Após permitir a entrada de Colin atrás dele, fechou a janela cuidadosamente e olhou em volta, procurando o tal pássaro.

Chegou à seguinte conclusão sobre as janelas: como haviam sido convertidas para se abrirem depois de terem sido projetadas para serem inexpugnáveis, eram na verdade muito menos seguras do que se tivessem sido projetadas como janelas que abrem normalmente.

Pois é, a vida é mesmo engraçada, estava pensando Ford com os seus botões, quando percebeu de repente que tinha tido o maior trabalho para entrar em um lugar absolutamente desinteressante.

Então estacou, surpreso.

Onde estava a curiosa figura em formato de ave, batendo as asas? Onde estava qualquer coisa que justificasse todo aquele trabalho — o extraordinário véu de sigilo que parecia permear todo o ambiente e a igualmente extraordinária seqüência de eventos que parecia conspirar para levá-lo até lá?

A sala, como qualquer outra sala daquele prédio no momento, havia sido decorada em um cinza de impressionante bom gosto. Havia alguns gráficos e desenhos na parede. A maioria não significava nada para Ford, mas foi então que ele se deparou com algo que era obviamente o modelo de um pôster.

Havia uma logomarca em formato de pássaro com um slogan que dizia: "O

Guia do Mochileiro das Galáxias versão II: a mais incrível de todas as coisas que já

existiram. Breve em uma dimensão perto de você." Sem mais nenhuma informação. Ford tornou a olhar em volta. Então a sua atenção foi gradualmente atraída para Colin, o robô de segurança absurdamente hiper-feliz, que estava encolhido em um canto, balbuciando coisas de uma forma estranhamente parecida com medo. Estranho, pensou Ford. Olhou em volta para ver o que poderia estar assustando Colin. Então viu algo que não havia notado antes, parado calmamente sobre uma bancada de trabalho.

Era circular e negro, mais ou menos do tamanho de um prato pequeno. A parte superior e a inferior eram lisinhas e convexas, o que lhe dava a aparência de um disco de arremesso bem leve.

As superfícies pareciam ser completamente lisas, contínuas e sem traços característicos.

A coisa estava parada.

Ford notou, então, que havia algo escrito nela. Estranho. Não havia nada escrito um segundo atrás, mas agora estava lá. Não parecia, contudo, ter ocorrido nenhuma transição visível entre os dois estados.

A mensagem, em letrinhas pequenas e alarmantes, se resumia a três palavras: ENTRE EM PÂNICO

Pouco antes não havia nenhuma marca ou linhas em sua superfície. Agora havia. E estavam crescendo.

Entre em pânico, dizia o Guia versão II. Ford começou a agir de acordo. Lembrou-se subitamente por que as criaturas com aparência de lesma lhe pareciam tão familiares. Seu padrão de cores estava mais para um cinza executivo, porém, em todo o resto, eram parecidíssimas com os vogons.

CAPÍTULO 13

A nave tocou a terra silenciosamente no canto da imensa clareira, a uns cem metros da cidade. Surgiu súbita e inesperadamente, mas sem fazer alarde. Numa hora, era um final de tarde perfeitamente normal, início de outono — as folhas começando a ficar vermelhas e douradas, o rio começando a correr novamente graças às chuvas das montanhas ao norte, a plumagem dos pássaros pikka começando a engrossar, preparando—se para a chegada das geadas de inverno, e, a qualquer momento, as Bestas Perfeitamente Normais começariam a sua estrondosa migração pelas planícies enquanto o Velho Thrashbarg resmungaria sozinho ao perambular pela cidade, um resmungo que significava que já estava ensaiando e elaborando as histórias que iria contar sobre o ano que passou quando as pessoas não tivessem outra opção ao anoitecer a não ser se reunir em volta de uma fogueira para escutá-lo e depois reclamar, dizendo que a história de que lembravam não era bem aquela — e, em seguida, havia uma nave espacial pousada, reluzindo no calor do sol de outono.

Zumbiu por alguns minutos, depois parou.

Não era uma nave grande. Se os moradores locais fossem especialistas em naves espaciais, saberiam de cara que aquela era uma bela e estilosa espaçonave leve Hrundi, de quatro leitos, com praticamente todos os opcionais oferecidos no folheto, exceto a Estabilização Vectóide Avançada, que era coisa de frouxo. Não dá para fazer uma curva fechada e precisa em um eixo de tempo trilateral com a Estabilização Vectóide Avançada. Tudo bem, é um pouco mais seguro, mas tira a graça da direção. Os moradores não sabiam nada daquilo, é claro. A maioria dos habitantes do remoto planeta Lamuella jamais havia visto uma nave espacial, certamente não uma que estivesse inteira. Brilhando calorosa na luz do entardecer, era simplesmente a coisa mais extraordinária que eles já haviam visto, desde o dia em que Kirp pegou um peixe com uma cabeça de cada lado.

Estavam todos em silêncio.

Enquanto poucos momentos antes umas vinte ou trinta pessoas estavam perambulando pelo local, conversando, cortando lenha, carregando água, perturbando os pássaros pikka ou tentando educadamente ficar longe do Velho Thrashbarg, de repente toda a atividade fora interrompida e todos se viraram para contemplar o objeto estranho, espantados.

Bom, nem todos. Os pássaros pikka costumavam se espantar com coisas bem diferentes. Uma folha absolutamente comum caída inesperadamente sobre uma pedra provocava os acessos mais frenéticos; o nascer do sol sempre os apanhava de surpresa pela manhã, mas a chegada de uma nave espacial de outro planeta simplesmente não lhes chamara a menor atenção. Continuaram a kar e rit e huk enquanto ciscavam sementes pelo chão; o rio prosseguia em seu calmo e vasto borbulhar. Além disso, o barulho da cantoria alta e desafinada vinda da última cabana à

esquerda também prosseguia, inabalável.

De repente, com um suave clique e um murmúrio, uma porta da nave se desdobrou para fora e para baixo. Então, por alguns minutos, nada mais aconteceu além da cantoria alta que vinha da última cabana à esquerda, e a nave simplesmente ficou lá, parada.

Alguns dos moradores, especialmente os garotos, começaram a se aproximar um pouco para olhar de perto. O Velho Thrashbarg tentou enxotá-los. Aquele era exatamente o tipo de coisa que o Velho Thrashbarg não gostava que acontecesse. Não tinha profetizado nada daquilo, nem de longe, e, embora fosse dar um jeito de incluir a coisa de uma maneira ou de outra em suas longas histórias, aquilo estava começando a ficar complicado demais.

Deu alguns passos à frente, empurrou os meninos para trás e suspendeu os braços e seu velho cajado no ar. A luz morna e comprida do sol que se punha recaía bem sobre ele. Começou a se preparar para dar as boas-vindas àqueles deuses, fossem quais fossem, como se estivesse esperando por eles desde sempre. Ainda assim nada aconteceu.

Aos poucos começou a ficar claro que estava rolando alguma discussão dentro da nave. O tempo foi passando e os braços do Velho Thrashbarg começaram a doer. De repente, a rampa se recolheu novamente para dentro da nave. Aquilo facilitou as coisas para Thrashbarg. Eram demônios e ele os expulsara. Não havia profetizado o evento por uma questão de prudência e modéstia. Quase imediatamente, uma outra rampa se desdobrou do lado oposto da nave, contrário ao que Thrashbarg estava, e duas figuras finalmente surgiram, ainda discutindo e ignorando todo mundo, até mesmo Thrashbarg, que eles mal podiam ver do lugar onde estavam.

O Velho Thrashbarg mordiscou a barba, irritado. Será que devia continuar ali parado, com os braços para cima? Se ajoelhar no chão, com a cabeça arriada para a frente e o cajado apontado para eles? Cair para trás, como se devastado por uma titânica luta interior? Ou talvez fugir para a floresta e viver em uma árvore durante um ano, sem falar com ninguém?

Decidiu abaixar os braços elegantemente, como se tivesse feito aquilo de propósito. Já estavam doendo demais, de modo que ele não tinha muita escolha. Fez um pequeno sinal secreto que tinha acabado de inventar em direção à rampa, que havia acabado de fechar, e depois deu três passos e meio para trás, a fim de poder ao menos observar direito quem eram aquelas pessoas e decidir o que fazer em seguida. A mais alta era uma mulher muito bonita, usando roupas soltas e amarrotadas. O Velho Thrashbarg não sabia disso, mas eram feitas de Rymplon TM, um novo tecido sintético que era perfeito para viagens espaciais porque parecia realmente fantástico quando estava todo enrugado e suado.

A mais baixa era uma menina. Era esquisita e tinha um ar mal-humorado, usava roupas que ficavam péssimas quando estavam enrugadas e suadas e, o que era pior, ela provavelmente sabia daquilo.

Todos olhavam para elas, exceto os pássaros pikka, que tinham outras coisas para olhar.

A mulher estacou e olhou à sua volta. Tinha um ar decidido. Ficou claro que estava buscando algo específico, mas não sabia exatamente onde encontrar. Olhou os rostos dos habitantes que se reuniam curiosos à sua volta, um por um, e, aparentemente, não encontrou o que estava procurando.

Thrashbarg não fazia a menor idéia do que fazer e decidiu apelar para um cântico. Jogou a cabeça para trás e começou o seu lamento, mas foi imediatamente interrompido por uma nova leva de músicas da cabana do Fazedor de Sanduíches: a última do lado esquerdo. A mulher virou-se bruscamente para aquela direção e, lentamente, um sorriso surgiu em seu rosto. Sem nem olhar de relance para o Velho Thrashbarg, começou a se dirigir para a cabana.

Fazer sanduíches é uma arte que poucos têm condições de sequer encontrar tempo para explorar. É uma tarefa simples, mas as oportunidades de satisfação são inúmeras e profundas: escolher o pão certo, por exemplo. O Fazedor de Sanduíches passara vários meses fazendo consultas e experiências diárias com o padeiro Grarp, até

criarem, finalmente, um pão com uma consistência densa o suficiente para ser cortado em fatias finas e perfeitas, mas ao mesmo tempo leve, molhadinho e com aquele delicado sabor de nozes que realçava o gosto da carne assada das Bestas Perfeitamente Normais.

Sem contar com a geometria da fatia, que devia ser refinada: as relações exatas entre a largura e a altura da fatia e a sua grossura, que conferem o senso adequado de volume e peso ao sanduíche pronto — aqui, mais uma vez, a leveza era uma virtude, mas também a firmeza, a generosidade e a promessa de suculência e sabor que são a marca registrada de uma experiência sanduichística verdadeiramente intensa. Os utensílios adequados, é claro, eram cruciais, e o Fazedor de Sanduíches passava vários dias, quando não estava ocupado com o padeiro e seu forno, com Strinder, o Fazedor de Utensílios, pesando e comparando facas, indo e voltando da fornalha. Maleabilidade, força, agudeza do corte, comprimento e peso eram entusiasticamente debatidos; teorias eram criadas, testadas, refinadas e não eram poucas as tardes onde se podia ver as silhuetas do Fazedor de Sanduíches e do Fazedor de Utensílios delineadas contra a luz do pôr-do-sol, enquanto o amolador de facas do Fazedor de Utensílios cortava o ar em movimentos lentos, lixava as suas lâminas, experimentava uma a uma, comparando o peso de uma com o equilíbrio da outra, a maleabilidade de uma terceira e o cabo de uma quarta.

Eram necessárias quatro facas ao todo. Primeiro, a faca para fatiar o pão: uma lâmina firme, vigorosa, que impunha um propósito claro e definido no pão. Depois, a faca para espalhar manteiga, maleável mas com um cabo firme. As primeiras versões tinham ficado frouxas demais, mas depois a combinação de flexibilidade com força foi aperfeiçoada para alcançar o máximo de suavidade e graça na hora de espalhar a manteiga.

Dentre todas as facas, a principal obviamente era a de trinchar. Esta era a faca que não iria apenas impor a sua vontade no meio pelo qual se deslocava, como ocorria com a faca do pão. Ela precisava trabalhar com a carne, ser guiada por sua fibra, produzir fatias primorosamente consistentes e translúcidas que se soltassem gentilmente em dobras finas do pedaço maior da carne. O Fazedor de Sanduíches encaixava cada fatia de carne, fazendo um gracioso meneio com o punho, nas lindamente proporcionais fatias debaixo do pão, cortava as arestas com quatro golpes habilidosos e, finalmente, realizava a mágica que todas as crianças da cidade gostavam tanto de se reunir para admirar, embevecidas e maravilhadas. Com mais quatro golpes hábeis da faca, ele reunia as sobras descartadas em um perfeito quebra-cabeça sobre a primeira fatia. Cada sanduíche tinha sobras de tamanho e formato diferentes, mas o Fazedor de Sanduíches sempre dava um jeito de reuni-las, aparentemente sem esforço e sem hesitação, em um padrão que se encaixava perfeitamente. Mais uma segunda camada de carne e uma segunda camada de sobras e, pronto, o ato principal da criação estava concluído. O Fazedor de Sanduíches passava sua criação para o assistente, que acrescentava algumas fatias de nopino, ranabete e molho de espramboesa, colocava a fatia final de pão sobre o recheio e cortava o sanduíche com a quarta faca, a mais simples de todas. Essas operações certamente exigiam uma certa habilidade, mas eram habilidades inferiores, que podiam ser desempenhadas por um aprendiz dedicado que um dia, quando o Fazedor de Sanduíches pendurasse as suas facas, assumiria o seu lugar. Era uma posição muito nobre, e Drimple, o aprendiz, era invejado por todos os seus amigos. Algumas pessoas na cidade estavam satisfeitas cortando lenha, contentes por carregar água, mas ser o Fazedor de Sanduíches era, definitivamente, o máximo. E então lá estava o Fazedor de Sanduíches cantando enquanto trabalhava. Estava usando a última carne salgada do ano. Já não estava mais tão fresca, mas ainda assim o sabor suculento das Bestas Perfeitamente Normais era a coisa mais maravilhosa que ele já havia provado. Estavam dizendo que na semana seguinte as Bestas Perfeitamente Normais iriam aparecer para a sua migração usual e toda a cidade mergulharia, mais uma vez, em atividades frenéticas: caçar as Bestas, matar umas seis, ou quem sabe até mesmo umas sete dúzias das milhares que passavam correndo por eles. Depois, as Bestas tinham de ser rapidamente abatidas e limpas; salgavam a maior parte da carne para conservá-la durante os meses de inverno, até o retorno da migração na primavera, que reabasteceria os estoques.

Os melhores pedaços da carne eram assados imediatamente para o banquete que marcava a Passagem do Outono. As comemorações duravam três dias de absoluta exuberância, danças e histórias que o Velho Thrashbarg contava sobre como havia sido a caçada, histórias que ele teria ficado inventando na tranqüilidade de sua cabana enquanto todo o resto da cidade estava de fato caçando.

E então os melhores dos melhores pedaços da carne eram guardados após o banquete e entregues para o Fazedor de Sanduíches. E sobre esses pedaços ele usaria as habilidades que havia recebido dos deuses e faria os requintados sanduíches da Terceira Estação, que toda a cidade compartilhava antes de começar, no dia seguinte, a se preparar para os rigores do inverno que iria chegar.

Naquele dia, estava fazendo sanduíches comuns, se é que aquelas iguarias, tão carinhosamente preparadas, podiam ser chamadas de comuns. O seu assistente estava de folga, então o Fazedor de Sanduíches operava os seus milagres sozinho e o fazia alegremente. Para falar a verdade, tudo em sua vida ultimamente o deixava alegre. Fatiava e cantava. Colocava cada pedaço de carne com capricho sobre o pão, aparava as arestas e ajeitava as sobras no seu quebra-cabeça. Uma saladinha, um pouco de molho, outro pedaço de pão, outro sanduíche, outro verso de Yellow Submarine.

— Oi, Arthur.

O Fazedor de Sanduíches quase cortou o dedão fora.

Os moradores da cidade observaram, consternados, enquanto a mulher marchava corajosa para a cabana do Fazedor de Sanduíches. O Fazedor de Sanduíches fora enviado por Bob Todo-Poderoso em uma carruagem de fogo flamejante. Aquilo, pelo menos, era o que Thrashbarg havia dito e ele era a autoridade nesses assuntos. Ou pelo menos era isso que Thrashbarg afirmava e Thrashbarg era... assim por diante. Não adiantava discutir a respeito.

Alguns aldeões se questionaram por que Bob Todo-Poderoso lhes mandaria o seu filho único em uma carruagem de fogo flamejante e não em uma que pudesse ter aterrissado calmamente, sem destruir metade da floresta, enchê-la de fantasmas e acabar fazendo com que o Fazedor de Sanduíches se machucasse feio. O Velho Thrashbarg dissera que era a vontade inefável de Bob, e, quando perguntaram o que era "inefável", ele mandou olhar no dicionário.

O que era um problema, porque o único dicionário da cidade pertencia ao Velho Thrashbarg e ele não emprestava a ninguém. Eles perguntavam por que e ele dizia que não lhes cabia conhecer a vontade de Bob Todo-Poderoso e, quando perguntavam o porquê novamente, ele dizia que era assim e pronto. De todo modo, alguém invadiu a cabana do Velho Thrashbarg um dia, quando ele saiu para nadar, e procurou o verbete "inefável". Inefável aparentemente significava "incognoscível, indescritível, inexprimível, impossível de ser conhecido ou falado". Ah, aquilo explicava tudo.

Pelo menos, eles tinham os sanduíches.

Um dia, o Velho Thrashbarg havia dito que Bob Todo-Poderoso decretara que ele, Thrashbarg, tinha direito de escolher os sanduíches primeiro. Os aldeões queriam saber quando exatamente aquilo tinha acontecido e ele respondera que fora no dia anterior, quando ninguém estava olhando. "Tenham fé — dissera o Velho Thrashbarg

— ou queimem!"

Deixaram ele escolher os sanduíches primeiro. Parecia mais fácil. E agora aquela mulher aparecera do nada e fora direto para a cabana do Fazedor de Sanduíches. A sua fama na certa se espalhara — embora fosse difícil precisar para onde, já que, segundo o Velho Thrashbarg, não existia nenhum outro lugar. De todo modo, fosse lá de onde ela tivesse vindo, presumivelmente de algum lugar inefável, o fato é que estava lá naquele momento e fora até a cabana do Fazedor de Sanduíches. Quem era ela? E quem era a garota misteriosa que estava do lado de fora da cabana, chutando pedrinhas, chateada e com todo o jeito de que não queria estar ali?

Parecia estranho que alguém se desse ao trabalho de vir até ali de algum lugar inefável em uma carruagem que, obviamente, era um visível aperfeiçoamento da carruagem flamejante que trouxera o Fazedor de Sanduíches, se não queria nem estar ali. Todos olharam para Thrashbarg, mas ele estava ajoelhado, murmurando e olhando fixamente para o céu, evitando olhar as pessoas até que inventasse alguma coisa para falar.

Trillian! — disse o Fazedor de Sanduíches, chupando o dedão ensangüentado. — Como...? Quem...? Quando...? Onde...?

Exatamente as perguntas que eu ia fazer — disse Trillian, examinando o interior da cabana de Arthur. Estava bem-arrumada, com os seus utensílios de cozinha. Havia alguns armários básicos, algumas prateleiras e uma cama básica em um dos cantos. Uma porta no fundo da cabana dava para algo que Trillian não conseguia ver, pois estava fechada. — Legal — disse ela, mas em um tom de voz questionador. Não estava conseguindo entender bem o que era aquilo.

Muito legal — disse Arthur. — Incrivelmente legal. Não me lembro de ter estado em algum lugar tão legal antes. Estou feliz aqui. As pessoas gostam de mim, eu faço sanduíches para elas e... ah, bom, é basicamente isso. Elas gostam de mim e eu faço sanduíches para elas.

Parece, ahn...

Idílico — completou Arthur, firmemente. — E é. De verdade. Acho que você não vai gostar muito, mas para mim é, digamos, perfeito. Olha, sente-se, por favor, fique à vontade. Posso te oferecer alguma coisa, ah, um sanduíche?

Trillian apanhou um sanduíche e examinou. Cheirou-o cuidadosamente.

Experimenta — disse Arthur. — É gostoso.

Trillian provou um pedacinho, depois mordeu e depois mastigou, pensativa.

É bom mesmo — disse ela, contemplando o sanduíche.

Vivo disso agora — disse Arthur, tentando soar orgulhoso e torcendo para não soar como um idiota completo. Estava se acostumando a ser levemente reverenciado ali e agora estava tendo que fazer uma grande ginástica mental.

Que carne é essa? — perguntou Trillian.

Ah, uhn, é Besta Perfeitamente Normal.

O quê?

Besta Perfeitamente Normal. Parece um pouco com carne de vaca, ou de boi. Na verdade parece mais carne de búfalo. É um animal bem grande, desses que saem em estouros.

E o que há de estranho nele?

Nada. É Perfeitamente Normal.

Sei.

O que é um pouco estranho é de onde eles vêm.

Trillian franziu a testa e parou de mastigar.

De onde eles vêm? — perguntou ela com a boca cheia. Não ia engolir até

apurar aquela história toda.

Bom, o problema não é só de onde eles vêm, é também para onde eles vão. Mas não tem grilo, não, você pode engolir sem medo. Eu já estou cansado de comer isso. É ótimo. Bem suculento. Muito macio. Tem um sabor levemente adocicado, com um toque meio amargo.

Trillian ainda não tinha engolido.

De onde — perguntou Trillian — eles vêm e para onde eles vão?

Eles vêm de uma região um pouco ao leste das Montanhas Hondo. São aquelas grandonas bem aqui atrás, você deve ter visto quando chegou. Eles cruzam desembestados as Grandes Planícies Anhondo e, bem, é isso. É de lá que eles vêm. E é

para lá que eles vão.

Trillian franziu a testa. Tinha algo ali que ela não estava entendendo.

Acho que não expliquei direito — disse Arthur. — Quando eu disse que eles vêm de uma região ao leste das Montanhas Hondo, quis dizer que é de lá que eles surgem de repente. Então eles cruzam desembestados as Grandes Planícies Anhondo e desaparecem, para falar a verdade. Temos mais ou menos uns cinco dias para caçar o máximo que pudermos antes de eles sumirem. Na primavera fazem a mesma coisa novamente, só que vindo da direção contrária.

Relutantemente, Trillian engoliu. Era isso ou cuspir e, para falar a verdade, o gosto era ótimo.

Sei — disse ela, depois de se certificar que não estava sofrendo nenhum efeito colateral. — E por que são chamadas de Bestas Perfeitamente Normais?

Bem, acho que é porque, do contrário, as pessoas iam achá-los meios esquisitos. Acho que foi o Velho Thrashbarg que os batizou assim. Ele diz que os animais vêm do lugar que vêm e que vão para o lugar que vão e que essa é a vontade de Bob e que isso é tudo.

Quem...

Melhor nem perguntar.

Bom, você parece estar bem aqui.

Me sinto bem. Você também parece bem.

Estou bem. Estou muito bem.

Bom, que bom.

É.

Ótimo.

Ótimo.

Legal ter vindo aqui.

Valeu.

Bem — disse Arthur, olhando à sua volta. Incrível como era difícil pensar em algo para se dizer a uma pessoa depois de todo aquele tempo.

Você deve estar se perguntando como foi que te encontrei —disse Trillian.

Pois é! — respondeu Arthur. — Estava me perguntando exatamente isso. Como foi que você me encontrou?

Bem, não sei se você sabe ou não, mas agora eu trabalho para uma das emissoras subetas que...

Estou sabendo — disse Arthur, lembrando-se de repente. — É, você se deu muito bem. Maravilha. Muito empolgante. Parabéns. Deve ser muito divertido.

Cansativo.

Toda aquela correria. Deve ser, sim.

Temos acesso a praticamente todo tipo de informação.

Encontrei o seu nome na lista de passageiros da nave que caiu.

Arthur estava impressionado.

Quer dizer que eles sabem da queda?

Ué, claro que sabem. Não dá para uma nave cheia de passageiros desaparecer sem que ninguém fique sabendo.

Mas, peraí, eles sabem onde nós caímos? Sabem que eu sobrevivi?

Sim.

Mas ninguém nunca veio me ver, me procurar, me resgatar. Não aconteceu nada.

Bem, não poderia ter acontecido mesmo. É um lance complicadíssimo com as companhias de seguro. Encobrem a história toda. Fingem que nada aconteceu. O

mercado de seguros está totalmente maluco agora. Sabia que eles reintroduziram a pena de morte para os diretores de companhias de seguros?

Sério? — perguntou Arthur. — Não sabia disso, não. Para qual crime?

Trillian franziu a testa.

Como assim, crime?

Entendo.

Trillian olhou longamente para Arthur e depois, com outro tom de voz, disse:

É hora de você assumir as suas responsabilidades, Arthur.

Arthur tentou compreender aquele comentário. Sabia que sempre levava mais ou menos um minuto para entender exatamente o que as pessoas estavam falando, então deixou mais ou menos um minuto passar, sem a menor pressa. A sua vida era tão agradável e tranqüila naqueles dias que tinha tempo de sobra para esperar as coisas fazerem sentido na sua cabeça. Então deixou as coisas fazerem sentido. Ainda não tinha entendido direito o que ela queria dizer com aquilo. Então, no final das contas, foi obrigado a perguntar.

Trillian lhe deu um sorriso contido e virou-se para a porta da cabana.

Random? — chamou ela. — Venha cá. Venha conhecer o seu pai.

CAPÍTULO 14

Enquanto o Guia tornava a se dobrar em um disco liso e negro, Ford tentou se dar conta de algumas coisas bem alucinadas. Ou, pelo menos, tentou se dar conta, pois as coisas eram alucinadas demais para dar conta de tudo de uma só vez. Sua cabeça estava martelando, seu tornozelo estava doendo e, embora não gostasse de parecer um maricas em relação à dor, costumava achar que a lógica multidimensional intensa era algo que ele compreendia melhor no banho. Precisava de tempo para pensar a respeito. Tempo, um drinque caprichado e algum óleo de banho perfumado e denso que fizesse bastante espuma.

Precisava dar o fora dali. Precisava tirar o Guia dali. Não acreditava que os dois pudessem escapar juntos.

Olhou à sua volta, nervoso.

Pense, pense, pense. Tinha de ser algo simples e óbvio. Se sua suspeita furtiva e asquerosa de que estava lidando com vogons furtivos e asquerosos estava correta, então quanto mais simples e óbvio, melhor.

De repente viu o que precisava.

Não tentaria lutar contra o sistema, apenas iria fazer uso dele. A coisa mais assustadora sobre os vogons era a sua determinação absolutamente irracional para fazer qualquer coisa irracional que estivessem determinados a fazer. Não adiantava nada apelar para o seu bom senso, porque não tinham um. No entanto, se você mantivesse a calma, algumas vezes podia explorar a sua teimosia obtusa e acachapante em serem acachapantes e obtusos. A questão não era apenas que a mão esquerda deles nem sempre sabia o que a mão direita estava fazendo; freqüentemente, a própria mão direita tinha apenas uma vaga noção do que ela mesma estava fazendo. Ousaria simplesmente mandar entregar aquilo para ele mesmo?

Ousaria simplesmente colocar o objeto no sistema e deixar que os vogons descobrissem como fazê-lo chegar até ele enquanto estivessem ocupados — como provavelmente estariam — destruindo o prédio para descobrir onde Ford o escondera?

Sim.

Febrilmente, empacotou o Guia. Embrulhou-o. Etiquetou-o. Parando um momento para pensar se estava realmente fazendo a coisa certa, encaminhou o pacote para a rampa de correspondência interna do prédio.

Colin — disse ele, virando—se para a pequena bola flutuante. — Vou te abandonar à própria sorte.

Estou tão feliz — respondeu Colin.

Aproveite ao máximo — disse Ford. — Porque preciso que você tome conta desse pacote e o leve para fora do prédio. Eles provavelmente vão te incinerar quando te encontrarem e eu não vou mais estar aqui para ajudar. A coisa vai ficar muito, muito feia para o seu lado e eu só lamento. Entendeu?

Estou gorgolejando de satisfação — disse Colin.

Vai! — ordenou Ford.

Colin obedientemente mergulhou na rampa de correspondência para cumprir sua missão. Agora Ford só tinha que se preocupar consigo mesmo, mas aquela continuava sendo uma preocupação substancial. Podia ouvir o barulho de passos pesados correndo do lado de fora da porta, que ele tivera a precaução de trancar e de obstruir com um armário bem pesado.

Estava aflito porque tudo tinha sido fácil demais. Tudo muito bem encaixado. Passara o dia aos trancos e barrancos e, no entanto, tudo terminara de forma estranhamente bem resolvida. A não ser pelo seu sapato. Estava chateado com aquilo. Era uma conta que teria de acertar mais tarde.

Com um ruído ensurdecedor, a porta explodiu para dentro. No turbilhão de fumaça e poeira, Ford pôde distinguir criaturas grandes, parecidas com lesmas, correndo na sua direção.

Então fora tudo fácil demais, não é? Tudo funcionando como se a sorte mais extraordinária estivesse ao seu lado? Bom, era isso o que ele ia descobrir. Imbuído de um espírito de pesquisa científica, arremessou-se novamente pela janela.

CAPÍTULO 15

No primeiro mês, conhecer um ao outro foi um pouco difícil. No segundo mês, tentar aceitar o que descobriram um sobre o outro no primeiro mês foi muito mais fácil. Mas no terceiro mês, quando a caixa chegou, a coisa ficou meio complicada. No começo, até mesmo tentar explicar o que era um mês foi problemático. Aquilo havia sido algo deliciosamente simples para Arthur em Lamuella. Os dias tinham um pouquinho mais de vinte e cinco horas, o que basicamente significava uma hora a mais na cama todos os dias e, claro, ter que reajustar seu relógio o tempo todo, coisa que Arthur até gostava de fazer.

Também se sentia em casa com o número de sóis e luas em Lamuella — um de cada — por oposição a certos planetas onde ele foi parar algumas vezes e que tinham uma quantidade absurda de ambos.

O planeta orbitava em torno do seu único sol a cada trezentos dias, o que era um bom número, porque significava que o ano não ficava se arrastando. A lua orbitava em volta de Lamuella umas nove vezes por ano, o que significava que um mês tinha um pouquinho mais do que trinta dias, o que era absolutamente perfeito, porque dava mais tempo às pessoas para fazerem as coisas. Não era meramente tranqüilizador como a Terra: era, na verdade, uma melhoria.

Random, por outro lado, Sentia-se como se estivesse presa em um pesadelo recorrente. Tinha ataques de choro e achava que a lua estava atrás dela. Aparecia no céu todas as noites e, quando ela finalmente sumia, lá vinha o sol para segui—la. Sem cessar.

Trillian avisara a Arthur que Random poderia ter uma certa dificuldade de se adaptar a um estilo de vida mais regular que o de até então, mas Arthur não estava preparado para vê-la uivando para a lua.

Não estava preparado para nada daquilo, obviamente.

Sua filha?.

Sua filha? Ele e Trillian nem mesmo tinham feito... ou fizeram? Tinha certeza absoluta de que se lembraria disso. E quanto a Zaphod?

Espécies diferentes, Arthur — respondera Trillian. — Quando eu resolvi ter um filho, eles fizeram vários testes genéticos em mim e só encontraram uma compatibilidade. Só depois eu me dei conta. Fui verificar e estava certa. Eles não costumam revelar essas coisas, mas eu insisti.

Quer dizer que você procurou um banco de DNA? — perguntou Arthur, com os olhos arregalados.

Procurei. Mas ela não foi tão randômica quanto o nome sugere porque, é

claro, você era o único doador homo sapiens. Mas parece que você era um viajante bem assíduo.

Arthur examinara embasbacado a menina infeliz que estava constrangedoramente prostrada na soleira da porta olhando para ele.

Mas quando... há quanto tempo...?

Você quer saber qual a idade dela, é isso?

É.

A errada.

O que você quer dizer?

Que não faço a menor idéia.

Com o assim?

Bem, seguindo minha linha do tempo, eu dei à luz há uns dez anos, mas ela é, obviamente, muito mais velha do que isso. Passo minha vida inteira indo e voltando no tempo, sabe. Por causa do trabalho. Costumava levá-la comigo quando dava, mas nem sempre era possível. Então eu comecei a colocá-la em creches nas zonas temporais, mas hoje em dia é muito difícil encontrar um acompanhamento confiável do tempo. Você deixa as crianças lá pela manhã e não faz a menor idéia de quantos anos vão ter à tarde. Você reclama o quanto quiser, mas não adianta nada. Eu a deixei em um desses lugares por algumas horas uma vez e, quando voltei, ela já tinha virado adolescente. Fiz tudo o que pude, Arthur, agora é com você. Preciso fazer a cobertura de uma guerra.

Os dez segundos após Trillian ter partido foram os mais longos da vida de Arthur Dent. O tempo, como sabemos, é relativo. Você pode viajar anos-luz pelas estrelas e, quando voltar, se o fizer na velocidade da luz, estará apenas alguns segundos mais velho, enquanto o seu irmão gêmeo terá envelhecido vinte, trinta, quarenta ou sei lá quantos anos, dependendo da distância da sua viagem.

Tudo isso pode ser um choque pessoal profundo, especialmente se você não sabia que tinha um irmão gêmeo. Os segundos durante os quais você esteve ausente não serão suficientes para prepará-lo para o choque de relacionamentos familiares novos e estranhamente estendidos ao voltar.

Um silêncio de dez segundos não foi suficiente para que Arthur pudesse reorganizar sua visão de si mesmo e de sua vida, de modo a incluir de repente uma filha absolutamente desconhecida de cuja mera existência ele sequer tinha tido a mais leve suspeita ao se levantar naquela manhã. Laços familiares profundos não podem ser construídos em dez segundos, não importa o quão distante ou o quão rápido você se distancie, e Arthur se sentia desesperado, aturdido e entorpecido ao contemplar a menina parada na sua porta olhando para o chão.

Imaginou que não fazia o menor sentido fingir que não estava desesperado. Foi até ela e a abraçou.

— Eu não amo você — disse ele. — Sinto muito. Nem conheço você ainda. Mas me dê alguns minutos.

"Vivemos em tempos estranhos.

Também vivemos em lugares estranhos: cada um em seu próprio universo. As pessoas com as quais populamos nossos universos são sombras de outros universos inteiros que se cruzam com o nosso. Ser capaz de vislumbrar essa complexidade desconcertante de recursividade infinita e dizer coisas como 'E aí, Ed! Belo bronzeado, hein? Como vai a Carol?' requer uma imensa habilidade seletiva que todas as entidades conscientes têm de desenvolver uma capacidade para se proteger da contemplação do caos que atravessam aos trancos e barrancos. Então não encha o saco do seu filho, tá?”(Trecho do livro Como ser pai em um universo fractalmente louco.)

— O que é isso?

Arthur estivera perto de desistir. Ou seja, ele não iria desistir. Não iria desistir de jeito nenhum. Nem agora nem depois. Mas, se fosse o tipo de pessoa que iria desistir de alguma coisa, provavelmente teria desistido naquele momento. Não satisfeita em ser mal—humorada, intratável, em estar o tempo todo querendo ir embora para brincar na era Paleozóica, em não entender por que a gravidade tinha que ficar ligada o tempo todo e em ficar gritando para que o sol não a seguisse, Random usara a faca de trinchar de Arthur para escavar pedras e as atirar nos pássaros pikka, que não paravam de olhar para ela.

Arthur nem sabia se Lamuella tinha tido uma era Paleozóica. Segundo o Velho Thrashbarg, o planeta fora descoberto completamente formado no umbigo de uma lacraia gigante às quatro e meia da tarde de uma vroon-feira, embora Arthur, sendo um experiente viajante galáctico, com boas notas em Física e Geografia, tivesse sérias dúvidas a respeito. Mas era inútil tentar discutir com o Velho Thrashbarg, e ele nem tinha motivos para isso.

Sentado, observando a faca lascada e retorcida nas mãos, suspirou. Iria amar Random mesmo que isso o matasse, ou a ela, ou a ambos. Ser pai não era nada fácil. Sabia que nunca disseram que seria, mas essa não era a questão, porque jamais quisera ser pai, para começar.

Estava fazendo o melhor que podia. Sempre que tinha um minuto de folga no preparo dos sanduíches, passava tempo com ela, conversando, caminhando, sentado em uma colina com ela ao seu lado, vendo o sol se pôr por trás do vale onde ficava a cidade, tentando descobrir algo sobre a vida dela, tentando explicar a sua. Era complicado. Tirando os genes praticamente idênticos, não tinham quase nada em comum. Ou melhor, tinham apenas uma Trillian em comum, de quem tinham impressões um tanto quanto diferentes.

— O que é isso?

Percebeu subitamente que a menina estava falando com ele e sequer percebera. Ou melhor, não reconhecera a voz dela.

Em vez do tom de voz que geralmente usava com ele, amargo e agressivo, estava apenas fazendo uma pergunta.

Ele olhou em volta, surpreso.

Estava sentada num banquinho, no canto da cabana, com a sua típica postura encurvada, os joelhos grudados, os pés virados para fora e o cabelo negro caído sobre o rosto, enquanto examinava algo que tinha nas mãos.

Arthur foi até ela, um pouco tenso.

As suas mudanças de humor eram muito imprevisíveis, mas, até agora, todas haviam sido variações entre diferentes tipos de mau humor. Surtos de recriminação rancorosos se transformavam, sem aviso prévio, em autopiedade miserável, ao que se seguiam demorados acessos de desespero taciturno, pontuados com ataques súbitos de violência sem sentido contra objetos inanimados e com pedidos para ir a clubes elétricos.

Não só não havia clubes elétricos em Lamuella como não havia nenhum outro tipo de clube. Nem mesmo tinham eletricidade. Havia uma ferraria, uma padaria, algumas carroças e um poço, mas isso era o ápice da tecnologia lamuellana, e a maioria dos acessos de raiva inextinguíveis de Random eram dirigidos contra o total e incompreensível atraso do lugar.

Ela conseguia captar a rede subeta no pequeno painel Flexotrônico que tinha implantado cirurgicamente no seu punho, mas isso não a animava nem um pouco, porque a rede estava cheia de notícias de coisas insanamente empolgantes que aconteciam em todos os lugares da Galáxia, menos ali. E a rede também lhe trazia notícias freqüentes de sua mãe, que a abandonara para cobrir uma guerra que, ao que parecia, não tinha sequer ocorrido ou, no mínimo, tinha dado muito errado pela falta de dados de inteligência. Fora isso, tinha acesso a programas de aventuras que mostravam diversas naves espaciais fantasticamente caras chocando—se umas contra as outras. Os lamuellanos ficavam totalmente hipnotizados com aquelas maravilhosas imagens mágicas que piscavam em seu punho. Só haviam visto uma nave espacial colidindo e a coisa fora tão assustadora, violenta, chocante e causara tanta devastação, incêndios e mortes que, estupidamente, jamais haviam se dado conta de que aquilo era entretenimento.

O Velho Thrashbarg ficou tão impressionado com aquilo que vira Random instantaneamente como uma emissária de Bob, mas pouco depois decidiu que ela, na verdade, havia sido mandada para testar a sua fé e talvez a sua paciência. Também ficara preocupado com a quantidade de colisões de naves espaciais que teria de começar a incluir em suas histórias sagradas se quisesse segurar a atenção dos aldeões, evitando que saíssem correndo toda hora para dar uma espiada no punho da menina. Naquele momento, ela não estava espiando o seu punho, que estava desligado. Arthur sentou—se ao lado dela em silêncio, para ver o que ela estava examinando. Era o seu relógio. Havia tirado para tomar banho na cachoeira local, Random o encontrara e estava tentando entender como funcionava.

É só um relógio — disse ele. — Serve para dizer a hora.

Eu sei disso — respondeu ela. — Mas você vive mexendo nele e mesmo assim ele não informa a hora exata. Não chega nem perto. Ela ligou o display do seu painel de punho, que automaticamente informou a hora local. Já nos primeiros minutos da chegada de Random o painel começara a medir a gravidade local e o momento orbital, e observou a posição do sol, rastreando seu percurso no céu. Usou o meio ambiente para reunir algumas pistas, depois estabeleceu as convenções de unidades locais e fez as devidas alterações. Ele costumava fazer essas coisas continuamente, o que era especialmente útil para pessoas que viajavam tanto no tempo quanto no espaço.

Random franziu a testa diante do relógio do pai, que não fazia nada daquilo. Arthur gostava muito dele. Era melhor do que jamais poderia ter comprado com o seu próprio dinheiro. Ganhara de presente no seu aniversário de vinte e dois anos, de um padrinho muito rico, com complexo de culpa por ter se esquecido de todos os seus aniversários até então, e de seu nome também. O relógio marcava a data, a hora, as fases da lua e trazia "Para Albert, no seu aniversário de 21 anos" gravada, com a data errada, na superfície desgastada e arranhada da parte de trás do relógio, com letras ainda visíveis.

O relógio passara por poucas e boas nos últimos anos, sendo que a maior parte não era contemplada pela garantia. Não imaginava, é claro, que a garantia mencionasse expressamente que só asseguravam a precisão do relógio no campo magnético e gravitacional da Terra contanto que os dias tivessem vinte e quatro horas e que o planeta não explodisse e por aí vai. Eram pressupostos tão básicos que até mesmo os advogados os ignoraram.

Por sorte era um relógio de corda, ou melhor, ele dava corda sozinho. Em nenhum lugar da Galáxia teria encontrado baterias com exatamente as mesmas especificações de tamanho e voltagem que eram padronizadas na Terra.

— E o que são todos esses números? — perguntou Random.

Arthur apanhou o relógio da mão dela.

Esses números aqui em volta marcam as horas. Essa janelinha aqui à

direita, onde está escrito QUI, que significa quinta—feira, e o número é quatorze, ou seja, é o décimo quarto dia do mês de MAIO, que é o que está escrito nessa janelinha aqui.

E essa outra janela aqui em cima, em formato de lua crescente, informa as fases da lua. Em outras palavras, diz o quão iluminada a lua está pelo sol à noite, o que depende das posições relativas do sol e da lua e, bem... da Terra.

Da Terra — repetiu Random.

É.

É de lá que você e a mamãe vieram, não é? —É.

Random apanhou o relógio de volta e o examinou novamente, visivelmente impressionada com alguma coisa. Então, levou o relógio até o ouvido e escutou, perplexa.

Que barulho é esse?

É o tique—taque. É o mecanismo que faz com que o relógio funcione. São engrenagens. O relógio tem vários tipos de engrenagens entrelaçadas e molas que trabalham para movimentar os ponteiros na velocidade exata para marcar as horas, os minutos, os dias e tudo mais.

Random continuou olhando fixamente para o relógio.

Você está intrigada com alguma coisa — disse Arthur. — O que é?

— Estou — respondeu Random, finalmente. — Por que ele é todo feito em hardware?

Arthur sugeriu que saíssem para dar uma volta. Sentia que tinham que conversar sobre algumas coisas e, pela primeira vez, Random não estava exatamente receptiva e disposta, mas pelo menos não estava resmungando. Do ponto de vista dela, aquilo também era bem esquisito. Não que ela quisesse ser difícil de propósito; ela simplesmente não sabia como ser outra coisa. Quem era aquele sujeito? Que vida era aquela que ela supostamente deveria levar? Que mundo era aquele do qual supostamente deveria fazer parte? E que universo era aquele que não parava de penetrar por seus olhos e ouvidos? Para que ele servia? O

que queria?

Nascera em uma nave espacial que estava indo de algum lugar para algum outro lugar e, quando chegasse nesse outro lugar, ele teria se transformado em mais algum lugar de onde se devia seguir para outro lugar, e assim por diante. A sensação de que deveria estar em outro lugar era a sua expectativa normal. Era normal para ela sentir que estava no lugar errado.

As constantes viagens do tempo haviam somente agravado esse problema e feito com que ela tivesse a sensação de que não só estava sempre no lugar errado como, quase sempre, chegava lá na hora errada também.

Não notava que sentia isso, porque se sentira assim a vida toda, assim como jamais lhe parecera estranho que, em quase todos os lugares aonde ia, tivesse que usar pesos ou roupas especiais de antigravidade, além de um aparato especial para respirar. Os únicos lugares em que conseguia se sentir em casa eram os mundos que ela mesma criava nas realidades virtuais dos clubes elétricos. Nunca lhe passara pela cabeça que o universo real fosse um lugar ao qual ela pudesse pertencer.

E isso incluía aquele lugarzinho chamado Lamuella, onde a sua mãe a abandonara. E também incluía aquele sujeitinho que lhe concedera o precioso e mágico dom da vida em troca de um assento de primeira classe. Ainda bem que ele até era legal e simpático, pois, do contrário, iam ter problemas. De verdade. Random carregava no bolso uma pedra especialmente afiada com a qual podia criar muitos problemas. Ver as coisas do ponto de vista de uma outra pessoa, sem o treinamento adequado, pode ser muito perigoso.

Sentaram-se em um local de que Arthur gostava especialmente, em uma colina que tinha vista para o vale. O sol estava se pondo sobre o vilarejo. A única coisa de que Arthur não gostava muito era poder ver, ao longe, o vale seguinte, onde um profundo sulco escuro e estraçalhado na floresta marcava o lugar onde a sua nave havia caído. Mas talvez ele continuasse a voltar ali exatamente por aquele motivo. Havia diversos pontos dos quais se podia contemplar a exuberante e ondulada zona rural de Lamuella, mas ele era atraído para aquele lugar, com o seu irritante ponto negro de medo e dor acomodado bem no canto da sua visão. Nunca mais voltara lá desde que fora resgatado dos escombros. Nem queria.

Não iria suportar.

Na verdade, estivera perto do local do acidente no dia seguinte à queda, quando ainda estava entorpecido e confuso com o choque. Estava com a perna quebrada, algumas costelas fraturadas, umas queimaduras feias e não estava conseguindo pensar de maneira coerente, mas insistira que os aldeões o levassem até lá, e eles, um pouco constrangidos, aceitaram. No entanto, não conseguiu alcançar o ponto exato em que o chão borbulhara e derretera e, finalmente, abandonou aquele pesadelo para sempre. Logo depois correu um boato de que a área inteira estava mal-assombrada e ninguém mais se atreveu a ir para aquelas bandas desde então. A região estava cheia de vales lindos, verdejantes e encantadores — não fazia sentido ir justo para um altamente preocupante. O melhor é deixar o passado para trás e permitir que o presente avance para o futuro.

Random aninhava o relógio nas mãos, virando-o lentamente para deixar a distante luz do sol do entardecer brilhar calorosa sobre os arranhões e as imperfeições do grosso vidro. Ficava fascinada ao observar o ponteiro dos segundos tiquetaqueando em volta das horas como uma pequena aranha. Cada vez que ele completava um círculo inteiro, o mais comprido dos ponteiros principais movia—se exatamente para a próxima das sessenta pequenas divisões em volta do mostrador. E, quando o ponteiro maior completava o seu próprio círculo, o ponteiro menor se movia para o próximo dos dígitos principais.

—Você está olhando isso há mais de uma hora — comentou Arthur, calmamente.

Eu sei — respondeu ela. — Uma hora é quando o ponteiro grande dá

uma volta completa, não é?

Isso mesmo.

Então estou olhando há uma hora e dezessete... minutos.

Ela sorriu com um deleite profundo e misterioso e se mexeu bem devagarzinho, apoiando—se levemente no braço de Arthur. Ele sentiu um pequeno suspiro escapar de seus lábios, um suspiro que estava entalado em seu peito há semanas. Queria colocar o seu braço em volta dos ombros da filha, mas sentia que ainda era muito cedo, que ela ia acabar se retraindo. Mas algo estava funcionando. Algo dentro dela começava a amolecer. O relógio tinha um significado para ela que nenhuma outra coisa conseguira ter até então. Arthur não tinha certeza se já havia compreendido o que era, mas estava profundamente satisfeito e aliviado por algo ter mexido com sua filha.

Me explica de novo — pediu Random.

Não tem nenhum mistério — disse Arthur. — O mecanismo do relógio é

algo que foi se desenvolvendo ao longo de centenas de anos...

Anos terrestres.

É. Ele foi ficando mais e mais refinado, cada vez mais intrincado. Era um trabalho que exigia muita habilidade e cuidado. Precisava ser feito bem pequeno, mas tinha que continuar funcionando de maneira precisa, mesmo que você o balançasse ou deixasse cair no chão.

Mas só em um planeta?

Foi onde ele foi feito, sabe? Ninguém esperava que ele fosse para outro lugar e que tivesse que lidar com outros sóis, luas e campos magnéticos. Quero dizer, continua funcionando perfeitamente bem só não significa muita coisa aqui, tão longe da Suíça.

De onde?

Da Suíça. Esse aí foi fabricado lá. Um pequeno país, cheio de colinas. Cansativamente arrumadinho. As pessoas que o fizeram não sabiam que existiam outros mundos.

Uma coisa e tanto para alguém desconhecer.

Be

m, te m razão.

Então de onde eles vieram?

Eles, quer dizer, nós... nós simplesmente crescemos lá. Evoluímos na Terra. A partir de, sei lá, uma espécie de lodo ou algo assim.

Como esse relógio.

Humm. Não creio que o relógio tenha surgido do lodo.

Você não entende!

Random subitamente ficou de pé, aos berros.

Você não entende! Você não me entende, você não entende nada! Eu te odeio por ser tão burro!

Ela começou a correr freneticamente colina abaixo, ainda segurando firme o relógio e gritando que o odiava.

Arthur levantou-se num salto, assustado e sem entender nada. Começou a correr atrás dela pelos densos tufos de grama. Aquilo era doloroso para ele. Quando quebrara a perna no acidente, não havia sido uma fratura simples e não cicatrizara perfeitamente. Estava tropeçando e fazendo cara de dor enquanto corria. De repente, ela se virou e olhou para ele, com o rosto nublado de ira. Sacudiu o relógio.

Você não entende que existe um lugar ao qual isso pertence? Que, em algum lugar, ele funciona? Que, em algum lugar, ele se encaixa?

Virou-se e continuou a correr. Estava em forma e era bem veloz. Arthur não conseguiria alcançá-la de jeito nenhum.

Não que já não imaginasse que ser pai fosse uma tarefa tão difícil, mas é que ele não imaginava ser pai, muito menos assim, inesperadamente e em um planeta alienígena.

Random virou-se para gritar para ele novamente. Por algum motivo, sempre que ela fazia isso, Arthur parava.

_ Quem você pensa que eu sou? — perguntou ela, irritada. — O seu assento de primeira classe? Quem você acha que mamãe pensou que eu era? Uma espécie de passaporte para uma vida que ela não teve?

Não sei o que você quer dizer com isso — disse Arthur, ofegante e com dor.

Você não sabe o que ninguém quer dizer com nada!

Com o assim?

Cala a boca! Cala a boca! Cala a boca!

Me diz! Por favor, me diz! O que ela quis dizer com "a vida que ela não teve"?

Ela queria ter ficado na Terra! Queria não ter ido embora com aquele fresco imbecil descerebrado, o Zaphod! Ela acha que poderia ter tido uma vida diferente!

Mas — ponderou Arthur — ela teria morrido! Ela teria morrido quando o mundo foi destruído!

Não deixa de ser uma vida diferente, não é?

Não deixa de...

Ela não precisaria ter me deixado nascer! Ela me odeia! —Você não está

falando isso a sério! Como é que alguém, humm, quero dizer... — Ela me teve para se ajustar. Essa era a minha função. Mas eu sou muito menos ajustada do que ela! Então ela me desligou e continuou com a sua vidinha idiota.

O que tem de idiota na vida dela? Ela é terrivelmente bem-sucedida, não é? Está em todo o tempo e espaço, em todas as emissoras da rede subeta...

Idiota! Idiota! Idiota! Idiota!

Random se virou e saiu correndo de novo. Arthur não conseguiria alcançá-la e, por fim, acabou tendo que se sentar um pouco para esperar a dor na perna passar. Não tinha a menor idéia do que ia fazer com toda aquela confusão que estava em sua cabeça. Uma hora mais tarde ele voltou capengando para a cidade. Estava anoitecendo. Os aldeões que passaram por ele o cumprimentaram, mas havia no ar uma sensação de nervosismo e de não saber ao certo o que estava acontecendo e o que fazer com aquela sensação. Haviam visto o Velho Thrashbarg puxando a barba e contemplando a lua, o que também não era bom sinal.

Arthur voltou para sua cabana.

Random estava sentada debruçada sobre a mesa, quietinha.

Sinto muito — disse ela. — Sinto muito mesmo.

Tudo bem — respondeu Arthur, o mais delicadamente que pôde. — É

bom levar um papo, sabe? Ainda temos tanto a aprender e compreender um sobre o outro, e a vida não é, bem, não é feita somente de chá e sanduíches...

Sinto muito mesmo — repetiu ela, soluçando.

Arthur foi até ela e colocou o seu braço no ombro da filha. Ela não resistiu nem o rechaçou. Foi então que ele viu o que ela sentia muito.

Na mancha de luz produzida por uma lanterna lamuellana jazia o relógio de Arthur. Random havia arrancado a parte de trás com a lâmina da faca de espalhar manteiga e todos os dentes de engrenagem e as molas e as alavancas estavam espalhados em uma pequena poça de bagunça onde ela estivera remexendo as peças.

Eu só queria ver como funcionava — disse Random —, como é que as peças se encaixavam. Sinto muito! Não consigo encaixar de volta. Sinto muito, tanto, mas tanto mesmo! Não sei o que fazer. Eu vou consertar! Juro! Eu vou consertar!

No dia seguinte, Thrashbarg apareceu lá e disse várias coisas sobre Bob. Tentou exercer uma influência apaziguadora, convidando Random a deixar sua mente pairar no mistério inefável da lacraia gigante, mas Random disse que não existia nenhuma lacraia gigante e Thrashbarg ficou em um silêncio gélido e disse que ela seria jogada nas profundezas do infinito. Random disse ótimo, foi lá que eu nasci e, no dia seguinte, o pacote chegou.

A vida estava pródiga em acontecimentos.

Na verdade, quando o pacote chegou, entregue por uma sonda robótica que desceu do céu fazendo barulhos robóticos, ele trouxe consigo uma sensação, que gradualmente começou a permear todo o vilarejo, de que já havia acontecido coisas demais.

Não era culpa da pobre sonda robótica. Tudo o que queria era a assinatura de Arthur Dent, ou a sua impressão digital, ou até mesmo algumas lasquinhas de células da pele na sua nuca, e iria embora. Ficou parada no ar, esperando, sem saber direito o porquê daquele ressentimento todo. Enquanto isso, Kirp apanhou outro peixe com uma cabeça de cada lado, mas, ao examiná-lo de perto, viu que na verdade eram dois peixes cortados pela metade e costurados mal e porcamente, de modo que não só Kirp não conseguiu renovar o interesse por peixes de duas cabeças como acabou colocando a autenticidade do primeiro em dúvida. Apenas os pássaros pikka pareciam estar achando tudo perfeitamente normal.

A sonda robótica pegou a assinatura e se mandou. Arthur carregou o pacote para sua cabana e olhou para ele.

Vamos abrir! — sugeriu Random, que estava muito mais animada naquela manhã, agora que tudo à sua volta ficara completamente esquisito, mas Arthur não quis.

Por que não?

Não está endereçado a mim.

Es

tá, sim.

Não está, não. Está endereçado para... bem, está endereçado para Ford Prefect, aos meus cuidados.

Ford Prefect? Não foi ele quem...

Foi — respondeu Arthur, secamente.

Já ouvi falar nele.

Imagino que sim.

Vamos abrir mesmo assim. O que mais vamos fazer com isso?

Não sei — disse Arthur, que realmente não sabia. Tinha levado as suas facas danificadas à ferraria de manhã cedo, e Strinder as examinara e dissera que ia ver o que podia fazer.

Tentaram a rotina de sempre de sacudir as facas no ar, calculando o ponto de equilíbrio e o ponto de flexibilidade, etc. e tal, mas a alegria tinha ido embora e Arthur ficara com a triste impressão de que seus dias como fazedor de sanduíches estavam contados.

Ele abaixou a cabeça.

A próxima aparição das Bestas Perfeitamente Normais era iminente, mas Arthur sentia que as tradicionais festividades de caça e organização de banquetes seriam meio desanimadas e sem convicção. Algo acontecera em Lamuella, e Arthur tinha uma sensação horrível de que fora culpa dele.

O que você acha que é? — perguntou Random, curiosa, girando o pacote em suas mãos.

Eu não sei — respondeu Arthur. — Algo ruim e preocupante, com certeza.

Como é que você sabe? — protestou Random.

Porque tudo relacionado a Ford Prefect é invariavelmente pior e mais preocupante do que qualquer outra coisa. Acredite em mim.

Você está chateado com alguma coisa, não está? — perguntou Random. Arthur suspirou.

Acho que só estou meio sobressaltado e inquieto — disse Arthur.

Sinto muito — disse Random, devolvendo o pacote. Percebeu que ele ia ficar realmente chateado se ela abrisse. Ia ter que dar um jeito de fazer isso quando ele não estivesse olhando.

CAPÍTULO 16

Arthur não sabia ao certo do que sentira falta primeiro. Quando percebeu que um não estava lá, sua mente instantaneamente pulou para o outro e ele soube imediatamente que ambos haviam desaparecido e que algo terrivelmente ruim e difícil de se lidar iria acontecer. Random não estava lá. Nem o pacote. Tinha deixado-o em cima de uma prateleira o dia inteiro, totalmente à vista. Fora um exercício de confiança.

Sabia que uma das coisas que deveria fazer como pai era demonstrar confiança na filha, construir um sentimento de respeito mútuo e fé no alicerce do relacionamento deles. Tinha uma sensação desagradável de que aquela era uma coisa idiota para se fazer, mas fez assim mesmo e, de fato, havia sido uma coisa idiota a se fazer. Vivendo e aprendendo. Ou só vivendo.

E entrando em pânico.

Arthur saiu correndo da cabana. Era final de tarde. A luz estava ficando fraca e ia cair uma tempestade. Não conseguia ver a menina em lugar algum, não havia sinal dela. Perguntou. Ninguém tinha visto Random. Perguntou novamente. Mais ninguém tinha visto Random. As pessoas estavam voltando para casa para passar a noite. Um ventinho açoitava os limites da cidade, levantando as coisas do chão e as jogando longe de maneira perigosamente casual.

Encontrou com o Velho Thrashbarg e perguntou pela menina. Ele o olhou friamente e apontou na direção que Arthur mais temia e que, portanto, deduzira instintivamente que devia ser a que ela tomara.

Então agora já sabia o pior.

Random tinha ido para o lugar que sabia que ele não iria segui—la. Olhou para o céu, que estava pesado, cor de chumbo e entrecortado por raios, e refletiu que seria um céu perfeito para os Quatro Cavalheiros do Apocalipse. Com um profundo sentimento de mau agouro, ele partiu na trilha que conduzia à floresta no vale seguinte. As primeiras gotas pesadas de chuva começaram a atingir o chão enquanto Arthur tentava se arrastar em uma corrida desajeitada. Random alcançou o topo da colina e olhou para baixo, para o vale seguinte. A subida fora mais longa e difícil do que imaginara. Estava um pouco preocupada porque fazer aquela caminhada à noite não era uma boa idéia, mas seu pai passara o dia inteiro perambulando do lado de fora da cabana tentando fingir para ela ou para si mesmo que não estava vigiando o pacote. Finalmente teve que ir até a ferraria conversar com Strinder sobre as facas — e Random havia aproveitado a oportunidade para sumir com o embrulho.

Era óbvio que não podia abri-lo ali, na cabana, nem mesmo na vila. Arthur poderia flagrá-la a qualquer momento. Teria que ir para um lugar onde ele não a seguisse.

Já podia parar onde estava. Caminhara bastante, na esperança de que ele não fosse atrás dela e, mesmo que fosse, jamais a encontrasse na vegetação densa da colina com a noite caindo e a chuva começando a pingar.

Durante toda a subida, o pacote balançara debaixo do seu braço. Era algo prazerosamente encorpado: uma caixa com uma tampa quadrada, com a largura do tamanho do seu antebraço e altura do tamanho da sua mão, embrulhada num papel pardo com um novo modelo de barbante auto-amarrante. Não chacoalhava quando ela sacudia, fazendo Random ter a impressão de que o peso estava animadoramente concentrado no meio.

Já tendo caminhado até aquele ponto, sentia uma certa satisfação em não parar ali e carregar o pacote até lá embaixo, onde parecia ser a área proibida — o lugar em que a nave do seu pai caíra. Não sabia ao certo o que a palavra "mal-assombrada" significava, mas ia ser divertido descobrir. Continuaria caminhando e só abriria o embrulho quando chegasse lá embaixo.

O problema é que estava realmente escurecendo. Ainda não usara a sua microlanterna elétrica porque não queria ser vista a distância. Estava na hora de usá-la, o que provavelmente não teria mais problema, já que estava do outro lado da colina que dividia os vales.

Acendeu a lanterna. Praticamente na mesma hora um raio ziguezagueou no céu sobre o vale para o qual estava se dirigindo, o que a deixou consideravelmente assustada. Quando a escuridão a envolvia e o estrondo do trovão sacudia a terra, ela se sentiu subitamente pequena e perdida, com apenas um frágil facho de luz, do tamanho de um lápis, bruxuleando em sua mão. Talvez fosse melhor parar de uma vez e abrir logo o pacote. Ou talvez devesse voltar para casa e tentar refazer o caminho no dia seguinte. Mas foi apenas uma hesitação momentânea. Sabia que não tinha como voltar para casa naquela noite e sentiu que não poderia voltar nunca mais. Desceu a encosta da colina. A chuva estava apertando. As pesadas gotas transformaram—se rapidamente num aguaceiro pesado, sibilando por entre as árvores. O chão estava começando a ficar escorregadio sob os seus pés. Pelo menos ela achava que era a chuva que estava produzindo um som sibilante entre as árvores. Sombras saltavam e olhavam para ela de soslaio enquanto a lanterna tremelicava na floresta, para a frente e para baixo. Continuou seguindo sem parar por uns dez ou quinze minutos, encharcada até

os ossos e tremendo de frio, e, gradualmente, foi percebendo que parecia haver uma outra luz em algum lugar mais adiante. A luminosidade era muito fraquinha e Random não sabia se estava imaginando coisas. Apagou a sua lanterna para ver. Realmente parecia haver uma luz fraca mais à frente. Não conseguiu distinguir o que era. Acendeu a lanterna novamente e continuou a descer a colina, na direção da luz, fosse lá o que fosse.

Havia algo de errado com aqueles bosques, contudo.

Não sabia dizer de imediato o que era, mas não pareciam bosques alegres e saudáveis à espera de uma boa primavera. As árvores se retorciam em ângulos repulsivos e tinham uma aparência pálida, maléfica. Mais de uma vez, Random teve a preocupante sensação de que estavam tentando agarrá-la enquanto passava, mas era somente uma ilusão causada pela luz da sua lanterna, que fazia com que as sombras piscassem e se movessem.

De repente, alguma coisa caiu de uma das árvores à sua frente. Saltou para trás, assustada, deixando cair a lanterna e o pacote. Agachou-se devagar, tirando a pedra especialmente afiada do bolso.

A coisa que caíra da árvore estava se mexendo. A lanterna estava no chão, virada para a coisa, e uma sombra imensa e grotesca se movia lentamente sob a luz na direção de Random. Podia ouvir um leve ruído de algo farfalhando e chiando acima do constante som sibilante da chuva. Tateou o chão, em busca da lanterna, encontrou-a e apontou-a diretamente para a criatura.

Naquele exato momento, outra criatura despencou de uma árvore a apenas alguns metros de Random. Ela apontou a lanterna, aflita, de uma criatura para a outra. Segurava a pedra com o braço levantado, prestes a arremessá-la. As criaturas eram bem pequenas, para falar a verdade. O ângulo da luz era que as fazia parecer tão grandes. E não eram apenas pequenas: eram peludas e fofinhas. Mais uma despencou e caiu bem no meio da luz. Então Random pôde observá-la claramente.

Foi uma queda perfeita e precisa. A criatura se virou e então, assim como as outras duas, pôs-se a avançar, lentamente e com determinação, para cima de Random. Ela permaneceu parada no mesmo lugar. Continuava com a pedra a postos, pronta para ser lançada, mas a cada segundo ficava mais consciente de que estava com a pedra a postos, pronta para ser lançada em esquilos. Ou, pelo menos, pareciam ser esquilos. Criaturas delicadas, afetuosas, fofinhas e parecidas com esquilos, que avançavam em sua direção de uma forma que a deixava tensa.

Virou a luz diretamente para o primeiro do trio. Ele estava soltando grunhidos agressivos e valentes, e carregava, em um de seus pequenos punhos, um farrapo de pano cor-de-rosa úmido. Random o ameaçou, mostrando a pedra, mas ela foi ignorada pelo esquilo que avançava com o pedaço de pano molhado.

Deu um passo para trás. Não fazia a menor idéia de como lidar com uma situação daquela. Se fossem feras malvadas, rosnando, babando e exibindo presas faiscantes, teria avançado sobre elas com vontade, mas esquilos se comportando daquela maneira era algo com o qual não sabia lidar.

Deu outro passo para trás. O segundo esquilo estava começando a executar uma manobra para cercá-la pelo lado direito. Carregando um copo. De noz de carvalho. O terceiro estava logo atrás, fazendo sua própria manobra. O que estava carregando?

Um recorte de papel encharcado, pensou Random.

Deu mais um passo para trás, bateu com o calcanhar na raiz de uma árvore e caiu de costas no chão.

Na mesma hora, o primeiro esquilo correu para cima dela, subindo pela sua barriga com ódio no olhar e o pedaço de pano molhado no punho. Random tentou levantar, mas só conseguiu se erguer um centímetro. O

movimento assustado do esquilo na sua barriga fez com que ela se assustasse também. O esquilo ficou paralisado de medo, agarrando a pele de Random através da camisa molhada com suas microgarras. Então, bem devagarzinho, centímetro por centímetro, ele conseguiu subir pelo corpo todo, parou e ofereceu o pano a ela. Random estava praticamente hipnotizada com a estranheza da criatura e os seus minúsculos olhinhos expressivos. Tornou a lhe oferecer o pano. Empurrava repetidamente, guinchando sem parar, até que, por fim, nervosa e hesitante, Random o apanhou. Ele continuou a olhá-la, concentradíssimo, os olhos pregados nela. Random não sabia o que fazer. Chuva e lama escorriam pelo seu rosto e havia um esquilo sentado em sua barriga. Decidiu limpar um pouco da sujeira em seus olhos com o pano. O esquilo soltou um guincho, triunfante, apanhou o pano de volta, saltou de cima dela, fugiu precipitadamente noite adentro, subiu em disparada numa árvore, mergulhou em um buraco no tronco, se acomodou e acendeu um cigarro. Enquanto isso, Random estava tentando espantar o esquilo que trazia o copo de noz de carvalho cheio de chuva e o outro, que trazia um pedaço de papel. Recuou, ainda sentada, arrastando a bunda no chão.

Não! — gritou ela. — Sumam daqui!

Eles recuaram, assustados, e depois avançaram novamente para ela com os seus presentinhos. Random sacudiu a pedra.

Sumam! — berrou ela.

Os esquilos começaram a correr de um lado para outro, consternados. Então um deles avançou sobre ela, depositou o copo de carvalho no seu colo, virou-se e fugiu para dentro da noite. O outro ficou parado, tremendo, por alguns segundos, e depois colocou o pedaço de papel cuidadosamente diante dela e desapareceu também. Estava sozinha novamente, mas trêmula e confusa. Levantou-se desajeitadamente, apanhou sua pedra e seu pacote, depois fez uma pausa e decidiu pegar o pedaço de papel também. Estava tão encharcado e dilapidado que era difícil distinguir o que era. Parecia um fragmento de uma revista de bordo.

Enquanto Random tentava entender exatamente o que tudo aquilo significava, um homem surgiu na clareira onde ela estava parada, levantou uma arma pavorosa e atirou em sua direção.

Arthur estava se arrastando desesperadamente uns três ou quatro quilômetros atrás dela, na parte alta da colina.

Alguns minutos após a sua partida, tivera de voltar para buscar uma lanterna. Não a elétrica, pois a única disponível era a que Random levara consigo. A que sobrara era uma espécie de lampião fraquinho: uma lata de metal perfurada da ferraria de Strinder, que continha um pouco de óleo de peixe inflamável, tinha um pavio de grama seca trançada e estava envolta em um filme translúcido feito com membranas secas dos intestinos de uma Besta Perfeitamente Normal.

Já havia se apagado.

Arthur sacudiu inutilmente o lampião de tudo quanto foi jeito por alguns segundos. Obviamente, não havia a menor possibilidade de recuperar a chama perdida no meio de um temporal, mas não custava nada tentar um esforço simbólico. Relutante, ele jogou fora o lampião.

O que fazer? Era um esforço em vão. Estava absolutamente encharcado, suas roupas estavam pesadas e encharcadas de chuva e, para completar, estava perdido na escuridão.

Por um breve segundo ficou perdido em uma luz cegante; agora estava perdido no escuro novamente.

O clarão do relâmpago pelo menos mostrou que ele estava bem próximo do cume da montanha. Quando alcançasse o cume, ele iria... bom, não estava certo do que iria fazer. Ia pensar quando chegasse lá.

Continuou mancando, para a frente e avante.

Alguns minutos depois chegou ao topo, ofegante. Havia uma luz bem fraca adiante. Não fazia idéia do que poderia ser e, para falar a verdade, não queria nem imaginar. Mas era a única direção que tinha para seguir, então continuou o seu caminho, cambaleante, perdido e assustado, na direção da luz.

O brilho de luz letal passou direto por Random e, uns dois segundos depois, o homem que disparara contra ela fez o mesmo. Sequer pareceu notá-la. Tinha atirado em alguém que estava atrás dela e, quando Random se virou para ver o que era, ele estava ajoelhado sobre o corpo, vasculhando os bolsos de sua vítima. A cena congelou e desapareceu. Foi substituída, um segundo depois, pela imagem de duas fileiras de dentes gigantes, emoldurados por imensos lábios vermelhos, perfeitamente brilhosos. Uma enorme escova de dentes azul apareceu do nada e começou a escovar, fazendo bastante espuma, os dentes que continuavam brilhando na cintilante cortina da chuva.

Random piscou os olhos duas vezes antes de compreender o que era aquilo. Era um comercial. O sujeito que atirara nela fazia parte da imagem holográfica de um dos filmes transmitidos na nave. Devia estar bem próxima do local da queda. Obviamente, alguns dos sistemas a bordo eram mais indestrutíveis do que os outros. O meio quilômetro seguinte da jornada foi especialmente problemático. Não só

tinha que lutar contra o frio, a chuva e a noite como ainda tinha que lidar com os vestígios fragmentados e semidestruídos do sistema de entretenimento de bordo. Naves espaciais, carros a jato e helipods colidiam e explodiam continuamente à sua volta, iluminando a noite, pessoas malvadas usando chapéus esquisitos contrabandeavam drogas perigosas através dela e a orquestra e o coro da Ópera de Hallapolis executavam o último movimento da Marcha da Guarda Estelar de AnjaQantine, do ato IV da Blamwellamum de Woont de Rizgar, em uma pequena clareira localizada em algum lugar à sua esquerda.

E então se viu parada na beira de uma cratera horrenda de bordas espumantes. Ainda havia um leve brilho quente vindo do que parecia ser um enorme pedaço de chiclete caramelizado no meio do poço: os destroços derretidos de uma grande nave espacial.

Ficou parada lá, observando por um bom tempo, e depois, finalmente, começou a caminhar pela borda da cratera. Não sabia mais para o que estava olhando, mas continuava andando mesmo assim, evitando o horror do abismo à sua esquerda. A chuva estava começando a diminuir um pouco, mas tudo continuava extremamente molhado e, já que ela não sabia o que havia no pacote, se era algo delicado ou frágil, imaginou que o melhor a fazer seria encontrar um lugar seco para abri-lo. Torcia para não ter causado nenhum estrago quando o deixou cair no chão. Girou a lanterna, examinando as poucas, carbonizadas e quebradas árvores que a cercavam. Não muito longe dali, avistou o afloramento de uma rocha que talvez lhe oferecesse um abrigo e começou a andar em sua direção. Ã sua volta, deparou—se com os detritos que haviam sido ejetados da nave durante a queda, antes da última bola de fogo.

Após ter se afastado duzentos ou trezentos metros da borda da cratera, Random viu os fragmentos esfarrapados de um material rosa macio, encharcado, coberto de lama, dependurado entre as árvores partidas. Imaginou, corretamente, que deviam ser os vestígios do casulo de fuga que salvara a vida do seu pai. Aproximou-se para examinar de perto e foi então que percebeu uma coisa no chão, imunda de lama. Apanhou e tirou a sujeira. Era uma espécie de aparelho eletrônico, do tamanho de um livro pequeno. Quando o tocou, surgiram amistosas letras garrafais que brilhavam fracamente em seu centro. Diziam: NÃO ENTRE EM PÂNICO. Sabia o que era aquilo. Era a cópia do Guia do Mochíleiro das Galáxias do seu pai. Aquilo tranqüilizou-a instantaneamente. Olhou para o céu trovejante e deixou que a chuva esparsa molhasse o seu rosto, entrando na sua boca. Balançou a cabeça e correu em direção às pedras. Escalando-as, encontrou quase que imediatamente o lugar perfeito. A entrada de uma caverna. Examinou seu interior com a lanterna. Parecia seco e seguro. Cuidadosamente, ela entrou. Era bastante espaçosa, mas não muito profunda. Exausta e aliviada, Random sentou—se em uma pedra confortável, apoiou o pacote no chão e começou a abri-lo imediatamente. CAPÍTULO 17

Durante um bom período de tempo houve muita especulação e controvérsia sobre onde tinha ido parar a chamada "matéria perdida" do universo. Por toda a Galáxia, os departamentos de ciências das universidades mais conceituadas estavam adquirindo equipamentos cada vez mais elaborados para sondar e vasculhar o núcleo de galáxias distantes e, depois, o próprio núcleo e as margens de todo o universo. Quando finalmente chegaram a uma conclusão, descobriram que, na verdade, o que estavam procurando era exatamente o material que servia para embalar os tais equipamentos. Havia uma quantidade enorme de matéria perdida naquele pacote. Pequenas bolinhas redondas e fofas que Random deixou para as futuras gerações de físicos tentarem rastrear e descobrir novamente, assim que os achados da geração atual tivessem sido perdidos e esquecidos.

De dentro das bolinhas de matéria perdida, Random tirou um disco negro e liso. Ela o colocou sobre uma pedra ao seu lado e vasculhou todo o resto da matéria perdida na caixa para verificar se havia mais alguma coisa lá dentro, um manual, alguns acessórios ou algo assim, mas não havia mais nada. Só o disco negro. Apontou sua lanterna para ele.

Assim que fez isso, começaram a surgir rachaduras ao longo da superfície aparentemente lisa. Random recuou, nervosa, mas então percebeu que a coisa, fosse lá o que fosse, estava apenas se desdobrando.

O processo era maravilhosamente bonito. Era extraordinariamente elaborado, mas simples e elegante ao mesmo tempo. Era como um origami automático, ou um botão de rosa florescendo em apenas alguns segundos.

Onde apenas alguns momentos antes havia um disco negro e liso havia agora um pássaro. Um pássaro pairando no ar.

Random continuou a recuar, cuidadosa e atenta.

Parecia-se com um pássaro pikka, só que era um pouco menor. Quer dizer, na verdade era maior ou, para ser mais exato, tinha exatamente o mesmo tamanho ou, no mínimo, não menos que o dobro. Também era muito mais azul e muito mais rosado do que os pássaros pikka, sendo ao mesmo tempo perfeitamente negro. Havia algo muito estranho naquele pássaro, mas Random não conseguiu perceber de imediato o que era.

Certamente, compartilhava com os pássaros pikka a impressão de que estava vendo algo que ninguém mais via.

De repente, ele desapareceu.

Depois, igualmente de repente, tudo ficou escuro. Random agachou-se, assustada, apalpando a pedra afiada em seu bolso novamente. Então a escuridão recuou, transformou—se em uma bola e, em seguida, voltou a ser aquele pássaro. Ficou suspenso no ar diante dela, batendo as suas asas lentamente, observando-a.

Com licença — disse ele, de repente. — Eu só preciso me calibrar. Você

consegue ouvir isso que estou dizendo?

Isso o quê? — perguntou Random.

Ótimo — disse o pássaro. — E consegue ouvir isso também? — Dessa vez, falou com uma voz mais esganiçada.

Claro que sim! — disse Random.

E quando eu digo isso? — perguntou ele, usando um tom de voz sepulcralmente grave.

Sim!

Houve uma pausa.

Não, é claro que não — disse o pássaro, alguns segundos depois. —

Maravilha, bem, a sua faixa de audição está obviamente entre 20 e 16 KHz. Então. Assim está confortável para você? — perguntou ele, em uma agradável voz de tenor. —

Não há harmônicos desconfortáveis arranhando no registro superior? Obviamente, não. Ótimo. Posso usar esses harmônicos como canais de dados. Agora, quantos de mim você consegue ver?

De repente, o ar ficou lotado com um emaranhado de pássaros. Random estava mais do que acostumada a passar seu tempo em realidades virtuais, mas aquilo era infinitamente mais estranho do que qualquer coisa que ela já tivesse visto antes. Era como se toda a geometria do espaço estivesse sendo redefinida em formas contínuas de pássaros.

Random engoliu em seco e sacudiu os braços ao redor de seu rosto, movendoos naquele espaço formado por pássaros.

Hummm, obviamente muitos — disse o pássaro. — E agora?

Ele se desdobrou em um túnel de pássaros, como se fosse um pássaro capturado entre espelhos paralelos, refletindo infinitamente a distância.

O que é você? — gritou Random.

Vamos chegar nisso, já, já — respondeu o pássaro. — Só me diga quantos, por favor?

Bem, você é mais ou menos... — Random esticou os braços, em um gesto vago.

Sei, ainda infinito em extensão, mas pelo menos estamos chegando à

matriz dimensional certa. Ótimo. Não, a resposta é uma laranja e dois limões.

Limões?

Se eu tenho três limões e três laranjas e perco duas laranjas e um limão, o que me resta?

Hein?

Está bem, então você acha que o tempo flui dessa maneira, não é?

Interessante. Ainda estou infinito? — perguntou ele, flutuando para cá e para lá no ar.

— Continuo infinito agora? Estou muito amarelo?

O pássaro estava passando por sucessivas transformações enlouquecedoras de forma e de tamanho.

Eu não consigo... — disse Random, desnorteada.

Não precisa responder, eu sei só de observar você agora. Então. Sou a sua mãe? Sou uma pedra? Pareço imenso, fofinho e sinuosamente entrelaçado? Não? E

agora? Estou recuando?

Finalmente o pássaro estava imóvel e quietinho.

Não — respondeu Random.

Bem, na verdade eu estava recuando no tempo, sim. Humm. Bem, acho que já resolvemos isso. Se você quiser saber, posso lhe contar que no seu universo é

possível se movimentar livremente nas três dimensões que vocês chamam de espaço. Vocês se movem em linha reta numa quarta dimensão, a que chamam de tempo, e ficam estáticos em uma quinta, que é a primeira fundamental da probabilidade. Depois disso, a coisa fica um pouco complicada e acontece virtualmente de tudo nas dimensões treze à

vinte e dois, nem queira saber. Tudo o que você precisa saber por enquanto é que o universo é muito mais complicado do que você pode imaginar, mesmo se você já

imagina que ele é complicado pra cacete, para começar. Posso evitar palavras como

"cacete", se isso te ofender.

Pode falar o que quiser.

Es tá bem.

Que diabos é você? — perguntou Random.

Eu sou o Guia. No seu universo, sou o seu Guia. Na verdade, habito o que é tecnicamente conhecido como a Mistureba Generalizada de Todas as Coisas, que significa... bom, é melhor te mostrar.

O pássaro virou-se em pleno ar e voou para fora da caverna. Empoleirou—se em uma pedra, logo abaixo de uma marquise natural, fora da chuva, que estava voltando a ficar forte.

Venha até aqui — disse ele — e veja isso.

Random não gostava de receber ordens de um pássaro, mas o seguiu mesmo assim até a entrada da caverna, apalpando a pedra que estava em seu bolso.

Chuva — disse o pássaro. — Está vendo? Apenas chuva.

Eu sei o que é chuva.

Torrentes de chuva assolavam a noite, a luz do luar filtrada pelos pingos.

Então o que é chuva?

Como assim, o que é chuva? Olha só, quem é você? O que você estava fazendo dentro da caixa? Por que tive que passar uma noite inteira correndo pela floresta, espantando esquilos retardados para, no final das contas, ter que aturar um pássaro me perguntando se eu sei o que é chuva? É água caindo pela droga do ar, pronto. Mais alguma coisa que você queira saber ou já podemos ir para casa?

Após uma longa pausa, o pássaro respondeu:

Você quer ir para casa?

Eu não tenho casa! — Random berrou as palavras tão alto que quase assustou a si mesma.

Olhe para a chuva... — disse o pássaro—Gwza.

Estou olhando para a chuva! O que mais tem para olhar?

O que você está vendo?

Como assim, seu pássaro idiota? Estou vendo um monte de chuva. É

apenas água caindo.

Que formas você vê na água?

Formas? Não tem forma nenhuma. É só uma... uma...

Só Uma Mistureba Generalizada — completou o pássaro—Guia. —É...

E agora, o que você está vendo?

Quase no limite da visibilidade, um feixe tênue e fino transbordou dos olhos do pássaro. No ar seco, protegido pela marquise, não se via nada. Mas nos pontos onde o raio atingia os pingos de chuva conforme caíam havia uma lâmina de luz tão brilhante e viva que parecia sólida.

Uau, que ótimo. Um show de lasers — comentou Random, debochada.

— Nunca vi um desses antes, é claro, só em uns cinco milhões de shows de rock.

Diga—me o que você está vendo!

Apenas uma lâmina plana! Pássaro burro.

Não há nada ali que não estivesse ali antes. Só estou usando a luz para chamar a sua atenção para determinados pingos, em determinados momentos. E, agora, o que está vendo?

A luz se apagou.

Nada.

Continuo fazendo a mesma coisa, só que com luz ultravioleta, que você não consegue ver.

E de que adianta me mostrar uma coisa que eu não consigo ver?

Para que você entenda que só porque consegue ver uma coisa não quer dizer que ela esteja lá. E que, se você não vê uma coisa, não significa que ela não esteja. Tudo se resume ao que seus sentidos fazem com que você note.

Estou de saco cheio disso — disse Random. Logo em seguida levou um susto.

Pairando sob a chuva estava uma imagem tridimensional gigante, bem nítida, do seu pai olhando com cara de bobo para alguma coisa.

Umas duas milhas atrás de Random, seu pai, abrindo caminho pelos bosques, parou de repente. Ficou perplexo ao ver uma imagem dele próprio parecendo perplexo com alguma coisa flutuando nitidamente sob a chuva, a uns três quilômetros de distância. A uns três quilômetros de distância, à direita da direção para a qual estava caminhando.

Estava quase completamente perdido, convencido de que ia morrer por conta do frio, da chuva e da exaustão, e começando a desejar que tudo terminasse logo. Para completar, um esquilo acabara de lhe trazer uma revista de golfe intacta, o que fez com que o seu cérebro começasse a uivar e gralhar.

Ao ver uma imagem enorme e nítida de si mesmo iluminada no céu, convenceu

—se, por outro lado, que provavelmente estava certo quanto a uivar e gralhar, mas errado quanto à direção.

Respirando bem fundo, ele se virou e seguiu em direção ao inexplicável show de luz.

Está bem, mas isso prova o quê? — perguntou Random. O fato de a imagem ser do seu pai assustou-a mais do que a aparição da imagem em si. Vira o primeiro holograma quando tinha dois meses de idade e fora colocada para brincar dentro dele. O mais recente tinha sido há meia hora, tocando a Marcha da Guarda Estrelar de AnjaQantine.

Apenas que não estava nem mais nem menos lá do que a lâmina estava

— respondeu o pássaro. — É apenas uma interação da água que cai do céu, movendo—

se em uma direção, com luzes cujas freqüências podem ser detectadas pelos seus sentidos, movendo—se em outra. Isso cria uma imagem aparentemente sólida na sua mente. Mas não passam de imagens na Mistureba Generalizada. Aqui vai mais uma para você.

Minha mãe! — exclamou Random.

Não — disse o pássaro.

Eu reconheço a minha mãe quando a vejo!

A imagem era a de uma mulher saindo de uma nave espacial e entrando em um prédio enorme e cinzento, parecido com um hangar. Ela estava sendo escoltada por um grupo de criaturas altas, magras e roxo-esverdeadas. Era definitivamente a mãe de Random. Bem, quase definitivamente. Trillian não estaria andando tão insegura em baixa gravidade, ou examinando um tedioso e velho ambiente de suporte de vida à sua volta com um olhar tão incrédulo, nem muito menos carregando uma estranha câmera velha.

Então quem é ela? — perguntou Random.

Ela faz parte de uma extensão da sua mãe no eixo da probabilidade —

respondeu o pássaro— Guia.

Não faço a menor idéia do que você está falando.

O espaço, o tempo e a probabilidade possuem eixos dentro dos quais é

possível mover—se.

Ainda continuo boiando. Se bem que... Não. Pode explicar.

Pensei que você quisesse ir para casa.

Explica!

Você gostaria de ver a sua casa?

Ver? Ela foi destruída!

Dentro do eixo da probabilidade permanece descontínua. Veja só!

Algo muito estranho e incrível surgiu flutuando na chuva. Era um globo azulesverdeado, enevoado e coberto de nuvens, girando com majestosa lentidão contra um pano de fundo negro e estrelado.

Agora você vê — disse o pássaro. — Agora não vê mais.

A pouco menos de três quilômetros, Arthur Dent estacou. Não podia acreditar que estava vendo, boiando no ar, coberta pela chuva, porém nítida e vividamente real, contra o céu da noite, a Terra. Ficou sem ar ao vê-la. Então, no momento em que ficou sem ar, ela desapareceu novamente. Depois tornou a aparecer. Depois, e foi isso que fez com que ele ficasse doido de pedra, ela se transformou em uma salsicha. Random estava igualmente impressionada com a visão daquela gigantesca salsicha azul e verde, aquosa e nevoenta, flutuando sobre ela. Transformou-se depois em uma fileira de salsichas, ou melhor, uma fileira de salsichas na qual faltavam várias salsichas. A brilhante fileira rodopiou e girou em um balé desconcertante no ar, depois diminuiu gradualmente o ritmo, enfraqueceu—se e desapareceu na escuridão cintilante da noite.

O que foi isso? — perguntou Random, com a voz fraca.

Uma breve visão do eixo de probabilidade de um objeto descontinuamente provável.

—Ah.

A maioria dos objetos sofre mudanças e alterações ao longo do seu eixo de probabilidade, mas o mundo do qual você veio faz algo um pouquinho diferente. Ele se encontra no que poderíamos chamar de uma rachadura na paisagem da probabilidade, o que significa que, em diversas coordenadas de probabilidade, ele simplesmente deixa de existir. Ele possui uma instabilidade inerente, típica de qualquer coisa que faça parte do que é comumente chamado de Setores Plurais. Entendeu?

Não.

Quer ir até lá e ver por conta própria?

Para a... Terra?

É.

E isso é possível?

O pássaro-Guia não respondeu de imediato. Abriu as asas e, com uma graça sem esforço, ergueu-se no ar e voou para a chuva, que estava enfraquecendo novamente. Planou em êxtase sobre o céu noturno; luzes piscaram à sua volta e dimensões trepidavam com sua passagem. Mergulhou, girou, subiu novamente, tornou a girar e, finalmente, aquietou—se bem próximo do rosto de Random, batendo as asas lenta e silenciosamente. Continuou a falar com ela.

Seu universo é vasto para você. Vasto em tempo, vasto em espaço. Isso se deve aos filtros através dos quais você o percebe. Mas eu fui construído sem filtros, o que significa que percebo a Mistureba Generalizada que contém todos os universos possíveis mas que não tem, por si mesma, tamanho algum. Para mim tudo é possível. Sou onisciente e onipotente, extremamente vaidoso e, o melhor, venho em uma embalagem prática e portátil. Você precisa descobrir o quanto essas afirmações são verdadeiras.

Random abriu um sorriso suave.

Seu monstrinho. Você está me enrolando!

Como eu disse, tudo é possível.

Random soltou uma gargalhada.

Está bem — disse ela. — Vamos tentar ir para a Terra. Vamos tentar ir para a Terra em algum ponto do seu, ah...

Eixo de probabilidade?

Isso. Onde ela não foi destruída. O.k. Então você é o Guia. Como conseguimos uma carona?

Engenharia reversa.

O quê?

Engenharia reversa. Para mim, o fluxo do tempo é irrelevante. Você

decide o que quer. Depois eu meramente garanto que já tenha acontecido.

Você está brincando.

Tudo é possível.

Random franziu a testa.

Você está brincando, não está?

Deixe-me explicar de outra maneira — disse o pássaro. — A engenharia reversa nos permite pular toda aquela burocracia de ter que esperar que uma das raríssimas naves espaciais que passam pelo seu setor galáctico cerca de uma vez por ano resolva se está ou não a fim de lhe dar uma carona. Você quer uma carona, uma nave aparece e lhe dá uma. O piloto pode até achar que tem alguns milhões de motivos para decidir parar e lhe dar uma carona. Mas o verdadeiro motivo é que eu determinei que ele parasse.

Isso é uma amostra da sua extrema vaidade, não é, pequeno pássaro?

O pássaro ficou em silêncio.

Está bem — disse Random. — Eu quero uma nave que me leve para a Terra.

Serve essa aqui?

Foi tão silencioso que Random só notou que havia uma nave espacial aterrissando quando já estava praticamente sobre a sua cabeça. Arthur também notou a nave. Ele estava a pouco menos de dois quilômetros de distância agora. Após a exibição das salsichas iluminadas ter chegado ao fim, ele percebera tênues lampejos de outras luzes descendo das nuvens e imaginou, no início, que fossem outra parte do espetáculo de son et lumière.

Levou alguns segundos para concluir que era uma nave espacial de verdade e mais alguns segundos para concluir que estava aterrissando exatamente no local onde ele imaginava que a sua filha estava. Foi então que, com chuva ou sem chuva, com perna machucada ou sem perna machucada, com breu ou sem breu, ele começou realmente a correr.

Caiu quase que imediatamente, escorregou e machucou o joelho em uma pedra. Levantou—se novamente com muito esforço e tentou continuar em frente. Teve a horrível sensação de que estava prestes a perder Random para sempre. Correu, mancando e xingando. Não sabia o que havia naquela caixa, mas o nome no pacote era o de Ford Prefect e era esse o nome que ele xingava enquanto corria. A nave era a mais sexy e bonita que Random já havia visto.

Era impressionante. Prateada, esguia, inefável.

Se não fosse impossível, diria que era uma RW6. Quando a nave pousou silenciosa ao seu lado, percebeu que era de fato uma RW6 e ficou sem ar de tão empolgada. Uma RW6 era uma daquelas naves só encontradas em revistas criadas para provocar agitação civil.

Random também estava extremamente nervosa. O timing e a forma como a nave tinha chegado eram perturbadores. Ou aquela era a coincidência mais bizarra do mundo ou algo muito peculiar e preocupante estava acontecendo. Esperou, um pouco tensa, a nave abrir a sua escotilha. O seu Guia — ela o tinha como seu agora — estava suspenso no ar, um pouco acima do seu ombro direito, quase sem bater as asas. A escotilha se abriu. Uma luz fraquinha vazou lá de dentro. Passados alguns segundos, uma figura apareceu. Ficou parada por alguns segundos, obviamente tentando acostumar seus olhos à escuridão. Então avistou Random parada um pouco mais adiante e pareceu um tanto surpresa. Começou a caminhar até a garota. Então, de repente, soltou um grito de espanto e começou a correr na direção dela.

Random não era a pessoa mais indicada para se avançar em cima em uma noite escura, ainda por cima estressada do jeito que ela estava. Inconscientemente, estava cutucando a pedra em seu bolso desde o momento em que viu a nave aterrissar. Ainda correndo, se arrastando, tropeçando e chocando-se contra árvores, Arthur acabou percebendo que já era tarde demais. A nave pousara há uns três minutos, mas já estava levantando vôo novamente, silenciosa, graciosa, passando acima do bosque e manobrando suavemente através da chuva fina em que se transformara o temporal — subindo, subindo, empinando a proa e, sem fazer nenhum esforço, sumindo em meio às nuvens.

Tinha partido. Random estava lá dentro. Arthur obviamente não tinha como ter certeza, mas ainda assim tinha certeza. Ela havia partido. Tivera uma chance de ser pai e não podia acreditar em quão mal se saíra. Tentou continuar a correr, mas os seus pés estavam se arrastando, o seu joelho doía furiosamente e ele sabia que era tarde demais. Tinha certeza de que não podia se sentir mais infeliz e desgraçado do que aquilo, mas estava enganado.

Foi capengando até a caverna onde Random se abrigara e abrira a caixa. O

chão ainda exibia as marcas da nave que aterrissara alguns minutos antes no local, mas não havia nenhum traço de Random. Perambulou desconsolado pela caverna, encontrou a caixa vazia e pilhas de bolinhas feitas com matéria perdida espalhadas pelo chão. Ficou um pouco irritado com aquilo. Tinha tentado ensinar a ela que devia arrumar as coisas após usá-las. Sentir-se um pouco irritado com ela por causa de algo assim ajudou-o a ficar menos desolado com a sua partida. Sabia que não tinha como encontrála. O seus pés colidiram com algo inesperado. Inclinou-se para ver o que era e ficou absolutamente surpreso. Era o seu velho Guia do Mochileiro das Galáxias. Como tinha ido parar na caverna? Arthur jamais voltara até o local da queda para recuperá-lo. Não queria ter de revisitar o local do acidente e não queria mais o Guia. Tinha a intenção de permanecer em Lamuella, fazendo sanduíches, para sempre. Como é que ele fora parar lá? Estava ligado. Na capa, as palavras NÃO ENTRE EM PÂNICO piscavam para ele.

Saiu da caverna novamente, sob a luz fraca e encharcada da lua. Sentou-se em uma pedra para dar uma olhada no velho Guia e foi então que descobriu que não era uma pedra, mas uma pessoa.

CAPÍTULO 18

Arthur deu um pulo, assustado. Era difícil dizer o que o assustava mais: a possibilidade de ter machucado a pessoa na qual inadvertidamente se sentara ou a possibilidade de que a pessoa na qual inadvertidamente se sentara fosse machucá-lo. A princípio, após uma breve inspeção, concluiu que não havia nenhuma causa imediata para alarme no que dizia respeito à segunda hipótese. A pessoa na qual sentara, fosse quem fosse, estava inconsciente. Aquilo provavelmente ajudava a explicar o que ela estava fazendo deitada ali. Parecia estar respirando bem. Arthur sentiu o pulso do sujeito. Também estava bem.

Estava deitado de lado, um pouco encolhido. A última vez que Arthur prestara primeiros socorros estava tão longe no tempo e no espaço que ele realmente não conseguia lembrar o que devia fazer numa situação daquelas. A primeira coisa que devia fazer, recordou ele, era ter um kit de primeiros socorros à mão. Droga. Será que deveria deitar o sujeito de barriga para cima ou não? E se ele tivesse alguma fratura? E se tivesse engolido a língua? E se decidisse processá-lo? Quem, antes de tudo, era aquela pessoa?

Foi então que o sujeito inconsciente gemeu alto e se virou de barriga para cima. Arthur não sabia se ele deveria...

Olhou para o sujeito.

Olhou novamente.

Olhou para o sujeito mais uma vez, só para ter certeza absoluta. Apesar de estar certo de que não era possível se sentir pior do que já estava, sentiu um enorme desânimo.

O sujeito gemeu de novo e abriu os olhos lentamente. Demorou um pouco para enxergar alguma coisa direito, depois piscou e enrijeceu o corpo.

Você! — exclamou Ford Prefect.

Você! — exclamou Arthur Dent.

Ford voltou a gemer.

O que você precisa que eu explique desta vez? — perguntou ele, fechando os olhos, em desespero.

Cinco minutos depois, Ford estava sentado, esfregando o lado da cabeça onde havia um galo bem grande.

Quem diabos era aquela mulher? — perguntou ele. — Por que estamos cercados por esquilos e o que eles querem?

Esses esquilos encheram a minha paciência a noite toda — respondeu Arthur. — Ficam tentando me dar revistas e coisas assim.

Ford franziu a testa.

— Sério?

E pedaços de pano. Ford raciocinou.

Ahn — disse ele. — Estamos perto do local onde sua nave caiu?

Estamos — respondeu Arthur, um pouco ríspido.

Deve ser isso, então. Acontece. Os robôs de cabine da nave são destruídos. As mentes cibernéticas que os controlam sobrevivem e começam a infectar a vida selvagem local. Podem transformar um ecossistema inteiro em uma indústria de prestadores de serviço inútil, oferecendo toalhinhas quentes e drinques para todo mundo que passar por perto. Devia existir uma lei contra isso. Provavelmente existe. Provavelmente existe também uma lei contra ter uma lei contra isso, assim fica tudo resolvido. Certo. O que você disse?

Eu disse: e a mulher é minha filha.

Ford parou de esfregar a cabeça.

Repete.

Eu disse — repetiu Arthur, irritado — que a mulher é minha filha.

Eu não sabia que você tinha uma filha.

Bom, provavelmente há muitas coisas a meu respeito que você não sabe

— disse Arthur. — Para falar a verdade, provavelmente também há muitas coisas a meu respeito que eu não sei.

Ora, ora, ora. Quando foi que isso aconteceu?

Não sei direito.

Isso sim é bem a sua cara — disse Ford. — Existe uma mãe na parada?

Trillian.

Trillian? Eu não achei que...

Não. Olha, é um pouco constrangedor...

Eu me lembro que uma vez ela me disse por alto que tinha uma filha. Falo com ela de tempos em tempos. Mas nunca a vi com a menina. Arthur não disse nada.

Ford recomeçou a esfregar a mão na cabeça, um pouco confuso.

Tem certeza de que aquela era sua filha? — perguntou ele.

Me conte o que aconteceu.

Ih... é uma longa história. Eu estava vindo buscar o pacote que mandei para mim, aos seus cuidados...

Bom, e o que era aquilo, afinal?

Eu acho que pode ser algo inimaginavelmente perigoso.

E você mandou pra mim? — reclamou Arthur.

Foi o lugar mais seguro em que consegui pensar. Achei que pudesse confiar na sua capacidade de ser absolutamente chato e não abrir o pacote. Enfim, como cheguei à noite, não estava conseguindo encontrar o tal vilarejo. Estava me virando com informações bem básicas. Não encontrei nenhuma sinalização. Acho que vocês não têm sinalização nenhuma por aqui.

É por isso que eu gosto daqui.

Aí, captei um sinal bem fraco do seu velho Guia, então segui nessa direção, pensando que ia me levar até você. Percebi que tinha aterrissado em uma espécie de bosque. Não conseguia entender direito o que estava acontecendo. Saí da nave e me deparei com essa mulher, parada ali. Fui até ela para dizer oi e de repente vi que ela estava com o negócio na mão!

Que negócio?

A coisa que eu mandei para você! O novo Guia. O tal pássaro! você tinha que ter guardado direito, seu idiota, mas a mulher estava com ele sobre o ombro. Eu parti para cima e ela me deu uma pedrada na cabeça.

Entendi — disse Arthur. — E o que você fez?

Ué, caí no chão, é claro. Me machuquei feio. Ela e o pássaro começaram a se dirigir para a minha nave. E quando eu digo minha nave estou me referindo a uma RW6.

Uma o quê?

Uma RW6, pelo amor de Zarquon. O meu cartão de crédito e o computador central do Guia estão se relacionando muito bem ultimamente. Você não ia acreditar nessa nave, Arthur, ela é...

Então a RW6 é uma nave?

É! É uma... ah, deixa pra lá. Olha, pega leve, Arthur! Ou, pelo menos, pega um catálogo. Nesse momento, eu fiquei bastante preocupado. E, acho eu, com uma semiconcussão. Estava de joelhos, sangrando em profusão e, então, fiz a única coisa que me veio à cabeça, que era implorar. Eu disse, por favor, não leve a minha nave. E não me abandone encalhado no meio de uma floresta primitiva, sem ajuda médica e com um ferimento na cabeça. Eu poderia estar correndo um sério perigo e ela também.

E o que ela disse?

Ela me deu outra pedrada na cabeça.

Acho que posso confirmar que essa era mesmo a minha filha.

Um amor de menina.

Você precisa conhecê-la melhor — disse Arthur.

Por que, ela fica mais mansa?

Não — respondeu Arthur —, mas você aprende a hora de desviar. Ford suspendeu a cabeça e tentou enxergar direito.

O céu estava começando a clarear a oeste, que era onde nascia o sol. Arthur não estava particularmente interessado em vê-lo. A última coisa que queria após uma noite infernal como aquela era um glorioso dia nascendo e se intrometendo na história.

O que você está fazendo em um lugar desses, Arthur? — perguntou Ford.

Bom — disse Arthur —, basicamente, estou fazendo sanduíches.

Hein?

Eu sou, ou provavelmente era, o Fazedor de Sanduíches de uma pequena tribo. Era um pouco constrangedor, para falar a verdade. Quando eu cheguei, isto é, no dia em que eles me resgataram dos escombros da tal nave espacial de última geração que caiu neste planeta, eles foram muito legais comigo e eu achei que devia fazer alguma coisa para ajudar. Você sabe, recebi uma boa educação, venho de uma cultura de tecnologia avançada, poderia ensinar algumas coisas para eles. Mas, é claro, não consegui. Na hora do vamos ver, descobri que não faço a menor idéia de como as coisas funcionam. E não estou falando de videocassetes, pois ninguém sabe mexer neles mesmo. Estou falando de coisas como uma caneta, um poço artesiano, algo assim. Não tenho a menor idéia. Não podia ajudar em nada. Um dia, estava muito desanimado e resolvi fazer um sanduíche para mim. E isso os deixou incrivelmente animados. Nunca haviam visto um antes. Era uma idéia que jamais lhes tinha ocorrido e eu, por acaso, gosto de fazer sanduíches, então a coisa meio que começou assim.

E você gostava disso?

Ah, sim, acho que eu gostava, sim. Possuir um bom conjunto de facas, essas coisas.

Você não achava, por exemplo, devastadoramente, explosivamente, incrivelmente, dolorosamente chato?

Bem, ah, não. Nem tanto. Não era doloroso.

Que estranho. Eu acharia.

Bom, acho que temos pontos de vista diferentes.

Po is é.

Como os pássaros pikka.

Ford não fazia a menor idéia do que ele estava falando e não estava com saco para perguntar. Em vez disso, disse:

Então, como é que a gente faz para dar o fora desse lugar?

Bom, acho que a maneira mais simples seria seguir o vale até as planícies, o que provavelmente levaria uma hora, e depois continuar seguindo. Acho que não consigo encarar a idéia de ter que voltar por onde eu vim.

Continuar seguindo para onde?

— Ué, de volta para o vilarejo, não? — Arthur suspirou, um pouco melancólico.

Não quero ir para nenhuma droga de vilarejo! — interrompeu

Ford. — Temos que dar o fora daqui!

Onde? Como?

Sei lá, me diz você. Você mora aqui! Deve haver alguma maneira de sair desse planeta idiota.

Eu não sei. O que você costuma fazer? Fica sentado esperando uma nave espacial passar, não é?

Ah, sim... E quantas naves espaciais visitaram esse antro de pulgas esquecido por Zarquon, recentemente?

É... há alguns anos, a minha nave caiu aqui por engano. Depois teve a da Trillian, depois a entrega do pacote, agora a sua e...

Sim, mas além dos suspeitos de sempre?

Bom, ah, acho que basicamente nenhuma, até onde sei. É bem

pacato por aqui.

Como se para desmenti-lo de propósito, um trovão soou bem alto ao longe. Ford pulou, sobressaltado, e começou a caminhar para a frente e para trás na luz fraca e dolorosa daquele início de madrugada, que rasgava o céu como se alguém tivesse arrastado um pedaço de fígado sobre ele.

Você não entende como isso é importante — disse ele.

O quê? O fato de a minha filha estar sozinha, solta pela Galáxia? Você

acha que eu não...

Podemos ter pena da Galáxia depois? — zombou Ford. — Isso é muito, muito sério mesmo. Assumiram o controle do Guia. Ele foi comprado. Arthur reagiu.

Ah, muito sério — gritou ele. — Por favor, me inteire o mais rápido possível sobre questões de política corporativa das editoras! Você nem faz idéia de como tenho pensado nisso!

Você não entende! Existe um Guia completamente novo!

Ah! — gritou Arthur. — Ah! Ah! Ah! É emoção demais para mim! Mal posso esperar que ele seja lançado para descobrir quais os portos espaciais mais empolgantes para se ficar entediado zanzando por um aglomerado globular do qual nunca ouvi falar. Por favor, vamos correndo à loja mais próxima para comprá-lo imediatamente?

Ford apertou os olhos.

É isso que vocês chamam de sarcasmo, não é?

Sabe que eu acho que é, sim? — berrou Arthur. — Eu realmente acho que isso pode ser o negócio maluco chamado sarcasmo, infiltrando-se pelas beiradas de minha fala educada! Ford, eu tive uma noite infernal! Será que dá para levar isso em consideração enquanto você fica aí bolando com quais basbaquices triviais estapafúrdias e inconseqüentes irá me bombardear em seguida?

Tenta descansar — disse Ford. — Eu preciso pensar.

Por que você precisa pensar? Não podemos ficar aqui sentados, fazendo budumbudumbudumbudum com a boca um pouquinho? Não dá para babarmos um pouquinho e nos balançarmos para a esquerda um pouquinho? Eu não agüento mais, Ford! Não agüento mais ter que pensar e resolver coisas. Você pode até pensar que eu estou aqui tendo um chilique...

Não tinha pensado nessa hipótese.

...mas é sério! De que adianta? Nós achamos que toda vez que fazemos alguma coisa sabemos quais serão as conseqüências, isto é, sabemos mais ou menos o que esperamos que sejam. E isso, algumas vezes, não é apenas incorreto. É

desvairadamente, loucamente, estupidamente, cegamente errado!

É exatamente disso que eu estou falando.

Obrigado — disse Arthur, sentando—se novamente. — O quê?

Engenharia reversa temporal.

Arthur colocou as mãos na cabeça e balançou—a lentamente de um lado para o outro.

Existe alguma maneira humana — gemeu ele — de te impedir de me explicar o que é essa sei-lá-o-quê reversa temporal de merda?

Não — respondeu Ford —, porque a sua filha está presa bem no meio dela e isso é sério, mortalmente sério.

Trovões soaram em meio à pausa.

Está bem — disse Arthur. — Pode explicar.

Eu me joguei da janela de um arranha—céu. Aquilo alegrou Arthur.

Ah! — exclamou ele. — Por que você não faz isso de novo?

E u fiz.

Humm — fez Arthur, desapontado. — Obviamente, não deu em nada.

Da primeira vez, consegui me salvar graças a mais impressionante — e eu digo isso com toda a modéstia — e fantástica combinação de improviso, agilidade, contorcionismo e auto-sacrifício.

E qual foi o auto-sacrifício?

Eu me desfiz da metade de um par de sapatos muito queridos e, creio eu, insubstituíveis.

E por que isso foi um auto-sacrifício?

Por que eram meus! — respondeu Ford, amuado.

Acho que temos valores muito diferentes.

Sim, os meus são melhores.

Melhores de acordo com a sua... ah, deixa pra lá. Então, tendo conseguido se salvar de maneira muito engenhosa da primeira vez, você usou de toda a sua sensatez e pulou novamente. Por favor não me diga o porquê. Só me conte o que aconteceu, se necessário.

Caí direto na cabine aberta de um carro a jato que estava passando, cujo piloto havia acabado de apertar acidentalmente o botão de ejetar, quando, na verdade, queria apenas trocar de música no rádio. Ora, nem mesmo eu conseguiria pensar que isso foi uma grande sacação minha.

Ah, não sei, não — comentou Arthur, exausto. — Suponho que você

tenha se infiltrado no jato do sujeito de madrugada e programado a música menos favorita dele para tocar ou algo assim.

Não, claro que não — disse Ford.

Só estou verificando.

Mas, por mais estranho que pareça, alguém fez isso. E aí é que está o xis da questão. É possível olhar para trás e rastrear toda a cadeia e as ramificações de acontecimentos e coincidências cruciais. No final das contas, o responsável por tudo isso era o novo Guia. O tal pássaro.

Que pássaro?

Você não chegou a ver?

Não.

Ah, é uma criaturinha mortal. É bonito, fala grosso, provoca o colapso seletivo de formas de onda quando quer.

O que isso significa?

Engenharia reversa temporal.

Ahn — fez Arthur. — Ah, tá.

A questão é: para quem ele está realmente trabalhando?

Acho que tenho um sanduíche aqui — disse Arthur, catando no

bolso. — Quer um pedaço?

Quero.

Deve estar um pouco amassado e encharcado, lamento.

Tudo bem. Mastigaram um pouco.

Até que é bem gostoso — disse Ford. — Que carne é essa?

É de Besta Perfeitamente Normal.

Nunca vi uma. Então, a questão é — continuou Ford — para quem o pássaro está realmente trabalhando? Qual é a verdadeira trama por trás dessa história?

Humm — mastigou Arthur.

Quando encontrei o pássaro — prosseguiu Ford —, o que se deu graças a uma série de coincidências por si só interessantes, ele exibiu a mais fantástica pirotecnia multidimensional que eu já vi. Depois disse que colocaria os seus serviços à minha disposição no meu universo. Eu respondi obrigado, mas não, obrigado. Ele disse que ia fazer isso de qualquer jeito, querendo eu ou não. Eu disse tenta só para você ver, ele disse que ia e que, na verdade, já havia feito. Eu disse é o que veremos e ele disse que veríamos. Foi então que eu decidi empacotar o bicho e enviá-lo para cá. E resolvi mandar para você por uma questão de segurança.

Ah, é? Segurança de quem?

Ah, deixa pra lá. Aí, como uma coisa leva a outra, achei sensato me jogar da janela novamente, por não ter nenhuma outra alternativa naquele momento. Para minha sorte, o carro a jato estava lá; do contrário, eu teria que me contentar com mais pensamentos engenhosamente rápidos, agilidade, talvez o outro pé do sapato e, se nada disso desse certo, com o chão. Mas isso me mostrou que, gostando eu ou não, o Guia estava trabalhando para mim, o que era profundamente preocupante.

Por quê?

Porque, se você está com o Guia, acha que é ele quem trabalha para você. Desde então as coisas fluíram magnificamente para mim, até agora há pouco, quando me deparei com a gatinha da pedrada e, bangue, já era. Estou fora do circuito.

Você está falando da minha filha?

Estou tentando ser o mais educado possível. Ela é o próximo elo na cadeia e vai achar que tudo está indo às mil maravilhas. Vai poder bater na cabeça de quem quiser com pedaços da paisagem e tudo vai fluir lindamente, até que ela faça o que deve fazer e, então, vai ficar de fora também. É engenharia reversa temporal e, obviamente, ninguém compreendeu o que estava desencadeando!

Como eu, por exemplo.

O quê? Ah, acorda, Arthur. Olha, deixa eu tentar novamente. O novo Guia foi desenvolvido nos laboratórios de pesquisa. Ele utiliza uma nova tecnologia chamada Percepção Sem Filtros. Você sabe o que isso quer dizer?

Olha, eu passei os últimos anos fazendo sanduíches, pelo amor de Bob!

Que

m é Bob?

Deixa pra lá. Continua.

Percepção Sem Filtros significa que ele percebe tudo. Entendeu? Eu não percebo tudo. Você não percebe tudo. Temos filtros. O novo Guia não possui nenhum filtro sensorial. Ele percebe tudo. Nem era uma idéia tecnológica muito complicada. Era só questão de deixar algo de fora. Entendeu?

Porque não digo simplesmente que entendi você continua falando do mesmo jeito.

Certo. Agora, como o pássaro pode perceber qualquer universo possível, ele está presente em qualquer universo possível. Entendeu?

En...ten...diiiiii.

Então o que acontece é o seguinte: os palhaços dos departamentos de marketing e contabilidade dizem "Ah, que idéia genial, isso quer dizer que só

precisamos fazer um desses e depois vamos vendê-lo um número infinito de vezes!". Não faz essa cara, Arthur, é assim que os contadores pensam!

Mas é bem inteligente, não é?

Não! É incrivelmente burro. Veja bem: a máquina é apenas um pequeno Guia. Tem uma cibertecnologia bem interessante lá dentro, mas, por conta da Percepção Sem Filtros, qualquer mínimo movimento que o Guia faça tem o poder de um vírus. Ele pode se propagar pelo espaço, pelo tempo e em um milhão de outras dimensões. Qualquer coisa pode se focar em qualquer lugar em qualquer um dos universos nos quais transitamos. O seu poder é recursivo. Imagine um programa de computador. Em algum lugar existe uma instrução principal e todo o resto não passa de funções recursivas, ou parênteses se propagando em uma enorme onda sem fim através de um espaço infinito de endereçamento. E o que acontece quando os parênteses colapsam?

Onde fica o derradeiro end if? Isso por acaso faz algum sentido? Arthur?

Foi mal, dei uma cochilada rápida. Era alguma coisa sobre o universo, não era?

Alguma coisa sobre o universo, é — disse Ford, exausto. Sentou-se novamente.

Tudo bem — disse ele. — Pense nisso. Você sabe quem eu acho que vi nos escritórios do Guia? Vogons. Ahá! Finalmente uma palavra que você sabe o que é. Arthur levantou-se num salto.

Esse barulho — disse ele.

Que barulho?

O trovão.

O que é que tem?

Não é um trovão. É a migração de primavera das Bestas Perfeitamente Normais. Já começou.

O que são esses animais de que você é fã?

Eu não sou fã. Eu apenas coloco pedaços deles nos meus sanduíches.

E por que são chamados de Bestas Perfeitamente Normais?

Arthur contou para ele.

Não era todos os dias que Arthur tinha o prazer de ver os olhos de Ford se arregalarem de surpresa.

CAPÍTULO 19

Era uma visão à qual Arthur nunca se acostumava nem tampouco se cansava. Ele e Ford haviam trilhado o caminho rapidamente pela margem de um pequeno rio que desembocava no leito do vale e, quando finalmente alcançaram a beira das planícies, escalaram os galhos de uma árvore frondosa para conseguirem um panorama melhor de uma das visões mais estranhas e fantásticas que a Galáxia tinha a oferecer. A imensa horda ensurdecedora de milhares e milhares de Bestas Perfeitamente Normais deslizava veloz, em uma formação imponente, pela Planície de Anhondo. Na pálida luz do amanhecer, conforme os imensos animais investiam e o leve vapor do seu suor se mesclava com a névoa enlameada oriunda dos seus cascos trepidantes, pareciam levemente mais irreais e fantasmagóricos. O mais impressionante, contudo, era de onde vinham e para onde iam, que parecia ser, simplesmente, de lugar nenhum para lugar algum.

Formavam uma falange sólida, de uns cem metros de largura e meio quilômetro de extensão. A falange não se movia, exibindo apenas uma leve oscilação para o lado e para trás durante os oito ou nove dias em que costumava aparecer. Mas, embora permanecesse mais ou menos fixa, as grandes bestas que a formavam galopavam com uma constância regular, a mais de quarenta quilômetros por hora, aparecendo do nada em um dos cantos da planície e desaparecendo, de modo igualmente abrupto, no outro.

Ninguém sabia de onde surgiam nem para onde iam. Mas eram tão importantes para a vida dos lamuellanos que ninguém se dava ao trabalho de perguntar. O Velho Thrashbarg disse, tempos atrás, que, algumas vezes, se você obtém uma resposta é

possível que a pergunta seja suprimida. Alguns moradores comentaram entre si que havia sido a única coisa realmente sábia que tinham ouvido de Thrashbarg e, após uma breve discussão sobre o assunto, deixaram a coisa de lado.

O barulho dos cascos era tão alto que era difícil conseguir escutar qualquer outra coisa.

O que você disse? — gritou Arthur.

Eu disse — gritou Ford — que isso pode ser uma evidência de alguma flutuação dimensional.

O que é isso? — gritou Arthur de volta.

Bem, várias pessoas estão começando a se preocupar com a possibilidade do espaço-tempo estar dando sinais de que vai rachar de vez, por causa de tudo o que está acontecendo com ele. Na verdade existem diversos mundos onde é possível ver como as massas terrestres racharam e se moveram apenas olhando para as curiosamente longas ou sinuosas rotas dos animais migratórios. Isso pode ter alguma coisa a ver com isso. Vivemos em uma época contorcida. Ainda assim, na falta de um espaçoporto decente...

Arthur lançou um olhar paralisado para ele.

O que você quer dizer com isso? — perguntou ele.

O que você quer dizer com o que quero dizer com isso? — gritou Ford.

Você sabe muito bem o que quero dizer. Vamos sair daqui a galope.

Você está sugerindo que a gente tente montar em uma Besta Perfeitamente Normal?

Isso aí. Vamos ver no que dá.

Vamos morrer! Não — disse Arthur, de repente. — Não vamos morrer. Pelo menos, eu não. Ford, você já ouviu falar de um planeta chamado Stavromula Beta?

Ford franziu a testa.

— Acho que não — respondeu ele. Sacou a sua cópia surrada do Guia do Mochileiro das Galáxias e a consultou. — Escreve como se fala? —perguntou.

Não sei. Nunca vi escrito e quem me falou estava com a boca cheia de dentes de outras pessoas. Lembra que eu te contei sobre o Agrajag?

Ford parou para pensar.

O carinha que cismou que você ficava matando ele sem parar?

Isso. Um dos lugares que ele alegou que eu o matara era Stavromula Beta. Parece que alguém tenta atirar em mim. Eu me abaixo e Agrajag, ou uma das suas muitas reencarnações, é atingido. Parece que isso realmente aconteceu em algum momento, então, creio eu, não posso morrer até escapar do tiro em Stavromula Beta. O

problema é que ninguém ouviu falar nesse lugar.

Humm. — Ford fez mais algumas consultas no seu Guia, mas foram em vão. — Eu estava aqui pensando... não, nunca ouvi falar — disse ele, finalmente. Mas estava intrigado por achar que o nome lhe dizia alguma coisa.

Está bem — respondeu Arthur. — Eu vi como os caçadores lamuellanos capturam as Bestas Perfeitamente Normais. Se você ataca uma em meio à horda, ela é

pisoteada, então você tem que dar um jeito de atrair uma a uma para matá-las. É mais ou menos como um toureiro faz, sabe, com uma capa colorida bem chamativa. Você faz com que uma delas parta para cima de você, aí dá aquele passinho para o lado e gira a capa de forma elegante. Você tem alguma coisa que possamos usar como uma capa colorida bem chamativa?

Serve isso? — perguntou Ford, entregando a sua toalha.

CAPÍTULO 20

Pular nas costas de uma Besta Perfeitamente Normal de uma tonelada e meia migrando pelo seu mundo a estrondosos quarenta quilômetros por hora não é algo tão fácil quanto possa parecer. Certamente, não tão fácil quanto os caçadores lamuellanos faziam parecer, e Arthur Dent já estava preparado para descobrir que aquela talvez acabasse sendo a parte difícil.

O que não estava preparado para descobrir, no entanto, era que até mesmo chegar na parte difícil já era difícil. Isso porque a parte que supostamente deveria ser fácil era praticamente impossível.

Não conseguiam chamar a atenção de um animal sequer. As Bestas Perfeitamente Normais eram tão obstinadas em produzir um bom estrondo com os seus cascos — cabeças abaixadas e ombros projetados para a frente, patas traseiras transformando o chão em mingau — que precisavam de algo não só meramente surpreendente, mas geológico para chamar a sua atenção.

Os estrondos ensurdecedores e o tempo de espera acabaram sendo, no final das contas, mais do que Arthur e Ford podiam suportar. Após passarem quase duas horas zanzando para lá e para cá e fazendo coisas cada vez mais estapafúrdias com uma toalha de banho média com padrões florais, não haviam sequer conseguido que uma das grandes bestas que esmagavam estrondosamente o chão desse pelo menos uma olhadela de soslaio na direção deles.

Estavam a mais ou menos um metro da avalanche horizontal de corpos suados. Ficar mais perto significava um risco de morte instantânea, cronológica ou não cronológica. Arthur já havia visto o que sobrava de qualquer Besta Perfeitamente Normal que, graças a um lançamento desajeitado de um caçador lamuellano jovem e inexperiente, era atingida por uma lança enquanto ainda esmagava estrondosamente o chão no meio do bando.

Bastava um único tropeção. Nenhum compromisso anterior com a morte em Stavromula Beta — fosse lá onde diabos ficasse Stavromula Beta — poderia salvar a sua vida ou a de qualquer outra pessoa da marcha ribombante e estraçalhadora daqueles cascos.

Por fim, Arthur e Ford cambalearam para trás. Sentaram-se, exaustos e vencidos, e começaram a criticar as respectivas técnicas de manejo da toalha.

Você tem que sacudir mais a toalha — reclamou Ford. — Precisa de mais impulso do cotovelo se quiser chamar a atenção dessas criaturas malditas.

Mais impulso? — reclamou Arthur. — Você é que precisa de mais flexibilidade no pulso.

Você precisa agitar mais — discordou Ford.

Você precisa de uma toalha maior.

Vocês precisam — disse outra voz — é de um pássaro pikka.

De quê?

A voz viera de trás deles. Se viraram e, atrás deles, sob o sol matinal, estava o Velho Thrashbarg.

Para atrair a atenção de uma Besta Perfeitamente Normal — disse ele, aproximando-se de Arthur e Ford — vocês precisam de um pássaro pikka. Como este aqui.

De dentro da coisa parecida com uma batina de tecido grosso que usava, Thrashbarg tirou um pequeno pássaro pikka. O animal ficou inquieto na palma da mão do velho, olhando concentradíssimo para alguma coisa que estava em disparada a um metro e dezesseis centímetros de distância à sua frente.

Ford instantaneamente assumiu a posição de alerta agachado que gostava de manter quando não sabia ao certo o que estava acontecendo ou que o deveria fazer. Balançou os braços em volta bem devagar, torcendo para que o gesto parecesse ameaçador.

Quem é esse? — sussurrou ele.

Ah, é só o Velho Thrashbarg — disse Arthur, baixinho. — E eu não me daria ao trabalho de ficar fazendo esses gestos malucos. Ele é um malandro tão experiente quanto você. Podem acabar dançando um em volta do outro o dia inteiro.

E o pássaro? — sussurrou Ford novamente. — Qual é a do pássaro?

É só um pássaro! — respondeu Arthur, impaciente. — Como qualquer outro. Põe ovos e faz ark para coisas que ninguém vê. Ou kar ou rit, sei lá.

Você já viu algum deles pôr ovos? — perguntou Ford, desconfiado.

Pelo amor de Bob, claro que sim — respondeu Arthur. — E já comi centenas deles. Dão um omelete dos bons. O segredo é colocar pequenos cubos de manteiga gelada e depois bater bem devagar com um...

Eu não quero droga de receita nenhuma — disse Ford. — Só quero me certificar de que é um pássaro de verdade e não uma espécie de ciberpesadelo multidimensional.

Ford levantou-se devagarzinho da posição agachada e espanou a poeira do corpo. Continuava de olho no pássaro, de qualquer forma.

Então — disse o Velho Thrashbarg para Arthur. — Está escrito que Bob tomará novamente para si a graça divina de seu enviado, o Fazedor de Sanduíches?

Ford quase se agachou de novo.

Está tudo bem — murmurou Arthur —, ele sempre fala desse jeito. Em voz alta, ele disse:

Ó, venerável Thrashbarg. Humm, creio que é chegada a hora de dar no pé. Mas o jovem Drimple, meu aprendiz, será um excelente Fazedor de Sanduíches no meu lugar. Ele tem talento e um profundo amor pelos sanduíches, e todas as habilidades que adquiriu até agora, embora ainda sejam rudimentares, um dia haverão de amadurecer e, ah, bem, acho que ele vai se sair bem, é o que estou tentando dizer. O Velho Thrashbarg olhou para ele, muito sério. Seus velhos olhos cinzentos movimentaram-se, tristes. Ele levantou os braços, segurando o pássaro pikka inquieto em uma das mãos e o seu cajado na outra.

Ó, Fazedor de Sanduíches de Bob! — pronunciou ele. Fez uma pausa, enrugou a testa e suspirou enquanto fechava os olhos, em devota contemplação. — A vida será muito menos esquisita sem você por aqui!

Arthur estava impressionado.

Sabe, acho que essa foi a coisa mais bonita que alguém já me disse na vida!

Dá pra gente continuar ou tá difícil? — reclamou Ford.

Algo já estava acontecendo. A mera presença do pássaro pikka na mão esticada de Thrashbarg já estava enviando tremores de interesse pela horda estrondosa. Algumas cabeças se levantavam rapidamente para olhar naquela direção. Arthur começou a se lembrar de alguns dos caçadores de Bestas Perfeitamente Normais que ele vira. Lembrou-se de que, além dos caçadores-toureiros sacudindo as suas capas, havia sempre outros parados atrás deles, segurando pássaros pikka. Sempre imaginara que, assim como ele, tinham ido só para olhar.

O Velho Thrashbarg avançou, ficando um pouco mais perto da horda em disparada. Algumas Bestas já estavam virando a cabeça para trás, interessadas no pássaro.

Os braços esticados de Thrashbarg estavam tremendo.

Apenas o pássaro pikka parecia não estar nem um pouco interessado no que estava acontecendo. Algumas moléculas anônimas de ar em nenhum lugar específico absorviam toda a sua excitada atenção.

Agora! — exclamou o Velho Thrashbarg finalmente. — Agora você

pode usar a toalha!

Arthur avançou com a toalha de Ford, movimentando-se como faziam os caçadores-toureiros, com um tipo de andar pomposo que estava longe de lhe cair bem. Mas sabia o que devia fazer e que aquilo era a coisa certa a fazer. Exibiu e sacudiu a toalha algumas vezes, aprontando-se para o momento, e depois observou. Avistou o animal que queria não muito longe dali. De cabeça baixa, estava galopando para cima dele, bem na extremidade da horda. O Velho Thrashbarg mexeu o pássaro, a Besta olhou para cima, sacudiu a cabeça e então, bem na hora em que ia abaixar a cabeça novamente, Arthur fez um floreio com a toalha na linha de visão dela. Ela balançou a cabeça novamente, confusa, e seus olhos acompanharam os movimentos da toalha.

Conseguira chamar sua atenção.

Daquele momento em diante parecia a coisa mais natural do mundo atrair o animal para ele. Estava com a cabeça erguida, levemente inclinada. Estava diminuindo o ritmo para um meio galope e, depois, para um trote. Alguns segundos depois, a enorme fera estava prostrada entre eles, bufando, arquejando, suando e farejando animadamente o pássaro pikka, que parecia não ter sequer notado sua chegada. Executando estranhos movimentos ondulatórios com os braços, Thrashbarg mantinha o pássaro pikka diante da Besta, tomando cuidado para que não estivesse ao seu alcance, sempre para baixo. Executando estranhos movimentos com a toalha, Arthur mantinha a atenção da Besta assim e assado — sempre para baixo.

Acho que nunca vi nada tão ridículo em toda a minha vida — murmurou Ford para si mesmo.

Finalmente, a Besta caiu, aturdida mas dócil, de joelhos no chão.

Vai! — sussurrou Thrashbarg em tom de urgência para Ford.

Vai! Agora!

Ford saltou nas costas imensas da criatura, agarrando sua pelagem espessa e embaraçada para se apoiar, e segurando tufos de pêlo para se sustentar, uma vez posicionado lá em cima.

Agora, Fazedor de Sanduíches! Vai! — Com um gesto elaborado e um aperto de mão ritualístico que Arthur não pôde sequer acompanhar porque o Velho Thrashbarg obviamente tinha acabado de inventar, ele empurrou Arthur para frente. Respirando fundo, Arthur escalou as costas imensas, quentes e arfantes da Besta, colocando-se atrás de Ford, e segurou firme. Músculos enormes, do tamanho de leõesmarinhos, ondularam e se flexionaram debaixo dele. De repente, o Velho Thrashbarg suspendeu o pássaro bem alto. A cabeça da Besta girou para acompanhá-lo. Thrashbarg levantou o braço com o pássaro pikka várias vezes; então, lentamente, pesadamente, a Besta Perfeitamente Normal se ergueu, um pouco cambaleante. Os dois cavaleiros montados em suas costas agarravam-se aos seus pêlos feroz e nervosamente.

Arthur contemplou o mar de animais enfurecidos, esforçando-se para tentar ver para onde estavam indo, mas não havia nada além de uma bruma de calor.

Tá conseguindo enxergar alguma coisa? — perguntou a Ford.

Não. — Ford virou para olhar para trás, tentando ver se conseguia alguma pista de onde haviam vindo. Nada.

Arthur gritou para Thrashbarg lá atrás.

Você sabe de onde eles vêm? — gritou ele. — Ou para onde estão indo?

O domínio do Rei! — gritou Thrashbarg de volta.

Rei? — gritou Arthur, surpreso. — Que Rei? — A Besta Perfeitamente Normal balançava e sacudia sem parar debaixo dele.

Como assim, que Rei? — perguntou o Velho Thrashbarg. — O Rei.

Ê que você nunca mencionou um Rei — gritou Arthur, um tanto quanto espantado.

O quê? — perguntou o Velho Thrashbarg. As batidas de milhares de cascos tornavam difícil ouvir qualquer coisa, e ele estava concentrado no que estava fazendo.

Ainda segurando o pássaro no alto, Thrashbarg conduziu a Besta lentamente até que ela se virasse e ficasse novamente emparelhada com a movimentação do seu bando gigantesco. Avançou um pouco mais. A Besta o seguiu. Avançou novamente. A Besta o seguiu novamente. Por fim, já estava se movendo por conta própria.

Eu disse que você nunca mencionou um Rei! — repetiu Arthur.

Eu não disse um Rei — gritou o Velho Thrashbarg —, eu disse o Rei. Recolheu o braço e depois estendeu—o com toda a força, lançando o pássaro pikka no ar, acima da horda. Isso pareceu pegar o pássaro pikka completamente de surpresa, já que ele, obviamente, não estava prestando atenção nenhuma ao que estava acontecendo. Levou alguns segundos para entender o que estava se passando; então abriu as asas e voou.

Vá! — gritou Thrashbarg. — Vá encontrar o seu destino, Fazedor de Sanduíches!

Arthur não estava tão certo de que queria encontrar o seu destino daquela forma. Queria apenas chegar aonde quer que fosse para poder descer daquela criatura. Não se sentia nem um pouco seguro lá em cima. A Besta estava ganhando velocidade, enquanto seguia o rastro do pássaro pikka. Alcançou a margem da grande maré de animais e um pouco depois, de cabeça baixa, tendo esquecido o pássaro, correu novamente com o resto da horda, aproximando—se rapidamente do ponto onde desapareciam subitamente. Arthur e Ford agarravam—se na fera gigante, lutando pela vida, cercados por todos os lados de montanhas ondulantes de corpos.

Isso! Cavalguem a Besta! — gritou Thrashbarg. A sua voz distante reverberava diminuta em seus ouvidos. — Cavalguem a Besta Perfeitamente Normal!

Cavalguem, cavalguem!

Ford gritou no ouvido de Arthur:

Para onde ele disse que estamos indo?

Disse alguma coisa sobre um Rei — berrou Arthur de volta, segurandose desesperadamente.

Que Rei?

Foi o que eu perguntei. Ele só disse o Rei.

Eu não sabia que existia um o Rei — berrou Ford.

Nem eu — gritou Arthur.

A não ser, é claro, o Rei — disse Ford. — Mas acho que ele não es tá falando desse Rei.

Que Rei? — berrou Arthur.

Estavam quase no final da reta. Bem à sua frente, Bestas Perfeitamente Normais galopavam para o nada e desapareciam.

Como assim, que Rei? — berrou Ford. — Eu não sei que Rei. Só estou dizendo que ele não deve estar se referindo ao Rei, então, não sei de quem está falando.

Ford, não faço idéia do que você está falando.

Novidade — disse Ford. Então, com uma aceleração súbita, as estrelas surgiram, giraram sobre as suas cabeças e depois, de maneira igualmente repentina, desapareceram novamente.

CAPÍTULO 21

Edifícios cinzentos enevoados surgiam e desapareciam. Balançavam para cima e para baixo de maneira altamente constrangedora.

Que edifícios eram aqueles?

Qual a sua finalidade? O que eles a lembravam?

É muito difícil entender as coisas quando somos inesperadamente transportados para um mundo diferente, com uma cultura diferente, com um conjunto diferente de pressupostos básicos sobre a vida e, além de tudo isso, com uma arquitetura incrivelmente sem graça e sem sentido.

O céu sobre os prédios era de um negrume frio e hostil. As estrelas, que àquela distância do sol deveriam ser pontos de luz insuportavelmente brilhantes, ficavam embaçadas e foscas por causa da grossura da enorme bolha de proteção. Feita de perspex ou qualquer coisa assim. Algo fosco e grosso.

Tricia rebobinou a fita até o início.

Sabia que havia alguma coisa estranha ali.

Bem, na verdade, havia um milhão de coisas estranhas ali, mas uma em particular a incomodava e ela não sabia dizer qual era.

Suspirou e abriu a boca em um bocejo.

Enquanto esperava a fita rebobinar, jogou na lixeira alguns dos copinhos plásticos sujos de café que se acumularam sobre a mesa.

Estava sentada numa pequena ilha de edição numa produtora de vídeo no Soho. Tinha colocado vários cartazes de NÃO PERTURBE na porta e bloqueado todas as ligações para o seu ramal. Originalmente, tudo isso era para proteger o seu incrível furo de reportagem, mas agora era para protegê-la do constrangimento. Resolveu assistir à fita toda novamente desde o começo. Se conseguisse agüentar. Talvez desse uma adiantada aqui e ali.

Eram cerca de quatro da tarde de segunda-feira e ela estava com uma sensação ruim. Estava tentando descobrir qual o motivo da sensação ruim, e a lista de suspeitos não era nada pequena.

Tudo começou com aquele vôo noturno vindo de Nova York. O corujão. De matar qualquer um.

Depois foi abordada em seu jardim e partiu para o planeta Rupert. Não tinha experiência suficiente naquele tipo de coisa para poder dizer com certeza que também era de matar qualquer um, mas podia apostar que as pessoas que passavam por aquilo regularmente deviam ter lá as suas reclamações. As revistas viviam publicando tabelas de estresse. Cinqüenta pontos de estresse se você perdeu o seu emprego. Setenta e cinco para um divórcio ou um visual novo nos cabelos, e por aí vai. Nenhuma dessas tabelas jamais mencionou ser abordada em seu jardim por alienígenas e levada para o planeta Rupert, mas ela estava certa de que devia valer algumas dezenas de pontos. Não que a viagem em si tivesse sido particularmente estressante. Na verdade, fora extremamente chata. Com certeza não ultrapassava o estresse da travessia sobre o Atlântico que tinha acabado de fazer e durou mais ou menos o mesmo tempo: quase sete horas.

Aquilo era impressionante, não? Viajar para os limites extremos do sistema solar no mesmo tempo de um vôo entre Londres e Nova York significava que eles deviam ter uma forma de propulsão fantástica e desconhecida na nave. Interrogou os seus anfitrões a respeito e eles concordaram que era mesmo incrível.

Mas como é que funciona? — perguntara ela, animada. Ainda estava bem animada no inicio da viagem.

Localizou aquele trecho da fita e decidiu rever. Os grebulons, que era como eles se chamavam, estavam educadamente mostrando a ela quais botões apertavam para controlar a nave.

Sim, mas qual é o princípio de funcionamento? — ouviu a sua voz perguntar, por trás da câmera.

Ah, você quer saber se é um motor de dobra ou algo assim? —

perguntaram eles.

Sim — insistiu Tricia. — O que é?

Deve ser algo assim — disseram eles.

Ass

im como?

Um motor de dobra, propulsor fotônico, algo assim. É melhor perguntar ao Engenheiro de Vôo.

E quem é ele?

Não sabemos. Perdemos nossas mentes.

Ah, é — disse Tricia, um pouco desanimada. — É o que vocês dizem. E

como foi exatamente que vocês perderam a mente?

Não sabemos — responderam, pacientemente.

Porque perderam a mente — repetiu Tricia, abatida.

Você quer ver televisão? É um longo vôo. Nós assistimos televisão. Gostamos disso.

Toda essa cena imperdível estava gravada na fita, e que belo entretenimento ela proporcionava. Para começar, a qualidade da imagem estava péssima. Tricia não sabia dizer exatamente o porquê. Tinha a impressão de que os grebulons eram sensíveis a uma gama de freqüências de luz um pouco diferente e de que havia muito ultravioleta por lá, o que estava entulhando a câmera de vídeo. Havia diversos padrões de interferência e chuviscos. Talvez estivesse relacionado com o motor de dobra a respeito do qual nenhum deles sabia nada.

O que ela tinha em fita, basicamente, era um bando de pessoas magrinhas e descoloridas sentadas, vendo noticiários em suas televisões. Apontara a câmera para fora, através da minúscula escotilha ao lado do seu assento, e conseguira captar um efeito levemente listrado das estrelas. Ela sabia que era real, mas teria levado apenas três ou quatro minutos para falsificar aquela imagem.

No final, tinha decidido poupar a sua preciosa fita de vídeo para usar quando chegasse a Rupert e reclinou-se em seu assento para ficar assistindo televisão com eles. Chegou até a cochilar um pouco.

Parte da sua sensação ruim, portanto, vinha da impressão de que tinha passado um tempo enorme em uma espaçonave extraterrestre, dotada de um impressionante projeto tecnológico, mas, ainda assim, gastara a maior parte do tempo cochilando diante de reprises de M*A*S*H e Cagney & Lacey. O que mais havia para se fazer lá?

Tirara algumas fotos também, é claro, mas voltaram do laboratório pavorosamente embaçadas.

Outra parte de sua sensação ruim provavelmente vinha da chegada em Rupert. Aquilo, pelo menos, fora dramático e de arrepiar os cabelos. A nave veio sobrevoando uma paisagem negra e sombria, um terreno tão desesperadamente isolado do calor e da luz de seu sol que mais parecia um mapa das cicatrizes psicológicas na mente de uma criança abandonada.

Luzes ardiam através da escuridão congelada e guiavam a nave até a entrada de uma espécie de caverna que parecia ter se curvado para recebê-la. Infelizmente, por causa do ângulo de aproximação da nave e da profundidade em que a pequena e grossa escotilha estava inserida em seu revestimento, não foi possível posicionar a câmera de vídeo para captar essas imagens. Estava vendo aquele trecho da fita.

A câmera estava apontada direto para o sol.

Isso, normalmente, é péssimo para uma câmera de vídeo. Mas, quando o sol está aproximadamente a quinhentos milhões de quilômetros de distância, não causa nenhum dano. Na verdade, quase não aparece. É apenas um pontinho de luz bem no meio do enquadramento, que poderia ser qualquer outra coisa. Era apenas uma estrela em meio a tantas outras.

Tricia avançou a fita.

Ah. O próximo trecho parecia bastante promissor. Saíram da nave dentro de uma estrutura enorme e cinzenta, parecida com um hangar. Aquilo era definitivamente tecnologia extraterrestre em uma escala impressionante. Imensos prédios cinzentos sob a abóbada escura da bolha de perspex. Eram os mesmos prédios que vira no início da fita. Conseguira filmá-los mais um pouco quando saíra de Rupert, algumas horas depois, antes de entrar na espaçonave que a levaria de volta para casa. O que eles lembravam?

Bom, mais do que qualquer outra coisa, lembravam o cenário de qualquer filme de ficção científica de quinta categoria dos últimos vinte anos. Eram muito maiores, é

claro, mas pareciam igualmente improvisados e pouco realistas na tela do vídeo. Além da péssima qualidade da imagem, ela teve que lidar com efeitos inesperados da gravidade, consideravelmente menor do que na Terra, e tivera dificuldades para manter a câmera firme, sem ficar sacudindo para cima e para baixo de uma maneira constrangedoramente amadora. No final das contas era impossível distinguir detalhes na fita.

E lá estava o Líder se aproximando para cumprimentá-la, sorrindo e esticando a mão em sua direção.

Era assim que o chamavam. O Líder.

Nenhum dos grebulons tinha nome, em grande parte porque não conseguiam imaginar um. Tricia descobrira que alguns deles chegaram a pensar em adotar nomes de personagens dos programas de tevê que captavam da Terra, mas, por mais que tivessem se esforçado para se chamar Wayne, Bobby ou Chuck, algum vestígio de algo profundamente enraizado no subconsciente cultural que haviam trazido consigo das estrelas distantes de onde vieram deve ter dito a eles que aquilo não era certo e que não ia funcionar.

O Líder se parecia com todos os outros. Talvez um pouco menos magro. Ele disse o quanto gostava dos programas dela na tevê, disse que era o seu fã número um, que estava muito contente por ela ter vindo visitá-los em Rupert, falou que todos estavam ansiosos com a sua visita e disse ainda que ele esperava que o vôo tivesse sido confortável, etc. e tal. Não havia nada que denunciasse que era uma espécie de emissária dos astros ou algo assim.

Revendo a cena agora em vídeo, ele parecia um sujeito comum fantasiado e maquiado, parado diante de um cenário que dava a impressão que ia desabar assim que alguém se encostasse nele.

E lá estava ela, sentada diante do monitor com o rosto entre as mãos, balançando a cabeça em lenta perplexidade.

Aquilo era horrível.

Não só aquele trecho era horrível, como ela sabia o que viria em seguida. Era a parte em que o Líder perguntava se ela estava com fome após o vôo e se não gostaria de comer algo. Aproveitariam para conversar enquanto jantassem. Lembrava perfeitamente o que havia passado pela sua cabeça naquela hora. Comida de ET.

Como se livrar daquela?

Será que realmente ia ter que comer? Ou teria acesso a algum guardanapo de papel onde poderia cuspir? Não haveria dezenas de problemas de imunidade diferencial?

Acabou que eram hambúrgueres.

Não só eram hambúrgueres como também os hambúrgueres eram clara e obviamente do McDonald's, requentados no microondas. Não reconhecera apenas pela aparência. Nem pelo cheiro. É que, nas embalagens de poliestireno em formato de concha nas quais vinham os hambúrgueres, "McDonald's" estava impresso em todos os cantos.

Coma! Aproveite! — disse o Líder. — Nada é bom o bastante para a nossa convidada de honra!

Estava no apartamento particular do Líder. Tricia olhou à sua volta com um espanto que estava a um passo de se transformar em terror, mas não deixou de continuar filmando.

O apartamento tinha uma cama com colchão d'água. E um Midi hifí. E um daqueles troços de vidro iluminados que ficam sobre os tampos das mesas e parecem ter glóbulos de esperma flutuando dentro deles. As paredes eram revestidas de veludo. O Líder estava refestelado em um pufe de veludo cotelê marrom e esguichou um spray refrescante na boca.

De repente, Tricia começou a ficar muito assustada. Até onde sabia, estava mais distante da Terra do que qualquer outro ser humano jamais esteve, e em companhia de uma criatura alienígena refestelada em um pufe de veludo cotelê, esguichando spray refrescante na boca.

Não queria tomar atitudes precipitadas. Não queria assustá-lo. Mas tinha algumas coisas que ela precisava saber.

Como foi que você... onde foi que arrumou... essas coisas? — perguntou ela, gesticulando em volta, nervosamente.

A decoração? — perguntou o Líder. — Você gostou? É muito sofisticado. Somos um povo sofisticado, nós, os grebulons. Compramos bens de consumo sofisticados e duráveis... pelo correio.

Tricia concordara com a cabeça, tremendamente devagar.

Pelo correio... — dissera ela.

O Líder deu uma risadinha. Era uma daquelas risadinhas sedosas e tranqüilizadoras de chocolate amargo.

Acho que você está pensando que eles fazem as entregas aqui. Não! Há

há! Arranjamos uma caixa postal em New Hampshire. Fazemos visitas regulares para apanhar as encomendas. Há há! — Recostou-se, relaxado, em seu pufe, apanhou uma batata frita requentada e mordiscou a pontinha, com um sorriso divertido nos lábios. Tricia podia sentir o seu cérebro começando a fritar aos poucos. Manteve a câmera rodando.

Como é que vocês, bem, ah, como é que pagam por essas... coisas maravilhosas?

O Líder deu outra risadinha.

American Express — disse ele, sacudindo os ombros de maneira indiferente.

Tricia concordou novamente com a cabeça, devagar. Sabia que mandavam cartões de crédito exclusivamente para quase todo mundo.

E esses? — perguntou ela, segurando o hambúrguer que haviam lhe dado de presente.

Isso é fácil — disse o Líder. — Ficamos na fila.

Novamente, com uma sensação gélida e formigante na espinha, Tricia percebeu que aquilo explicava muita coisa.

Apertou o botão de FF novamente. Não havia nada ali que pudesse ser usado. Era tudo uma loucura, um pesadelo. Poderia ter forjado algo que parecesse mais convincente.

Outra sensação ruim começou a invadi—la enquanto assistia àquela fita inútil e horrorosa, e ela começou a perceber, com um pavor gradual, que aquela devia ser a resposta.

Ela devia estar...

Sacudiu a cabeça e tentou manter a calma.

Um vôo noturno para o Leste... Os remédios para dormir que tomou para agüentar a viagem. A vodca que bebeu para fazer os remédios funcionarem. O que mais? Bem. Dezessete anos obcecada por um sujeito glamouroso que tinha duas cabeças — sendo que uma estava disfarçada de um papagaio preso em uma gaiola — e lhe passara uma cantada em uma festa mas se mandara, impaciente, para um outro planeta em um disco voador. De repente essa idéia parecia ter uma série de aspectos inconvenientes que jamais lhe ocorreram. Jamais. Em dezessete anos. Enfiou o punho dentro da boca.

Precisava de ajuda.

Depois, Eric Bartlett perturbando-a com aquele papo de espaçonaves alienígenas pousando no seu jardim. E antes disso... Nova York fora... muito quente e estressante. As grandes esperanças e a amarga frustração. A história toda da astrologia. Deve ter tido um colapso nervoso.

Era isso. Estava exausta, tivera um colapso nervoso e começara a ter alucinações um pouco depois de chegar em casa. Sonhara aquela história toda. Uma raça alienígena de pessoas desprovidas das suas próprias vidas e histórias, encalhadas em uma base remota do nosso sistema solar, preenchendo o seu vácuo intelectual com o nosso lixo cultural. Ahá! Era a maneira da natureza lhe dizer que precisava se internar em uma clínica muito cara o mais rápido possível.

Estava muito, mas muito doente. Olhou quantas doses duplas de café já havia bebido e percebeu como sua respiração estava ofegante e acelerada. Perceber a doença, disse ela para si mesma, era meio caminho andado para a cura. Começou a controlar a respiração. Havia entendido tudo a tempo. Percebeu onde estava. Estava conseguindo voltar do precipício psicológico de onde quase despencou. Começou a se acalmar, se acalmar, se acalmar. Recostou na cadeira e fechou os olhos. Após alguns minutos, agora que estava respirando normalmente de novo, abriu os olhos.

Mas então, de onde saíra aquela fita?

Ainda estava rodando.

Tudo bem. Era falsificada.

Ela própria a falsificara, era isso.

Devia ter sido ela mesma quem a falsificara, pois sua voz podia ser ouvida em off o tempo todo, fazendo perguntas. De vez em quando, a câmera apontava para baixo no final de uma tomada e ela via os seus próprios pés, calçados nos seus próprios sapatos. Falsificara a fita e não conseguia se lembrar de tê-la falsificado nem sabia o porquê daquilo.

A sua respiração estava ficando agitada novamente, enquanto observava as imagens tremidas, cheias de chuvisco.

Vai ver que ainda estava tendo alucinações.

Sacudiu a cabeça, tentando espantar aquelas idéias. Não se lembrava de ter falsificado nenhuma parte daquela fita tão obviamente falsa. Por outro lado, conseguia se lembrar de coisas que se pareciam bastante com as falsas. Continuou assistindo, em transe, perplexa.

A pessoa que ela tinha imaginado se chamar o Líder estava lhe fazendo algumas perguntas sobre astrologia e ela estava respondendo tranqüilamente. Somente ela própria era capaz de detectar o pânico crescente e bem disfarçado em sua voz. O Líder apertou um botão e uma parede de veludo marrom deslizou para cima, revelando uma enorme bancada de monitores de tevê com tela plana. Cada um dos monitores estava exibindo um caleidoscópio de imagens diferentes: alguns segundos de um programa de auditório, alguns segundos de um seriado policial, alguns segundos do sistema de segurança do depósito de um supermercado, alguns segundos do filme caseiro das férias de alguém, alguns segundos de sexo, alguns segundos do noticiário, alguns segundos de comédia. Estava claro que o Líder tinha bastante orgulho de tudo aquilo e ficava movimentando as mãos como um maestro, enquanto continuava a tagarelar enormes besteiras.

Mais um movimento com as mãos e todas as telas ficaram brancas, formando uma única tela de computador gigante, mostrando em forma diagramática todos os planetas do sistema solar, mapeados sobre um pano de fundo das estrelas em suas constelações. A tela estava completamente estática.

— Temos grandes habilidades — estava dizendo o Líder. — Grandes habilidades em computação, em trigonometria cosmológica, em cálculo navegacional tridimensional. Grandes habilidades. Grandes, grandes habilidades. Só que nos esquecemos de tudo. É horrível. Gostávamos de ter habilidades, mas elas se foram. Estão por aí, em algum lugar do espaço, sem rumo. Assim como os nossos nomes e os detalhes sobre os nossos lares e entes queridos. Por favor — pediu ele, fazendo um gesto para que ela se sentasse diante do computador —, seja habilidosa para nós. O que aconteceu em seguida, obviamente, foi que Tricia colocou a sua câmera no tripé para capturar toda a cena. Depois apareceu na filmagem e sentou—se calmamente diante da tela de computador gigante, passou alguns minutos se familiarizando com a interface e então começou, tranqüila e competentemente, a fingir que tinha alguma idéia do que estava fazendo.

Na verdade, nem fora tão difícil assim.

Ela era, afinal, matemática e astrofísica por formação e apresentadora de tevê

por experiência, e podia blefar sem problemas sobre toda a ciência que esquecera ao longo dos anos.

O computador onde estava trabalhando era uma prova concreta de que os grebulons vinham de uma cultura muito mais avançada e sofisticada do que sugeria o seu atual estado de vácuo e, com a sua habilidade, ela conseguiu, em mais ou menos meia hora, improvisar um modelo grosseiro do sistema solar.

Não era incrivelmente preciso nem nada, mas ficara bonito. Os planetas estavam se movendo em simulações razoavelmente boas de suas órbitas e dava para observar o movimento de toda a engrenagem cosmológica virtual de qualquer ponto do sistema — embora muito grosseiramente. Dava para observar do ponto de vista da Terra, do ponto de vista de Marte, etc. Dava para observar da superfície do planeta Rupert. Tricia ficara bastante impressionada consigo mesma, mas igualmente impressionada com o sistema de computador no qual trabalhara. A tarefa talvez tivesse demorado um ano ou mais de programação usando computadores terrestres. Quando terminou, o Líder surgiu atrás dela e contemplou seu trabalho. Estava muito satisfeito e encantado com o resultado.

— Ótimo — disse ele. — E agora, por favor, gostaria que você demonstrasse como usar o sistema que você acabou de criar para traduzir as informações desse livro aqui para mim.

Calmamente, colocou um livro diante dela.

Era Você e os seus planetas, de Gail Andrews.

Tricia parou a fita novamente.

Estava definitivamente se sentindo tonta. A sensação de que estava tendo alucinações passara, mas nada ficou mais fácil ou mais claro na sua cabeça. Empurrou a cadeira para trás da mesa de edição e se perguntou o que fazer em seguida. Anos atrás abandonara o campo da pesquisa astronômica porque sabia, sem nenhuma dúvida, que havia conhecido um ser de outro planeta. Em uma festa. E

também sabia, sem nenhuma dúvida, que seria motivo de chacota se algum dia resolvesse falar sobre isso. Mas como podia estudar cosmologia e não contar justo o que sabia de mais importante a respeito? Fez a única coisa que podia fazer. Saiu fora. Agora, ela trabalhava na televisão e a mesma coisa acontecera novamente. Tinha uma fita gravada, uma fita gravada de verdade, da história mais incrível de toda história de, bem, qualquer coisa: uma base esquecida de uma civilização alienígena perdida no planeta mais afastado de nosso sistema solar. Tinha a história.

Tinha estado lá.

Tinha visto tudo.

Tinha uma fita gravada, ora bolas.

E, se algum dia mostrasse para alguém, seria motivo de chacota. Como podia provar aquilo? Nem valia a pena pensar a respeito. Tudo não passava de um pesadelo, de virtualmente qualquer ângulo que ela examinasse a situação. A sua cabeça estava começando a latejar.

Tinha uma aspirina na bolsa. Saiu da pequena ilha de edição em direção ao bebedouro no final do corredor. Tomou a aspirina e vários copos d'água. O lugar parecia muito calmo. Normalmente havia muitas pessoas zanzando apressadas por ali ou, pelo menos, algumas pessoas zanzando apressadas por ali. Esticou a cabeça para dentro da ilha de edição que ficava ao lado da sua, mas não havia ninguém lá dentro.

Exagerara um pouco no seu desespero de manter as pessoas longe da sua ilha de edição. NÃO PERTURBE estava escrito no cartaz. NEM PENSE EM ENTRAR. NÃO ME INTERESSA O QUE ESTÁ ACONTECENDO. VÁ EMBORA. ESTOU

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