janos Slynt agora mesmo e me assegurarei de que a
Patrulha da Cidade seja sua. Seis mil peças de ouro deverão bastar.
Um terço para o Comandante, um terço para os oficiais, um terço
para os homens. Talvez conseguíssemos comprados por metade desse
preço, mas prefiro não arriscar - sorrindo, pegou o punhal e o
ofereceu a Ned, com o cabo para a frente.
Jon
Jon comia bolo de maçã e morcela de café da manhã quando
Samwell Tarly se deixou cair no banco.
- Fui chamado ao septo - Sam disse num sussurro excitado. - Vão
tirar-me do treino. Vou ser feito irmão com você. Acredita?
- Não! E verdade?
- É verdade. Vou ajudar Meistre Aemon com a biblioteca e as aves.
Ele precisa de alguém que saiba ler e escrever cartas.
- Será bom nisso - disse Jon, sorrindo. Sam lançou em volta uma
olhadela ansiosa.
- Já está na hora? Não devo me atrasar, eles podem mudar de idéia -
mostrou-se bastante vigoroso quando atravessaram o pátio salpicado
de capim. O dia estava morno e ensolarado. Regatos escorriam pelos
lados da Muralha, e o gelo parecia cintilar.
Dentro do septo, o grande cristal capturava a luz da manhã que
jorrava através da janela virada para o sul e a espalhava num arco-
íris pelo altar. A boca de Pyp escancarou-se ao ver Sam, e Sapo
acotovelou Grenn nas costelas, mas ninguém se atreveu a dizer uma
palavra. Septão Celladar fazia oscilar um turíbulo, enchendo o ar de
incenso odorífero que fazia lembrar a Jon o pequeno septo da
Senhora Stark em Winterfell. Pela primeira vez o septão parecia estar
sóbrio.
Os grandes oficiais chegaram em conjunto: Meistre Aemon, apoiado
em Clydas, Sor Alliser, com olhos frios e sombrio, o Senhor
Comandante Mormont, resplandecente num gibão de lã negra com
presilhas de prata em forma de garra de urso. Atrás deles vinham os
membros superiores das três ordens: Bowen Marsh, o Senhor
Intendente com a sua cara vermelha, o Primeiro Construtor, Othell
Yarwyck, e Sor Jaremy Rykker, que comandava os patrulheiros na
ausência de Benjen Stark.
Mormont parou em frente do altar, com o arco-íris brilhando sobre a
grande calva.
- Chegaram até nós como foras da lei - começou -, caçadores
furtivos, violadores, devedores, assassinos e ladrões. Chegaram até
nós como crianças. Chegaram até nós sós, acorrentados, sem amigos
nem honra. Chegaram até nós ricos e chegaram até nós pobres.
Alguns ostentam os nomes de Casas orgulhosas. Outros têm apenas
nomes de bastardos ou não têm nome algum. Não importa. Tudo
isso agora é passado. Na Muralha, somos todos uma Casa. Ao cair da
noite, quando o sol se puser e enfrentarmos a noite que se aproxima,
farão os seus votos. Desse momento em diante, serão Irmãos
Juramentados da Patrulha da Noite. Vossos crimes serão limpos e
vossas dívidas, perdoadas. De igual modo, devem também limpar-se
de suas antigas lealdades, pôr de lado seus ressentimentos, esquecer
igualmente as antigas ofensas e os antigos amores. Aqui começam de
novo. Um homem da Patrulha da Noite vive sua vida pelo reino. Não
por um rei, nem por um senhor, nem pela honra desta ou daquela
Casa, nem por ouro ou por glória ou pelo amor de uma mulher, mas
pelo reino e por todas as pessoas que há nele. Um homem da
Patrulha da Noite não toma uma esposa nem gera filhos. Nossa
esposa é o dever. Nossa amante é a honra. E vocês são os únicos
filhos que algum dia conheceremos. Aprenderam as palavras do voto.
E preciso refletir com cuidado antes de dizê-las, pois uma vez
envergado o negro, não haverá caminho de volta. O castigo pela
deserção é a morte - o Velho Urso fez uma pausa momentânea antes
de dizer:
- Existe alguém entre vocês que deseja deixar a nossa companhia? Se
sim, vá agora, e ninguém pensará menos de você.
Ninguém se moveu.
- Muito bem - disse Mormont. - Podem fazer seus votos aqui ao cair
da noite, perante Septão Celladar e o chefe da sua Ordem, Algum de
vocês é fiel aos velhos deuses?
Jon levantou-se.
- Eu sou, senhor.
- Suponho que desejará proferir suas palavras perante uma árvore-
coração, como fez seu tio
- disse Mormont.
- Sim, senhor - disse Jon. Os deuses do septo não tinham nada a ver
com ele; o sangue dos Primeiros Homens corria nas veias dos Stark.
Ouviu Grenn sussurrar atrás dele.
- Não há aqui um bosque sagrado. Ou há? Nunca vi um bosque
sagrado.
- Não veria uma manada de auroques até que o pisoteassem contra a
neve - Pyp sussurrou em resposta.
- Veria, sim - insistiu Grenn. - Eu os veria a longa distância. O
próprio Mormont confirmou as dúvidas de Grenn.
- Castelo Negro não tem necessidade de um bosque sagrado. Para lá
da Muralha, a Floresta Assombrada encontra-se como se encontrava
na Idade da Alvorada, muito antes de os ândalos trazerem os Sete
através do mar estreito. Encontrará um bosque de represeiros a meia
légua deste local, e talvez encontre lá também os seus deuses.
- Senhor - a voz fez Jon olhar para trás, surpreendido. Samwell Tarly
estava de pé. O gordo rapaz esfregou as palmas suadas na túnica. -
Poderei... poderei ir também? Dizer as minhas palavras junto a essa
árvore-coração?
- A Casa Tarly também é fiel dos velhos deuses? - perguntou
Mormont.
- Não, senhor - Sam respondeu numa voz fina e nervosa. Jon sabia
que os grandes oficiais o assustavam, e o Velho Urso acima de todos.
- Recebi o nome à luz dos Sete no septo de Monte Chifre, tal como
meu pai, e o pai dele, e todos os Tarly ao longo de mil anos.
- Por que quer abandonar os deuses de seu pai e sua Casa? - quis
saber Sor Jaremy Rykker.
- A Patrulha da Noite é agora a minha Casa - Sam respondeu. - Os
Sete nunca responderam às minhas preces. Talvez os deuses antigos
o façam.
- Como quiser, rapaz - disse Mormont. Sam voltou a se sentar e o
mesmo fez Jon. - Colocamos cada um de vocês numa Ordem que
mais se adapta às nossas necessidades e aos seus pontos fortes e
perícias - Bowen Marsh avançou e entregou-lhe um papel. O Senhor
Comandante desenrolou-o e começou a ler. - Halder, para os
construtores - começou. Halder fez um aceno rígido de aprovação. -
Grenn, para os patrulheiros. Albett, para os construtores. Pypar, para
os patrulheiros - Pyp olhou para Jon e sacudiu as orelhas. - Samwell,
para os intendentes - Sam descaiu de alívio, limpando a testa com
um lenço de seda. - Matthar, para os patrulheiros. Dae-ron, para os
intendentes. Todder, para os patrulheiros. Jon, para os intendentes.
Os intendentes? Por um momento Jon não conseguiu acreditar no
que ouvira. Mormont devia ter lido errado. Começou a erguer-se, a
abrir a boca, a dizer-lhes que tinha havido um engano.. e então viu
que Sor Alliser o estudava, com os olhos brilhantes como duas lascas
de obsidiana, e compreendeu.
O Velho Urso enrolou o papel.
- Seus chefes irão instruí-los quanto aos seus deveres. Que todos os
deuses os protejam, irmãos - o Senhor Comandante concedeu-lhes
uma meia reverência e se retirou. Sor Alliser foi com ele, com um
tênue sorriso no rosto. Jon nunca vira o mestre de armas com um ar
tão feliz.
- Patrulheiros, comigo - gritou Sor Jaremy Rykker depois de eles
partirem. Pyp não tirou os olhos de Jon enquanto se pôs lentamente
em pé. Tinha as orelhas vermelhas. Grenn, com um largo sorriso, não
parecia compreender que havia algo de errado. Matt e Sapo
juntaram-se a eles e saíram do septo atrás de Sor Jaremy.
- Construtores - anunciou Othell Yarwyck, com seu queixo em forma
de lanterna, Halder e Albett saíram em seu rastro.
Jon olhou em volta com incredulidade nauseada. Os olhos cegos de
Meistre Aemon estavam erguidos para a luz que não podia ver. O
septão arrumava cristais no altar. Só Sam e Daeron permaneciam
nos bancos; um gordo, um cantor.,. e ele.
O Senhor Intendente Bowen Marsh esfregou as mãos roliças.
- Samwell, vai prestar assistência a Meistre Aemon no viveiro dos
corvos e na biblioteca. Chett vai para os canis, ajudar com os cães de
caça. Deverá ter sua cela, para estar perto do meistre noite e dia.
Espero que tome conta dele bem. É muito velho e muito precioso
para nós. Daeron, dizem-me que cantou à mesa de muitos grandes
senhores e partilhou da sua comida e bebida. Vamos enviá-lo para
Atalaialeste. Pode ser que o seu paladar seja útil a Cotter Pyke
quando as galés mercantes chegarem para fazer negócio. Estamos
pagando demais por carne salgada e peixe de salmoura, e a qualidade
do azeite que temos recebido tem sido tenebrosa. Apresente-se a
Bóreas quando chegar, ele o manterá ocupado entre navios.
Marsh virou seu sorriso para Jon.
- O Senhor Comandante Mormont requisitou-o como seu intendente
pessoal, Jon. Dormirá numa cela sob seus aposentos, na torre do
Senhor Comandante.
- E quais serão meus deveres? - perguntou Jon em tom cortante. -
Servirei as refeições do Senhor Comandante, o ajudarei a prender
suas roupas, irei buscar água quente para seu banho?
- Com certeza - Marsh franziu as sobrancelhas perante o tom de Jon.
- E transmitirá suas mensagens, manterá um fogo ardendo em seus
aposentos, trocará seus lençóis e cobertores todos os dias e fará tudo
o que o Senhor Comandante lhe ordenar,
- Toma-me por um criado?
- Não - disse Meistre Aemon do fundo do septo. Clydas o ajudou a
pôr-se em pé. - Toma-mos-o por um homem da Patrulha da Noite...
mas talvez nos tivéssemos enganado.
Tudo o quejón conseguiu fazer foi impedir-se de sair. Esperariam
que batesse leite para fazer manteiga e cosesse gibões como uma
moça para o resto de seus dias?
- Posso ir? - perguntou rigidamente.
- Como quiser - respondeu Bowen Marsh.
Daeron e Sam saíram com ele. Desceram em silêncio até o pátio. Lá
fora, Jon olhou a Muralha que brilhava ao sol, com o gelo que
derretia escorrendo pelo flanco numa centena de estreitos dedos. A
raiva de Jon era tanta que teria esmagado tudo aquilo num instante,
e o mundo que se danasse.
- Jon - disse Samwell Tarly num tom excitado. - Espere. Não percebe
o que eles estão fazendo?
Jon virou-se para ele, em fúria.
- Vejo a maldita mão de Sor Alliser, é o que vejo. Quis me
envergonhar, e conseguiu. Daeron deu-lhe um olhar carrancudo.
- Ser intendente é bom para gente como você e eu, Sam, mas não
para Lorde Snow.
- Sou melhor espadachim e melhor cavaleiro que qualquer um de
vocês - exclamou Jon em resposta. - Não é j u s t o l
-Justo? - disse Daeron em tom de escárnio. - A moça estava à minha
espera, nua como no dia em que nascera. Puxou-me pela janela, e
fala do que é j u s t o ? - e afastou-se.
- Não há vergonha em ser um intendente - disse Sam.
- Pensa que quero passar o resto da vida lavando as roupas de baixo
de um velho?
- O velho é o Senhor Comandante da Patrulha da Noite - relembrou-
lhe Sam. - Estará com ele dia e noite. Sim, servirá seu vinho e
verificará se sua roupa de cama está lavada, mas também
transportará suas cartas, o ajudará em reuniões, servirá como seu
escudeiro em batalha. Estará tão perto dele como uma sombra.
Saberá de tudo, fará parte de tudo.. e o Senhor Intendente disse que
Mormont o pediu p e s s o a l m e n t e . Quando eu era pequeno, meu
pai costumava insistir que o ajudasse na sala de audiências sempre
que as concedesse. Quando ia a Jardim de Cima dobrar o joelho ao
Lorde Tyrell, obrigava-me a ir também. Mas mais tarde começou a
levar Dickon e me deixar em casa, e já não se importava se eu estava
presente em suas audiências, desde que Dickon lá estivesse. Queria
seu h e r d e i r o a seu lado, não vê? Para observar e ouvir, e aprender
com aquilo que fazia. Aposto que é por isso que Lorde Mormont te
requisitou, Jon. Que outra coisa poderia ser? Quer prepará-lo para o
c o m a n d o 1 .
Jon foi apanhado de surpresa. Era verdade, Lorde Eddard fizera com
frequência com que Robb participasse de seus conselhos em
Winterfell. Poderia Sam ter razão? Mesmo um bastardo podia
ascender a grande altura na Patrulha da Noite, dizia-se.
- Nunca pedi isto - disse teimosamente.
- Nenhum de nós está aqui por ter p e d i d o - relembrou-lhe Sam. E
de súbito Jon Snow sentiu-se envergonhado.
Covarde ou não, Samwell Tarly encontrara a coragem de enfrentar
seu destino como um homem. N a M u r a l h a , u m h o m e m s ó
o b t é m a q u i l o q u e g a n h a , dissera Benjen Stark na última noite
em que Jon o vira vivo. N ã o é n e n h u m p a t r u l h e i r o . J o n , n ã o
p a s s a d e u m r a p a z v e r d e a i n d a c h e i r a n d o a v e r ã o .
Ouvira dizer que os bastardos cresciam mais depressa que as outras
crianças; na Muralha, ou se crescia ou se morria.
Jon soltou um profundo suspiro.
- Tem razão. Estava agindo como uma criança.
- Então ficará e dirá as suas palavras comigo?
- Os velhos deuses estão à nossa espera - obrigou-se a sorrir.
Partiram ao fim da tarde. A Muralha não tinha portões propriamente
ditos, nem ali em Castelo Negro nem em ponto algum das suas
trezentas milhas. Levaram os cavalos por um túnel estreito cortado
no gelo, com paredes frias e escuras apertando-se à volta deles
enquanto a passagem se retorcia e curvava. Três vezes viram o
caminho bloqueado por grades de ferro, e tiveram que parar
enquanto Bowen Marsh pegava as chaves e destrancava as maciças
correntes que as seguravam. Jon conseguia sentir o vasto peso que se
encontrava sobre sua cabeça enquanto esperava atrás do Senhor
Intendente. O ar estava mais frio que uma tumba, e mais parado
também. Sentiu um estranho alívio quando voltaram a emergir para
a luz da tarde do lado norte da Muralha.
Sam piscou com o súbito clarão e olhou em volta com apreensão.
- Os selvagens... eles não... eles nunca se atreveriam a aproximar-se
tanto da Muralha, não?
- Nunca o fizeram - Jon subiu na sela. Depois de Bowen Marsh e sua
escolta de patrulheiros terem montado, Jon pôs dois dedos na boca e
assobiou. Fantasma saiu aos saltos do túnel.
O cavalo do Senhor Intendente relinchou e afastou-se do lobo
selvagem.
- Pretende trazer esse animal?
- Sim, senhor - disse Jon. A cabeça de Fantasma ergueu-se, Parecia
saborear o ar. Num piscar de olhos tinha partido, correndo através
do largo campo coberto de ervas daninhas até desaparecer entre as
árvores.
Uma vez na floresta, encontraram-se num mundo diferente. Jon
caçara frequentemente com o pai, Jory e o irmão Robb. Conhecia a
Mata de Lobos que rodeava Winterfell tão bem como qualquer outro
homem. A floresta assombrada era muito parecida, mas a sensação
que projetava era muito diferente.
Talvez tudo estivesse no conhecimento. Tinham cavalgado até depois
do fim do mundo; de certa forma, isso mudava tudo. Cada sombra
parecia mais escura, cada som, mais agourento. As árvores
apertavam-se e afastavam a luz do sol poente. Uma fina crosta de
neve fendia-se sob os cascos dos cavalos, com um som que fazia
lembrar o quebrar de ossos. Quando o vento fazia restolhar as folhas,
era como se um dedo gelado desenhasse um percurso ao longo da
espinha de Jon. A Muralha estava nas suas costas, e só os deuses
sabiam o que tinham à frente.
O sol afundava-se atrás das árvores quando alcançaram seu destino,
uma pequena clareira nas profundezas da floresta, onde nove
represeiros cresciam num círculo grosseiro. Jon prendeu a respiração
e viu Sam Tarly olhar fixamente. Mesmo na Mata de Lobos, nunca se
viam mais de duas ou três das árvores brancas crescerem juntas; um
grupo de nove era inaudito. O chão da floresta encontrava-se
atapetado de folhas caídas, vermelhas como sangue no topo, negras
de podridão por baixo. Os grandes troncos lisos eram pálidos como
ossos, e nove caras olhavam para dentro. A seiva seca que se
encrostou nos olhos era vermelha e dura como rubi. Bowen Marsh
ordenou-lhes que deixassem os cavalos fora do círculo.
- Este é um lugar sagrado, não o profanaremos.
Quando entraram no bosque, Samwell Tarly virou-se lentamente,
olhando para uma das caras de cada vez. Não havia duas iguais.
- Eles nos observam - sussurrou. - Os deuses antigos.
- Sim - Jon ajoelhou, e Sam ajoelhou a seu lado.
Proferiram as palavras em conjunto, enquanto a última luz
desaparecia a oeste e o dia cinzento se transformava em noite negra.
- Escutem as minhas palavras e testemunhem os meus votos -
recitaram, com as vozes enchendo o bosque penumbroso. - A noite
chega, e agora começa a minha vigia. Não terminará até minha
morte. Não tomarei esposa, não possuirei terras, não gerarei filhos.
Não usarei coroas e não conquistarei glórias. Viverei e morrerei no
meu posto. Sou a espada na escuridão. Sou o vigilante nas muralhas.
Sou o fogo que arde contra o frio, a luz que traz consigo a alvorada,
a trombeta que acorda os que dormem, o escudo que defende os
reinos dos homens. Dou a minha vida e a minha honra à Patrulha da
Noite, por esta noite e por todas as noites que estão para vir.
A floresta caiu no silêncio.
- Ajoelharam como rapazes - entoou solenemente Bowen Marsh. -
Ergueram-se agora como homens da Patrulha da Noite.
Jon estendeu a mão para ajudar Sam a pôr-se de novo em pé. Os
patrulheiros aproximaram--se para oferecer sorrisos e parabéns;
todos, menos o velho e áspero lenhador Dywen,
- É melhor nos colocarmos a caminho, senhor - disse ele a Bowen
Marsh. - A escuridão está caindo e há qualquer coisa no cheiro da
noite que não me agrada.
E, de repente, Fantasma estava de volta, caminhando silenciosamente
entre dois represeiros. P e l o b r a n c o e o l h o s v e r m e l h o s , Jon
percebeu, intranquilo. C o m o a s á r v o r e s . . . O lobo tinha qualquer
coisa entre as mandíbulas. Qualquer coisa negra.
- Que tem ele ali? - perguntou Bowen Marsh, franzindo a testa.
- A mim, Fantasma. - Jon ajoelhou. - Traga aqui.
O lobo selvagem trotou até ele. Jon ouviu a brusca inspiração de
Samwell Tarly.
- Que os deuses sejam bons - murmurou Dywen. - Isto é uma mão.
Eddard
A luz cinzenta da alvorada jorrava através de sua janela quando o
trovão dos cascos acordou Eddard Stark de seu breve sono exausto.
Ergueu a cabeça da mesa para olhar para o pátio. Lá embaixo,
homens revestidos de cota de malha e mantos carmesins faziam a
manhã ressoar ao som de espadas e derrubavam falsos guerreiros
recheados de palha. Ned observou Sandor Clegane, que galopava pela
dura terra batida e espetava uma lança de ponta de aço na cabeça de
um espantalho. A tela foi rompida e palha se espalhou ao som das
piadas e pragas dos guardas Lannister.
S e r á e s t e b r a v o e s p e t á c u l o p a r a m e u b e n e f í c i o ? ,
perguntou a si mesmo. Se fosse, Cersei era mais tola do que ele
imaginara. M a l d i t a s e j a , pensou, p o r q u e n ã o f u g i u e s t a
m u l h e r ? D e i - l h e o p o r t u n i d a d e a t r á s d e o p o r t u n i d a d e . . .
A manhã estava encoberta e sombria. Ned tomou o café da manhã
com as filhas e Septã Mordane. Sansa, ainda desconsolada, ficou
olhando, carrancuda, para a comida e recusou-se a comer, mas Arya
devorou tudo o que lhe foi posto à frente.
- Syrio diz que temos tempo para uma última lição antes de
embarcarmos esta noite - ela disse. - Posso, pai? Tenho todas as
coisas embaladas.
- Uma lição curta, e assegure-se de que terá tempo para tomar
banho e mudar de roupa. Quero-a pronta para partir ao meio-dia,
entendido?
- Ao meio-dia - Arya confirmou. Sansa ergueu os olhos da comida.
- Se ela pode ter uma lição de dança, por que não me deixa dizer
adeus ao Príncipe Joffrey?
- De bom grado a acompanharia, Lorde Eddard - ofereceu-se Septã
Mordane. - Não haveria hipótese de ela perder o navio.
- Não seria sensato encontrar Joffrey agora, Sansa. Lamento. Os olhos
de Sansa encheram-se de lágrimas.
- Mas p o r q uê ?
- Sansa, o senhor seu pai sabe o que é melhor - disse Septã Mordane.
- Não deve questionar suas decisões.
- Não é ju s t o l - Sansa empurrou a mesa, derrubou a cadeira e fugiu
chorando do aposento privado,
Septã Mordane ergueu-se, mas Ned fez-lhe sinal para que voltasse a
se sentar.
- Deixe-a ir, septã. Tentarei fazê-la compreender quando estivermos
todos a salvo de volta a Winterfell - a septã inclinou a cabeça e
sentou-se para terminar a refeição.
Uma hora mais tarde, o Grande Meistre Pycelle foi encontrar Eddard
Stark em seu aposento privado. Trazia os ombros caídos, como se o
peso da grande corrente de meistre em volta do pescoço se tivesse
tornado grande demais para ele.
- Senhor - disse -, o Rei Robert partiu. Que os deuses lhe dêem
descanso.
- Não - respondeu Ned. - Ele detestava o descanso. Que os deuses lhe
dêem amor e risos, e a alegria de batalhas justas - era estranho como
se sentia vazio. Já esperava aquela visita, mas com aquelas palavras
algo morrera dentro dele. Teria trocado todos os seus títulos pela
liberdade de chorar.. mas era a Mão de Robert, e a hora que temia
chegara. - Tenha a bondade de convocar os membros do conselho
aqui para os meus aposentos - disse a Pycelle. A Torre da Mão estava
tão segura quanto ele e Tomard a tinham conseguido pôr. Não podia
dizer o mesmo das salas do conselho.
- Senhor? - Pycelle pestanejou. - Certamente que os assuntos do
reino podem esperar até amanhã, quando o nosso luto não estiver
tão fresco.
Ned mostrou-se calmo, mas firme.
- Temo que tenhamos de nos reunir de imediato. Pycelle fez uma
reverência.
- Às ordens da Mão - chamou os criados e os despachou
rapidamente, e em seguida aceitou com gratidão a oferta que Ned
lhe fez de uma cadeira e de uma taça de cerveja doce.
Sor Barristan Selmy foi o primeiro a responder à convocatória,
imaculado no seu manto branco e escamas esmaltadas:
- Senhores - disse -, o meu lugar é agora ao lado do jovem rei. Peço
licença para cuidar dele.
- O seu lugar é aqui, Sor Barristan - disse-lhe Ned.
Mindinho chegou em seguida, ainda vestido com o veludo azul e a
capa prateada com os tejos que usara na noite anterior, com as botas
empoeiradas de andar a cavalo.
- Senhores - disse, sorrindo para nada em particular antes de se virar
para Ned. - Aquela pequena tarefa que me atribuiu está realizada,
Lorde Eddard.
Varys entrou numa nuvem de alfazema, rosado do banho, com a cara
rechonchuda esfregada e empoada, os chinelos; tudo nada discreto.
- Os passarinhos cantam hoje uma canção penosa - disse enquanto se
sentava. - O reino chora. Começamos?
- Quando Lorde Renly chegar - Ned disse. Varys dirigiu-lhe um olhar
pesaroso.
- Temo que Lorde Renly tenha abandonado a cidade.
- Abandonado a c id ad e ? - Ned contava com o apoio de Renly.
- Retirou-se por uma poterna uma hora antes da alvorada,
acompanhado por Sor Loras Tyrell e cerca de cinquenta criados -
contou-lhes Varys. - Quando foram vistos pela última vez, galopavam
para o sul com alguma pressa, dirigindo-se sem dúvida para Ponta
Tempestade ou Jardim de Cima.
L á s e i a R e n l y e s e u s c e m s o l d a d o s , Ned não gostou do
cheiro daquilo, mas nada havia que pudesse fazer. Pegou a última
carta de Robert.
- O rei chamou-me ontem à noite e ordenou-me que registrasse suas
últimas palavras. Lorde Renly e o Grande Meistre Pycelle
testemunharam enquanto Robert selou a carta, a ser aberta pelo
conselho após a sua morte. Sor Barristan, por bondade?
O Senhor Comandante da Guarda Real examinou o papel.
- É o selo do Rei Robert, e está intacto - abriu a carta e leu. - Lorde
Eddard Stark é aqui nomeado Protetor do Território, para governar
como regente até que o herdeiro se torne maior de idade.
E p o r a c a s o e l e j á é m a i o r d e i d a d e , Ned refletiu, mas não
deu voz ao pensamento. Não confiava nem em Pycelle nem em Varys,
e Sor Barristan estava obrigado pela honra a proteger e defender o
rapaz que julgava ser seu novo rei. O velho cavaleiro não
abandonaria Joffrey facilmente. A necessidade de mentir deixava-lhe
um sabor amargo na boca, mas Ned sabia que ali tinha de pisar com
cuidado, tinha de guardar para si os seus projetos e jogar o jogo até
estar firmemente estabelecido como regente. Haveria tempo de tratar
da sucessão depois de Arya e Sansa estarem a salvo de volta a
Winterfell e de Lorde Stannis regressar a Porto Real com todo o seu
poder.
- Desejo pedir a este conselho que me confirme como Lorde Protetor,
segundo a vontade de Robert - Ned disse, observando o rosto dos
outros, perguntando a si mesmo que pensamentos se esconderiam
por trás dos olhos meio fechados de Pycelle, do meio sorriso
indolente de Mindinho e da nervosa agitação dos dedos de Varys,
A porta abriu-se. Gordo Tom entrou no aposento.
- Perdão, senhores, o intendente do rei insiste.. O intendente real
entrou e fez uma reverência.
- Estimados senhores, o rei exige a presença imediata do seu pequeno
conselho na sala do trono.
Ned esperava que Cersei atacasse rapidamente; a convocatória não
era surpresa.
- O rei está morto - disse -, mas iremos mesmo assim. Tom, reúna
uma escolta, por favor. Mindinho emprestou a Ned o braço para
ajudá-lo a descer os degraus. Varys, Pycelle e Sor
Barristan seguiam logo atrás. Uma coluna dupla de homens de armas
envergando cota de malha e capacetes de aço esperava à porta da
torre, oito ao todo. Os mantos cinza bateram ao vento enquanto os
guardas os acompanharam através do pátio. Não havia nenhum
carmesim Lannister à vista, mas Ned sentiu-se tranquilizado pelo
número de mantos dourados que estavam visíveis nos baluartes e
nos portões.
Janos Slynt os recebeu à porta da sala do trono, coberto com uma
ornamentada armadura em tons de ouro e negro, com um elmo de
crista alta debaixo do braço. O comandante fez uma reverência
rígida. Seus homens empurraram as grandes portas de carvalho, com
seis metros de altura e reforçadas a bronze.
O intendente real os fez entrar.
- Saúdem Sua Graça, Joffrey das Casas Baratheon e Lannister, o
Primeiro do Seu Nome, Rei dos Ândalos, dos Roinares e dos
Primeiros Homens, Senhor dos Sete Reinos e Protetor do Território -
cantou.
Era uma longa caminhada até o fundo do salão, onde Joffrey esperava
sentado no Trono de Ferro. Apoiado por Mindinho, Ned Stark coxeou
e saltitou lentamente na direção do rapaz que chamava a si próprio
de rei. Os outros os seguiram. A primeira vez que percorrera aquele
caminho tinha sido a cavalo, de espada na mão, e os dragões
Targaryen observavam das paredes quando ele forçara Jaime
Lannister a descer do trono. Perguntou a si mesmo se Joffrey
desceria com a mesma facilidade.
Cinco cavaleiros da Guarda Real - todos, menos Sor Jaime e Sor
Barristan - dispunham-se em meia-lua em torno da base do trono.
Trajavam armadura completa, aço esmaltado do elmo às botas de
ferro, longas capas claras sobre os ombros, brilhantes escudos
brancos atados ao braço esquerdo. Cersei Lannister e os dois filhos
mais novos estavam em pé atrás de Sor Borós e de Sor Meryn, A
rainha trazia um vestido de seda verde-mar, debruada com renda de
Myr clara como espuma. No dedo, tinha um anel dourado com uma
esmeralda do tamanho de um ovo de pombo, e na cabeça usava uma
tiara condizente.
Acima deles, o Príncipe Joffrey sentava-se no meio das farpas e das
hastes pontiagudas trajando um gibão de tecido de ouro e uma capa
vermelha de cetim. Sandor Clegane estava posicionado na base da
íngreme escada estreita do trono. Trazia cota de malha e armadura
cinza fuliginosa e o seu elmo em forma de cabeça de cão rosnando.
Atrás do trono esperavam vinte guardas Lannister com espadas
longas presas aos cintos. Mantos carmesins envolviam-lhes os ombros
e leões de aço encimavam seus elmos. Mas Mindinho cumprira a
promessa; ao longo das paredes, à frente das tapeçarias de Robert
com suas cenas de caça e batalha, as fileiras de mantos dourados da
Patrulha da Cidade estavam rigidamente em sentido, cada homem
com a mão agarrada à haste de uma lança de dois metros e meio de
comprimento terminada em ferro negro. Eram cinco para cada
homem dos Lannister.
A perna de Ned era um braseiro de dor quando parou. Manteve a
mão sobre o ombro de Mindinho para ajudar a suportar o peso.
Joffrey se levantou. Sua capa de cetim vermelho tinha um desenho
em fio de ouro; cinquenta leões rugindo de um lado, cinquenta
veados empinados do outro.
- Ordeno ao conselho que faça todos os preparativos necessários para
a minha coroação - proclamou o rapaz. - Desejo ser coroado esta
quinzena. Hoje, receberei juramentos de fidelidade dos meus leais
conselheiros.
Ned apresentou a carta de Robert.
- Lorde Varys, tenha a bondade de mostrar isto à senhora de
Lannister - o eunuco levou a carta a Cersei. A rainha deitou um
relance às palavras.
- Protetor do Território - leu. - Isto pretende ser o seu escudo,
senhor? Um pedaço de papel? - rasgou a carta ao meio, depois as
metades em quartos e deixou os pedaços flutuar até o chão.
- Essas eram as palavras do rei - disse Sor Barristan, chocado.
- Temos agora um novo rei - respondeu Cersei Lannister. - Lorde
Eddard, da última vez que conversamos, deu-me um conselho.
Permita-me que lhe devolva a cortesia. Dobre o joelho, senhor. Dobre
o joelho e jure fidelidade ao meu filho, e aceitaremos sua demissão
do cargo de Mão e seu retorno ao deserto cinzento a que chama
casa.
- Bem gostaria de poder fazê-lo - disse Ned sombriamente. Se ela
estava tão determinada a forçar o assunto aqui e agora, não lhe
deixava escolha. - Seu filho não tem direito ao trono em que se senta.
Lorde Stannis é o verdadeiro herdeiro de Robert.
- M e n t i r o s o ! - Joffrey gritou, com o rosto ficando vermelho.
- Mãe, o que ele quer dizer? - perguntou a Princesa Myrcella à
rainha num tom lamuriento. - Joff não é o rei agora?
- Condenou-se com sua própria boca, Lorde Stark - disse Cersei
Lannister. - Sor Barristan, prenda este traidor.
O Senhor Comandante da Guarda Real hesitou. Num piscar de olhos,
ficou rodeado de guardas Stark, com aço nu nos punhos revestidos
de malha.
- E agora a traição passa das palavras às ações - disse Cersei. - Julga
que Sor Barristan está só, senhor? - com um agourento raspar de
metal em metal, Cão de Caça desembainhou a espada. Os cavaleiros
da Guarda Real e vinte guardas Lannister vestidos de carmim
moveram-se em sua ajuda.
- M at e m - n o ! - gritou o jovem rei de cima do Trono de Ferro. -
M a t e m - n o s a t o d o s , s o u e u q u e m o r d e n o !
- Não me deixa escolha - disse Ned a Cersei Lannister, e gritou para
Janos Slynt: - Comandante, prenda a rainha e seus filhos. Não lhes
faça mal, mas escolte-os de volta aos aposentos reais e mantenha-os
lá, guardados.
- Homens da Patrulha! - gritou Janos Slynt, colocando o elmo. Uma
centena de homens de manto dourado apontaram as lanças e se
aproximaram.
- Não desejo derramamento de sangue - disse Ned à rainha. - Diga a
seus homens para abaixar as espadas, e ninguém precisa de..
Com uma única estocada violenta, o mais próximo dos homens de
manto dourado espetou a lança nas costas de Tomard. A arma de
Gordo Tom caiu de seus dedos sem força no momento em que a
úmida ponta vermelha surgiu dentre suas costelas, perfurando couro
e cota de malha. Estava morto antes de sua espada atingir o chão.
O grito de Ned chegou tarde demais. O próprio Janos Slynt abriu a
garganta de Varly. Cayn rodopiou, fazendo relampejar o aço, e
obrigou o lanceiro mais próximo a recuar com uma saraivada de
golpes; por um instante, pareceu que talvez conseguisse abrir
caminho até a liberdade. Mas então Cão de Caça caiu sobre ele. O
primeiro golpe de Sandor Clegane cortou a mão da espada de Cayn
pelo pulso; o segundo fê-lo cair de joelhos e o rasgou do ombro ao
esterno.
Enquanto seus homens morriam à sua volta, Mindinho tirou o
punhal de Ned da bainha e o apontou para sua garganta. Seu sorriso
como que pedia perdão.
- Avisei para não confiar em mim.
Arya
- Alto - gritou Syrio Forel, atirando um golpe à sua cabeça. As
espadas de pau fizeram c l a c quando Arya o parou.
- Esquerda - ele gritou, e sua lâmina aproximou-se assobiando. A
dela precipitou-se para pará-la, O c l a c fez Syrio estalar os dentes.
- Direita - ele disse, e "Baixo" e "Esquerda" e de novo "Esquerda"
mais e mais depressa, avançando. Arya recuou, parando todos os
golpes.
- Estocada - preveniu Syrio, e quando o golpe veio, ela se esquivou
para o lado, afastou a lâmina dele e atirou um contragolpe ao seu
ombro. Quase o tocou, q u a s e , ficou tão perto que sorriu. Uma
madeixa pendeu-lhe sobre os olhos, pesada de suor, afastou-a com as
costas da mão.
- Esquerda - Syrio cantou. - Baixo - sua espada era uma mancha
indistinta, e o Pequeno Salão ecoava com os c l a c , c l a c , c l a c . -
Esquerda. Esquerda. Alto. Esquerda. Direita. Esquerda. Baixo.
E s q u e r d a !
A lâmina de madeira a atingiu na parte superior do peito, num
súbito golpe que era mais doloroso por ter vindo do lado errado.
- A u - ela gritou. Teria ali um novo hematoma quando fosse dormir,
em algum lugar no mar. U m h e m a t o m a é u m a l i ç ã o , disse a si
mesma, e t o d a s a s l i ç õ e s n o s m e l h o r a m .
Syrio deu um passo para trás.
- Agora está agora morta.
Arya fez uma careta.
- Você me enganou - disse com veemência. - Disse esquerda e foi
pela direita.
- Precisamente. E agora é uma garota morta.
- Mas v o c ê m e n t i u!
- Minhas palavras mentiram. Os olhos e o braço gritaram a verdade,
mas você não estava vendo.
- Estava, sim - Arya rebateu. - Observei-o segundo a segundo!
- Observar não é ver, garota morta. O dançarino de água vê. Anda,
deixe a espada, agora é tempo de escutar.
Arya o seguiu até junto da parede, onde ele se instalou num banco.
- Syrio Forel foi a primeira espada do Senhor do Mar de Bravos, mas
saberá você como isso aconteceu?
- Você era o melhor espadachim da cidade.
- Precisamente. Mas por quê? Outros homens eram mais fortes, mais
rápidos, mais jovens. Por que Syrio Forel era o melhor? Vou lhe dizer
- tocou ligeiramente a pálpebra com a ponta do mindinho. - Ver, ver
realmente, é o coração de tudo. Escute-me. Os navios de Bravos
navegam até tão longe quanto os ventos sopram, até terras estranhas
e maravilhosas, e, quando regressam, seus capitães trazem animais
bizarros para a coleção do Senhor do Mar. Animais como você nunca
viu, cavalos listrados, grandes coisas malhadas com pescoços longos
como pernas de pau, ratos-porcos peludos do tamanho de vacas,
manticoras com espinhos, tigres que transportam as crias numa
bolsa, terríveis lagartos que caminham com foices no lugar das
garras. Syrio Forel viu estas coisas. No dia do qual falo, a primeira
espada tinha morrido havia pouco tempo e o Senhor do Mar mandou
me chamar. Muitos espadachins tinham sido levados à sua presença e
a todos mandara embora, sem que nenhum soubesse por quê.
Quando foi a minha vez, encontrei--o sentado com um gordo gato
amarelo ao colo. Disse-me que um dos capitães lhe tinha trazido o
animal de uma ilha para lá do sol nascente. "Já viu algum animal
como ela?", ele perguntou. E eu lhe disse: "Todas as noites, nas vielas
de Bravos, vejo mil como ele", e o Senhor do Mar riu e nesse mesmo
dia fui nomeado primeira espada. Arya contraiu o rosto.
- Não entendi.
Syrio rangeu os dentes.
- O gato era um gato comum, nada mais. Os outros esperavam um
animal fabuloso, e era isso que viam. Era tão grande, diziam. Não era
maior que qualquer outro gato, tinha apenas engordado devido à
indolência, pois o Senhor do Mar o alimentava de sua própria mesa.
Que curiosas pequenas orelhas possuía, diziam. Suas orelhas tinham
sido roídas em lutas entre crias. E era claramente um macho, mas o
Senhor do Mar dizia "ela", e era isso que os outros viam. Está
ouvindo?
Arya refletiu sobre aquilo.
- Viu o que havia para ver.
- Precisamente. Abrir os olhos era o quanto bastava. O coração
mente e a cabeça usa truques conosco, mas os olhos veem a verdade.
Olhe com os olhos. Ouça com os ouvidos. Saboreie com a boca.
Cheire com o nariz. Sinta com a pele. É então, depois, que chega o
tempo de pensar e de, assim, conhecer a verdade.
- Precisamente - Arya respondeu sorrindo. Syrio Forel permitiu-se
um sorriso.
- Estou pensando que quando chegarmos a esse seu Winterfell será
tempo de pôr esta agulha em sua mão.
- Sim! - Arya disse, entusiasmada. - Espere só que eu mostre ajon...
Atrás dela, as grandes portas de madeira do Salão Pequeno abriram-
se bruscamente com um estrondo ressonante. Arya virou-se sobre si
mesma.
Um cavaleiro da Guarda Real encontrava-se sob o arco da porta, com
cinco guardas dos Lannister enfileirados atrás dele. Trazia armadura
completa, mas o visor estava erguido. Arya lembrava-se de seus olhos
caídos e das suíças cor de ferrugem de quando estivera em Winterfell
com o rei: Sor Meryn Trant. Os homens de manto vermelho usavam
cota de malha sobre couro fervido e capacetes de aço decorados com
leões.
- Arya Stark - disse o cavaleiro -, venha conosco, filha. Arya mordeu
o lábio, insegura.
- O que vocês querem?
- Seu pai quer vê-la.
Arya deu um passo em frente, mas Syrio Forel a segurou pelo braço.
- E por que é que Lorde Eddard enviaria homens dos Lannister em
lugar dos seus? Estou curioso,
- Ponha-se no seu lugar, mestre de dança - disse Sor Meryn. - Isto
não lhe diz respeito.
- Meu pai não os enviaria - Arya disse. E agarrou a espada de pau.
Os Lannister riram.
- Pouse o pau, menina - disse-lhe Sor Meryn. - Sou um Irmão
Juramentado da Guarda Real, as Espadas Brancas.
- Também o Regicida o era quando matou o antigo rei - Arya
lembrou. - Não tenho de ir com vocês se não quiser.
Sor Meryn Trant ficou sem paciência.
- Capturem-na - ordenou a seus homens e abaixou o visor do elmo.
Três dos homens avançaram, fazendo tilintar suavemente a cota de
malha a cada passo. Arya sentiu um medo súbito. O m e d o
g o l p e i a m a i s p r o f u n d a m e n t e q u e a s e s p a d a s , disse a si
mesma a fim de acalmar as batidas do coração.
Syrio Forel interpôs-se entre os homens e Arya, que batia levemente
com a espada de madeira na bota.
- Parem aí mesmo. São homens ou cães para ameaçar uma criança?
- Saia da frente, velho - disse um dos homens de manto vermelho.
A espada de madeira de Syrio subiu assobiando e ressoou contra o
elmo do homem.
- Chamo-me Syrio Forel, e vai se dirigir a mim com mais respeito.
- Maldito careca - o homem puxou a espada. A madeira voltou a
movimentar-se com uma rapidez que cegava. Arya ouviu um sonoro
c r a c quando a espada bateu ruidosamente no chão de pedra. -
Minha m ã o - gemeu o guarda, agarrando os dedos quebrados.
- É rápido para um mestre de dança - Sor Meryn disse.
- É lento para um cavaleiro - Syrio respondeu.
- Matem o bravosiano e tragam-me a menina - ordenou o cavaleiro
da armadura branca. Quatro guardas Lannister desembainharam as
espadas, O quinto, o dos dedos quebrados, cuspiu e puxou um
punhal com a mão esquerda.
Syrio Forel rangeu os dentes, pondo-se na sua posição de dançarino
de água, apresentando apenas o flanco ao inimigo.
- Arya, minha filha - chamou, sem olhar para ela, sem nunca tirar os
olhos dos Lannister -, basta de dança por hoje. É melhor que vá
embora. Corra para junto do seu pai.
Arya não queria deixá-lo, mas Syrio a ensinara a fazer o que lhe
dizia.
- L i ge i r a c o m o u m a c o r ç a - sussurrou.
- Precisamente - disse Syrio Forel, enquanto os Lannister se
aproximavam.
Arya recuou, com a espada de madeira bem apertada na mão. Ao vê-
lo agora, compreendeu que Syrio se limitara a brincar com ela nos
seus duelos. Os homens de manto vermelho aproximavam-se dele
por três lados, de aço nas mãos. Tinham o peito e braços revestidos
de cota de malha, e uma malha de aço cosida às calças, mas apenas
couro nas pernas. As mãos estavam nuas, e os capacetes que usavam
tinham protetores para o nariz, mas não uma viseira sobre os olhos.
Syrio não esperou que o alcançassem e girou para a esquerda. Arya
nunca vira alguém mover-se tão depressa. O bravosiano parou um
golpe de espada com seu pedaço de pau e rodopiou para longe de
uma segunda lâmina. Desequilibrado, o segundo homem cambaleou
sobre o primeiro. Syrio deu-lhe com uma bota nas costas, e os
homens de vermelho caíram juntos. O terceiro guarda saltou por
cima dos companheiros, dando um golpe na cabeça do dançarino de
água. Syrio esquivou-se sob a lâmina e deu uma estocada de baixo
para cima. O guarda caiu aos gritos, jorrando sangue do úmido
buraco vermelho que se abrira onde estivera seu olho esquerdo.
Os homens que tinham caído estavam se levantando. Syrio
pontapeou um deles na cara e arrancou o capacete de aço da cabeça
do outro, O homem da adaga tentou apunhalá-lo. Syrio defendeu-se
com o capacete e partiu-lhe a rótula com a espada de pau. O último
homem de vermelho gritou uma praga e avançou, brandindo a
espada de cima para baixo com as duas mãos. Syrio rolou para a
direita, e aquele golpe de carniceiro atingiu entre o pescoço e o
ombro do homem sem capacete, que tentava se ajoelhar. A longa
espada triturou cota de malha, couro e carne. O homem de joelhos
guinchou. Antes que seu assassino conseguisse libertar a espada,
Syrio deu-lhe uma estocada no pomo de adão. O guarda soltou um
grito sufocado e cambaleou para trás, agarrado ao pescoço, com o
rosto já enegrecendo.
Quando Arya alcançou a porta dos fundos, que dava para a cozinha,
cinco homens estavam caídos, mortos ou morrendo. Ouviu Sor
Meryn Trant praguejar.
- Malditos idiotas - resmungou, sacando a espada da bainha. Syrio
Forel regressou à sua posição e rangeu os dentes.
- Arya, minha filha - chamou, sem nunca olhar para ela -, vá embora
agora.
O l h e c o m o s o l h o s , dissera ele. E ela via: o cavaleiro coberto dos
pés à cabeça pela armadura branca, com as pernas, garganta e mãos
revestidos de metal, os olhos escondidos atrás do grande elmo
branco, e aço afiado nas mãos. Contra aquilo: Syrio, vestido de couro,
com uma espada de madeira na mão.
- S y r i o , f u j a - ela gritou.
- A primeira espada de Bravos não foge - ele cantou, enquanto Sor
Meryn lhe desferia um golpe. Syrio pulou para longe, fazendo do pau
uma mancha indistinta. Num instante, tinha lançado golpes contra a
têmpora, o cotovelo e a garganta do cavaleiro, fazendo a madeira
ressoar contra elmo, manopla e gorjal. Arya não conseguia se mexer.
Sor Meryn avançou; Syrio recuou. Parou o golpe seguinte, rodopiou
para longe do alcance do segundo e se desviou do terceiro.
O quarto cortou a espada de pau em dois, estilhaçando a madeira e
estraçalhando-a através do núcleo de chumbo.
Aos soluços, Arya virou-se e fugiu.
Mergulhou através das cozinhas e da despensa, cega de pânico,
serpenteando entre cozinheiros e aprendizes. Uma ajudante de
padeiro surgiu na sua frente, segurando um tabuleiro de madeira.
Arya atirou-o ao chão, espalhando por todo o lado cheirosos pães
frescos. Ouviu gritos atrás de si enquanto rodopiava em torno de um
corpulento carniceiro que ficou a olhá-la de boca aberta com um
cutelo na mão. Tinha os braços vermelhos até o cotovelo.
Tudo o que Syrio Forel lhe ensinara passou-lhe num ápice pela
cabeça. L i g e i r a c o m o u m a c o r ç a . S i l e n c i o s a c o m o u m a
s o m b r a . O m e d o g o l p e i a m a i s p r o f u n d a m e n t e q u e a s
e s p a d a s . F o r t e c o m o u m u r s o . F e r o z c o m o u m g l u t ã o .
O m e d o g o l p e i a m a i s p r o f u n d a m e n t e q u e a s e s p a d a s .
O h o m e m q u e t e m e p e r d e r j á p e r d e u . O m e d o g o l p e i a
m a i s p r o f u n d a m e n t e q u e a s e s p a d a s . O m e d o g o l p e i a
m a i s p r o f u n d a m e n t e q u e a s e s p a d a s . O m e d o g o l p e i a
m a i s p r o f u n d a m e n t e q u e a s e s p a d a s . O punho da espada
de madeira estava escorregadio de suor, e Arya respirava com força
quando chegou à escada da torre. Por um instante, congelou. Para
cima ou para baixo? O caminho para cima levaria à ponte coberta
que atravessava o pátio pequeno até a Torre da Mão, mas este seria
certamente o trajeto que esperavam que seguisse. N u n c a f a ç a o
q u e e l e s e s p e r a m , dissera Syrio uma vez. Arya desceu, numa
longa espiral, saltando sobre os estreitos degraus de pedra, dois e
três de cada vez. Emergiu numa cavernosa adega abobadada e viu-se
rodeada por barris de cerveja empilhados até chegar a seis metros de
altura. A única luz que ali havia atravessava estreitas janelas oblíquas,
abertas bem alto nas paredes.
A adega era um beco sem saída. Não havia caminho a não ser aquele
por onde viera. Não se atrevia a voltar e subir aqueles degraus, mas
também não poderia ficar ali. Tinha de encontrar seu pai e lhe
contar o que acontecera, Ele a protegeria.
Arya enfiou a espada de madeira no cinto e começou a escalar,
saltando de barril em barril até conseguir alcançar uma janela.
Agarrando-se à pedra com as duas mãos, subiu. A parede tinha
quase um metro de espessura, e a janela era um túnel inclinado para
cima e para fora. Arya torceu-se em direção da luz do dia. Quando a
cabeça atingiu o nível do chão, espreitou a Torre da Mão, do outro
lado da muralha.
A robusta porta de madeira pendia, lascada e partida, como se
tivesse sido derrubada por machados. Um homem jazia morto nos
degraus, de barriga para baixo, com a capa enrolada debaixo do
corpo e as costas da cota de malha ensopadas de vermelho. Arya viu
com terror que a capa do cadáver era de lã cinza, debruada de cetim
branco. Não conseguia ver quem ele era.
- N ã o - sussurrou. O que estava acontecendo? Onde estava seu pai?
Por que os homens de manto vermelho tinham ido buscá-la?
Lembrou-se do que dissera o homem da barba amarela no dia em
que encontrara os monstros. S e u m a M ã o p o d e m o r r e r , p o r
q u e n ã o u m a s e g u n d a ? Sentiu lágrimas nos olhos. Prendeu a
respiração para escutar. Ouviu os sons de luta, berros, gritos, o
clangor do aço batendo em aço, atravessando as janelas da Torre da
Mão.
Não podia regressar. Seu pai...
Arya fechou os olhos. Durante um instante, ficou assustada demais
para se mover, Tinham matado Jory, Wyl e Heward, e aquele guarda
no degrau, quem quer que ele fosse, Podiam também matar seu pai,
e ela, se a apanhassem.
- O m e d o g o l p e i a m a i s p r o f u n d a m e n t e q u e a s e s p a d a s
- disse em voz alta, mas de nada servia fingir que era uma dançarina
de água; Syrio fora um dançarino de água e àquela altura era pro-
vável que o cavaleiro branco o tivesse matado, e de qualquer forma
ela era apenas uma garotinha com um pedaço de pau, só e assustada.
Escalou até o pátio, olhando em volta com cuidado enquanto se
punha em pé, O castelo parecia deserto, A Fortaleza Vermelha
n u n c a f i c a v a deserta. Todo mundo devia estar escondido atrás de
portas trancadas. Arya deu uma espiada ansiosa à janela do seu
quarto e depois afastou--se da Torre da Mão, mantendo-se junto ao
muro enquanto deslizava de sombra em sombra. Fez de conta que
estava à caça de gatos... exceto que agora ela era o gato, e, se fosse
apanhada, a matariam.
Movimentando-se entre os edifícios e por cima de muros, mantendo-
se encostada às paredes sempre que possível para que ninguém fosse
capaz de surpreendê-la, Arya chegou aos estábulos quase sem
incidentes. Uma dúzia de homens de manto dourado protegidos por
armaduras e cota de malha passou por ela correndo, enquanto
avançava com cuidado pela muralha interior, mas, como não sabia de
que lado eles estavam, agachou-se nas sombras e os deixou passar.
Hullen, que fora mestre dos cavalos em Winterfell desde que Arya
conseguia recordar, estava esparramado no chão junto à porta dos
estábulos. Fora apunhalado tantas vezes que sua túnica parecia ter
um padrão de flores escarlates. Arya tinha certeza de que ele estava
morto, mas quando se aproximou seus olhos se abriram.
- Arya Debaixo dos Pés - ele sussurrou. - Tem. . prevenir o.. senhor
seu pai... - uma espumosa saliva vermelha saiu de sua boca
borbulhando. O mestre dos cavalos voltou a fechar os olhos e nada
mais disse.
Lá dentro havia mais corpos: um cavalariço com quem brincara e
três dos guardas da Casa de seu pai. Uma carroça, carregada de
caixotes e arcas, estava abandonada perto da porta do estábulo. Os
mortos a deviam estar carregando para a viagem até as docas
quando foram atacados. Arya esgueirou-se para mais perto. Um dos
cadáveres era Desmond, o homem que lhe mostrara a espada e
prometera proteger seu pai. Jazia de costas, com os olhos cegos fixos
no teto enquanto moscas caminhavam por cima deles. Um morto
vestido com o manto vermelho e o elmo do leão dos Lannister estava
perto dele. Mas era só um. C a d a n o r t e n h o v a l e t a n t o c o m o
d e z d e s s e s s o l d a d o s d o s u l , dissera-lhe Desmond.
- M e n t i r o s o ! - Arya disse, e deu um pontapé no corpo numa fúria
súbita.
Os animais estavam inquietos nas cocheiras, relinchando e
resfolegando devido ao cheiro de sangue. O único plano de Arya era
selar um cavalo e fugir, para longe do castelo e da cidade. Tudo o
que tinha a fazer era permanecer na Estrada do Rei, que a levaria até
Winterfell. Tirou da parede um freio e arreios.
Ao passar pela parte de trás da carroça, uma arca caída chamou sua
atenção. Devia ter sido atirada ao chão durante a luta, ou então caíra
enquanto estava sendo carregada. A madeira quebrara-se e a tampa
abrira-se, derramando o conteúdo pelo chão. Arya reconheceu sedas,
cetins e veludos que nunca usava. Mas poderia precisar de roupas
quentes na Estrada do Rei... e além disso...
Ajoelhou-se na terra por entre a roupa espalhada. Encontrou uma
capa pesada de lã, uma saia de veludo, uma túnica de seda e alguma
roupa de baixo, um vestido que sua mãe tinha bordado para ela, uma
pulseira de criança em prata que poderia vender. Atirando a tampa
partida para longe, apalpou dentro da arca, em busca da Agulha.
Tinha-a escondido bem no fundo, debaixo de tudo, mas as coisas
tinham se misturado todas quando a arca caíra. Por um momento
Arya temeu que alguém tivesse encontrado e roubado a espada. Mas
então seus dedos detectaram a dureza do metal sob um vestido de
cetim.
- Aí está ela - sibilou uma voz, bem perto, às suas costas.
Sobressaltada, Arya rodopiou. Um cavalariço estava em pé atrás dela,
com um sorriso estúpido no rosto e uma imunda túnica de baixo
branca espreitando de sob um colete manchado, Tinha as botas
cobertas de estrume e uma forquilha na mão.
- Quem é você? - ela perguntou.
- Ela não me conhece - ele disse -, mas eu a conheço, ah, sim. A
menina-lobo.
- Ajude-me a selar um cavalo - Arya pediu, enfiando a mão na arca,
procurando a Agulha às apalpadelas. - Meu pai é a Mão do Rei, ele te
dará uma recompensa.
- O pai tá m o rt o - disse o rapaz. Aproximou-se, arrastando os pés,
- É a rainha que vai me dar recompensa. Vem cá, menina.
- Fica aí! - os dedos dela fecharam-se em torno do cabo da Agulha.
- Eu disse v e m - ele agarrou seu braço com força.
Tudo o que Syrio Forel lhe ensinara desapareceu num instante.
Naquele momento de súbito terror, a única lição que Arya conseguiu
recordar foi aquela que Jon Snow lhe dera, a primeira de todas.
Espetou nele a ponta aguçada, empurrando a lâmina para cima com
uma força selvagem e histérica.
A Agulha trespassou o colete de couro e a carne branca da barriga
do rapaz e saiu entre as omoplatas. Ele deixou cair a forquilha e fez
um som suave, algo entre um arquejo e um suspiro. As mãos
fecharam-se em torno da lâmina.
- Ah, deuses - gemeu, quando a túnica de baixo começou a ficar
vermelha. - Tire-a de mim,
Quando ela puxou a espada, ele morreu.
Os cavalos relinchavam. Arya ficou em pé junto ao corpo, imóvel e
assustada perante a morte. Jorrara sangue da boca do rapaz quando
caíra, e mais sangue saía da incisão na sua barriga, acumulando-se
num charco por baixo do corpo. Tinha as palmas das mãos cortadas
onde se agarrara à lâmina. Arya recuou lentamente, com Agulha,
vermelha, na mão. Tinha de sair dali, ir para algum lugar distante,
para algum lugar seguro, longe dos olhos acusadores do cavalariço.
Voltou a pegar o freio e os arreios e correu para a sua égua, mas, ao
erguer a sela por cima do dorso do cavalo, Arya compreendeu com
um súbito terror que os portões do castelo estariam fechados.
Mesmo as portas da entrada falsa estariam provavelmente guardadas.
Os guardas talvez não a reconhecessem. Se pensassem que era um
rapaz, talvez a deixassem. . não, teriam ordens para não deixar
n i n g u é m sair, não importaria se a conheciam ou não.
Mas havia outra saída do castelo...
A sela escorregou dos dedos de Arya e caiu ao chão com um baque e
uma nuvem de pó. Seria capaz de voltar a encontrar a sala com os
monstros? Não tinha certeza, mas sabia que tinha de tentar.
Encontrou as roupas que tinha reunido e enrolou-se na capa,
escondendo Agulha sob as suas dobras. Atou o resto numa trouxa.
Com o embrulho debaixo do braço, esgueirou-se para o fundo do
estábulo. Destrancando a porta dos fundos, espreitou para fora,
ansiosa. Conseguia ouvir os sons distantes de espadas e o trêmulo
pranto de um homem que gritava de dor do outro lado da muralha.
Teria que descer a escada em espiral, atravessar a cozinha pequena e
o pátio dos porcos; fora esse o caminho que tomara da outra vez,
quando perseguia o gato preto.. só que isso a levaria a passar
justamente em frente da caserna dos homens de manto dourado. Não
podia ir por aí. Arya tentou pensar em outro caminho. Se
atravessasse o castelo até o outro lado, poderia avançar ao longo da
muralha do rio e através do pequeno bosque sagrado..., mas primeiro
tinha de atravessar o pátio, bem à vista dos guardas nas muralhas.
Nunca vira tantos homens nas muralhas. A maior parte usava
mantos dourados e estava armada com lanças. Alguns a conheciam
de vista, Que fariam se a vissem correndo através do pátio? Vista lá
de cima, ela devia parecer muito pequena; seriam eles capazes de
reconhecê-la? E se importariam?
Disse a si mesma que tinha de se pôr andando a g o r a , mas quando
o momento chegou descobriu-se assustada demais para se mover.
C a l m a c o m o á g u a s p a r a d a s , sussurrou-lhe uma pequena voz
ao ouvido. Arya ficou tão sobressaltada que quase deixou cair a
trouxa. Olhou vivamente em volta, mas não havia ninguém no
estábulo além dela, dos cavalos e dos homens mortos.
S i l e n c i o s a c o m o u m a s o m b r a , ouviu. Seria sua voz ou a de
Syrio? Não saberia dizer, mas de algum modo a voz acalmou-lhe os
receios.
Deu um passo para fora do estábulo.
Foi a coisa mais assustadora que já fizera. Quis fugir e esconder-se,
mas obrigou-se a c a m i n h a r através do pátio, lentamente,
colocando um pé à frente do outro como se tivesse todo o tempo do
mundo e nenhuma razão para temer fosse quem fosse. Pareceu-lhe
que conseguia sentir os olhos deles, como bichos rastejando pela sua
pele sob a roupa. Nunca olhou para cima. Sabia que, se os visse, toda
a coragem a abandonaria, e deixaria cair a trouxa de roupa e fugiria
chorando como um bebê, e então eles a teriam nas mãos. Manteve os
olhos no chão.
Quando atingiu a sombra do septo real, do outro lado do pátio,
estava gelada de suor, mas ninguém dera o alarme.
O septo estava aberto e vazio. Lá dentro, meia centena de velas de
oração ardia num silêncio odorífero. Arya achou que os deuses nunca
dariam pela falta de duas. Apagou-as, enfiou-as nas mangas e saiu
por uma janela dos fundos. Esgueirar-se até a viela onde encurralara
o gato zarolho foi fácil, mas depois disso se perdeu. Rastejou para
dentro e para fora de janelas, saltou por cima de muros e atravessou
caves escuras às apalpadelas, silenciosa como uma sombra. Ouviu
uma mulher chorar. Levou mais de uma hora para encontrar a janela
baixa e estreita que se inclinava para a masmorra onde os monstros
a esperavam.
Atirou a trouxa pela janela e voltou atrás para acender a vela. Foi um
risco; a fogueira que se lembrava de ter visto tinha se reduzido a
brasas, e ouviu vozes quando soprava os carvões. Pondo os dedos em
taça em volta da tremeluzente vela, saiu pela janela no momento em
que os donos das vozes entravam pela porta, mas não chegou a vê-
los, nem mesmo de relance.
Daquela vez os monstros não a assustaram. Pareciam quase velhos
amigos. Arya segurou a vela acima da cabeça. A cada passo que dava,
as sombras moviam-se contra as paredes, como se se virassem para
vê-la passar.
- Dragões - sussurrou. Tirou Agulha de dentro da capa. A esguia
lâmina parecia muito pequena e os dragões, muito grandes, mas de
alguma forma ela se sentia melhor com o aço na mão.
O longo salão sem janelas que se estendia para lá da porta era tão
negro como Arya recordava. Empunhou Agulha com a mão esquerda,
sua mão da espada, e a vela com a direita. Cera quente escorria-lhe
pelos nós dos dedos. A boca do poço ficava do lado esquerdo;
portanto, virou para a direita. Parte dela queria correr, mas tinha
medo de apagar a vela. Ouviu os tênues guinchos das ratazanas e
vislumbrou um par de minúsculos olhos brilhantes no limite da luz,
mas ratazanas não a assustavam. Outras coisas sim. Seria tão fácil
esconder-se ali, como ela se escondera do feiticeiro e do homem com
a barba bifurcada. Quase conseguia ver o cavalariço em pé contra a
parede, de mãos enroladas em garras, com o sangue ainda pingando
dos profundos golpes nas palmas, onde Agulha as cortara. Podia
estar à espera de agarrá-la quando passasse. Veria sua vela se
aproximando de uma grande distância. Arya talvez ficasse melhor
sem a luz..
O m e d o g o l p e i a m a i s p r o f u n d a m e n t e q u e a s e s p a d a s ,
segredou a voz baixa dentro dela. De repente, Arya lembrou-se das
criptas de Winterfell. Disse a si mesma que eram muito mais assus-
tadoras que aquele lugar. Era apenas uma menininha quando as vira
pela primeira vez. Seu irmão Robb os levara até lá embaixo, ela,
Sansa e o bebê Bran, que então não era maior que Rickon era agora.
Possuíam apenas uma vela para todos, e os olhos de Bran tinham se
tornado grandes como pires quando ele olhara as caras de pedra dos
Reis do Inverno, com os lobos a seus pés e as espadas de ferro sobre
as pernas.
Robb levara-os bem até o fundo, para lá do avô, de Brandon e de
Lyanna, para lhes mostrar suas próprias sepulturas. Sansa não tirara
os olhos da velinha atarracada, temendo que se apagasse. A Velha
Ama dissera-lhe que ali embaixo havia aranhas e ratazanas do
tamanho de cães. Robb sorrira quando ela disse aquilo, "Há coisas
piores que aranhas e ratazanas", sussurrara. "É aqui que os mortos
caminham," Foi então que ouviram o som, baixo, profundo e trêmulo.
O pequeno Bran agarrara-se à mão de Arya.
Quando o espírito saíra da tumba aberta, branco e gemendo por
sangue, Sansa fugira aos gritos para a escada, e Bran enrolara-se na
perna de Robb, soluçando. Arya mantivera-se firme e dera um murro
no espírito. "Seu estúpido", dissera-lhe, "assustou o bebê", mas Jon e
Robb limitaram-se a rir, e em breve Bran e Arya também começaram
a rir.
A recordação a fez sorrir, e dali em diante a escuridão deixou de
conter terrores. O cavalariço estava morto, ela o matara e, se ele
saltasse sobre ela, o mataria de novo. Arya ia para casa. Tudo seria
melhor quando estivesse de novo em casa, segura entre as muralhas
cinzentas de granito de Winterfell.
Seus passos fizeram correr suaves ecos à frente enquanto
mergulhava mais profundamente na escuridão.
Sansa
Vieram buscar Sansa no terceiro dia.
Escolheu um vestido simples de lã cinza-escuro, com um corte
despretensioso, mas ricamente bordado em volta do colarinho e das
mangas. Sentiu os dedos grossos e desajeitados enquanto lutava com
as presilhas de prata sem a ajuda de criados, Jeyne Poole fora
confinada com ela, mas Jeyne não servia para nada, Tinha a cara
inchada de tanto chorar, e não parecia ser capaz de parar de soluçar
por causa do pai.
- Estou certa de que seu pai está bem - Sansa lhe disse, quando
finalmente conseguiu abotoar bem o vestido. - Pedirei à rainha que a
deixe vê-lo - pensou que a gentileza talvez melhorasse o estado de
espírito de Jeyne, mas a moça limitou-se a olhá-la com olhos
vermelhos e inchados, e pôs-se a chorar ainda mais. Era uma
c r i a n ç a .
Sansa também tinha chorado, no primeiro dia. Mesmo dentro dos
robustos muros da Fortaleza de Maegor, com a porta fechada e
trancada, era difícil não ficar aterrorizada quando a matança
começou. Crescera ao som do aço, no pátio, e dificilmente se passara
um dia da sua vida em que não tivesse escutado o estrondo de
espadas que se cruzavam, mas saber que a luta era real fazia toda a
diferença do mundo. Ouvira esse som como nunca o tinha ouvido
antes, e também outros, grunhidos de dor, pragas iradas, gritos por
ajuda e os gemidos dos feridos e moribundos. Nas canções os
cavaleiros nunca gritavam nem suplicavam por misericórdia.
Por isso, chorou, suplicando, através da porta, que lhe dissessem o
que estava acontecendo, chamando pelo pai, pela Septã Mordane,
pelo rei, pelo seu galante príncipe. Se os homens que a guardavam
ouviram suas súplicas, não lhes deram resposta. A única vez que a
porta se abriu já era tarde, naquela noite, quando atiraram Jeyne
Poole para dentro do quarto, machucada e tremendo. " E s t ã o
m a t a n d o t o d o m u n d o " , choramingou a filha do intendente. E
falou, e continuou a falar. Dissera que Cão de Caça lhe derrubara a
porta com um machado de guerra. Que havia corpos na escada da
Torre da Mão e que os degraus estavam escorregadios de sangue.
Sansa secou as lágrimas enquanto tentava confortar a amiga.
Adormeceram na mesma cama, aninhadas nos braços uma da outra,
como irmãs.
O segundo dia foi ainda pior. O quarto em que Sansa foi confinada
ficava no topo da torre mais alta do castelo de Maegor. Da janela
podia ver que a pesada porta levadiça do portão estava descida e que
a ponte levadiça estava içada sobre o profundo fosso seco que
separava a fortaleza-dentro-de-uma-fortaleza do castelo maior que a
rodeava. Guardas dos Lannister percorriam as muralhas armados de
lanças e atiradeiras. A luta tinha terminado, e um silêncio de túmulo
caíra sobre a Fortaleza Vermelha. Os únicos sons que se ouviam
eram os intermináveis choros e soluços de Jeyne Poole.
Eram alimentadas - queijo duro, pão fresco e leite no café da manhã,
galinha assada e verduras ao meio-dia e uma ceia com carne de vaca
e cevada -, mas os criados que traziam as refeições não respondiam
às perguntas de Sansa. Naquela noite, algumas mulheres trouxeram-
lhe roupas da Torre da Mão, e também algumas das coisas de Jeyne,
mas pareciam quase tão assustadas como Jeyne, e quando Sansa
tentou falar com elas, fugiram como se ela tivesse a praga cinzenta.
Os guardas, lá fora, continuavam se recusando a deixá-la sair do
quarto,
- Por favor, preciso falar de novo com a rainha - Sansa lhes disse, tal
como o dissera a todas as pessoas que vira naquele dia. - Ela vai
querer falar comigo, eu sei que vai. Diga-lhe que desejo vê-la, por
favor. Se não a rainha, então o Príncipe Joffrey, por obséquio.
Deveremos casar quando formos mais velhos.
Ao pôr do sol do segundo dia um grande sino começou a repicar.
Tinha um tom profundo e sonoro, e o longo e lento repique encheu
Sansa com uma sensação de pavor. O toque soou e ressoou, e ao fim
de algum tempo ouviram outros sinos que respondiam do Grande
Septo de Baelor, na Colina de Visenya. O som retumbou pela cidade
como um trovão, avisando que a tempestade já vinha.
- O que está acontecendo? - perguntou Jeyne, cobrindo os ouvidos. -
Por que os sinos estão tocando?
- O rei está morto - Sansa não poderia dizer como sabia aquilo, mas
sabia. O lento repique, que parecia não ter fim, enchia o quarto, tão
pesaroso como uma poesia fúnebre. Teria algum inimigo assaltado o
castelo e matado o Rei Robert? Seria este o significado da luta que
tinham ouvido?
Foi dormir curiosa, inquieta e com medo. Seu belo Joffrey agora seria
rei? Ou talvez estivesse morto também? Sentia medo por ele e pelo
pai. Se ao menos lhe dissessem o que estava acontecendo..
Naquela noite, Sansa sonhou com Joffrey no trono, com ela sentada
ao seu lado num vestido de ouro trançado. Tinha uma coroa na
cabeça, e todas as pessoas que conhecera tinham vindo à sua
presença, para se ajoelhar e proferir suas cortesias.
Na manhã seguinte, do terceiro dia, Sor Borós Blount, da Guarda
Real, veio escoltá-la até a presença da rainha.
Sor Borós era um homem feio, com peito largo e pernas curtas e
arqueadas. Tinha nariz achatado, bochechas pendentes, cabelos
grisalhos e quebradiços. Naquele dia trajava veludo branco, e sua
capa nevada estava presa com um broche em forma de leão. O
animal possuía o brilho suave do ouro, e seus olhos eram minúsculos
rubis.
- O senhor está muito garboso e magnífico hoje, Sor Borós - Sansa
lhe disse.
Uma senhora lembrava-se da boa educação, e ela estava decidida a
ser uma senhora, acontecesse o que acontecesse.
- A senhora também - disse Sor Borós numa voz sem expressão. -
Sua Graça a espera. Venha comigo.
Havia guardas à sua porta, homens de armas Lannister com capas
carmesins e elmos decorados com leões. Sansa forçou-se a sorrir-lhes
agradavelmente e desejou-lhes um bom-dia ao passar. Era a primeira
vez que era autorizada a sair do aposento desde que Sor Arys
Oakheart lá a deixara, duas manhãs antes. "Para mantê-la em
segurança, minha querida", dissera-lhe a Rainha Cersei. "Joffrey nunca
me perdoaria se alguma coisa acontecesse à sua preciosa dama."
Sansa esperava que Sor Borós a escoltasse aos aposentos reais, mas,
em vez disso, a levou para fora do castelo de Maegor. A ponte estava
de novo abaixada. Um grupo de trabalhadores içava um homem
preso com cordas para dentro do fosso seco. Quando Sansa
espreitou, viu um corpo empalado nas enormes hastes de ferro, lá
embaixo. Desviou o olhar rapidamente, com medo de perguntar, com
medo de olhar por muito tempo, com medo de que pudesse ser
alguém que conhecia.
Foram encontrar a Rainha Cersei na câmara do conselho, sentada à
cabeceira de uma longa mesa apinhada de papéis, velas e blocos de
cera para selos. A sala era mais magnífica que qualquer outra que
Sansa tivesse visto. Fitou, maravilhada, o painel de madeira entalhada
e as esfinges gêmeas sentadas ao lado da porta.
- Vossa Graça - disse Sor Borós quando foram introduzidos na sala
por outro membro da Guarda Real, Sor Mandon, com a sua curiosa
cara morta. - Trouxe a jovem.
Sansa tivera esperança de que Joffrey estivesse com a mãe. Seu
príncipe não se encontrava ali, mas três dos conselheiros do rei, sim.
Lorde Petyr Baelish sentava-se à esquerda da rainha, o Grande
Meistre Pycelle ao fundo da mesa, enquanto Lorde Varys pairava
sobre eles, cheirando a flores. Todos trajavam preto, Sansa viu com
uma sensação de pavor. Roupas de luto...
A rainha trazia um vestido de seda negra de colarinho alto, com uma
centena de rubis vermelhos escuros bordados no corpete, cobrindo-a
do pescoço até os seios. Tinham sido cortados em forma de lágrimas,
como se a rainha estivesse chorando sangue, Cersei sorriu ao vê-la, e
Sansa pensou que aquele era o sorriso mais doce e triste que jamais
vira.
- Sansa, minha querida filha - disse -, sei que tem perguntado por
mim. Lamento não ter podido mandar chamá-la mais cedo. As coisas
têm estado muito agitadas, e não tive um momento livre. Espero que
meu pessoal tenha tratado bem de você.
- Foram todos muito bons e agradáveis, Vossa Graça, muito
agradecida pelo cuidado - Sansa disse polidamente. - Só que, bem,
ninguém quer falar conosco ou nos contar o que aconteceu..
- Conosco? - Cersei parecia confusa.
- Ela está com a filha do intendente - disse Sor Borós. - Não sabíamos
o que fazer com ela. A rainha franziu as sobrancelhas.
- Da próxima vez, pergunte - sua voz soou dura. - Só os deuses
sabem com que tipo de histórias ela tem enchido a cabeça de Sansa.
- Jeyne está assustada - Sansa disse logo. - Não para de chorar.
Prometi-lhe que perguntaria se pode ver o pai.
O velho Grande Meistre Pycelle baixou os olhos.
- O pai dela está bem, não está? - Sansa perguntou ansiosamente.
Sabia que tinha havido luta, mas certamente ninguém faria mal a um
intendente. Vayon Poole nem sequer usava uma espada.
A rainha Cersei olhou para os conselheiros, um de cada vez.
- Não quero que Sansa se aflija sem necessidade. Que faremos com
esta sua amiguinha, senhores?
Lorde Petyr inclinou-se para a frente.
- Encontrarei um lugar para ela.
- Na cidade, não - a rainha se exaltou.
- Toma-me por um tolo? A rainha ignorou aquilo.
- Sor Borós, escolte essa moça até os aposentos de Lorde Petyr e
instrua seu pessoal para mantê-la lá até que ele vá buscá-la. Diga-lhe
que Mindinho a levará para ver o pai, isso deve acalmá-la. Quero-a
longe quando Sansa regressar ao seu quarto.
- Às vossas ordens, Vossa Graça - disse Sor Borós. Fez uma
reverência profunda, rodou nos calcanhares e retirou-se, com a longa
capa agitando o ar atrás dele.
Sansa estava confusa.
- Não compreendo - disse. - Onde está o pai de Jeyne? Por que Sor
Borós não pode levá-la até ele, em vez de ter de ser Lorde Petyr a
fazê-lo? - tinha prometido a si mesma que seria uma senhora, tão
gentil como a rainha e tão forte como a mãe, a Senhora Catelyn, mas
de repente sentiu-se novamente assustada. Por um segundo pensou
que ia chorar. - Para onde a enviará? Ela não fez nada de mal, é uma
boa moça.
- Ela perturbou você - a rainha disse gentilmente. - Não pode ser.
Agora nem mais uma palavra. Lorde Baelish se assegurará de que
cuidarão de Jeyne, prometo - bateu com a mão na cadeira ao seu
lado. - Sente-se, Sansa. Quero falar com você.
Sansa sentou-se ao lado da rainha. Cersei voltou a sorrir, mas isso
não a fez sentir-se menos ansiosa. Varys apertava as mãos suaves, o
Grande Meistre Pycelle mantinha os olhos ensonados nos papéis que
tinha à sua frente, mas conseguia sentir que Mindinho a olhava
fixamente. Algo na maneira como o pequeno homem a olhava fazia
Sansa sentir-se como se estivesse despida. Sua pele arrepiou-se.
- Querida Sansa - disse a Rainha Cersei, pousando a mão suave no
seu pulso. - Uma criança tão bela. Espero que saiba como Joffrey e
eu gostamos de você.
- G o s t am ? - disse Sansa, sem fôlego. Mindinho fora esquecido. Seu
príncipe a amava. Nada mais importava.
A rainha sorriu.
- Penso em você quase como minha filha. E sei do amor que tem por
Joffrey - abanou a cabeça com ar fatigado. - Temo que tenhamos
notícias graves a respeito do senhor seu pai. Ê preciso ter coragem,
filha.
As palavras calmas da rainha provocaram um arrepio em Sansa,
- O que é?
- Seu pai é um traidor, querida - disse Lorde Varys. O Grande
Meistre Pycelle ergueu sua cabeça antiga.
- Com meus próprios ouvidos escutei Lorde Eddard jurar ao nosso
amado Rei Robert que protegeria os jovens príncipes como se fossem
seus filhos. E, no entanto, no momento em que o rei morreu,
convocou o pequeno conselho a fim de roubar do Príncipe Joffrey o
trono que lhe pertence de direito,
- Não - Sansa exclamou, - Ele não faria isso. Não f a r i a !
A rainha pegou uma carta. O papel estava rasgado e tinha sido
endurecido por sangue seco, mas o selo quebrado era do seu pai, o
lobo gigante timbrado em cera clara.
- Encontramos isto com o capitão da guarda de sua Casa, Sansa. E
uma carta para o irmão de meu falecido esposo, Stannis, convidando-
o a ocupar o trono.
- Por favor, Vossa Graça, houve algum erro - um pânico súbito a
deixou tonta e fraca. - Por favor, mande buscar meu pai, ele contará,
ele nunca escreveria uma carta assim, o rei era seu amigo.
- Robert pensava que sim - a rainha disse, - Esta traição teria
quebrado seu coração. Os deuses foram bondosos por o terem levado
antes que assistisse a ela - suspirou. - Sansa, querida, você deve
compreender a posição terrível em que isto nos deixa. Você é
inocente de todo o mal, todos sabemos, mas é filha de um traidor,
Como poderei permitir que se case com meu filho?
- Mas eu o am o - Sansa lamentou-se, confusa e assustada. Que
planejavam eles fazer-lhe? Que tinham feito a seu pai? Não devia ser
assim. Tinha de casar com Joffrey, estavam noivos, ele lhe tinha sido
prometido, ela até tinha sonhado com o casamento. Não era justo
que o roubassem dela por causa do que quer que seu pai tivesse
feito,
- E eu sei disso muito bem, filha - disse Cersei, com a voz muito
bondosa e doce. - Por que motivo teria vindo me contar os planos do
seu pai para enviá-la para longe de nós, se não fosse por amor?
- F o i por amor - Sansa respondeu apressadamente, - Meu pai nem
me queria dar licença para dizer adeus - ela era a boa moça, a moça
obediente, mas naquela manhã sentira-se tão má como Arya,
esgueirando-se para longe da Septã Mordane, desafiando o senhor
seu pai, Nunca antes fizera algo tão voluntarioso, e nunca teria feito
aquilo se não amasse tanto Joffrey, - Ele ia me levar de volta para
Winterfell e casar-me com um cavaleiro de baixa categoria qualquer,
mesmo apesar de ser Joffrey quem eu quero. Eu lhe disse, mas ele
não quis ouvir - o rei era a sua última esperança. O rei podia
o r d e n a r ao pai que a deixasse ficar em Porto Real e casar com o
Príncipe Joffrey, Sansa sabia que ele podia fazê-lo, mas o rei sempre a
assustara. Era barulhento, tinha uma voz rude, estava mais vezes
bêbado que sóbrio e provavelmente a teria enviado de volta a Lorde
Eddard, mesmo que a deixassem falar com ele. Portanto, fora até a
rainha e abrira-lhe o coração, e Cersei escutara e agradecera-lhe
amavelmente... só que depois Sor Arys escoltara-a para o quarto no
topo do castelo de Maegor e colocara os guardas, e algumas horas
mais tarde tinha começado a luta lá fora. - Por favor - terminou -, a
senhora t e m de me deixar casar com Joffrey, serei a melhor esposa
que ele poderá ter, verá. Serei uma rainha tal como a senhora,
prometo.
A Rainha Cersei olhou para os outros.
- Senhores do conselho, que dizem à súplica dela?
- Pobre criança - murmurou Varys. - Um amor tão verdadeiro e
inocente, Vossa Graça, seria cruel negar-lhe... e, no entanto, que
podemos fazer? O pai está condenado - suas mãos suaves
esfregaram-se uma à outra num gesto de impotente aflição.
- Uma criança nascida da semente de um traidor achará que a
traição lhe é natural - disse o Grande Meistre Pycelle. - Ela é agora
uma doçura, mas, dentro de dez anos, quem sabe que traições
poderá maquinar?
- N ão - Sansa disse, horrorizada. - Não sou, nunca... não trairia
Joffrey, eu o amo, juro, eu o amo.
- Ah, tão pungente - disse Varys. - E, no entanto, diz-se deveras que
o sangue é mais fiel que os juramentos.
- Ela lembra-me a mãe, não o pai - disse em voz baixa Lorde Petyr
Baelish. - Olhe-a. Os cabelos, os olhos. É a perfeita imagem de Cat na
mesma idade.
A rainha a olhou, perturbada, e, no entanto, Sansa conseguia ver
bondade nos olhos verde-claros.
- Filha - disse -, se eu pudesse realmente acreditar que não é como
seu pai, ora, nada me daria maior prazer do que vê-la casada com
meu Joffrey. Sei que ele a ama de todo o coração - suspirou. - No
entanto, temo que Lorde Varys e o Grande Meistre tenham razão. O
sangue dirá. Basta-me recordar como sua irmã atiçou o lobo dela ao
meu filho.
- Eu não sou como Arya - exclamou Sansa. - Ela tem o sangue do
traidor, eu não. Eu sou b o a , pergunte à Septã Mordane, ela lhes
dirá, eu só desejo ser a esposa leal e dedicada de Joffrey,
Sentiu o peso dos olhos de Cersei quando a rainha estudou seu
rosto.
- Acredito que fale a sério, filha - virou-se para os outros. - Meus
senhores, parece-me que se o resto de sua família permanecer leal
nestes tempos terríveis, isso muito contribuiria para aquietar nossos
receios,
O Grande Meistre Pycelle afagou a enorme barba, com os
pensamentos abrindo sulcos na larga testa.
- Lorde Eddard tem três filhos,
- Meros rapazes - disse Lorde Petyr com um encolher de ombros. -
Eu me preocuparia mais com Catelyn e com os Tully.
A rainha tomou a mão de Sansa nas suas.
- Filha, conhece as letras?
Sansa confirmou nervosamente com a cabeça. Sabia ler e escrever
melhor que qualquer um dos irmãos, apesar de ser um desastre nas
somas.
- Agrada-me ouvir isso. Talvez ainda haja esperança para você e
parajoffrey...
- Que quer que eu faça?
- Deve escrever à senhora sua mãe e ao seu irmão, o mais velho...
como ele se chama?
- Robb - Sansa repondeu.
- A notícia da traição do senhor seu pai chegará a eles em breve
certamente. E melhor que seja você a dá-la. Deve contar-lhes como
Lorde Eddard traiu seu rei.
Sansa desejava desesperadamente Joffrey, mas não lhe parecia que
tivesse coragem para fazer o que a rainha pedia.
- Mas ele nunca... eu não... Vossa Graça, eu não saberia o que dizer. .
A rainha deu-lhe palmadinhas na mão.
- Nós lhe diremos o que deve escrever, filha. O mais importante é
que peça à Senhora Catelyn e ao seu irmão para manterem a paz do
rei.
- Será duro para eles se assim não fizerem - disse o Grande Meistre
Pycelle. - Pelo amor que tem a eles, deve insistir para que percorram
o caminho da sabedoria.
- A senhora sua mãe temerá terrivelmente por você, sem dúvida -
disse a rainha. - Deve dizer-lhe que está bem e ao nosso cuidado, que
a estamos tratando bem e satisfazendo todos os seus desejos, Peça-
lhes para vir a Porto Real jurar lealdade a Joffrey quando ele ocupar
o trono. Se o fizerem.. ora, então saberemos que seu sangue não tem
mácula, e quando sua feminilidade desabrochar, casará com o rei no
Grande Septo de Baelor, perante os olhos dos deuses e dos homens.
. . . c a s a r c o m o r e i . , . Aquelas palavras aceleraram sua
respiração, mas Sansa ainda hesitava,
- Talvez... se eu pudesse ver meu pai, falar com ele sobre...
- Traição? - sugeriu Lorde Varys.
- Você me decepciona, Sansa - disse a rainha, com uns olhos que
tinham se tornado duros como pedra. - Falamos a você dos crimes
de seu pai. Se fosse realmente tão leal como diz, por que iria querer
vê-lo?
- Eu.. eu só quis dizer.. - Sansa sentiu que os olhos se umedeciam. -
Ele não... por favor, ele não foi... ferido, ou.. ou...
- Lorde Eddard não foi ferido - a rainha respondeu.
- Mas... o que vai lhe acontecer?
- Isso cabe ao rei decidir - anunciou solenemente o Grande Meistre
Pycelle,
O r e i ! Sansa estancou as lágrimas, piscando, Joffrey agora era o rei,
pensou. Seu galante príncipe nunca faria mal a seu pai, independente
do que ele tivesse feito. Se lhe suplicasse por misericórdia, estava
certa de que a escutaria, T i n h a de escutá-la, amava-a, até a rainha
confirmara, Joff teria de punir o pai, era algo que os senhores
esperariam, mas talvez pudesse mandado de volta para Winterfell, ou
exilá-lo para uma das Cidades Livres para lá do mar estreito. Só teria
de ser durante alguns anos. Depois, ela e Joffrey estariam casados.
Uma vez rainha, ela poderia convencer Joff a trazer o pai de volta e a
conceder-lhe o perdão.
Só que.. se sua mãe ou Robb fizessem algo de traiçoeiro, se
convocassem os vassalos ou se recusassem a jurar fidelidade ou
q u a l q u e r c o i s a , tudo estaria acabado. Seu Joffrey era bom e
amável, disso estava certa, mas um rei tinha de ser severo com
rebeldes. Tinha de fazer com que compreendessem, t i n h a de fazê-
lo!
- Eu.. eu escrevo as cartas - Sansa disse a todos.
Com um sorriso quente como um nascer do sol, Cersei Lannister
inclinou-se e beijou-a suavemente na bochecha.
- Eu sabia que faria. Joffrey ficará todo orgulhoso quando lhe falar da
coragem e do bom-senso que mostrou aqui hoje.
Acabou por escrever quatro cartas. Para a mãe, a Senhora Catelyn
Stark, para os irmãos em Winterfell e também para a tia e para o
avô, a Senhora Lysa Arryn do Ninho da Águia e o Lorde Hoster Tully
de Correrrio. Quando acabou, tinha os dedos rígidos, com cãibras e
manchados de tinta. Varys tinha consigo o selo do seu pai. Aqueceu
a cera branca numa vela, despejou-a com cuidado e ficou observando
enquanto o eunuco selava as cartas com o lobo gigante da Casa
Stark.
Jeyne Poole e todas as suas coisas tinham desaparecido quando Sor
Mandon Moore levou Sansa à grande torre do castelo de Maegor.
Não haveria mais choros, pensou, grata. Mas de alguma forma o
quarto parecia mais frio sem Jeyne lá, mesmo depois de ter acendido
um fogo. Puxou uma cadeira para perto da lareira, pegou um de seus
livros preferidos e perdeu-se nas histórias de Florian e Jonquil, da
Senhora Sheila e do Cavaleiro do Arco-Íris, do valente Príncipe
Aemon e de seu amor sem esperança pela rainha do irmão.
Foi só mais tarde naquela noite, enquanto deslizava para o sono, que
Sansa percebeu que se esquecera de perguntar pela irmã...
Jon
- Othor - anunciou Sor Jaremy Rykker -, sem dúvida alguma. E este
era Jafer Flowers - virou o cadáver com a bota, e a branca cara morta
fitou o céu encoberto com olhos muito azuis. - Eram ambos homens
de Ben Stark.
H o m e m d o m e u t i o , pensou Jon, aturdido. Lembrava-se de
como pedira para ir com eles. D e u s e s , e r a u m r a p a z i n h o t ã o
v e r d e . S e m e t i v e s s e l e v a d o , p o d i a s e r e u a j a z e r
a q u i . . .
O pulso direito de Jafer terminava numa ruína de carne rasgada e
osso estilhaçado deixada pelos maxilares de Fantasma. A mão direita
flutuava num frasco de vinagre na torre de Meistre Aemon. À
esquerda, ainda agarrada à extremidade do braço, era tão negra
como seu manto.
- Que os deuses tenham misericórdia - murmurou o Velho Urso.
Desceu do seu pequeno cavalo, entregando as rédeas a Jon. A manhã
estava anormalmente quente; gotas de suor salpicavam a larga testa
do Senhor Comandante como orvalho num melão. Seu cavalo estava
nervoso, rolando os olhos, afastando-se dos mortos o mais que a
rédea permitia. Jon o levou alguns passos para trás, lutando para
evitar que fugisse. Os cavalos não gostavam daquele lugar. Na
verdade, Jon também não.
Os cães eram os que gostavam menos. Fantasma levara o grupo até
ali; a matilha de cães de caça mostrara-se inútil. Quando Bass, o
mestre dos canis, tentou fazer com que sentissem o cheiro da mão
cortada, tinham enlouquecido, uivando e ladrando, lutando para
escapar. Mesmo agora, ora rosnavam ora ganiam, puxando as
correias enquanto Chett os amaldiçoava, chamando-os de covardes.
E s ó u m a f l o r e s t a , disse Jon a si mesmo, e e l e s s ã o s ó
c a d á v e r e s . Já vira cadáveres antes...
Na noite anterior, tivera de novo o sonho de Winterfell. Vagueava
pelo castelo vazio, à procura do pai, descendo até as criptas. Só que
dessa vez o sonho tinha ido mais longe do que nas anteriores. Na
escuridão, ele ouviu o raspar de pedra em pedra. Quando se virou,
viu que os jazigos estavam se abrindo, um após o outro. Quando os
reis mortos começaram a sair, aos tropeções, de suas sepulturas frias
e negras, Jon acordou numa escuridão de breu, com o coração
batendo fortemente no peito. Nem quando Fantasma saltou para a
cama e lhe encostou o focinho no rosto conseguiu afastar aquele
profundo sentimento de horror. Não se atreveu a dormir novamente.
Em vez disso, subiu à Muralha e caminhou, inquieto, até ver a luz da
alvorada surgir no leste. F o i s ó u m s o n h o . S o u a g o r a u m
i r m ã o d a P a t r u l h a d a N o i t e , n ã o u m r a p a z a s s u s t a d o .
Samwell Tarly encolhia-se sob as árvores, meio escondido atrás dos
cavalos. Seu rosto gordo e redondo estava da cor de leite coalhado,
Ainda não tinha cambaleado até a floresta para vomitar, mas também
não olhara para os mortos, nem de relance.
- Não posso olhar - sussurrou com ar infeliz.
- Tem de olhar - disse-lhe Jon, mantendo a voz baixa para que os
outros não o ouvissem. - Meistre Aemon o enviou para lhe servir de
olhos, não foi? De que servem os olhos se estiverem fechados?
- Sim, mas.. sou tão covarde, Jon, Jon pousou a mão no ombro de
Sam.
- Temos conosco uma dúzia de patrulheiros, os cães, e até Fantasma.
Ninguém te fará mal, Sam. Vai e olha. A primeira olhadela é a mais
difícil.
Sam fez um aceno trêmulo, tentando ganhar coragem com um
esforço visível. Lentamente girou a cabeça. Os olhos abriram-se
muito, mas Jon segurou seu braço para que não pudesse se virar.
- Sor Jaremy - perguntou bruscamente o Velho Urso -, Ben Stark
tinha consigo seis homens quando se afastou da Muralha. Onde estão
os outros?
Sor Jaremy balançou a cabeça.
- Bem gostaria de saber.
Foi evidente que a resposta não agradou a Mormont.
- Dois de nossos irmãos assassinados quase à vista da Muralha, e, no
entanto, seus patrulheiros não ouviram nem viram nada. Foi a isto
que a Patrulha da Noite se reduziu? Ainda varremos estes bosques?
- Sim, senhor, mas. .
- Ainda montamos vigias?
- Montamos, mas. .
- Este homem tem um corno de caça - Mormont apontou para
Othor. - Deverei supor que ele morreu sem o fazer soar? Ou será
que seus patrulheiros ficaram todos não apenas cegos, mas também
surdos?
Sor Jaremy eriçou-se e seu rosto ficou tenso de ira.
- Não foi soprado nenhum corno, senhor, caso contrário, meus
patrulheiros teriam ouvido. Não tenho homens suficientes para
montar tantas patrulhas como gostaria.. e desde que Benjen se
perdeu, temos permanecido mais perto da Muralha do que
costumávamos ficar antes, por vossa ordem.
O Velho Urso soltou um grunhido.
- Sim. Bom. Seja como quiser - fez um gesto impaciente. - Diga-me
como eles morreram.
Agachando-se ao lado do homem que se chamava Jafer Flowers, Sor
Jaremy o agarrou pelos cabelos, que se quebraram entre os dedos
como palha, O cavaleiro praguejou e bateu-lhe na cara com o pulso.
Um grande golpe abriu-se na parte lateral do pescoço do cadáver,
como uma boca coberta por uma crosta de sangue seco. Só alguns
tendões brancos ainda prendiam a cabeça ao pescoço.
- Isto foi feito com um machado.
- Sim - murmurou Dywen, o velho lenhador, - Talvez o machado que
Othor levava, senhor.
Jon sentia o café da manhã às voltas no estômago, mas apertou os
lábios e obrigou-se a olhar para o segundo corpo. Othor era um
homem grande e feio, e transformara-se num cadáver grande e feio
também. Não se via nenhum machado. Jon lembrava-se de Othor; era
um dos que berravam a canção obscena quando os patrulheiros
partiram. Seus dias de cantor tinham terminado. A pele empalidecera
até se tornar branca como leite em todo o corpo, menos nas mãos,
que estavam negras, como as de Jafer. Gotas de sangue gretado
decoravam as feridas fatais que o cobriam como num ataque de
brotoeja, no peito, nas virilhas e na garganta. Mas os olhos ainda
estavam abertos. Fixos no céu, azuis como safiras.
Sor Jaremy pôs-se em pé.
- Os selvagens também têm machados. Sor Mormont curvou-se para
ele.
- Acredita então que isto foi obra de Mance Rayder? Tão perto da
Muralha?
- Quem mais poderia ser, senhor?
Jon podia ter-lhe dito. Sabia, todos eles sabiam; mas nenhum deles
queria proferir as palavras. Os Outros são só uma história, uma
fábula para fazer tremer as crianças. Se alguma vez viveram de fato,
desapareceram há oito mil anos. Só de pensar nessa hipótese, sentiu-
se tolo; era agora um homem-feito, um irmão negro da Patrulha da
Noite, não o rapaz que em tempos passados se sentou aos pés da
Velha Ama com Bran, Robb e Arya.
Mas o Senhor Comandante Mormont bufou.
- Se Ben Stark tivesse sido atacado por selvagens à meio dia de
viagem de Castelo Negro, teria regressado em busca de mais homens,
teria perseguido os assassinos até os sete infernos e teria me trazido
suas cabeças.
- A não ser que também tenha sido morto.
As palavras magoaram, mesmo naquela altura. Passara-se tanto
tempo que parecia loucura agarrar-se à esperança de que Ben Stark
ainda estivesse vivo, mas se havia algo a dizer sobre Jon Snow, era
como era teimoso.
-Já se passou quase meió ano desde que Benjen nos deixou, senhor -
prosseguiu Sor Jaremy.
- A floresta é vasta. Os selvagens podem ter caído sobre ele em
qualquer lugar. Aposto que estes dois foram os últimos sobreviventes
do grupo e vinham de regresso.. mas o inimigo os apanhou antes
que pudessem atingir a segurança da Muralha. Os cadáveres ainda
estão frescos, estes homens não podem estar mortos há mais de um
dia...
- Não - Samwell Tarly protestou.
Jon sobressaltou-se. A voz nervosa e aguda de Sam era a última coisa
que esperava ouvir. O rapaz gordo sentia-se atemorizado pelos
oficiais, e Sor Jaremy não era conhecido pela sua paciência.
- Não lhe pedi opinião, rapaz - Rykker disse friamente.
- Deixe-o falar, senhor - exclamou Jon.
Os olhos de Mormont saltitaram de Sam para Jon e de volta a Sam.
- Se o moço tem alguma coisa a dizer, quero ouvi-lo. Aproxime-se,
rapaz. Não conseguimos vê-lo aí atrás dos cavalos.
Sam passou por Jon e pelos pequenos cavalos, suando profusamente.
- Senhor, não.. não pode ser um dia, ou... olhe... o sangue...
- Sim? - Mormont resmungou impacientemente. - Que tem o
sangue?
- Ele suja a roupa de baixo ao vê-lo - gritou Chett, e os patrulheiros
riram. Sam limpou o suor da testa.
- Vocês. . vocês podem ver o lugar onde Fantasma... o lobo gigante de
Jon... podem ver onde ele arrancou a mão daquele homem, e no
entanto... o toco não sangrou... olhem... - sacudiu uma mão. - Meu
pai... L-lorde Randyll, ele, ele me obrigava às vezes a assistir enquanto
esquartejava animais, quando... depois.. - Sam balançou a cabeça de
um lado para o outro, fazendo tremer o duplo queixo. Agora que
olhara para os cadáveres, não parecia ser capaz de afastar os olhos. -
Uma morte recente.. o sangue ainda fluiria, senhores. Mais tarde..
mais tarde estaria coagulado, como uma... uma geleia, espesso e... e..
- parecia estar prestes a vomitar.
- Este homem. . olhe para o pulso, está todo... em crosta... seco...
como...
Jon compreendeu de imediato o que Sam queria dizer. Via as veias
rasgadas no pulso do morto, vermes de ferro na carne clara. O
sangue era um pó negro. Mas Jaremy Rykker não estava convencido.
- Se eles estivessem mortos há muito mais de um dia, estariam agora
decompostos, rapaz. Nem sequer cheiram.
Dywen, o velho e deformado lenhador que gostava de se vangloriar
de ser capaz de cheirar a neve chegando, aproximou-se dos cadáveres
e farejou.
- Bom, não são nenhuns amores-perfeitos, mas. . o senhor tem razão.
Não há fedor de cadáver,
- Eles... eles não estão apodrecendo - Sam apontou, com o gordo
dedo tremendo só um pouco. - Olhe, não há... não há larvas, nem. .
nem... vermes, nem nada... têm estado aqui na floresta, mas não... não
foram mordidos nem comidos por animais... só Fantasma... fora isso,
estão... estão..
- Intocados - disse Jon em voz baixa. - E Fantasma é diferente. Os
cães e os cavalos não se aproximam deles.
Os patrulheiros trocaram olhares; viam que era verdade, todos eles.
Mormont franziu as sobrancelhas, olhando de relance para os
cadáveres e os cães.
- Chett, traz os cães para mais perto.
Chett tentou, praguejando, puxando-os pelas correias, dando um
pontapé em um deles. A maior parte dos cães limitou-se a ganir e
fincar as patas no chão. Então ele tentou arrastar um só. A cadela
resistiu, rosnando e contorcendo-se como que para se libertar da
coleira. Por fim, o atacou. Chett largou a correia e tropeçou para
trás, O cão saltou por cima dele e desapareceu por entre as árvores.
- Isto... isto está tudo errado - disse Sam Tarly, muito sério. - O
sangue... há manchas de sangue nas roupas, e... e na pele, secas e
duras, mas. . não há nenhuma no chão, ou.. em lado nenhum. Com
aquelas... aquelas.. aquelas... - Sam obrigou-se a engolir e inspirou
profundamente. - Com aquelas feridas... terríveis feridas... deveria
haver sangue por todo o lado. Não deveria?
Dywen chupou os dentes de madeira.
- Pode ser que não tenham morrido aqui. Pode ser que alguém os
trouxe e os deixou para nós. Como um aviso - o velho lenhador
espreitou para baixo com ar de suspeita. - E pode ser que eu esteja
doido, mas não me lembro de Othor ter olhos azuis.
Sor Jaremy pareceu surpreso.
- Nem Flowers - exclamou, virando-se para fitar o morto.
O silêncio caiu na floresta. Por um momento, tudo o que ouviram foi
a respiração pesada de Sam e o som úmido de Dywen chupando os
dentes. Jon acocorou-se ao lado de Fantasma.
- Queime-os - sussurrou alguém. Um dos patrulheiros; Jon não
saberia dizer qual. - Sim, queime-os - insistiu uma segunda voz.
O Velho Urso balançou teimosamente a cabeça.
- Ainda não. Quero que Meistre Aemon os examine. Vamos levá-los
de volta para a Muralha.
Há ordens que são dadas mais facilmente do que obedecidas.
Enrolaram os mortos em mantos, mas quando Hake e Dywen
tentaram atar um deles a um cavalo, o animal enlouqueceu, berrando
e empinando-se, escoiceando, chegando a morder Ketter quando este
correu para ajudar. Os patrulheiros não tiveram melhor sorte com os
outros cavalos; nem o mais plácido dentre eles queria ter algo a ver
com aqueles fardos. Por fim, foram forçados a quebrar galhos e
improvisar trenós para levar os cadáveres a pé. O meio-dia já passara
havia muito quando se puseram a caminho.
- Quero que sejam feitas buscas nesta floresta - ordenou Mormont a
Sor Jaremy ao partir. - Em todas as árvores, em todas as rochas, em
todos os arbustos e em todos os metros de terreno lamacento num
raio de dez léguas. Use todos os homens que tiver, e se não forem
suficientes, peça caçadores e lenhadores aos intendentes. Se Ben e os
outros estiverem aqui, mortos ou vivos, quero que sejam
encontrados. E se houver alguém mais nesses bosques, quero ficar
sabendo. Devem persegui-los e capturá-los, vivos, se possível.
Compreendido?
- Sim, senhor - Sor Jaremy respondeu. - Assim será feito.
Depois disso, Mormont cavalgou em silêncio, matutando. Jon seguia
logo atrás dele; como intendente do Senhor Comandante, era este o
seu lugar. O dia estava cinzento, úmido, encoberto, um daqueles dias
que fazia desejar a chuva. Nenhum vento agitava os bosques; o ar
pairava úmido e pesado, e a roupa de Jon aderia-lhe à pele. Estava
morno. Demasiado morno. A Muralha gotejava copiosamente, há
dias, e por vezes Jon até imaginava que estava encolhendo.
Os velhos chamavam àquele tempo o verão dos espíritos, e diziam
que significava que a estação estava enfim despedindo-se de seus
fantasmas. Depois viria o frio, preveniam, e um longo verão
significava sempre um longo inverno. Aquele verão tinha durado dez
anos. Jon era bebê de colo quando começara.
Fantasma correu ao lado deles durante algum tempo e depois
desapareceu por entre as árvores. Sem o lobo gigante, Jon sentiu-se
quase nu. Deu por si olhando para cada sombra com desconforto.
Involuntariamente, pôs-se a recordar as histórias que a Velha Ama
costumava contar quando era pequeno em Winterfell. Quase
conseguia ouvir de novo sua voz, e o clic-clic-clic de suas agulhas.
Naquela escuridão, os Outros atacaram, costumava dizer, com a voz
cada vez mais baixa. Eram frios e estavam mortos, e odiavam o ferro,
e o fogo, t o toque do sol, e todas as criaturas vivas que possuíssem
sangue quente nas veias. Os castelos, as cidades e os reinos dos
homens caíram perante eles à medida que iam se deslocando para o
sul sobre pálidos cavalos mortos, à frente de hostes de cadáveres.
Alimentavam os criados mortos com carne de crianças humanas...
Quando viu o primeiro sinal da Muralha pairar acima da copa de um
antigo carvalho nodoso, Jon sentiu-se muito aliviado. Mormont puxou
subitamente as rédeas do cavalo e virou-se na sela.
- Tarly - bradou -, venha cá.
Jon viu o sobressalto do medo no rosto de Sam enquanto se
aproximava pesadamente em sua égua; não havia dúvida de que
pensava estar metido em encrenca.
- Você é gordo, mas não é estúpido, rapaz - disse bruscamente o
Velho Urso. - Apresentou--se bem lá atrás. E você também, Snow.
Sam corou, ficando com o rosto vermelho-vivo, e tropeçou na
própria língua ao tentar gaguejar uma cortesia. Jon teve de sorrir.
Quando emergiram de sob as árvores, Mormont pôs o pequeno mas
resistente cavalo a trote. Fantasma saiu da floresta a toda velocidade,
ao encontro do grupo, lambendo os beiços, com o focinho vermelho
da caça. Muito acima, os homens na Muralha viram a coluna que se
aproximava. Jon ouviu o chamamento profundo e gutural do grande
corno do vigia, chamando através das milhas; um único e longo
sopro que estremecia entre as árvores e arrancava ecos do gelo.
uuuuuuuuuuooooooooooooooooooooooooooooooo
O som atenuou-se lentamente até silenciar. Um sopro significava
patrulheiros de regresso, e Jon pensou: Pelo menos fui patrulheiro
por um dia. Aconteça o que acontecer, não podem me tirar isso.
Bowen Marsh os aguardava no primeiro portão quando levaram os
cavalos pelo túnel de gelo. O Senhor Intendente estava com o rosto
vermelho e agitado.
- Senhor - exclamou para Mormont ao abrir as barras de ferro -,
chegou uma ave, precisa vir imediatamente.
- O que se passa, homem? - Mormont disse bruscamente.
De uma forma estranha, Marsh lançou um relance ajon antes de
responder.
- Meistre Aemon tem a carta. Espera no seu aposento privado.
- Muito bem. Jon, trate do meu cavalo e diga a Sor Jaremy para pôr
os mortos em um armazém até que o meistre esteja pronto para eles
- Mormont afastou-se a passos largos, resmungando.
Enquanto levavam os cavalos de volta ao estábulo, Jon ficou
desconfortavelmente consciente de que as pessoas o observavam. Sor
Alliser Thorne exercitava seus rapazes no pátio, mas parou para fitar
Jon, com um tênue meio sorriso nos lábios. Donal Noye, o maneta,
estava em pé à porta do armeiro.
- Que os deuses estejam contigo, Snow - ele gritou.
Há alguma coisa errada, pensou Jon. Há alguma coisa muito errada.
Os mortos foram levados para um dos depósitos que se abriam ao
longo da base da Muralha, uma cela escura e fria esculpida no gelo e
usada para conservar a carne, os grãos e por vezes até a cerveja. Jon
assegurou-se de que o cavalo de Mormont fosse alimentado e tratado
antes de cuidar do seu. Depois, foi à procura dos amigos. Grenn e
Sapo estavam de vigia, mas encontrou Pyp na sala comum.
- O que aconteceu? - perguntou. Pyp baixou a voz.
- O rei está morto,
Jon ficou aturdido. Robert Baratheon parecera velho e gordo quando
visitara Winterfell, mas também com boa saúde, e não se falara de
doenças.
- Como é que você sabe?
- Um dos guardas ouviu Clydas ler a carta para Meistre Aemon - Pyp
inclinou-se para mais perto. - Jon, lamento. Ele era amigo do seu pai,
não era?
- Tinham sido próximos como irmãos em tempos passados - Jon
sentiu curiosidade em saber se Joffrey manteria o pai como Mão do
Rei. Não parecia provável. Isso poderia querer dizer que Lorde
Eddard regressaria a Winterfell, e as irmãs também. Podiam até
permitir que ele os visitasse, com autorização de Lorde Mormont.
Seria bom voltar a ver o sorriso de Arya e falar com seu pai. Vou
perguntar-lhe sobre minha mãe, decidiu. Agora sou um homem, e já
é mais que tempo que me conte. Mesmo que ela fosse uma
prostituta, não me importo. Quero saber.
- Ouvi Hake dizer que os mortos eram do seu tio - Pyp disse.
- Sim. São dois dos seis que ele levou consigo. Já devem estar mortos
há muito, só que.. os corpos são estranhos.
- Estranhos? - Pyp era todo curiosidade. - Estranhos como?
- Sam te contará - Jon não queria falar daquilo. - Eu tenho de ir ver
se o Velho Urso precisa de mim.
Dirigiu-se sozinho para a Torre do Senhor Comandante,
curiosamente apreensivo. Os irmãos que estavam de guarda olharam-
no solenemente quando se aproximou.
- O Velho Urso está no aposento privado - anunciou um deles, -
Perguntou por você.
Jon fez um aceno, e pensou que, ao sair dos estábulos, devia ter ido
logo para lá. Subiu vivamente os degraus da torre. Ele quer vinho ou
um fogo na lareira, é tudo, disse a si mesmo.
Quando entrou no aposento, o corvo de Mormont gritou:
- Grão! Grão! Grão! Grão!
- Não acredite, acabei de alimentá-lo - resmungou o Velho Urso.
Estava sentado à janela, lendo uma carta. - Traga-me uma taça de
vinho e encha uma para você.
- Para mim, senhor?
Mormont ergueu os olhos da carta e os fixou em Jon. Havia piedade
naquele olhar; podia senti-la.
- Ouviu o que eu disse.
Jon despejou o vinho com cuidado exagerado, vagamente consciente
de que estava arrastando aquele ato. Quando as taças se enchessem,
não teria escolha a não ser enfrentar o que quer que estivesse
naquela carta. Mas depressa demais elas se encheram.
- Sente-se, rapaz - ordenou-lhe Mormont. - Beba. Jon permaneceu
em pé.
- É o meu pai, não é?
O Velho Urso tamborilou na carta com o dedo,
- É o seu pai e o rei - respondeu, com voz cavernosa. - Não quero
mentir para você, as notícias são dolorosas. Nunca pensei que
conheceria outro rei, com os anos que tenho, tendo Robert metade
da minha idade e sendo forte como um touro - bebeu um gole de
vinho. - Dizem que o rei adorava caçar. Aquilo que amamos nos
destrói sempre, rapaz. Lembre-se disso. Meu filho amava aquela sua
jovem esposa. Vaidosa mulher. Se não fosse por causa dela, nunca
teria pensado em vender os caçadores furtivos.
Jon quase não conseguia seguir o que o comandante estava dizendo.
- Senhor, não compreendo. Que aconteceu ao meu pai?
- Pedi que se sentasse - resmungou Mormont. "Senta", gritou o
corvo. - E beba, raios te partam. É uma ordem, Snow.
Jon sentou-se e bebericou o vinho.
- Lorde Eddard foi aprisionado. Está sendo acusado de traição. Diz-se
que conspirou com os irmãos de Robert para negar o trono ao
Príncipe JofFrey.
- Não - disse Jon de imediato. - Não pode ser. Meu pai nunca trairia
o rei.
- Seja como for - disse Mormont -, não cabe a mim decidir. Nem a
você.
- Mas é uma mentira - Jon insistiu. Como podiam pensar que seu pai
era um traidor, teriam todos enlouquecido? Lorde Eddard Stark
nunca se desonraria.. não é?
Gerou um bastardo, sussurrou uma pequena voz em seu interior.
Onde está a honra nisso? E a sua mãe, o que lhe aconteceu? Ele nem
sequer pronuncia seu nome,
- Senhor, o que vai lhe acontecer? Vão matá-lo?
- Quanto a isso não sei responder, rapaz. Pretendo enviar uma carta.
Quando jovem, conheci alguns dos conselheiros do rei. O velho
Pycelle, Lorde Stannis, Sor Barristan... Seja o que for que seu pai fez
ou deixou de fazer, é um grande senhor. Tem de ser autorizado a
vestir o negro e a juntar-se a nós. Só os deuses sabem como
precisamos de homens com a capacidade de Lorde Eddard.
Jon sabia que outros homens acusados de traição tinham sido
autorizados a redimir sua honra na Muralha em outros tempos. Por
que não Lorde Eddard? Seu pai, ali. Era um pensamento estranho, e
estranhamente incômodo. Seria uma injustiça monstruosa despojá-lo
de Winterfell e forçá-lo a vestir o negro, mas se isso significasse a
sua vida...
E Joffrey, permitiria? Lembrava-se do príncipe em Winterfell, do
modo como troçara de Robb e de Sor Rodrik no pátio. Em Jon quase
não reparara; os bastardos estavam abaixo até de seu desprezo.
- Senhor, o rei o ouvirá?
O Velho Urso encolheu os ombros.
- Um rei rapaz... imagino que ouvirá a mãe. Ê uma pena que o anão
não esteja com eles. Ê tio do moço e viu as nossas necessidades
quando nos visitou. Foi mau que a senhora sua mãe o tivesse tomado
cativo...
- A Senhora Stark não é minha mãe - recordou-lhe Jon em tom
cortante. Tyrion Lannister fora um amigo para ele. Se Lorde Eddard
fosse morto, ela teria tanta culpa como a rainha. - Senhor, e minhas
irmãs? Arya e Sansa estavam com meu pai. Sabe...
- Pycelle não as menciona, mas sem dúvida que serão bem tratadas.
Perguntarei por elas quando escrever - Mormont abanou a cabeça. -
Isto não podia ter acontecido em pior hora. Se algum dia o reino
precisou de um rei forte... há dias escuros e noites frias à nossa
frente, sinto-o nos ossos... - deu a Jon um longo olhar perspicaz. -
Espero que não esteja pensando em fazer alguma coisa estúpida,
rapaz.
Ele é meu pai, Jon quis dizer, mas sabia que Mormont não ia querer
ouvi-lo. Tinha a garganta seca. Obrigou-se a beber outro gole de
vinho.
- Seu dever agora é aqui - lembrou-lhe o Senhor Comandante. - Sua
vida antiga terminou quando vestiu o negro - sua ave soltou um eco
rouco. "Negro." Mormont não lhe prestou atenção. - O que quer que
façam em Porto Real, não nos diz respeito - como Jon não
respondeu, o idoso homem terminou o vinho e disse: - Está livre
para sair. Não vou precisar mais de você hoje. De manhã, poderá
ajudar-me a escrever a tal carta.
Mais tarde, Jon não tinha memória de ter se levantado ou saído do
aposento privado. Quando caiu em si, descia os degraus da torre,
pensando. É meu pai, são minhas irmãs, como é que pode não me
dizer respeito?
Lá fora, um dos guardas olhou para ele e disse:
- Força, rapaz. Os deuses são cruéis. Eles sabem, Jon compreendeu.
- Meu pai não é traidor nenhum - disse em voz rouca. Até as
palavras ficavam presas na garganta, como que para sufocá-lo. Estava
levantando vento e parecia estar mais frio no pátio do que quando
entrara. O verão dos espíritos aproximava-se do fim.
O resto da tarde passou como num sonho. Jon não poderia dizer por
onde caminhara, o que fizera, com quem falara. Fantasma esteve com
ele, ao menos isso sabia. A presença silenciosa do lobo gigante deu-
lhe conforto. As meninas nem isso têm, pensou. Seus lobos poderiam
tê-las mantido a salvo, mas Lady está morta e Nymeria, perdida, e
elas estão completamente sós,
Um vento do norte começara a soprar quando o sol desceu no
horizonte. Jon ouvia-o uivar contra a Muralha e sobre as ameias
geladas enquanto se encaminhava para a sala comum para a refeição
da noite. Hobb fizera um espesso guisado de veado com cevada,
cebola e cenoura. Quando despejou uma porção extra no prato de
Jon e lhe deu uma ponta de pão, entendeu o que isso queria dizer.
Ele sabe, Olhou em volta da sala, viu cabeças que se viravam
depressa, olhos polidamente desviados. Todos eles sabem.
Os amigos convergiram na sua direção.
- Pedimos ao septão para acender uma vela pelo seu pai - disse-lhe
Matthar.
- É mentira, todos sabemos que é mentira, até o Grenn sabe que é
mentira - acrescentou Pyp. Grenn confirmou com a cabeça, e Sam
agarrou a mão de Jon.
- Você é agora meu irmão, portanto, ele é também meu pai - disse o
rapaz gordo. - Se quiser ir até os represeiros e orar aos deuses
antigos, irei com você.
Os represeiros ficavam para lá da Muralha, mas Jon sabia que Sam
era sincero. São meus irmãos, pensou. Tanto como Robb, Bran e
Rickon...
E então ouviu a gargalhada, afiada e cruel como um chicote, e a voz
de Sor Alliser Thorne.
- Não basta ser bastardo, é bastardo de um traidor - dizia aos
homens que o rodeavam. Num piscar de olhos Jon tinha saltado para
cima da mesa, de punhal na mão. Pyp tentou
agarrá-lo, mas ele libertou a perna e correu a toda velocidade pela
mesa e arrancou a tigela da mão de Sor Alliser com um pontapé.
Saltou guisado para todo o lado, salpicando os irmãos. Thorne
recuou. Soavam gritos, mas Jon Snow não os ouvia. Atacou o rosto
de Sor Alliser com o punhal, mirando naqueles frios olhos de ônix,
mas Sam atirou-se no meio dos dois e, antes que Jon conseguisse
acertá-lo, Pyp saltou sobre suas costas, agarrando-se como um
macaco, e Grenn segurou seu braço enquanto Sapo lhe arrancava a
faca das mãos.
Mais tarde, muito mais tarde, depois de o terem escoltado até sua
cela, Mormont desceu para visitá-lo, com o corvo ao ombro.
- Disse-lhe para não fazer nada de estúpido, moço - resmungou o
Velho Urso. "Moço", papagueou o pássaro. Mormont abanou a
cabeça, desgostoso. - E pensar que tinha grandes esperanças para
você.
Tiraram-lhe a faca e a espada e disseram-lhe que não devia deixar a
cela até que os grandes oficiais se reunissem para decidir o que
fariam com ele, E depois colocaram um guarda à sua porta para se
assegurarem de que obedeceria. Os amigos não estavam autorizados
a visitá-lo, mas o Velho Urso cedeu e o deixou ficar com Fantasma;
portanto, não estava completamente só.
- Meu pai não é traidor nenhum - disse ao lobo selvagem quando os
outros se foram. Fantasma o olhou em silêncio. Jon deixou-se cair,
encostado à parede, com as mãos em volta dos joelhos, e fixou os
olhos na vela que estava sobre a mesa ao lado de sua cama estreita.
A chama oscilou e tremeluziu, as sombras moveram-se à sua volta, a
sala pareceu ficar mais escura e mais fria. Esta noite não vou dormir,
Jon pensou.
Mas deve ter adormecido. Quando acordou, sentia as pernas rígidas e
com cãibras, e a vela há muito ardera por completo. Fantasma estava
em pé sobre as patas traseiras, arranhando a porta. Jon ficou
surpreso ao ver como o animal estava alto,
- Fantasma, o que se passa? - disse em voz baixa. O lobo selvagem
virou a cabeça e o olhou, mostrando as presas num rosnido
silencioso. Terá enlouquecido?, Jon perguntou a si mesmo. -Sou eu,
Fantasma - murmurou, tentando não mostrar medo na voz. Mas
estava tremendo, e violentamente. Quando o ar ficara tão frio?
Fantasma afastou-se da porta. Havia profundos sulcos onde ele
raspara a madeira. Jon o observou com uma inquietação crescente.
- Há alguém lá fora, não há? - sussurrou. Apertando-se contra o
chão, o lobo gigante rastejou para trás, com o pelo branco eriçando-
se na parte de trás do pescoço. O guarda, pensou, deixaram um
homem de guarda à minha porta. Fantasma cheira-o através da
porta, é só isso.
Lentamente, Jon pôs-se em pé. Tremia incontrolavelmente, desejando
ainda ter uma espada. Três passos rápidos levaram-no até junto da
porta. Agarrou a maçaneta e puxou para dentro. O ranger das
dobradiças quase o fez saltar.
O guarda estava estatelado nos degraus estreitos, olhando para cima,
parajon. Olhando para cima, embora jazesse de bruços. A cabeça
tinha sido completamente virada ao contrário.
Não pode ser, disse Jon a si mesmo. Aqui é a Torre do Senhor
Comandante, é guardada dia e noite, isto não pode acontecer, é um
sonho, estou tendo um pesadelo.
Fantasma deslizou para o seu lado. O lobo começou a subir os
degraus, parou e olhou para Jon. Foi então que ouviu os sons; o
suave arrastar de uma bota na pedra, o som de uma pequena tranca
rodando. Os sons vinham de cima. Dos aposentos do Senhor
Comandante.
Aquilo até podia ser um pesadelo, mas não era sonho nenhum.
A espada do guarda estava em sua bainha. Jon ajoelhou e a pegou. O
peso do aço na mão deu-lhe coragem. Subiu os degraus, com
Fantasma abrindo caminho silenciosamente. Sombras espreitavam em
todas as voltas das escadas. Jon deslizou com precaução, testando
todos os recantos suspeitosamente escuros com a ponta da espada.
De repente, ouviu o guincho do corvo de Mormont. "Grão", gritava a
ave. "Grão, grão, grão, grão, grão, grão" Fantasma deu um salto para
a frente e Jon seguiu atabalhoadamente logo atrás. A porta para o
aposento privado de Mormont estava escancarada. O lobo gigante
mergulhou através dela. Jon parou à porta, de espada na mão, dando
aos olhos um momento para se ajustarem. Pesadas cortinas tinham
sido descidas sobre as janelas, e a escuridão era negra como tinta.
- Quem está aí? - Jon gritou.
Então viu: uma sombra nas sombras, deslizando na direção da porta
interior que dava para a cela de dormir de Mormont, a forma de um
homem todo de negro, coberto com um manto e encapuzado.. , mas
sob o capuz os olhos brilhavam com um gelado brilho azul...
Fantasma saltou. Homem e lobo caíram juntos sem um grito e sem
um rosnido, rolando, esmagando-se de encontro a uma cadeira,
fazendo cair uma mesa coberta de papéis. O corvo de Mormont
agitava as asas por cima da cabeça, gritando "Grão, grão, grão, grão".
Jon sentiu-se tão cego como Meistre Aemon. Mantendo as costas na
parede, deslizou em direção à janela e arrancou a cortina. O luar
encheu o aposento. Viu de relance mãos negras enterradas em pelo
branco, dedos escuros e inchados que se apertavam em torno da
garganta de seu lobo gigante. Fantasma retorcia-se e mordia,
esperneando no ar, mas não conseguia se libertar.
Jon não teve tempo de sentir medo. Atirou-se para a frente, gritando,
pondo todo seu peso na espada. O aço cortou a manga, a pele e o
osso, mas o som estava de certo modo errado. O cheiro que o
envolveu era tão estranho e frio que quase vomitou. Viu o braço e a
mão no chão, com dedos negros retorcendo-se num charco de luar.
Fantasma libertou-se da outra mão e afastou-se rastejando, com a
língua vermelha pendendo da boca.
O homem encapuzado ergueu a pálida cara de lua e Jon golpeou-a
sem hesitar. A espada cortou o intruso até o osso, arrancando-lhe
metade do nariz e abrindo um rasgão de um lado a outro da face,
sob aqueles olhos... olhos... olhos como estrelas azuis ardendo. Jon
conhecia aquele rosto. Othor, pensou, cambaleando para trás.
Deuses, ele está morto, ele está morto, eu o vi morto.
Sentiu qualquer coisa vasculhando seu tornozelo. Dedos negros
agarraram-se à barriga de sua perna. O braço rastejava pela perna
acima, rasgando a lã e a carne. Gritando de repugnância, Jon
empurrou os dedos com a ponta da espada e atirou aquela coisa
para longe, que lá ficou retorcendo-se, com os dedos abrindo e
fechando.
O cadáver inclinou-se para a frente. Não havia sangue. Só com um
braço, com a cara quase cortada ao meio, não parecia sentir nada.
Jon estendeu a espada à sua frente,
— Fique onde está! - ordenou, com a voz tornando-se estridente.
"Grão", gritou o corvo, "grão, grão", O braço cortado arrastava-se
para fora da manga arrancada, uma serpente branca com uma
cabeça negra de cinco dedos. Fantasma precipitou-se sobre ela e a
abocanhou. Ossos de dedos foram triturados. Jon golpeou o pescoço
do cadáver, sentindo o aço morder profunda e duramente.
Othor morto caiu sobre ele, fazendo-o perder o equilíbrio.
Jon ficou sem ar quando as costas atingiram a mesa caída. A espada,
onde ela estava? Perdera a maldita espada! Quando abriu a boca para
gritar, a criatura enfiou os cadavéricos dedos negros nela. Nauseado,
tentou afastá-lo, mas o morto era pesado demais. A mão forçou-se
mais para dentro de sua garganta, fria como gelo, sufocando-o. Tinha
a cara encostada à sua, enchendo o mundo. Os olhos estavam
cobertos de geada, cintilando de azul. Jon arranhou sua pele fria com
as unhas e deu pontapés nas pernas da coisa. Tentou morder, tentou
socar, tentou respirar...
E, de repente, o peso do cadáver desapareceu e os dedos foram
arrancados de sua garganta. Tudo o que Jon conseguiu fazer foi
rolar, com ânsia de vômito e tremendo. Fantasma estava de novo
sobre a coisa. Viu o lobo gigante enterrar os dentes na barriga da
criatura e começar a rasgá-la. Observou, apenas meio consciente, por
um longo momento, até que finalmente se lembrou de procurar a
espada...
... e viu Lorde Mormont, nu e sonolento, em pé, à porta do quarto,
com uma candeia de azeite na mão. Roído e sem dedos, o braço
agitava-se violentamente pelo chão, avançando em contorções na sua
direção.
Jon tentou gritar, mas não tinha voz. Pondo-se em pé com
dificuldade, chutou o braço para longe e arrancou a candeia das
mãos do Velho Urso. A chama tremeluziu e quase se extinguiu.
"Arde!", grasnou o corvo. "Arde, arde, arde!"
Rodopiando, Jon viu as cortinas que arrancara da janela. Atirou com
ambas as mãos a candeia para cima do monte de pano. Metal
rangeu, vidro estilhaçou-se, óleo derramou-se e as cortinas se
transformaram numa enorme chama. O calor do fogo no rosto era
mais doce que qualquer dos beijos que Jon recebera.
- Fantasma! - gritou.
O lobo gigante libertou-se e aproximou-se enquanto a criatura
tentava se erguer, com serpentes negras jorrando do grande golpe
que tinha na barriga. Jon mergulhou a mão nas chamas, agarrou a
cortina ardente e a atirou sobre o morto. Que arda, rezou, enquanto
o pano envolvia o cadáver, deuses, por favor, por favor, que arda.
Bran
Os Karstark chegaram numa manhã fria e ventosa, trazendo de seu
castelo em Karhold trezentos homens a cavalo e quase dois mil a pé.
As pontas de aço de suas lanças tremeluziam à pálida luz do sol
enquanto a coluna se aproximava. Um homem seguia à frente,
marcando um ritmo de marcha lento e gutural num tambor que era
maior que ele, buum, buum, buum,
Bran os viu chegar de uma torre de guarda no topo da muralha
exterior, vigiando através da luneta de bronze de Meistre Luwin
enquanto se equilibrava nos ombros de Hodor. Era o próprio Lorde
Rickard que os liderava, com os filhos Harrion, Eddard e Tosshen
cavalgando ao seu lado sob estandartes negros como a noite,
adornados com o resplendor branco de sua Casa. A Velha Ama dizia
que eles possuíam sangue Stark há centenas de anos, mas aos olhos
de Bran não se pareciam com os Stark. Eram homens grandes e
ferozes, com os rostos cobertos por barbas espessas, e usavam os
cabelos soltos abaixo dos ombros. Seus mantos eram feitos de peles
de urso, foca e lobo.
Sabia que eram os últimos. Os outros senhores já estavam lá com as
suas tropas. Bran ansiava por cavalgar entre eles, para ver as casas
da Vila de Inverno cheias até rebentar, as multidões aos encontrões
no mercado todas as manhãs, as ruas rasgadas e corroídas pelas
rodas e pelos cascos, Mas Robb proibira-o de deixar o castelo.
- Não temos homens que possamos dispensar para protegê-lo - seu
irmão explicou.
- Eu levo Verão - Bran insistiu.
- Não aja como um garotinho comigo, Bran - Robb pediu. - Você
sabe bem que não é assim tão simples. Não faz mais de dois dias que
um dos homens de Lorde Bolton esfaqueou um dos de Lorde Cerwyn
no Barrote Fumegante. Nossa mãe me esfolaria se deixasse que você
se pusesse em risco - dissera aquilo com a voz de Robb, o Senhor;
Bran sabia que isso queria dizer que não haveria apelo.
Sabia que era por causa do que acontecera na Mata de Lobos. A
recordação ainda lhe causava pesadelos. Sentira-se impotente como
um bebê, não tinha sido mais capaz de se defender do que Rickon o
teria. Menos até... Rickon, pelo menos, os teria chutado. Isso o
envergonhava. Era apenas alguns anos mais novo que Robb; se o
irmão era quase um homem-feito, também ele o era. Devia ter sido
capaz de proteger a si mesmo.
Um ano antes, antes, teria visitado a vila mesmo que isso significasse
subir as muralhas pelos seus próprios meios. Naquela época, podia
correr por escadas abaixo, subir e descer sozinho do pônei, e brandir
uma espada de madeira suficientemente bem para atirar o Príncipe
Tommen ao chão. Agora, só podia observar, espreitando pelo tubo
das lentes de Meistre Luwin. O meistre ensinara-lhe todos os
estandartes: o punho revestido de cota de malha dos Glover,
prateado sobre escarlate; o urso negro da Senhora Mormont; o
hediondo homem esfolado que precedia
Roose Bolton, do Forte do Pavor; um alce macho para os Hornwood;
um machado de batalha para os Cerwyn; três árvores-sentinelas para
os Tallhart; e o temível símbolo da Casa Umber, um gigante a rugir
com correntes quebradas.
E em breve ficou também conhecendo os rostos, quando os senhores
e seus filhos e cavaleiros vieram a Winterfell para os banquetes. Nem
o Grande Salão tinha tamanho que chegasse para que todos se
sentassem ao mesmo tempo e, portanto, Robb recebeu os principais
vassalos um de cada vez. A Bran era sempre dado o lugar de honra, à
direita do irmão. Alguns dos senhores vassalos davam-lhe estranhos e
duros olhares quando se sentava ali, como se se perguntassem com
que direito um rapazinho ainda verde, e ainda por cima aleijado, era
colocado acima deles.
- Quantos são agora? - perguntou Bran a Meistre Luwin quando
Lorde Karstark e os filhos entraram a cavalo pelos portões da
muralha exterior.
- Doze mil homens, ou tão perto disso que não faz diferença.
- Quantos cavaleiros?
- Bem poucos - disse o meistre com um ar de impaciência. - Para ser
armado cavaleiro, é preciso ficar de vigília num septo e ser ungido
com os sete óleos para consagrar os votos. No Norte, só um punhado
das grandes Casas reza aos Sete. Os outros honram os deuses
antigos e não armam cavaleiros... mas esses senhores, seus filhos e
seus soldados não são menos ferozes, leais ou honrados por causa
disso. O valor de um homem não se determina por um sor antes de
seu nome. Tal como já vos disse cem vezes.
- Mesmo assim - disse Bran -, quantos cavaleiros? Meistre Luwin
suspirou.
- Trezentos, talvez quatrocentos... entre três mil homens com
armadura que não são cavaleiros.
- Lorde Karstark é o último - disse Bran, pensativo. - Robb dará um
banquete em sua honra esta noite.
- Sem dúvida que sim.
- Quanto tempo falta até que. . até que partam?
- Têm de marchar em breve, ou não marcharão - disse Meistre
Luwin. - A Vila de Inverno está cheia até rebentar, e este exército
comerá tudo o que existe nos campos se acampar aqui durante
muito tempo. Há outros à espera de se juntarem a eles ao longo da
Estrada do Rei, cavaleiros das Terras Acidentadas, cranogmanos e os
senhores Manderly e Flint.Já se luta nas terras do rio, e seu irmão
tem muitas léguas a transpor.
- Eu sei - Bran sentia-se tão infeliz como soava. Devolveu a luneta de
bronze ao meistre e reparou como seus cabelos haviam se tornado
finos no topo da cabeça. Conseguia ver o rosado do couro cabeludo
começando a aparecer. Era estranho olhar assim de cima para ele,
quando passara toda a vida a olhá-lo de baixo; mas quando se andava
"de cavalinho" sobre Hodor, olhava-se de cima para todo mundo. -
Não quero observar mais. Hodor, leve-me de volta à fortaleza.
- Hodor - Hodor ecoou.
Meistre Luwin enfiou a luneta na manga.
- Bran, o senhor seu irmão não terá tempo para você agora. Tem de
receber Lorde Karstark e os filhos e fazer com que se sintam bem-
vindos.
- Não vou incomodar Robb. Quero visitar o bosque sagrado - pousou
a mão no ombro de Hodor. - Hodor.
Uma série de apoios de mão cortados a cinzel no granito formava
uma escada na parede interna da torre. Hodor desceu, uma mão após
outra, enquanto cantarolava sem melodia e Bran balançava de
encontro às suas costas no assento de madeira que Meistre Luwin
fabricara para ele. Luwin se baseara na ideia dos cestos que as
mulheres usavam para transportar lenha nas costas; depois disso,
recortar buracos para as pernas e adicionar algumas correias novas
para distribuir o peso de Bran mais uniformemente fora coisa
simples. Não era tão bom como montar a Dançarina, mas havia
lugares onde a Dançarina não podia ir, e assim Bran não ficava tão
envergonhado como quando Hodor o transportava nos braços como
se fosse um bebê. Hodor também parecia gostar, se bem que com ele
era difícil ter certeza. A única parte complicada eram as portas. Às
vezes, Hodor esquecia-se de que levava Bran nas costas, e isso podia
ser doloroso quando atravessavam uma porta»
Ao longo de quase uma quinzena tinha havido tantas entradas e
saídas que Robb ordenara que ambas as portas levadiças se
mantivessem içadas e a ponte levadiça entre elas, descida, mesmo na
noite profunda. Uma longa coluna de lanceiros cobertos de armadura
atravessava o fosso entre as muralhas quando Bran saiu da torre;
homens dos Karstark, seguindo seus senhores para dentro do castelo.
Usavam meios elmos de ferro negro e mantos negros de lã
adornados com o sol raiado branco. Hodor trotou ao lado deles,
sorrindo para si mesmo, fazendo ressoar as botas na madeira da
ponte levadiça. Os soldados lançaram-lhes olhares estranhos ao vê-los
passar, e uma vez Bran ouviu alguém soltar uma gargalhada.
Recusou-se a deixar que aquilo o perturbasse.
- Os homens olharão para você - prevenira-o Meistre Luwin da
primeira vez que tinham atado o assento ao peito de Hodor. -
Olharão e falarão, e alguns zombarão - pois que zombem, pensara
Bran. Ninguém zombava dele no seu quarto, mas não queria viver a
vida na cama.
Ao passarem sob a porta levadiça da casa da guarda, Bran pôs dois
dedos na boca e assobiou. Verão veio aos saltos pelo pátio afora. De
repente, os lanceiros Karstarks lutavam para manter o controle dos
cavalos, enquanto os animais viravam os olhos e relinchavam de
medo. Um garanhão empinou-se, gritando, enquanto o cavaleiro
praguejava e se agarrava desesperadamente. O cheiro dos lobos
selvagens punha os cavalos num frenesi de medo se não estivessem
habituados, mas se aquietariam rapidamente quando Verão fosse
embora.
- O bosque sagrado - Bran lembrou a Hodor.
Até mesmo Winterfell estava cheio de gente. O pátio ressoava com o
som de espadas e machados, com o estrondear das carroças e o
ladrar dos cães. As portas do armeiro estavam abertas, e Bran viu de
relance Mikken na sua forja, fazendo tinir o martelo enquanto suor
lhe pingava do peito nu. Bran nunca vira tantos estranhos em toda
sua vida, nem mesmo quando o Rei Robert viera visitar seu pai.
Tentou não vacilar quando Hodor se abaixou para atravessar uma
porta baixa. Caminharam por um longo átrio sombrio, com Verão
acompanhando facilmente o passo. O lobo olhava para cima de vez
em quando, com os olhos ardendo como ouro líquido. Bran teria
gostado de tocá-lo, mas estava alto demais para que a mão nele
chegasse.
O bosque sagrado era uma ilha de paz no mar de caos em que
Winterfell tinha se transformado. Hodor abriu caminho através dos
densos maciços de carvalho, pau-ferro e árvores--sentinelas até a
lagoa parada junto à árvore-coração. Parou sob os ramos nodosos do
represeiro cantarolando. Bran ergueu os braços acima da cabeça e
alçou-se para fora do assento, fazendo passar o peso morto das
pernas através dos buracos do cesto. Ficou pendurado por um
momento, oscilando, com as folhas vermelho-escuras roçando-lhe no
rosto, até que Hodor o pegou e o abaixou até a pedra lisa ao lado da
água.
- Quero ficar um pouco sozinho - disse. - Vá se molhar. Vá até as
lagoas.
- Hodor - o gigante seguiu através das árvores e desapareceu. Do
outro lado do bosque sagrado, sob as janelas da Casa de Hóspedes,
uma nascente quente subterrânea alimentava três pequenos charcos.
Saía vapor das águas dia e noite, e o muro que se erguia ao lado
estava coberto de musgo. Hodor detestava água fria e lutava como
um gato selvagem refugiado numa árvore sempre que era ameaçado
com sabão, mas entrava alegremente no charco mais quente e ficava
lá sentado durante horas, soltando um sonoro arroto para fazer eco à
nascente sempre que uma bolha se erguia das sombrias profundezas
verdes e se quebrava na superfície.
Verão bebeu um pouco de água e deitou-se ao lado de Bran. Este fez
um afago sob o focinho do lobo, e por um momento rapaz e animal
sentiram-se em paz. Bran sempre gostara do bosque sagrado, mesmo
antes, mas nos últimos tempos achara-se cada vez mais atraído para
lá. Até a árvore-coração já não o assustava como costumava antes.
Os profundos olhos vermelhos esculpidos no tronco claro ainda o
observavam, mas, de algum modo, agora tirava conforto disso. Os
deuses olhavam por ele, dizia a si mesmo, os deuses antigos, deuses
dos Stark, dos Primeiros Homens e dos Filhos da Floresta, os deuses
do seu pai. Sentia-se seguro à vista deles, e o profundo silêncio das
árvores o ajudava a pensar. Bran tinha passado a pensar muito desde
a queda; a pensar, a sonhar e a falar com os deuses.
- Por favor, façam com que Robb não vá embora - rezou em voz
baixa. Moveu a mão pela água fria, criando ondinhas que
atravessaram a lagoa. - Por favor, façam com que ele fique. Ou, se
tiver de ir, tragam-no a salvo para casa, com a mãe e o pai e as
meninas. E façam com que... façam com que Rickon compreenda.
O irmão mais novo tornara-se incontrolável como uma tempestade
de inverno desde que soubera que Robb ia partir para a guerra, ora
choroso, ora zangado. Recusava-se a comer, chorava e gritava noite
adentro, chegara mesmo ao ponto de dar um soco na Velha Ama
quando ela tentou embalá-lo com canções, e no dia seguinte
desapareceu. Robb pusera metade do castelo à sua procura, e quando
finalmente o encontraram lá embaixo, nas criptas, Rickon golpeara-os
com uma enferrujada espada que tirara da mão de um rei morto, e
Cão Felpudo saltara da escuridão, babando como um demônio de
olhos verdes. O lobo estava quase tão fora de controle como Rickon;
mordera Gage no braço e arrancara um pedaço da coxa de Mikken.
Só o próprio Robb e Vento Cinzento tinham logrado acalmá-lo,
Farlen mantinha-o agora acorrentado nos canis, e Rickon chorava
ainda mais por estar sem ele.
Meistre Luwin aconselhara Robb a permanecer em Winterfell, e Bran
também lhe pedira, tanto por si como por Rickon, mas o irmão
limitara-se a balançar teimosamente a cabeça e a dizer:
- Não quero ir. Tenho de ir.
Era só meia mentira. Alguém tinha de ir, para defender o Gargalo e
ajudar os Tully contra os Lannister, Bran compreendia isso, mas não
tinha de ser Robb. O irmão podia ter dado o comando a Hal Mollen
ou a Theon Greyjoy, ou a um dos senhores seus vassalos. Meistre
Luwin insistiu para que fizesse isso mesmo, mas Robb não queria
ouvir falar do assunto.
- O senhor meu pai nunca enviaria homens para a morte para se
esconder como um covarde atrás das muralhas de Winterfell -
dissera, todo ele Robb, o Senhor.
Robb agora parecia a Bran quase um estranho, transformado, um
senhor de verdade, embora não tivesse ainda passado pelo décimo
sexto dia do seu nome. Até os vassalos do pai pareciam senti-lo.
Muitos tentavam testá-lo, cada um à sua maneira. Tanto Roose
Bolton como Robett Glover exigiram a honra do comando de batalha,
o primeiro de forma brusca, o segundo com um sorriso e um
gracejo. A resoluta e grisalha Maege Mormont, vestida de cota de
malha como se fosse um homem, disse abruptamente a Robb que ele
tinha idade para ser seu neto e que não tinha nada que lhe dar
ordens. ., mas acontecia que tinha uma neta com a qual estava
disposta a deixá-lo se casar. Lorde Cerwyn, um homem de falas
mansas, tinha até mesmo trazido consigo a filha, uma donzela
rechonchuda e desajeitada de trinta anos, que se sentou à esquerda
do pai e nunca levantou os olhos do prato. O jovial Lorde Hornwood
não tinha filhas, mas trouxe presentes, um dia um cavalo, no
seguinte um quadril de veado, no outro um corno de caça com
relevos de prata, e nada pediu em troca... nada exceto uma extensão
de terra que fora tirada de seu avô, e direitos de caça para norte de
uma certa serra, e licença para construir uma represa no Faca
Branca, se agradasse ao senhor.
Robb respondia a todos com fria cortesia, muito à semelhança do
que o pai poderia fazer, e de alguma forma dobrava-os à sua
vontade.
E quando Lorde Umber, cujos homens alcunhavam como Grande-Jon,
tão alto como Hodor e duas vezes mais largo, ameaçou levar suas
forças para casa se fosse colocado atrás dos Hornwood ou dos
Cerwyn na ordem de marcha, Robb disse-lhe que o fizesse, se assim
desejasse.
- E quando resolvermos o assunto dos Lannister - prometera,
coçando Vento Cinzento atrás da orelha -, marcharemos outra vez
para o norte e os arrancaremos da sua fortaleza e os enforcaremos
por quebra dos votos - praguejando, Grande-Jon atirara um jarro de
cerveja ao fogo e berrara que Robb era tão verde que devia urinar
erva. Quando Hallis Mollen se aproximara para refreá-lo, atirara-o ao
chão, virara uma mesa e desembainhara a maior e mais feia espada
longa que Bran jamais vira. Por toda a sala, seus filhos, irmãos e
soldados puseram-se em pé de um salto, puxando seu aço.
Mas Robb dissera apenas uma palavra em voz baixa, e com um
rosnido e num piscar de olhos, Lorde Umber deu por si estatelado de
costas, com a espada girando no chão a um metro de distância e a
mão pingando sangue no lugar de onde Vento Cinzento arrancara
dois dedos.
- O senhor meu pai me ensinou que empunhar o aço contra o seu
suserano significa a morte - Robb dissera-, mas sem dúvida que o
senhor queria apenas cortar-me a carne - as entranhas de Bran
fizeram-se em água quando Grande-Jon lutara para se erguer,
chupando os tocos vermelhos dos dedos... mas então,
espantosamente, o enorme homem soltou uma gargalhada,
- A vossa carne - o homem rugiu - é dura como um raio.