BRADLEY TREVOR GREIVE
Autor de Um Dia "Daqueles"
1 Richard Dawkins. The Guardian, 14 de maio de 2001. 2 John & Mary Gribbin. Richard Feynman: Uma vida na ciência, Viking, 1997.
3 Nicholas Wroe. The Guardian, junho 3, 2000.
Muito além, nos confins inexplorados da região mais brega da Borda Ocidental desta Galáxia, há um pequeno sol amarelo e esquecido.
Girando em torno deste sol, a uma distância de cerca de 148 milhões de quilômetros, há um planetinha verde-azulado absolutamente insignificante, cujas formas de vida, descendentes de pri-matas, são tão extraordinariamente primitivas que ainda acham que relógios digitais são uma grande idéia. Este planeta tem - ou melhor, tinha - o seguinte problema: a maioria de seus habitantes estava quase sempre infeliz. Foram sugeridas muitas soluções para esse problema, mas a maior parte delas dizia respeito basicamente à movimentação de pequenos pedaços de papel colorido com números impressos, o que é curioso, já que no geral não eram os tais pedaços de papel colorido que se sentiam infelizes. E assim o problema continuava sem solução. Muitas pessoas eram más, e a maioria delas era muito infeliz, mesmo as que tinham relógios digitais. Um número cada vez maior de pessoas acreditava que havia sido um erro terrível da espécie descer das árvores. Algumas diziam que até mesmo subir nas árvores tinha sido uma péssima idéia, e que ninguém jamais deveria ter saído do mar. E, então, uma quinta-feira, quase dois mil anos depois que um homem foi pregado num pedaço de madeira por ter dito que seria ótimo se as pessoas fossem legais umas com as outras para variar, uma garota, sozinha numa pequena lanchonete em Rickmansworth, de repente compreendeu o que tinha dado errado todo esse tempo e finalmente descobriu como o mundo poderia se tornar um lugar bom e feliz. Desta vez estava tudo certo, ia funcionar, e ninguém teria que ser pregado em coisa nenhuma. Infelizmente, porém, antes que ela pudesse telefonar para alguém e contar sua descoberta, aconteceu uma catástrofe terrível e idiota, e a idéia perdeu-se para todo o sempre.
Esta não é a história dessa garota.
É a história daquela catástrofe terrível e idiota, e de algumas de suas conseqüências.
É também a história de um livro, chamado O Guia do Mochileiro das Galáxias - um livro que não é da Terra, jamais foi publicado na Terra e, até o dia em que ocorreu a terrível catástrofe, nenhum terráqueo jamais o tinha visto ou sequer ouvido falar dele.
Apesar disso, é um livro realmente extraordinário.
Na verdade, foi provavelmente o mais extraordinário dos livros publicados pelas grandes editoras de Ursa Menor - editoras das quais nenhum terráqueo jamais ouvira falar, também.
O livro é não apenas uma obra extraordinária como também um tremendo best- seller - mais popular que a Enciclopédia Celestial do Lar, mais vendido que Mais Cinqüenta e Três Coisas para se Fazer em Gravidade Zero, e mais polêmico que a colossal trilogia filosófica de Oolonn Colluphid, Onde Deus Errou, Mais Alguns Grandes Erros de Deus e Quem É Esse Tal de Deus Afinal?
Em muitas das civilizações mais tranqüilonas da Borda Oriental da Galáxia, O
Guia do Mochileiro das Galáxias já substituiu a grande Enciclopédia Galáctica como repositório-padrão de todo conhecimento e sabedoria, pois ainda que contenha muitas omissões e textos apócrifos, ou pelo menos terrivelmente incorretos, ele é
superior à obra mais antiga e mais prosaica em dois aspectos importantes. Em primeiro lugar, é ligeiramente mais barato; em segundo lugar, traz impressa na capa, em letras garrafais e amigáveis, a frase NÃO ENTRE EM PÂNICO. Mas a história daquela quinta-feira terrível e idiota, a história de suas extraordinárias conseqüências, a história das interligações inextricáveis entre estas conseqüências e este livro extraordinário - tudo isso teve um começo muito simples. Começou com uma casa.
Capítulo 1
A casa ficava numa pequena colina bem nos limites de uma vila, isolada. Dela se tinha uma ampla vista das fazendas do oeste da Inglaterra. Não era, de modo algum, uma casa excepcional - tinha cerca de 30 anos, era achatada, quadrada, feita de tijolos, com quatro janelas na frente, cujo tamanho e proporções pareciam ter sido calculados mais ou menos exatamente para desagradar a vista.
A única pessoa para quem a casa tinha algo de especial era Arthur Dent, e assim mesmo só porque ele morava nela. Já morava lá há uns três anos, desde que resolvera sair de Londres porque a cidade o deixava nervoso e irritado. Também tinha cerca de 30 anos; era alto, moreno e quase nunca estava em paz consigo mesmo. O que mais o preocupava era o fato de que as pessoas viviam lhe perguntando por que ele parecia estar tão preocupado. Trabalhava na estação de rádio local, e sempre dizia aos amigos que era um trabalho bem mais interessante do que eles imaginavam. E era, mesmo - a maioria de seus amigos trabalhava em publicidade.
Na noite de quarta-feira tinha caído uma chuva forte, e a estrada estava enlameada e molhada, mas na manhã de quinta um sol intenso e quente brilhou sobre a casa de Arthur Dent pelo que seria a última vez.
Arthur ainda não havia conseguido enfiar na cabeça que o conselho municipal queria derrubá-la e construir um desvio no lugar dela. Às oito horas da manhã de quinta-feira, Arthur não estava se sentindo muito bem. Acordou com os olhos turvos, levantou-se, andou pelo quarto sem enxergar direito, abriu uma janela, viu um trator, encontrou os chinelos e foi até
o banheiro.
Pasta na escova de dentes - assim. Escovar.
Espelho móvel - virado para o teto. Arthur ajustou-o. Por um momento, o espelho refletiu um segundo trator pela janela do banheiro. Arthur reajustouo, e o espelho passou a refletir o rosto barbado de Arthur Dent. Ele fez a barba, lavou o rosto, enxugou-o e foi até a cozinha em busca de alguma coisa agradável para pôr na boca.
Chaleira, tomada, geladeira, leite, café. Bocejo.
A palavra trator vagou por sua mente, procurando algo com o que se associar.
O trator que estava do outro lado da janela da cozinha era dos grandes. Arthur olhou para ele.
"Amarelo", pensou, e voltou ao quarto para se vestir. Ao passar pelo banheiro, parou para tomar um copo d'água, e depois outro. Começou a desconfiar que estava de ressaca. Por que a ressaca? Teria bebido na véspera?
Imaginava que sim. Olhou de relance para o espelho móvel. "Amarelo", pensou, e foi para o quarto.
Ficou parado, pensando. "O bar", pensou. "Ah, meu Deus, o bar." Tinha uma vaga lembrança de ter ficado irritado com algo que parecia importante. Falara com as pessoas a respeito, e na verdade começava a achar que tinha falado demais: a imagem mais nítida em sua memória era a dos rostos entediados das pessoas a seu redor. Tinha algo a ver com um desvio a ser construído, e ele acabara de descobrir isso. A obra estava planejada há meses, só
que ninguém sabia de nada. Ridículo. Arthur tomou um gole d'água. "A coisa ia se resolver; ninguém queria aquele desvio, o conselho estava completamente sem razão. A coisa ia se resolver", pensou ele.
Mas que ressaca terrível. Olhou-se no espelho do armário. Pôs a língua para fora. "Amarelo", pensou. A palavra amarelo vagou por sua mente, procurando algo com o que se associar.
Quinze segundos depois, Arthur estava fora da casa, deitado no chão, na frente de um trator grande e amarelo que avançava por cima de seu jardim. O Sr. L. Prosser era, como dizem, apenas humano. Em outras palavras, era uma forma de vida bípede baseada em carbono e descendente de primatas. Para ser mais específico, ele tinha 40 anos, era gordo e desleixado e trabalhava no conselho municipal. Curiosamente, embora ele desconhecesse este fato, era também descendente direto, pela linhagem masculina, de Gengis Khan, embora a sucessão de gerações e a mestiçagem houvessem misturado de tal modo sua carga genética que ele não possuía nenhuma característica mongol, e os únicos vestígios daquele majestoso ancestral que restavam no Sr. L. Prosser eram uma barriga pronunciada e uma predileção por chapeu-zinhos de pele. Ele não era em absoluto um grande guerreiro: na verdade, era um homem nervoso e preocupado. Naquele dia estava particularmente nervoso e preocupado porque tivera um problema sério com seu trabalho, que consistia em retirar a casa de Arthur Dent do caminho antes do final da tarde.
- Desista, Sr. Dent, o senhor sabe que é uma causa perdida. O senhor não vai conseguir ficar deitado na frente do trator o resto da vida. - Tentou assumir um olhar feroz, mas seus olhos não eram capazes disso.
Deitado na lama, Arthur respondeu:
- Está bem. Vamos ver quem é mais chato.
- Infelizmente, o senhor vai ter que aceitar - disse o Sr. Prosser, rodando seu chapéu de pele no alto da cabeça. - Esse desvio tem que ser construído e vai ser construído!
- Primeira vez que ouço falar nisso. Por que é que tem que ser construído?
O Sr. Prosser sacudiu o dedo para Arthur por algum tempo, depois parou e retirou o dedo.
- Como assim, "por que deve ser construído"? Oral - exclamou ele. - É um desvio. É necessário construir desvios.
Os desvios são vias que permitem que as pessoas se desloquem bem depressa do ponto A ao ponto B ao mesmo tempo que outras pessoas se deslocam bem depressa do ponto B ao ponto A. As pessoas que moram no ponto C, que fica entre os dois outros, muitas vezes ficam imaginando o que tem de tão interessante no ponto A para que tanta gente do ponto B queira muito ir para lá, e o que tem de tão interessante no ponto B para que tanta gente do ponto A queira muito ir para lá. Ficam pensando como seria bom se as pessoas resolvessem de uma vez por todas onde é que elas querem ficar. O Sr. Prosser queria fica no ponto D. Este ponto não ficava em nenhum lugar específico, era apenas um ponto qualquer bem longe dos pontos A, B e C. O Sr. Prosser teria uma bela casinha de campo no ponto D, com machados pregados em cima da porta, e se divertiria muito no ponto E, o bar mais próximo do ponto D. Sua mulher, naturalmente, queria uma roseira trepadeira, mas ele queria machados. Ele não sabia por quê. Só sabia que gostava de machados. O Sr. Prosser sentiu seu rosto ficar vermelho ante aos sorrisos irônicos dos operadores do trator.
Apoiou o peso do corpo numa das pernas, depois na outra, mas sentiu-se igualmente desconfortável com as duas. Era óbvio que alguém havia sido terrivelmente incompetente, e ele pedia a Deus que não fosse ele.
- O senhor teve um longo prazo a seu dispor para fazer quaisquer sugestões ou reclamações, como o senhor sabe -disse o Sr. Prosser.
- Um longo prazo? - exclamou Arthur. - Longo prazo? Eu só soube dessa história quando chegou um operário na minha casa ontem. Perguntei a ele se tinha vindo para lavar as janelas e ele respondeu que não, vinha para demolir a casa. É claro que não me disse isso logo. Claro que não. Primeiro lavou umas duas janelas e me cobrou cinco pratas. Depois é que me contou.
- Mas, Sr. Dent, o projeto estava à sua disposição na Secretaria de Obras há nove meses.
- Pois é. Assim que eu soube fui lá me informar, ontem à tarde. Vocês não se esforçaram muito para divulgar o projeto, não é verdade? Quer dizer, não chegaram a comunicar às pessoas nem nada.
- Mas o projeto estava em exposição...
- Em exposição? Tive que descer ao porão pra encontrar o projeto.
- É no porão que os projetos ficam em exposição.
- Com uma lanterna.
- Ah, provavelmente estava faltando luz.
- Faltavam as escadas, também.
- Mas, afinal, o senhor encontrou o projeto, não foi?
- Encontrei, sim - disse Arthur. - Estava em exibição no fundo de um arquivo trancado, jogado num banheiro fora de uso, cuja porta tinha a placa: Cuidado com o leopardo.
Uma nuvem passou no céu. Projetou uma sombra sobre Arthur Dent, deitado na lama fria, apoiado no cotovelo. Projetou uma sombra sobre a casa de Arthur Dent. O Sr. Prosser olhou-a, de cara feia.
- Não chega a ser uma casa particularmente bonita.
- Perdão, mas por acaso gosto dela.
- O senhor vai gostar do desvio.
- Ah, cale a bocal Cale a boca e vá embora, você e a porcaria do seu desvio. Você sabe muito bem que está completamente sem razão. A boca do Sr. Prosser abriu-se e fechou-se umas duas vezes, enquanto por uns momentos seu cérebro foi invadido por visões inexplicáveis, porém terrivelmente atraentes: via a casa de Arthur Dent sendo consumida pelas chamas, enquanto o próprio Arthur corria aos gritos do incêndio, com pelo menos três lanças bem compridas enfiadas em suas costas. Visões como essas freqüentemente perturbavam o Sr. Prosser e o deixavam nervoso. Gaguejou por uns instantes e depois recuperou a calma.
- Sr. Dent.
- Sim? O que é?
- Gostaria de ressaltar alguns fatos para o senhor. O senhor sabe que danos esse trator sofreria se eu deixasse ele passar por cima do senhor?
- O quê?
- Absolutamente zero - disse o Sr. Prosser, afastando-se rapidamente, nervoso, sem entender por que seu cérebro estava cheio de cavaleiros cabeludos que gritavam com ele.
Por uma curiosa coincidência, "absolutamente zero" era o quanto o descendente dos primatas Arthur Dent suspeitava que um de seus amigos mais íntimos não descendia dos primatas, sendo, na verdade, de um pequeno planeta perto de Betelgeuse, e não de Guildford, como costumava dizer. Tal suspeita jamais passara pela cabeça de Arthur Dent.
Esse seu amigo havia chegado ao planeta Terra há uns 15 anos terráqueos e se esforçara ao máximo no sentido de se integrar na sociedade terráquea - com certo sucesso, deve-se reconhecer. Assim, por exemplo, ele passara esses 15 anos fingindo ser um ator desempregado, o que era perfeitamente plausível.
Porém cometera um erro gritante, por ter sido um pouco displicente em suas pesquisas preparatórias. As informações de que ele dispunha o levaram a escolher o nome "Ford Prefect", achando que era um nome bem comum, que passaria despercebido.
Não era alto a ponto de chamar atenção, e suas feições eram atraentes, mas não a ponto de chamar a atenção. Seus cabelos eram avermelhados e crespos e ele os penteava para trás. Sua pele parecia ter sido puxada a partir do nariz. Havia algo de ligeiramente estranho nele, mas era algo muito sutil, difícil de identificar. Talvez os olhos dele piscassem menos que o normal, de modo que quem ficasse conversando com ele algum tempo acabava com os olhos cheios d'água de aflição. Talvez o sorriso dele fosse um pouco largo demais e desse a sensação desagradável de que estava prestes a morder o pescoço de seu interlocutor.
Para a maioria dos amigos que fizera na Terra era um sujeito excêntrico, porém inofensivo: um beberrão com alguns hábitos meio estranhos. Por exemplo, ele costumava entrar de penetra em festas na universidade, tomar um porre colossal e depois começava a gozar qualquer astrofísico que encontrasse, até que o expulsassem da festa.
Às vezes ele ficava desligado, olhando distraído para o céu, como se estivesse hipnotizado, até que alguém lhe perguntava o que ele estava fazendo. Então, por um instante, Ford ficava assustado, com um ar culpado, mas logo relaxava e sorria.
- Ah, estou só procurando discos voadores - brincava, e todo mundo ria e lhe perguntava que tipo de discos voadores ele estava procurando. - Dos verdes! - ele respondia com um sorriso irônico, depois ria às gargalhadas por alguns instantes e daí corria até o bar mais próximo e pagava uma enorme rodada de bebidas.
Essas noites normalmente terminavam mal. Ford tomava uísque até ficar totalmente bêbado, se encolhia num canto com uma garota qualquer e dizia a ela, com voz pastosa, que na verdade a cor dos discos voadores não tinha muita importância.
Depois, cambaleando meio torto pelas ruas, de madrugada, com freqüência perguntava aos policiais que passavam como se ia para Betelgeuse. Os policiais normalmente diziam algo assim:
- O senhor não acha que é hora de ir pra casa?
- É o que eu estou tentando fazer, meu chapa, estou tentando - era o que Ford sempre respondia nessas ocasiões.
Na verdade, o que ele realmente procurava quando ficava olhando para o céu era qualquer tipo de discos voadores. Ele falava em discos voadores verdes porque o verde era a cor tradicional do uniforme dos astronautas mercantes de Betelgeuse.
Ford Prefect já havia perdido as esperanças de que aparecesse um disco voador porque 15 anos é muito tempo para ficar preso em qualquer lugar, principalmente num lugar tão absurdamente chato quanto a Terra. Ford queria que chegasse logo um disco voador porque sabia fazer sinal para discos voadores descerem e porque queria pegar carona num deles. Ele sabia ver as Maravilhas do Universo por menos de 30 dólares altairianos por dia.
Na verdade, Ford Prefect era pesquisador de campo desse fabuloso livro chamado O Guia do Mochileiro das Galáxias.
Os seres humanos se adaptam a tudo com muita facilidade. Assim, quando chegou a hora do almoço, nos arredores da casa de Arthur já havia se estabelecido uma rotina. O papel de Arthur era o de ficar se espojando na lama, pedindo de vez em quando que chamassem seu advogado, sua mãe ou lhe trouxessem um bom livro. O Sr. Prosser ficou com o papel de tentar novas táticas de persuasão com Arthur de vez em quando, usando o papo do Para o Bem de Todos, o da Marcha Inevitável do Progresso, o de Sabe que Uma Vez Derrubaram Minha Casa Também mas Continuei com Minha Vida Normalmente, bem como diversos outros tipos de propostas e ameaças. O
papel dos operadores dos tratores, por sua vez, era o de ficar sentado, tomando café e examinando a legislação trabalhista para ver se havia um jeito de ganhar um extra com aquela situação.
A Terra seguia lentamente em sua órbita cotidiana.
O sol estava começando a secar a lama em que Arthur estava deitado. Uma sombra passou por ele novamente.
- Oi, Arthur - disse a sombra.
Arthur olhou para cima com uma careta, por causa do sol, e surpreendeu-se ao ver Ford Prefect em pé a seu lado.
- Ford] Tudo bem com você?
- Tudo bem - disse Ford. - Escute, você está ocupado?
- Se estou ocupado? -exclamou Arthur. - Bem, tenho apenas que ficar deitado na frente desses tratores todos senão eles derrubam minha casa, mas afora isso... bem, nada de especial. Por quê?
Em Betelgeuse não existe sarcasmo, por isso Ford muitas vezes não o percebia, a menos que estivesse prestando muita atenção.
- Ótimo - disse ele. - Onde a gente pode conversar?
- O quê? - exclamou Arthur Dent.
Por alguns segundos, Ford pareceu ignorá-lo, e ficou olhando fixamente para o céu, como um coelho que está querendo ser atropelado por um carro. Então, de repente, acocorou-se ao lado de Arthur.
- Precisamos conversar - disse, num tom de urgência.
- Tudo bem - disse Arthur. - Pode falar.
- E beber. Temos que conversar e beber, é uma questão de vida ou morte. Agora. Vamos ao bar lá na vila.
Olhou para o céu de novo, nervoso, como se esperasse algo.
- Escute, será que você não entende? - gritou Arthur, apontando para Prosser. - Esse homem quer demolir a minha casa!
Ford olhou para o homem, confuso.
- Ele pode fazer isso sem você, não é?
- Mas eu não quero que ele faça isso! -Ah.
- Escute, o que é que você tem, Ford?
- Nada. Nada de mais. Escute... eu tenho que lhe dizer a coisa mais importante que você já ouviu. Tenho que lhe dizer isso agora e tem que ser lá
no bar Horse and Groom.
- Mas por quê?
- Porque você vai precisar beber algo bem forte.
Ford olhou para Arthur, e este constatou, atônito, que estava começando a se deixar convencer. Não percebeu, é claro, que foi por causa de um velho jogo de botequim que Ford aprendera nos portos hiperespaciais que serviam as regiões de mineração de madranita no sistema estelar de Beta de Órion. O jogo era vagamente parecido com a queda-de-braço dos terráqueos e funcionava assim:
Os dois adversários sentavam-se a uma mesa, um de cara para o outro, cada um com um copo à sua frente.
Entre os dois colocava-se uma garrafa de Aguardente Janx (imortalizada naquela velha canção dos mineiros de Órion: 'Ah, não me dê mais dessa Aguardente Janx/ Não, não me dê mais um gole de Aguardente Janx/ Senão minha cabeça vai partir, minha língua vai mentir, meus olhos vão ferver e sou capaz de morrer/ Vai, me dá um golinho de Aguardente Janx"). Então, cada lutador tentava concentrar sua força de vontade sobre a garrafa para incliná-la e verter aguardente no copo do adversário, que então era obrigado a bebê-la.
Então enchia-se a garrafa de novo, começava uma nova rodada, e assim por diante.
Quem começava perdendo normalmente acabava perdendo, porque um dos efeitos da Aguardente Janx é deprimir o poder telepsíquico. Assim que se consumia uma quantidade previamente estabelecida, o perdedor era obrigado a pagar uma prenda, que costumava ser obscenamente biológica.
Ford Prefect normalmente jogava para perder.
Ford olhou para Arthur, que estava começando a pensar que talvez quisesse mesmo ir até o Horse and Groom.
- Mas e a minha casa...? - perguntou, em tom de queixa. Ford olhou para o Sr. Prosser e de repente lhe ocorreu uma
idéia maliciosa.
- Ele quer demolir a sua casa?
- É, ele quer construir...
- E não pode porque você está deitado na frente do trator dele? -É,e...
- Aposto que podemos chegar a um acordo - disse Ford. -Com licença! - gritou ele para o Sr. Prosser.
O Sr. Prosser (que estava discutindo com o porta-voz dos operadores dos tratores se a presença de Arthur Dent constituía ou não um fator de insalubridade mental no local de trabalho e quanto eles deveriam receber neste caso) olhou em volta. Ficou surpreso e ligeiramente alarmado quando viu que Arthur estava acompanhado.
- Sim? Que foi? - perguntou. - O Sr. Dent já voltou ao normal?
- Será que podemos supor, para fins de discussão - perguntou Ford -, que ainda não?
- E daí? - suspirou o Sr. Prosser.
- E podemos também supor - prosseguiu Ford - que ele vai ficar aí o dia inteiro?
- E então?
- Então todos os seus ajudantes vão ficar parados aí sem fazer nada o dia todo?
-Talvez, talvez...
- Bem, se o senhor já se resignou a não fazer nada, o senhor na verdade não precisa que ele fique deitado aqui o tempo todo, não é?
- O quê?
- O senhor, na verdade - repetiu Ford, paciente -, não precisa que ele fique aqui.
O Sr. Prosser pensou um pouco.
- Bem, é, não exatamente... Precisar, não preciso, não... - disse Prosser, preocupado, por achar que ele, ou Ford, estava dizendo um absurdo.
- Então o senhor podia perfeitamente fazer de conta que ele ainda está
aqui, enquanto eu e ele damos um pulinho no bar, só por meia hora. O que o senhor acha?
O Sr. Prosser achava aquilo perfeitamente insano.
- Acho perfeitamente razoável... - disse, com um tom de voz tranqüilizador, sem saber quem ele estava tentando tranqüilizar.
- E, se depois o senhor quiser dar uma escapulida pra tomar um chope - disse Ford -, a gente retribui o favor.
- Muito obrigado - disse o Sr. Prosser, que não sabia mais como conduzir a situação -, muito obrigado, é muita bondade sua... - Franziu o cenho, depois sorriu, depois tentou fazer as duas coisas ao mesmo tempo, não conseguiu, agarrou seu chapéu de pele e rodou-o no alto da cabeça nervosamente. Só podia achar que havia ganhado a parada.
- Então - prosseguiu Ford Prefect -, se o senhor tiver a bondade de vir até
aqui e se deitar...
- O quê? - exclamou o Sr. Prosser.
- Ah, desculpe - disse Ford -, acho que não soube me exprimir muito bem. Alguém tem que ficar deitado na frente dos tratores, não é? Senão eles vão demolir a casa do Sr. Dent.
- O quê? - repetiu o Sr. Prosser.
- É muito simples - disse Ford. - Meu cliente, o Sr. Dent, declara que está
disposto a não mais ficar deitado aqui na lama com uma única condição: que o senhor o substitua em seu posto.
- Que história é essa? - disse Arthur, mas Ford cutucou-o com o pé para que se calasse.
- O senhor quer - disse Prosser, tentando captar essa nova idéia - que eu me deite aí...
-É.
- Na lama.
- É, como disse, na lama.
Assim que o Sr. Prosser se deu conta de que na verdade era ele o perdedor, foi como se lhe retirassem um fardo dos ombros: essa situação era mais familiar para ele. Suspirou.
- E em troca disso o senhor vai com o Sr. Dent até o bar?
- Isso - disse Ford -, isso mesmo.
O Sr. Prosser deu uns passos nervosos à frente e parou.
- Promete? - disse ele
- Prometo - disse Ford. Virou-se para Arthur: - Vamos, levante-se e deixe o homem se deitar.
Arthur pôs-se de pé, achando que tudo aquilo era um sonho. Ford fez sinal para o Sr. Prosser, que se sentou na lama, triste e desajeitado. Tinha a impressão de que toda a sua vida era uma espécie de sonho, e às vezes se perguntava de quem era aquele sonho, e se o dono do sonho estaria se divertindo. A lama envolveu suas nádegas e penetrou em seus sapatos.
Ford olhou para ele, muito sério.
- Nada de bancar o espertinho e derrubar a casa do Sr. Dent enquanto ele não estiver aqui, certo?
- Nem pensar - rosnou o Sr. Prosser. - Jamais passou pela minha cabeça - prosseguiu, deitando-se - sequer a possibilidade de fazer tal coisa. Viu o representante do sindicato dos operadores de tratores se aproximar, deixou a cabeça afundar na lama e fechou os olhos. Estava tentando encontrar argumentos para provar que ele próprio não passara a representar um fator de insalubridade mental. Estava longe de estar convencido disso - sua cabeça estava cheia de barulhos, cavalos, fumaça e cheiro de sangue. Isso sempre acontecia quando ele se sentia infeliz ou enganado, e jamais entendera por quê. Numa dimensão superior, da qual nada sabemos, o poderoso Khan urrava de ódio, mas o Sr. Prosser limitava-se a tremer um pouco e a resmungar. Começou a sentir que lhe brotavam lágrimas por trás das pálpebras. Qüiproquós burocráticos, homens zangados deitados na lama, estranhos indecifráveis impondo-lhe humilhações inexplicáveis e um exército não identificado de cavaleiros rindo dele em sua mente - que dia!
Que dia! Ford Prefect sabia que não tinha a menor importância se a casa de Arthur fosse ou não derrubada, agora.
Arthur continuava muito preocupado.
- Mas será que a gente pode confiar nele? - perguntou.
- Eu, por mim, confiaria nele até o fim do mundo.
- Ah - disse Arthur. - E quanto falta pra isso?
- Cerca de 12 minutos - disse Ford. - Vamos, preciso beber alguma coisa. Capítulo 2
Eis o que diz a Enciclopédia Galáctica a respeito do álcool: é um líquido volátil e incolor formado pela fermentação dos açúcares. Acrescenta ainda que o álcool tem o efeito de inebriar certas formas de vida baseadas em carbono. O Guia do Mochileiro das Galáxias também menciona o álcool. Diz que o melhor drinque que existe é a Dinamite Pangaláctica.
Afirma que o efeito de beber uma Dinamite Pangaláctica é como ter seu cérebro esmagado por uma fatia de limão colocada em volta de uma grande barra de ouro. O Guia do Mochileiro também lhe dirá quais os planetas em que se preparam as melhores Dinamites Pangalácticas, quanto irá custar uma dose e quais as ONGs existentes para ajudar você a se recuperar posteriormente. O Guia do Mochileiro ensina até mesmo como preparar a bebida por conta própria. Eis o que diz o livro:
Pegue uma garrafa de Aguardente Janx.
Misture-a com uma dose de água dos mares de Santragino V-ah, essa água dos mares de Santragino1., diz. Ah, os peixes de Santragino1. Deixe que três cubos de Megagim Arturiano sejam dissolvidos na mistura (se não foi congelado da maneira correta, perde-se a benzina). Deixe que quatro litros de gás dos pântanos de Falia borbulhem através da mistura em memória de todos aqueles mochileiros bem-aventurados que morreram de prazer nos pântanos de Falia.
Vaca flutuar, no verso de uma colher de prata, uma dose de extrato de Hipermenta Qualactina, plena da fragrânda inebri-ante das sombrias Zonas Qualactinas, sutil, doce e mística.
Acrescente um dente de tigre solar algoliano. Veja-o dissolver-se, espalhando os fogos dos sóis algolianos no âmago do drinque.
Jogue uma pitadinha de Zânfuor.
Acrescente uma azeitona.
Agora é só beber... mas... com muito cuidado...
O Guia do Mochileiro das Galáxias vende bem mais que a Enciclopédia Galáctica.
- Seis chopes duplos - disse Ford Prefect ao barman do Horse and Groom. - E depressa, porque o fim do mundo está próximo.
O barman do Horse and Groom não merecia ser tratado desse jeito, era um senhor de respeito. Ajeitou os óculos e encarou Ford Prefect. Ford ignorou-o e virou-se para a janela, de modo que o barman encarou Arthur, que deu de ombros, como quem também não entendeu, e não disse nada.
Então, o barman disse:
- Ah, é? Um belo dia pro mundo acabar. E começou a tirar os chopes. Tentou outra vez.,
- E então, o senhor vai assistir ao jogo hoje à tarde? Ford virou-se para ele.
- Não, não tem sentido - disse, e virou-se para a janela novamente.
- Quer dizer que o senhor acha que nem adianta? - insistiu o barman. - O
Arsenal não tem a menor chance?
- Não, não - disse Ford. - É só que o mundo vai acabar.
- Ah, é mesmo, o senhor já disse - respondeu o barman, olhando agora para Arthur por cima dos óculos. - Seria uma boa saída para o Arsenal, escapar da derrota por causa do fim do mundo.
Ford olhou de novo para o velho, realmente surpreso.
- Na verdade, não - disse, franzindo a testa. O barman respirou fundo.
- Aí estão, seis chopes.
Arthur sorriu para ele, sem graça, e deu de ombros outra vez. Virou-se para trás e dirigiu um sorriso sem graça ao resto do bar, caso alguém mais tivesse ouvido a conversa.
Ninguém tinha ouvido nada, e ninguém entendeu por que Arthur estava sorrindo para eles daquele jeito.
Um homem sentado ao lado de Ford no balcão olhou para os dois homens, depois para os seis chopes, fez um rápido cálculo de cabeça, chegou a um resultado que lhe agradou e sorriu de forma boba e esperançosa para os dois.
- Nem pensar - disse Ford -, são nossos. - Dirigiu ao homem um olhar que faria um tigre solar algoliano continuar fazendo o que estivesse fazendo. Ford jogou uma nota de cinco libras no balcão, dizendo:
- Pode ficar com o troco.
- O que, cinco libras? Muito obrigado, meu senhor.
- Você tem dez minutos pra gastar isso.
O barman decidiu que era melhor ir fazer outra coisa.
- Ford - disse Arthur -, você pode por favor me explicar que história é
essa? ,
- Beba - disse Ford. - Ainda faltam três chopes.
- Você quer que eu beba três canecos de chope na hora do almoço?
O homem do lado de Ford sorriu e concordou com a cabeça, satisfeito. Ford ignorou-o e disse:
- O tempo é uma ilusão. A hora do almoço é uma ilusão maior ainda.
- Muito profundo - disse Arthur. - Essa você devia mandar pra Seleções. Eles têm uma página pra gente como você.
- Beba.
- Por que três canecos de chope de repente?
- É um relaxante muscular, você vai precisar.
- Relaxante muscular?
- Relaxante muscular.
Arthur olhou para dentro do caneco.
- Será que eu fiz alguma coisa de errado hoje - disse ele - ou será que o mundo sempre foi assim, só que eu estava encucado demais pra perceber?
- Está bem - disse Ford. - Vou tentar explicar. Há quanto tempo a gente se conhece?
- Há quanto tempo? - Arthur pensou um pouco. - Deixe ver, uns cinco anos, talvez seis. A maior parte desse tempo pareceu fazer algum sentido na época.
- Está bem - disse Ford. - Qual seria a sua reação se eu lhe dissesse que não sou de Guildford e sim de um pequeno planeta perto de Betelgeuse?
Arthur deu de ombros, com indiferença.
- Sei lá - disse, bebendo um gole. - Por quê? Você acha que é capaz de dizer uma coisa dessas?
Ford desistiu. Realmente, não valia a pena se preocupar com aquilo naquele momento, com o fim do mundo tão próximo e tudo o mais. Limitou-se a dizer:
- Beba. - E acrescentou, como quem dá uma informação como outra qualquer: - O fim do mundo está próximo.
Arthur sorriu sem graça para o resto do bar, outra vez. O resto do bar fez cara feia para ele. Um homem lhe fez sinal para que parasse de sorrir para eles e cuidasse de sua própria vida.
"Hoje deve ser quinta-feira", pensou Arthur, debruçando-se sobre o chope. "Nunca consegui entender qual é a das quintas-feiras." Capítulo 3
Nessa quinta-feira em particular, alguma coisa deslocava-se silenciosamente através da ionosfera, muitos quilômetros acima da superfície do planeta; aliás, muitas "algumas coisas", dezenas de coisas achatadas, grandes e amarelas, cada uma do tamanho de um quarteirão de prédios, silenciosas como pássaros. Voavam serenas, banhando-se nos raios eletromagnéticos emitidos pela estrela Sol, sem pressa, agrupando-se, preparando-se. O planeta lá embaixo ignorava sua presença quase completamente, o que era justamente o que elas queriam. Aquelas coisas amarelas passaram por Goonhilly despercebidas; sobrevoaram Cabo Canaveral sem que os radares acusassem nada; Woomera e Jodrell Bank ignoraram sua passagem - uma pena, já que era exatamente esse tipo de coisa que estavam procurando há muitos anos.
A única coisa que acusou sua presença foi um aparelhinho preto chamado sensormático subeta, que ficou piscando discretamente na escuridão da mochila de couro que Ford Prefect sempre levava consigo. O conteúdo da mochila de Ford era bastante interessante: se algum físico terráqueo olhasse dentro dela, seus olhos saltariam para fora das órbitas. Era para esconder essas coisas que Ford sempre jogava por cima de tudo, na mochila, um ou dois roteiros amassados de peças de teatro, dizendo que estava estudando um papel para uma peça. Além do sensormático subeta e dos roteiros, Ford levava um polegar eletrônico - um bastão curto e grosso, preto, liso e fosco, com interruptores e ponteiros numa das extremidades - e um aparelho que parecia uma calculadora eletrônica das grandes. Este último possuía cerca de 100
pequenos botões planos e uma tela quadrada de dez centímetros, na qual podia ser exibida instantaneamente qualquer uma dentre um milhão de "páginas". Parecia um aparelho absurdamente complicado, e esse era um dos motivos pelos quais a capa plástica do dispositivo trazia a frase NÃO ENTRE EM
PÂNICO em letras grandes e amigáveis. O outro motivo era o fato de que este aparelho era na verdade o mais extraordinário livro jamais publicado pelas grandes editoras da Ursa Menor - O Guia do Mochileiro das Galáxias. O livro era publicado sob a forma de um microcomponente eletrônico subméson porque, se fosse impresso de forma convencional, um mochileiro interestelar iria precisar de diversos prédios desconfortavelmente grandes para acomodar sua biblioteca. No fundo da mochila de Ford Prefect havia algumas esferográficas, um bloco de anotações e uma toalha de banho grande, comprada na Marks and Spencer.
O Guia do Mochileiro das Galáxias faz algumas afirmações a respeito das toalhas.
Segundo ele, a toalha é um dos objetos mais úteis para um mochileiro interestelar. Em parte devido a seu valor prático: você pode usar a toalha como agasalho quando atravessar as frias luas de Beta de Jagla; pode deitar-se sobre ela nas reluzentes praias de areia marmórea de Santragino V, respirando os inebriantes vapores marítimos; você pode dormir debaixo dela sob as estrelas que brilham avermelhadas no mundo desértico de Kakrafoon; pode usá-la como vela para descer numa minijangada as águas lentas e pesadas do rio Moth; pode umedecê-la e utilizá-la para lutar em um combate corpo a corpo; enrolá-la em torno da cabeça para proteger-se de emanações tóxicas ou para evitar o olhar da Terrível Besta Voraz de Traal (um animal estonteantemente burro, que acha que, se você não pode vê-lo, ele também não pode ver você - estúpido feito uma anta, mas muito, muito voraz); você pode agitar a toalha em situações de emergência para pedir socorro; e naturalmente pode usá-la para enxugar-se com ela se ainda estiver razoavelmente limpa.
Porém o mais importante é o imenso valor psicológico da toalha. Por algum motivo, quando um estrito (isto é, um não-mochileiro) descobre que um mochileiro tem uma toalha, ele automaticamente conclui que ele tem também escova de dentes, esponja, sabonete, lata de biscoitos, garrafinha de aguardente, bússola, mapa, barbante, repelente, capa de chuva, traje espacial, etc, etc. Além disso, o estrito terá prazer em emprestar ao mochileiro qualquer um desses objetos, ou muitos outros, que o mochileiro por acaso tenha "acidentalmente perdido". O que o estrito vai pensar é que, se um sujeito é capaz de rodar por toda a Galáxia, acampar, pedir carona, lutar contra terríveis obstáculos, dar a volta por cima e ainda assim saber onde está sua toalha, esse sujeito claramente merece respeito.
Daí a expressão que entrou na gíria dos mochileiros, exemplificada na seguinte frase: "Vem cá, você sancha esse cara dupal, o Ford Prefect? Taí um mingo que sabe onde guarda a toalha." (Sancha: conhecer, estar ciente de, encontrar, ter relações sexuais com; dupal: cara muito incrível; mingo: cara realmente muito incrível.) Bem enroladinho na toalha, dentro da mochila de Ford Prefect, o sensormático subeta começou a piscar mais depressa. Quilômetros acima da superfície do planeta, as enormes algumas coisas amarelas começaram a se espalhar. No observatório de Jodrell Bank, alguém resolveu que era hora de tomar um chá.
-Você tem uma toalha aí? - Ford perguntou a Arthur de repente. Arthur, lutando com seu terceiro caneco de chope, olhou ao redor.
- Uma toalha? Bem, não... por que, era pra eu ter? - Arthur havia desistido de sentir-se surpreso; pelo visto, não adiantava nada. Ford estalou a língua, irritado.
- Beba - insistiu.
Naquele momento, o ruído surdo de alguma coisa se espatifando, vindo da rua, misturou-se ao murmúrio de vozes dentro do bar, à música da jukebox e aos soluços do homem ao lado de Ford, para quem ele acabara pagando um uísque.
Arthur engasgou-se com a cerveja e pôs-se de pé num salto.
- O que foi isso? - gritou.
- Não se preocupe - disse Ford. - Eles ainda não começaram.
- Ainda bem - disse Arthur, relaxando.
- Deve ser só a sua casa sendo demolida - disse Ford, virando seu último chope.
- O quê? - berrou Arthur. De repente quebrou-se o encantamento que Ford lançara sobre ele. Arthur olhou ao redor, desesperado, e correu até a janela. — Meu Deus, é isso mesmo! Estão derrubando a minha casa. Que diabo eu estou fazendo aqui neste bar, Ford?
- A essa altura do, campeonato, não tem muita importância - disse Ford. - Deixe que eles se divirtam.
- Isso lá é diversão? - gritou Arthur. - Diversão!
Ele olhou de novo pela janela e constatou que ambos estavam falando sobre a mesma coisa.
- Diversão, o cacete! - berrou Arthur, e saiu correndo do bar furioso, brandindo uma caneca de chope quase vazia. Naquele dia, Arthur definitivamente não fez amigos no bar.
- Parem, seus vândalos! Destruidores de lares! - gritava Arthur. - Seus visigodos malucos, parem com isso!
Ford teria de ir atrás dele. Virou-se depressa para o barman e pediu-lhe quatro pacotes de amendoins.
- Tome aí - disse o barman, colocando os pacotes no balcão. - São 28
pence, por favor.
Ford foi generoso: deu ao homem mais uma nota de cinco libras e disse que ficasse com o troco. O barman olhou para a nota e depois para Ford. De repente estremeceu: teve momentaneamente uma sensação que não compreendeu, porque nenhum terráqueo jamais a experimentara antes. Em momentos de grande tensão, todas as formas de vida existentes emitem um pequeno sinal subliminar. Este sinal simplesmente comunica uma noção exata e quase patética do quanto a criatura em questão está longe de seu local de nascimento. Na Terra, nunca se pode estar a mais de 26 mil quilômetros do local de nascimento, uma distância não muito grande, na verdade, e portanto esses sinais são demasiadamente fracos para serem percebidos. Ford Prefect estava naquele momento sob grande tensão, e nascera a 600 anos-luz dali, perto de Betelgeuse.
O barman ficou desnorteado por um momento, atingido pela sensação chocante e incompreensível de distância. Ele não sabia o que significava aquilo, mas olhou para Ford Prefect com mais respeito, quase com reverência.
- O senhor está falando sério? - perguntou ele, sussurrando baixinho, o que -teve o efeito de fazer com que todos se calassem no bar. - O senhor acha que o mundo vai mesmo acabar?
- Vai - disse Ford.
- Mas hoje?
Ford havia se recuperado. Sentia-se mais irreverente do que nunca.
- É - disse, alegre -, daqui a menos de dois minutos, na minha opinião. O barman não conseguia acreditar na conversa que estava tendo, mas também não conseguia acreditar na sensação que acabara de experimentar.
- Podemos fazer algo a respeito?
- Não, nada - respondeu Ford, enfiando os amendoins no bolso. Alguém de repente soltou uma gargalhada no bar silencioso,
rindo da burrice de todos.
O homem ao lado de Ford já estava meio alto. Com esforço, focalizou os olhos em Ford.
- Eu pensava - disse ele - que quando o mundo acabasse todo mundo tinha que deitar no chão ou enfiar a cabeça num saco de papel, ou coisa parecida.
- Se você quiser, pode - disse Ford.
- Foi o que disseram pra gente no exército - disse o homem, e seus olhos começaram sua longa jornada de volta para o copo de uísque.
- Isso vai ajudar? - perguntou o barman.
- Não - disse Ford, com um sorriso simpático. - Com licença, tenho que ir embora - deu adeus e saiu.
O bar ainda permaneceu em silêncio por um instante, e depois o homem da gargalhada estrepitosa atacou de novo, deixando todos sem graça. A garota que ele arrastara até o bar meia hora antes já o detestava cordialmente a essa altura e provavelmente ficaria muito satisfeita se soubesse que, dentro de uns 90 segundos, ele iria se evaporar em um sopro de hidrogênio, ozônio e monóxido de carbono. Porém, quando chegasse a hora, ela também estaria ocupada demais se evaporando para se preocupar com isso.
O barman pigarreou. Quando se deu conta, estava dizendo o seguinte:
- Ültimos pedidos, por favor.
As enormes máquinas amarelas começaram a descer e a acelerar. Ford sabia que elas estavam vindo. Não era assim que ele queria voltar para o seu planeta.
Correndo pela alameda, Arthur já estava quase chegando em casa. Não percebeu como havia esfriado de repente, não percebeu o vento, não percebeu a chuva torrencial e irracional que começara a cair de repente. Só viu os tratores passando por cima dos destroços do que fora sua casa.
- Seus bárbaros! - gritou. - Vou processar o conselho municipal e arrancar deles até o último centavo! Vocês vão ser enforcados, arrastados e esquartejados1. E chicoteados! E cozidos em óleo fervente... até... até... até vocês não agüentarem mais.
Ford ainda estava correndo atrás dele, muito depressa. Muito, muito depressa.
- E depois tudo de novo! - gritou Arthur. - E quando terminar vou pegar todos os pedacinhos e pisar em cima deles!
Arthur não percebeu que os homens estavam correndo dos tratores, e também não percebeu que o Sr. Prosser olhava para o céu desesperado. O que o Sr. Prosser havia percebido era que as coisas amarelas enormes estavam atravessando as nuvens, ruidosamente. Coisas amarelas impossivelmente enormes.
- E vou continuar pulando neles - gritou Arthur, ainda correndo - até eu ficar cheio de bolhas, ou até eu pensar numa coisa ainda mais desagradável pra fazer, aí...
Arthur tropeçou e caiu para a frente, rolou e terminou deitado de costas no chão. Finalmente percebeu que estava acontecendo alguma coisa. Apontou para o céu.
- Que diabo é isso? - gritou
Fosse o que fosse, a coisa atravessou o céu com toda a sua monstruosidade amarela, rasgou o céu com um estrondo estonteante e sumiu na distância, deixando atrás de si um vácuo que se fechou com um bang! alto o suficiente para empurrar os ouvidos para dentro do cérebro. Outra coisa amarela veio em seguida e fez exatamente a mesma coisa, só
que ainda mais alto.
É difícil dizer exatamente o que as pessoas na superfície do planeta estavam fazendo agora, porque na verdade elas próprias não sabiam direito o que estavam fazendo. Nada fazia sentido - correr para dentro de casa, correr para fora de casa, gritar surdamente no meio da barulheira. Por todo o mundo, as ruas das cidades explodiam de gente, carros se enfiavam uns nos outros quando o barulho desabava sobre eles e depois se afastava, como um gigantesco maremoto sobre serras e vales, desertos e oceanos, parecendo achatar tudo aquilo que atingia.
Apenas um homem permanecia parado, olhando para o céu, com uma tristeza imensa nos olhos e protetores de borracha nos ouvidos. Ele sabia exatamente o que estava acontecendo, e já o sabia desde que seu sensormático subeta começara a piscar no meio da noite ao lado de seu travesseiro, fazendo-o acordar assustado. Era por isso que ele vinha esperando esses anos todos, mas quando decifrou os sinais, sozinho em seu pequeno quarto escuro, sentiu um frio no coração. De todas as raças existentes na Galáxia que podiam vir fazer uma visitinha ao planeta Terra, pensou ele, por que tinham que ser justamente os vogons?
Fosse como fosse, ele sabia o que tinha de fazer. Quando a nave vogon sobrevoou o lugar onde ele estava, Ford abriu sua mochila. Jogou fora um exemplar de José e a Extraordinária Túnica de Sonhos Tecnicolor e um exemplar de Godspell: ele não ia precisar daquilo no lugar para onde ia. Tudo estava pronto, tudo estava preparado.
Ele sabia onde estava sua toalha.
Um silêncio súbito tomou conta da Terra, talvez pior ainda que o barulho. Por algum tempo, não aconteceu nada.
As grandes espaçonaves pairavam imóveis no céu, sobre todas as nações da Terra. Pairavam imóveis, imensas, pesadas, completamente paradas no céu, uma blasfêmia contra a natureza. Muitas pessoas entraram em estado de choque quando suas mentes tentaram entender o que estavam vendo. As naves pairavam imóveis no céu da mesma forma como os tijolos não o fazem. E continuava não acontecendo nada.
Então ouviu-se um leve assobio, um súbito assobio espaçoso de fundo sonoro ao ar livre. Todos os aparelhos de som do mundo, todos os rádios, todas as televisões, todos os gravadores, todos os alto-falantes, de agudos, graves ou freqüências médias, em todo o mundo, silenciosamente se ligaram. Todas as latinhas, todas as latas de lixo, todas as janelas, todos os carros, todas as taças de vinho, todas as chapas de metal enferrujado, tudo foi ativado, funcionando como uma caixa de ressonância acusticamente perfeita. Antes de ser destruída, a Terra assistiria a uma demonstração da perfeição absoluta em matéria de reprodução sonora, o maior sistema de som jamais construído. Mas não se ouviu um concerto, nenhuma música, nenhuma fanfarra, e sim uma simples mensagem.
- Povo da Terra, atenção, por favor - disse uma voz, e foi maravilhoso. Som quadrafônico perfeito, com níveis de distorção tão baixos que o mais corajoso dos homens não conseguiria conter uma lágrima.
- Aqui fala Prostetnic Vogon Jeltz, do Conselho de Planejamento do Hiperespaço Galáctico -prosseguiu a voz. - Como todos vocês certamente já sabem, os planos para o desenvolvimento das regiões periféricas da Galáxia exigem a construção de uma via expressa hiperespacial que passa pelo seu sistema estelar e infelizmente o seu planeta é
um dos que terão de ser demolidos. O processo levará pouco menos de dois minutos terrestres. Obrigado.
O sistema de som voltou ao silêncio.
Um terror cego se apoderou de toda a população da Terra. O terror transmitia-se lentamente através das multidões, como se fossem limalhas de ferro sobre uma chapa de madeira e houvesse um ímã deslocando-se embaixo da madeira. Instaurou-se novamente o pânico, uma vontade desesperada de fugir, só que não havia para onde.
Observando o que estava acontecendo, os vogons ligaram o sistema de som outra vez. Disse a voz:
- Esta surpresa é injustificável. Todos os planos do projeto, bem como a ordem de demolição, estão em exposição no seu departamento local de planejamento, em Alfa do Centauro, há 50 dos seus anos terrestres, e portanto todos vocês tiveram muito tempo para apresentar qualquer reclamação formal, e agora é tarde demais para criar caso. O sistema de som foi desligado novamente e seu eco foi morrendo por todo o planeta. As naves imensas começaram a virar lentamente no céu, com facilidade. Na parte de baixo de cada nave abriu-se uma escotilha, um quadrado negro vazio.
A esta altura, alguém tinha conseguido ligar um transmissor de rádio, localizar uma freqüência e enviar uma mensagem às naves vogons, falando em nome do planeta. Ninguém jamais ouviu o que foi dito, apenas a resposta. O
imenso sistema de som voltou a transmitir. A voz estava irritada:
- Como assim, nunca estiveram em Alfa do Centauro? Ora bolas, humanidade, fica só a quatro anos-luz daqui] Desculpem, mas se vocês não se dão ao trabalho de se interessar pelas questões locais, o problema é de vocês. - Após uma pausa, disse: - Energízar os raios demolidores.
Das escotilhas saíram fachos de luz.
- Diabo de planeta apático - disse a voz. - Não dá nem pra ter pena. - E o sistema de som foi desligado.
Houve um silêncio terrível. Houve um ruído terrível. Houve um silêncio terrível.
A Frota de Construção Vogon desapareceu no negro espaço estrelado. Capítulo 4
Longe dali, no braço oposto da Galáxia, a uma distância de 500 mil anosluz da estrela Sol, Zaphod Beeblebrox, presidente do Governo Imperial Galáctico, navegava pelos mares de Damogran. Seu barco delta com drive iônico brilhava à luz do sol de Damogran.
Damogran, o quente; Damogran, o remoto; Damogran, o quase completamente desconhecido para todos.
Damogran, morada secreta da nave Coração de Ouro.
O barco deslizava rapidamente sobre a água. Ainda levaria algum tempo para chegar a seu destino, porque a geografia de Damogran não é nada prática. Consiste apenas em algumas ilhas desertas de ^tamanho médio a grande, separadas por oceanos de rara beleza, mas de uma vastidão chatíssima. O barco seguia em frente.
Devido a sua incômoda geografia, Damogran sempre foi um planeta deserto. Foi por isso que o Governo Imperial Galáctico escolheu Damogran para o projeto Coração de Ouro, porque o planeta era muito deserto e o projeto Coração de Ouro era muito secreto.
O barco deslizava rápido pela superfície do mar, o mar que separava as principais ilhas do único arquipélago de tamanho aproveitável em todo o planeta. Zaphod Beeblebrox vinha do pequeno cosmoporto da ilha da Páscoa (o nome era uma coincidência sem nenhum significado - em galactês, páscoa quer dizer pequeno, plano e castanho-claro) para a ilha do projeto Coração de Ouro, cujo nome era França, em mais uma coincidência sem nenhum significado. Um dos efeitos colaterais do projeto Coração de Ouro era uma série de coincidências sem significado.
Mas não era por coincidência que aquele dia, o dia da coroação do projeto, o grande dia do lançamento, o dia em que a nave Coração de Ouro seria finalmente revelada a uma Galáxia maravilhada, era também um dia muito especial para Zaphod Beeblebrox. Foi pensando nesse dia que ele havia decidido concorrer à Presidência, uma decisão que causou grande surpresa em toda a Galáxia Imperial - Zaphod Beeblebrox? Presidente? Não aquele Zaphod Beeblebrox? Ele, presidente?* Muitos encararam o fato como prova de que todo o universo havia afinal pirado completamente.
Zaphod sorriu e aumentou a velocidade do barco.
Zaphod Beeblebrox, aventureiro, ex-hippie, bon vivant, (trambiqueiro?, possivelmente) maníaco por autopromoção, péssimo em relacionamentos pessoais, freqüentemente considerado um doido varrido.
* Presidente: o nome oficial do cargo é presidente do Governo Imperial Galáctico. O termo Imperial é mantido embora seja atualmente um anacronismo. O imperador hereditário está quase morto) há muitos séculos. Nos últimos instantes de seu coma, ele foi colocado num campo de estase, que o mantém num estado de imutabilidade perpétua. Todos os seus herdeiros já morreram há muito tempo, o que significa que, sem ter havido nenhuma grande convulsão política, o centro do poder foi deslocado de forma simples e eficaz para escalões inferiores, sendo agora aparentemente atribuição de um órgão cujos membros antes atuavam como simples conselheiros do imperador - uma assembléia governamental eleita, chefiada por um presidente eleito por ela. Na verdade, não é aí que está o poder, em absoluto.
O presidente, em particular, é simplesmente uma figura pública: não detém nenhum poder. Ele é aparentemente escolhido pelo governo, mas as qualidades que ele deve exibir nada têm a ver com liderança. Ele deve é possuir um sutil talento para provocar indignação. Por esse motivo, o presidente é sempre uma figura polêmica, sempre uma personalidade irritante, porém fascinante ao mesmo tempo. Não cabe a ele exercer o poder, e sim desviar a atenção do poder. Com base nesses critérios, Zaphod Beeblebrox é
um dos melhores presidentes que a Galáxia já teve - pois já passou dois dos dez anos de seu mandato na cadeia, condenado por fraude. Pouquíssimas pessoas sabem que o presidente e o governo praticamente não têm nenhum poder, e, dessas pouquíssimas pessoas, apenas seis sabem onde é, de fato, exercido o verdadeiro poder político. A maioria das outras está convencida de que, em última instância, o poder é exercido por um computador. Elas não poderiam estar mais erradas.
Presidente?
Mas o universo não havia enlouquecido, pelo menos não em relação a isso.
Apenas seis pessoas em toda a Galáxia conheciam o princípio no qual se baseava o governo galáctico, e sabiam que, uma vez proclamada a intenção de Zaphod Beeblebrox de concorrer à Presidência, a coisa estava mais ou menos resolvida: ele tinha tudo para ser presidente.
O que elas realmente não entendiam era por que Zaphod resolvera se candidatar.
Zaphod deu uma guinada súbita com o barco, levantando um lençol d'água.
O dia havia chegado; o dia em que todos entenderiam quais haviam sido as intenções de Zaphod. Aquele dia era a razão de ser da presidência de Zaphod Beeblebrox. Era também o dia em que ele completava 200 anos de idade, mas isto era apenas mais uma coincidência sem qualquer significado. Enquanto seu barco atravessava os mares de Damogran, ele sorria de leve, pensando no dia maravilhoso e divertido que tinha pela frente. Relaxou os músculos e descansou os dois braços preguiçosamente no encosto, e ficou dirigindo o barco com um braço adicional que ele instalara recentemente embaixo de seu braço direito, para melhorar seu desempenho no esquiboxe.
- Sabe - cantarolou ele para si próprio -, você é realmente um cara incrível.
Mas seus nervos cantavam uma canção mais estridente do que um apito para chamar cachorro.
A ilha da França tinha cerca de 30 quilômetros de comprimento por nove de largura; era arenosa e em forma de crescente. Na verdade, dava a impressão de ser menos uma ilha propriamente dita do que uma simples maneira de definir o formato e a curvatura de uma grande baía. A impressão era ressaltada pelo fato de que a costa interior do crescente consistia apenas em penhascos íngremes. Do alto do penhasco, o terreno seguia um declive gradual até a costa oposta, nove quilômetros adiante.
No alto dos penhascos havia um comitê de recepção.
Era constituído basicamente de engenheiros e pesquisadores que haviam construído a nave Coração de Ouro - humanóides em sua maioria, mas havia um ou outro atomeiro reptilóide, dois ou três maximegalacticianos verdes silfóides, um ou dois fissucturalistas octópodes e um Huluvu (o Huluvu é uma tonalidade de azul superinteligente). Todos, com exceção do Huluvu, trajavam jalecos de laboratório de gala, multicoloridos e resplandecentes; o Huluvu fora temporariamente refratado num prisma capaz de ficar em pé, especialmente para a ocasião.
Havia um clima de enorme empolgação entre eles. Trabalhando em equipe, haviam atingido e ultrapassado os limites últimos das leis físicas, reestruturado a configuração fundamental da matéria, forçado, torcido e partido as leis das possibilidades e impossibilidades, mas apesar disso o que mais os entusiasmava era a oportunidade de conhecer um homem com uma faixa alaranjada«m volta do pescoço (o distintivo tradicional do presidente da Galáxia). Talvez até não fizesse muita diferença se eles soubessem exatamente quanto poder exercia o presidente da Galáxia: absolutamente nenhum. Apenas seis pessoas na Galáxia sabiam que a função do presidente não era exercer poder, e sim desviar a atenção do poder.
Zaphod Beeblebrox era surpreendentemente bom no seu trabalho. A multidão exultava, deslumbrada pelo sol e pela perícia do presidente, que fazia o barco contornar o promontório e entrar na baía. O barco brilhava ao sol, ao deslizar pela superfície em curvas abertas.
Na verdade, o barco não precisava encostar na água, já que ele se apoiava numa camada de átomos ionizados, mas para fazer efeito ele vinha equipado com umas quilhas finas que podiam ser baixadas para dentro d'água. Elas levantavam lençóis d'água no ar e rasgavam sulcos profundos no mar, que espumava na esteira do barco.
Zaphod adorava fazer efeitos: era sua especialidade.
Virou a roda do leme subitamente. A embarcação descreveu uma curva fechada bem rente ao penhasco e parou, balançando ao sabor das ondas suaves. Segundos depois, Zaphod já estava no tombadilho, acenando e sorrindo para mais de três bilhões de pessoas. Os três bilhões de pessoas não estavam fisicamente presentes, porém assistiam a tudo através dos olhos de uma pequena câmera-robô tridimensional, que pairava no ar ali perto, subserviente. As proezas do presidente faziam muito sucesso junto ao público: era para isso que elas serviam, mesmo.
Zaphod sorriu outra vez. Três bilhões e seis pessoas não sabiam, mas a proeza daquele dia seria mais incrível do que qualquer coisa que elas esperassem.
A câmera-robô aproximou-se para fazer um close da cabeça mais popular (ele tinha duas) do presidente, e ele acenou outra vez. Sua aparência era mais ou menos humanóide, afora a segunda cabeça e o terceiro braço. Seus cabelos claros e despenteados apontavam para todas as direções, seus olhos azuis brilhavam com um sentido absolutamente incompreensível e seus queixos estavam quase sempre com a barba por fazer.
Um globo transparente de sete metros de altura flutuava ao lado de seu barco, balançando as ondas, brilhando ao sol. Dentro dele flutuava um amplo sofá semicircular, estofado com um esplêndido couro vermelho. Quanto mais o globo balançava, mais o sofá permanecia completamente imóvel, como se fosse um rochedo transformado em sofá. Mais uma vez, o objetivo principal daquilo era fazer efeito.
Zaphod atravessou a parede do globo e refestelou-se no sofá. Pôs dois braços sobre o encosto do sofá, e com o terceiro espanou um pouco de poeira que tinha no joelho. Suas cabeças olharam ao redor, sorridentes; pôs os pés sobre o sofá. "Se não conseguisse se conter, ia começar a gritar", pensou ele. Debaixo da bolha a água fervia, subia, esguichava. A bolha elevava-se no ar, balançando-se na coluna de água. Subia mais e mais, refletindo raios de sol em direção ao penhasco. Subia impulsionada pela água que esguichava debaixo dela e caía de volta na superfície do mar, dezenas e dezenas de metros abaixo. Zaphod sorriu, imaginando o efeito visual.
Um meio de transporte absolutamente ridículo, porém belíssimo. No alto do penhasco o globo parou por um instante, pousou numa rampa gradeada, rolou até uma pequena plataforma côncava e lá parou, por fim.
Aplaudido entusiasticamente, Zaphod Beeblebrox saiu da bolha. Sua faixa alaranjada brilhava ao sol.
O presidente da Galáxia havia chegado.
Esperou que os aplausos morressem e levantou a mão, saudando a multidão.
- Oi - disse.
Uma aranha do governo chegou-se até ele e tentou lhe entregar uma cópia de seu discurso previamente preparado. As páginas 3 a 7 da versão original estavam naquele momento flutuando no mar de Damogran, a uns dez quilômetros da baía. As páginas 1 e 2 haviam sido encontradas por uma águiade-crista-frondosa de Damogran e já haviam sido incorporadas a um novo e extraordinário tipo de ninho que a águia inventara. Era construído basicamente de papier mâché, e era praticamente impossível para um filhote de águia recémsaído do ovo escapar de dentro dele. A águia-de-crista-frondosa de Damogran
ouvira vagamente falar de luta pela sobrevivência da espécie, mas não queria nem saber dessa história.
Zaphod Beeblebrox não ia precisar de seu discurso preparado e delicadamente recusou a cópia oferecida pela aranha.
- Oi - repetiu.
Todo mundo sorriu para ele, ou pelo menos quase todo mundo. Viu Trillian no meio da multidão. Era uma garota que Zaphod conhecera recentemente ao visitar um planeta, incógnito, como turista. Era esguia, morena, humanóide, com longos cabelos negros e ondulados, uma boca carnuda, um narizinho estranho e saliente e olhos ridiculamente castanhos. Seu lenço de cabelo vermelho, amarrado de modo diferente, e seu vestido longo e leve de seda marrom lhe davam uma aparência vagamente árabe. Não que ninguém ali jamais tivesse ouvido falar nos árabes, claro. Os árabes haviam deixado de existir muito recentemente, e mesmo no tempo em que eles existiam estavam a 500 mil anos-luz de Damogran. Trillian não era ninguém em particular, ou pelo menos era isso que Zaphod dizia. Ela simplesmente andava muito com ele e lhe dizia o que pensava a seu respeito.
- Oi, meu bem - disse para ela.
Ela lhe dirigiu um sorriso rápido e tenso e desviou o olhar. Então olhou novamente para ele por um momento e sorriu de forma mais calorosa - mas agora ele já estava olhando para outro lado.
- Oi - disse para um pequeno grupo de criaturas da imprensa, que estava a pouca distância dali, ansioso para que parasse de dizer "oi" e começasse logo a dizer coisas que eles pudessem publicar.
Zaphod sorriu, pensando que dentro de alguns instantes ia dar a eles coisas muito interessantes, mas muito interessantes, mesmo, para publicar. Porém o que ele disse em seguida não interessou muito às criaturas da imprensa. Um dos funcionários do partido concluíra, irritado, que o presidente obviamente não estava a fim de ler o discurso fascinante que havia sido preparado para ele, e acionara um interruptor no controle remoto que tinha no bolso. Ao longe, uma enorme cúpula branca que se destacava contra o céu rachou ao meio, abriu-se e foi lentamente dobrando-se sobre o chão. Todos ficaram boquiabertos, embora soubessem perfeitamente que aquilo ia acontecer, já que eles próprios haviam construído a cúpula.
Embaixo dela havia uma imensa espaçonave, de 150 metros de comprimento, esguia como um tênis de corrida, perfeitamente branca e estonteantemente bonita. Bem no centro dela, invisível para quem olhava de fora, havia uma pequena caixa de ouro que continha o aparelho mais alucinante jamais concebido em toda a Galáxia, o qual deu o nome à nave - o Coração de Ouro.
- Uau! - disse Zaphod Beeblebrox ao ver a nave Coração de Ouro. Também, não tinha outra coisa a dizer.
E repetiu, porque sabia que isso ia irritar a imprensa:
-Uaul
Toda a multidão virou-se para ele, cheia de expectativa. Zaphod piscou o olho para Trillian, que alçou as sobrancelhas e arregalou os olhos para ele. Ela sabia o que ele ia dizer agora, e achava-o muito exibido.
- É realmente incrível - disse Zaphod. - É realmente incrivelmente incrível. É tão incrivelmente incrível que acho que estou com vontade de roubála. Uma maravilhosa frase presidencial, absolutamente apropriada. A multidão riu, satisfeita, os jornalistas apertaram os botões de suas repormáticas subeta e o presidente sorriu.
Enquanto sorria, seu coração batia desesperadamente e seus dedos tateavam a pequena bomba paralisomática que trazia no bolso. De repente, não agüentou mais. Virou ambos os rostos para o céu, soltou um tremendo grito, formando um acorde de terceira maior, jogou a bomba no chão e saiu correndo por entre aqueles rostos sorridentes imobilizados. Capítulo 5
Prostetnic Vogon Jeltz não era bonito de se ver. Nem outros vogons gostavam de olhar para ele. Seu nariz alto e abobadado elevava-se acima de uma testa estreita e porcina. Sua pele verde-escura e borrachuda era grossa o suficiente para permitir-lhe jogar - e bem - o jogo da política do funcionalismo público vogon, e tão resistente à água que lhe permitia sobreviver por períodos indefinidamente longos no fundo do mar a profundidades de 300 metros, sem qualquer efeito negativo.
O que não significa que ele sequer houvesse nadado algum dia, é claro. Não tinha tempo para isso. Ele era do jeito que era porque, há bilhões de>anos, quando os vogons pela primeira vez saíram dos mares primevos da Vògsfera e foram arfar nas praias virgens do planeta, quando os primeiros raios do jovem e forte Vogsol os atingiu naquela manhã, foi como se as forças da evolução houvessem simplesmente desistido deles, virado para o outro lado, cheias de aversão, considerando-os um erro infeliz e repulsivo. Nunca mais os vogons evoluíram: não deviam sequer ter sobrevivido.
Se sobreviveram, isto se deveu à teimosia e à força de vontade dessas criaturas de raciocínio preguiçoso. Evolução?, pensavam elas. Evolução pra quê? E
o que a natureza se recusou a fazer por eles ficou por isso mesmo, até que pudessem consertar as grosseiras inconveniências anatômicas através da cirurgia.
Enquanto isso, as forças naturais do planeta Vogsfera estavam trabalhando mais do que nunca, fazendo hora extra para compensar o erro anterior. Criaram caranguejos ágeis, cobertos de jóias cintilantes, que os vogons comiam, quebrando suas carapaças com marretas de ferro; árvores altas, extraordinariamente esguias e coloridas, que os vogons derrubavam e queimavam para cozinhar a carne dos caranguejos; criaturas elegantes, semelhantes a gazelas, de pêlos sedosos e olhos orva-lhados, que os vogons capturavam para sentar em cima. Elas não serviam como meio de transporte porque suas espinhas partiam-se imediatamente, mas os vogons sentavam-se em cima delas assim mesmo.
Assim, o planeta Vogsfera atravessou tristes milênios até que os vogons descobriram de repente os princípios do transporte interestelar. Poucos anos vogs depois, todos os vogons já haviam migrado para o aglomerado de Megabrantis, o centro político da Galáxia, e agora constituíam a poderosíssima espinha dorsal do funcionalismo público da Galáxia. Tentaram adquirir cultura, tentaram adquirir estilo e boas maneiras, mas sob quase todos os aspectos o vogon moderno pouco difere de seus ancestrais primitivos. Todo ano eles importam 27 mil caranguejos cintilantes de seu planeta nativo e passam muitas noites divertidas bebendo e esmigalhando caranguejos com marretas de ferro. Prostetnic Vogon Jetz era um vogon mais ou menos típico, já que era absolutamente vil. Além disso, não gostava de mochileiros. Em uma pequena e escura cabine nas entranhas mais profundas da nave capitania de Prostetnic Vogon Jetz, um fósforo acendeu-se nervosamente. O
dono do fósforo não era um vogon, mas sabia tudo sobre os vogons, e tinha toda razão de estar nervoso. Chamava-se Ford Prefect.*
Olhou ao redor, mas não dava para ver quase nada; sombras estranhas e monstruosas formavam-se e tremiam à luz bruxuleante do fósforo, mas o silêncio era completo. Silenciosamente, Ford agradeceu aos dentrassis. Os dentrassis são uma tribo indisciplinada de gourmands, um povo selvagem, porém simpático. Recentemente vinham sendo empregados pelos vogons como comissários de bordo em suas viagens mais longas, sob a condição de que ficassem na deles.
Os dentrassis achavam isto ótimo, porque adoravam o dinheiro vogon, que é uma das moedas mais sólidas do espaço, porém detestavam os vogons. Os dentrassis só gostavam de ver um vogon quando ele estava chateado. Graças a esse pequeno detalhe, Ford Prefect não fora transformado numa nuvenzinha de hidrogênio, ozônio e monóxido de carbono.
Ford ouviu um leve gemido. À luz do fósforo, viu uma forma pesada mexendo-se no chão. Rapidamente apagou o fósforo, pôs a mão no bolso, encontrou o que procurava e tirou-o do bolso. Abriu o pacote e sacudiu-o. Ajoelhou-se. A forma mexeu-se de novo. Foi;d Prefect disse:
-
Eu trouxe uns amendoins.
* O nome original de Ford Prefect só é pronunciável num obscuro dialeto betelgeusiano, hoje em dia praticamente extinto, devido ao Grande Desastre Hrung do Ano/Gal./Sid. 03578, que dizimou todas as antigas comunidades praxibetelenses de Betelgeuse VII. O pai de Ford foi o único homem em todo o planeta a sobreviver ao Grande Desastre Hrung, devido a uma extraordinária coincidência que ele jamais conseguiu explicar de modo satisfatório. Todo o episódio está envolto em mistério: na verdade, ninguém jamais descobriu o que era um Hrung e por que ele resolveu cair em cima de Betelgeuse VII em particular. O pai de Ford, magnânimo, ignorou as nuvens de suspeita que naturalmente se formaram em torno dele e foi morar em Betelgeuse V, onde se tornou ao mesmo tempo pai e tio de Ford; em memória de seu povo agora extinto, deu- lhe um nome no antigo idioma praxibetelense.
Como Ford jamais aprendeu a dizer seu nome original, seu pai terminou morrendo de vergonha, coisa que ainda é uma doença fatal em certas regiões da Galáxia. Na escola, seus colegas o apelidaram de Ix, o que no idioma de Betelgeuse II quer dizer
"menino que não sabe explicar direito o que é um Hrung nem por que ele resolveu cair em cima de Betelgeuse VII".
Arthur Dent mexeu-se e gemeu de novo, produzindo sons incoerentes.
-Tome, coma um pouco - insistiu Ford, sacudindo o pacote.
- Se você nunca passou antes por um raio de transferência de matéria, você deve ter perdido sal e proteína. A cerveja que você tomou deve ter protegido um pouco seu organismo.
- Rrrrr... - disse Arthur Dent. Abriu os olhos. - Está escuro.
- É - disse Ford Prefect -, está escuro, sim.
- Luz nenhuma - disse Arthur Dent. - Escuro, completamente. Uma das coisas que Ford Prefect jamais conseguiu entender
em relação aos seres humanos era seu hábito de afirmar e repetir continuamente o óbvio mais óbvio, coisas do tipo Está um belo dia, ou Como você
é alto, ou Ah, meu Deus, você caiu num poço de dez metros de profundidade, você está
bem?. De início, Ford elaborou uma teoria para explicar esse estranho comportamento. Se os seres humanos não ficarem constantemente utilizando seus lábios - pensou ele -, eles grudam e não abrem mais. Após pensar e observar por alguns meses, abandonou essa teoria em favor de outra: se eles não ficarem constantemente exercitando seus lábios - pensou ele -, seus cérebros começam a funcionar. Depois de algum tempo, abandonou também esta teoria, por achá-la demasiadamente cínica, e concluiu que, na verdade, gostava muito dos seres humanos. Contudo, sempre ficava muitíssimo preocupado ao constatar como era imenso o número de coisas que eles desconheciam.
- É - concordou Ford -, nenhuma luz. - Deu uns amendoins a Arthur e perguntou-lhe: - Como é que você está se sentindo?
- Que nem numa academia militar, em posição de sentido -disse Arthur. - A toda hora, um pedacinho de mim desmaia.
Ford, sem entender, arregalou os olhos na escuridão.
- Se eu lhe perguntasse em que diabo de lugar a gente está
- perguntou Arthur, hesitante -, eu me arrependeria de ter feito esta pergunta?
- Estamos a salvo - disse Ford, levantando-se.
- Ah, bom.
- Estamos dentro de uma pequena cabine de uma das espaçonaves da Frota de Construção Vogon.
- Ah - disse Arthur. - Pelo visto, você está empregando a expressão "a salvo" num sentido estranho que eu não conheço.
Ford acendeu outro fósforo para tentar encontrar um interruptor de luz. Novamente surgiram sombras monstruosas. Arthur pôs-se de pé e abraçou seus próprios ombros, apreensivo. Formas alienígenas horríveis pareciam cercá-lo; o ar estava cheio de odores rançosos que entravam em seus pulmões sem terem sido identificados, e um zumbido grave e irritante impedia que ele concentrasse sua atenção.
- Como é que viemos parar aqui? - perguntou, tremendo um pouco.
- Pegamos uma carona - disse Ford.
- Espere aí! - disse Arthur. - Você está me dizendo que a gente levantou o polegar e algum monstrinho verde de olhos esbugalhados pôs a cabeça pra fora e disse: Oi, gente, entrem aí que eu deixo vocês na saída do viaduto?
- Bem - disse Ford -, o polegar na verdade é um sinalizador eletrônico subeta, e a saída do viaduto, no caso, é a estrela de Barnard, a seis anos-luz da Terra; mas no geral é mais ou menos isso.
- E o monstrinho de olhos esbugalhados?
- É verde, sim.
- Tudo bem - disse Arthur -, mas quando eu vou voltar para casa?
- Não vai - disse Ford Prefect, e encontrou o interruptor. - Proteja os olhos... - acrescentou, e acendeu a luz.
Até mesmo Ford ficou surpreso.
- Minha nossa! - disse Arthur. - Estamos mesmo dentro de um disco voador?
Prostetnic Vogon Jeltz contornou com seu corpo verde e desagradável a ponte de comando da nave. Sempre se sentia vagamente irritado após demolir planetas povoados. Desejou que alguém viesse lhe dizer que estava tudo errado, pois aí ele poderia dar uma bronca e se sentir melhor. Jogou-se com todo o peso no seu banco na esperança de que ele quebrasse, dando-lhe um bom motivo para se irritar, mas o banco limitou-se a ranger, como se reclamasse.
-Vá embora! - gritou ele para um jovem guarda vogon que entrava naquele instante na ponte de comando.
O guarda desapareceu imediatamente, um tanto aliviado. Assim, não seria ele quem teria de dar a notícia que acabava de ser recebida. Era um despacho oficial informando que um novo tipo maravilhoso de espaçonave estava sendo lançado naquele instante num centro de pesquisas do governo em Damogran que tornaria desnecessárias todas as vias expressas hiperespaciais. Outra porta abriu-se, mas dessa vez o capitão vogon não gritou, porque era a porta que dava para a cozinha, onde os dentrassis trabalhavam. Uma refeição agora seria ótima idéia.
Uma enorme criatura peluda entrou com uma bandeja e um sorriso de maluco.
Prostetnic Vogon Jeltz ficou contente. Sabia que quando um dentrassi estava sorridente daquele jeito era porque havia alguma coisa acontecendo na nave que lhe daria um pretexto para ficar irritadíssimo.
Ford e Arthur olhavam ao redor.
- Bem, o que você acha? - perguntou Ford.
- Meio bagunçado, não é?
Ford olhou contrafeito para os colchões encardidos, copos sujos e roupas de baixo malcheirosas de alienígenas espalhadas pela cabine apertada.
- Bem, isso aqui é uma nave de serviço - disse Ford. - Estamos numa das cabines dos dentrassis.
- Mas não eram vogons ou coisa parecida?
- É - disse Ford. - Os vogons mandam, os dentrassis cozinham. Foram eles que nos deram carona.
- Estou meio confuso - disse Arthur.
- Dê uma olhada nisso - disse Ford, sentando-se num dos colchões e mexendo em sua mochila.
Arthur apalpou o colchão nervosamente e depois sentou-se também: na verdade, não havia motivo para ficar nervoso, já que todos os colchões cultivados nos pântanos de Sqornshel-lous Zeta são muito bem mortos e ressecados antes de serem utilizados. É muito raro um desses colchões voltar à
vida.
Ford deu o livro a Arthur.
- Que é isso? - perguntou Arthur.
- O Guia do Mochileiro das Galáxias. É uma espécie de livro eletrônico. Tem tudo sobre todos os assuntos. Informa sobre qualquer coisa. Arthur revirou nervosamente o aparelho.
- Gostei da capa - disse ele. - Não entre em pânico. Foi a primeira coisa sensata e inteligível que me disseram hoje.
- Eu lhe mostro como funciona - disse Ford. Pegou o livro das mãos de Arthur, que continuava a segurá-lo como se fosse um pássaro morto há duas semanas, e tirou-o de dentro da capa.
- Aperte esse botão aqui que a tela acende e aparece o índice. Uma tela de cerca de oito por dez centímetros iluminou-se
e começaram aparecer caracteres em sua superfície.
- Você quer saber sobre os vogons. Então é só digitar "vo-gon", assim. - Ford apertou umas teclas. - Veja.
As palavras Frota de Construção Vogon apareceram em letras verdes. Ford apertou um grande botão vermelho embaixo da tela e um texto começou a correr por ela, ao mesmo tempo que uma voz calma e controlada ia lendo o que estava escrito:
"Frota de Construção Vogon. Você quer pegar carona com vogons? Pode desistir. Trata-se de uma das raças mais desagradáveis da Galáxia. Não chegam a ser malévolos, mas são mal-humorados, burocráticos, intrometidos e insensíveis. Seriam incapazes de levantar um dedo para salvarem suas próprias avós da Terrível Besta Voraz de Traal sem antes receberem ordens expressas através de um formulário em três vias, enviá-lo, devolvê-lo, pedi-lo de volta, perdê-lo, encontrá-lo de novo, abrir um inquérito a respeito, perdê-lo de novo e finalmente deixá-lo três meses sob um monte de turfa, para depois reciclá-lo como papel para acender fogo. A melhor maneira de conseguir que um vogon lhe arranje um drinque é enfiar o dedo na garganta dele, e a melhor maneira de irritá-lo é alimentar a Terrível Besta Voraz de Traal com a avó dele.
Jamais, em hipótese alguma, permita que um vogon leia poemas para você." Arthur ficou olhando para a tela.
- Que livro esquisito. Então como foi que pegamos essa carona?
- É justamente essa a questão. O livro está desatualizado -disse Ford, guardando-o dentro da capa. - Estou fazendo uma pesquisa de campo pra nova edição revista e aumentada, e uma das coisas que eu vou ter que fazer é
mencionar que agora os vogons estão empregando dentrassis como cozinheiros, o que facilita as coisas pra nós.
Uma expressão contrariada surgiu no rosto de Arthur.
- Mas quem são esses dentrassis?
- Gente finíssima - disse Ford. - São disparado os melhores cozinheiros e os melhores preparadores de drinques, e estão se lixando pra todo o resto. E
sempre dão carona pras pessoas, em parte porque gostam de companhia, mas acima de tudo para irritar os vogons. O que é exatamente o tipo de coisa que você precisa saber se é um mochileiro sem muita grana a fim de ver as maravilhas do Universo por menos de 30 dólares altairenses por dia. Meu trabalho é esse. Divertido, não é? Arthur parecia perdido.
- É incrível - disse, olhando de testa franzida para um dos outros colchões.
- Infelizmente, fiquei parado na Terra bem mais tempo do que eu pretendia - prosseguiu Ford. - Fui passar uma semana e acabei preso lá por 15
anos.
- Mas como foi que você chegou lá?
- Foi fácil, peguei carona com um gozador.
- Um gozador? -É.
- Mas... que é um...?
- Gozador? Normalmente é um filho de papai rico que não tem o que fazer. Fica zanzando por aí procurando planetas que ainda não fizeram nenhum contato interestelar e vai lá pirar as pessoas.
- Pirar as pessoas? - Arthur começou a pensar que Ford estava gostando de complicar a vida para ele.
- É - disse Ford -, fica pirando as pessoas. Vai a um lugar bem isolado onde tem pouca gente, aí pousa ao lado de um pobre infeliz em que ninguém jamais vai acreditar e fica andando na frente dele, com umas antenas ridículas na cabeça, fazendo bip-bip e outros ruídos engraçados. Realmente, uma tremenda criancice. - Ford recostou-se no colchão, apoiando a cabeça nas mãos; aparentava estar irritantemente satisfeito consigo mesmo.
- Ford - insistiu Arthur -, não sei se minha pergunta é idiota, mas o que é
que eu estou fazendo aqui?
- Bem, isso você sabe - disse Ford -, eu salvei você da Terra.
- E o que aconteceu com a Terra?
- Ah. Ela foi demolida.
- Ah, sei - disse Arthur, controlado.
- Pois é. Foi simplesmente vaporizada.
- Escute - disse Arthur -, estou meio chateado com essa notícia. Ford franziu a testa, e pareceu estar pensando.
- É, eu entendo - disse, por fim.
- Eu entendo! - gritou Arthur. - Eu entendo! Ford pôs-se de pé num salto.
- Olhe para o livro - insistiu ele.
- O quê?
- Não entre em pânico.
- Não estou entrando em pânico!
- Está, sim.
- Está bem, estou. O que você quer que eu faça?
- Venha comigo e se divirta. A Galáxia é um barato. Só que você vai ter que pôr esse peixe no ouvido.
- Que diabos você quer dizer? - perguntou Arthur, de modo bastante delicado, pensou ele.
Ford mostrou-lhe um pequeno vidro que continha um peixinho amarelo, que nadava de um lado para o outro. Arthur olhou para ele, sem entender. Queria que houvesse alguma coisa simples e compreensível para que ele pudesse se situar. Ele se sentiria melhor se, juntamente com a roupa de baixo dos dentrassis, as pilhas de colchões de Sqornshellous e o homem de Betelgeuse que lhe oferecia um peixinho amarelo para colocar no ouvido, ele pudesse ver ao menos um pacotinho de flocos de milho. Mas ele não podia; logo, ele sentiase perdido. De repente ouviu-se um ruído violento, vindo de um lugar que Arthur não conseguiu identificar. Ficou horrorizado com aquele barulho, que parecia um homem tentando gargarejar e lutar contra toda uma alcatéia de lobos ao mesmo tempo.
- Pss! - disse Ford. - Escute, pode ser importante.
- Im... importante?
- É o comandante da nave dando um aviso.
- Quer dizer que é assim que os vogons falam?
- Escute!
- Mas eu não sei falar vogon!
- Não precisa. É só pôr esse peixe no ouvido.
Ford, com um gesto rápido, levou a mão ao ouvido de Arthur, que teve de repente a desagradável sensação de que um peixe estava se enfiando em seu conduto auditivo. Horrorizado, ficou cocando o ouvido por uns instantes, mas aos poucos seu rosto foi assumindo uma expressão maravilhada. Estava tendo uma experiência auditiva equivalente a ver uma representação de duas silhuetas negras e de repente passar a entendê-la como um candelabro branco, ou de olhar para um monte de pontos coloridos e de repente ver neles o número seis, o que significa que seu oculista vai cobrar uma nota preta para você trocar as lentes dos óculos.
Arthur continuava ouvindo aquela mistura de gritos e gar-garejos, só
que de repente aquilo de algum modo havia se tornado perfeitamente inteligível.
Eis o que ele ouviu...
Capítulo 6
Grito grito gargarejo grito gargarejo grito grito grito gar-garejo grito gargarejo grito grito gargarejo gargarejo pito gargarejo gargarejo gargarejo grito slurpt aaaaaaargh se divertindo. Repetindo mensagem. Aqui fala o comandante desta nave, por isso parem de fazer o que estiverem fazendo e prestem atenção. Em primeiro lugar, nossos instrumentos acusam a presença de dois mochileiros a bordo. Oi; mochileiros, onde quer que estejam. Eu gostaria de deixar bem claro que vocês não são em absoluto bem-vindos a bordo. Eu trabalhei duro para chegar aonde estou hoje e não virei comandante de uma nave de construção vogon apenas pra servir de táxi para aproveitadores degenerados. Enviei uma equipe de busca e assim que vocês forem encontrados serão expulsos da nave. Se tiverem muita sorte, lerei pra vocês alguns dos meus poemas primeiro.
"Em segundo lugar, estamos prestes a saltar para o hiperespaço e seguir rumo à estrela de Barnard. Ao chegar lá, vamos ficar na oficina durante 72
horas para reparos e ninguém sairá da nave durante este período. Repito: todas as licenças de desembarque estão canceladas. Acabo de sofrer uma desilusão amorosa. Logo, não quero ver ninguém se divertindo. Fim da mensagem." O ruído cessou.
Arthur constatou, envergonhado, que estava deitado no chão, todo encolhido, feito uma bola, com os braços apertados em torno da cabeça. Sorriu, meio sem graça.
- Sujeito encantador - disse ele. - Gostaria de ter uma filha, só pra proibir que ela se casasse com um deles...
- Não seria preciso - disse Ford. - Os vogons têm menos sex appeal que um desastre de carro. Não, não se mexa - acrescentou quando Arthur começou a se esticar. - É melhor ficar assim mesmo para se preparar pra entrar no hiperespaço. É uma sensação desagradável, como uma bebida.
- O que há de desagradável em uma bebida?
- Pergunte como um copo d'água se sente. Arthur pensou um pouco.
- Ford.
- Que é?
- O que é que esse peixe está fazendo no meu ouvido?
- Está traduzindo pra você. É um peixe-babel. Consulte o livro, se quiser. Jogou o Guia do Mochileiro para Arthur e depois encolheu-se todo, em posição fetal, preparando-se para o salto para o hiperespaço. Nesse instante, o cérebro de Arthur se abriu em dois.
Seus olhos viraram-se do avesso. Seus pés começaram a escorrer do topo do crânio.
A cabine ao seu redor achatou-se, rodopiou, desapareceu, fazendo com que Arthur fosse chupado para dentro de seu próprio umbigo. Estavam passando pelo hiperespaço.
"O peixe-babel", disse O Guia do Mochileiro das Galáxias, baixinho, "é
pequeno, amarelo e semelhante a uma sanguessuga, e é provavelmente a criatura mais estranha em todo o Universo. Alimenta-se de energia mental, não daquele que o hospeda, mas das criaturas ao redor dele. Absorve todas as freqüências mentais inconscientes desta energia mental e se alimenta delas, e depois expele na mente de seu hospedeiro uma matriz telepática formada pela combinação das freqüências mentais conscientes com os impulsos nervosos captados dos centros cerebrais responsáveis pela fala do cérebro que os emitiu. Na prática, o efeito disto é o seguinte: se você introduz no ouvido um peixe-babel, você compreende imediatamente tudo o que lhe for dito em qualquer língua. Os padrões sonoros que você ouve decodificam a matriz de energia mental que o seu peixe-babel transmitiu para sua mente.
"Ora, seria uma coincidência tão absurdamente improvável que um ser tão estonteantemente útil viesse a surgir por acaso, por meio da evolução das espécies, que alguns pensadores vêem no peixe-babel a prova definitiva da inexistência de Deus.
"O raciocínio é mais ou menos o seguinte: 'Recuso-me a provar que eu existo', diz Deus, 'pois aprova nega a fé, e sem fé não sou nada.'
"Diz o homem: 'Mas o peixe-babel é uma tremenda bandeira, não é? Ele não poderia ter evoluído por acaso. Ele prova que você existe, e portanto, conforme o que você mesmo disse, você não existe. QED*.'
"Então Deus diz: 'Ih, não é que eu não tinha pensado nisso?' E imediatamente desaparece, numa nuvenzinha de lógica.
"'Puxa, como foi fácil', diz o homem, e resolve aproveitar e provar que o preto é
branco, mas é atropelado ao atravessar fora da faixa de pedestres.
"A maioria dos teólogos acha que este argumento é uma asneira, mas foi com base nela que Oolon Colluphid fez uma fortuna, usando-a como tema central de seu best-seller Sai Dessa, Deus.
"Enquanto isso, o pobre peixe-babel, por derrubar os obstáculos à comunicação entre os povos e culturas, foi o maior responsável por guerras sangrentas, em toda a história da criação."
Arthur gemeu baixinho. Horrorizou-se ao constatar que a passagem pelo hiperespaço não o matara. Agora estava a seis anos-luz do lugar onde se encontraria a Terra, se ela ainda existisse.
*Do latim quod emt demonstrandum (como queremos demonstrar). (N.T.) A Terra.
Visões de seu planeta flutuavam em sua mente nauseada. Não havia como apreender com sua imaginação a idéia de que toda a Terra deixara de existir, era uma idéia grande demais. Testou seus sentimentos, pensando que seus pais e sua irmã não existiam mais. Nenhuma reação. Pensou em todas as pessoas que conhecera bem. Nenhuma reação. Então pensou num estranho que estivera parado atrás dele na fila do supermercado, dois dias antes, e de repente sentiu uma pontada - o supermercado deixara de existir, com todos que estavam dentro dele. A Coluna de Nelson havia desaparecido! Havia desaparecido e não haveria uma comoção popular, porque não restava ninguém para fazer uma comoção. Dali em diante, a Coluna de Nelson só
existia em sua mente. A Inglaterra só existia em sua mente - a qual estava enfiada naquela cabine úmida e fedorenta, numa espaçonave de metal. Sentiuse invadido por uma onda de claustrofobia. A Inglaterra não existia mais. Isso ele já entendia - de algum modo conseguira entender. Tentou de novo: a América não existe mais. Não conseguia entender isso. Resolveu começar com coisas pequenas, de novo. Nova York não existia mais. Nenhuma reação. Na verdade, no fundo ele nunca acreditara mesmo na existência de Nova York. "O dólar", pensou ele, "caiu completamente." Isso lhe provocou um pequeno tremor. "Todos os filmes de Humphrey Bogart desapareceram", pensou ele, e esta idéia lhe causou um choque desagradável. "O McDonalds", pensou. "Não existe mais nenhum Big Mac."
Desmaiou. Quando voltou a si, um segundo depois, chorava, chamando sua mãe.
De repente, pôs-se de pé, com um gesto violento.
- Ford!
Ford, que estava sentado num canto da cabine, cantarolando, olhou para ele. A parte da viagem em que a nave só se deslocava no espaço sempre lhe parecera muito chata.
- Que foi? - perguntou ele.
- Se você está fazendo pesquisa pra esse livro e se você esteve na Terra, então você deve ter algum material sobre a Terra.
- É, deu pra aumentar um pouco o verbete original, sim.
- Deixe-me ver o que estava nessa edição, tenho que ver.
- Está bem. - Estendeu o livro a Arthur de novo.
Arthur segurou o livro, tentando fazer com que suas mãos parassem de tremer. Apertou o botão da página que o interessava. A tela iluminou-se, piscou e exibiu uma página. Arthur ficou olhando para ela.
- Não tem nadai - exclamou.
Ford olhou por cima do ombro de Arthur.
- Tem sim. Olhe lá embaixo, logo abaixo de T. Eccentrica Gallumbits, a prostituta de três seios de Eroticon 6.
Arthur seguiu com o olhar o dedo de Ford e viu para onde ele apontava. Por um momento, ficou sem entender; de repente, sua mente quase explodiu.
- O quê? Inofensiva? Só diz isso, mais nada? Inofensiva! Uma única palavra!
Ford deu de ombros.
- Bem, tem 100 bilhões de estrelas na Galáxia, e os microprocessadores do livro são limitados - disse ele. - Além disso, ninguém sabia muita coisa a respeito da Terra, é claro.
- Bem, eu espero que você tenha melhorado um pouco essa situação.
- Ah, sim, consegui transmitir um novo verbete pra redação. Tiveram que resumir um pouco, mas de qualquer modo melhorou.
- E o que diz o verbete agora? - perguntou Arthur.
- Praticamente inofensiva -disse Ford, com um pigarro, para disfarçar seu constrangimento.
- Praticamente inofensiva! -gritou Arthur.
- Que barulho foi esse? - sussurrou Ford.
- Era eu gritando - falou Arthur.
- Não! Cale a bocal Acho que estamos em maus lençóis.
- Tremenda novidade!
Ouvia-se lá fora o ruído inconfundível de pessoas marchando.
- Os dentrassis? - sussurrou Arthur.
- Não, são botas de ponta de metal - disse Ford. Ouviram-se batidas vigorosas na porta.
- Então quem é? - perguntou Arthur.
- Bem - disse Ford -, se estivermos com sorte, são os vogons que vieram nos jogar no espaço.
- E se estivermos com azar?
- Nesse caso - disse Ford, sombrio -, talvez o comandante tenha falado sério quando disse que antes de nos expulsar ia ler alguns poemas dele pra nós...
Capítulo 7
A poesia vogon é; como todos sabem, a terceira pior do Universo. Em segundo lugar vem a poesia dos azgodos de Kria. Durante um recital em que seu Mestre Poeta, Gruntos, o Flatulento, leu sua "Ode ao pedacinho de massa de vidraceiro verde que encontrei no meu sovaco numa manhã de verão", quatro pessoas na platéia morreram de hemorragia interna, e o presidente do Conselho Centro-Galáctico de Marmelada Artística só conseguiu sobreviver roendo uma de suas próprias pernas completamente. Consta que Gruntos ficou
"decepcionado" com a reação da platéia, e já ia começar a ler sua epopéia em 12
tomos intitulada Meus Gargarejos de Banheira Favoritos quando seu próprio intestino grosso, numa tentativa desesperada de salvar a vida e a civilização, pulou para cima, passando pelo pescoço de Gruntos, e estrangulou-lhe o cérebro.
A pior poesia de todas desapareceu com sua criadora, Paula Nancy Millstone Jennings, de Greenbridge, Essex, Inglaterra, com a destruição do planeta Terra.
Prostetnic Vogon Jeltz sorria muito devagar - não que ele quisesse fazer gênero, estava era tentando lembrar-se da seqüência de contrações musculares necessárias para realizar o ato. Tinha dado uns gritos de excelente efeito terapêutico com seus prisioneiros, e agora sentia-se bem relaxado, pronto para um pouquinho de crueldade.
Os prisioneiros estavam sentados em cadeiras de Apreciação Poética - amarrados nelas. Os vogons não alimentavam quaisquer ilusões acerca da reputação de sua literatura. Suas primeiras tentativas poéticas faziam parte de um esforço malogrado no sentido de serem aceitos como uma espécie evoluída e culta, mas agora só persistiam por puro sadismo.
Ford Prefect suava frio, e o suor de sua testa molhava os eletrodos aplicados a suas têmporas, os quais estavam ligados a um complicado equipamento eletrônico - intensificadores de imagens, moduladores de ritmo, residuadores aliterativos e descarregadores de símiles. Tais aparelhos tinham o efeito de intensificar a experiência poética e garantir que nenhuma nuança do pensamento do poeta passaria despercebida.
Arthur Dent, sentado, tremia. Não fazia idéia do que o esperava, mas não tinha gostado de nada que acontecera até então, e não achava que viria coisa melhor.
O vogon começou a ler - um trechinho nauseabundo que ele próprio havia cometido.
- Ó fragúndio bugalhostro... -começou. O corpo de Ford foi sacudido por espasmos; aquilo era bem pior do que esperava.
- ...tua micturição é para mim/ Qual manchimucos num lúrgido mastim.
- Aaaaaaarggggghhhhh! - berrou Ford Prefect, jogando a cabeça para trás, latejando de dor. Mal podia ver Arthur a seu lado, estrebuchando em sua cadeira. Ford rangeu os dentes.
- Frêmeo impbchoro-o - prosseguiu o vogon, implacável -, ó meu perlíndromo exangue. -Levantou a voz num crescendo horrível de estridência apaixonada. - Adrede me não apagianaste a crímidos dessartes?/Ter-te-ei rabirrotos, raio que o parte!
- NnnnnnnnnnyyyyyyuuuuuuurrrrrrggggghhhhhW - exclamou Ford Prefect, contorcido por um último espasmo quando a chave de ouro do poema golpeou-lhe as têmporas, ainda mais com o reforço eletrônico. Ficou todo mole. Arthur estrebuchava.
- Bem, terráqueos - sibilou o vogon (ele não sabia que Ford Prefect era na verdade de um pequeno planeta perto de Betelgeuse, e estaria pouco ligando se soubesse) -, dou-lhes duas opções: ou morrer no vácuo do espaço ou ... - fez uma pausa, para criar suspense - me dizer o quanto gostaram do meu poema!
Refestelou-se num grande sofá de couro em forma de morcego e ficou olhando para os dois. Deu aquele sorriso de novo.
Ford tentava respirar, com dificuldade. Revolveu a língua áspera na boca ressecada e gemeu.
Arthur disse então, entusiástico:
- Sabe, eu gostei bastante.
Ford virou-se para ele, boquiaberto. Simplesmente jamais lhe ocorrera tal saída.
O vogon, surpreso, levantou uma sobrancelha, a ponto de tapar-lhe o nariz, o que aliás foi ótimo.
-Ah, que bom... - sibilou, muito espantado.
- É, sim - disse Arthur. - Achei algumas das imagens metafísicas realmente muito vivas.
Ford continuava de olhos pregados em Arthur, lentamente reorganizando suas idéias em torno deste conceito radicalmente novo. Será que conseguiriam sair daquela enrascada com aquela cara-de-pau?
- Mas sim, continue... - falou o vogon.
- Ah... e também... tem uns efeitos rítmicos interessantes - prosseguiu Arthur - que fazem contraponto ao... ao... - Nesse ponto, empacou. Ford acudiu, chutando:
- ...ao surrealismo da metáfora subjacente da... ah... - Empacou também, mas Arthur já estava pronto:
- ...da humanidade da...
- Vogonidade -soprou-lhe Ford.
- Sim, claro, da vogonidade (desculpe) da alma compassiva do poeta - prosseguiu Arthur, sentindo-se perfeitamente seguro agora -, que consegue, através da estrutura do texto, sublimar isto, transcender aquilo e apreender as dicotomias fundamentais do outro - Arthur ia agora num crescendo triunfal -, proporcionando ao leitor uma visão aprofundada e intensa do... do... ah...
- De repente, vacilou. Ford, então, deu o golpe de misericórdia:
- ...do sentido do poema, seja ele o que for. - gritou ele. E sussurrou discretamente: - Muito bem, Arthur, parabéns.
O vogon olhou-os detidamente. Por um momento, sua endurecida alma vogon fora tocada, mas em seguida ele pensou: não; é tarde demais, e muito pouco. Sua voz lembrava o som de um gato arranhando um pedaço de náilon:
- Em outras palavras, eu escrevo poesia porque, por trás da minha fachada cruel e insensível, no fundo o que eu quero é ser amado - disse ele. Após uma pausa, perguntou: - É isso?
Ford deu um risinho nervoso:
- Bem, quer dizer, é - disse ele. -Todos nós, lá no fundo, sabe... O vogon levantou-se.
- Não, vocês estão completamente enganados - disse.
- Escrevo poesia só pra ressaltar minha fachada cruel e insensível por contraste. Vou expulsar vocês da nave de qualquer jeito. Guardai Leve os prisioneiros para a câmara de descompressão número três e jogue-os para fora!
- O quê? - exclamou Ford.
Um jovem e enorme guarda vogon aproximou-se e arrancou os dois prisioneiros de suas amarras com seus brações gordos.
- Você não pode jogar a gente no espaço - gritou Ford.
- Estamos tentando escrever um livro.
- Toda resistência é inútil! - exclamou o guarda vogon. Foi essa a primeira frase que ele aprendeu quando entrou para o Batalhão de Guarda Vogon.
O comandante ficou vendo a cena, distante, divertindo-se, e depois virou-se.
Arthur olhava para todos os lados, desesperado.
- Não quero morrer agora! - gritou ele. - Ainda estou com dor de cabeça!
Não quero ir pro céu com dor de cabeça, vou ficar emburrado e não vou achar graça em nada!
O guarda agarrou os dois pelo pescoço e, curvando-se respeitosamente para o comandante, que estava de costas, arrastou-os para fora da ponte de comando; os prisioneiros protestavam sem parar. Uma porta de aço fechou-se, e o comandante estava sozinho de novo. Ele cantarolava baixinho, folheando seu caderno de poesias.
- Humm - exclamou ele -, contraponto ao surrealismo da metáfora subjacente... - Pensou nisso por um momento, então fechou o caderno com um sorriso mau. - A morte é um castigo suave demais pra eles - disse então. O longo corredor de paredes de aço ressoava as fúteis tentativas de fuga dos dois humanóides firmementes apertados nas axilas do vogon, duras como borracha.
- Isso é genial! - explodiu Arthur. - Isso é só o que faltava! Me solta, seu covardão!
O guarda vogon continuava a arrastá-los.
- Não se preocupe - disse Ford -, eu dou um jeito. - Pelo tom de voz, não parecia acreditar muito no que dizia.
- Toda resistência é inútil - urrou o guarda.
- Pare de dizer isso, por favor - gaguejou Ford. - Como é que a gente pode manter uma atitude mental positiva com você dizendo coisas assim?
- Meu Deus - reclamou Arthur -, você fala de atitude mental positiva, e olhe que o seu planeta nem foi demolido. Eu acordei hoje achando que ia passar um dia tranqüilo, ler um pouco, escovar meu cachorro... São só quatro da tarde e já estou sendo expulso de uma espaçonave extraterrestre a seis anos-luz do que resta da Terra! - Começou a engasgar, porque o vogon apertou com mais força.
- Está bem - disse Ford -, mas não entre em pânico!
- Quem é que falou em pânico? - gritou Arthur. - Isso é só choque cultural. Espere só até eu conseguir me situar e me orientar. Aí é que vou entrar em pânico!
- Arthur, você está ficando histérico. Cale a boca!
Ford estava tentando desesperadamente pensar em alguma saída, mas foi interrompido pelo grito do guarda:
- Toda resistência é inútil!
- E cale a boca você também! - exclamou Ford.
- Toda resistência é inútil!
- Ah, não me canse - disse Ford. Torceu-se todo até poder encarar o guarda. Teve uma idéia. - Você realmente gosta disso?
O vogon parou de repente, e uma expressão de imensa estupidez lentamente esboçou-se em seu rosto.
- Se eu gosto disso? - disse ele, com sua voz tonitruante. - Como assim?
- Quero dizer - explicou Ford -, isso é uma vida satisfatória pra você?
Marchar de um lado pro outro, berrando, empurrando gente pra fora de espaçonaves...
O vogon levantou os olhos para o teto baixo de aço, e suas sobrancelhas quase passaram uma por cima da outra. A boca entreabriu-se. Por fim, disse:
- Bem, o horário é bom...
- Também, tem que ser - concordou Ford. Arthur revirou a cabeça para olhar para Ford.
- Ford, que diabo você está fazendo? - sussurrou ele, espantado.
- Nada, estou só tentando entender o mundo ao meu redor, está bem? - respondeu. - Então, quer dizer que o horário é bom?
O vogon olhou-o, e nas profundezas turvas de sua mente alguns pensamentos começaram a formar-se, pesadamente.
- É - disse ele -, mas agora que você falou nisso, a maior parte do tempo é um saco. Tirando... - e parou para pensar de novo, olhando para o teto - tirando a parte de gritar, de que gosto muito. - Encheu os pulmões e urrou: - Toda resistência...
- Sei, sei - interrompeu Ford mais que depressa -, você é bom nisso, já
deu pra perceber. Mas se a maior parte do tempo é um saco - disse, lentamente, dando tempo para que suas palavras fossem bem entendidas -, então por que você continua nessa? Por quê? Por causa das garotas? O uniforme de couro? O
machismo da coisa? Ou é só por que você acha um desafio interessante enfrentar o tédio imbecilizante desse trabalho?
Arthur olhava para um e para outro, sem entender nada.
-Ah... - disse o guarda - ah... ah... sei não. Acho que eu faço isso só pra... só por fazer, sabe. A titia me disse que trabalhar como guarda de espaçonave é
uma boa carreira para um rapaz vogon, sabe, o uniforme, a pistola de raio paralisante na cintura, o tédio imbecilizante...
- Está vendo, Arthur? - disse Ford, como quem chegou à conclusão de uma argumentação. - E você que pensava que estava na pior?
Mas Arthur continuava pensando que estava na pior. Além da questão desagradável com seu planeta, o guarda vogon estava estrangulando-o, e a idéia de ser jogado no espaço também não lhe agradava, muito.
- Tente entender o problema dele - insistiu Ford. - Coitado do rapaz, o trabalho dele é só marchar de um lado pro outro, jogar gente pra fora da nave...
- E gritar - acrescentou o guarda.
- E gritar, claro - acrescentou Ford, dando tapinhas condescendentes no braço gordo apertado em torno de seu pescoço. - Mas... ele nem sabe por que faz o que faz!
Arthur concordou que era muito triste. Exprimiu esta idéia com um gesto tímido, pois estava asfixiado demais para falar.
O guarda emitia ruídos que indicavam sua perplexidade profunda.
- Bem. Do jeito que você coloca a coisa, pensando bem...
- Isso, garoto! - disse Ford, para estimulá-lo.
- Mas, nesse caso - prosseguiu o guarda -, qual é a alternativa?
- Bem - disse Ford, falando com entusiasmo, mas devagar -, parar de fazer isso, é claro! Diga a eles que você não vai continuar a fazer isso. - Teve vontade de dizer mais alguma coisa, mas sentiu que o guarda já tinha material para profundas ruminações em sua mente.
- Hummmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm... - disse o guarda -,
hum, bem, não acho essa idéia muito boa, não.
De repente, Ford sentiu que estava perdendo a oportunidade.
- Espere aí, é só o começo, sabe; a coisa é bem mais complicada do que parece à primeira vista...
Mas nesse momento o guarda apertou com mais força os pescoços dos prisioneiros e seguiu em frente, rumo à câmara de descompressão. Evidentemente, aquela conversa calara fundo em sua mente.
- É, mas se vocês não se incomodam - disse ele -, vou mesmo jogar vocês pra fora da nave e vou cuidar da minha vida, que ainda tenho muito que gritar hoje.
Só que Ford Prefect se incomodava, e muito.
- Mas espere aí... pense um pouco! - disse ele, falando mais depressa e mais preocupado.
- Huhhhhggggnnnnnnn... - disse Arthur, sem muita clareza.
- Além disso - insistiu Ford -, existe a música, a arte, tanta coisa pra lhe dizer! Arrggghhh!
- Toda resistência é inútil! - berrou o guarda, e depois acrescentou: - Sabe, se eu persistir, vou acabar sendo promovido a oficial superior gritador, e normalmente não tem vaga pra quem não grita nem empurra gente, por isso acho melhor ficar mesmo fazendo o que sei fazer.
Haviam agora chegado à câmara de descompressão – uma grande escotilha redonda de aço, forte e pesada, embutida na parede interna da nave. O
guarda acionou um botão e lentamente a escotilha se abriu.
- De qualquer forma, obrigado pela atenção - disse o guarda vogon. - Tchau! - Jogou Ford e Arthur para dento da apertada câmara de descornpressão. Arthur, ofegante, tentava recuperar o fôlego. Ford corria de um lado para o outro e tentava inutilmente impedir com o ombro que a escotilha fosse fechada.
- Mas, escute — gritou para o guarda -, existe um mundo de coisas das quais você nunca ouviu falar... que tal isso, por exemplo? - No desespero, apelou para o único dado cultural que ele tinha sempre à mão: cantarolou o primeiro compasso da Quinta Sinfonia de Beethoven.
- Tchã tchã tchã tchããããl Isso não diz nada a você?
- Não - disse o guarda. - Nada. Mas vou contar pra titia. Se ele ainda disse alguma coisa depois, os dois não ouviram.
A escotilha foi hermeticamente fechada e todos os sons desapareceram, salvo o zumbido distante dos motores da nave.
Estavam dentro de uma câmara cilíndrica, de metal polido, de cerca de dois metros de diâmetro por três de comprimento.
Ford olhou ao redor, ofegante.
- E eu que achava que o rapaz tinha até um certo potencial! - disse ele, e encostou-se na parede curva.
Arthur continuava deitado no chão, onde caíra ao entrar. Não levantou a vista. Continuava ofegante.
- Agora estamos ferrados, não é?
- É - disse Ford -, estamos ferrados.
- E aí, você não pensou em nada? Você, se não me engano, me disse que ia pensar numa solução. Talvez você tenha pensado em alguma coisa, só que não percebi.
-Ah, é, eu realmente pensei numa coisa - disse Ford. Arthur olhou para ele, esperançoso. Ford prosseguiu:
- Infelizmente,, só daria certo do outro lado desta escotilha. E chutou a escotilha pela qual haviam entrado.
- Mas a idéia era boa, não era?
- Ah, era ótima.
- O que era?
- Bem, eu não tinha ainda nem elaborado a coisa detalhadamente. Agora não adianta mais, não é?
- Mas... e agora? - perguntou Arthur.
- Bem, sabe, essa outra escotilha vai se abrir automaticamente daqui a pouco e nós vamos ser chupados para o espaço profundo, imagino, e vamos morrer asfixiados. Se você encher bem os pulmões ainda agüenta uns 30
segundos, é claro... - disse Ford. Pôs as mãos atrás das costas, levantou as sobrancelhas e começou a cantarolar uma velha canção marcial de Betelgeuse. De repente, Arthur se deu conta de que ele era um ser muito estranho.
- Quer dizer então - disse ele - que vamos morrer.
- É - disse Ford -, só que... não! Espere aV. -De repente levantou-se e lançou-se sobre algo que estava atrás do campo visual de Arthur. - O que é esse interruptor?
- O quê? Onde? - exclamou Arthur, virando-se.
- Nada, brincadeira minha - disse Ford. -A gente vai morrer, sim. Sentou-se no mesmo lugar de antes e recomeçou a cantarolar a mesma música a partir do trecho em que a havia interrompido.
- Sabe - disse Arthur -, é em ocasiões como esta, em que estou preso numa câmara de descompressão de uma espaço-nave vogon, com um sujeito de Betelgeuse, prestes a morrer asfixiado no espaço, que realmente lamento não ter escutado o que mamãe me dizia quando eu era garoto.
- Por quê? O que ela dizia?
- Não sei. Eu nunca escutei.
- Ah. - Ford recomeçou a cantarolar.
"Que barato", pensou Arthur. "A Coluna de Nelson não existe mais, o McDonald's não existe mais, só restamos eu e as palavras praticamente inofensiva. Daqui a alguns segundos, só restará praticamente inofensiva. E ontem mesmo o planeta parecia estar tão bem."
Ouviu-se o ruído de um motor.
Um silvo suave foi aumentando, até transformar-se num rugido ensurdecedor; a escotilha exterior abriu-se, mostrando um céu vazio e negro cheio de pontinhos de luz incrivelmente brilhantes. Ford e Arthur foram expelidos da nave como rolhas atiradas por um revólver de brinquedo. Capítulo 8
O Guia do Mochileiro das Galáxias é um livro realmente admirável. Há
muitos anos que vem sendo escrito e revisto, por muitos redatores diferentes. Contém contribuições fornecidas por inúmeros viajantes e pesquisadores. A introdução começa assim:
"O espaço é grande. Grande, mesmo. Não dá pra acreditar o quanto ele é
desmesuradamente inconcebivelmente estonteantemente grande. Você pode achar que da sua casa até a farmácia é longe, mas isso não é nada em comparação com o espaço. Vejamos..." E por aí vai. (Mais adiante o estilo fica mais seco, e o livro começa a dizer coisas realmente importantes, como por exemplo que o lindíssimo planeta Bethselamin está agora tão preocupado com a erosão cumulativa causada pela presença de dez bilhões de turistas por ano que qualquer discrepância entre o que você come e o que você evacua durante sua estada no planeta é removida cirurgicamente do seu corpo antes de você partir de lá: assim, cada vez que se vai ao banheiro é vitalmente necessário pegar um recibo.) Porém, justiça seja feita: quando se trata de falar sobre a imensidão das distâncias entre as estrelas, inteligências superiores à do autor da introdução do Guia do Mochileiro também fracassaram. Há quem peça ao leitor que imagine um amendoim em Londres e uma noz das pequenas em Johannesburgo, entre outras comparações estonteantes.
A simples verdade é que as distâncias interestelares esteio além da imaginação humana.
Até mesmo a luz, que se desloca tão depressa que a maioria das espécies de seres vivos leva milênios para descobrir que ela se move, demora para se deslocar de uma estrela a outra. Ela leva oito minutos para ir do Sol até o lugar onde ficava antigamente a Terra, e mais quatro anos para chegar à estrela mais próxima ao Sol, a Alfa do Centauro.
Para chegar até o outro lado da Galáxia - a Damogran, por exemplo - demora muito mais: 500 mil anos.
O tempo mais rápido em que um mochileiro cobriu essa distância foi pouco menos de cinco anos, mas desse jeito a pessoa não aproveita nada da paisagem. O Guia do Mochileiro das Galáxias afirma que, com os pulmões cheios de ar, é possível sobreviver no vácuo total por cerca de 30 segundos. Porém afirma também que, sendo o espaço estonteante-mente grande do jeito que é, a probabilidade de ser salvo por outra nave durante esse período de 30 segundos é da ordem de uma chance em duas elevado a 276.709.
Por uma coincidência absolutamente inacreditável, este é o mesmo número do telefone de um apartamento em Islington onde Arthur uma vez foi a uma festa ótima e conheceu uma garota ótima que ele não conseguiu ganhar - ela acabou saindo com um penetra.
Embora o planeta Terra, o apartamento de Islington e o telefone tenham sido todos destruídos, não deixa de ser um consolo saber que, de algum modo, eles foram homenageados pelo fato de que, 29 segundos depois, Ford e Arthur foram salvos. Capítulo 9
Um computador disparou, quando percebeu que uma câmara de descompressão abriu-se e fechou-se sozinha, sem nenhuma razão. Isto porque a Razão, naquele exato momento, estava tomando um cafezinho.
Um buraco acabara de aparecer na Galáxia. Tinha exatamente um zerézimo de centímetro de largura e muitos milhões de anos-luz de comprimento.
Quando se fechou, um monte de chapéus de papel e balõezinhos de borracha saíram dele e se espalharam pelo Universo. Um grupo de sete analistas de mercado de um metro e meio de altura também saiu do buraco e morreu logo em seguida, em parte por asfixia, em parte por espanto. Duzentos e trinta e nove mil ovos estrelados também saíram, materializando-se sob a forma de uma grande omelete na terra de Poghril, no sistema de Pansel, onde havia muita fome.
Toda a tribo de Poghril morrera de fome, com exceção de um último homem que morreu de intoxicação por colesterol algumas semanas depois. O zerézimo de segundo durante o qual o buraco existiu teve as mais improváveis repercussões no passado e no futuro. Num passado remotíssimo, ele causou perturbações profundas num pequeno grupo aleatório de átomos que cruzavam o espaço vazio e estéril, fazendo com que se agrupassem das maneiras mais extraordinárias. Estes agrupamentos rapidamente aprenderam a se reproduzir (era essa uma das características mais extraordinárias deles) e acabaram causando perturbações muito sérias em todos os planetas onde foram parar. Foi assim que começou a vida no Universo.
Cinco selvagens Redemoinhos de Eventos formaram-se, numa violenta tempestade irracional, e vomitaram uma calçada.
Na calçada, arquejantes como peixes moribundos, estavam Ford Prefect e Arthur Dent.
- Eu não disse? - exultou Ford, ofegante, tentando agarrar-se à calçada, que neste momento atravessava o Terceiro Domínio do Desconhecido. - Eu disse que ia pensar em alguma coisa.
- É, é claro - disse Arthur. - Claro.
- Grande idéia minha - disse Ford - achar uma nave passando por perto e ser salvo por ela.
O universo real se retorcia sob eles, assustadoramente. Diversos universos falsos passavam silenciosamente por ali, como cabritos monteses. A luz primai explodiu, espirrando pelo espaço-tempo como coalhada derramada. O tempo floresceu, a matéria encolheu. O maior número primo se acocorou quietinho num canto, para nunca mais ser descoberto.
- Ah, essa não - disse Arthur. - A probabilidade de isso acontecer era infinitesimal.
- Não reclame, deu certo - disse Ford.
- Que espécie de nave é essa? - perguntou Arthur. A seus pés, o abismo da eternidade bocejava.
- Não sei. Ainda não abri os olhos.
- Nem eu.
O Universo saltou, congelou, estremeceu e espalhou-se em diversas direções inesperadas.
Arthur e Ford abriram os olhos e olharam ao redor, muito espantados.
- Meu Deus - disse Arthur -, isso aqui é igualzinho ao calçadão da praia de Southend.
- Pô, é um alívio ouvir você dizer isso - disse Ford.
- Por quê?
- Porque achei que estava ficando maluco.
- E talvez esteja mesmo. Talvez você tenha apenas imaginado que eu disse isso.
Ford pensou nesta possibilidade.
- Bem, afinal, você disse ou não disse? - perguntou ele.
- Acho que sim.
- Vai ver, nós dois estamos ficando malucos.
- É - concordou Arthur. - Pensando bem, só mesmo um maluco poderia pensar que isso aqui é Southend.
- Bem, você acha que isso aqui é mesmo Southend?
- Acho, sim.
- Eu também.
- Portanto, devemos estar malucos.
- Um bom dia pra ficar maluco.
- É - disse um maluco que passava por ali.
- Quem é esse? - perguntou Arthur.
- Quem? Aquele cara com cinco cabeças e com um pé de sabugueiro carregadinho de filhotes de salmão?
-É.
- Não sei, não. Um cara qualquer. -Ah.
Ficaram os dois sentados na calçada, vendo, um pouco preocupados, crianças enormes quicando pesadamente na areia e cavalos selvagens correndo pelo céu, levando grades reforçadas para as Regiões Incertas.
- Sabe - disse Arthur, com um pigarro -, se estamos mesmo em Southend, tem alguma coisa esquisita aqui...
- Você está se referindo ao fato de que o mar está parado como uma pedra e os edifícios formam ondas sem parar? - perguntou Ford. - É, eu também estranhei. Aliás - acrescentou ele no momento em que, com uma grande explosão, Southend partiu-se em seis pedaços iguais, que começaram a rodar um ao redor do outro, com gestos lascivos e lúbricos -, no geral, há alguma coisa bem esquisita por aqui.
Uma barulhada infernal de canos e cordas veio trazida pelo vento; bolinhos quentes pipocaram do chão, a dez pence cada um; peixes horrorosos choveram do céu, e Arthur e Ford resolveram sair correndo. Atravessaram densas muralhas de som, montanhas de pensamento arcaico, vales de música suave, péssimas sessões de sapatos e morcegos bobos, e de repente ouviram uma voz feminina.
Parecia uma voz bastante sensata, porém ela disse apenas o seguinte:
- Dois elevado a 100 mil contra um e diminuindo. - Mais nada. Ford escorregou por um raio de luz e correu para todos os
lados tentando descobrir de onde vinha a voz, mas não encontrou nada em que pudesse realmente acreditar.
- Que voz foi essa? - gritou Arthur.
- Não sei, não - gritou Ford. - Não sei. Parecia um cálculo de probabilidade.
- Probabilidade? Como assim?
- Probabilidade. Assim, tipo dois contra um, três contra um, cinco contra quatro. A voz falava numa probabilidade de dois elevado a 100 mil contra um. É uma probabilidade mínima.
Um vasilhame contendo um milhão de litros de creme de leite despejouse sobre eles.
- Mas o que significa isto? - exclamou Arthur.
- O que, o creme de leite?
- Não, esse cálculo de probabilidade.
- Não sei. Não faço idéia. Acho que estamos em algum tipo de espaçonave.
- Uma coisa eu garanto - disse Arthur. - Esta não é a primeira classe. A textura do espaço-tempo começou a formar calombos, calombos grandes e feios.
- Haaaaauuuurgghhh... - disse Arthur, sentindo que seu corpo amolecia e dobrava-se em direções inusitadas. - Southend parece estar se desmanchando... as estrelas estão rodopiando... poeira pra todo lado... minhas pernas estão resvalando para o poente... meu braço esquerdo se soltou do corpo também...
- Ocorreu-lhe um pensamento assustador: - Pô, como é que eu vou mexer no meu relógio digital agora? - Revirou os olhos, em desespero, na direção de Ford. - Ford - disse ele -, você está virando um pingüim. Pare com isso. A voz ouviu-se mais uma vez:
- Dois elevado a 75 mil contra um e diminuindo. Ford rodopiava em sua poça, num círculo furioso.
- Ei, quem é você? - disse ele, com voz de Pato Donald.
- Onde é que você está? O que está acontecendo aqui? E como é que a gente pode parar com isso?
- Por favor, relaxem - disse a voz, num tom agradável, como uma aeromoça em um avião com apenas uma asa e dois motores, um dos quais pegando fogo. - Vocês não estão correndo o menor perigo.
- Mas não é essa a questão! - disse Ford, irritado. - A questão é que agora sou um pingüim que não corre o menor perigo, e meu amigo daqui a pouco não vai ter mais membros para perder!
- Tudo bem, eles já voltaram - disse Arthur.
- Dois elevado a 50 mil contra um e diminuindo - disse a voz.
- É bem verdade - disse Arthur - que eles estão um pouco mais compridos do que eu estou acostumado, mas...
- Será que você não podia - grasnou Ford, com fúria - nos dizer uma coisa um pouco mais concreta?
A voz pigarreou. Um petit-four gigantesco foi galopando em direção ao infinito.
- Bem-vindos - disse a voz - à nave Coração de Ouro.
Prosseguiu a voz:
- Por favor, não se assustem com nada do que virem ou ouvirem. É de esperar que vocês sintam certos efeitos negativos, já que foram salvos de uma morte certa, numa probabilidade de dois elevado a 276 mil contra um, ou talvez muito mais. Estamos no momento viajando a um nível de dois elevado a 25 mil contra um e diminuindo, e estaremos voltando à normalidade assim que tivermos a certeza do que é de fato normal. Obrigado. Dois elevado a 20 mil contra um, diminuindo.
A voz calou-se.
Ford e Arthur viram-se num pequeno cubículo rosado e luminoso. Ford estava excitadíssimo.
- Arthur! - exclamou ele. - É fantástico! Fomos salvos por uma nave movida por um gerador de improbabilidade infinita! É incrível! Eu já tinha ouvido falar sobre isso antes! Esses boatos sempre foram oficialmente negados, mas devem ser verdade! Eles conseguiram! Construíram o gerador de improbabilidade infinita! Arthur, é... Arthur? O que está acontecendo?
Arthur estava se apertando contra a porta do cubículo, tentando mantêla fechada, mas a porta não encaixava bem no vão. Diversas mãozinhas peludas estavam introduzindo-se pela fresta, com os dedos sujos de tinta; vozinhas agudas tagarelavam incessantemente.
Arthur olhou para Ford.
- Ford! - exclamou ele. - Há um número infinito de macacos lá fora querendo falar conosco sobre um roteiro que eles fizeram, uma adaptação do Hamlet.
Capítulo 10
O gerador de improbabilidade infinita é uma nova e maravilhosa invenção que possibilita atravessar imensas distâncias interestelares num simples zerézimo de segundo, sem toda aquela complicação e chatice de ter que passar pelo hiperespaço.
Foi descoberto por um feliz acaso, e daí desenvolvido e posto em prática como método de propulsão pela equipe de pesquisa do governo galáctico em Damogran.
Em resumo, foi assim a sua descoberta:
O princípio de gerar pequenas quantidades de improbabilidade finita simplesmente ligando os circuitos lógicos de um Cérebro Subméson Bambleweeny 57 a uma impressora de vetor atômico suspensa num produtor de movimentos brownianos intensos (por exemplo, uma boa xícara de chá
quente) já era, naturalmente, bem conhecido - e tais geradores eram freqüentemente usados para quebrar o gelo em festas, fazendo com que todas as moléculas da calcinha da anfitriã se deslocassem 30 centímetros para a direita, de acordo com a Teoria da Indeterminação.
Muitos físicos respeitáveis afirmavam que não admitiam esse tipo de coisa - em parte porque era uma avacalhação da ciência, mas principalmente porque eles não eram convidados para essas festas.
Outra coisa que não suportavam era não conseguir construir uma máquina capaz de gerar o campo de improbabilidade infinita necessário para propulsionar uma nave através das distâncias estarrecedoras existentes entre as estrelas mais longínquas, e terminaram anunciando, contrafeitos, que era praticamente impossível construir um gerador desses.
Então, um dia, um aluno encarregado de varrer o laboratório depois de uma festa particularmente ruim desenvolveu o seguinte raciocínio: Se uma tal máquina é praticamente impossível, então logicamente se trata de uma improbabilidade finita. Assim, para criar um gerador desse tipo é só
calcular exatamente o quanto ele é improvável, alimentar esta cifra no gerador de improbabili-dades finitas, dar-lhe uma xícara de chá pelando... e ligar!
Foi o que fez, e ficou surpreso ao descobrir que havia finalmente conseguido criar o ambicionado gerador de improbabilidade infinita a partir do nada.
Ficou ainda mais surpreso quando, logo após receber o Prêmio da Extrema Engenhosidade concedido pelo Instituto Galáctico, foi linchado por uma multidão exaltada de físicos respeitáveis, que finalmente se deram conta de que a única coisa que eram realmente incapazes de suportar era um estudante metido a besta.
Capítulo 11
A cabine de controle à prova de improbabilidade na nave Coração de Ouro parecia uma espaçonave perfeitamente convencional; a única diferença é
que era perfeitamente limpa, por ser tão nova. Em alguns dos bancos, ainda nem haviam sido removidos os plásticos protetores. A cabine era basicamente branca, retangular, do tamanho de um restaurante pequeno. Na verdade, não era perfeitamente retangular: as duas paredes mais compridas eram ligeiramente curvas, paralelas, e todos os ângulos e cantos eram cheios de protuberâncias decorativas. Na verdade, teria sido bem mais simples e mais prático fazer uma cabine retangular tridimensional normal, mas isso deixaria os autores do projeto deprimidos. Fosse como fosse, a cabine parecia arrojadamente funcional, com grandes telas de vídeo por cima do painel do sistema de controle e navegação na parede côncava e longas fileiras de computadores embutidos na parede convexa. Num dos cantos havia um robô
sentado, com a cabeça de aço reluzente caída entre os joelhos de aço reluzente. O robô também era bem novo, mas embora fosse muito bem-feito e lustroso, dava a impressão de que as diferentes peças de seu corpo mais ou menos humanóide não casavam bem umas com as outras. Na verdade, elas se encaixavam perfeitamente, mas havia algo no porte do robô que dava a impressão de que elas poderiam se encaixar ainda melhor.
Zaphod Beeblebrox andava nervosamente de um lado para o outro, correndo a mão pelos equipamentos reluzentes, sem conseguir conter risinhos de entusiasmo.
Trillian estava debruçada sobre um conjunto de instrumentos, lendo números. O sistema de som transmitia sua voz para toda a nave.
- Cinco contra um e diminuindo - dizia ela. - Quatro contra um e diminuindo... três contra um... dois... um... fator de probabilidade de um para um... atingimos a normalidade, repetindo, atingimos a normalidade. -Desligou o microfone, mas depois ligou-o de novo, com um leve sorriso nos lábios, e acrescentou: - Se houver ainda alguma coisa que não consigam entender, é problema de vocês. Por favor, relaxem. Em breve vocês serão chamados.
Zaphod exclamou, irritado:
- Quem são eles, Trillian?
Trillian virou a cadeira giratória para ele e deu de ombros.
- Uns caras que pelo visto pegamos em pleno espaço - disse ela. - Seção ZZ9 Plural Z Alfa.
- É, é muito simpático, Trillian - queixou-se Zaphod -, mas você não acha isso meio arriscado nas atuais circunstâncias? Afinal, somos fugitivos, e a polícia de metade da Galáxia deve estar atrás da gente. E nós parando pra dar carona. Em matéria de estilo, nota dez; mas em matéria de sensatez, menos um milhão.
Irritado, começou a dar batidinhas num dos painéis de controle. Com jeito, Trillian empurrou sua mão, antes que ele desse uma batidinha em alguma coisa importante. Ainda que tivesse inegáveis qualidades intelectuais - ostentação, fanfar-ronice, presunção -, Zaphod era fisicamente desajeitado e bem capaz de fazer a nave explodir com um gesto extravagante. Trillian desconfiava que ele conseguia levar uma vida tão louca e bem-sucedida principalmente por não entender jamais o verdadeiro significado de nada que ele fazia.
- Zaphod - disse ela, paciente -, eles estavam flutuando no espaço, sem qualquer proteção... Você não queria que eles morressem, não é?
- Bem, não exatamente... mas...
- Não exatamente? Não morrer, exatamente? Mas o quê? - Trillian inclinou a cabeça.
- Bem, talvez alguma outra nave os salvasse depois.
- Se demorasse mais um segundo, eles morreriam.
- Justamente, portanto, se você tivesse se dado ao trabalho de pensar um pouquinho mais no problema, ele se resolveria por si só.
- Você ficaria satisfeito se eles morressem?
- Não exatamente satisfeito, mas...
- Seja como for - disse Trillian, voltando ao painel de controle -, não fui eu que dei carona a eles.
- Como assim? Então quem foi?
- Foi a nave.
- O quê?
- A nave. Sozinha.
- O quê?
- Quando o gerador de improbabilidade estava ligado.
- Mas isso é incrível.
- Não, Zaphod. É apenas muito improvável.
- É, isso é.
- Escute, Zaphod - disse ela, dando-lhe uns tapinhas no braço -, não se preocupe com eles. Não vão causar problema nenhum. Vou mandar o robô
trazê-los até aqui. ô Marvin!
Sentado no canto, o robô levantou a cabeça subitamente, porém em seguida ficou balançando-a ligeiramente. Pôs-se de pé como se fosse uns dois ou três quilos mais pesado do que era na realidade e fez um esforço aparentemente heróico para atravessar o recinto. Parou à frente de Trillian e ficou olhando por cima do ombro esquerdo da moça.
- Acho que devo avisá-los de que estou muito deprimido - disse ele, cora uma voz baixa e desesperançada.
- Ah, meu Deus - murmurou Zaphod, jogando-se numa cadeira.
- Bem - disse Trillian, num tom de voz alegre e compreensivo -, então vou lhe dar uma coisa pra distrair a sua cabeça.
- Não vai dar certo - disse Marvin. - Minha mente é tão excepcionalmente grande que uma parte dela vai continuar se preocupando.
- Marvini - ralhou Trillian.
- Está bem - disse Marvin. - O que é que você quer que eu faça?
- Vá até a baia de entrada número dois e traga os dois seres que estão lá, sob vigilância.
Após uma pausa de um microssegundo, e com uma micro-modulação de tom e timbre minuciosamente calculada -impossível se ofender com aquela entonação -, Marvin conseguiu exprimir todo o desprezo e horror que lhe inspirava tudo que é humano.
- Só isso? - perguntou ele.
- Só - disse Trillian, com firmeza.
- Não vou gostar de fazer isso - disse Marvin. Zaphod levantou-se de um salto.
- Ela não está mandando você gostar - gritou. - Limite-se a cumprir ordens, está bem?
- Está bem - disse Marvin, com voz de sino rachado. - Já vou.
- Ótimo! - exclamou Zaphod. - Muito bem... obrigado... Marvin virou-se e levantou seus olhos vermelhos e triangulares para ele.
- Por acaso eu estou baixando o astral de vocês? - perguntou Marvin, patético.
- Não, não, Marvin - tranqüilizou-o Trillian. - Está tudo bem.
- Porque eu não queria baixar o astral de vocês.
- Não, não se preocupe com isso - continuou Trillian, no mesmo tom. - Aja do jeito que você acha que deve agir que tudo vai dar certo.
- Você jura que não se incomoda? - insistiu Marvin.
- Não, não, Marvin, está tudo bem... É a vida - disse Trillian. Marvin dirigiu a Zaphod um olhar eletrônico.
- Vida? - disse ele. - Não me falem de vida.
Virou-se e saiu lentamente da cabine, desolado. A porta zumbiu alegremente e fechou-se com um estalido.
- Acho que não vou agüentar esse robô muito tempo, Zaphod - desabafou Trillian.
A Enciclopédia Galáctica define "robô" como "dispositivo mecânico que realiza tarefas humanas". O departamento de marketing da Companhia Cibernética de Sirius define "robô" como "o seu amigão de plástico". O Guia do Mochileiro das Galáxias define o departamento de marketing da Companhia Cibernética de Sirius como "uma cambada de panacas que devem ser os primeiros a ir para o paredão no dia em que a revolução estourar". Uma nota de rodapé
acrescenta que a redação do Mochileiro está aceitando candidatos para o cargo de correspondente de robótica.
Curiosamente, uma edição da Enciclopédia Galáctica que, por um feliz acaso, caiu numa descontinuidade do tempo, vinda de mil anos no futuro, definiu o departamento de marketing da Companhia Cibernética de Sirius como "uma cambada de panacas que foram os primeiros a ir para o paredão no dia em que a revolução estourou".
O cubículo rosado desaparecera num piscar de olhos e os macacos haviam passado para uma dimensão melhor. Ford e Arthur viram-se na área de embarque de uma nave. O lugar era bonito.
- Acho que essa nave é nova em folha - disse Ford.
- Como é que você sabe? - perguntou Arthur. - Você tem algum aparelho exótico que calcula a idade do metal?
- Não. Eu acabei de achar este folheto de vendas no chão, cheio de frases do tipo "agora o Universo é todo seu". Arrá! Está vendo? Acertei. Ford mostrou uma página do folheto para Arthur.
- Diz aqui: Nova descoberta sensacional na física de improbabilidade. Assim que o gerador da espaçonave atinge a improbabilidade infinita, ela passa por todos os pontos do Universo. Faça os outros governos morrerem de inveja. Puxa, coisa fina, mesmo. Entusiasmado, Ford leu as especificações técnicas da nave, de vez em quando soltando uma interjeição de espanto. Pelo visto, a astrotecnologia galáctica havia progredido muito durante seus anos de exílio. Arthur ficou ouvindo os detalhes técnicos que Ford lia, mas, como não entendia quase nada, começou a pensar em outras coisas, enquanto seus dedos deslizavam por uma incompreensível fileira de computadores, até apertar um botão vermelho e tentador num painel. Imediatamente o painel iluminou-se, com os dizeres: Favor não apertar este botão outra vez. Arthur ficou quieto na mesma hora.
- Escute só - disse Ford, ainda fascinado pelo folheto. - Diz coisas fantásticas sobre a cibernética da nave. Uma nova geração de robôs e computadores da Companhia Cibernética de Sírius, contando com o novo recurso de PHG.
- O que é PHG? - perguntou Arthur.
- Diz que é "Personalidade Humana Genuína".
- Que coisa horrível - disse Arthur.
- Põe "horrível" nisso - disse uma voz atrás deles. Era uma voz baixa, desesperançada; foi seguida de um leve estalido. Os dois viraram-se e viram um homem de aço, arrasado, todo encolhido, à porta do compartimento.
- O quê? - disseram os dois.
- É horrível - prosseguiu Marvin. -Tudo isso. Medonho. Melhor nem falar nisso. Vejam essa porta - disse, entrando. Os circuitos de ironia começaram a atuar sobre seu modulador de voz, e Marvin pôs-se a parodiar o estilo do folheto de vendas. - Todas as portas desta nave são alegres e bem-humoradas. É um prazer para elas abrir para você, e fechar de novo com a consciência de quem fez um serviço bem-feito.
Ao fechar-se, a porta realmente parecia dar um suspiro de satisfação:
"Hummmmmmmmmmmmmmmmm ah!"
Marvin encarou-a com fria repulsa, enquanto seus circuitos lógicos, cheios de asco, consideravam a possibilidade de agredir a porta fisicamente. Outros circuitos, porém, intervieram, dizendo: "Pra quê? Não vai adiantar mesmo. Nunca vale a pena se envolver." Enquanto isso, outros circuitos divertiam-se analisando os componentes moleculares da porta e dos neurônios dos humanóides. Para terminar, mediram também o nível de emissões de hidrogênio no parsec cúbico de espaço a seu redor, e depois se desligaram de novo, chateados. Um espasmo de desespero sacudiu o corpo do robô, que se virou para os dois.
- Vamos - disse ele. - Me mandaram buscar vocês e levá-los até a ponte de comando. Pois é. Eu, com um cérebro do tamanho de um planeta, e eles me mandam buscar vocês e levar até a ponte de comando. Que tal isso como realização profissional?
Virou-se e voltou à porta odiosa.
- Ah, desculpe - disse Ford, seguindo-o -, mas a que governo pertence esta nave?
Marvin ignorou a pergunta.
- Olhe bem pra essa porta - sussurrou ele. - Ela vai abrir agora. Sabe como é que eu sei? Por causa do ar de autocom-placência insuportável que ela gera nessas ocasiões.
Com um gemidinho manhoso, a porta abriu outra vez, e Marvin saiu, pisando com força.
- Vamos - disse ele.
Os dois seguiram-no rapidamente, e a porta fechou-se, com uma série de estalinhos e gemidinhos de contentamento.
- Agradeçam ao departamento de marketing da Companhia Cibernética de Sírius - disse Marvin, e foi subindo, desolado, o corredor curvo e reluzente. - Vamos construir robôs com Personalidades Humanas Genuínas, eles disseram. Resultado: eu. Sou um protótipo de personalidade. Nem dá pra perceber, não é?
Ford e Arthur, sem graça, murmuraram que não.
- Detesto essa porta - insistiu Marvin. - Não estou baixando o astral de vocês, estou?
-A que governo... - insistiu Ford.
- Nenhum - respondeu o robô. - Foi roubada.
- Roubada?
- Roubada? - disse Marvin, imitando-o.
- Por quem?
- Zaphod Beeblebrox.
Uma coisa extraordinária aconteceu com o rosto de Ford. No mínimo cinco expressões diferentes e perfeitamente distintas de choque e espanto se acumularam sobre ele, formando uma barafunda fisionômica. Sua perna esquerda, que estava no ar naquele instante, teve dificuldade em encontrar o chão de novo. Ford olhava para o robô e tentava contrair seus músculos dartóides.
- Zaphod Beeblebrox...? - exclamou, em voz baixa.
- Desculpe, será que eu disse algo que não devia dizer? - disse Marvin, seguindo em frente sem se virar. - Desculpem-me por respirar, embora eu nunca respire de fato, então nem sei por que estou dizendo isso. Ah, meu Deus, estou tão deprimido! Mais uma porta metida a besta. Ah, vida? Não me falem de vida.
- Ninguém falou de vida - retrucou Arthur irritado.
- Ford, você está bem? Ford virou-se para ele.
- Eu ouvi mal ou esse robô falou em Zaphod Beeblebrox?
Capítulo 12
Uma música barulhenta e vulgar encheu a cabine de controle da nave Coração de Ouro enquanto Zaphod percorria as estações do rádio subeta para tentar ouvir alguma notícia a respeito de si próprio. Aquela máquina era difícil de operar. Durante muito tempo, os rádios foram controlados por botões de apertar e de rodar; depois a tecnologia sofisticou-se, e bastava roçar os dedos no painel; agora era só fazer um sinal com a mão à distância, em direção ao rádio. Realmente, dava bem menos trabalho, mas obrigava a pessoa a ficar quietinha se ela quisesse ficar escutando a mesma estação.
Zaphod mexeu com a mão e a estação mudou outra vez. Mais música vagabunda, só que dessa vez era o prefixo de um boletim de notícias. O
noticiário era sempre editado de modo a corresponder ao ritmo da música de fundo. Dizia o locutor:
- ...e reportagens via faixa subeta, irradiadas para toda a Galáxia dia e noite... E
um bom-dia para todas as formas de vida inteligentes em toda a Galáxia... A grande notícia de hoje, é claro, é o sensacional roubo da nave-protótipo com o gerador de impro- babilidade infinita, cometido por ninguém menos que o presidente da Galáxia, Zaphod Beeblebrox. E o que todos querem saber é se o Grande Z. B. finalmente pirou de vez. Beeblebrox, o homem que inventou a Dinamite Pangaláctica, ex-vigarista, uma vez citado por T. Eccentrica Gaüumbits como um homem capaz de proporcionar a uma
mulher uma sensação semelhante ao big-bang da Criação, recentemente eleito pela sétima vez a Criatura Racional Mais Mal-vestida de Todo o Universo Conhecido... Qual será a dele dessa vez? Perguntamos a seu terapeuta cerebral, GagHalfrunt... O fundo musical cresceu e diminuiu logo em seguida, e ouviu-se uma outra voz, provavelmente Halfrunt: Bem, a se-nhorr Zaphorr serr uma criaturra muita... Neste momento, um lápis elétrico arremessado do outro lado da cabine desligou à distância o aparelho de rádio. Zaphod virou-se irritado para Trillian
- fora ela quem jogara o lápis.
- Por que você fez isso? - perguntou ele.
Trillian estava tamborilando com os dedos uma tela cheia de números.
- Acabo de ter uma idéia - disse ela.
- É mesmo? Tão importante que vale a pena interromper um noticiário a meu respeito?
-Você já devia estar cansado de ouvir falar de você mesmo.
- Sou um cara muito inseguro. Você sabe.
- Será que dava pra gente deixar de lado o seu ego só um minutinho? É
uma coisa importante.
- Se tem aqui alguma coisa mais importante que meu ego, que seja imediatamente presa e fuzilada - disse Zaphod, olhando para ela zangado. Depois começou a rir.
- Escute - disse ela -, nós pegamos os tais caras...
- Que caras?
- Os dois caras que a gente pegou.
- Ah, sei - disse Zaphod. - Aqueles dois caras.
- Eles estavam no setor ZZg Plural Z Alfa.
- Sei - disse Zaphod, sem entender.
- Isso não lhe diz nada? - disse Trillian, em voz baixa.
- Humm - disse Zaphod - ZZg Plural Z Alfa, ZZg Plural Z Alfa?
- E então? - insistiu Trillian.
-Ah... o que quer dizer Z? - perguntou Zaphod.
- Qual deles?
- Qualquer um deles.
Uma das coisas que Trillian achava mais difícil no seu relacionamento com Zaphod era saber quando ele estava fingindo ser burro só para desarmar as pessoas, quando estava fingindo ser burro porque estava com preguiça de pensar e queria que os outros fizessem isso por ele, quando estava fingindo ser terrivelmente burro para ocultar o fato de que não estava entendendo o que estava acontecendo e quando realmente era burrice mesmo. Ele tinha fama de ser inteligentíssimo - e sem dúvida era.-, mas não o tempo todo, coisa que evidentemente o preocupava; daí os fingimentos. Preferia que as pessoas ficassem intrigadas a que o encarassem com desprezo. Era isto que Trillian achava a maior burrice de todas, mas ela já desistira de discutir o assunto. Trillian suspirou e apertou um botão. Apareceu um mapa estelar na tela. Ela resolvera trocar tudo em miúdos para ele, qualquer que fosse o motivo pelo qual ele não queria entendê-la.
- Ali - disse ela, apontando. - Bem ali.
- Ah... sei! - disse Zaphod.
- E então?
- Então o quê?
Uma parte da mente de Trillian gritava com outras partes de sua mente. Muito calma, ela respondeu:
- É o mesmo setor em que você me pegou quando a gente se conheceu. Zaphod olhou para ela e depois olhou de volta para a tela.
- É mesmo - disse ele -, mas que loucura! A gente devia ter ido direto para a nebulosa da Cabeça de Cavalo. Como é que fomos parar aí? Realmente, isso aí fica no meio do nada.
Trillian ignorou o comentário.
- Improbabilidade infinita - disse ela, paciente. - Foi você mesmo que me explicou. A gente passa por todos os pontos do universo, você sabe.
- É, mas é uma tremenda coincidência, não é? -É.
- Pegar uma pessoa naquele lugar? Dentre todos os lugares no Universo?
É realmente... Quero calcular isso. Computador!
O computador de bordo da Companhia Cibernética de Sírius que controlava todas as partículas da nave entrou na comunicação.
- Oi, gente1. - disse ele, muito alegrinho, e ao mesmo tempo cuspiu um pedaço de fita perfurada para fins de registro. Na fita perfurada estava escrito Oi, gente!.
- Ah, meu Deus - disse Zaphod. Estava trabalhando com aquele computador há pouco tempo, mas já o detestava.
O computador continuou, no tom de voz esfuziante de quem está
tentando vender detergente:
- Olhem, quero que saibam que, seja qual for o problema que vocês tiverem, eu estou aqui pra resolvê-lo, está bem?
- Está bem, está bem - disse Zaphod. - Escute, acho que eu mesmo vou calcular isso na ponta do lápis.
- Tudo bem - disse o computador, ao mesmo tempo que ia cuspindo sua mensagem dentro de uma cesta de papéis. - Eu entendo. Mas se você quiser qualquer...
- Cale a bocal - gritou Zaphod, e pegando um lápis foi sentar-se ao lado de Trillian, junto ao painel de controle.
- Está bem, está bem... - disse o computador, num tom de voz magoado, desligando seu canal de fala.
Zaphod e Trillian puseram-se a examinar as cifras que o rastreador de trajetória navegacional de improbabilidade exibia na tela à sua frente.
- Dá pra gente calcular - perguntou Zaphod - qual a improbabilidade de eles serem salvos, do ponto de vista deles?
- Dá, é uma constante - disse Trillian. - Dois elevado a 276.709 contra um.
- É bem alta. Esses dois têm sorte, hein? -É.
- Mas em relação ao que nós estávamos fazendo quando a nave pegou os dois...
Trillian deu entrada nos números. A tela exibiu a improbabilidade de dois elevado a infinito menos um contra um (um número irracional que só tem significado convencional na física de improbabilidade).
- ...é bem baixa - prosseguiu Zaphod, com um assobio de espanto.
- É - concordou Trillian, olhando para ele com um olhar de perplexidade.
- É uma improbabilidade boçalmente difícil de ser explicada. Tem que aparecer alguma coisa muito improvável pra compensar, pra que o saldo seja um número razoável.
Zaphod rabiscou uns cálculos, riscou-os e jogou o lápis longe.
- Que droga, não dá pra calcular.
- E então?
Zaphod bateu com uma das cabeças na outra, de irritação, e trincou os dentes.
- Está bem - disse ele. - Computador!
Os circuitos de voz foram ligados novamente.
- Opa, tudo bem! - exclamou o computador (e toca a sair a fitinha perfurada). - Eu só quero é facilitar a sua vida cada vez mais, e mais, e mais...
- Sei. Pois cale a boca e calcule um negócio pra mim.
- Mas claro - disse o computador. - Você quer uma previsão de probabilidade baseada em...
- Em dados de improbabilidade, isso.
- Sei - disse o computador. - E vou lhe dizer uma coisa interessante. Sabia que a vida da maioria das pessoas é regida por números de telefone?
Um dos rostos de Zaphod assumiu uma expressão constrangida, logo copiada pelo outro.
- Você pirou? - perguntou ele.
- Não, mas você vai pirar quando eu lhe disser isso... Trillian soltou uma interjeição de espanto. Mexeu nos
botões da tela de trajetória de vôo.
- Números de telefone! - exclamou. - Essa coisa falou em números de telefonei
Apareceram números na tela.
O computador fez uma pausa, por uma questão de delicadeza, e depois prosseguiu:
- O que eu ia dizer é que...
- Não precisa, não, por favor - disse Trillian.
- Afinal, o que foi? - perguntou Zaphod.
- Não sei - disse Trillian -, mas aquelas duas criaturas estão vindo para cá
com aquele robô desgraçado. Dá pra gente focalizá-las com as câmeras de monitoração?
Capítulo 13
Marvin subia o corredor, ainda gemendo. - ...e, além disso, os meus diodos do lado esquerdo doem que é um horror...
- Não diga - disse Arthur, irritado, caminhando a seu lado. - É mesmo?
- É, sim - disse Marvin. - Já pedi pra trocarem esses diodos, mas ninguém me dá atenção.
- É. Sei.
Ford emitia assobios e outros sons vagos, e repetia em voz baixa sem parar:
- Ora, ora; quer dizer que o Zaphod Beeblebrox... De repente Marvin parou e levantou um dos braços.
- Você sabe o que aconteceu agora, não é?
- Não. O quê? - perguntou Arthur, que no fundo não estava interessado em saber.
- Chegamos a mais uma daquelas portas.
Havia uma porta de correr dando para o corredor. Marvin encarou-a, desconfiado.
- E aí? - perguntou Ford, impaciente. - Vamos entrar?
- Vamos entrar? -debochou Marvin. - É. Aqui é a entrada da ponte de comando. Me mandaram buscar vocês e trazer até aqui. Provavelmente é a tarefa de hoje que vai exigir mais das minhas capacidades intelectuais. Lentamente, cheio de asco, o robô aproximou-se da porta, como um caçador tocaiando sua presa. De repente a porta abriu-se.
- Muito obrigada - disse ela - por fazer uma simples porta muito feliz. No tórax de Marvin, algumas engrenagens rangeram.
- Gozado - disse ele, cavernoso -, justamente quando você pensa que a vida não pode ser pior, de repente ela piora ainda mais.
Jogou-se pela porta adentro e deixou Ford e Arthur olhando um para a cara do outro e dando de ombros. Ouviram a voz de Marvin vindo de dentro da cabine:
- Imagino que vocês queiram ver os alienígenas agora. Querem que eu fique sentado num canto criando ferrugem ou fique apodrecendo em pé
mesmo?
- É só mandar que eles entrem, está bem, Marvin? - disse uma outra voz. Arthur olhou para Ford e surpreendeu-se ao ver que ele estava rindo.
- O que...
- Psss - disse Ford. - Vamos. E passou pela porta.
Arthur veio atrás, nervoso, e viu com espanto um homem refestelado numa cadeira com os pés em cima do painel central de controle, palitando os dentes da cabeça direita com a mão esquerda. A cabeça direita parecia estar inteiramente absorta nesta tarefa, mas a esquerda sorria de modo jovial e simpático. Havia um número razoavelmente grande de coisas que Arthur via sem acreditar no que estava vendo. Seu queixo ficou caído por algum tempo. O homem esquisito acenou preguiçosamente para Ford, e, com um tom de voz de informalidade e descontração que era absolutamente falso, disse:
- Oi; Ford, tudo bem? Um prazer ver você por aqui.
Ford não fez por menos:
- Quanto tempo, Zaphod! Você está ótimo, esse terceiro braço ficou muito bem em você. Que beleza de nave você roubou, hein?
Arthur arregalou os olhos para Ford.
- Quer dizer que você conhece esse cara? - perguntou, apontando para Zaphod com um dedo trêmulo.
- Se eu o conheço! - exclamou Ford. - Ora, ele... - Fez uma pausa e resolveu começar as apresentações por Zaphod. - Ah, Zaphod, este aqui é
Arthur Dent, amigo meu. Eu o salvei quando o planeta dele explodiu.
- Ah, sei - disse Zaphod. - Oi, Arthur! Que bom que você escapou, não é?
- Sua cabeça direita olhou ao redor com indiferença, disse "oi" e entregou-se de novo ao palito.
Ford prosseguiu:
-Arthur, este aqui é meu semiprimo Zaphod Beeb...
- Já nos conhecemos - disse Arthur, seco.
Quando você está correndo na estrada, na pista de alta velocidade, e passa na maior tranqüilidade uma fileira de carros que estão dando tudo, e você
está muito satisfeito da vida, e de repente você vai mudar a marcha e em vez de passar da quarta para terceira passa por engano para a primeira, e o motor é
cuspido para fora do capo, todo arrebentado, a sensação que você tem é mais ou menos a que Ford sentiu quando ouviu o comentário de Arthur.
-Ah... o quê?
- Eu disse que já nos conhecemos.
Zaphod levou um susto, enfiando o palito na gengiva.
- Espere aí, você disse que nós... Quer dizer que... ah... Ford virou-se para Arthur com raiva nos olhos. Agora que ele
se sentia em casa de novo, de repente começou a arrepender-se de ter trazido consigo aquele ser primitivo e ignorante, que entendia tanto de política galáctica quanto uma mosca inglesa entende da vida em Pequim.
- Como é que você pode conhecê-lo? - perguntou ele.
- Este aqui é Zaphod Beeblebrox de Betelgeuse, e não o Martin Smith lá
de Croydon.
- Pois já nos conhecemos - teimou Arthur, frio. - Não é mesmo, Zaphod Beeblebrox... ou, se você preferir, Phil?
- O quê? - gritou Ford.
- Você vai ter que me refrescar a memória - disse Zaphod.
- Tenho uma cabeça horrível para espécies.
- Foi numa festa - insistiu Arthur.
- Olhe, eu acho difícil - disse Zaphod.
- Pare com isso, Arthur! - ordenou Ford. Arthur não desistiu:
- Uma festa, seis meses atrás. Na Terra... Na Inglaterra... Zaphod sacudiu a cabeça, apertando os lábios e sorrindo.
- Londres - prosseguiu Arthur. - Islington.
- Ah - disse Zaphod, subitamente com um olhar cheio de culpa. - Aquela festa.
Essa foi demais para Ford. Ele olhava de Arthur para Zaphod e de Zaphod para Arthur.
- Você está me dizendo que você também esteve naquela porcaria daquele planetinha?
- Não, claro que não - disse Zaphod, sorridente. - Bem, pode ser que eu tenha dado um pulinho lá, só de passagem, sabe, indo pra um outro lugar qualquer...
- Pois eu fiquei preso lá 15 anos!
- Bem, como eu poderia saber?
- Mas o que é que você estava fazendo lá?
- Nada, só olhando.
- Ele entrou numa festa de penetra - disse Arthur, tremendo de raiva. - Uma festa a rigor.
- Você não faz por menos, não é? - disse Ford.
- Nessa festa - prosseguiu Arthur -, tinha uma garota que... ora, deixe isso pra lá. O planeta todo desapareceu, afinal...
- Você também não pára de ruminar sobre essa porcaria desse planeta - disse Ford. - Quem era a moça?
- Ah, uma garota, sei lá. É, admito que eu não estava conseguindo me dar bem com ela. Tentei a noite inteira. Mas ela era um barato. Linda, charmosa, inteligentíssima; finalmente eu consegui entrar na dela e estava levando uma conversa quando este seu amigo me aparece em cena e diz assim: Ô coisa linda, esse cara está chateando você? Por que você não vem conversar comigo? Eu sou de outro planeta. Nunca mais vi a garota.
- Zaphod! - exclamou Ford.
- É - disse Arthur, olhando fixamente para ele e tentando não se sentir ridículo. - Ele só tinha dois braços e uma cabeça e se apresentou como Phil, mas...
- Mas você tem que reconhecer que ele era mesmo de outro planeta - disse Trillian, aproximando-se, vindo do outro lado do recinto. Dirigiu a Arthur um sorriso agradável, que o atingiu como se fosse uma tonelada de tijolos, e depois voltou aos controles da nave.
Fez-se silêncio por alguns segundos, e então do cérebro aturdido de Arthur escaparam algumas palavras:
- Tricia McMillan? O que você está fazendo aqui?
- O mesmo que você - disse ela. - Peguei uma carona. Afinal, formada em matemática e astrofísica, o que mais eu podia fazer? Se não viesse pra cá, ia ter que continuar na fila do auxílio-desemprego.
- Infinito menos um - disse o computador. - Soma de improbabilidade agora completa.
Zaphod olhou a seu redor, para Ford, Arthur e depois Trillian.
- Trillian - disse ele -, esse tipo de coisa vai acontecer toda vez que a gente usar o gerador de improbabilidade?
- Creio que muito provavelmente - disse ela.
Capítulo 14
A nave Coração de Ouro voava silenciosamente pela escuridão do espaço, agora movida pelo motor convencional, a fótons. Seus quatro passageiros estavam intranqüilos, sabendo que haviam sido reunidos não por sua própria vontade ou por simples coincidência, e sim por uma curiosa perversão da física - como se as relações entre pessoas fossem regidas pelas mesmas leis que regiam o comportamento dos átomos e moléculas. Quando caiu a noite artificial da nave, todos ficaram satisfeitos de ir cada um para sua cabine e tentar acertar as suas idéias.
Trillian não conseguia dormir. Sentada num sofá, olhava fixamente para uma pequena gaiola que continha os últimos vínculos com a Terra que lhe restavam - dois ratos brancos que ela insistira em trazer. Jamais pretendera voltar à Terra, porém perturbava-a a sua própria reação negativa ao saber que o planeta fora destruído. Parecia algo de remoto e irreal, e ela não conseguia encontrar pensamentos apropriados a respeito. Ficou vendo os ratos zanzando de um lado para o outro em sua gaiola, ou correndo furiosamente sem sair do lugar numa roda de exercício; acabou ficando totalmente absorta no espetáculo dos ratos. De repente sacudiu-se e voltou à ponte de comando para olhar as luzinhas e números que indicavam a trajetória da nave através do espaço vazio. Ela tentava descobrir qual era o pensamento que estava tentando evitar. Zaphod não conseguia dormir. Também queria saber qual era o pensamento que não se permitia pensar. Ele sempre sofrerá da sensação incômoda de não estar completamente presente. Na maior parte do tempo, conseguia pôr de lado essa idéia e não se preocupar com ela, mas tais pensamentos haviam retomado com a chegada inesperada de Ford Prefect e Arthur Dent. De algum modo, aquilo parecia fazer um sentido que ele não conseguia entender.
Ford não conseguia dormir. Estava muito excitado por estar novamente com o pé na estrada. Haviam terminado seus 15 anos de exílio, justamente quando ele estava quase perdendo as esperanças. Viajar com Zaphod por uns tempos lhe parecia uma perspectiva interessante, ainda que houvesse algo de ligeiramente estranho em seu semiprimo que ele não conseguia definir com clareza. O fato de ele se tornar presidente da Galáxia era surpreendente, como também o era o modo como abandonara seu cargo. Haveria uma razão para seu gesto? Não adiantaria perguntar-lhe - Zaphod jamais justificava o que fazia. Ele tornara a imprevisibilidade uma forma de arte. Fazia tudo com uma mistura de extraordinária genialidade e incompetência ingênua, sendo muitas vezes difícil saber distinguir uma coisa da outra.
Arthur dormia; estava absolutamente exausto.
Alguém bateu à porta de Zaphod. A porta se abriu.
- Zaphod...?
- Que é?
A silhueta de Trillian desenhava-se à entrada da cabine. -Acho que acabamos de encontrar o que você está procurando.
- É mesmo?