Tomo II As Estrelas dos Albos

Noite de prata

Em silêncio, os elfos Farodin e Nuramon, acompanhados do humano Mandred, cavalgavam pela floresta noturna. Uma suave brisa de outono colhia as últimas folhas dos galhos. Nunca antes Mandred sentira tão nitidamente a magia da Terra dos Albos. A lua estava baixa no céu e parecia muito maior do que no mundo dos humanos. Naquela noite, emitia um brilho vermelho. Isso é sangue, ouvira os elfos sussurrarem. Seria um aviso de desastres que estavam por vir.

O mais incomum naquela noite, no entanto, não era o brilho da lua, mas a luz prateada que envolvia a noite. Lembrava um pouco a luz esverdeada das fadas que, em noites claras de inverno, vira algumas vezes pairar sobre Firnstayn. Mas esta era diferente. Não estava alta no céu, mas entre as árvores ao redor deles, como um véu de um tecido feito de fios do luar. Por vezes, faíscas claras dançavam entre os galhos. Eram como estrelas caídas do céu noturno.

Desta vez, o caminho não os levava até o castelo de Emerelle, e não haviam atravessado Shalyn Falah, a ponte branca. Nuramon esclarecera a ele que na última noite do outono os elfos celebravam a festa da Noite de Prata, encontrando-se em uma clareira no meio da Velha Floresta. Foi a partir desse lugar que um dia os albos deixaram o mundo. Nessa noite especial, Emerelle podia tecer um feitiço que a permitia ouvir as vozes dos antepassados — dos elfos que partiram para o luar.

Eles já haviam cavalgado horas pela a floresta. Mandred estimava que a meia-noite já não podia estar longe. Foi quando ouviram uma música baixa. Primeiro era somente um som vago e indistinto, uma mudança mal perceptível em meio aos barulhos da floresta. O pio das corujas e o ruído dos ratos sobre a folhagem foram desvanecendo mais e mais, quando uma canção soou ao longe. Mandred pensou ter visto um rapaz de pernas de bode na sombra das árvores, tocando uma flauta e dançando.

Então outros sons se juntaram à música da flauta. Sons que o filho de humanos não conseguia atribuir a nenhum instrumento musical. Os elfos estavam inquietos, quase como crianças ansiosas pelas guloseimas que havia nas terras do fiorde durante o Festival das Maçãs.

Entre os desenhos das sombras das árvores, agora brilhava uma luz vermelha. Uma enorme lanterna... Não, uma barraca onde havia luz. A floresta se abriu, e era como se Mandred estivesse hipnotizado pelo espetáculo que surgiu diante dele. Haviam alcançado uma ampla clareira, em cujo centro havia uma grande colina onde se erguia uma íngreme agulha rochosa. Vista de baixo, parecia alcançar até a lua. Nem uns cinquenta homens conseguiriam abraçar juntos, de braços bem abertos, o pé da rocha. Mil luzes dançavam no ritmo da música ao redor daquele megálito.

Em volta da colina havia dúzias de menires, como se fossem irmãos menores da agulha rochosa. Ao seu redor, elfos se moviam, dançando em uma roda animada. Um acampamento se estendia por toda a clareira. Como enormes e coloridas lanternas, as barracas brilhavam na noite. Eram tantas que parecia não ter sido apenas a corte de Emerelle a convidada para esta festa.

De repente, o ritmo da música se alterou e Mandred viu uma única silhueta se soltar da roda de elfos dançantes. Envolta por uma luz cintilante, ela pairou até o topo da agulha rochosa e saudou a lua com os braços bem abertos.

Como em resposta ao cumprimento, uma luz fluida brotou do rochedo, envolveu toda a colina e derramou-se sobre toda a clareira. Chegou também até os companheiros. Mandred prendeu a respiração, espantado. Só uma vez na vida vira luz semelhante, quando em uma tarde de verão mergulhou nas águas claras do fiorde. Lembrava-se nitidamente de como olhou das profundezas para o sol e viu as águas transformarem os seus raios.

Ainda não ousava respirar. Uma sensação de tontura o acometeu. A luz parecia fluir através dele e puxá-lo para ela.

Mandred ouviu vozes.

— Não, ele está bem.

Piscando, o filho de humanos olhou ao seu redor. Estava deitado na grama alta.

— O que há comigo?

— Você caiu do cavalo de repente — respondeu Nuramon. — Mas parece que não se machucou.

— Cadê a luz?

Mandred tentou se erguer. Estava deitado ao lado de uma barraca vermelha; mas a luz maravilhosa que fluíra do rochedo havia desaparecido.

Nuramon ajudou-o a se levantar.

— Você é o primeiro filho de humanos a presenciar a festa da Noite de Prata — disse Ollowain, austero. — Espero que você saiba apreciar essa graça tão especial.

— Mestre da espada? — dois elfos de armadura cintilante aproximaram-se deles. — A rainha gostaria de vê-lo a sós.

Farodin e Nuramon entreolharam-se admirados.

— Será que caímos em desgraça? — perguntou Mandred secamente.

— Não cabe a nós interpretar as ordens da rainha.

Sem mais nenhuma palavra, os guerreiros elfos afastaram-se, acompanhados por Ollowain.

— Ele foi convidado ou detido? — perguntou Yilvina, surpresa.

— Você acha que Emerelle sabe que, em Aniscans, ele veio em nosso socorro só bem tarde? — perguntou Mandred.

— Acho que ela quer ouvir a palavra dele antes da nossa — retrucou Farodin, desta vez trocando um olhar preocupado com Nuramon.

A lua já se deslocara até o horizonte quando os guardas voltaram. Tinham-nos deixado mais de uma hora sozinhos com suas dúvidas enquanto os demais filhos dos albos celebravam uma festa animada. Eles seguiram os dois guerreiros até a barraca cor de açafrão da rainha. Era maior que uma casa comunal, pensou Mandred com inveja.

Quando ele quis entrar atrás de seus companheiros, os guardas cruzaram as lanças na sua frente.

— Desculpe-nos, filho de humanos — disse um deles. — Esta noite não é permitido a você ver a rainha. Só o fato de estar participando desta festa já é uma honra maior que qualquer outra já concedida a outros humanos.

Mandred preparava-se para dar uma resposta ácida quando ouviu nitidamente a voz da rainha vindo da barraca. Era possível ver sua sombra através do tecido. Ela lhe parecia maior que na sala do trono, mas devia ser por causa da luz.

— Estou feliz por vê-los sãos e salvos.

— Minha rainha, o seu desejo foi cumprido. O filho de Noroelle está morto.

— Você sabe muito bem qual era o meu desejo e que ele não foi cumprido. Guillaume não morreu pelas suas mãos e ainda menos pelas dos seus companheiros. Então não me diga que meu desejo se cumpriu! — a voz da rainha dos Elfos era gelada como a luz do luar. Mandred nunca a ouvira falar assim antes. — Vocês não seriam capazes de mensurar o quanto me decepcionaram nem o tamanho do dano que vossas ações causarão. Não se trata de Guillaume morrer, mas também de como morreu. Então nem ousem me perguntar sobre Noroelle! O êxito de vocês poderia ter pago a dívida dela, mas dessa forma nada mudou.

Mandred mal acreditava em seus ouvidos. O que Emerelle queria? Guillaume estava mesmo morto! Farodin e Nuramon não mereciam ser tratados dessa forma. Sua vontade era nocautear os dois guardas para entrar na barraca e ensiná-la uma lição de justiça.

— Senhora! — respondeu Nuramon insolente. — Só lamento não ter conseguido impedir a morte de Guillaume. O filho de Noroelle não era o que você via nele. E se ele tinha alguma culpa, era somente a de ter nascido.

— Você viu o que a magia dele podia causar, e queria trazê-lo aqui! Tanto faz o que você diz: ele continuava sendo o filho de um devanthar. E mesmo na morte ele foi um instrumento. Você teve uma noite inteira para cumprir a minha ordem sem ser notado. Naquela noite você mudou o destino da Terra dos Albos. Lá fora, no outro mundo, algo está acontecendo... Não posso ver no meu espelho-d’água, mas estou sentindo. O devanthar... Ele está usando a maneira como o filho de Noroelle morreu para os seus propósitos. Não desistiu da sua vingança contra nós. De agora em diante, precisamos ficar vigilantes. Ninguém mais poderá deixar a Terra dos Albos. E ninguém vai voltar para cá. Nomeei Ollowain guardião dos portais, pois ele provou ser meu escudeiro mais fiel. Agora vocês já podem ir.

Mandred estava perplexo. O que a rainha temia? Nenhum soberano humano era tão poderoso quanto ela e, ainda assim, ordenava que fechassem os portais — como se a Terra dos Albos fosse um castelo esperando para ser sitiado e invadido.

Alaen Aikhwitan

Cavalgando ao lado de Nuramon, Mandred adentrou uma grande floresta. Em algum lugar dali estava a casa do elfo. Farodin estava com a família. Queria vir à noite para discutir com eles o que restava a fazer, agora que todos os portais entre os mundos estavam sendo vigiados pelos guardas da rainha. Nuramon parecia abatido. Mandred compreendia bem os seus sentimentos, já que a rainha frustrara toda e qualquer esperança sua de algum dia rever Noroelle.

A floresta era estranha para Mandred. Não conseguia orientar-se ali, pois as árvores pareciam confundir os seus sentidos. Quanto mais fundo penetravam na mata, mais difícil era para ele estimar em que direção cavalgavam. Talvez fosse por causa do caminho que Nuramon escolheu. Mandred observava o companheiro; para ele era como se o elfo estivesse deixando o seu cavalo decidir por onde ir. O animal deslocava-se pela floresta de forma tão determinada que mal precisava mudar de direção. Aparentemente conhecia o caminho até a casa de Nuramon.

A trilha era plana e não havia quaisquer obstáculos que precisassem transpor. Talvez pudesse ser isso o que confundia Mandred. Pelo que vira ao longe, parecia erguer-se no meio da floresta uma colina coberta de árvores. Deviam há muito tempo ter alcançado o sopé. Mas ali ao redor não havia nada mais alto que formigueiros. E talvez a diversidade da vida que o cercava também o confundisse: pássaros e animais selvagens não tinham medo de observá-los a distância, como se quisessem ver Nuramon voltando para casa.

Quanto mais avançavam floresta adentro, maiores e mais velhas ficavam as árvores. A variedade das florestas élficas surpreendia Mandred o tempo todo. Ali havia carvalhos ao lado de álamos, bétulas perto de pinheiros e faias junto de salgueiros. E tudo em perfeita harmonia. Parecia até que cresciam assim intencionalmente, para combinar com as suas vizinhas. Foi inevitável lembrar do carvalho Aikhjarto.

— Quantas destas árvores são como o velho Atta Aikhjarto? — perguntou ao elfo.

Nuramon o encarou como se estivesse contando com tudo, exceto com essa pergunta.

— As árvores também são filhas dos albos? — prosseguiu ele, surpreendendo Nuramon outra vez.

— Mas é claro! — respondeu o elfo. — Só as que têm alma, naturalmente. Mas nesta floresta não há mais muitas delas. Foi-se o tempo em que o grande Alaen Aikhwitan dava conselhos.

— Alaen Aikhwitan? Ele é irmão de Atta Aikhjarto?

— Você pode ver desta forma. Os carvalhos são os mais antigos. Alguns dizem que foram os primeiros filhos dos albos. Logo você já poderá ver Aikhwitan. —

Nuramon sorriu. Mandred não conseguiu decidir se o sorriso foi amigável ou de gozação. Para ele ainda era difícil interpretar sentimentos nas feições dos rostos dos elfos.

Eles cavalgavam, passando por árvores cada vez maiores, e Mandred se perguntava o quão poderoso Alaen Aikhwitan devia ser. Até onde seu poder era capaz de chegar?

— Todas essas árvores tiveram almas um dia? — insistiu.

— Sim. Elas formavam um grande conselho. Mas isso já faz muito tempo. E desse conselho restou somente Alaen Aikhwitan. As outras árvores com almas são muito mais jovens.

Mandred olhou ao redor respeitosamente. Se as árvores um dia formaram um conselho, agora a floresta parecia um plenário vazio, onde estava sentado somente o seu chefe. Quão solitário o Aikhwitan devia se sentir!

As ramas das árvores sobre as cabeças deles eram densamente entrelaçadas, quase como uma renda finamente tecida. O sol permanecia escondido por cima daquele telhado de madeira; raramente um fio de luz conseguia penetrar e descer até o chão. Os troncos pareciam colunas construídas por gigantes. A atmosfera solene parecia curar a melancolia de Nuramon, que estava agora com uma aparência um pouco mais relaxada.

Desviaram de um tronco imponente. Mandred virou-se na sela e olhou para trás. Era um pinheiro! No seu mundo não havia sequer carvalhos que tivessem um tronco como esse.

— Algo de errado? — perguntou Nuramon, rindo.

— Grande mesmo o... — Mandred parou no meio da frase.

Haviam alcançado a borda de uma clareira. No meio dela erguia-se um enorme carvalho. Como se para essas árvores gigantes não houvesse mais estações do ano além da primavera e do verão, ainda tinha folhas. Era tão gigantesco que a sombra do tronco alcançava a margem oposta da floresta.

Mandred prendeu a respiração. O tronco do carvalho era tão imenso quanto um rochedo. Ele não parecia uma árvore, mas algo em que cresciam árvores. Uma escada subia tronco acima, em várias curvas. Logo abaixo da copa, Mandred viu uma só janela. Ficou perplexo. A janela devia ser realmente grande, mesmo que parecesse minúscula proporcionalmente ao tronco.

— Você não mora lá, não é? — perguntou Mandred.

— Moro sim. Minha casa é ali, sobre o Alaen Aikhwitan — respondeu Nuramon calmamente.

— Em cima dessa árvore gigante?

— Sim.

— Mas você disse que ela tem alma.

Mandred achava muito estranho morar em algo capaz de pensar. Todos deviam se sentir como pulgas na pele de um cão!

— Ele é muito hospitaleiro, isso eu posso assegurar. Minha família mora nessa árvore há muitas gerações.

De repente Nuramon baixou o olhar. Com certeza pensava na vergonha que cercava a sua família. Mandred não conseguia entender. O renascimento! Os homens sonhavam com isso, mas, para Nuramon, isso parecia uma maldição. Bem que alguns filhos de albos esperavam milênios por sua redenção. Milênios... Isso era fácil de dizer da boca para fora, mas Mandred percebeu que não conseguia preencher essa palavra com significado. Uma vida assim tão longa era inimaginável para um humano. Todavia, aos elfos ela permitia que concluíssem tudo o que faziam até a perfeição. Mas será que eles se recordavam de suas vidas anteriores quando renasciam? Mandred lembrou da festa de duas noites atrás. Era assim quando um elfo partia para o luar? Fora realmente lindo e igualmente aflitivo. Estranho. O que aconteceu naquela colina certamente não foi feito para os olhos dos humanos!

Eles apearam e conduziram os cavalos ao encontro do carvalho. A cada passo, a árvore parecia mais ameaçadora para Mandred.

— Quem é mais poderoso, Aikhjarto ou Aikhwitan? — perguntou por fim.

Nuramon abanou a cabeça.

— Como o poder é importante para vocês, humanos! Mas acho que quer saber qual é o papel de Aikhjarto neste mundo. Sobre isso só posso dizer uma coisa: o poder de Aikhjarto está no portal dos mundos e em sua sabedoria e generosidade. — E apontando para adiante: — O poder de Aikhwitan está no seu tamanho, conhecimento e hospitalidade.

Mandred não ficou satisfeito. Esses elfos sempre dão voltas para dizer qualquer coisa! Será que com isso Nuramon queria dizer que não era possível comparar os dois? Ou será que tinham o mesmo valor? Essa maldita conversa mole de elfo! Será possível que para eles nunca havia respostas simples?

O elfo prosseguiu:

— Você não precisa se preocupar, Mandred. Olhe como as folhas são tranquilamente embaladas pelo vento, como brincam com a luz graciosamente! Veja a casca! Os sulcos são tão largos e profundos que, quando eu era criança, conseguia enfiar as mãos neles e até encontrar apoio para meus pés. Eu subia assim daqui debaixo até a casa lá em cima. Ele pode parecer ameaçador por causa do tamanho, mas a alma do velho Aikhwitan é boa.

Mandred examinou a árvore melhor. Viu as folhas de que Nuramon falou e a luz encoberta. Lá em cima, de fato, parecia tranquilo.

Chegaram até a escada, que era feita de madeira clara. Ali desarrearam os cavalos. Mandred se perguntou onde estava o estábulo para os animais. Até a rainha tinha um estábulo no castelo. Nuramon não fez menção de levar os cavalos a algum lugar. Soltou os animais das rédeas e colocou-as junto ao tronco do carvalho, ao lado das selas.

— Eles não sairão daqui — disse. — Vamos subir.

O cavalo de Nuramon era leal, mas a égua de Mandred certamente ainda não o desculpara pelas grosserias das últimas luas. Que pena seria perdê-la! Contrariado, ele seguiu o elfo.

Depois de começar a subida dando a primeira volta no tronco, Mandred olhou para cima. Ainda havia um longo trecho diante deles. Como Nuramon fazia se voltasse bêbado para casa alguma vez? Dormia lá embaixo, nas raízes? Ele nunca vira o amigo embriagado. Ao contrário de Aigilaos, os elfos não entendiam nada de festejar e encher a cara. Mandred se perguntou por que eles faziam festas.

Para se certificar de que era firme, o Jarl tentou sacudir o corrimão da escada. Belo trabalho de carpintaria! Se a cabeça girasse, pelo menos dava para se segurar ali.

Nuramon avançava com passos flexíveis.

— Venha! Você precisa ver isso!

Mandred seguiu o elfo. Estava difícil respirar. Era loucura morar numa árvore como esta! Pessoas sensatas só precisavam dar um passo para cruzar a soleira e chegar em casa. Maldita subideira!

Quando chegaram alto a ponto de poder olhar por cima das copas das árvores, Nuramon apontou para o cume nevado de uma montanha no horizonte:

— Aqueles são os Iolídens. Lá viveram um dia os filhos dos albos das trevas.

O som do nome não agradou Mandred. Albos das trevas! E seus filhos! Eles deviam ser os lendários elfos das trevas, sobre os quais se contavam histórias terríveis no seu mundo. Diziam que eles arrastavam humanos até fendas nos rochedos para devorar sua carne. À noite não era possível vê-los, pois sua pele era negra como a escuridão. Mandred não queria nada com esses seres e estava surpreso que Nuramon falasse deles com toda essa tranquilidade. O elfo era mais corajoso do que ele queria admitir.

Em silêncio, deixaram o restante do caminho para trás, parando diante da entrada da casa. Dali era possível ver até o castelo da rainha e as terras que o cercavam. Ali, do outro lado do castelo, devia estar Shalyn Falah, e atrás dela, o portal dos mundos. Todo o restante era desconhecido para Mandred. Certamente nenhum humano jamais conhecera todas aquelas terras. Desde que deixaram Firnstayn, Mandred refletira sobre tudo o que teria de começar como náufrago no reino dos elfos. O que lhe restava ali a realizar que um elfo não pudesse fazer mil vezes melhor?

Lembrou-se de Aigilaos. Se ao menos ele ainda estivesse vivo! Vaguear com ele pelas florestas; caçar e beber; contar mutuamente feitos heroicos inventados e indignar as finas damas elfas da corte com elogios grosseiros... Isso sim seria vida! Sorriu, afundado dentro de si. Sentia falta do centauro. Ele teria sido o melhor de todos os seus companheiros! Mandred estava decidido a levar sua dívida de sangue com o devanthar até o fim. Não sabia onde deveria começar a sua busca, nem como deixar a Terra dos Albos depois que Emerelle cercara todos os portais com guardas. Mas ele encontraria um jeito! Devia isso a Aigilaos... E a Freya!

Nuramon empurrou a porta redonda, que não parecia estar fechada nem trancada. Parecia que os filhos dos albos não tinham medo de ladrões. O elfo hesitou antes de entrar.

— O Outro Mundo confundiu a minha noção do tempo — disse ele. — Para mim é como se tivessem passado séculos em vez de anos.

— Não é o tempo. É o destino.

Nuramon parou por um instante.

— O que você disse?

— Essas palavras não são minhas — respondeu Mandred, constrangido. — Um sacerdote de Luth as pronunciou uma vez. Ele disse: o tempo parece longo quando o destino tem muitas faces.

— São palavras de um homem lúcido, e é sinal de sabedoria mantê-las na mente.

Mandred ficou satisfeito. Finalmente recebia algum reconhecimento que não fosse por força e lutas.

— Venha, você é meu hóspede em minha casa — o elfo fez um gesto convidativo em direção ao interior da árvore.

Mandred entrou. Reparou imediatamente no perfume peculiar do lar de Nuramon. Cheirava a nozes frescas e folhas. As paredes e também a porta da casa eram da mesma madeira que a escada pela qual subiram. A luz, que penetrava pela janela escurecida pela folhagem, distribuía-se tão bem que de fato havia um pouco de sombra em alguns lugares, mas nenhuma parte ficava totalmente escura. Mandred viu pedras de barin castanhas nas paredes. Elas o faziam lembrar do quarto de caçador no castelo da rainha, e de como começavam a brilhar à noite. Que preciosidade seria ter uma que fosse dessas pedras no mundo dos humanos!

Um sopro frio percorreu a sala. No chão havia agora algumas folhas do carvalho. Mas não estavam murchas: viviam como se ainda fossem um pedaço da árvore. Mandred olhou ao seu redor e perguntou-se como é que não sentia nenhuma corrente de ar na casa mesmo com todas aquelas aberturas. Os móveis eram simples e combinavam com a atmosfera do cômodo. Ali não havia nada de supérfluo, e ainda assim era bonito. Nada parecia frágil: tudo era tão robusto quanto o próprio carvalho.

Uma escada de madeira levava até o andar de cima, que não foi possível ver de fora por causa da folhagem espessa. Esse outro piso foi feito escavando parcialmente o tronco do carvalho. Mandred perguntava-se como Alaen Aikhwitan podia ter concordado com isso. Que tipo de feitos heroicos os antepassados de Nuramon deviam ter realizado para que ele lhes concedesse essa honra? O teto arredondado era tão suave que parecia que a madeira de Aikhwitan se fundia com a madeira mais clara das paredes e do chão.

— De que árvore é essa madeira clara? — Mandred quis saber.

Nuramon pôs sua bagagem sobre um banco.

— Essa é a madeira da Ceren.

— Isso é uma espécie de árvore?

— Minha mãe dizia que era uma bétula. Naquela noite da Caçada dos Elfos eu descobri que seu nome era Ceren. Ela devia ser uma lenda entre as árvores.

— Sei... Aikhwitan vai me tolerar aqui? Com certeza nenhum humano já pôs o pé na sua casa.

Nuramon sorriu.

— Mas você conseguiu chegar até aqui. Não está se sentindo muito bem?

Mandred teve de concordar. Sentia-se seguro e protegido. Olhou ao redor mais uma vez.

— E aqui não mora mais ninguém? Sua casa não parece ter ficado mais de trinta anos sem ninguém pisar nela.

Nuramon fez cara de quem não entendeu.

— O que você quer dizer?

— Não vejo poeira nem sujeira. Só essas folhas ali no chão. Mas de alguma forma parece que elas fazem parte do ambiente.

— Ainda está como eu deixei.

Esses elfos tinham uma vida fácil. Provavelmente a árvore se encarregava de deixar tudo limpo. Talvez Nuramon sequer tivesse pensado nisso alguma vez.

Enquanto o elfo subia com suas coisas, Mandred deu uma olhada nos cômodos adjacentes. Embora nunca tivesse estado ali, sentia como se a casa lhe fosse familiar. Talvez porque conhecia Nuramon e seu lar combinava com ele.

No meio da casa na árvore havia uma sala ampla, com uma longa mesa de jantar. “Que desperdício!”, pensou Mandred. A mesa era grande demais para um único morador. Então lembrou-se de que Nuramon falara de sua família. Talvez um dia todo o seu clã tivesse vivido ali. Nessa mesa tranquilamente havia lugar para doze pessoas. Devia ser desolador morar sozinho com suas lembranças numa casa como esta. Mandred tinha consciência de que esse era o seu motivo para não querer morar mais em Firnstayn. Ficar lá sozinho com suas recordações de Freya não era para ele. Amava muito Alfadas, mas não poderia mais ser feliz lá.

Cansado, Mandred sentou-se à janela de um cômodo vizinho, onde uma almofada pesada oferecia um ótimo local para descansar. Olhando para fora, conseguia ver até as montanhas. Agora pareciam menos ameaçadoras que há pouco, quando Nuramon falou dos albos das trevas. Ele não disse que um dia eles viveram ali? E o que teria acontecido com seus filhos? Enquanto pensava nisso, Mandred caiu num sono tranquilo...

Sonhou com uma voz masculina ao vento, que sussurrava para ele: “É hora de quebrar o meu silêncio. Conte-me o que aconteceu com você!”. Então, contou à voz do sonho sobre o devanthar e seu fracasso no gelo, seu resgate por Aikhjarto, a Caçada dos Elfos, seu filho e a busca pelo filho de Noroelle. Quando terminou, esperava por um novo sussurro no vento. Mas o vento se dissipou, calando a voz.

Acordou num sobressalto e olhou para fora. Estava escuro. O vento mexia suavemente os galhos e folhas. Então, espreguiçou-se e bocejou. Tinha a sensação de ter cochilado rapidamente. Na verdade, devia ter dormido algumas horas, pois já era noite. Olhou ao redor. As pedras de barin emanavam uma luz quente. Então sentiu um cheiro. Carne! Ergueu-se num pulo e foi até a mesa de jantar ali ao lado. Lá havia legumes crus, aparentemente recém-colhidos. Pela porta aberta da cozinha viu Nuramon, que estava diante do forno a lenha e punha alguma coisa dentro dele. Mandred estava admirado. Não só por Alaen permitir que Nuramon vivesse ali, mas por deixar até que fizesse fogo! Parecia que o carvalho não se importava nada com isso.

O elfo virou-se e veio até Mandred na sala.

— Finalmente você acordou. Não tinha reparado no quanto você estava esgotado. Enquanto dormia, saí para caçar.

O elfo apanhou os legumes da mesa.

Mandred ficou envergonhado. Perdeu a caçada ali jogado, dormindo preguiçosamente.

— O lugar perto da janela é aconchegante demais para conseguir ficar acordado.

Nuramon riu.

— Minha mãe sempre se sentava à janela e falava com Aikhwitan.

Aflito, o jarl olhou para trás. A ideia de que um espírito estivera nele durante o sono o assustava.

— Para mim, foi como se tivesse ouvido uma voz.

Ele contou ao elfo o que aconteceu.

Nuramon deixou cair a faca com que limpava os legumes. Parecia surpreso e também um pouco ofendido.

— Eu passo a minha vida inteira neste lugar e Aikhwitan não fala nem uma palavra comigo. Mas aí um humano vem aqui por acaso e ele já começa a bater papo com ele. — O elfo sacudiu a cabeça. — Desculpe! É claro que ele falou com você. Afinal, você foi salvo por Aikhjarto. Ele deve ter sentido isso.

Mandred sentiu-se mal. Não pediu favores a nenhuma árvore e não queria ofender Nuramon. Árvores! Quem imaginaria que elas poderiam ser tão avoadas... Que bom que no seu mundo elas ficavam caladas! Agarrou o braço de Nuramon.

— Venha! Talvez ele também fale com você.

Eles foram até a janela e puseram-se a ouvir. Mas não se escutava nada no murmúrio das folhas. O sussurro não retornou. No fim, Mandred ficou em dúvida se realmente ouviu a voz ou se não fora só um sonho.

— Posso senti-lo aqui em todos os lugares, mas não mais que isso! — disse Nuramon. O elfo se esforçava para disfarçar o seu desapontamento, mas não conseguia. — Vamos fazer a comida.

Chegando à cozinha, Mandred viu de onde vinha o aroma. Ali havia alguns pedaços de carne assando. Ficou surpreso com a rapidez com que Nuramon preparara a carne. Em nenhum lugar da cozinha havia restos de miúdos, sangue ou pele. Assim, era impossível adivinhar de que animal era a carne que assava ali. Era clara como a de uma ave. Só de olhar, Mandred ficou com água na boca.

— O que é isso? — finalmente perguntou a Nuramon.

— Isso é gelgerok — respondeu o elfo.

Mandred estava curioso. Durante a busca pelo filho de Noroelle, os elfos sempre contaram sobre os gelgeroks, descrevendo-os em detalhes, mas Mandred ainda não era capaz de imaginar como devia ser a aparência do animal.

— O corpo dele ainda está por aqui? Posso dar uma olhada nele?

— Desculpe, Mandred. Eu o abati e deixei o que não precisava para o Gilomern.

— Gilomern? Quem é esse?

— Ele vive aqui nas florestas. É um caçador, mas também gosta de pegar para si o que os outros deixam para trás.

— Ele também é um elfo?

— Sim.

— É um amigo?

— Não. Gilomern não dá muita importância para amizades. Mas é hábito deixarmos para ele a sua parte. Ele com certeza já pegou o gelgerok. Não se preocupe. Cedo ou tarde você ainda vai ver um.

Nuramon pôs-se a cortar os legumes.

— Mandred, o que acha de preparar o molho para a carne? Eu já cortei as ervas e os temperos estão ali. O melhor é pegar o suco do assado da panela da carne e misturar tudo a seu gosto.

Mandred estava surpreso com a confiança que o elfo depositava nele. Ali estava ele, Mandred Torgridson, o jarl de Firnstayn que subjugou o devanthar... cozinhando! Se os moradores do fiorde soubessem... Então em vez de continuar cantando sobre Mandred, o jarl, cantariam sobre Mandred, o cozinheiro. Como Nuramon sempre dissera enquanto buscavam Guillaume: “Você ainda vai me fazer virar humano”. Se Mandred não tomasse cuidado, então seriam Nuramon e Farodin que fariam dele um elfo. No fim, talvez até acabasse gostando de cozinhar.

Hesitante, fez o que Nuramon pediu. Logo se surpreendeu com como o molho ficou gostoso. Ainda tomou cuidado para que a carne não queimasse e até tirou o pão do forno. Quando Nuramon experimentou o molho e disse que estava delicioso, Mandred não conseguiu esconder seu orgulho. Mas é claro que estava delicioso!

Enquanto Nuramon e ele levavam as comidas para a mesa, Farodin entrou. Trouxe sua bagagem, que deixou em uma das muitas cadeiras vazias.

— Parece que cheguei na hora certa. — Ele parecia estar de bom humor e com muita fome.

— Finalmente comer de verdade de novo — disse Mandred.

O que serviam ali não eram as pequenas porções que lhe ofereceram no castelo. Nuramon trouxera muitos legumes e carne. O tempo parecia não passar para Mandred até finalmente se sentarem à mesa.

Durante a refeição, Mandred manteve os olhos em Farodin. O que o elfo diria sobre o seu molho? Até agora não tinham falado sobre ele, mas logo isso mudaria. Mandred dirigiu-se a Farodin:

— Esta carne é mesmo deliciosa. E até essa coisa verde está gostosa — olhou para Farodin. — Não é verdade?

Farodin concordou gentilmente e disse a Nuramon:

— Noroelle sempre elogiou seus dotes culinários. Eu também aprendi a apreciá-los durante a viagem. A comida está ótima, principalmente este molho.

Mandred trocou um olhar cúmplice com Nuramon. Então recostou-se na cadeira e perguntou:

— Você sabe guardar segredo?

— Mas é claro — respondeu Farodin, enfiando um pequeno pedaço de carne na boca.

— O molho fui eu que fiz — disse ele, cheio de si.

Farodin parou, então continuou a mastigar lentamente. Quando engoliu, sorriu com ar de conspiração:

— Vocês estão querendo me pegar.

— Nem um pouco — explicou Nuramon.

— Então, meus parabéns, Mandred — disse Farodin com ar de reconhecimento.

Mandred estava orgulhoso. Quando os elfos se surpreendiam, suas verdadeiras opiniões vinham à tona.

— Mas você tem de me prometer que não vai contar para ninguém que Mandred Torgridson chegou perto do fogão!

— Eu prometo, mas só se você prometer não contar a ninguém que eu não sei distinguir os dotes culinários de um humano dos de um elfo.

Era um acordo justo. Mandred conseguiria viver com isso.

Mandred viu que tinham deixado para ele, em sua honra, a maior parte dos pedaços de carne. Isso é que era hospitalidade!

Logo que terminaram de comer, entraram em um grande cômodo lateral, cujo chão era feito de pequenas lajes de pedra. No meio da sala havia um mosaico, feito de pedras preciosas incrustadas, que mostravam um elfo defendendo-se de um troll. Ali parecia ser o lugar onde a família de Nuramon antigamente reunia o seu conselho de guerra.

Farodin parou ao lado da ampla janela, de onde era possível observar toda a região e ver ao longe as luzes do castelo de Emerelle. Nuramon encostou-se na parede perto da porta, olhando fixamente o mosaico. Já Mandred não conseguiu evitar a inquietação. Preferiria ficar andando para lá e para cá.

A atmosfera alegre que reinou durante o jantar havia evaporado. Farodin deu as costas para eles. Não era necessário ser sacerdote de Luth para saber no que os elfos estavam pensando. Embora não tivessem mais permissão para deixar a Terra dos Albos, buscavam uma possibilidade de salvar sua amada. O longo silêncio mostrava o quão difícil era a situação. De repente, Nuramon olhou para Mandred e não se conteve:

— Já faz dias que quero perguntar uma coisa a você, Mandred. Por favor, me perdoe se estiver sendo direto demais. Por que você não ficou em Firnstayn?

— Porque lá agora é o lugar do meu filho — respondeu, sem hesitar. — Às vezes os pais precisam legar sua herança a seus filhos mais cedo. Se não tivesse ficado preso na caverna de gelo, agora já seria velho. O meu tempo em Firnstayn já terminou. Era uma questão de justiça: partir e dar a Alfadas a possibilidade de se tornar jarl, caso ele se firme aos olhos da comunidade da aldeia.

— Você é um guerreiro, Mandred. Para você já basta ser pai de um jarl? Isso é tudo o que você ainda quer alcançar?

Mandred encarou o elfo admirado. Será que Nuramon queria ofendê-lo? É claro que não era o bastante!

— Eu vou encontrar o homem-javali... quer dizer, o devanthar. Ele roubou de mim a vida que eu deveria ter vivido. Vou matá-lo por isso. Seus atos me fizeram perder minha mulher... — Ele mordeu o lábio, como se os sentimentos ameaçassem dominá-lo. — E eu quero ajudá-los... Nada e ninguém é capaz de trazer Freya de volta. Mas quanto a vocês dois, vocês podem recuperar a sua amada.

— Ouvir essa esperança da boca de um humano! — disse Farodin com cinismo. — A rainha mandou guardar todas as fronteiras. Nem você pode mais voltar para o seu mundo. — O elfo sequer virou-se para eles enquanto falava.

— Farodin tem razão — disse Nuramon. — A rainha deve manter os portais fechados por muitas centenas de anos. Talvez você nunca veja a sua terra de novo.

— Minha história com a minha terra já terminou. Então, não quebrem a cabeça por minha causa. Em vez disso, é melhor pensarem em como podemos salvar Noroelle.

Nuramon baixou o olhar.

— De qualquer forma, não podemos esperar qualquer ajuda da rainha. Toda e qualquer esperança de demovê-la já morreu.

— O que exatamente a rainha fez com Noroelle? — perguntou Mandred. — Eu nunca compreendi o que aconteceu com ela. Expliquem-me, talvez eu possa ser de maior ajuda.

Farodin bufou. Nuramon, porém, continuou cordial.

— A rainha a levou até o Outro Mundo, para dali então bani-la para o Mundo Partido.

— E o que é o Mundo Partido? — Durante a busca por Guillaume, Mandred ouvira algumas vezes os elfos falarem disso, mas até hoje não fazia uma boa ideia dele. — Como alguém consegue partir um mundo? Quero dizer... Mundos não são como jarros atirados ao chão.

— O Mundo Partido é um velho campo de batalha — Farodin começou a explicar. — É o lugar onde os albos lutaram contra os devanthares e os eliminaram. Durante essa guerra, esse mundo foi separado dos outros. Só há poucos portais que ainda levam até lá, daqui ou do mundo dos humanos. Esse mundo fica entre o seu e o nosso; imagine-o como algumas poucas ilhas em um mar de nada. Ele agora não tem importância, de forma que nós designamos o seu mundo como o Outro Mundo, como se não existisse mais o Mundo Partido. O caminho até Noroelle nos leva primeiro até o seu mundo, Mandred. Lá precisaremos procurar o portal que nos levará até essa ilha no nada, onde Noroelle está presa. Quando o tivermos encontrado, então precisaremos quebrar o encanto da rainha. No fundo, Emerelle era a nossa única esperança. Tenho medo de que, se for contra a sua vontade, jamais consigamos libertar Noroelle de sua prisão. É tudo em vão.

Nuramon deu alguns passos na direção de Farodin. As palavras dele pareciam aborrecê-lo.

— Nada é em vão! Só porque nós não vemos saída não quer dizer que não haja uma. A pergunta é: até que ponto nós vamos para alcançar o nosso objetivo.

Farodin virou-se e olhou para Nuramon. Sua expressão era gelada.

— Você sabe até onde eu iria.

— Você também faria isso mesmo que nunca pudesse voltar para a sua família, já que teria lançado sobre ela uma vergonha infinita? Mesmo que você também fosse banido caso a rainha voltasse a vê-lo; e caso Noroelle o renegasse pelos seus atos? Você suportaria tudo isso para salvá-la?

Um estranho sorriso enigmático formou-se nas feições de Farodin, sem que Mandred pudesse encontrar uma razão para ele nas palavras de Nuramon.

— Eu o faria sem hesitar.

— Então não vamos ficar pensando nas interdições da rainha, mas simplesmente naquilo que precisamos fazer.

— Vou acompanhá-los até onde o caminho nos levar — disse Mandred. — Ainda tenho dívidas para saldar.

Se ele nunca tivesse vindo para o mundo dos elfos, Noroelle ainda estaria com os seus amados. O devanthar o usara como isca para atrair a Caçada dos Elfos ao mundo dos homens. O porquê de isso ser importante para o ser demoníaco ainda não havia compreendido. Tratava-se simplesmente de matar alguns elfos e mostrar a Emerelle que um devanthar sobreviveu à guerra com os albos? Ou será que ele tinha um plano muito mais profundo? E por que ele gerou Guillaume? Ao contrário de Emerelle, Mandred não era capaz de reconhecer qual era o perigo que ainda poderia resultar do filho morto. Tanto fazia quais podiam ser os objetivos do devanthar, no final das contas, mas uma coisa era certa: Mandred dera ao demônio o acesso ao mundo dos elfos e agora precisava fazer a sua parte para que os danos pudessem ser sanados. Sua segunda dívida era ainda mais pesada. Ao fazer sua promessa a Emerelle, matara Freya. E essa promessa também foi feita só por causa do devanthar. A mulher dele o amaldiçoara com razão! Por fim, reforçou:

— Seja qual for o caminho que vão percorrer, Mandred Torgridson estará ao lado de vocês.

— Mas como vamos conseguir chegar ao Outro Mundo? — perguntou Farodin.

O Jarl cerrou os punhos. Era óbvio contra quem eles tinham de se voltar antes de tudo!

— Se estiverem dispostos a se opor à rainha, então devemos lutar para tomar o caminho do Outro Mundo.

Farodin discordou com um gesto elegante.

— Não, Mandred. Tudo o que a rainha manda vigiar é bem seguro. Os portais não estão abertos para nós.

— Se a porta está fechada, precisamos encontrar um jeito de abri-la, nem que seja derrubando a parede à força!

Farodin sorriu.

— Essas paredes nem a sua cabeça dura seria capaz de derrubar, filho de humanos.

— Esperem! — os olhos de Nuramon brilharam. — Pela parede! Essa é uma boa ideia. Na verdade, é genial... Com a cabeça na parede!

Mandred não entendeu o que deixou o elfo tão fora de si. Farodin tinha razão. Esses portais não eram o que os humanos entendiam por portal. E também não havia paredes.

Nuramon iluminou-se.

— Nós somos cegos! Precisamos de um humano para abrir nossos olhos para ver nosso próprio mundo!

— Do que você está falando? — perguntou Farodin.

— É óbvio! Nós vamos ao Outro Mundo pelo mesmo caminho que Noroelle usou. Nós não vamos nos ocupar com os portais vigiados e sim abrir o nosso próprio portal.

— Nuramon, você está se superestimando — retrucou Farodin, irritado. — Isso é de longe a coisa mais tola que já ouvi de você. Nós não temos as habilidades mágicas de Noroelle.

Sobre isso, Mandred tinha outra opinião.

— É claro que Nuramon é um grande feiticeiro — protestou, decidido. — Você é quem devia saber melhor disso. Na caverna de gelo você não era mais nada além de um pedaço de carne crua... Nuramon o livrou da morte certa. Se isso não é poder mágico, então eu não sei o que chamam de magia.

— Só porque um cavalo usa ferraduras, ele não é nem de longe um ferreiro!

— O que os cavalos têm a ver com isso? — esbravejou Mandred.

— Eu explico com prazer para humanos... Alfadas é um excelente guerreiro, disso não há dúvidas. Ollowain o tornou um mestre na luta com a espada. Mas ele é bom com o machado, Mandred?

O Jarl compreendeu.

— Regular, se muito — respondeu ele, pesaroso.

— É a mesma coisa com Nuramon. Tenho uma enorme dívida com ele, porque ele me curou não só na caverna de gelo, mas também depois que deixamos Aniscans. Não quero de forma alguma desmerecer suas habilidades, mas abrir um portal é simplesmente outra coisa! Atravessar a fronteira entre dois mundos... isso é magia das grandes.

— Eu vi Nuramon lutar por você na fronteira entre a vida e a morte, e puxá-lo de volta para a vida. Que fronteira poderia ser mais intransponível que essa?

Os elfos entreolharam-se desconcertados. Estava claro que nunca tinham visto as coisas por esse prisma.

Nuramon pareceu um pouco constrangido. Finalmente tomou a palavra:

— O que os seus pais contaram sobre as trilhas dos albos a você quando era criança? — perguntou a Farodin.

O elfo hesitou antes de responder.

— Eles me contaram que elas atravessam o nosso mundo e o ligam a outros mundos.

— Assim como as estrelas dos albos! — irrompeu Mandred, deixando novamente os elfos com cara de surpresa.

— Como você sabe disso? — perguntou Farodin.

— Vanna me contou no caminho até a caverna de Luth. Mas o que exatamente isso tem a ver com as trilhas?

— Dizem que os albos viajavam por essas trilhas. Nos portais, que também chamamos de grandes estrelas albas, cruzam-se sete desses caminhos.

— E agora pensem no que Mandred disse em sua simplicidade genial — Nuramon incitou os companheiros.

Mandred não sabia se devia interpretar as palavras de Nuramon como um elogio ou uma ofensa.

Farodin olhou para ele.

— Se as grandes estrelas dos albos são os portais, então o que são as paredes? Essa é a pergunta.

Mandred não sabia aonde os elfos queriam chegar. Tinha a sensação de que Farodin esperava por uma resposta sua. Nuramon também o encarava com ar de interrogação.

— As trilhas dos albos que vão até o portal?

— Não exatamente — opinou Farodin.

Nuramon deu a resposta.

— São as estrelas albas menores. Aquelas que não formam portais certos. Nelas, é possível criar portais mágicos e atravessar para o Outro Mundo.

Farodin ficou visivelmente inquieto.

— Você me perguntou o que os meus pais me contaram sobre as trilhas albas. Agora eu também quero dizer o que eles me descreveram sobre as estrelas albas. Eles diziam que quem ousava atravessar com violência ou sem saber bem o que estava fazendo podia se tornar vítima do tempo e do espaço e se perder para sempre. Noroelle é uma grande feiticeira. Ela sabia o que estava fazendo. Nós, em compensação, somos crianças se comparados a ela. Você pode ser um curador extraordinariamente talentoso, disso não há dúvidas, mas esse tipo de magia é tão desconhecido para você quanto para mim.

— Então você quer desistir? — contestou Nuramon.

— Não. Eu não conseguiria fazer isso. Essa busca é a minha vida, mais do que vocês podem imaginar. Vejam! — Farodin sacou um lenço, estendeu-o sobre a mesa e derramou sobre ele o conteúdo de uma garrafinha prateada.

— Aqui vocês podem ver o tamanho da nossa esperança.

No lenço de seda havia um minúsculo montinho de areia.

— Isso é... — começou Nuramon, mas sem terminar.

Farodin concordou com a cabeça.

— Depois que nos contaram o que aconteceu com Noroelle, entrei escondido no quarto de vestir da rainha e lá encontrei três grãos de areia. Dizem que, quando se consegue encontrar de novo todos os grãos de areia, o feitiço da ampulheta pode ser quebrado. Durante a busca por Guillaume consegui encontrar mais 53 grãos.

— Então era por isso que você sempre se separava de nós — disse Nuramon em tom de repreensão.

— Sim. E juntei, até agora, 56 grãos. Provavelmente já não há mais nenhum na Terra dos Albos. Os restantes certamente estão no Outro Mundo. Eles foram levados por um golpe de vento na direção de todos os pontos cardeais. Acho que era parte do feitiço de Emerelle espalhar os grãos de areia para o mais distante possível.

Mandred não conseguia entender do que o elfo estava falando. Ele juntara grãos de areia? Como é que 56 grãos de areia seriam capazes de ajudá-los? Mas que raios... Procurar grãos de areia! Isso era uma loucura completa! E como ele saberia distingui-los de grãos de areia comuns?

Nuramon fitou o montinho sobre o lenço.

— Essa é mesmo uma esperança minúscula. Mas também deve haver outras formas.

— É a única que eu vejo.

— Então vamos começar por ela — disse Mandred.

Os elfos concordaram. Mas o problema dos portais fechados persistia. Farodin achava que devia haver um caminho mais seguro para o Outro Mundo do que ousar, buscando fora dos portais e com suas habilidades modestas, atravessar por uma das estrelas menores.

Nuramon, contudo, insistia que talvez conseguissem.

— Nós não precisamos nos atrever a fazer a passagem onde duas trilhas albas se encontram. Com certeza seria loucura. Mas será que isso não seria possível em um lugar onde três ou quatro caminhos se juntam em uma estrela?

— Mas como vamos aprender como... — Farodin interrompeu sua fala, assustado.

Nuramon olhou ao redor, como se tivesse visto alguém.

Mandred não viu ninguém. Desconfiado, olhou em volta. O que assutara os elfos assim? Como se ele tivesse dito em voz alta o que estava pensando, uma voz baixa respondeu em fiordlandês:

— Ouçam-me! — Quem quer que fosse, aquele que falava estava no cômodo com eles. Isso era certo, mesmo que Mandred não pudesse vê-lo. — Escutem o velho saber dos carvalhos — a voz prosseguiu.

Uma lufada suave de vento percorreu a sala.

Espantado, Farodin jogou-se sobre a mesa e cobriu os grãos de areia com o lenço de seda.

— Alaen Aikhwitan! — gritou Nuramon

Mandred pensou no sonho que teve.

— Sim, sou eu. — A árvore já não falava mais sussurrando, mas com uma voz grave de homem, mais grave do que qualquer voz humana. — Você é Nuramon. Já conheço a sua alma há um bom tempo. E você, Mandred, carrega a essência do meu irmão. De você, Farodin, até agora só tinha ouvido falar. Você ficaria admirado se soubesse o que as árvores dizem de você.

Mandred ficou calado, aflito. A voz do carvalho o arrebatava completamente. Farodin também não ousava dizer nada, mesmo que talvez fosse por outro motivo. Só Nuramon era capaz de dominar aquele encanto.

— Você está se manifestando para nos ajudar? Você nos ensinará o feitiço de que precisamos?

Alaen Aikhwitan resmungou como se quisesse repreender Nuramon.

— Desde sempre os filhos dos albos procuram minha companhia e meus conselhos. E também vou aconselhá-los. Ensiná-los, porém, eu não quero. Pois a você, Nuramon, ensinei por meio de sua mãe tudo de mim que lhe cabe. E aos demais de vocês não devo nada. — A voz ficou mais baixa: — O que vocês aspiram só uma outra árvore pode ensinar. Vão! Vão até onde a elfa do lago foi instruída. Vão! Lá vocês também serão instruídos. Não demorem! Vão... — A voz desvaneceu-se.

— O Carvalho dos Faunos! — gritou Nuramon.

O carvalho dos Faunos

Começava a nevar quando passaram cavalgando pelo lago onde tantas vezes se sentaram com Noroelle. Farodin apertou mais a capa ao redor dos ombros para espantar o frio, mas contra o gelo em seu coração não havia peça de roupa capaz de ajudar. Não nutria grandes esperanças de um dia conseguir o poder necessário para abrir um portal para o Outro Mundo. Será que Mandred tinha mesmo razão? Talvez devessem arriscar um ataque contra os guardas de um dos portais, usando da violência para conseguir o acesso ao mundo dos homens.

Ao longe, do outro lado da floresta, erguia-se o castelo de Emerelle. Será que ela sabia que estavam ali? Diziam que sabia de tudo o que acontecia na Terra dos Albos. Mas ela mesma poderia ter disseminado esses rumores. Afinal, ela não soube de nada quando o devanthar penetrou ali. Ou soube? Será que no fim ela deixou que isso acontecesse para livrar o seu povo de um destino diferente, pior que esse? Farodin expirou forte, observando a densa nuvem branca que se formara diante de sua boca. Sobre a ampla campina não soprava qualquer vento. A neve agora caía mais pesada e o castelo desapareceu na distância.

Quem sabia o que Emerelle pensava! Farodin cometera assassinatos por ela. Não sabia nem dizer quantas vezes... Em nenhum momento duvidara de que tudo que fizera sob ordens da soberana servira somente para afastar o seu povo de coisas piores. Teria se enganado? Sobre a rainha pesava a maldição de poder prever o futuro. Mas o que estava por vir era mutável. Então, jamais poderia haver certezas.

Emerelle falara disso com ele uma única vez, comparando o futuro a uma árvore. Começava com o tronco que se ramificava, formando galhos que se dividiam cada vez mais. Depois disso, Farodin foi até o jardim e, de pé sob uma árvore, tentou observar de baixo a continuidade de um galho, com todas as suas ramificações. Era impossível. Seria necessário derrubar a árvore para poder fazer afirmações mais seguras. E era assim com o futuro.

— Mas que clima miserável — resmungou Mandred, que cavalgava ao seu lado. — Entre nós, humanos, sempre dizem que no mundo de vocês reina a primavera eterna. Bela primavera!

— É assim quando os sabichões contam sobre lugares que nunca viram na vida — gracejou Nuramon, puxando as rédeas de Felbion e apontando para um pouco adiante. — Aí está ele.

Sombria, sem nenhuma folha, uma imponente árvore estava diante deles; não tão grande como Alaen Aikhwitan, mas ainda mais robusta. Desceram dos cavalos e percorreram o último trecho a pé.

Farodin viu nitidamente uma grande fenda no tronco do carvalho. A casca se soltara e a madeira sob ela tinha apodrecido. Em torno da árvore havia galhos secos no chão, tributo do Carvalho dos Faunos às tempestades de outono. O carvalho parecia caído, quase como se estivesse morrendo.

Farodin ficou horrorizado. Nunca vira uma árvore viva apodrecer na Terra dos Albos. Isso simplesmente não acontecia!

Nuramon também parecia transtornado.

Indecisos, ficaram ali de pé diante da enorme árvore, olhando para sua copa. Não se ouvia nenhuma voz. Farodin examinou seus companheiros de canto de olho. Não transpareciam com nenhum gesto se o Carvalho dos Faunos estava falando com eles.

— Logo meus pés congelarão — novamente era Mandred quem quebrava o silêncio.

— Devíamos falar com ele — disse Nuramon hesitante. — Mas como?

— Diga-me... Foi anteontem que Alaen Aikhwitan falou com você pela primeira vez, não foi? — Mandred batia os pés como se tentasse expulsar o frio.

— Sim — respondeu Nuramon. — E daí?

— Você viveu em cima do seu carvalho por muitos anos. Acaba de passar pela minha cabeça que é possível que tenhamos de esperar muito tempo até que o Carvalho dos Faunos fale conosco. Você acha que podemos fazer uma fogueira?

— Fogueira? — a voz soou de repente dentro de Farodin, fazendo-o recuar assustado. — Só mesmo um humano teria a ideia de se apresentar a uma árvore fazendo uma fogueira perto dela!

— Preciso me desculpar por nosso amigo — Nuramon apressou-se a dizer. — Às vezes ele é um pouco precipitado.

— Impeçam-no de fazer uma fogueira. Sinto que ele ainda está pensando nisso. E ele queria usar os meus galhos mortos para fazer isso? Será que ele não tem nenhum tato? — A estridente voz do carvalho era de mulher.

Mandred recuou um bom trecho. Não disse nada, mas cruzou os braços diante do peito, como que para mostrar que ainda estava congelando.

Farodin já duvidava se tinha sido esperto trazer o filho de humanos com eles.

— Estamos aqui por causa de Noroelle — disse Nuramon em voz baixa.

— Noroelle — a voz do Carvalho dos Faunos agora soava mais suave, quase melancólica. — Sim, Noroelle... Ela jamais teria a ideia de fazer uma fogueira aqui. Para mim parece fazer muito tempo desde a última vez que a vi.

— Nós queremos encontrá-la.

— Boa ideia — o carvalho concordou.

Agora a voz soava sonolenta. Seus galhos chiaram baixinho.

— Precisamos da sua ajuda para isso — Farodin entrou na conversa.

— Como poderia ajudá-los? — A voz da árvore agora parecia bocejar. — Só com muito esforço eu conseguiria sair daqui e então...

— O carvalho de vocês adormeceu — zombou Mandred. — Se eu não tivesse falado de fogo ela jamais teria acordado.

— Fogo! — a velha árvore gemeu. — Tirem esse sujeito insolente daqui! Senão vou fazê-lo criar raízes. Aí ele vai descobrir por ele mesmo por que as árvores não gostam de piadas com fogo.

Mandred não precisou de mais nenhuma provocação. Afastou-se de volta até os cavalos.

— Agora ele está pensando num machado! — esbravejou a voz da árvore. — Eu devia realmente...

— Deixe-o para lá — disse Farodin. — Mesmo que se comporte mal, ele poria a própria vida em jogo para salvar Noroelle.

— Eu sei... — De novo a voz da árvore parecia bocejar. — Sinto que Atta Aikhjarto tem grande estima pelo humano. E Atta nunca se engana... eu acho...

— Por favor, não durma — disse Farodin. — Você é nossa única esperança.

— É inverno, crianças. Minhas seivas não estão mais fluindo. É tempo de descansar. Voltem na primavera. Filhos de elfos têm tempo... como árvores...

— Carvalho dos Faunos? — perguntou Nuramon. — Você pode nos ensinar um dos feitiços que ensinou a Noroelle? Explique-nos como abrir um portal em uma estrela alba menor.

Não obteve resposta.

— Ela está dormindo — disse Farodin, resignado. — Receio que vamos ter de esperar até a primavera. Isso se por acaso ela nos ajudar.

Ainda permaneceram mais um tempo, mas o carvalho não respondeu a nenhuma pergunta mais. Finalmente, retornaram até os cavalos. Farodin estava prestes a subir na sela quando viu um movimento fugidio na mata baixa atrás do carvalho. O elfo montou e sussurrou aos amigos:

— Não deixem transparecer nada. Alguém estava nos escutando.

— Um espião da rainha? — perguntou Nuramon.

— Não sei. Vou cavalgar para dentro da floresta e arrancar isso dele.

— E se as intenções dele forem amigáveis? — perguntou Nuramon.

— Então por que estaria se escondendo? — retorquiu Mandred.

— É o que eu acho! — Farodin puxou as rédeas e voou sobre a mata, curvado sobre a crina. Mandred seguiu-o sem hesitar.

Ainda antes de alcançarem o começo da floresta, o matagal se repartiu e um vulto de pernas de bode surgiu. Ele ergueu as mãos como se para mostrar que estava desarmado.

— Ejedin? — Farodin reconheceu o criado do estábulo da rainha.

— O que você está procurando aqui no carvalho? — trovejou Mandred, que se esforçava para refrear a sua égua, conseguindo por fim ao acertar-lhe a cabeça com o punho.

— O que estou procurando aqui? — Dentes brancos brilhavam no meio da espessa barba negra do fauno. — O meu bisavô plantou aqui uma bolota que trouxe de Dailos, sua terra natal. A partir de então, os faunos e sátiros que servem a corte passaram a cuidar do Carvalho dos Faunos. Ele transmite nossas saudações à nossa pátria distante e já chegou a nos prestar alguns favores. Então a pergunta não é o que eu estou procurando, mas o que vocês estão armando aqui.

— Não seja insolente, serviçal! — irritou-se Mandred.

— Senão o que, seu cavaleiro de primeira viagem? Vai me bater como faz com a sua égua? — Ergueu os punhos. — Então desça daí e venha me pegar!

Mandred estava quase pulando da sela quando Farodin foi até o seu lado com o cavalo, detendo-o.

— Você acha que a rainha vai recompensá-lo bem? — perguntou o elfo casualmente.

O fauno molhou os lábios com sua longa língua.

— Não acho que poderia dizer à rainha algo de que ela já não saiba. Mas talvez possamos mesmo negociar...

Farodin encarou o fauno, desconfiado. O povo dele tinha fama de ser astuto, mas ao mesmo tempo era famoso por cuidar das árvores com alma e ter boa relação com elas.

— Que tipo de negócio seria esse?

Enquanto isso, Nuramon já se juntara ao grupo, ouvindo em silêncio.

— Acho que eu poderia conseguir que o Carvalho dos Faunos falasse com vocês uma ou duas horas por dia.

— E qual é o preço disso?

— Tragam Noroelle de volta!

Farodin não acreditou nos seus ouvidos. Devia ser um truque de fauno!

— Por que você se importaria com isso, Ejedin? E não venha me dizer que nosso amor sofredor toca o seu coração sensível.

O servo dos cavalos soltou uma gargalhada sonora.

— Por acaso eu me pareço com uma fada sentimental das campinas? É por causa do Carvalho dos Faunos! Desde que Noroelle foi embora sua alma está totalmente perturbada. Está dormindo demais até na primavera e no verão. — Ele apontou para o ferimento profundo no tronco: — Vejam só como ela está doente. Na última primavera esses besouros se instalaram sob a sua casca.

— Como pode ser? — perguntou Nuramon. — Eles só se alimentam de madeira morta.

— E de árvores onde já não há nenhuma vida.

— Talvez eu consiga fazer a madeira que está apodrecendo se recuperar — disse Nuramon cuidadosamente. — Nunca tentei curar uma árvore. Mas talvez seja possível.

— Não me deem esperanças! — retrucou o fauno rudemente. — Voltem amanhã na mesma hora. Então eu vou acordar o Carvalho dos Faunos. E não tragam consigo esse humano de novo! Ele a deixa irritada e isso não faz bem para ela.

A primeira lição

Nuramon tirou a mão do ferimento do Carvalho dos Faunos. Muito ele não conseguira; de fato, a madeira sob a casca havia se firmado um pouco, mas era mesmo a tristeza por Noroelle o motivo do verdadeiro sofrimento do carvalho. Parecia que a feiticeira era como uma filha para a árvore.

O fauno aproximou-se do carvalho e apoiou sua face no tronco.

— Escute-me, Carvalho dos Faunos! — sussurrou ele.

Falava baixo demais para que Nuramon pudesse ouvir. Logo Ejedin desencostou-se de novo do tronco e recuou para trás de Nuramon e Farodin, cheio de expectativa.

— Ela ouviu? — perguntou Farodin.

Ejedin, contudo, ficou calado, somente fitando o carvalho. Quando consentiu com a cabeça, ficou claro que o Carvalho dos Faunos havia falado com ele. Finalmente disse:

— Ela está pronta para ouvi-los.

Nuramon trocou um olhar com Farodin. Como se o amigo o intimasse em silêncio a fazer isso, disse:

— Agora ouça-me, Carvalho dos Faunos!

A árvore não disse nada.

— Nós suplicamos a você! Instrua-nos agora! Não espere até a primavera! Cada dia é precioso. E mesmo que as suas lições durem muito, pode ser decisivo que nós comecemos agora.

— Essas são palavras grandiosas — retrucou o carvalho. Sua voz penetrava diretamente no espírito de Nuramon. — Você é um sábio para estar dizendo isso?

— Não, estou bem longe disso — Nuramon deu como resposta. — Foi Alaen Aikhwitan quem nos mandou até você. Ele também disse que não deveríamos demorar. Como se fosse necessário ter muita pressa.

— Alaen Aikhwitan já era sábio muito antes do meu tempo. E por meio de suas mãos, Nuramon, senti o hálito dele... Ontem, quando estiveram comigo, estava sonolenta. Foi um péssimo momento. Mas Ejedin e suas mãos curadoras me despertaram. Não sei dizer quando ficarei cansada novamente. Então ouçam o que posso fazer por vocês. — A voz do carvalho ganhou força: — Eu poderia ensinar a vocês o feitiço que os permitiria ir pelas trilhas à maneira dos albos. Você, Nuramon, reconheço ser pupilo de Alaen Aikhwitan e o favorito de Ceren. Minha magia não permanecerá desconhecida para você. Mas você, Farodin, precisa criar novas raízes e crescer sobre si mesmo. Pois a sua magia não vem de uma árvore. Você precisa querer ser mais do que já foi um dia e é agora. De todos nós será exigido algo extraordinário. Nós precisamos semear o chão congelado para poder colher na primavera.

— Conseguiremos alcançar até a primavera o que você tem para nos ensinar? — desconfiou Farodin.

O Carvalho dos Faunos ficou um tempo em silêncio antes de responder.

— O que não tiverem aprendido até lá nunca mais será útil para vocês. Estejam sempre atentos e mantenham a mente preparada.

O fauno deu um passo adiante.

— Você mandará os besouros embora?

— Eles estão aquecidos dentro de mim. Estão descansando e desprevenidos. Seria cruel tirá-los daqui neste frio. Decidirei a seu respeito na primavera.

Nuramon pressentiu o que isso significava. Na primavera o carvalho decidiria se Farodin e suas habilidades eram suficientes para salvar Noroelle — e, assim, a si mesmo também.

— Pois bem, meus alunos elfos. Vejo que a mente de vocês está cheia de perguntas. O que vou apresentar a vocês é algo que já disse a Noroelle um dia. — O carvalho não se apressou a continuar falando. Quase parecia querer pôr a paciência de Nuramon e Farodin à prova. — Existem cinco mundos conhecidos por nós. Chamamos suas raízes de trilhas dos albos. Elas atravessam cada um dos mundos e os ligam uns aos outros. Só a força que flui nelas faz a magia e os feitiços naturais de nossos campos possíveis. — Agora o carvalho falava mais rápido, e sua voz soava como a de uma jovem esperta. — Um dia os albos viajaram nessas trilhas, de um lugar para o outro e também entre os mundos. As estrelas dos albos são cruzamentos, onde as trilhas se encontram, se conectam e voltam a se separar. Nesses lugares a magia é forte. E quanto mais trilhas se cruzam, mais poderosas as estrelas serão. — A árvore fez uma pausa. — Isso eu também esclareci a Noroelle outrora — completou ela.

Nuramon observou o tronco do Carvalho dos Faunos. Imaginou como na primavera, quando sua amada era uma jovem elfa, sentava-se ali e escutava as palavras que transformavam em certeza muito do que só era conhecido nas velhas histórias.

O Carvalho dos Elfos prosseguiu.

— Posso ensinar a vocês o feitiço de que precisam para abrir um portal para o Outro Mundo. Mas prestem atenção! O feitiço não só cria portais entre os mundos. Se vocês procurarem Noroelle no Outro Mundo, então memorizem as trilhas e estrelas. Talvez um dia consigam viajar nas trilhas entre as estrelas albas de um mundo, assim como os albos fizeram. Mostrarei os perigos a vocês e os ajudarei a ter intuição para o feitiço. Vocês nunca o dominarão tão perfeitamente quanto Noroelle. Ela é tão poderosa que não precisa caminhar através de um portal — pode ver o mundo ao redor dele mudar. Esse caminho não está aberto para vocês. Vocês poderão abrir um pequeno portal e voltar a fechá-lo. Mas tenham cautela com portais fechados e barreiras mágicas. Caso vocês consigam forçar sua passagem por eles, poderão se tornar vítimas do tempo. Vítimas do espaço vocês só se tornarão se atravessarem por estrelas menores ou se falharem horrivelmente no feitiço. Vocês estão prontos para seguir a pista de Noroelle e chegar a ela pelas trilhas dos albos?

Nuramon não precisou pensar muito. Mas Farodin foi quem respondeu primeiro:

— Estamos.

— Ensine-nos! Em nome de Noroelle — pediu Nuramon.

O Carvalho dos Faunos riu, e sua gargalhada soou quase como a risada aguda de uma fada das campinas.

— Então sejam meus aprendizes!

E assim foi o início da busca por Noroelle. Nuramon só esperava que a rainha não começasse a desconfiar. Até a primavera eles estariam sempre por perto do Carvalho dos Faunos, e Emerelle podia ver o que acontecia em seu reino. Mas seria de admirar que viessem para perto do Carvalho dos Faunos, que estava tão triste por Noroelle? E, se por um lado ele temia tanto o olhar da rainha, por outro aguardava ansioso pelos ensinamentos do carvalho. A árvore tinha razão: agora eles estavam na pista de Noroelle. A primavera mostraria quão longe eles chegariam por esse caminho.

A celebração

A primavera já cobrira as terras e o Carvalho dos Faunos agora trajava o seu verde mais fresco. Ensinara aos elfos tudo que podiam aprender. Farodin ouviu em seus pensamentos que o treinamento terminara. Apesar de todas as lições, nunca conseguira se habituar a sentir algo estranho dentro de si.

O significado por trás daquelas lições não escapava a ele de modo nenhum. Embora tivesse aperfeiçoado tanto o feitiço de busca ao longo dos séculos, suas habilidades eram muito modestas quando se tratava de outras magias. Ele de fato aprendera como era possível abrir um portal em uma estrela alba e também como era possível acessar trilhas ocultas, mas Nuramon o superava em muito com suas habilidades.

Agora era hora de se despedir do carvalho. Ao seu lado estavam Nuramon e Ejedin, que sempre que possível os acompanhava até o Carvalho dos Faunos.

— Sejam cuidadosos e lembrem-se do que eu disse a vocês! — advertiu a árvore. — Não abram nenhum portal sem necessidade, e derrubem barreiras e portais fechados somente se tiverem certeza do que há do outro lado deles. Caso cometam um erro durante o feitiço, vocês serão tirados da estrutura do tempo assim que atravessarem o portal. Quanto menos trilhas se encontrarem em uma estrela, mais difícil será fazer o feitiço agir. E no que diz respeito ao filho de humanos, pensem bem se querem exigir dele que corra esse perigo. Para vocês o motivo é Noroelle. Mas será que ele está realmente pronto para aceitar esse risco? Talvez seja melhor deixar um amigo para trás para protegê-lo.

— Não! Tudo menos isso! — queixou-se Ejedin. — Se ele ficar mais tempo na corte, então vou voltar para Dailos.

— O que ele fez? — perguntou Farodin surpreso.

Mandred ficou longe durante todo o inverno, já que o Carvalho dos Elfos não o tolerava por perto. O jarl vagara muito por toda parte, e os dois mal tiveram chance de se ocupar dele.

— A pergunta, na verdade, é o que ele não fez. O humano conheceu dois centauros e, a partir daí, a situação ficou desesperadora. Anteontem mesmo, seus novos amigos apareceram nos estábulos no meio da noite, caindo de bêbados, e tentaram fazer coisas indizíveis com as éguas. Mandred ainda os incentivou.

Farodin e Nuramon entreolharam-se, perplexos.

— E então?

— Houve uma pancadaria violenta com os guardas do palácio. Mandred passou uma noite no calabouço e os dois centauros foram expulsos das terras centrais. Ontem cedo também vi ele obrigando sua égua a puxar uma carroça cheia de ânforas de vinho de Alvemer. Uma égua dos estábulos da rainha usada como cavalo de carga! Imaginem só!

— Você sabe aonde ele queria ir?

— Acho que ele pretendia deixar as terras centrais — bufou o fauno, com desdém.

— Provavelmente vai voltar quando o vinho acabar.

O Carvalho dos Faunos tomou a palavra mais uma vez:

— Os humanos são um povo peculiar. E agora de volta a vocês: antes de irem, gostaria de ver as pedras que Noroelle lhes deixou. Eu sinto a presença dela desde o dia em que os aceitei como meus aprendizes.

Farodin tirou a esmeralda de uma bolsa de couro presa ao cinto. Ele viu Nuramon tirar uma corrente do pescoço cujo pingente era uma almandina. Ambos estenderam suas pedras preciosas para o carvalho.

— Guardem bem esses tesouros. Um dia eles poderão ser de grande utilidade para vocês. Não posso lhes ensinar nada que os ajude a decifrar a magia deles, mas lembrem-se sempre de que o poder de Noroelle mora neles. Pode ser que um dia vocês possam se valer da força dessas pedras preciosas... E agora, meus aprendizes, vão! Pois a primavera chegou, e eu quero tomar minha decisão. Os besouros precisam deixar a minha casca. Ainda essa noite, quando os faunos e sátiros dançarem ao redor de mim e talvez as fadas das campinas cantarem, vou mandá-los embora. Mas vocês não devem mais ficar aqui por perto.

Em seguida, o Carvalho dos Faunos caiu no silêncio.

Farodin e Nuramon despediram-se de Ejedin e puseram-se a caminho para encontrar Mandred. Depois do relato de Ejedin, tinham alguma ideia de onde o achariam. Atravessaram a Shalyn Falah e, no começo da noite, alcançaram o círculo de pedras em cujos arredores está Atta Aikhjarto. Já de longe puderam ver a carroça. A égua de Mandred pastava tranquilamente perto da torre de observação destruída. Lá também estava instalado um pequeno grupo de jovens guerreiros, que observavam Nuramon e Farodin atentamente.

Ambos apearam e puseram-se a caminhar ao encontro de Atta Aikhjarto. A campina cheirava a vinho e barro molhado. A todo momento, Farodin olhava para trás. Tinha a impressão de sentir o olhar dos guardas.

— Está vendo aquilo ali na frente? — perguntou Nuramon.

As raízes do carvalho torciam-se como serpentes de pedra no meio da grama. Em uma depressão no chão lamacento formara-se uma poça vermelho-escura. Farodin ajoelhou-se, mergulhou um dedo no molhado e cheirou-o.

— Vinho! Atta Aikhjarto deve estar totalmente bêbado para torcer suas raízes assim.

Nuramon deu um sorriso largo.

— Só mesmo um humano para ter a ideia de regar uma árvore com vinho. O que será que Atta Aikhjarto vai dizer disso?

Farodin não esperava ouvir a alma do poderoso carvalho falar. O único ruído que perturbava a paz daquela noite de primavera era um ronco. Depois de todos aqueles anos ao lado do filho de humanos, ele já era bastante familiar para Farodin.

Os elfos passaram por cima de cacos de ânforas e de poças de vinho no chão escorregadio. Os ramos do carvalho estavam estranhamente baixos, formando uma grande folhagem ao redor da lama. Farodin separou os galhos com as mãos, mas parou no meio do movimento. As nervuras das folhas macias e verde-claras destacavam-se num tom escuro.

Nuramon, que notara a sua surpresa, puxou um galho para si e segurou uma folha contra a luz do sol poente.

— O vinho... É como se ele tivesse penetrado até as nervuras das folhas.

Mandred teria conseguido cumprir o que queria? Ele disse tantas vezes que tinha vontade de se embebedar com Atta Aikhjarto, para celebrar adequadamente seu salvamento pelo velho carvalho. Mas será que era possível deixar uma árvore bêbada? Em dúvida, Farodin ergueu os olhos para as folhas.

— Você está sentindo? — Nuramon olhou em volta, admirado.

Farodin ouviu um cochicho entre as folhas, como se um vento leve balançasse a folhagem. E nada além disso.

— A árvore. Atta Aikhjarto está cantando. Está dentro de mim. — Nuramon continuou em pé, segurando o coração. — Isso é... extraordinário! Nunca ouvi algo assim.

Farodin afastou os ramos, separando-os. Não ouvia nada — só o ronco de Mandred. O filho de humanos estava deitado, apoiado no tronco. Sua barba estava suja de vômito. Ao redor dele havia ainda mais cacos. Ele parecia ter destroçado todas as ânforas depois de esvaziá-las. Que destruição sem sentido!

Nuramon ajoelhou-se ao lado de Mandred e chacoalhou-o de leve pelo ombro. O companheiro gargarejou no sono e balbuciou algo, mas não quis acordar.

— Talvez seja melhor deixá-lo aqui — disse Farodin. — Para ele e para nós.

— Você não pode estar falando sério! — retrucou Nuramon severamente. — Você está cego? Ele fez isso por desespero. Ele não se encaixa neste mundo. Nós precisamos levá-lo conosco. A Terra dos Albos não foi feita para ele.

— Sim, senhor, eu vou junto... — balbuciou Mandred. O filho de humanos tentou se erguer, mas logo afundou no lugar. — Eu vou junto — e arrotou. — Tragam-me um cavalo!

— Vocês todos vêm conosco — soou uma voz de mulher.

Os galhos se curvaram e afastaram. Uma guerreira vestindo um longo traje de malha de ferro adentrou a folhagem. Trazia duas espadas curtas afiveladas aos quadris. Yilvina!

— Não tentem fugir! — disse decidida a jovem elfa, deixando a mão direita escorregar até o cabo da espada. — Vocês estão cercados. Eu lidero a guarda aqui no portal. Acabo de receber a ordem de levá-los até a rainha. Ela está caçando na Velha Floresta e deseja que vocês a acompanhem.

Farodin ficou tenso.

— E você ergueria sua espada contra nós, mesmo depois de termos cavalgado por tanto tempo juntos?

Yilvina desviou o olhar.

— Não me obriguem a fazer isso. A ordem da rainha é clara. Recebi o alerta de que vocês tentariam escapar pelo portal.

Farodin agarrou seu cinto de armas.

— Então devo depor a minha espada.

— Não, seu cabeça-dura. Eu não sigo ordens de levá-los a um calabouço, mas de escoltá-los até a rainha. Você acha que estou me sentindo bem com isso?

Nuramon pousou a mão suavemente sobre o braço de Farodin.

— Deixa para lá. Vamos com ela.

A estrela dos Albos

A água espirrou neles até a cabeça quando cruzaram o riacho a todo galope. Felbion subiu com pressa a ribanceira na outra margem. Nuramon abaixou-se para desviar de um galho mais baixo e olhou para trás. Mandred se esforçava o quanto podia para manter-se na sela. O filho de humanos segurava com força as rédeas de sua égua e estava estranhamente pálido. Ao longo dos anos em que buscaram Guillaume, ele de fato havia melhorado seu estilo de cavalgar, mas não conseguia acompanhar seus amigos elfos.

Nuramon refreou o cavalo e deixou-o diminuir o ritmo para um trote lento. Yilvina seguia ao lado deles sem esforço, levando sua lança de caça atravessada na sela. Farodin, cavalgando bem atrás dela, fez um sinal com a cabeça para Nuramon. Era esse o momento! Já havia cinco dias que eles cavalgavam com o grupo de caça da rainha, nem por um instante haviam tirado os olhos deles. Havia algumas horas afugentaram um grande cervo, seguindo-o com toda a pressa para dentro da mata. Ao fazer isso, deixaram o restante do grupo para trás; os outros preferiam uma caça mais nobre. No início da manhã, o centauro Phillimaco, descobridor de rastros da rainha, encontrou a pista de um grande gelgerok. Graças a isso, poucos perseguiram o cervo com eles. Como ficou cada vez mais cansativo seguir a presa no meio da mata alta, todos ficaram para trás. Todos exceto Yilvina, que não se esforçava para dissimular que os acompanhava para vigiá-los. Mas como se livrariam dela? Logo perderiam Mandred se tentassem deixar a elfa para trás em uma cavalgada selvagem.

Chegaram a uma clareira onde cresciam moitas de amoras silvestres e jovens brotos de bétula. Na borda norte havia um rochedo coberto de musgo, ao pé do qual brotava uma nascente. Não se via o cervo em lugar nenhum.

Yilvina encarou Nuramon de forma desafiadora.

— Lugar perfeito para descansar, não é? — fincou a lança no chão de areia e pulou da sela. — Não deixem o filho de humanos fazer isso — disse ela, indo até a nascente sem esperar a resposta.

— O que eu não devo fazer? — perguntou Mandred surpreso. Então sorriu atrevido: — E o que dá para fazer com uma mulher tão magricela?

— Ela sabia. O tempo todo.

Nuramon seguiu a elfa com os olhos. Sem dizer nenhuma palavra e sem qualquer gesto dissimulado, ela insinuou que estava do lado deles. Mas tanto fazia o que pensava, ela jurara lealdade à rainha.

— Vou resolver isso — disse Farodin, desmontando. Pegou a lança do chão e seguiu Yilvina até a nascente.

Mandred bateu os dentes.

— Por todos os deuses, o que vocês estão planejando? Mas vocês não podem...

Nuramon agarrou as rédeas dele antes que tentasse correr.

— Deixe-o! Farodin sabe o que está fazendo. E Yilvina também.

— Ela salvou a nossa vida em Aniscans. Ele não pode...

Farodin pôs-se de cócoras ao lado da elfa. Ambos pareciam trocar rapidamente algumas palavras.

Então Farodin levantou-se e ergueu a lança. Yilvina estava agachada de forma imponente ao lado da fonte, com a cabeça erguida. Nuramon encolheu-se quando a lança veio abaixo. Farodin havia usado a arma como porrete para acertar um golpe violento na têmpora de Yilvina. A elfa caiu de bruços e não se mexeu mais.

Mandred sacudiu a cabeça.

— Vocês estão malucos, seus elfos! Como vocês são capazes de simplesmente abater a nossa companheira?

Nuramon se surpreendeu com o quanto era difícil para o filho de humanos entender o óbvio.

— Ela nos deu a entender do jeito dela que toleraria a nossa fuga — esclareceu ele. — O fato de ter enfiado a lança no chão significa que não queria erguer sua arma contra nós. Mas a sua honra e o seu juramento de fidelidade à rainha a impediam de simplesmente nos deixar ir.

— Não teria bastado ela simplesmente dizer que nos perdeu de vista?

Nuramon suspirou.

— Ela recebeu a ordem de nos vigiar. Nos perder seria uma desonra para ela.

— Mas os outros cavaleiros, que nos seguiram no começo da caça ao cervo, ficaram para trás.

— Eles não tinham ordens para nos vigiar. Para eles a caçada estava cansativa demais.

Farodin retornou até eles e montou no cavalo.

— Vamos embora! — E, olhando para a borda da clareira: — E vamos torcer para que nenhum guarda tenha nos seguido em segredo.

Angustiado, Nuramon observou a floresta. Não era nenhuma arte esconder-se nas pesadas sombras das árvores. Seguiu Farodin com uma sensação ruim. Mandred manteve-se a seu lado.

— Por que eu não podia nocauteá-la? — perguntou o filho de humanos. — Não teria sido melhor? Em cinquenta anos no máximo eu vou virar comida de verme. Vocês terão que conviver com isso talvez por séculos ainda.

— Yilvina provavelmente tinha medo de que você destroçasse o crânio dela com toda a sua delicadeza.

— Eu também sou capaz de golpear com muito cuidado — disse Mandred.

— Ora, entenda que as pessoas meçam você por sua reputação antes de qualquer coisa.

O elfo estava cansado do assunto. Mas não havia nenhuma esperança de o filho de humanos se calar no momento.

— O que vai acontecer se a rainha enviar alguém para nos perseguir no meu mundo? — perguntou Mandred. — Esse Phillimaco parece ser um ótimo seguidor de rastros.

— Para escapar de perseguidores, nós vamos pegar uma estrela alba onde apenas três trilhas se cruzam. Quem abrir um portal ali depois de nós vai parar em um lugar diferente do seu mundo.

Mandred franziu a testa.

— Desculpe... Mas como o Carvalho dos Faunos não me tolerou por perto, não entendi muito da magia de vocês.

Nuramon divertiu-se ao perceber um tom de ironia nas palavras de Mandred. Então esclareceu ao filho de humanos o que as estrelas formadas por menos trilhas reservavam. Sua ligação entre os mundos era tão instável que jamais seria possível chegar ao mesmo lugar duas vezes ao cruzar de um mundo para outro por elas. Como sua natureza era tão fugaz, não havia portais fixos como nas grandes estrelas albas. Por fim, também contou a Mandred dos perigos que havia.

O filho de humanos ouviu com atenção, e então perdeu-se em pensamentos. Nuramon não levaria a mal se ele quisesse ficar um pouco para trás. Para não o influenciar em sua decisão, conduziu o cavalo para mais adiante, até emparelhar com Farodin.

— Tenho uma pergunta, Farodin.

— Vá em frente.

— Como você encontrou os grãos de areia?

— Usei um feitiço que não fazia há mais de cinquenta anos. Com esse feitiço eu posso encontrar qualquer coisa se eu souber o que estou procurando.

— Você pode usar esse feitiço para achar Noroelle?

— Não, porque ela está no Mundo Partido. Mas talvez eu possa encontrar o portal até ela. — E, hesitante, ressalvou: — No entanto, para isso eu preciso primeiro saber o que procurar — disse por fim. — Mas, de qualquer forma, eu consigo encontrar os grãos de areia desde que chegue perto o suficiente deles.

Nuramon não se acostumava com a ideia de seguir o rastro de grãos de areia.

— Deve haver um outro caminho para libertar Noroelle.

— Enquanto não encontrarmos esse outro caminho, isso é tudo pelo que podemos nos guiar. Mas antes vamos ver se conseguimos abrir um portal entre os mundos. Ainda tenho dúvidas.

— Nós vamos conseguir. Tenho certeza.

— A não ser que a rainha tenha mandado alguém para seguir a nossa pista — disse Farodin.

Nuramon olhou para trás. Não viu ninguém. Farodin, no entanto, avisou:

— Agora há pouco, na clareira, alguém estava à espreita nos arbustos.

— E por que você não disse nada? — perguntou Nuramon, indignado.

— Isso não teria mudado nada.

Nuramon não gostava da forma como Farodin guardava o que sabia para si, tomando decisões arbitrárias por todos eles.

— O que você acha? Quem era?

O elfo deu de ombros.

— Alguém que tem medo de um conflito direto. Espero que consigamos surpreender o nosso perseguidor quando abrirmos o portal. Se é que vai dar certo... É melhor não ficar olhando para trás o tempo todo. Vamos dar a ele uma falsa sensação de segurança.

Quando finalmente chegaram ao fim da floresta, tendo diante de si um pasto aberto, deram rédeas para os cavalos. Galoparam ao encontro das terras das colinas de Yaldemee. Os cavalos estavam contentes de avançar a galope solto. O cavalo marrom de Farodin assumiu a ponta, enquanto Felbion e a égua de Mandred, que ele ainda não batizara, corriam lado a lado.

Mandred estava profundamente curvado sobre o pescoço de sua égua. Com gritos selvagens, impelia-a para a frente. Também parecia se divertir com a corrida. Nuramon deixou-se ficar um pouco para trás, para que o filho de humanos desfrutasse ao menos o pequeno triunfo de não ser o último.

Chegaram à terra das colinas sem se deparar com qualquer perseguidor. Talvez tivessem conseguido se livrar dele. Por segurança, decidiram ir por um desvio. Cavalgaram por um tempo dentro de um rio raso para não deixar rastros. Farodin, contudo, duvidava que dessa forma pudessem enganar Phillimaco.

No fim da tarde, chegaram ao vale de pequenas colinas do qual falara o Carvalho dos Faunos e apearam. Assim que Nuramon pôs os pés no chão, sentiu o poder de uma trilha alba. Devagar, eles conduziram os cavalos em frente. No vale havia uma única árvore e poucas moitas. As colinas ao redor, recobertas de grama, formavam subidas íngremes. A cada passo, Nuramon sentia a corrente da trilha. Era como um caminho de gelo sobre um rio tão fino que se podia sentir a água fluir sob seus pés. Deteve-se no fim do vale. Sentiu um turbilhão logo acima do chão. Vinda de três lados, a força das trilhas albas chegava ali como uma torrente, misturando-se e voltando a fluir por três trilhas.

Nuramon olhou ao redor. Nada denunciava que ali havia uma estrela alba. Nem uma clareira, nem pedra alguma marcando o lugar. Mesmo assim, sabia ter encontrado o alvo.

Desconfiado, Farodin buscou rastros de outros filhos de albos. Mas nada indicava que outro ser tivesse procurado aquele lugar nos últimos dias ou semanas. O Carvalho dos Faunos dera-lhes um bom conselho. Aqui eles poderiam abrir um portal para o Outro Mundo com tranquilidade.

Nos últimos dias, Nuramon sempre encorajara os companheiros e tentara principalmente acabar com os pensamentos de Farodin. Mas agora dúvidas sérias também o acometiam. No inverno anterior, ele adquirira muitos conhecimentos. Além disso, o Carvalho dos Faunos afirmara que ele tinha muito talento. Nada, contudo, mudava o fato de que ele nunca tinha aberto um portal antes.

— Nós chegamos ao nosso alvo. Consigo sentir a estrela dos albos — esclareceu Nuramon aos companheiros, mas dirigindo-se mais a Mandred que a Farodin.

— Será que nossos cavalos terão coragem de atravessar o portal? — perguntou Mandred, examinando a grama de forma desconfiada, como se ali devesse haver algum sinal de que estavam diante de uma estrela alba. — Já estou muito acostumado a não precisar andar até esfolar os pés.

— Só precisamos tentar — retrucou Farodin.

— Olhem em volta mais uma vez, respirem este ar — disse Nuramon, melancólico. — Talvez seja a última vez que vemos a Terra dos Albos.

Quem infringia as ordens da rainha tão abertamente quanto eles não devia contar em pôr os pés naquelas terras novamente.

— Tenho certeza de que é a última vez — afirmou Mandred.

Farodin permaneceu calado. Nuramon, todavia, tinha secretamente a sensação de que veria novamente a Terra dos Albos, mesmo que não devesse ter esperanças disso.

Finalmente Nuramon fez o feitiço. Primeiro concentrou-se no fluxo das trilhas dos albos cuja força se fundia na estrela. Então ergueu a cabeça de forma que o sol pudesse brilhar sobre seu rosto. Era um feitiço que envolvia luz e calor, e ambos agora atingiam sua face. A magia e o calor já se encontravam frequentemente nas curas que operava, por isso não eram desconhecidas para ele. Então ele se abriu para a força do sol e deixou-a fluir, através dele, para a estrela dos albos. Seu feitiço abriu diretamente uma fenda no turbilhão de forças. Por um momento, teve a sensação de ser puxado para a estrela dos albos. Resistiu a ela com todo o seu vigor. De repente algo tocou seus ombros e ele escancarou os olhos. Mal conseguia enxergar. Para ele, era como se a força do sol que ele acolhera em si irradiasse de seus olhos. Ali próximo ele notou duas sombras. Deviam ser Farodin e Mandred.

Nuramon fechou os olhos e tentou com muito esforço persistir no feitiço que ameaçava escapar dele. Ajoelhou-se, pôs as mãos sobre a terra morna e deixou a força do sol fluir por seus braços, como se a estrela alba fosse um doente cuja chaga ele tivesse de fechar com seu poder. Mas esse não era um feitiço de cura; a ferida ainda não podia fechar. O que ele via como uma ferida na estrela dos albos devia ser parte do feitiço. Talvez no fim fosse até mesmo o próprio portal. Nuramon sentia a força fluir das pontas de seus dedos, e esperava pela dor que até então sempre estivera ligada a todos os seus feitiços. E justamente porque a dor não vinha, ele mantinha-se cauteloso. Não queria ser pego desprevenido pelo sofrimento.

Ele sentiu uma das três trilhas pulsar com uma força que a distinguia das outras duas. Era como o contraste entre água salgada e doce. Essa trilha em especial devia ser a que levava ao Outro Mundo. De repente, veio a dor. Um calor ardente percorreu suas mãos e irradiou-se até os dedos do pé. Tentou desesperadamente se defender, mas a dor crescia e crescia e logo tornou-se insuportável. Nuramon recuou da estrela e abriu os olhos. A luz que antes ofuscava o seu olhar havia desaparecido, permitindo a ele ver os companheiros de pé ao seu lado. Junto a eles havia uma ampla coluna de luz, que parecia uma fenda no mundo.

— Você conseguiu! — gritou Farodin.

Nuramon aproximou-se cautelosamente. Ele havia aberto uma ferida na estrela dos albos e feito a luz do sol penetrar nela.

Enquanto Mandred mantinha-se imóvel, olhando para a luz como se tivesse criado raízes, Farodin deu a volta na coluna de luz. Nuramon pôde sentir que ela alimentava-se da força do turbilhão. Estava com um medo terrível. Se tivesse cometido um erro, talvez todos morressem.

— Vocês acham que esse é mesmo o portal que nós queríamos criar? — perguntou ele.

— Eu não estou ligado à rede da sua magia, mas olhando de fora tudo está da forma como o Carvalho dos Faunos descreveu — esclareceu Farodin. — E, afinal, temos escolha? Da minha parte estou pronto para arriscar.

Mandred pegou a rédea de sua égua.

— Eu queria atravessar primeiro.

— Isso está fora de questão — retrucou Farodin. — É perigoso demais. Você veio junto por nossa causa, e por isso eu vou antes de você. Se eu for queimado, por favor encarregue-se em meu nome de dizer a Nuramon o que eu acho dele — disse, sorrindo amarelo.

— Nós estamos indo ao meu mundo, e ninguém senão Mandred Torgridson vai pôr o pé ali primeiro! — Com essas palavras ele simplesmente avançou, desaparecendo de repente na luz.

Farodin sacudiu a cabeça.

— Mas que cabeçudo! — disse, apanhando o seu cavalo. — Qual de nós será o próximo? — perguntou então.

— Eu abri o portal, e queria fechá-lo novamente.

Farodin baixou o olhar.

— Sobre a nossa rivalidade por Noroelle eu queria... — e interrompeu-se. — Vamos nos esquecer disso e nos ater ao que Noroelle disse antes da Caçada dos Elfos.

Sem mais palavras, ele seguiu Mandred para dentro da luz.

— Venha, Felbion — chamou Nuramon, e o cavalo veio até o seu lado. — Atravesse. Eu vou depois de você.

O feitiço de Nuramon que fecharia o portal dentro de poucos instantes era para ele como um movimento mental de mão, que ele executou seguindo sua vontade. Não era mais que um feitiço de cura para a ferida da estrela dos albos. E ele entendia de feitiços de cura. Uma vez que começasse a pensar nele, já não conseguiria mais anulá-lo. Estava prestes a pisar na luz quando percebeu um vulto na entrada para o vale, de pé sobre uma colina. Era uma mulher. Ela ergueu a mão e fez um gesto discreto.

Obilee! Em seu rosto havia preocupação, como ele era capaz de reconhecer mesmo àquela distância. Talvez até estivesse chorando. Ele acenou de volta para ela. Não restava tempo para mais que isso. A coluna de luz já começava a encolher. Ele se perguntou por que Obilee não se revelou antes para eles. E então caminhou para dentro da luz. Um piscar de olhos depois e um calor chamuscante o atingiu. Seria isso a última coisa que ele sentiria? Será que o feitiço fracassara? Um passo e a luz do portal tinha se apagado. Sobre ele queimava um sol implacável.

Seus companheiros já estavam lá, e isso o deixou aliviado. Mas quando olhou em volta, o alívio passou. Em todo lugar ao redor deles só havia areia, até onde os olhos alcançavam. Era o Outro Mundo. Nunca confundiria esse céu com o que cobria a Terra dos Albos, pois ali mesmo em dias claros o ar parecia turvo.

Um deserto! De todos os lugares do Outro Mundo eles foram cair justo em um deserto! O destino novamente lhes pregara uma peça. O Luth de Mandred mais uma vez tecera uma de suas tramas. Nada poderia mostrar melhor quão remota era a esperança de encontrarem Noroelle quanto a chegada a este vazio.

Mandred estava sentado à sombra de seu cavalo, respirando com dificuldade. Farodin ajoelhou-se e ergueu desolado a mão cheia de areia, deixando-a escorregar por entre os dedos.

A terra do fogo

Não deixaria transparecer nada, pensou Mandred. Sempre um passo depois do outro. Agora já fazia dois dias que estavam nessa terra desoladora. Nuramon dissera que, na estrela, eles haviam seguido um caminho entre três, mas o filho de humanos não viu qualquer indício disso. Ao menos já tinham deixado as dunas para trás. Diante deles havia uma planície sem fim. Como ossos de monstros gigantes, havia rochas brancas fincadas na areia. Não conseguia mais suportar os olhares preocupados dos companheiros elfos.

— Eu estou bem — resmungou para Farodin.

Maldito bando de elfos! Para eles o calor parecia mal fazer diferença. Eles sequer suavam!

Mandred passou a língua por cima dos lábios. Sua boca estava seca, sentia os lábios como uma corda áspera de cânhamo. A pele estava rachada e coberta de cascas. Seu rosto doía de tão queimado pelo sol inclemente.

Olhou para a sua sombra. Estava grande demais! Ainda faltavam algumas horas para o meio-dia! E, ainda assim, o calor já era insuportável.

Mandred se esticou. Só não podia demonstrar fraqueza! Como é que os elfos suportavam isso tão bem? Nuramon parecia um pouco esgotado; ele não era nem de longe um rapaz tão durão quanto Farodin. Mas até ele estava aguentando bem. Mandred relembrou do tempo em que estiveram à caça do devanthar. Nuramon fizera algum feitiço que soprava ar quente para baixo de suas roupas. Mesmo no meio do inverno mais rigoroso, o elfo não sentiu frio. Será que eles também conseguiam refrescar o ar debaixo do que vestiam? Será que era segredo? Devia haver algo desse tipo.

Enquanto isso, também ele, Mandred, havia parado de suar. Mas não porque se acostumara ao calor. Ele estava ressecado como um pedaço velho de queijo de ovelha. Passou de novo a língua pelos lábios secos. Ela estava inchada.

Mandred agarrou a patilha da sela de sua égua. Para ela o calor também não parecia importar tanto. Naquela manhã ele dividira com ela a água que ainda lhe restava. Enquanto bebia, ela o encarara com seus olhos grandes e negros como se tivesse pena dele. Cavalos que tinham pena de humanos! O calor o estava deixando louco!

O silêncio no deserto era assustador. Era possível ouvir baixinho o vento rolar os grãos de areia uns sobre os outros. Passo a passo. Seguir em frente. O cavalo o puxava. O apoio fazia bem. Os elfos levavam seus cavalos pelas rédeas. E ele se deixava conduzir pelo seu! Já não tinha mais forças para reagir.

O vento ficou mais fresco. Mandred soltou um som rouco e gutural. Em outros tempos, teria sido uma risada. Vento fresco! Apenas vento. Vento quente como a lufada que atingia o padeiro quando abria seu forno. Que porcaria de fim para um guerreiro! Seria capaz de chorar. Mas já não tinha mais lágrimas. Estava seco como uma maçã velha. Que morte miserável!

Ergueu a cabeça. Os raios do sol atingiram seu rosto como punhais. Mandred voltou-se um pouco para o lado. Seu olhar vagueou até o horizonte. Nada — não havia fim para o deserto. Só blocos brancos de pedra e areia amarela.

Estava tudo começando de novo! O ar derreteu-se, tornando-se mais denso e irregular. Quase como geleia de mocotó. Tremeu e se fundiu. Será que bem no fim ele também derreteria? Ou, em algum momento, ele ficaria tão ressecado que de repente pegaria fogo? Talvez ele só tombasse e parasse de viver...

Mandred puxou o odre do cinto, abriu-o e pôs nos lábios o bocal entalhado em osso. Nada. Ele sabia que há muito tempo bebera tudo o que havia ali. Uma única gota lhe bastaria! Só precisava de uma vaga lembrança de água. Torceu o couro desesperado, e o ar quente assobiou no bocal. Tossindo, deixou o odre cair.

Desconfiado, olhou para Farodin, que andava na frente dele. Seu odre era maior. Com certeza ele ainda tinha água e não queria dividi-la.

Não, ele não mendigaria, Mandred repreendeu a si mesmo. Se os elfos suportavam, ele também conseguiria. Ele era muito maior e mais forte que aqueles porcarias. Não era possível que os dois suportassem esse martírio melhor que ele. Com certeza tinham odres maiores. Ou talvez tivessem odres encantados, que nunca esvaziavam. Ou... Sim, era isso! Não, não era nenhum feitiço! À noite, enquanto ele dormia, tinham roubado a sua água! Era a única explicação para que ainda continuassem dando um passo depois do outro nessa maldita areia. Mas a ele, Mandred Torgridson, não enganariam. Seus dedos tatearam o cinto em busca do machado. Ele os observaria. E, quando menos esperassem, atacaria. Roubar a água dele! Que bando infame! E depois de tudo o que tinham passado juntos.

Sua mão direita escorregou da sela. Ainda cambaleou alguns passos e, então, caiu de joelhos. Em um instante, Nuramon já estava a seu lado. Sua pele estava rosada. Havia sombras escuras sob seus olhos, mas... Os lábios não estavam rachados. Ele tinha o suficiente para beber! A água dele! A mão esquerda de Mandred agarrou com força o cabo de madeira do machado, mas não conseguia puxar a arma do cinto. Nuramon continuou curvado para a frente. Suas mãos estavam agradavelmente frias, e ele passou-as pelo rosto de Mandred. O ardor simplesmente cessou.

Mandred via a garganta do elfo bem acima dele. Uma garganta cheia de sangue molhado e delicioso. Precisava mordê-lo. Com certeza ainda tinha forças para rasgar sua garganta com os dentes. A ideia do sangue regando seu rosto esfolado fez Mandred suspirar de vontade.

— Nuramon? — Era realmente a primeira vez que Mandred reconhecia medo na voz de Farodin. — O que é aquilo?

O guerreiro elfo estava imóvel, e apontava para o horizonte ao sul. Uma faixa marrom e estreita surgira entre o céu e o deserto. A cada momento tornava-se maior.

Para Mandred parecia que o ar se solidificava em uma massa dura e sufocante. A cada respiração, sua garganta queimava como fogo.

— Uma tempestade? — perguntou Nuramon inseguro. — Pode ser uma tempestade?

Um golpe de vento jogou areia no rosto de Mandred. Ele piscou para tentar deixar os olhos novamente livres. Nuramon e Farodin o agarraram pelos braços e o arrastaram para trás de uma rocha da altura de seus joelhos. O garanhão de Nuramon relinchou com medo. Tinha as orelhas baixas e encarava a coluna marrom que aumentava cada vez mais.

Os dois elfos fizeram os cavalos se ajoelharem atrás da rocha. Mandred gemeu alto ao ver Farodin derramar o último resto de água em um lenço e enrolá-lo ao redor das ventas de seu garanhão. A égua de Mandred dava resmungos estranhos de medo. Então, de repente o céu desapareceu. Véus de areia rodopiante tinham feito o mundo encolher e agora se resumir a poucos passos de largura.

Nuramon pressionou um lenço úmido sobre o nariz e a boca de Mandred, que sugou avidamente o tecido molhado. Tinha apertado os olhos em ranhuras estreitas, mas ainda assim a areia encontrava caminho entre seus cílios.

Farodin escolhera bem o lugar de abrigo. Protegidos pela rocha plana, logo conseguiram ver a areia fina passar à esquerda e à direita formando um véu sem fim. Terra e céu pareciam ter se fundido em um só. Areia e poeira que vinham de cima os cobriram. Mas a maior parte dela era carregada pelo vento por cima deles.

Apesar do lenço na boca, Mandred sentia areia entre os dentes e dentro do nariz. Estava também dentro de suas roupas, roçando em sua pele maltratada. Logo o lenço de proteção estava totalmente colado, e Mandred tinha novamente a sensação de sufocar. Cada respiração era uma tortura, mesmo que com a tempestade o calor tivesse dado trégua.

Ele apertou os olhos que queimavam. Tinha perdido totalmente a noção do tempo. A tempestade os enterrava vivos. Metade de suas pernas já tinha desaparecido na areia, e ele não tinha mais forças para resistir e se libertar.

A sensação de Mandred era de estar totalmente ressecado. Parecia sentir seu sangue engrossando, a correr cada vez mais lentamente por suas veias. Então seria esse o fim...

O mundo partido

Farodin fez um sinal para que seu companheiro viesse. Nuramon hesitou. Trazia Felbion pelas rédeas, com Mandred amarrado na sela.

— Veja só! — exclamou.

O filho de humanos estava profundamente desmaiado. Seu coração batia lentamente e seu corpo estava quente demais. No máximo, mais um dia, dissera Nuramon naquela manhã. De lá para cá, oito horas já haviam se passado. Precisavam encontram água ou Mandred morreria. Mesmo eles não seriam capazes de suportar aquele calor por mais tempo. As faces de Nuramon estavam cavadas, rugas finas haviam se formado ao redor de seus olhos irritados e vermelhos. Era óbvio que a luta pela vida de Mandred estava levando ele mesmo ao limite do colapso.

— Venha já — chamou Farodin. — É ao mesmo tempo lindo e assustador. Como uma visão no espelho-d’água de Emerelle.

Nuramon foi até ele; agora que estava ao lado do elfo, podia ver que ele sentia quase que fisicamente o esgotamento do companheiro.

— Você precisa descansar!

Nuramon sacudiu a cabeça debilmente.

— Ele precisa de mim. O meu poder de cura está adiando a sua morte. Precisamos encontrar água. Eu... Temo que não vou aguentar muito tempo ainda. Ainda estamos na trilha dos albos?

— Sim.

A Farodin coubera a tarefa de guiá-los pela trilha invisível. Tinham escolhido ao acaso qual das três trilhas da estrela alba seguiriam. Como Nuramon usava todas as suas forças para manter Mandred vivo, era Farodin quem se concentrava em manter o caminho. Ela tinha de levar a algum lugar, e esperavam que esse lugar fosse outra estrela alba.

— O que você quer me mostrar?

Farodin apontou um pouco para a frente, para um pedaço plano de rocha quase totalmente oculto pela areia.

— Ali na sombra, na direção das minhas pegadas. Consegue vê-lo?

Nuramon olhou contra a luz forte. Então sorriu.

— Um gato. Está dormindo — contente, foi na direção dele.

Farodin o seguiu lentamente.

Aninhado junto à pedra estava deitado um gato, com a cabeça apoiada nas patas da frente. Seu pelo era ocre e estava cheio de areia, assim como as tranças de Mandred. Era só pele e osso e tinha o pelo todo desgrenhado. Parecia estar dormindo.

— Está vendo a junção da cabeça com o pelo? — perguntou Farodin.

Nuramon permaneceu imóvel como se tivesse criado raízes.

Era preciso se aproximar muito do gato para conseguir ver sua nuca. Estava pelada. A areia fina escavara o pelo e a carne e polira o seu crânio, que agora brilhava muito branco.

— Como ele parece em paz — disse Nuramon ternamente. — Ele se deitou na sombra da rocha, caiu no sono de cansaço e morreu de sede enquanto dormia.

Farodin concordou.

— Deve ter sido assim mesmo. O calor seco preservou o seu corpo, e o pelo o protegeu da areia trazida pelo vento. Não dá para dizer se está morto há semanas ou anos.

— É isso o que vemos no espelho, você quer dizer? O nosso futuro?

— Se não encontrarmos água muito em breve. E eu mal me atrevo a ainda ter esperança. Desde que chegamos pela estrela não vimos nenhum animal, sequer qualquer rastro! Nada vivo fica vagando neste deserto.

— O gato estava vivo — retrucou Nuramon com violência surpreendente.

— Sim, de fato estava. Mas vir até aqui foi um erro fatal, como podemos ver. Você acha que Mandred ainda estará vivo no próximo nascer do sol?

— Se encontrarmos água...

— Talvez devêssemos matar um dos cavalos e dar o sangue para ele beber.

— Acho que seria melhor se um de nós pegasse os dois cavalos mais fortes e cavalgasse alternando entre eles. Assim avançaria muito mais rápido e poderia procurar por água.

— E quem de nós seria?

— É tão difícil de adivinhar? Eu resfrio Mandred com meu poder de cura e mantenho-o vivo. Você não conseguiria fazer isso. Então vou ficar. Os cavalos aguentarão pelo menos até hoje à noite. Se você encontrar um lugar com água, você a bebe, enche o odre e volta no frescor da noite.

— E se até o pôr do sol eu não encontrar água?

Nuramon encarou-o inexpressivo.

— Então você ainda terá mais um dia para salvar pelo menos a sua vida. — E examinando-o: — Um dia a cavalo poupará suas forças. Tenho certeza de que suportará mais um dia. Só que então não fará mais sentido retornar até nós.

— Um bom plano! — Farodin concordou, elogioso. — Pensado com a cabeça fria. Porém, para ser executado seria preciso um homem mais corajoso que eu.

— Um homem mais corajoso?

— Você acha que eu seria capaz de encarar Noroelle e dizer a ela que abandonei dois dos meus companheiros no deserto para encontrá-la?

— Então você ainda acredita que vai encontrar Noroelle desse jeito?

— Por que não? — perguntou Farodin rudemente.

— Quantos grãos de areia você já encontrou desde que retornamos ao mundo dos homens?

Farodin ergueu o queixo de forma provocativa.

— Nenhum. Mas eu também não procurei. Eu estava... O calor. Eu usei meus poderes mágicos para conseguir me refrescar um pouco.

— Isso dificilmente teria custado todas as suas forças. — Nuramon fez um gesto amplo na direção do horizonte. — Foi isso aqui que tirou sua força e coragem. Essa vista. Não acho que estamos aqui por acaso. O destino quis que entendêssemos como nossa busca é sem sentido. Deve haver um outro caminho!

— E qual? Não consigo mais ouvir essa sua conversa sobre um outro caminho. Como é que esse caminho pode ser, afinal?

— Como você pretende encontrar todos os grãos de areia perdidos?

— O meu feitiço os traz até mim. Eu só preciso me aproximar deles o suficiente.

— E quão perto é isso? Cem passos? Um quilômetro? Dez? Quanto tempo vai levar até você vasculhar o Outro Mundo? Como um dia você terá certeza de que encontrou todos os grãos?

— Quanto mais grãos eu encontro, mais forte fica o meu feitiço de busca.

Nuramon apontou para o deserto.

— Veja isso! Eu sequer conheço um número para expressar de forma aproximada quantos grãos há aqui. É inútil. E se você claramente tem força para tentar o inútil, então é a escolha certa para procurar água aqui. Se alguém vai conseguir, esse alguém é você! Use o feitiço de busca para encontrar o poço de água mais próximo!

Já era o bastante!

— Você acha mesmo que eu sou tão burro? Uma coisa é encontrar algo tão minúsculo como um preciso grão de areia no meio de um deserto. Descobrir um poço de água é infinitamente mais fácil. Você acha que eu ainda não teria usado minhas forças para procurar água? E por que então eu mostrei o gato morto? Esse é o nosso futuro. Não há água nenhuma num raio de pelo menos um dia de cavalgada. Só a água em nós. O nosso sangue... A verdade é simples assim. Eu tinha acabado de tentar pouco antes de ver o gato. Não há nada aqui.

Tenso, Nuramon olhava para o leste.

— Será que o sol queimou o último resto de cortesia em você? Diga alguma coisa! Você pelo menos está me ouvindo?

Nuramon apontou adiante no deserto vazio.

— Ali. Há alguma coisa ali.

Uma rajada de vento lançou um véu fino de areia de encontro a eles. Como a rebentação de uma maré, ele voou e rompeu-se nas poucas rochas que saíam da areia. Não muito longe seguiu-se uma segunda e pálida onda de areia.

— Lá! Aconteceu de novo! — gritou Nuramon nervoso.

— O quê?

— Aqui estamos sobre a trilha dos albos. Ela segue em linha reta pelo deserto. Pense nela partindo daqui e indo em frente. Pouco mais de um quilômetro, eu estimaria... Observe como o véu de areia vai até lá. Tem alguma coisa ali!

Farodin olhou na direção indicada. Mas lá não havia nada! Nenhuma rocha, nenhuma duna. Só areia. Confuso, examinou Nuramon. Teria ficado louco? Será que a desesperança estava fazendo com que perdesse a razão?

— Aconteceu de novo! Mas que droga... Olhe para lá!

— Devíamos procurar um pouco de sombra para nós — disse Farodin, tentando acalmá-lo.

— Está vindo mais um véu de areia! Por favor, olhe!

— Você...

Farodin mal acreditou no que seus olhos viram. O véu de areia se abriu por um curto instante e, depois, a fenda se fechou. Era como se a areia voasse de encontro a uma rocha que dividia o véu por um momento. Só que lá não havia nenhuma rocha.

A mão direita de Farodin escorregou até a espada.

— O que é aquilo?

— Não faço ideia.

— Talvez uma criatura invisível?

Quem ganharia alguma coisa ficando invisível? Um caçador! Alguém que estivesse à espreita de uma presa! Será que os observava em segredo enquanto pensava em uma forma de ir atrás deles? Farodin puxou a arma. A espada parecia muito mais pesada que de costume. O sol minara a força de seus braços.

Não importava o que estava ali: precisavam enfrentá-lo. Cada momento de hesitação lhes custaria mais forças.

— Eu vou dar uma olhada. Veja o que vai acontecer.

— Não seria melhor...

— Não!

Sem dar chance para mais conversa, Farodin lançou-se sobre a sela, segurando a espada atravessada na frente do peito.

Em poucos instantes já estava lá. De novo o deserto o enganara, fazendo parecer que a distância era maior. Na areia clara jazia um anel negro formado por pedras de basalto. Elas pareciam grandes pedras de calçamento. Sobre suas superfícies planas não havia nenhum grão de areia. Seria uma roda encantada de pedras? Farodin nunca vira algo assim antes.

Ele fez o cavalo contornar as pedras. Os véus de poeira se dividiam assim que atingiam o círculo, como se dessem de encontro a uma parede de vidro. Ele percebeu uma pirâmide pequena e rústica, feita de pedaços empilhados de pedra bruta, um pouco separada do círculo e meio oculta pela areia em movimento. Em cima das pedras descansava um crânio humano. Farodin olhou em volta e percebeu outros montes baixos. Sobre um deles havia vários crânios. Que tipo de lugar era aquele? Tomado pela tensão, olhou ao redor. Exceto pela roda de pedras e pelos montes, não havia mais nenhum sinal de que algum dia humanos ou elfos tivessem vivido ali.

Farodin finalmente apeou. O chão estava repleto de magia. De todas as direções chegavam trilhas albas, juntando-se no círculo. Cuidadosamente, o elfo estendeu a mão até a barreira invisível. Sentiu um leve formigamento na pele. Hesitante, pisou dentro do círculo. Nada o deteve. Estava claro que o encanto do círculo afastava somente a areia. Mas para que os crânios? As pilhas de pedras não combinavam com a elegância simples do anel. Será que haviam sido erguidas mais tarde? Eram para ser um sinal de alerta?

O círculo delimitado pelas pedras de basalto media quase vinte passos; o anel propriamente dito mal tinha um passo de largura. Em seu interior, o chão era de areia; não tinha nada de diferente do deserto que o cercava.

Farodin fechou os olhos e tentou focar seus pensamentos totalmente na magia das trilhas dos albos. Eram seis os caminhos que se cruzavam no interior do círculo de pedras. Seria fácil abrir um portal ali. E tanto fazia onde ele ia dar: qualquer coisa era melhor do que aquele deserto.

Farodin acenou para Nuramon se aproximar. Ele trouxe Mandred e os cavalos.

— Uma estrela alba! — gritou ele, aliviado. — Estamos salvos. Abra o portal!

— Você sabe fazer isso melhor.

Nuramon sacudiu a cabeça, irritado.

— Estou esgotado demais. Você imagina quanta força é necessária para impedir que a faísca de vida de Mandred se apague? Você aprendeu a fazer! Então faça!

Farodin pigarreou. Ele queria se opor, mas então se calou. Estava quase desejando que um monstro invisível estivesse ali à espreita. Mesmo com as lições do Carvalho dos Faunos, os caminhos da magia permaneciam desconhecidos para ele.

O elfo pôs a espada na areia e sentou-se de pernas cruzadas. Então tentou afastar o medo e todos os pensamentos. Precisava esvaziar seu espírito para que ele e a magia se tornassem um só. Bem lentamente, surgiu diante de seu olho interior a imagem de trilhas de luz, que se cruzavam na escuridão. Elas se deformavam onde se encontravam. As linhas se curvavam e formavam um turbilhão. Cada estrela alba distingue-se de todas as outras pela forma como as linhas se entrelaçam em seu centro. Isso ajuda na orientação dos feiticeiros experientes.

Farodin imaginou que estendia as mãos para o meio das trilhas de luz. Como um jardineiro que amarra hastes de flores, ele as afastou umas das outras até que se formasse um buraco cada vez maior, e por fim um portal. Uma misteriosa força de atração irradiava dali. Esse caminho não levava à Terra dos Albos.

Inseguro, abriu os olhos. Olhou para o crânio branco e polido sobre a pilha de pedra. Sobre o que ele queria alertar?

— Você conseguiu. — A dúvida que reverberava na voz de Nuramon denunciava que ele mentia.

Farodin virou-se. Atrás dele havia surgido um portal que parecia totalmente diferente do outro que Nuramon já havia criado. Faixas de luz de todas as cores do arco-íris circundavam uma abertura escura que parecia levar ao nada. Uma linha reta de luz branca atravessava para dentro das trevas, mas sem conseguir iluminar a escuridão que a rodeava.

— Eu vou na frente — disse Farodin. — Eu...

— Esse portal leva ao Mundo Partido, imagino. — Nuramon o observou com mal-estar evidente. — Por isso ele tem essa aparência diferente. É como o Carvalho dos Faunos o descreveu.

Inquieto, Farodin passou a língua por cima dos lábios. Apanhou a espada e meteu-a na bainha. Com a mão aberta bateu a areia das rugas das calças e, no mesmo momento, tomou consciência de que só fazia isso para adiar a decisão. Levantou-se num pulo.

— O portal é largo o suficiente. Podemos ir lado a lado, conduzindo os cavalos pelas rédeas.

Quando estavam no limiar do portal, Nuramon se deteve.

— Desculpe — disse em voz baixa. — Aquela não foi a melhor hora para brigar com você a respeito dos grãos de areia.

— Vamos deixar essa briga para outra hora.

Nuramon não respondeu nada. Em vez disso, puxou a rédea de seu cavalo e deu um passo adiante.

Farodin teve a sensação de ser sugado pelo portal. De um golpe, estava no meio da escuridão. Ouviu seu cavalo relinchar, sem vê-lo. A trilha de luz havia desaparecido. Sentia como se estivesse caindo por uma eternidade. Então seus pés tocaram um chão macio. A escuridão desfez-se. Piscando, Farodin olhou em volta. Levou um susto que deixou seu coração gelado. O feitiço fracassara! Ainda estavam no meio do anel de basalto negro e em torno deles o deserto estendia-se até o horizonte.

— Talvez eu devesse de novo...

— Nossas sombras! — gritou Nuramon. — Veja só! Nossas sombras desapareceram! — E olhando para cima, para o céu: — O sol se foi. Onde quer que estejamos agora, este não é mais o mundo dos humanos.

Um grito agudo soou no céu. Sobre eles um falcão dava voltas. Parecia observá-los. Por fim mudou de rumo e voou dali.

Farodin ergueu a cabeça. O céu era de um azul-claro e brilhante, que aos poucos ficava mais pálido até alcançar o horizonte. Não havia nuvens nem sol. O elfo fechou os olhos e pensou em água. Sua boca pareceu cada vez mais seca quanto mais intenso se tornava o seu pensamento. Então sentiu como se tivesse mergulhado por um instante em uma nascente de água fresca da montanha.

— Ali na frente! — disse, apontando para uma grande duna no horizonte. — Antes do pôr do sol, ali nós vamos... — Ele parou e olhou para o céu vazio. — Antes de escurecer nós vamos encontrar água ali.

Nuramon não disse nada, e simplesmente o seguiu. Cada passo consumia um pouco mais de suas forças. Estavam tão esgotados que não conseguiam mais andar por cima da areia macia. A cada passo, afundavam até os tornozelos como humanos.

A duna para onde iam mal parecia estar ficando mais próxima. Ou era só impressão de Farodin? Será que o tempo se estendia até o infinito, já que a ausência do sol movendo-se no céu não dava a medida das horas que passavam? Teria passado meia hora ou já metade de um dia quando o céu finalmente começou a escurecer tom a tom?

Quando finalmente chegaram à duna, estavam à beira do colapso.

— Como está Mandred?

— Péssimo.

Nuramon punha um pé depois do outro, sem parar ou levantar os olhos.

O silêncio de Farodin era mais cansativo que qualquer pergunta.

— Ele vai morrer antes da noite cair. — Nuramon continuava com o olhar baixo. — Mesmo que encontrássemos água, não sei se isso ainda conseguiria salvá-lo.

Água, pensou Farodin. Água! Ele conseguiu sentir. Já não estava longe. Avançou cansado. Na duna era ainda pior que no chão plano. A cada passo eles não só afundavam bastante na areia, mas também escorregavam um pouco para trás, como se a duna quisesse impedi-los de chegar ao seu topo. Um vento leve jogou areia na direção deles. Seus olhos queimaram.

Quando finalmente chegaram lá em cima, estavam exaustos demais para conseguir se alegrar com a vista. Diante deles estava um lago de um azul profundo, ladeado por milhares de palmeiras. Havia construções estranhas próximas à margem.

Só mais duas dunas baixas os separavam da mata de palmeiras. Escorregando um pouco, começaram a descer do mirante. Os cavalos relinchavam impetuosos. Agora eram eles que puxavam os elfos pelas rédeas atrás de si. Os animais farejavam a água.

De repente algo atingiu a areia perto de Farodin, que desviou para o lado por reflexo. Uma flecha emplumada e negra o errara por pouco. Mas não se via um atirador em lugar nenhum! O falcão tinha retornado e novamente voava em círculos sobre eles.

Então um zumbido tomou conta do ar. Uma nuvem inteira de flechas voou por cima do topo da duna. Os tiros acertaram a areia a poucos passos de distância. Fizeram quase uma linha reta, como se indicassem uma fronteira que não deveria ser cruzada.

Quando Farodin olhou para cima novamente, surgiram cavaleiros no cume da duna diante deles. Eram pelo menos três dúzias. Cavalgavam animais que o elfo nunca vira antes. Com suas longas pernas e cabeças de formato estranho, sustentadas por pescoços curvados, eram tão feios que lhes tiravam o fôlego. O pelo de todos eles era branco, e das costas de cada um saía uma imensa corcova.

Os cavaleiros vestiam casacos longos e brancos. Seus rostos estavam cobertos. Alguns tinham sacado seus sabres; outros estavam armados com lanças, de cujas lâminas pontudas pendiam borlas coloridas. Mas o que chamava a atenção ainda mais eram seus escudos de couro. Tinham a forma de duas enormes asas de borboleta bem abertas e igualmente coloridas. Em silêncio, os cavaleiros olhavam para baixo e observavam os forasteiros.

Finalmente um deles avançou do grupo, conduzindo habilmente sua montaria duna abaixo. Deteve-se atrás da linha de flechas.

— Mensageiros enviados por Emerelle não são bem-vindos aqui — soou uma voz abafada de mulher. Ela falava élfico!

Atônitos, os companheiros se entreolharam.

— Quem pode ser? — perguntou Nuramon baixo.

Ficou evidente que a amazona ouviu as palavras sussurradas.

— Nós nos designamos “os libertos de Valemas”, pois a palavra de Emerelle não tem poder neste pedaço do Mundo Partido. Vocês podem ficar por uma noite aqui fora do oásis. Amanhã nós os levaremos de volta para o portal.

— Eu sou Farodin da Terra dos Albos, do clã de Askalel — gritou ele de volta, furioso. — Um dos meus companheiros está mais perto da morte que da vida. Eu não sei qual é o rancor que nutrem por Emerelle, mas de uma coisa eu sei com certeza: se vocês não nos ajudarem, então sacrificarão a vida do meu amigo em nome de vossa ira. E eu prometo que obterei vingança mortal caso ele morra por vossa causa.

A amazona oculta olhou para cima, para os outros companheiros. Para Farodin era impossível reconhecer um líder entre eles. Estavam vestidos quase da mesma forma e suas armas também não revelavam nada sobre sua hierarquia. Por fim, um deles ergueu o braço e deu um assobio estridente. O cavaleiro vestia uma luva estofada de falcoeiro. O falcão, que planava bem no alto sobre eles, respondeu com um grito. Então fechou as asas e desceu em voo picado, pousando na mão que continuava esticada. Como se isso fosse um sinal de paz, a cavaleira acenou para eles.

— Venham. Mas lembrem-se disto: vocês não são bem-vindos. Eu sou Giliath dos libertos, e se você quiser brigar com alguém, Farodin, então eu aceito o seu desafio.

O povo liberto

Os guerreiros trajados de branco deram-lhes água. Então acolheram os três entre eles e os levaram até o oásis. Na sombra das palmeiras eram cultivados legumes e um cereal que Farodin não conhecia. Uma densa rede de canais estreitos atravessava a mata de palmeiras. Ao se aproximarem do lago, Farodin vislumbrou rodas de madeira que retiravam água dele.

Entre as árvores havia pequenas casas de barro, cujas paredes eram pintadas com suntuosos padrões geométricos. Ao observar as casas, via-se com quanto amor tinham sido construídas e cuidadas. Não havia vigas ou folhas de janela que não fossem enfeitadas com entalhes. E tudo isso não era nada em comparação ao luxo que até a Valemas abandonada da Terra dos Albos ainda possuía. Fazia muitos séculos que seus habitantes haviam partido e ninguém sabia dizer para onde. Esses deviam ser seus descendentes. Farodin olhou em volta com atenção. Já estivera uma vez na velha Valemas. Lá, todas as casas eram palácios e até as ruas eram guarnecidas de mosaicos. Dizia-se que os moradores de Valemas, com todo o seu orgulho, um dia se insurgiram contra a rainha. Não queriam tolerar ninguém acima deles. E após incontáveis e constantes conflitos, finalmente deixaram a Terra dos Albos.

Parecia que os descendentes dos habitantes da velha Valemas não tinham superado o rancor contra a rainha nem perdido o seu orgulho. Só não viviam mais em palácios. Ao longo da margem do lago havia sete pavilhões arqueados como Farodin nunca vira antes. Haviam curvado troncos de palmeiras até que ficassem parecidos com vigas do casco de um navio, fixando suas duas pontas na terra. Entre eles havia esteiras esticadas, feitas de cana artisticamente trançada; delas eram feitas as paredes e o teto dos pavilhões.

Quando chegaram à praça entre os pavilhões de cana, Giliath fez um sinal para desmontarem. De todos os lados vinham curiosos: mulheres de trajes coloridos, enrolados como togas, e homens vestindo saias! Todos eles observavam os recém-chegados com uma hostilidade muda. Nem as crianças sorriam.

Alguns rapazes ergueram Mandred do cavalo e o levaram. Farodin quis segui-los, mas Giliath pôs-se no caminho.

— Você pode confiar em nós. Sabemos o que o deserto faz com os viajantes descuidados. Se ainda for possível ajudá-lo, então ele será salvo.

— Por que vocês nos tratam assim, inferiorizando-nos dessa forma?

— Porque não gostamos dos bajuladores de Emerelle — retrucou a elfa, afiada. — Todos se submetem a ela na Terra dos Albos. Ela sufoca tudo o que é diferente. Quem vive lá, vive na sombra dela. Ela é uma tirana, que tem a arrogância de decidir sozinha o que é certo e o que é errado. Nós sabemos muito bem como vocês se curvam diante dela. Vocês são somente a poeira sob os pés dela, seus...

— Já basta, Giliath — interrompeu uma voz masculina.

Um guerreiro alto deu um passo adiante do grupo que os escoltava. No punho trazia o falcão, cuja cabeça estava coberta por uma carapuça colorida. Inclinou a cabeça rapidamente para saudá-los.

— Meu nome é Valiskar. Sou o líder dos guerreiros de nossa comunidade, e responsável por vocês enquanto forem nossos hóspedes. — E lançando um olhar penetrante sobre Farodin: — Eu me lembro do seu clã. Os descendentes de Askalel sempre estiveram bem próximos da corte da rainha, não é?

— Eu não sou...

Valiskar o interrompeu.

— O que quer que tenha a dizer, você pode expor ao Conselho. Aqui, em Valemas, ninguém decide sozinho! Sigam-me.

Valiskar os conduziu para dentro do maior dos sete pavilhões. Lá havia quase uma centena de elfos reunidos. Alguns formavam grupos que conversavam. Mas a maioria estava sentada sobre tapetes ao longo das paredes laterais.

No fim do átrio, diante do estandarte azul de Valemas, estava sentado um elfo de cabelos cinzentos. Suas mãos estavam dobradas sobre o colo, e parecia profundamente mergulhado em pensamentos. Enquanto Farodin e Nuramon percorriam o átrio, tudo foi ficando cada vez mais quieto. Os elfos restantes foram recuando até as paredes. Quanto mais perto chegavam do elfo grisalho, mais nitidamente Farodin sentia a aura de poder que o circundava.

Ele ergueu a cabeça só quando já estavam bem à sua frente. As íris de seus olhos brilhavam como âmbar.

— Bem-vindos a Valemas — e fez um gesto para que se acomodassem em um tapete diante dele.

Mal tinham se sentado, duas jovens elfas se apressaram a trazer-lhes água, copos de barro e uma tigela com tâmaras secas.

— Eu sou Malawayn, o mais velho dos moradores deste oásis. Queiram nos desculpar pela refeição modesta, mas nossos tempos de fartura já terminaram há muito. Agora nos digam por que fizeram a longa viagem da Terra dos Albos até aqui.

Os dois companheiros se alternaram para contar suas viagens e aventuras. Confome avançavam com o relato, Farodin sentia como a hostilidade diminuía. Estava claro que aqueles que se opusessem a Emerelle podiam contar com hospitalidade absoluta em Valemas. Quando finalmente terminaram sua narrativa, Malawayn acenou com a cabeça.

— A rainha decide sem se explicar. Sempre foi assim. A meu ver ela cometeu uma grande injustiça contra vocês e Noroelle. — E, olhando em volta: — Acredito estar falando em nome de todos nós quando ofereço nossa ajuda para a busca de vocês.

Reinava o silêncio no grande átrio. Não se ouviu nenhuma manifestação de concordância, e ninguém confirmou as palavras de Malawayn com movimentos de cabeça ou outros gestos. E ainda assim a diferença em relação à chegada deles não podia ser mais nítida. De fato, Farodin ainda sentia amargor, melancolia e ira, mas agora tinha a sensação de ter encontrado acolhimento nos corações dos presentes. Como aquelas pessoas, ele também era vítima de Emerelle.

— Como vocês podem se sentar em harmonia junto com os estrangeiros?

Uma jovem estava em pé bem no fim do átrio. Farodin reconheceu-a pela voz. Era Giliath, a guerreira velada que falara com eles ao pé da duna. Era evidente que só chegava mais tarde à reunião porque trocara a armadura e o traje branco por uma saia de amarrar e uma blusa curta de seda. Também exposto estava seu cabelo longo e castanho-escuro, preso em uma trança. Seu corpo era tão musculoso que não se viam seios — eram somente uma suspeita. Bonita ela não era. Seu queixo era anguloso demais e o nariz, muito grande; mas tinha lábios sensuais e cheios e seus olhos verdes e passionais faiscaram quando apontou para Farodin em fúria:

— Há menos de uma hora esse aí nos ameaçou com vingança mortal caso não nos sujeitássemos ao seu desejo! Nós viemos para cá para nos livrarmos de Emerelle. Queríamos a nossa liberdade. E agora vocês estão tolerando um elfo do séquito dela que nos trata com a mesma condescendência de sua soberana. Eu insisto em meu direito de ensiná-lo com a lâmina de minha espada a ter uma conduta melhor.

— É verdade que você ameaçou com vingança o nosso povo?

— Foi diferente do que ela está dizendo... — começou Farodin, mas o velho interrompeu suas palavras com um gesto rápido.

— Eu fiz uma pergunta simples. Não quero rodeios, só uma resposta clara!

— Sim, é verdade. Mas você deveria...

— E agora você também quer me dizer o que devo ou não fazer?

— Foi diferente do que parece. — Nuramon tentou acalmar os ânimos. — Nós...

— E você acha que precisa me explicar como entender o que ouço? — Em vez de furioso, Malawayn parecia mais estar frustrado. — Eu devia ter sido mais esperto. Todos que vêm da corte de Emerelle trazem a soberba dela dentro de si. De acordo com nossas leis, Giliath tem todo o direito de desafiá-lo, Farodin.

Farodin não conseguia compreender. Como podiam ser tão obstinados? A atmosfera amigável desaparecera. Ninguém na sala queria mais ouvir o que tinham a dizer.

— Peço perdão por minhas palavras. Não gostaria de lutar com ninguém.

— Será que na sua vaidade você se acha invencível, ou é o medo que guia a sua língua? — perguntou Giliath.

Estava diante dele, com as mãos apoiadas nos quadris.

— Se a ofensa é grande demais, então a palavra proferida só pode ser paga com sangue — explicou Malawayn friamente. — Vocês dançarão a música das espadas. O duelo de vocês terminará com a primeira gota de sangue derramada. Se você se ferir, então o sangue apagará as suas palavras. Mas caso Giliath sucumba, então você terá conquistado o seu lugar entre nós, e aceitaremos o que disser, pois nós somos um povo livre.

Farodin sacou o punhal. Antes que alguém pudesse agarrar seu braço, cortou-se no dorso da mão esquerda.

— Homens e mulheres de Valemas! — disse, levantando a mão para que todos pudessem ver o sangue que escorria pelo seu braço. — Derramei meu sangue para reparar as minhas palavras. Com isso o conflito é terminado.

Os presentes foram envoltos por um silêncio gelado.

— Você precisa parar de querer nos impor a sua vontade, Farodin. Mesmo que o seu caminho pelo deserto tenha lhe tirado as forças, você terá de se dobrar aos nossos costumes e lutar! — Malawayn ergueu-se e bateu palmas. — Tragam os tambores. Na dança de espadas, cada golpe segue o ritmo das batidas dos tambores. Nós começamos com um ritmo lento, para que você possa se acostumar. Rapidamente a velocidade da luta e das batidas de tambor aumentará. Normalmente cada dançarino luta com duas lâminas. Você precisa de mais uma arma?

Farodin sacudiu a cabeça em negativa. Para ele, a espada e o punhal eram suficientes. Levantou-se e começou com os exercícios de alongamento, para soltar seus músculos doloridos.

Nuramon pôs-se a seu lado.

— Eu não sei o que deu neles. Isso é uma loucura completa!

— Começo a entender por que Emerelle nunca os convidou para retornar à Terra dos Albos — respondeu baixo. — Mas agora silêncio. Nós não queremos dar a eles mais nenhum motivo para uma dança de espadas.

Nuramon agarrou a mão dele. Um calor agradável percorreu Farodin. Quando puxou a mão de volta, o corte havia fechado.

— Não a mate! — Nuramon tentou sorrir de forma encorajadora.

Farodin olhou para sua oponente. Valiskar aparentemente julgava-a capaz de acabar sozinha com dois guerreiros, já que a mandara descer as dunas em direção a eles. Devia ser cauteloso com ela.

— Vamos torcer para ela não fazer picadinho de mim. Por algum motivo, tenho a impressão de que ela preferiria atravessar meu coração com a lâmina a terminar o duelo com um pequeno corte. Até a primeira gota de sangue. Isso pode significar muita coisa.

Farodin desafivelou a bandoleira da espada que tinha atravessada no peito para que não o atrapalhasse durante a luta. Então tirou um pequeno anel da bolsa de couro em que guardava a garrafinha de prata e a pedra de Noroelle. Além das lembranças, o anel era a única coisa de Aileen que lhe restava. Trazia três pequenas granadas vermelho-escuras incrustadas; lapidadas, elas refletiam a luz a óleo da sala. Acariciou-as com os polegares, como se para checá-las. Estragariam o forro de qualquer luva. Já fazia muito tempo desde a última vez que usara o anel.

— Você está pronto? — gritou Giliath.

Ela escolhera duas espadas curtas como armas e esperava no meio da sala.

Enquanto isso, dois tambores foram trazidos até a porta do átrio. Eram do tamanho dos grandes barris de vinho que viram durante sua fuga pelas covas de Aniscans. Tinham sido dispostos de forma que suas peles ficassem na vertical. Eram claras e traziam pintado em preto e vermelho um tortuoso padrão de nós. Duas mulheres, que seguravam as baquetas dos tambores cruzadas na frente no peito, esperavam o sinal para que a dança de espadas começasse.

Os presentes haviam recuado até as paredes da sala, de forma a deixar livre um campo de batalha de cerca de vinte passos de comprimento e cinco de largura.

Farodin tomou seu lugar.

— Cada batida de tambor corresponde a um passo ou golpe — explicou Giliath. — O espadachim perfeito move-se com a leveza de um dançarino. Mesmo que perca, você preservará a sua honra se tiver lutado com graça.

Giliath fez um sinal para as mulheres dos tambores.

— Comecem!

Soou a primeira batida. Giliath deu um passo para o lado e ergueu a arma. Farodin seguiu seu movimento com uma rotação.

Na próxima batida ela deu um golpe lento e amplo, mirando a cabeça dele. Farodin bloqueou-o com seu punhal. Qualquer criança teria sido capaz de desviar desse ataque. Essa dança de espadas era simplesmente estúpida!

O som dos tambores era grave e o acertava direto no estômago. Eles eram percutidos alternadamente, de forma que cada som ecoasse por um tempo.

O ritmo aumentava bem lentamente. Mesmo que Giliath por enquanto se movesse com gestos estranhos e exagerados, sem dúvida ela era uma lutadora experiente. Farodin seguia o ritmo, mas abria mão de copiar o estilo de Giliath, para tentar cativar a plateia. Ele se esquivava com movimentos estreitos, mantendo-se na defensiva para estudar os movimentos de sua oponente.

Quanto mais rápidas ficavam as batidas dos tambores, mais fluidos se tornavam os ataques da guerreira. Só havia batidas e batidas. Ela o empurrava para a frente e então recuava de novo; dava a volta nele dançando rápido, e de repente avançava novamente. As batidas dos tambores e o tilintar do aço misturavam-se em uma melodia que cada vez mais cativava também a Farodin. Sem pensar, ele movia-se em harmonia com o ritmo e começava a gostar da luta.

De repente Giliath agachou-se, e desviou de surpresa em vez de desferir um golpe. Sua lâmina avançou rápida como um ataque de serpente. Farodin tentou esquivar-se, mas o aço cortou sua calça de montaria. O soar dos tambores emudeceu.

A guerreira levantou-se sorrindo.

— Até que você não foi mal para um bajulador da rainha.

Farodin apalpou a perna. Não estava sentindo dor. Mas isso não queria dizer nada quando se lutava com lâminas afiadas. Afastou cuidadosamente o tecido. Sua coxa não estava ferida. Aparentemente ela tinha errado por um triz.

Giliath franziu a testa.

— Isso foi sorte! — gritou para os que estavam ao redor.

Farodin sorriu ponderado.

— Se é o que você diz...

Ele percebeu que a arrogância dela desmoronava. Agora ela tentaria acertar um novo golpe rapidamente. E no ímpeto talvez abriria a guarda.

— Então vamos continuar já.

Giliath ergueu a espada e assumiu uma peculiar posição inicial. Segurava a espada da mão esquerda estendida para atacar. A da mão direita estava erguida sobre a cabeça e apontada para a frente, para o coração de Farodin. Para ele lembrava um escorpião, com o ferrão erguido de forma ameaçadora.

Dessa vez as batidas de tambor eram bem mais rápidas. Giliath fez uma investida vigorosa, acossando-o duramente. Mas não deu sequer um golpe com a mão direita, que o intimidava com a segunda espada erguida, pronta para golpear assim que tivesse oportunidade.

Farodin estava espantado com a velocidade da guerreira, e com como ela novamente o forçava a ficar na defensiva. Seus ataques eram tão rápidos que ele mal encontrava chance para contra-atacar. Ele precisava terminar esse jogo, senão ela o faria!

A mão esquerda da elfa precipitou-se de ponta, mirando os seus quadris. Mais uma vez ele amorteceu o golpe e fingiu tropeçar de leve, abrindo muito a guarda na frente do peito.

Era o que Giliath estava esperando. Como uma ferroada, sua segunda espada avançou. Farodin enfiou-se no meio do golpe e ergueu rápido o punhal. Aço contra aço, ouviu-se um tilintar. Agora estavam tão perto um do outro que ele podia sentir na face a respiração de Giliath. As espadas dos dois estavam cruzadas na altura de suas cabeças. Ficaram imóveis só por um instante. Então Giliath recuou. A mão de Farodin atingiu-a levemente na face, e ele também retrocedeu.

— A luta terminou! — Farodin anunciou em voz alta.

Todos no átrio viram que era o vencedor. Um estreito fio de sangue escorria do corte na bochecha de Giliath.

Ela largou a espada e tateou o rosto sem acreditar. Perplexa, viu o sangue nos dedos. Mas em vez de protestar, logo inclinou-se.

— Curvo-me com humildade diante do vencedor e peço perdão por minhas palavras — disse ela com voz inexpressiva, aparentemente ainda abalada com o fim inesperado da luta.

Ao redor deles elevaram-se vozes enfurecidas. Muitos não estavam dispostos a reconhecer tal desfecho para a luta, e criticavam a deslealdade do membro da corte de Emerelle.

Nuramon correu até Farodin para abraçá-lo.

— Como você fez isso? — sussurrou ele.

— O anel — respondeu Farodin.

Soltou-se do abraço e ergueu a mão, para que todos pudessem ver nitidamente a pequena joia de pedras pontiagudas. Seu vermelho profundo as fazia parecer pingos de sangue engastados no ouro.

— Eu o desafio para a dança de espadas! — um jovem guerreiro enfrentou Farodin. — A forma como decidiu a luta a seu favor foi desonrosa e ofende a mim e a todo o meu povo.

Farodin soltou um suspiro profundo. Estava pronto para retrucar algo ao guerreiro, quando a voz de Malawayn se destacou no tumulto.

— A luta está decidida, irmão. Até a primeira gota de sangue, isso é o que se diz. E em nenhum lugar está escrito que o sangue precisa ser derramado por uma lâmina. Nós reconhecemos o desfecho da luta, mesmo que essa vitória tenha sido mais por astúcia do que por habilidade na luta.

Apesar da intervenção de Malawayn, a agitação só cedia pouco a pouco. Muitos elfos mais jovens deixaram a sala furiosos.

O elfo grisalho, contudo, convidou-os com um gesto a tomarem lugar a seu lado. Serviu-os do seu vinho e entregou-lhes frutas de uma pesada bandeja de prata que descansava sobre o tapete diante dele. Gradativamente, o átrio foi ficando mais tranquilo.

Depois de comerem juntos, Malawayn pediu que contassem sobre a Terra dos Albos. Foi Nuramon que então assumiu a palavra, esforçando-se para fazê-los esquecer o que acontecera. Farodin invejava sua aptidão para narrar de forma tão viva a ponto de todos acreditarem ver a Terra dos Albos diante dos olhos.

Os companheiros, por sua vez, ouviram muito sobre a vida no deserto. Os elfos de Valemas tinham transformado uma nascente lamacenta em um oásis fértil. Haviam procurado esse lugar por muito tempo, pois amavam aquelas terras desérticas como seus antepassados. E brincavam que era o calor do deserto que os fazia ter o sangue tão quente.

Também contaram que cavalgavam com frequência até o mundo dos homens. Os mortais de lá os chamavam de girates, que na língua deles significava espíritos, e os tratavam com muito respeito.

— Todas as vezes que nos encontramos, eles sempre insistem em nos presentear — Malawayn sorriu. — Acho que eles nos consideram algo semelhante a ladrões.

— E vocês deixam que eles pensem isso? — mal a frase terminou de sair por seus lábios, Farodin já lamentava por ela.

— Nós não temos escolha. Aqui nos falta tanta coisa que aceitamos cada presente com gratidão. Não é por isso que abdicamos de nossa honra. Não encaramos isso como uma agressão, embora fosse fácil fazê-lo. — Ele baixou a cabeça e observou a intrincada estampa do tapete. — O que me faz mais falta é o céu estrelado da Terra dos Albos.

— E se voltassem a ficar em paz com a rainha? — objetou Nuramon.

Malawayn encarou-o surpreso.

— Nós, elfos de Valemas, podemos ter perdido muita coisa, mas não o nosso orgulho. Só voltaremos à Terra dos Albos se Emerelle nos pedir e se lá ela mantiver a nossa liberdade.

“Então eles nunca voltarão”, pensou Farodin consigo mesmo.

Nada além de ilusão

Quando era criança, Nuramon sempre pensava no deserto e na lendária cidade de Valemas. Imaginava como seria sua aparência, sem nunca ter estado lá. E aquele oásis era totalmente diferente de como ele fantasiava a cidade da lenda naquela época. Era verdade que ali não havia o sol da Terra dos Albos ou do Outro Mundo. Mas os feiticeiros da comunidade haviam tecido um véu de luz, agora estendido como o teto de uma barraca sobre a colônia e o deserto que a cercava. Tinham até pensado no dia e na noite; a luz definhava num crepúsculo estranhamente longo, e voltava horas mais tarde em uma curta alvorada.

Apesar de toda a água que havia no local, os laços da cidade com o deserto eram fáceis de serem vistos e sentidos. Mesmo o vento suave que soprava ali tinha o sabor do deserto.

Nuramon seguiu uma trilha que diziam levar aos limites da colônia. Valiskar mostrara-lhe esse caminho; parecia que lá eram as fronteiras daquela região. Os lugares restantes no Mundo Partido geralmente eram conhecidos como ilhas em um mar de nada. Era esse mar que Nuramon queria ver. Ele deixara os companheiros na nascente, perto dos cavalos, onde descansavam em uma das casas de barro. Apesar da ajuda do curandeiro de Valemas, Mandred recuperava as forças muito lentamente. Em seu sono febril, sempre chamava por Atta Aikhjarto. Farodin ficou com ele. Apesar da hospitalidade que, afinal de contas, acabaram lhes oferecendo, ele desconfiava dos moradores do oásis.

Nuramon era curioso demais para ficar por ali. Estava até acelerando o passo para chegar o quanto antes ao fim do oásis. A trilha por onde andava terminou de repente, junto a uma estátua de Yulivee, a fundadora do oásis. Sua imagem era encontrada em vários lugares ali em Valemas. Os elfos do deserto a veneravam quase da mesma forma que Mandred a seus deuses. Ela fora uma linda mulher. Em seus lábios havia um sorriso confiante e, nas fendas dos olhos da estátua de arenito, estavam incrustadas duas malaquitas. Nuramon vira na corte da rainha um escultor encaixar pedras preciosas em uma estátua. Primeiro as pedras eram colocadas nos orifícios dos olhos; então era preciso tirar as pálpebras de pedra para fora, prender as gemas e fazer as pálpebras se fixarem na estátua com um feitiço. Então elas cobriam as malaquitas como se fossem de verdade, como se pudessem piscar a qualquer momento. A estátua apontava de forma convidativa para uma pedra ao seu lado.

Nuramon obedeceu ao gesto e sentou-se. A vista dali o surpreendeu. De fato, estava no fim do oásis, mas o que estava diante dele não era o mar de nada — como esperara em segredo —, mas o deserto. Talvez fosse preciso passar daquele ponto e seguir sempre em frente, até chegar ao fim das terras. De repente, Nuramon reparou que havia algo de errado. O vento soprava na sua nuca, porém ao mesmo tempo ele viu areia fina levantar-se num redemoinho e soprar até ele. Mas ela não o alcançou — desapareceu de repente, como se nunca tivesse existido. Seria possível que o deserto diante dele não fosse nada além de ilusão? Uma representação do deserto que começava do outro lado do oásis e ia até o anel de pedras? Teria de ser um feitiço poderoso...

Nuramon levantou-se e deu um passo na direção do deserto. De uma só vez conseguiu sentir o poder do feitiço. Uma barreira semelhante a uma parede de vidro muito fino separava a colônia da miragem lá fora. Nuramon tateou com cuidado a parede invisível.

De repente, sentiu um estalo sob seus dedos e apressou-se a puxar a mão de volta. O deserto desapareceu diante de seus olhos, e o horizonte tornou-se escuro. Numa rapidez assustadora, a escuridão foi devorando as terras. Ela veio em sua direção, engolindo as dunas e, passo a passo, a areia e as pedras da planície. Então, bem diante dele, a escuridão acinzentou sob o brilho de Valemas. Os raios de luz iam até bem embaixo. Diante dos pés de Nuramon abriu-se um abismo. Lá embaixo flutuava uma névoa de um azul cinzento, que se movimentava de forma quase imperceptível. Devia ser esse o mar em que boiavam as ilhas do Mundo Partido. E as trevas sobre ele eram o céu desse mundo desolador.

Em algum lugar lá fora estava Noroelle. E talvez agora também estivesse olhando para o infinito como ele. Com certeza ela havia dado forma a tudo seguindo sua imaginação, como fizeram os feiticeiros daquela colônia. A Nuramon restava esperar que, onde quer que ela estivesse, esse lugar não fosse de tristeza infinita. Se houvesse uma possibilidade de vencer essa névoa, ele faria uso dela para ir tão longe quanto fosse necessário. Talvez houvesse um caminho direto até Noroelle — um caminho que desviasse das barreiras da rainha.

Nuramon sentou-se novamente na pedra ao lado da estátua. E, enquanto observava a imagem do deserto retornar, pensava na ideia que acabara de lhe ocorrer. Seria possível que ali houvesse alguma espécie de navio capaz de navegar sobre a névoa, como um navio comum fazia sobre a água?

Uma voz arrancou-o de seus pensamentos:

— Você viu?

Nuramon instintivamente levou a mão à espada e virou-se. Um homem estava de pé ao lado da estátua de Yulivee, vestido de branco e verde-claro.

— Ei! Não tão rápido, estranho! — gritou ele.

Então Nuramon percebeu que o homem não tinha pés: seus trajes flutuavam no ar. Mas eles se moviam de forma enérgica demais para o vento que soprava ali. O cabelo verde do vulto também tremulava ao redor de sua cabeça, como se cada uma das mechas estivesse sendo bagunçada por mãos invisíveis.

— Acho que você nunca viu um espírito, não é?

Nuramon não conseguia tirar os olhos da aparição.

— Espíritos, sim, mas nenhum como você.

O que estava diante dele era quase como um elfo. Suas orelhas pontudas sobressaíam suavemente através do cabelo, mas pareciam ser mais carnudas que orelhas élficas. As mãos chamavam a atenção por serem grandes e disformes; com certeza uma delas sozinha já seria capaz de abarcar a cabeça inteira de Nuramon. A cabeça do espírito, porém, era alongada; o queixo, tão pontudo que nem o amplo sorriso era capaz de mudar seu formato.

— Eu sou Nuramon. Qual é o seu nome?

— Nomes! Bah! — disse o espírito com um gesto. — A vida seria muito mais fácil sem nomes. Nomes são somente obrigações. Se alguém conhece o seu nome, logo ele o chama e diz que você tem de fazer isso ou aquilo. — Ele ergueu as sobrancelhas, e o azul pálido de seus olhos brilhou. — Eu sou o único assim aqui. Em Valemas há só um dschinn, que sou eu. Mesmo que eu esteja uma vez aqui, outra lá... — apontou para perto de Nuramon e desapareceu com um golpe frio de ar, aparecendo no lugar que havia mostrado —, mesmo assim eu sou sempre o mesmo. — O espírito curvou-se para baixo, até Nuramon: — Diga, qual é a sua cor preferida?

Nuramon hesitou.

— Azul — respondeu por fim, pensando nos olhos da feiticeira Noroelle.

O espírito rodopiou em um círculo e, quando sorriu novamente para Nuramon, vestia roupas azuis e brancas e tinha cabelos e olhos azuis.

— Mesmo de azul eu ainda continuo o mesmo e sendo o único aqui. Então para que um nome? Você pode me chamar simplesmente de dschinn.

Nuramon não conseguia entender. Diante dele pairava um dschinn em pessoa! O que ouvira sobre eles é que tinham desaparecido, e que alguns teriam se escondido nos poucos desertos da Terra dos Albos. Alguns elfos até afirmavam que os dschinns sequer tinham chegado a existir.

— Pois bem, dschinn... Talvez você possa me ajudar.

O espírito fez uma cara séria.

— Finalmente! Finalmente alguém que sabe valorizar a minha sabedoria infinita.

Nuramon não conteve um sorriso.

— Você é realmente modesto.

O dschinn baixou a cabeça.

— Certamente. Eu nunca diria algo sobre mim mesmo que não correspondesse à verdade. — Ele aproximou-se de Nuramon e sussurrou: — Você precisa saber que um dia eu... — Olhou em volta. — Um dia eu já vivi em outro lugar. Era um oásis de conhecimento no meio dos desertos de ignorância que estão por todos os lados.

— Hum. E que conhecimento era guardado lá?

O dschinn fez uma careta de incompreensão.

— Tudo, evidentemente: o conhecimento que era, o conhecimento que é e aquele que virá.

Esse espírito hilariante só podia estar achando que ele era bobo. Mesmo Emerelle só conseguia ver o futuro de forma difusa. Mas ainda assim... Se o dschinn não fosse só uma ilusão dos seus sentidos e houvesse uma só fagulha de verdade escondida em suas palavras, então ele poderia ajudá-lo na busca por Noroelle.

— Onde fica esse lugar? — perguntou ele ao espírito.

— Você deve imaginá-lo como uma enorme biblioteca, cravada na opala de fogo da coroa do marajá de Berseinischi.

— Uma biblioteca? Em uma pedra?

— Com certeza.

— Não dá para acreditar.

— E você preferiria acreditar que a opala de fogo é uma estrela alba que se move?

Nuramon calou-se. O dschinn tinha razão: uma estrela alba que não é presa em um só lugar, para ele, era ainda mais inacreditável que uma pedra na qual os espíritos reúnem todo o conhecimento.

O dschinn prosseguiu.

— A opala de fogo foi o nosso presente para o marajá Galsif. Estávamos em dívida com ele. Então confiamos a opala de fogo a ele e nos tornamos seus conselheiros. E fomos bons conselheiros. — Ele desapareceu de novo e surgiu do lado esquerdo de Nuramon. — Galsif era um homem lúcido e guardou nosso conhecimento com grande sabedoria. E essa sabedoria o fez omitir de seu filho a nossa presença. Pois o filho, além de tolo, era um tirano, não digno de nosso conhecimento. Nós, espíritos, entrávamos e saíamos da opala sem que ninguém percebesse. Não pode haver lugar mais seguro que a coroa de um soberano poderoso.

Nuramon refletiu. Tudo isso soava muito fantástico.

— Naquela “biblioteca” eu poderia descobrir como se viaja neste mundo de ilha para ilha?

— Você poderia se a biblioteca ainda estivesse lá. Mas ela já desapareceu há muito tempo. O marajá Elebal, muitas gerações de soberanos depois de Galsif, subjugou o reino vizinho e avançou para o leste. Por fim, lutou nas florestas de Drusna, onde desapareceu junto com seu exército. Sem ele, o reino se dissolveu e a coroa que se perdeu em Drusna está desaparecida até hoje. Antes eu podia encontrar a pista da opala em qualquer lugar do Outro Mundo e chegar até ela. Mas desde aquela época eu já não a sinto mais quando pairo pelo mundo dos humanos. Talvez a coroa e a opala de fogo tenham sido destruídas. Mas talvez também possam ter sido envoltas por magia e protegidas. Pode ser que apareçam de novo algum dia, mas até lá você terá de desistir do conhecimento da biblioteca. No entanto, eu posso responder a sua pergunta, pois meu conhecimento é muito extenso. Só que você não vai gostar da resposta.

O dschinn flutuou até o fim do oásis e, de uma hora para outra, a escuridão estava lá de novo. Ele continuou:

— Você já viu agora há pouco. Observe! Quem além dos albos conseguiria caminhar sobre essa névoa cinza? Seria desastroso ir lá para fora. Esse exterior não pertence a este mundo. Ele é o plano de fundo do Mundo Partido: o que restará se nosso mundo desaparecer. As ilhas são isoladas e ficam a uma distância inimaginável umas das outras. É claro que aqui no oásis há trilhas e estrelas albas. Mas nós só podemos usar o caminho que leva até o mundo dos humanos. Todos os outros vão até a escuridão e terminam em algum lugar entre as ilhas. Se tomar um deles, irá se perder para sempre. Mover-se fora das trilhas dos albos também não é uma solução. Eu posso voar. Uma vez até estive lá fora, mas retornei logo, antes que perdesse de vista a luz de Valemas. Mesmo se você pudesse voar, não iria longe sem comida e bebida. Acredite, Nuramon: até eu estaria arruinado lá fora. Todos os seres se alimentam de alguma coisa, e lá não há nada! Não há caminho no vazio que leve de uma ilha à outra.

Com isso, a ideia de Nuramon se frustrou. Se nem para um espírito era possível viajar pelo Mundo Partido, eles não conseguiriam desviar das barreiras da rainha dessa forma. Teriam de confrontá-la no mundo dos humanos.

— Vejo que isso o está preocupando. Mas a vida é longa demais para preenchê-la com tristeza. Olhe para mim! Aqui encontrei um novo lar e vivo feliz entre os elfos.

— Perdoe-me, dschinn. Mas para mim isso não é solução. Eu preciso quebrar a barreira em torno de uma estrela alba para chegar a um lugar do Mundo Partido. E eu sequer sei em que lugar do Outro Mundo essa estrela fica.

— Mas você vai encontrá-la, não é?

— Vou procurá-la à maneira dos elfos e um dia a encontrarei. Mas, e então? Como poderei transpor a barreira mágica que protege a estrela?

— Eu sei o que o atormenta. Quem criou a barreira foi a rainha da Terra dos Albos.

— Como sabe? — perguntou Nuramon, assombrado.

— Porque o poder dela é inigualável. Por isso, tudo parece estar perdido para você e seus companheiros. — O dschinn deu a volta em Nuramon pairando. — Raios! Um elfo que quer quebrar um feitiço da sua rainha. Nunca ouvi falar de nada assim. Dizem que na Terra dos Albos vocês são todos tão bons e obedientes...

— Eu peço encarecidamente que não conte a ninguém sobre os meus planos.

— Eu os manterei em segredo como o meu próprio nome. E como eu admiro corajosos filhos de albos, vou ajudá-lo. Você precisa saber que já conseguiram mais de uma vez quebrar barreiras em torno de estrelas albas. Mesmo que a opala de fogo esteja desaparecida e eu, infelizmente, só possua conhecimentos modestos de encantamentos, posso enviá-lo para um outro lugar onde há séculos o conhecimento dos mundos é acumulado. O portal para lá fica em Iskendria. É claro que essa biblioteca não se compara àquela dos dschinns, mas para que ter todo o conhecimento do mundo nas mãos se só precisa de um grão dele?

Iskendria! O som do nome agradava Nuramon.

— Onde fica essa tal de Iskendria? — perguntou ao espírito.

— Siga a trilha alba que leva do círculo de pedras para o norte e ande até o mar. — O dschinn girou sobre o próprio eixo e apontou para o lado. — Então vire-se para o oeste e vá margeando a costa. Você não vai errar. — O espírito cruzou os braços na frente do peito.

— Obrigado, dschinn.

— Oh, a gratidão tem muito valor para nós. Estive muitos anos no mundo dos humanos. Quantos desejos realizei lá, e raramente alguém me agradeceu!

— Posso fazer algo para ajudá-lo?

— Você pode sentar-se comigo nessa pedra e me contar o que aconteceu. Acredite em mim, neste oásis os seus segredos estão bem guardados. Ninguém aqui vai viajar até a Terra dos Albos e contar à rainha sobre você.

Nuramon consentiu com a cabeça, sentando-se na pedra perto do dschinn. Então começou a contar. A história ficava cada vez mais longa, já que desabafava o que havia em seu coração.

O dschinn ouviu pacientemente, fazendo uma cara que não combinava nada com um tipo contente. Quando Nuramon terminou, o dschinn começou a chorar.

— Essa foi mesmo a história mais triste que eu já ouvi, elfo. — O dschinn ergueu-se num salto, enxugou o rosto e, de repente, deu um grande sorriso, que fez brilhar seus dentes. — Mas ainda não terminou. Você ainda pode rir ou chorar. — A expressão do dschinn se alterou de um jeito esquisito, com uma metade de seu rosto alegre e a outra, triste. Cada metade parecia lutar contra a outra. — Você precisa se perguntar se há esperança ou não. — Ele bateu com a mão aberta na metade feliz e o sorriso e as rugas de alegria se espalharam para a outra metade. — Precisa ser confiante, elfo. Vá até Iskendria! Lá certamente você encontrará uma forma. Se não houver mais esperança, ainda terá tempo suficiente para se desesperar.

Nuramon concordou. Era óbvio que o dschinn tinha razão, ainda que a alegria dele lhe fosse estranha. Ele não sabia se devia ficar bravo com o espírito por ter posto sua história de lado de forma tão frívola. Mas o sorriso no rosto dessa figura estranha era o bastante para que ele também não pudesse evitar sorrir.

Quando Nuramon se ergueu, o dschinn flutuou de volta para o lado da estátua. Por fim, disse:

— Vá com confiança até Iskendria. Yulivee esteve lá com frequência. E ela era muito sábia. Ela criou o portal pelo qual os elfos da velha Valemas deixaram a Terra dos Albos. Criou o anel de pedras lá fora, e os elfos daqui devem a ela o feitiço da luz, aquela barreira e a imagem do deserto que fica ali na frente. Yulivee sempre disse que as viagens eram os melhores mestres. E ela era uma boa aluna. O que ela aprendeu lá fora no mundo dos humanos e no Mundo Partido também pode um dia estar aberto para você. — Com essas palavras o dschinn se dissolveu. — Adeus, Nuramon!

Nuramon foi até a frente da estátua de Yulivee e fitou-a nos olhos brilhantes. Ele de fato ainda não sabia se devia levar o dschinn a sério, e se lá fora, no mundo dos humanos, realmente existia uma cidade chamada Iskendria. Mas um olhar no rosto de Yulivee bastou para decidir que contaria a seus companheiros sobre essa cidade e que os convenceria a ir até lá.

Os contos de Tearagi

Os companheiros de Valeshar

Valeschar, o grande peregrino do deserto, já era conhecido de nossos antepassados. Nós só o encontramos algumas vezes e não sabemos como ele consegue sobreviver nas profundezas do deserto. Dizem que ele e o deserto são um só. Certo dia, conhecemos os companheiros de Valeschar. Na noite anterior, havíamos ouvido os ghouls ganirem nas dunas, então tínhamos medo do raiar do dia. Já perto do meio-dia, ao atravessarmos a implacável planície de Felech, vimos um cavaleiro ao longe. Pensamos que os ghouls haviam mandado um demônio para nos aprisionar, mas em seguida vislumbramos a capa vermelho-fogo de Valeschar.

Levantamos nosso acampamento em lugar e posição adequados para que pudéssemos receber o grande soberano do deserto de forma digna. Mas veja! Junto à sombra de Valeschar surgiram três vultos com seus cavalos. Dois eram girates pálidos, equipados como guerreiros. O terceiro, porém, era um girate do fogo. Seu longo cabelo de chamas agitava-se no ar e seu semblante era vermelho como brasa. Sua arma era um grande machado cuja lâmina brilhava ao sol. Os três girates montavam cavalos nobres e incansáveis.

Recebemos Valeschar como mandam nossos costumes. E, como sempre, ele foi um bom visitante. Comeu e bebeu pacificamente conosco e alegrou-se com nossos presentes. Valeschar apresentou-nos seus companheiros. Os dois girates pálidos chamavam-se Faraschid e Neremesch, e o girate do fogo, Mendere.

Faraschid tinha cabelos claros como o sol e olhos de jade. O cabelo de Neremesch, por sua vez, era da cor das Montanhas do Vento, e seus olhos eram tão castanhos quanto os desertos do sul. Já Mendere era um gigante com uma selvagem barba de chamas. Seus olhos azuis pareciam dois oásis no deserto. O girate do fogo não tinha nada das maneiras do seu senhor. Devorou a comida sem cessar e, para nossa grande admiração, bebeu água o tempo todo. Neremesch nos deu a entender que Mendere precisava apagar as chamas furiosas em seu estômago. Então ficou claro para nós que Mendere só estava agindo para o nosso bem. Pois ele não queria que nossas barracas fossem tomadas pelas chamas.

Depois da refeição, Valeschar nos pediu para conduzir seus companheiros até o mar. De fato, temíamos o girate do fogo, mas por respeito a Valeschar, aceitamos os três. Os girates não falavam a nossa língua e nós não conhecíamos nenhuma que eles dominassem. Então, trocamos somente poucas palavras. Admiramos o sacrifício que Mendere fazia por nós ao beber água. Ele também se encheu de vinho para conter as chamas. Quando, em seguida, Mendere pediu raki, ficamos com medo que isso só fosse atiçar suas chamas. Mas quem contradiz a palavra de um amigo de Valeschar? Então o girate bebeu raki. Primeiro não aconteceu nada. Mas à noite houve tantos gemidos e lamúrias que então fugimos do acampamento, pensando que era uma invasão dos ghouls. Quando arriscamos voltar para o nosso acampamento, descobrimos Mendere virando-se no chão, lutando contra as chamas que o raki atiçara nele.

Quanto mais perto chegávamos do mar, mais fogosa se tornava a pele de Mendere. Só as mãos de Neremesch conseguiam acabar com o fogo do rosto e dos braços dele. Desde aquele dia, reza entre nós: nunca dê raki para um girate do fogo beber!

Por fim, chegamos ao mar. Os três girates despediram-se com as poucas palavras em nossa língua que haviam aprendido. Foram na direção de Iskendria, deixando-nos curiosos. O que poderiam querer em Iskendria? Certamente viajavam por incumbência de seu senhor. Pois os povos do deserto já sabiam há muito que os moradores de Iskendria eram loucos o bastante para recusar o tributo de Valeschar. Assim, agora cavalgava em direção a eles a ruína personificada nos companheiros de Valeschar.

De: Contos dos povos do deserto, Compilado por Golisch Reesa. Volume 3, Os Tearagi, Pág. 143.

Iskendria

O caminho pelo deserto foi uma tortura para Farodin. Às vezes, ele sentia como se as dunas quisessem zombar dele. Os grãos de areia eram incontáveis, e mostravam a seus olhos como sua tarefa era impossível. Só lhe restava contar que, com o tempo, o feitiço fosse ficando mais forte. Uma vez tomado o caminho, Farodin queria permanecer fiel a ele. Sua persistência o havia conduzido até Noroelle após quase setecentos anos, e ele chegaria de novo a ela dessa vez. Estava decidido a encontrar grãos de areia da ampulheta quebrada suficientes para anular o feitiço de Emerelle, mesmo que isso levasse séculos.

Farodin olhou para as altas muralhas da cidade no horizonte. Iskendria. Era prudente ir lá? Teriam de atravessar mais uma vez por uma estrela alba. Era perigoso fazer o feitiço. E se agora eles dessem um salto no tempo? Era provável que sequer percebessem. Mas, para Noroelle, isso significaria muitos anos a mais de solidão. Se nessa biblioteca eles de fato encontrassem uma possibilidade de quebrar o encanto de Emerelle e localizassem a estrela pela qual Noroelle foi exilada para o Mundo Partido, então a busca deles terminaria rápido. Mas Farodin estava cético. Era possível que Emerelle não soubesse sobre a biblioteca? Dificilmente. Então ela partia do pressuposto de que todo o conhecimento dali não ajudaria. Podia estar enganada a esse respeito? Cismou com isso ao longo de toda a viagem. Mas era inútil desperdiçar mais pensamentos com essa questão. A resposta estaria somente na biblioteca.

Um cheiro leve de decomposição pairava no ar. Farodin olhou para cima. Já haviam quase alcançado a cidade.

Os últimos quilômetros da estrada antes de chegar a Iskendria estava tomado por túmulos. Isso era de um mau gosto que só podia ser ideia de humanos, pensou o elfo. Quem poderia gostar de ser saudado por monumentos aos mortos ao visitar uma cidade? Os jazigos e mausoléus suntuosos ficavam bem perto da rua. Indo em direção ao deserto, as sepulturas iam ficando mais humildes, até se tornarem simples pedras que marcavam o lugar onde se havia enterrado um morto na areia.

Nos luxuosos mausoléus de mármore e alabastro, claramente haviam prescindido de entregar os cadáveres diretamente à terra. Farodin ansiou que tivessem se empenhado para fabricar sarcófagos muito bem lacrados da mesma forma que se esforçaram para enfeitar os mausoléus com imagens. A maioria delas mostrava homens e mulheres que pareciam bastante jovens. Não era de admirar que não se envelhecesse em uma cidade que recebia os visitantes com fedor de cadáver! Baseando-se nas imagens, devia haver entre os ricos de lá só dois tipos de pessoas: aquelas que, imersas em pensamentos, pareciam se levar terrivelmente a sério, e aquelas para as quais a vida era uma festa. As estátuas dessas últimas as mostravam estendidas sobre sarcófagos nos quais brindavam aos visitantes, erguendo suas taças de vinho.

As sepulturas e estátuas mais recentes eram pintadas de cores berrantes. Farodin esforçava-se para entender como os humanos podiam cometer a heresia de achar que alguém ficava bem com os olhos contornados de preto e vestindo um traje cor de laranja com um manto púrpura. Nas estátuas e construções fúnebres mais antigas, a areia do deserto já desgastara a cor há tempos e, por isso, elas agrediam bem menos os olhos de quem as observava.

A impressão mórbida que Iskendria dava aos viajantes era um pouco amenizada pelas mulheres que ficavam em pé ao longo das ruas. Elas recebiam os visitantes da cidade com sorrisos convidativos e gestos amigáveis. Ao contrário do que faziam os habitantes do deserto, elas não se protegiam do sol com véus e túnicas longas: mostravam tanta pele quanto possível, isso sem falar nas grossas camadas de pó e maquiagem que cobriam seus rostos e braços. Algumas até abriam mão de toda e qualquer roupa e pintavam-se com padrões desvairados de espirais e linhas curvas.

Mandred, que aparentemente estava habituado a esse tipo de boas-vindas, acenava para as mulheres. Estava no melhor dos humores. Girava a cabeça com um sorriso largo, para não perder nenhuma chance de olhar as moças.

A rua pavimentada com grandes lajotas levava até as muralhas de Iskendria. Um pouco à frente deles ia uma caravana, composta daqueles animais desengonçados que os humanos chamavam de dromedários, e de um pequeno grupo de comerciantes, que gralhavam agitados. De repente, um deles deu uma guinada e falou com uma mulher de cabelos vermelhos nada naturais, que estava sentada com as pernas escancaradas na base de uma das construções de mármore. Depois de uma breve pechinchada, ele pôs algo em sua mão e ambos desapareceram atrás de um mausoléu meio devastado.

— Quanto será que uma cavalgada custa aqui? — murmurou Mandred, olhando para os outros dois.

— Por que você quer cavalgar? Nós cavalgamos os últimos... — Nuramon parou. — Você não quer dizer... Elas por acaso não são... Como vocês as chamam? Putas? Pensei que elas ficavam em casas grandes, como a de Aniscans.

Mandred riu com vontade.

— Não, em Aniscans também há muitas prostitutas na rua. Só lhe falta o olhar para isso. Ou talvez seja o amor. Noroelle é bem diferente dessas putas, embora algumas delas sejam mesmo bonitas.

— Se alguém vive o calor do amor, não procura agradar os sentidos em nenhum outro lugar.

Farodin se irritava quando seu companheiro falava de Noroelle e dessas mulheres pintadas na mesma frase. Isso era... Não, ele não encontrava palavras para o quanto era absurdo comparar Noroelle a essas mulheres. Ocorriam a ele dezenas de metáforas para a beleza de Noroelle, versos e estrofes das canções que ele um dia cantara para ela. Nenhuma dessas imagens seria apropriada para as mulheres humanas. E agora ele também fazia isso! Pensava ao mesmo tempo na amada e nessas mulheres! Lançou um olhar azedo para Mandred. Todo o tempo cavalgando junto com esse bárbaro e ele não aprendera nada...

Ficou claro que Mandred entendeu errado o seu olhar. Ele acariciou a bolsa de dinheiro pendurada no cinto.

— Esses peões de camelo bem que podiam ter sido um pouco mais generosos. Vinte moedas de prata! Para quanto tempo isso pode bastar? Quando eu penso em tudo que eles deram a Valiskar. Eles fazem certo, esses irmãos de vocês lá do oásis.

— Eles não são irmãos — objetou Nuramon. — Eles são...

Mandred fez um sinal negativo.

— Sim, eu sei. Eles realmente me impressionaram. São mesmo espíritos sentíveis!

— Você quer dizer sensíveis? — perguntou Farodin.

— Falatório vazio de elfo! Você sabe muito bem o que eu quero dizer. É que... Basta esses cabeças enroladas com seus camelos os verem e já ficam loucos para dar presentes a eles. Simplesmente incrível e... sentível! Sem rachar crânios, sem ameaças, sem xingamentos. Eles vêm e ganham presentes. E os peões de camelo ainda ficam felizes com isso. Eles devem ser mesmo durões, esses elfos de Valemas.

Farodin lembrou de Giliath. Teria gostado de falar com ela mais uma vez para saber se ela realmente o teria matado. Ela esteve perto disso. Depois da luta, ela se recolheu. Embora tenham ficado por mais cinco dias no oásis, eles não a viram novamente.

— Olá, garota! — Mandred deu um tapinha na coxa de uma mulher de pele escura. — Você me entende, mesmo que não fale a minha língua.

Ela respondeu com um sorriso sensual.

— Vou procurá-la assim que acharmos um lugar para dormir na cidade.

Ela apontou para a bolsa de dinheiro na cintura dele e olhou de forma insinuante na direção de um jazigo arrombado.

— Ela gostou de mim! — anunciou Mandred, orgulhoso.

— Pelo menos da parte que está pendurada no seu cinto.

Mandred riu.

— Com certeza ela também vai gostar do que está pendurado mais embaixo. Pelos deuses! Como senti falta de ter uma garota macia nos braços.

As palavras de Mandred foram uma cutucada em Farodin. O ser humano era de um frescor tão simples. Devia ser por causa de sua vida curta.

No fim da rua havia um grande portão duplo, ladeado por duas torres imponentes em formato de semicírculo. Só os muros já deviam ter mais de trinta pés de altura; as torres tinham quase o dobro. Farodin nunca vira uma cidade humana cercada de fortificações tão impressionantes. Diziam que Iskendria tinha muitos séculos de idade. Duas grandes ruas comerciais e um rio imponente encontravam-se na cidade portuária.

Junto ao portão havia guardas com armaduras de cordas reforçadas no peito. Traziam elmos de bronze enfeitados com caudas negras de cavalo. Os viajantes que deixavam a cidade saíam pelo portão da esquerda e mal eram incomodados. Quem quisesse entrar em Iskendria, no entanto, precisava pagar pedágio aos guardas.

— Vocês viram isso? — indignou-se Mandred. — Esses sanguessugas cobram uma moeda de prata para darmos à cidade a honra de nossa visita.

— Eu pago por você também — disse Farodin baixo. — Mas trate de ficar calmo! Não quero aborrecimentos aqui — continuou desconfiado, sem tirar os olhos de Mandred.

Quando o sentinela do portão aproximou-se deles, Farodin pôs três moedas de prata em sua mão. Era um rapaz bexiguento e com mau hálito. Ele perguntou algo que Farodin não entendeu. Sem ter o que fazer, o elfo encolheu os ombros.

O guarda pareceu inquieto. Apontou para Mandred e repetiu a pergunta. Farodin estendeu ao soldado mais uma moeda de prata. Então o sentinela sorriu e fez sinal para que passassem.

— Sanguessuga! — rosnou Mandred mais uma vez.

Do outro lado do portão, uma rua movimentada os aguardava. Levava para dentro da cidade em linha reta. A caravana que tinham seguido na estrada costeira até Iskendria desapareceu por uma arcada em um pátio sem muros. Farodin viu ali mais de cem camelos. Aparentemente, o pátio era um ponto de encontro para mercadores distantes. Ali eles não podiam ir. Entre os mercadores só chamariam a atenção, e tinham de evitar isso a qualquer preço. Então, seguiram pela mesma rua.

A maioria das casas dali era feita de adobe. Raramente tinham mais de dois andares. Seguindo adiante naquela mesma rua, elas eram abertas e abrigavam no térreo lojas de trabalhos manuais, tabernas ou adegas.

Na frente de uma dessas adegas havia algumas crianças sentadas, depenando passarinhos. Sem que fossem destripadas, eram jogadas em gordura fervente ainda vivas! Ao ver isso, Farodin sentiu o estômago quase virar do avesso. Tanto fazia o tamanho das cidades dos humanos: continuavam sendo bárbaros!

Os três companheiros eram os que andavam mais devagar na ampla rua central. Todo mundo ali parecia saber aonde ia, e todos tinham pressa. Trabalhadores suados empurrando carroças cheias de tijolos; vendedores de água carregando enormes ânforas atadas às costas; meninos de recados com pesadas bolsas de couro; mulheres levando cestas cheias de legumes para os mercados. Farodin sentia-se no lugar errado no meio de todos aqueles humanos. Suas orelhas estavam ocultas sob um lenço que trazia à cabeça, então não chamava a atenção. Mas para ele não fazia diferença. Raras vezes já se sentira tão alheio ao mundo dos humanos.

Observou uma velha senhora que trajava um vestido de amarrar verde-mar e que era seguida por dois criados levando cestas de mercadorias. A velha tagarelava com um rapaz que carregava uma longa vara, com mais de vinte gaiolas de pássaros. Finalmente um dos servos pôs na mão dele algumas moedas de cobre. O jovem então abriu uma gaiola e apanhou uma pomba branca. Entregou-a cuidadosamente à velha senhora, que, rindo, soltou-a no ar. A pomba deu uma volta, claramente confusa com a liberdade que acabara de conquistar, e então voou para oeste na direção das marinhas de sal.

Num primeiro momento, Farodin ficou impressionado com esse gesto nobre. Mas logo se perguntou se o jovem aprisionava os pássaros simplesmente para que damas ricas pudessem libertá-las para o seu próprio prazer.

Quanto mais seguiam pela rua, mais altas tornavam-se as casas que a cercavam, agora construídas com tijolos rebocados de branco. Algumas das paredes tinham imagens pintadas, de navios ou de cegonhas que se metiam pelo meio dos caniços.

Farodin ficou com tontura com todos aqueles odores que confundiam seu olfato. O aroma de ervas e temperos misturava-se ao fedor da cidade. Por todos os lados, o cheiro era de humanos sujos, de jumentos e camelos e de excrementos. O barulho também era indescritível. Os comerciantes elogiavam suas mercadorias a plenos pulmões nas lojas de rua; os vendedores de água e também as meninas que expunham pães achatados e cheirosos e roscas douradas entoavam juntos uma cantilena sem fim.

Logo Farodin já sentia falta da solidão do deserto. Sua cabeça doía agudamente. O calor, o barulho e o fedor eram mais do que ele podia suportar. E, como se tudo isso não bastasse, ele sentia a trilha dos albos, que seguia paralela à estrada costeira até ali, dentro da cidade, tornar-se cada vez mais fraca. Farodin tinha certeza de que não haviam se desviado dela. Para ele, parecia que a cada passo ela descia mais fundo sob o pavimento da rua.

Nuramon também parecia inquieto. Trocaram um breve olhar.

— Nós já passamos por duas estrelas albas menores — sussurrou nervoso. — Para mim, a cidade parece quase uma teia de aranha, de tantas trilhas que se encontram aqui. Mas elas ficam por baixo da terra. Isso não é comum. Eu não sei se posso usar a força delas para abrir um portal.

— Talvez haja um túnel — presumiu Farodin. — É preciso chegar às estrelas de algum jeito. Toda grande estrela alba é protegida por poderes mágicos para não ser soterrada pela neve ou pela areia.

— E se aqui tiverem renunciado a esse feitiço? — retorquiu Nuramon. — Talvez para esconder melhor o portal dos humanos? Veja só essa multidão! Que outra possibilidade há aqui além de esconder o portal por baixo da terra?

— Aquele espírito esquisito, o dschinn, por acaso disse quando procurou a biblioteca?

— Não.

— Talvez séculos já tenham se passado depois disso. Talvez já não haja mais nenhum portal que leve daqui até a biblioteca.

Nuramon não respondeu. Também, o que podia dizer? Depositara todas as esperanças que restavam na biblioteca. Agora que já estavam ali, procurariam até encontrar um portal!

Mandred parecia não ter notado nada do clima pesado entre os elfos. Estava totalmente arrebatado por todas aquelas impressões desconhecidas e lançava olhares lascivos para todas as mulheres que fossem minimamente vistosas. Sua vida era curta e ele a levava de forma surpreendentemente leve. Nada parecia conseguir turvar seu humor por muito tempo. Ele sempre encontrava algo capaz de entusiasmá-lo, mesmo que fosse perseguindo os prazeres fugidios de uma bebedeira ou de uma noite de sexo. Talvez ele vivesse mesmo uma vida melhor.

Já deviam ter percorrido mais de um quilômetro quando a rua que seguiam deu em uma alameda de colunas, diferente por ser luxuosamente enfeitada. Indecisos para onde deviam ir, por fim viraram na rua luxuosa. Ali a multidão de humanos era ainda maior. À direita e à esquerda das fileiras de colunas havia carreiras de lojas. Elas também abriam suas amplas portas para a rua e brilhavam com mercadorias finas. Havia tecidos de todos os países humanos e também vasos e caixas lindamente pintados. Com fios finíssimos, os ourives produziam joias muito delicadas sob o olhar dos passantes curiosos.

A cada terceira coluna, na altura de quase quatro metros, havia frisos que sustentavam estátuas de tamanho descomunal. Com trajes pintados de um colorido vivo, elas olhavam de forma solene para os passantes a seus pés. Algumas delas eram guarnecidas de joias douradas. Farodin se perguntou se representavam deuses ou mercadores especialmente bem-sucedidos.

Um pouco à frente soaram lamentações de cortar o coração. Logo chegaram a uma praça onde estavam montadas barracas de feira de tecido colorido. Cada uma delas estava equipada com dúzias de ânforas.

— Um mercado de vinho! — alegrou-se Mandred. — Todas essas ânforas estão cheias da bebida.

Um vendedor magro de nariz vermelho acenou amigavelmente para ele, erguendo um copo de barro.

— Ele está me convidando para provar!

Nuramon apontou para uma estaca que subia bem alto por cima das barracas. Uma jovem mulher estava espetada nela. Tinham rasgado as roupas de seu corpo, que estava todo coberto de fios de sangue. Ela gemia baixo. No momento em que Farodin olhou para cima, viu como o peso do próprio corpo dela fez a ponta da estaca penetrar um pouco mais fundo em sua carne, fazendo-a estremecer.

— Você quer mesmo beber aqui? — perguntou Nuramon.

Mandred virou-se com repulsa.

— Por que estão fazendo isso? Que crime essa mulher pode ter cometido? Uma cidade tão bonita... E agora isso. Talvez ela seja uma assassina de crianças?

— Ah! Isso com certeza justificaria torturá-la até a morte de forma assim tão bestial. Como pude não perceber isso? — retrucou Farodin, de forma mais ríspida do que deveria.

Que culpa tinha Mandred pela atrocidade do soberano de Iskendria?

Em silêncio, seguiram no meio da multidão ao longo da rua luxuosa, quando a turba ao redor deles de repente foi tomada pela inquietação. Bem próximo dali soavam batidas de tambores e o som claro de pratos. Os humanos ali em volta recuaram até as colunas. A gritaria dos comerciantes e a conversa dos passantes cessaram. De repente, a rua ficou vazia. Só restaram eles três ali.

— Ei, estrangeiro! — Um homem louro e robusto saiu das fileiras de gente. — Fora daí! — disse na língua de Fargon. — A rainha de hoje está vindo!

Vinda de uma ampla rua lateral, uma procissão virou na rua das colunas. Meninas de vestidos muito brancos vinham na frente, espalhando pétalas de rosas sobre o pavimento.

Os três companheiros se apressaram em sair da rua. O homem louro espremeu-se ao lado deles. Seu rosto estava coberto por uma barba de vários dias e nele brilhavam olhos azuis como o céu.

— Vocês são estrangeiros, não são? Aposto que chegaram hoje mesmo à cidade. Vocês precisam de um guia. Ao menos para os primeiros dias, até que consigam se orientar aqui e que tenham aprendido as leis de Iskendria.

As meninas das flores eram seguidas por uma tropa de soldados com armaduras de cobre no peito e elmos que balançavam tufos de penas. Carregavam grandes escudos redondos, nos quais estava pintado o rosto ameaçador de um homem barbado. Estranhamente, seguravam suas lanças ao contrário, apontadas para o chão. Dos seus ombros pendiam capas pretas com um largo debrum de bordados dourados. Farodin nunca vira no mundo dos homens guerreiros tão suntuosamente equipados. Eles caminhavam cerimoniosamente sobre as pétalas.

— Os guardas do templo — esclareceu o guia, que era como ele mesmo havia se denominado. — Bonito de ver, mas são um bando ruim. É melhor não se pôr no caminho deles, ou vai parar em cima do mercado de cavalos fácil, fácil.

— E o que há de tão ruim no mercado de cavalos de vocês? — perguntou Mandred.

— Eles prendem o atrevido em uma gaiola de ferro, penduram-no em um mastro e deixam-no morrer à míngua. Isso se tiver sorte. Se tiver ofendido Balbar, padroeiro da cidade, então eles destroçam braços e pernas com barras de ferro e acorrentam o infeliz na pedra dos hereges, na praça do mercado, para que apodreça vivo. Isso se resistir ao ataque dos cães à noite...

Enojado, Farodin virou-se na direção da procissão, enquanto Mandred escutava avidamente as histórias do estranho. O próximo grupo a passar era composto de homens de pele escura vestindo saias vermelhas, que traziam grandes tambores atados aos quadris. Tocavam um lento compasso de marcha, marcando o tempo em que a parada se movia.

Uma enorme liteira aberta, carregada por ao menos quarenta escravos, passou pela rua. Sobre ela havia um grande trono dourado, ladeado por dois sacerdotes de cabeças raspadas. Nele estava afundada uma jovem garota, com o rosto maquiado em cores fortes. Ela olhava para baixo, para a multidão, de forma apática.

— Ela não é bonita? — perguntou o louro com um leve toque de cinismo. — Dentro de uma hora ela estará frente a frente com Balbar. — E, baixando a voz até que se tornasse um murmúrio: — Eles deram vinho e ópio a ela. Mas só o suficiente para que ela não durma durante a procissão e esteja consciente quando enfrentar Balbar. Vocês deviam ver isso, pois assim entenderiam Iskendria melhor.

Seguindo a liteira vinha um grupo de mulheres vestidas de preto, todas usando máscaras com caretas horríveis. Rostos paralisados em gritos de sofrimento, dor e luto.

— Então ela realmente vai encontrar um deus e todos vão poder assistir? — perguntou Mandred, curioso.

— Você pode apostar o seu traseiro nisso, amigo do norte. Aliás, meu nome é Zimon de Malvena. Eu não quero importuná-los com insistências, mas acreditem em mim: seria bem aconselhável que vocês tivessem um guia.

Nuramon pôs uma moeda de prata em sua mão.

— Conte-nos tudo que precisamos saber sobre a cidade.

A procissão já havia passado. Logo o barulho era geral.

— Vamos até a praça da casa do céu — Zimon fez um sinal na direção da rua e eles seguiram a procissão.

— O que os traz a Iskendria, estimados senhores? Estão procurando alguém que precise dos seus serviços como espadachins? Nas caravançarás[4] é fácil encontrar senhorios. Posso levá-los até lá.

— Não — respondeu Mandred, amigável. — Nós queremos ir até a biblioteca.

Farodin encolheu por dentro. Em momentos como esse, seria capaz de bater em Mandred. O que eles procuravam não dizia respeito a esse tipo suspeito!

— A biblioteca? — Zimon examinou Mandred, admirado. — Você me espanta, estrangeiro. Ela fica perto do porto. Dizem que lá está reunido o conhecimento do mundo inteiro. Ela tem mais de trezentos anos de idade e dispõe de mais de mil pergaminhos. Não há nenhuma pergunta cuja resposta você não encontre lá.

Farodin e Nuramon trocaram um olhar expressivo. Uma biblioteca de humanos onde se encontrava a resposta a todas as perguntas! Isso era tão provável quanto um cavalo que botasse ovos. E era realmente notável que houvesse uma biblioteca como essa justamente em Iskendria. Seria ela um reflexo distante do que se escondia ali, do outro lado da estrela dos albos, no Mundo Partido?

Chegaram a uma ampla praça, no centro da qual havia uma estátua de mais de vinte pés de altura. Ela mostrava um homem com uma barba longa, aparada de forma angulosa, sentado em um trono. Os braços da imagem descansavam em seu colo, estranhamente curvados. As mãos estavam abertas como se ele esperasse que depositassem oferendas nelas. De fato, uma rampa de madeira subia até suas mãos. A boca era escancarada como se quisesse gritar e dela brotava uma fumaça clara.

Atrás da representação do deus erguia-se um templo cujas colunas da altura do céu eram pintadas de púrpura e coroadas por capitéis guarnecidos de ouro. No frontão do templo havia um alto-relevo, pintado com cores fortes, que mostrava Balbar caminhando sobre do mar. Seus enormes punhos destroçavam galeras.

Os sacerdotes estavam aglomerados nos degraus que subiam para o templo. Entoavam uma canção solene e sombria. Embora Farodin não entendesse nem uma palavra, um arrepio gelado subiu por suas costas.

A liteira foi colocada ao pé da estátua. Agora os percussionistas aceleravam o ritmo dos tambores.

Ao redor da praça havia milhares de humanos, que acompanhavam com a voz o canto monótono dos sacerdotes. Farodin viu de canto de olho Nuramon ficar muito pálido. Até Mandred estava quieto; qualquer sinal de sorriso desaparecera de seu rosto.

Os dois sacerdotes carecas que estavam de pé na liteira conduziram a garota, subindo pela rampa de madeira. Ela parecia uma sonâmbula.

Juntos, os três subiram na superfície das mãos abertas da estátua do deus. Os padres forçaram a menina a ficar de joelhos. Passaram correntes ao redor de seus ombros, que engancharam em aros de ferro presos às mãos do deus. A coroa de flores que enfeitava seus cabelos caiu. Ficou ali apaticamente ajoelhada, prisioneira em sua embriaguês e devoção muda. Uma sacerdotisa de cabelos longos e soltos trouxe um jarro dourado e ungiu a testa da garota. Então derramou o conteúdo do jarro sobre suas roupas.

Quando ela, junto com os dois outros sacerdotes, saiu das mãos do deus de volta para a rampa, aceleraram-se mais uma vez as batidas de tambor. Os pratos soaram dolorosamente estridentes. O canto monótono tornou-se ainda mais alto.

De repente, os braços da estátua ergueram-se. Ambas as mãos da divindade moveram-se até a boca escancarada, para dentro da qual a menina desapareceu. O canto e as batidas de tambor emudeceram repentinamente. Então os braços baixaram de volta. Presa pelas pesadas correntes, a menina ressurgiu de joelhos nas mãos abertas do deus. Seu cabelo e roupas estavam em chamas. Gritando, ela se revirava em seus grilhões.

De olhos arregalados, Mandred fitava fixamente a menina em chamas, enquanto Nuramon se virou e quis deixar a praça. Mas o pretenso guia colocou-se no caminho:

— Não faça isso — murmurou ele.

Alguns dos fiéis já olhavam irritados na direção deles.

— Se você for, estará ofendendo Balbar. Eu contei a vocês o que os sacerdotes fazem com os sacrílegos. Olhe para o chão se não conseguir suportar a visão, mas não saia daqui agora. Reze para Tjured, Arkassa ou para quem você quiser.

Os gritos da menina tornavam-se mais baixos. Finalmente ela despencou para a frente, agonizante. Novamente os sacerdotes entoavam o seu canto sombrio. Lentamente a multidão de humanos começou a se dispersar.

Farodin estava com náuseas. Que tipo de deus era aquele, cultuado com atrocidades tão indescritíveis?

— Agora podemos ir — disse Zimon sobriamente. — Ninguém é obrigado a participar das cerimônias de sacrifício. É bem possível evitar essas barbaridades. Já moro aqui há dois anos e ainda não entendo as duas faces de Iskendria. É uma cidade da arte e da cultura. Eu sou escultor. Em nenhum outro lugar souberam valorizar meu trabalho tanto quanto aqui. Os ricos são loucos para que façam seus retratos. Há festas maravilhosas. Na biblioteca, eruditos do mundo todo discutem questões filosóficas. Ao mesmo tempo, aqui na praça do templo eles queimam uma criança todos os dias. Simplesmente não conseguimos acreditar que sejam as mesmas pessoas.

— Todos os dias? — perguntou Mandred, sem acreditar. — Por que eles fazem isso? Mas isso é... — Ele levantou as mãos num gesto de desamparo. — Isso é...

— Há setenta anos a cidade foi sitiada pelo rei Dandalus, das Ilhas Aegílicas. Sua frota marítima trouxe um enorme exército que sitiou a cidade. Eles construíram catapultas e torres móveis. Trouxeram até mineiros para construir um túnel por baixo das muralhas. O cerco durou duas luas; então Potheinos, o rei da cidade, soube que Iskendria estava fadada à queda. Ele prometeu a Balbar sacrificar seu filho se ele detivesse as tropas. Logo uma epidemia se espalhou entre os soldados de Dandalus. Ele precisou deixar a cidade sitiada em paz e se retirar para um acampamento. Potheinos sacrificou seu filho e prometeu a Balbar oferecer uma criança em sacrifício todos os dias se ele aniquilasse o seu inimigo. Dois dias mais tarde a frota do aegilês afundou em uma tempestade terrível. Nossa costa é um deserto. Sem água nem comida, Dandalus precisou desistir da ocupação. E, sem navios, ele foi obrigado a seguir à beira d’água para oeste. Só um de cem homens retornou para as Ilhas Aegílicas. Não há nenhuma fonte que conte o que sucedeu ao rei. Os sacerdotes de Balbar afirmam que o próprio deus teria capturado e devorado Dandalus. Desde esse dia ninguém mais tenta conquistar Iskendria. Mas a cidade sangra para isso, pois Balbar devora os seus filhos. O palácio real extinguiu-se. Hoje quem governa aqui são os sacerdotes de Balbar e os mercadores. Iskendria é uma cidade muito generosa, que acolheu legiões de estrangeiros para dentro de suas muralhas. Mas sejam cautelosos para não ferir nenhuma de suas leis. Aqui só se conhece um tipo de punição: mutilação até a morte.

A vontade de Farodin era deixar imediatamente a cidade dos assassinos de crianças. E, sim, ele se surpreendeu até pensando em jogar os sacerdotes carecas para dentro da goela em chamas da estátua.

— Nós vamos seguir o seu conselho — disse Nuramon seriamente. — Você sabe nos indicar uma boa hospedaria?

Zimon sorriu.

— O cunhado de um amigo tem uma hospedaria junto ao porto. Ali há até um estábulo onde vocês podem abrigar os cavalos. Será um prazer levá-los até lá.

A biblioteca secreta

O homem na jaula de ferro agonizava e clamava por água. Era o último que ainda estava vivo. Sete grandes jaulas pendiam na borda leste do mercado de cavalos. Uma das muitas penas de morte em Iskendria era trancafiar os condenados nessas jaulas e então deixá-los morrer à míngua em praça pública.

Mandred tateou buscando seu odre de água.

— Nem pense nisso! — murmurou Farodin, apontando para os guardas do templo à sombra das colunatas.

Estava escuro demais para que estimassem quantos eram.

— Talvez seja totalmente justo que ele esteja pendurado aqui — acrescentou Farodin.

O condenado tinha um braço esticado para fora da jaula, e acenava desesperado para eles. Mandred deu graças pela escuridão, porque assim ele não podia ver bem o homem. Foi inevitável pensar na marcha pelo deserto. Em como ele quase morreu de sede. Numa decisão rápida, apanhou o odre de água e atirou-o para o prisioneiro.

Na outra ponta da praça soou um grito. Mandred não entendeu nem uma palavra. Nas duas semanas na cidade, ele só aprendera o estritamente necessário. Palavras que era preciso saber para sobreviver ali: água, pão, sim, não e vamos fazer amor.

Dois guardas vieram de baixo das colunatas.

Farodin e Nuramon saíram andando. Mandred ainda olhou mais um pouco para os condenados. O homem bebeu avidamente, em longos goles. Uma coisa era cortar a cabeça de um condenado. Outra era deixá-lo sofrer dias a fio sob o sol chamuscante daquela cidade — isso era infame! Ninguém ganhava nada com isso.

Mandred apressou-se a seguir os dois elfos. Moviam-se totalmente em silêncio e desapareceram um pouco adiante em uma viela escura. O jarl sentiu-se bem. O que ele fizera estava certo!

Atrás dele soou uma corneta, e uma outra respondeu bem perto. E então uma terceira veio, exatamente da direção para onde seguiam. Mandred praguejou. Os guardas os cercavam. Alguém atrás dele rosnou uma ordem.

Antes que Mandred seguisse os elfos para dentro da viela, ouviu bem perto o percutir no chão das sandálias dos soldados.

— Aqui!

Farodin saiu da sombra de uma porta e puxou-o para o estreito corredor de entrada de uma casa. Ela cheirava a peixe e roupas molhadas. Em algum lugar acima deles, um casal brigava com muito barulho. Uma criança começou a chorar.

O corredor fazia uma curva acentuada para a esquerda e terminava em um pátio. Nuramon estava ali de pé, ao lado de um poço, acenando para eles.

— Aqui está!

Mandred não conseguia se orientar em Iskendria. Na noite anterior, haviam subido de alguma fonte depois de uma busca sem resultados. Já há duas semanas andavam pelas catacumbas sob a cidade, tentando encontrar uma estrela alba que fosse um caminho seguro até a biblioteca recomendada pelo dschinn.

Entretanto, Mandred tinha a suspeita de que seus companheiros não dominavam muito bem o feitiço dos portais. Eles tinham tentado esclarecer o problema a ele. Segundo se diz, era necessário estar exatamente sobre uma estrela para abrir um portal. Mas ali as estrelas estavam enterradas sob camadas de séculos de entulho. Como diziam que os filhos dos albos ainda usavam a biblioteca lendária, devia haver em algum lugar do labirinto de túneis, câmaras mortuárias e canais de esgoto um acesso oculto a uma delas. E era isso o que eles buscavam noite após noite.

Iskendria fora erguida em um lugar excepcional. Ali cruzavam-se não só vias terrestres e aquáticas: pela região da cidade passavam mais de trinta trilhas albas. Mas elas não seguiam as vielas sinuosas — perdiam-se através de paredes e rochas.

Nuramon fixou uma corda com um gancho na borda do poço e começou a descer. Farodin o seguiu. Os elfos eram escaladores hábeis. Mandred odiava ficar pendurado em cordas, da mesma forma como odiava rastejar como um rato pela na terra.

Um grito soou da entrada do pátio. Guerreiros! Mandred agarrou a corda e deixou-se cair dentro do poço escuro. A textura áspera queimou suas mãos. Enquanto seus pés tateavam a abertura, rostos surgiram na borda do poço acima dele.

Com raiva, Mandred olhou para cima. Queria lançar aos seus perseguidores, os carrascos do templo, uma praga ou uma ofensa. Simplesmente fugir ia contra os seus princípios. Mas o seu vocabulário era pobre demais, e não tinha nada. A não ser... Ele deu um sorriso largo e curvou-se bem dentro do poço para que pudesse vê-los.

— Vamos fazer amor! — ecoou sua voz pela construção.

Ele ergueu os punhos cerrados na direção dos guardas e riu hostilmente. Um dos guerreiros arremessou sua lança dentro do poço. Mandred desviou depressa e saiu dali. Enquanto isso, os elfos tinham acendido três candeeiros.

— Mas que maluquice é essa? — perguntou Farodin, repreendendo, mordaz, o filho de humanos.

— Foi só uma frase feita...

— Estou falando do que aconteceu no mercado de cavalos! Está sentindo falta da morte por perto? Nós fizemos um trato! Você não faria nada para chamar a atenção. Você se lembra disso?

— Vocês não entenderiam...

— Realmente — retrucou Farodin friamente. — Eu não consigo entender! O que você fez foi totalmente insensato! Acha que conseguiu salvar a vida do homem na jaula? Não! Você só prolongou seu sofrimento por mais um ou dois dias. Eu simplesmente não entendo!

Mandred não respondeu. O que podia dizer? Os dois não eram capazes de entender. E como poderiam? O que ele fez foi loucura, ele mesmo sabia. No fundo não ajudou ninguém. Mas, ainda assim, ele faria de novo.

Pesaroso, seguiu os elfos. Eles escalaram sobre montes de entulho, atravessaram túneis semi-inundados e tatearam salas subterrâneas sustentadas por colunas, em cujas paredes estavam pintados demônios horríveis. Várias vezes deram de cara com pinturas de Balbar lançando fogo pela boca.

Na maioria das vezes, foi Nuramon quem os guiou; diziam que era talentoso em seguir trilhas albas ocultas. Para Mandred, em contrapartida, trilhas que não podiam ser vistas eram sinistras. Com certeza havia outras marcações escondidas ali embaixo que indicassem o caminho. Mas, sempre que seguiam as trilhas dos albos, davam em muros ou em fendas nos túneis, sem poder fazer nada. Exatamente como agora. Estavam em uma câmara estreita, com paredes de arenito vermelho-escuro. Diante deles havia uma pedra redonda que lembrava a roda de um moinho. No meio dela estavam esculpidas duas linhas sinuosas.

— Continua aqui! — disse Nuramon, apontando para a pedra. Os elfos deram-meia volta e olharam para Mandred.

É claro! Sempre que precisavam resolver um problema à força ele era bom o suficiente, pensou Mandred, nervoso. Ele largou seu lampião e foi até a pedra. No chão e sob o teto, a roda de pedra estava encaixada em pequenas depressões, para que não girasse para o lado.

Mandred empurrou com toda a força e ficou surpreso com a facilidade com que a pedra se movimentou. Um cheiro forte de poeira, temperos e incenso veio de encontro a eles.

Mandred expirou com força. Conhecia esse cheiro. A câmara mortuária sob a cidade cheirava assim, onde algum tipo de magia impedia que os corpos dos mortos apodrecessem, ressecando em vez disso.

Essas sepulturas causavam medo em Mandred. Se os mortos não apodreciam como era típico deles, então talvez pudessem também fazer outras coisas que não fossem típicas dos mortos.

Sem hesitar, ambos os elfos entraram na câmara. Seguravam suas lanternas no alto para que a sala da tumba fosse bem iluminada. Ela media cerca de três passos por cinco. Nas paredes havia longos nichos, nos quais os mortos descansavam em camas de pedra.

O estômago de Mandred revirou quando olhou em volta. Os cadáveres tinham rostos marrons e cavados e lábios recolhidos, de forma que pareciam sorrir. Mandred olhou para a pedra da porta. Não se surpreenderia se, de repente, ela rolasse para frente da entrada como se tocada pela mão de um espírito, e os mortos se levantassem assim que eles ficassem presos. Examinou os corpos de canto de olho. Não havia dúvida! Eles sorriam malignamente para ele. E parecia que tinham mesmo todos os motivos para estarem carrancudos. Alguém já estivera ali naquela tumba. As roupas dos mortos estavam esfarrapadas. E tinham até arrancado a mão de um deles. Ladrões de tumba!

Isso não parecia inquietar nem um pouco os elfos. Eles iluminavam os nichos procurando portas secretas. Parecia que tinham dado mais uma vez em um beco sem saída. Mandred rezou em silêncio para Luth. Um dos mortos tinha mexido a cabeça. O jarl não viu, mas tinha certeza de que o sujeito havia pouco estava olhando para a porta, e não em sua direção como agora.

Recuou um pouco por precaução. A parede de frente para a porta parecia-lhe a mais segura. Lá não havia nichos. As pedras pareciam antigas. Em uma delas havia algo riscado, um círculo com duas linhas sinuosas.

— Nós não vamos embora? — perguntou Mandred.

— Logo mais — respondeu Nuramon, curvando-se sobre o morto que olhara para Mandred.

Será que o companheiro não tinha percebido nada?

— Cuidado! — Mandred puxou-o para trás.

Irritado, Nuramon se soltou.

— Os mortos não fazem nada a ninguém. Controle o seu medo! — disse, falando com Mandred como se ele fosse uma criança e voltando a se curvar dentro do nicho. Chegou até a segurar o corpo para puxá-lo um pouco para o lado. — Aqui tem alguma coisa!

Mandred tinha a sensação de que seu coração estava para explodir. Que raios eles estavam fazendo! Não era certo incomodar os mortos!

— Aqui tem um pouco de poeira e uma alavanca escondida...

A porta da câmara mortuária rangeu baixo. Mandred deu um salto. Mesmo que fossem só poucos passos, chegou tarde demais. A pedra redonda rolara para a frente da entrada. Cego de pânico, deixou o lampião cair, despedaçando o vidro no chão de pedra. O guerreiro tinha puxado o machado. Sabia que os mortos se levantariam a qualquer momento. Andando lentamente de lado, para se proteger, ele recuou. Os elfos não fizeram nada. Em sua arrogância, deviam achá-lo louco. Era óbvio que não ousavam chegar perto do seu machado. Será que eles não entendiam o perigo que estavam correndo?

Mandred continuou recuando até ficar com as costas perto da parede que não tinha nichos, onde metade dele estava segura contra surpresas!

Nuramon ergueu uma mão com cuidado:

— Mandred...

O jarl deu mais um passo para trás. Ao redor dele tudo desapareceu, como uma imagem some da água quando alguém joga uma pedra. A luz dos lampiões oscilou. Algo quebrou com um rangido sob seus pés. Teve a impressão de que a sala ficou maior. Por que suas costas não alcançavam finalmente a parede? Os elfos estavam embasbacados como bezerros.

Mandred olhou rápido para o chão. Viu muitos ossos... e ouro! Pulseiras, anéis e folhas finas de enfeite como as que se costuravam em trajes de festa. Mas agora há pouco não havia ossos nem ouro ali! O que estava acontecendo?

De repente o chão tremeu e algo subiu até ele. Mandred virou-se e viu Balbar, o deus da cidade. Era gigantesco, com dez pés ou mais de altura. Tinha a barba cortada reta e o rosto em trejeito de fúria — não havia dúvidas, era mesmo o deus da cidade! E era todo de pedra.

Mandred ergueu o machado. Nada mais fazia sentido ao redor dele. Agora estava em um túnel alto, fracamente iluminado por pedras de barin.

A mão direita de Balbar avançou. Mandred foi lançado para cima. Desamparado como uma criança, agitava braços e pernas. A mão esquerda de Balbar fechou-se ao redor do pescoço dele, e com a direita o agarrou pelos pés. O deus da cidade curvou-o como uma vara de vime. O jarl gritava! Sentia como se seus músculos estivessem sendo arrancados dos ossos. Fazia toda a força contra aquele aperto de pedra. Balbar queria quebrar sua coluna, simplesmente partindo-o como um galho. O colosso de pedra vencia a sua resistência sem esforço.

— Liuvar!

O deus ficou paralisado no meio do movimento.

Farodin ainda gritou algo que Mandred não entendeu. Então, o deus de pedra o pôs no chão. Gemendo, arrastou-se até a parede mais próxima. Ao seu redor havia ossos despedaçados. Os outros intrusos tiveram menos sorte que ele.

— Um gallabaal. Poucos filhos de albos já viram uma criatura como essa. Um guarda de pedra. Só com uma magia das grandes é possível criar um ser desses.

Mandred esfregava as costas doloridas. Ficaria feliz se não tivesse precisado dar de cara com esse monstro.

— Pelos peitos de Naida, como é que você conseguiu detê-lo?

— Não tem segredo. Bastou dizer em élfico a palavra que significa paz. Você está bem?

“Que pergunta imbecil”, pensou Mandred. Levantou-se com um gemido profundo. Sentia como se uma manada inteira de cavalos tivesse pisoteado em cima dele.

— Estou fabuloso. — E encarando desconfiado o gigante de pedra: — E ele agora vai dar sossego?

— Ele só vai acordar de novo se alguém estranho entrar.

Mandred cuspiu nos pés da estátua.

— Seu pedaço de pedra estúpido. Foi sorte sua me pegar de surpresa. — O jarl bateu o lado plano do machado na mão aberta. — Eu o teria transformado em paralelepípedos.

O gigante voltou à vida novamente.

— Liuvar! — gritou Farodin de novo. — Liuvar.

Nuramon estava impressionado.

— Que feitiço magistral. Uma ilusão perfeita! É preciso tocar a parede traseira da tumba para perceber, de tão real que ela parece. É um feitiço como o que os elfos de Valemas fizeram para disfarçar a passagem para o nada. Eles realmente... — Nuramon ficou imóvel e examinou o gigante de pedra com um olhar curioso. — Um gallabaal. Sempre achei que os guardas de pedra eram personagens de lendas. — Sem dar-lhe a honra de nem mais um olhar, apontou para o corredor. — Lá embaixo deve haver uma grande estrela alba. Estou sentindo o seu poder.

O caminho que tomaram os levou através de um túnel alto, no fim do qual brilhava uma luz fraca. Era evidente que essas salas não tinham sido construídas por humanos. Não havia juntas visíveis na alvenaria das paredes. O único ornamento nelas era uma estampa de flores, cujas cores brilhavam tão claras como se os artistas tivessem acabado de terminar seu trabalho.

Por fim, adentraram uma sala ampla e circular, coberta por uma cúpula. Pedras de barin de luz suave haviam sido incrustadas nas paredes e preenchiam a sala com uma luz uniforme, que não formava sombras. No chão estava embutido um mosaico de fundo branco, que mostrava um círculo negro com duas linhas sinuosas no centro. Mandred sorriu para si mesmo em silêncio. Ele não precisava anunciar o seu triunfo por aí. Havia sinais que mostravam o caminho até ali! Ele não tinha se enganado. E ele sabia que os dois elfos também compreendiam naquele momento que ele havia entendido a essência do labirinto melhor que eles.

— Seis trilhas cruzam-se aqui — disse Nuramon objetivamente. — É quase uma estrela alba grande. Tenho certeza de que este caminho leva até a biblioteca. — O elfo pisou no centro do círculo, entre as linhas sinuosas. Ajoelhou-se e tocou o chão com a palma da mão. Concentrado, fechou os olhos e ficou imóvel.

Para Mandred, uma eternidade pareceu passar até que o elfo levantasse os olhos novamente. O suor brilhava na testa dele.

— Há duas linhas de força especiais. Eu não sei qual delas devo escolher para abrir o portal. Não entendo. De alguma forma este portal é... diferente. A sexta linha... Para mim parece que ela é mais nova. Como se alguém tivesse traçado uma nova linha de força.

— Então a mais antiga deve ser aquela que abre o portal — disse Farodin com calma. — O que é tão difícil?

— É que... — Nuramon passou a língua sobre os lábios. — Aqui há alguma coisa que o Carvalho dos Faunos não nos contou. Essa nova linha parece influenciar a estrutura antiga da estrela dos albos. Os padrões estão alterados... ou, melhor dizendo, eles estão confusos, em outra harmonia.

Mandred não entendia do que os dois estavam falando. Eles só precisavam executar!

Agora os dois elfos estavam agachados no círculo, mantendo as mãos no chão. Pareciam estar medindo a pulsação de algo invisível. Ou talvez o mundo tivesse pulso? Mandred sacudiu a cabeça. Que pensamento absurdo! Estava começando a pensar como esses dois elfos malucos. Talvez bastasse fazer um buraco no chão com o machado para conseguirem descer para o Mundo Partido.

Um portal brilhante como ouro polido se abriu. Parecia uma fatia fina de luz. Ficava no meio do círculo e ia do chão até um pouco abaixo da cúpula do teto. Mandred deu alguns passos à volta do feixe. Pôde observa que a fatia de luz era tão fina como um fio de cabelo.

— Vamos — disse Farodin, parecendo tenso.

Mas antes que Mandred pudesse perguntar o que o preocupava, ele desapareceu na luz dourada.

— Há alguma coisa de errado? — perguntou a Nuramon.

— É essa nova linha de força. Ela dá apoio ao feitiço do portal, mas também o altera sem que possamos estimar se o fortalece ou manipula. Talvez seja melhor você ficar aqui. Para ser sincero, não temos certeza se este portal leva mesmo até a biblioteca.

Mandred lembrou dos guardas do templo e das punições que Iskendria impunha aos rebeldes. Preferia mil vezes desaparecer em um mundo desconhecido, do qual talvez não houvesse mais volta, a ser acorrentado no mercado de cavalos com braços e pernas destroçados para que cães vadios o comessem.

— Não é do meu feitio deixar os amigos na mão — disse de forma patética.

Soava melhor do que falar sobre os cachorros.

Nuramon parecia constrangido.

— Às vezes tenho a sensação de que não somos dignos de cavalgar com você — disse ele em voz baixa.

Então estendeu a mão na direção de Mandred, como daquela vez na caverna de gelo.

O jarl sentiu-se desconfortável por dar a mãozinha a um homem. Mas ele sabia que para Nuramon isso significava muito. Então atravessaram o portal lado a lado.

Mandred sentiu um golpe gelado de ar no rosto. O portal abriu-se sobre um abismo. Ele encolheu-se para trás e agarrou a mão de Nuramon mais forte. Ao lado deles, Farodin pairava no nada.

— Vidro — disse o elfo calmamente. — Estamos sobre uma laje grossa de vidro.

Mandred soltou-se de Nuramon. Mordeu os lábios irritado. É claro! Conseguia sentir que estava sobre alguma coisa. Mas não se via nada. Como era possível fabricar vidro de forma tão engenhosa a ponto de ficar invisível e aguentar o peso de um humano e dois elfos?

Estavam de pé sobre um poço amplo e circular, cujo fundo sumia na luz fraca. Mandred estimava que descesse pelo menos uns cinquenta metros nas profundezas. Olhar para o abismo sob seus pés tinha algo de apavorante. Mandred mal conseguia suportar, estava quase se agarrando novamente a Nuramon. Quem teria inventado algo assim tão maluco? Ficar em pé sobre um abismo como se estivesse flutuando!

Tudo aquilo lembrava a Mandred o interior de uma torre enorme e redonda. O construtor lunático só se esquecera de construir os andares intermediários. Junto à parede interna da torre, uma rampa descia suavemente em espiral para as profundezas. E parecia que as paredes iam ficando mais próximas conforme desciam. Mandred envergonhava-se do seu medo do precipício. Avançou sobre a superfície de vidro, com as pernas duras e o olhar fixo na parede. “Não posso olhar para o abismo”, pensava o tempo todo, torcendo para que seus companheiros não percebessem nada. Suspirou aliviado ao chegar ao acesso para a rampa, onde o chão sob seus pés já não era mais transparente. Apoiou-se na parede e olhou para a cúpula do teto, que se estendia sobre suas cabeças. Ela mostrava um círculo negro com duas linhas sinuosas e douradas. Desta vez, Mandred não tinha nenhuma sensação de triunfo.

Em silêncio, caminhou com os dois elfos rampa abaixo. O caminho era assustadoramente estreito. Mandred mantinha-se bem perto da parede. Não havia sequer um corrimão! Será possível que os filhos dos albos não conheciam o medo de olhar para as profundezas? Aquele desejo perturbador de simplesmente se deixar cair no abismo, como se não fosse possível resistir às tentações de uma voz que chama lá de baixo?

Mandred contemplou os quadros que decoravam a parede à sua esquerda para não precisar pensar no abismo. Exibiam figuras circundadas por uma luz brilhante, que caminhavam por florestas e viajavam em navios delgados sobre mares revoltos. Os quadros narravam uma história. Olhá-los dava paz aos pensamentos conturbados de Mandred. Então a harmonia dos quadros foi perturbada. Outras criaturas surgiram — entes que se pareciam com humanos, mas que tinham cabeças de animais.

De repente, ambos os elfos pararam como se tivessem ficado presos ao chão. Os artistas desconhecidos tinham pintado o devanthar! Ele fora abatido por uma silhueta de luz, que mantinha um pé sobre seu pescoço. A figura medonha era tão real que parecia que os artistas a tinham visto diante de si. Até o tom da cor dos olhos era preciso. Mas a silhueta de luz já não tinha mais rosto. Um pedaço de reboco havia se soltado. Até então, Mandred não vira nenhuma avaria no beiral da parede, em lugar nenhum. O tempo passara para as obras de arte sem deixar vestígios.

O jarl sentiu arrepiar os cabelos finos de sua nuca. Havia alguma coisa de errado! Por que não encontravam ninguém? Se essa era a biblioteca, por que ali não havia livros? E por que o único dano em todo o beiral da parede tinha apagado o rosto daquele guerreiro que um dia venceu a besta? Era realmente por acaso?

Farodin estava com a mão direita sobre o punho da espada. Olhava para baixo no caminho em espiral.

— Lá embaixo há um portal — disse o elfo em voz baixa. — Nós precisamos nos manter o mais quietos possível. — Olhou para Mandred: — Quem sabe o que nos espera aqui...

— Mas nós estamos na biblioteca que vocês estavam procurando?

Farodin deu de ombros e prosseguiu.

— Em todo caso, não estamos mais no seu mundo, filho de humanos.

Tão silenciosamente quanto podia, Mandred seguiu os dois guerreiros elfos. Levou um bom tempo até chegarem ao portal. Os quadros nas paredes agora só mostravam lutas sangrentas entre as silhuetas de luz e os homens e mulheres com cabeças de animais. Não havia mais nenhum quadro que exibisse um devanthar. Seja o que for que aconteceu com ele, nas batalhas posteriores, aparentemente já não tinha mais importância.

O portal em que terminava o caminho em espiral tinha mais de três metros de altura. Do outro lado dele havia um corredor longo e estreito, cujas paredes eram revestidas de granito polido. O teto do corredor devia ter mais de quinze metros de altura. Nele estavam colocados degraus estranhos, como se fossem para alguém escalar ao longo do teto. Grandes pedras de barin brilhavam em intervalos regulares entre os degraus. As paredes, por sua vez, eram completamente cobertas de colunas de pequenos caracteres. Quem conseguiria ler algo assim? Mandred levantou a cabeça. E como alguém poderia ler o que estava bem acima nas paredes?

Um pouco adiante, havia um assento estofado em couro, que pendia de quatro correntes de ferro. A forma como estava pendurado lembrava a Mandred o berço de bebê que ele construíra havia tanto tempo. Ficava pendurado por quatro fortes cordas, presas à viga intermediária da casa comunal. O jarl sentiu um nó na garganta. Isso era passado, oras! Ficar lembrando isso era tolice.

Já tinham percorrido cerca de vinte passos no corredor quando ele se bifurcou para um outro corredor à esquerda, alto e com as paredes escritas. O corredor principal perdeu-se na distância. Em intervalos regulares, mais assentos pendiam do teto.

Os elfos decidiram continuar seguindo em frente. Para Mandred, tanto fazia qual caminho eles tomavam, desde que não levasse de novo para cima de um abismo.

Já tinham passado três outros corredores laterais quando Farodin ergueu a mão num gesto de alerta. O elfo puxou a espada e espremeu-se bem perto da parede. Um pouco mais adiante havia mais uma bifurcação. Mandred levantou o machado diante do peito. Então ouviu. Batidas de cascos! Imediatamente lembrou do quadro do devanthar. A besta tinha cascos fendidos em vez de pés.

Mandred sentiu seus dedos ficarem úmidos. A cada instante, contava que fosse ouvir a voz zombeteira do devanthar em seus pensamentos. Em ver disso, o que soou foi um tilintar de correntes. O bater de cascos cessou. Algo chiava baixo. Então, alguém murmurou algo para si mesmo e, por fim, suspirou fundo.

Mandred já não conseguia mais suportar a tensão. Com um grito selvagem de guerra, dobrou a esquina correndo e... chocou-se contra um centauro pendurado no teto. Depois do susto, instintivamente o centauro desferiu um grande coice, acertando em cheio o peito de Mandred, jogando-o ao chão. Seus companheiros já tinham vindo correndo em seu socorro e agora assistiam perplexos, de olhos arregalados, à cena. Nuramon explodiu numa gargalhada sonora. Até o sério Farodin sorriu.

Diante deles, um centauro branco pendia do teto pendurado por duas cintas de sustentação, presas a correntes. Com a ajuda de uma manivela e uma roldana, ele conseguia puxar-se para cima e para baixo junto à parede.

— Vossa conduta não mostra muita educação, senhores!

O centauro falava daílico. Mandred não teve dificuldades para entendê-lo, mesmo que as palavras soassem afetadas.

— Nos círculos sociais de onde eu venho, o costume é se desculpar quando, num arrebatamento, acertamos com a cabeça as... — o centauro tossiu embaraçado — as partes posteriores de alguém. Mas como vocês aparentemente não conhecem as regras mais simples das boas maneiras, vou dar início e me apresentar, apesar do vosso mau comportamento. Meu nome é Chiron de Alkardien, antigo professor do rei de Tanthalia.

Os elfos haviam recuperado a calma, e agora também se apresentavam.

O centauro acionou a alavanca da roldana que produzia aquele chiado, puxando-se para baixo. Desceu com destreza das cintas de sustentação. Um homem-cavalo como Mandred nunca tinha visto. Uma faixa estreita de seda vermelha em sua testa segurava os longos cabelos brancos. Rugas profundas sulcavam seu rosto e uma enorme barba branca descia em ondas até seu peito. Sua pele era estranhamente clara. Mas o mais estranho eram seus olhos. Tinham a cor de sangue recém-derramado.

— Desculpe-me — soltou Mandred finalmente.

O centauro carregava uma aljava com vários pergaminhos enfiados. No cinto ele tinha penas e um tinteiro. Estava claramente desarmado e por isso parecia inofensivo. Por outro lado, tinha esses olhos vermelhos, pensou Mandred. Em criaturas de olhos vermelhos jamais se podia confiar assim tão fácil!

— Mandred Torgridson, jarl de Firnstayn — apresentou-se.

O centauro baixou a cabeça, e deslizou o olhar de um para o outro.

— Vocês são novos aqui, não é? E imagino que não chegaram aqui com a ajuda de Sem-la.

Mandred olhou para seus companheiros. Estava claro que os dois estavam entendendo tanto quanto ele do que o homem-cavalo estava falando.

Chiron soltou um suspiro que lembrou um pouco uma bufada.

— Pois bem. Então, antes de mais nada, eu os levarei ao mestre Gengalos. Ele é o guardião do saber responsável por esta parte da biblioteca. — E virando-se: — Vocês fariam a gentileza de me seguir? — Ele tossiu levemente. — Será que algum dos respeitáveis elfos talvez poderia esclarecer a esse humano que não é educado olhar fixamente para o traseiro de um centauro?

Mas que tipo convencido e presunçoso, pensou Mandred. Estava prestes a responder na mesma moeda ao sujeito quando um olhar repreendedor de Farodin avisou-o para ficar calado. Mandred se recompôs e seguiu os outros a uma certa distância. Mais uma palavra desse centauro e apresentaria aquela bunda de cavalo ao fio de seu machado!

Chiron conduziu-os do labirinto de paredes de granito até uma sala espaçosa. Ali havia estantes de madeira dispostas em fileiras apertadas, nas quais estavam deitadas, bem próximas umas das outras, milhares de tábuas de barro redondas. Mandred olhou algumas delas distraído e balançou a cabeça. Parecia que galinhas tinham dado um passeio por cima delas. Quem é que conseguia ler algo assim? Só de olhar rápido ele já ficava com dor de cabeça!

— Digam ao seu humano que ele deve pôr as tábuas de volta imediatamente! — rosnou o centauro para os dois elfos.

Teimoso, Mandred pegou mais uma tábua de barro na mão.

— Tirem as tábuas desse idiota! — ralhou Chiron. — Elas são discos de sonhos do Tildanas afundado. Elas anotam as lembranças daqueles que as pegam na mão e as observam. Cada lembrança que uma das tábuas registra é apagada para sempre da memória. Deixem esse imbecil imaturo olhar algumas delas e ele não vai mais saber nem o próprio nome.

— A hora da historinha já terminou? Com histórias como essa você pode assustar crianças, olhos vermelhos, mas não a mim.

A cauda do centauro estremeceu ofendida.

— Se o humano sabe de tudo...

Sem olhar novamente para Mandred, ele seguiu adiante.

— É melhor você devolver os discos — aconselhou Nuramon. — E se ele tiver razão? Imagine só, de repente você poderia não se lembrar mais de Alfadas ou de Freya.

— Esse bucéfalo não me dá medo — retrucou Mandred, teimoso.

Então empurrou as tábuas de volta para a estante. Agora elas pareciam ter mais caracteres rabiscados. Mandred engoliu em seco. Será que o bunda de cavalo tinha dito a verdade? Ele não deixaria transparecer nada!

— E por que eu ficaria mais tempo olhando essas coisas que eu nem consigo ler? — retorquiu com uma voz que não chegou nem perto de soar tão relaxada como ele queria. — Não me entenda mal, Nuramon. Mas eu não acredito em nem uma palavra desse pileca de olhos vermelhos.

— Claro — disse Nuramon, sorrindo de forma contida.

Ambos se apressaram para alcançar Chiron e Farodin. Cheio de entusiasmo, o centauro contava sobre a biblioteca. Todo o conhecimento dos filhos dos albos estaria reunido ali.

— Temos até dois copistas que trabalham na biblioteca no porto de Iskendria. Normalmente, o que os humanos escrevem não é digno de pergaminhos, mas em prol da integridade, aqui reunimos também esses escritos. Eles compõem, contudo, só uma minúscula fração do nosso acervo.

Mandred odiava aquele sujeitinho petulante.

— Vocês também têm os dezessete cânticos de Luth aqui? — perguntou ele em voz alta.

— Se eles são importantes, alguém certamente deu-se ao trabalho de escrevê-los. Mestre Gengalos com certeza sabe. Eu me interesso por formas perfeitas da épica, não por versos recitados por bardos gaguejantes em átrios fedorentos.

Chiron os levou até uma segunda rampa, que descia nas profundezas em largas espirais. Mandred imaginou-se derrubando o centauro presunçoso abismo abaixo. Tanto fazia o que ele dizia — se não tivessem os dezessete cânticos de Luth, então tudo ali era uma porcaria. Nas terras do fiorde toda criança conhecia essas canções!

Chiron continuava contando sobre a biblioteca. Dizia haver ali mais de cem visitantes. Mas, na verdade, Mandred ainda não vira ninguém além do centauro durante o longo caminho.

O homem-cavalo continuou a conduzi-los por corredores e salas. Com o tempo, até Mandred sentiu que a quantidade de conhecimento que devia estar guardada ali devia ser mesmo intimidadora. Ele não conseguia compreender com o que era possível preencher tantos pergaminhos, livros, tábuas de barro e paredes escritas. Será que no fim não era a mesma coisa o que estava escrito em todos os lugares, só que com outras palavras? Será que com esses livros acontecia a mesma coisa que com as mulheres, que se encontravam para se banhar no riacho enquanto falavam sempre sobre as mesmas trivialidades sem fim, sem que ninguém se cansasse disso?

Se realmente tudo que se encontrava nesta biblioteca era importante e digno de saber, então um humano deveria se desesperar. Mesmo dez vidas humanas não seriam suficientes para ler todos os escritos dali. Talvez nem cem delas. Então, os humanos jamais poderiam entender o mundo, porque em sua multiplicidade ele fugia a qualquer explicação. Tal pensamento tinha algo de libertador. Visto dessa forma, tanto fazia se uma pessoa já lera um livro, centenas de livros ou milhares deles — ou até mesmo nenhum, como Mandred. Ela não entenderia melhor o mundo de qualquer maneira.

Devagar foram chegando às áreas da biblioteca onde também se viam visitantes: duendes, alguns elfos, um fauno. Mandred reparou numa criatura estranha que tinha corpo de touro, tronco de humano e, além disso, asas nos flancos. Então viu um elfo que tentava animosamente convencer um unicórnio e ainda um gnomo galgando uma estante com uma cesta cheia de livros nas costas. Os outros visitantes não reparavam neles. Dois elfos, um humano e um centauro — ali isso não parecia ser uma visão espantosa.

Finalmente Chiron os levou para dentro de uma sala com abóbadas cruzadas coloridas, onde havia alguns púlpitos. Ali estava parado somente um único leitor, uma figura magra que vestia um hábito cor de areia. Com o capuz escondendo-lhe o rosto, lia um livro de páginas cor de púrpura, escritas com tinta dourada. Estranho era que ao lado do púlpito havia algumas cestinhas com folhas murchas. Um odor estranho pairava no ar, um pouco aflitivo, mas ao mesmo tempo familiar. Era de poeira e pergaminhos. Até o cheiro das folhas Mandred conseguiu reconhecer. Mas suspeitava que ali ainda havia algo mais...

Chiron pigarreou baixo.

— Mestre Gengalos? Por favor, perdoe-me por incomodá-lo, mas três visitantes chegaram à biblioteca pelo portal sobre a galeria dos albos. Eles estavam perdidos nos corredores de granito. E aquele ali tentou me massacrar com o machado. — O centauro lançou um olhar de reprovação para Mandred. — Eu pensei que seria melhor trazê-los a você, mestre, antes que pudessem causar danos reais.

A silhueta que vestia o hábito ergueu a cabeça, mas o capuz afundado manteve seu rosto nas sombras. Por um instante, Mandred ficou tentado a puxar o capuz daquele mestre com um movimento rápido. Estava acostumado a ver com quem falava.

— Você fez bem, Chiron, agradeço por isso. — A voz de Gengalos soava calorosa e amigável, contrastando drasticamente com o ar inacessível que o circundava. — Vou poupá-lo da carga da preocupação com os novos.

Chiron inclinou rapidamente a cabeça e então se retirou.

— Nós queríamos... — perguntou Farodin, mas Gengalos cortou sua frase com um gesto rápido.

— “Nós queríamos” aqui não existe! Quem quer que venha até a biblioteca, precisa primeiro servi-la antes de receber de presente algo do seu conhecimento.

— Desculpe — Nuramon assumiu um tom diplomático. Também curvou-se diante do guardião do saber. — Nós somos...

— Isso não me interessa — interrompeu Gengalos. — Qualquer um que vem até aqui se submete às regras da biblioteca. Sujeitem-se a elas ou vão embora! — Ele fez uma curta pausa para enfatizar sua resposta dura. — Se quiserem ficar, então primeiro precisam prestar os seus serviços. — E, apontando para as cestas ao lado do púlpito: — Aqueles são poemas das fadas das flores, copiados em folhas de carvalho e em cascas de bétula. Já que, mesmo depois de séculos, nós ainda não encontramos nenhuma forma satisfatória de conservar as folhas, os poemas precisam ser copiados. No entanto, ao fazer isso é preciso levar em consideração que a escrita e as nervuras das folhas formam uma harmonia que precisa ser compreendida, uma vez que os níveis mais profundos de significado do poema não devem se perder.

Mandred lembrou-se das fadas, criaturas pequenas e travessas que viu nas visitas à Terra dos Albos. Ele não conseguia imaginar qualquer coisa de valor que aquelas tagarelas pudessem ter composto.

Gengalos virou a cabeça na direção dele.

— As aparências enganam, Mandred Torgridson. Ninguém consegue como elas colocar sentimentos ternos em palavras.

O jarl engoliu em seco.

— Você... você vê dentro da minha cabeça?

— Eu preciso saber o que move os visitantes que vêm até aqui. O conhecimento é precioso, Mandred Torgridson. Não se pode entregá-lo a qualquer um.

— Qual é a nossa tarefa? — perguntou Farodin.

— Você e Nuramon vão pegar uma cesta e transcrever os poemas em pergaminhos. Se eu ficar satisfeito com o trabalho, vou ajudá-los na sua busca. Nesta biblioteca encontram-se as respostas para quase todas as perguntas imagináveis, desde que se saiba procurar no lugar certo.

— E quanto a mim? — perguntou Mandred, embaraçado. — Como posso obter o direito de estar aqui?

— Você vai contar a sua vida para um escrivão. Em todas as minúcias. Tenho a impressão de que é uma história que merece ser escrita.

O jarl olhou para o chão, constrangido.

— Então... A minha vida merece ser escrita?

Tinha uma sensação ruim, quase como se alguém quisesse arrancar alguma coisa dele.

— Você não gostaria de agarrar a imortalidade pela cauda, Mandred? Sua história ainda será lida mesmo bem depois de você virar pó. Você não deveria esconder o seu ouro, Mandred. Quem alguma vez já ouviu que dois elfos como Farodin e Nuramon tenham escolhido um humano como você para ser seu companheiro?

Mandred concordou hesitante. Ainda tinha a sensação de entregar algo precioso se contasse sobre a sua vida. Mas quem sabe fosse só medo supersticioso? Ele não podia se colocar no caminho de seus companheiros. Eles já tinham encarado muitas coisas para chegar até ali.

— Negócio fechado.

— Excelente, filho de humanos! Eu agradeço pelo presente que você dá à biblioteca.

As palavras de Gengalos causaram uma sensação boa em Mandred. Como a cachaça que esquentava por dentro em uma noite de inverno.

Agora vou mostrar a vocês os alojamentos. A biblioteca é grande como uma pequena cidade. Uma cidade do saber, construída com livros! Há três cozinhas abertas noite e dia e dois grandes refeitórios. Nós temos até termas em uma das alas distantes. — E, voltando-se para Mandred: — E nós temos uma adega de vinhos muito bem abastecida. Alguns dos guardiões do conhecimento, dos quais faço parte, não veem o ascetismo tão bem assim. Como a mente pode ser livre se mantemos nosso corpo preso por grilhões? Então oferecemos o melhor a cada um dos que estudam conosco.

Na pista de Yulivee

Nuramon ainda não conseguia acreditar que o dschinn de Valemas dissera mesmo a verdade. Mesmo que a saudade de Noroelle o tivesse feito seguir prontamente aquela pista, no fundo ele sempre teve dúvidas se o espírito merecia sua confiança. Mas agora ia ficando claro que tinha feito bem em contar a seus companheiros sobre Iskendria.

Já fazia nove dias que estavam ali. Destes, Farodin e ele haviam gasto cinco só para copiar os poemas das fadas das flores. Desde que começaram, procuravam anotações sobre as barreiras mágicas. Era empolgante ficar remexendo no saber infinito daquelas salas. Nem mesmo Mandred ficava entediado nelas. Ele explorava a biblioteca e saboreava os pratos fartos que lhes serviam nos alojamentos. E a adega de vinhos logo se tornou o seu lugar predileto. De todo o conhecimento reunido, o que interessava a ele eram somente as lendas aegílicas e angnósicas. Para a admiração de Nuramon, Mandred ouviu um centauro recitar os contos em daílico. De fato, era uma língua fácil de aprender em comparação ao élfico, mas Mandred a aprendera, com a ajuda dos centauros da corte da rainha, em apenas um inverno — um êxito para um humano. O jarl havia gostado tanto das lendas de Eras, o Pândrido, e Nessos, o Telaido, que Nuramon o chamava de Mandred, o Tórgrido, de brincadeira, e previa um futuro grandioso para a linhagem dos mândridos.

Farodin se recolhera em uma sala de estudos. Os guardiões do conhecimento destinaram-lhe um ajudante de nome Elelalem, que todos chamavam simplesmente de Elem. Farodin mandava o pobre coitado para todos os cantos da biblioteca para buscar escritos. Como o jovem conhecia todas as línguas necessárias na biblioteca, muitas vezes servia de tradutor. Por um lado, o companheiro queria ampliar seus conhecimentos sobre os feitiços dos portais. Por outro, procurava histórias sobre as barreiras e queria descobrir mais sobre os grãos de areia.

Nuramon continuava achando que os grãos de areia não podiam ser a solução. Era verdade que Farodin já conseguira reunir algumas dúzias deles, mas tinha de haver outra possibilidade. Em vez de procurar naquele lugar do saber por trilhas albas alternativas, Nuramon buscava novas formas. Acabara de voltar, tinha ido apanhar os cavalos na hospedaria os havia entregue aos cuidados de uma elfa que vivia anonimamente entre os humanos. Na cidade diziam que era viúva de um comerciante de posses e, por isso, uma das mulheres mais ricas de Iskendria. Para não ser reconhecida pelos humanos, escondia suas orelhas e rosto sob um véu e se revelava somente aos filhos dos albos. Seu nome era Sem-la. Nuramon perguntou-se como pretendia esconder a longo prazo o fato de que não envelhecia. O véu podia ajudá-la ao longo de uma vida humana. Mas, e depois? Então viria uma sobrinha de uma cidade distante para herdar as suas posses?

Da propriedade de Sem-la um largo corredor subterrâneo conduzia a um portal, pelo qual se chegava à biblioteca. Em lugar nenhum Nuramon ouvira falar de uma proximidade como essa entre os filhos dos albos e os humanos. Sem-la contou a ele que tinha contatos em todo o mundo. Fazia negócios tanto com humanos quanto com outros filhos de albos e suas colônias. Ao ouvir isso, ficou claro pela primeira vez para Nuramon que o mundo dos humanos e o Mundo Partido não eram exílios para onde os filhos de albos iam para ser independentes de Emerelle. Ali se vivia bem, mesmo que as refeições que Sem-la oferecia fossem de alimentos humanos e não chegassem perto daquelas da Terra dos Albos. Mas quem chegava até ali estava habituado ao mundo dos homens.

Por uma escada ampla, Nuramon finalmente chegou ao lugar aonde Gengalos lhe enviara. Era uma sala estreita, muito, muito alta. Tanto à esquerda quanto à direita havia estantes onde descansavam grossos tomos. Nuramon ficou um pouco admirado com isso, pois na Terra dos Albos raramente se confiava o conhecimento aos livros. Os pais ensinavam aos filhos o que precisavam aprender e os sábios contavam o mais significativo. Quando alguém tinha uma pergunta, recorria a alguém que podia respondê-la. Nuramon perguntou-se quantos milhares de animais tiveram que emprestar sua pele para que fossem feitos todos os pergaminhos daqueles volumes.

De um nicho saiu um velho gnomo.

— Você tem vertigem? — perguntou ele com sua voz grasnante.

— Não, não tenho — disse Nuramon.

— Ótimo, então eu não preciso escalar lá para o alto. Já não sou mais tão jovem. — O velho segurava as costas. — Uma vida inteira nesta sala! De fato, isso causa dor, mas veja só como tudo é magnífico aqui! — disse, apontando para cima.

Junto a cada uma das estantes havia pranchas de madeira estreitas que serviam de passagem. Bem no alto, Nuramon viu um vulto. Vestia uma capa longa e parecia estar suspenso ao lado da estante. Entre os móveis, havia grandes nichos na parede; aparentemente era possível entrar e ficar ali para ler. Pedras de barin habilmente posicionadas emprestavam um intenso brilho de fogo à sala inteira.

— O que o traz aqui? — perguntou o velho.

— Gengalos me mandou. Aqui deve haver um livro sobre a elfa Yulivee.

— Ah, mestre Gengalos! Ele o mandou para a sala certa. Aqui não só temos anotações sobre Yulivee, mas também uma coleção dos escritos de Yulivee. Na verdade, eram só contos avulsos, mas no fim os encadernamos em um livro. Talvez isso interesse.

Nuramon mal podia acreditar na sua sorte.

— Com certeza. Onde posso encontrá-lo?

— Você segue aqui até a 23ª estante e então sobe até a prateleira de número 154. Lá você vai dar de cara com os contos de Yulivee. — O gnomo foi até as paredes de estantes. — Suba pelas escadas até ali. Nas pranchas você pode se mexer bem, há tábuas de assento que você pode puxar para se acomodar sobre elas.

Nuramon concordou com a cabeça. A tábua da estante que procurava devia estar mais de cem pés acima dele. Não era uma altura que lhe desse medo. Olhou mais uma vez para a silhueta que vira lá em cima.

— Aquele é mestre Reilif — explicou o gnomo.

— Um guardião do saber? — perguntou Nuramon em voz baixa.

— Sim, ele sempre vem até aqui e insiste em subir ele mesmo até lá. Você precisa saber que eu estou aqui para servir aos ávidos por conhecimento e tenho a obrigação de apanhar qualquer livro que quiserem.

Nuramon sorriu para o gnomo:

— Mas como você mesmo disse: como eu não tenho vertigem, você não precisa fazer esse esforço.

— Obrigado, elfo. E estou contente que você veio até mim. Dizem que na biblioteca há um filho de humanos que está quebrando barreiras. Um cara grande, que só bebe muito, come muito e faz sujeira.

— Ele se chama Mandred, e é um dos meus companheiros.

O velho ficou vermelho.

— Como você se chama? — perguntou Nuramon, tirando seu cinto de armas sob o olhar medroso do velho.

O gnomo claramente temia que ele puxasse a espada.

— Builax — respondeu o velho com voz trêmula.

— Você não precisa se preocupar. Eu conheço meu companheiro muito bem. No momento, a sua avaliação dele está correta. Meu nome é Nuramon. Gostaria de confiar minha espada a você — disse, estendendo a arma a Builax.

O medo desapareceu do rosto do gnomo tão rápido como surgira. Ele depositou a espada em um nicho, junto a seus utensílios de escrita e outros objetos, e então conduziu Nuramon ao longo da parede de livros. Detiveram-se diante da 23ª estante.

— O livro que você procura é o oitavo da fileira.

Nuramon começou sua subida pelos degraus das escadas. Ficou inquieto quando alcançou a prateleira 154. Ali devia estar o livro com os escritos de Yulivee — a chave para Noroelle. Pisou com cuidado na prancha, que oferecia um bom apoio para seus pés e era larga o bastante para se andar sobre ela. Nuramon percorreu com as mãos as lombadas dos livros na prateleira. Puxou o oitavo livro. Era encadernado em couro marrom-claro e, em sua simplicidade, mal se destacava entre os demais. Nem na capa, nem na lombada havia caracteres ou enfeites. Quando abriu o volume, percebeu que também não haviam ornamentos ou páginas decoradas. O título sequer era realçado. Em vez disso, ocupava quatro linhas imediatamente seguidas pelo texto. Nuramon não conteve um sorriso. A aparência do livro não denunciava nada de valioso. Haviam abdicado de tudo que lhe poderia dar qualquer brilho especial. Mas, para Nuramon, ele era de valor inestimável. Leu o título com atenção:


Os contos de Yulivee, que partiu da Terra dos Albos, atravessou o mundo dos homens e fundou no Mundo Partido a cidade de Valemas, ditados por ela mesma na presença do guardião do saber e registrados por Fjeel, o Ligeiro.


Eram a narrativa de uma elfa que foi embora espontaneamente da Terra dos Albos com os seus. Como Nuramon, ela também estivera em busca de algo e também teve de decifrar a magia das estrelas dos albos para atingir o seu objetivo. Nuramon esperava encarecidamente que, com o livro de Yulivee, estivesse iniciando um caminho que lhe desse mais esperanças que a trilha arenosa de Farodin.

Os contos de Yulivee

As perguntas do guardião do saber

Vocês me perguntaram onde eu aprendi a minha magia e eu responderei. Saibam que na Terra dos Albos eu já dominava as práticas do encanto. Eu conhecia o feitiço da luz, da vida e da simulação. E todos esses me foram de grande uso no novo oásis de Valemas. Nós encontramos no Mundo Partido uma terra desértica como no nosso lugar de origem. Ali eu criei um tecido de céu, um lago, uma ilusão e muito mais.

Quando deixei a Terra dos Albos, conduzi meus companheiros por um portal fixo. Naquele tempo, sabia pouco sobre as trilhas e as estrelas dos albos. A viagem é o maior mestre e eu fui uma aluna atenta. Ainda que o mundo dos humanos seja tão desconhecido, muitos filhos de albos vivem em lugares escondidos — eremitas que guardam o velho saber. E nós encontramos outras comunidades que haviam se mudado da Terra dos Albos. Com eles fizemos uma troca: nós os ensinamos o que sabíamos e eles nos instruíam com o seu conhecimento.

Em nenhum lugar aprendi tanto como com o oráculo Dareen. Ele é o único oráculo que já deixou a Terra dos Albos para ir ao mundo dos humanos. Não vive no Mundo Partido. Quem passa pelos seus portões não deixa o mundo dos humanos, mas transporta-se a um lugar distante. Lá pode escutar o que diz a sua sabedoria. Ele me mostrou o caminho e abriu meu espírito para mim mesma. Eu vi a estrela dos albos no deserto, que se tornaria o portal para a nova Valemas. Eu tinha o meu alvo diante dos olhos. E, a partir daí, procurei me aproximar dele. Dareen mudou a minha vida com algumas poucas palavras e imagens. Para mim, abriu-se um mundo de cuja existência eu jamais teria desconfiado antes.

Vocês me perguntam onde encontrar Dareen? Pois bem, eu não posso revelar mais do que já disse. Estou comprometida com um juramento.

Fonte: Tomo 23/154/8, folha 424.a da sala estreita na biblioteca oculta de Iskendria

Caminhos diferentes

Era isso o que Nuramon estava procurando! Foi com prazer que leu os contos de Yulivee, mas somente as perguntas do guardião do saber o fizeram esbarrar em algo que indicava um caminho direto. O oráculo Dareen permitira a Yulivee ver o lugar que procurava. Exatamente o mesmo podia acontecer a ele e seus companheiros se encontrassem o caminho até Dareen! Se o oráculo os recebesse, então estariam perto do alvo em sua busca por Noroelle!

Nuramon soltou um pequeno grito de alegria. Então ouviu passos e um rangido na escada que passava pelo nicho onde tinha se recolhido com o livro.

Era mestre Reilif quem se aproximava. O guardião do saber saiu da escada até o nocho de Nuramon. Parte do seu rosto estava coberta por um capuz, e das mangas de sua capa negra saíam somente as pontas de seus dedos. Por sua silhueta esguia, poderia ser um elfo. Aproximou-se com passos curtos.

— Perdoe-me por minha explosão de alegria, mestre Reilif — disse Nuramon. — Não queria atrapalhar o silêncio da biblioteca.

— Para essa atitude, há uma punição — respondeu o guardião do saber com uma voz que não demonstrava qualquer emoção. Sentou-se diante de Nuramon e puxou o capuz um pouco para trás, revelando seus olhos cinzentos que pareciam penetrar em Nuramon. — Você precisa me contar o que o agitou dessa forma.

— Farei isso com prazer. E talvez você possa me ajudar. — Nuramon contou de bom grado ao guardião do saber tudo que tinha lido de Yulivee. Terminou seu relato com as palavras: — Mas o que me deixou contente foi ter encontrado o que procurava.

— E o que foi? — perguntou Reilif pacientemente.

— Eu descobri que Yulivee esteve com o oráculo Dareen. E agora queria encontrar esse oráculo. Pois tenho muitas perguntas... Perguntas para as quais não consigo respostas.

— Então você reconhece que estas salas abrigam o conhecimento morto que só pode ser trazido de volta à vida se alguém acolhê-lo dentro de si. Aqui você descobriu sobre Dareen. Agora precisa procurar o seu caminho até ela.

— Yulivee não disse onde o oráculo fica.

— Mas eu posso dizer a você. Eu sou um guardião do saber. Já li muitos livros desta sala. Também os de Yulivee.

Nuramon se perguntava por que Reilif o ouvira tão pacientemente se já conhecia a história de Yulivee.

— Naquela época, ficamos todos curiosos e queríamos saber onde o oráculo se escondia. Mas Yulivee não quis nos dizer. Ela fez algumas alusões que nos levaram à suspeita de que devia estar em Angnos. Mas não podíamos dizer com certeza. Aqueles que enviamos para encontrá-lo voltaram sem conseguir nada.

— Angnos! — disse Nuramon em voz baixa.

Seus companheiros e ele já haviam estado naquele reino, pois a busca por Guillaume os levou até lá. Era uma terra árida e cheia de aventuras.

— Agradeço a você, mestre Reilif.

O guardião do saber se ergueu.

— Você encontrará o oráculo. Tenho certeza. Lembre-se das seguintes palavras que Yulivee disse certa vez: “Você veio até nós. A sua voz veio. Você nos mostrou as estrelas. Elas brilhavam. Nós pudemos ver”. Ela disse isso quando lhe perguntamos se não queria nos revelar algo sobre Dareen. Decifre as palavras dela se puder.

Com essas palavras, Reilif deixou o nicho e subiu para a sua estante. Nuramon perguntou-se que idade o guardião do saber devia ter. De suas palavras, pôde concluir que ele conheceu Yulivee; nos livros, porém, constava que a elfa chegara àquela biblioteca 1.832 anos mais cedo.

Pensativo, Nuramon passou os dedos sobre a encadernação de couro do livro e, por fim, colocou-o de volta em seu lugar. Lançou um último olhar a Reilif, mas o mestre já estava de novo diante de sua estante, afundado em um livro. Nuramon desceu a escada, agradeceu ao gnomo e pegou sua espada de volta. Observou mais uma vez a sala estreita — era a de que mais havia gostado de todas as salas da biblioteca. Talvez retornaria ali um dia. Noroelle com certeza iria gostar dela.

Nuramon pôs-se a procurar Farodin. Encontrou-o em sua sala de estudos. O pequeno Elem estava lendo em voz alta alguma coisa em daílico. Mandred estava sentado em um canto sobre algumas almofadas e ouvia a narrativa. Era sobre as Ilhas Aegílicas e os elfos que ali viajavam para o mar. Nuramon apoiou-se na parede e ouviu o jovem:

— O fim do cerco ainda não estava à vista. Podia ser que não conseguissem quebrar as muralhas invisíveis. Só quando os doze feiticeiros cercaram a ilha em doze navios é que os moradores de Zeolas passaram a ter medo. Eles sabiam que doze feiticeiros poderosos seriam capazes de derrubar o poder de suas muralhas mágicas, mesmo que os cacos do espelho não fossem reunidos. Os feiticeiros, então, ergueram as mãos, disseram suas palavras mágicas e a muralha inimiga rompeu-se com um forte trovejar. Assim foi inevitável a queda de Zeolas. — Ele fez uma pausa. — Isso é tudo o que está escrito aqui.

— Muito obrigado, Elem — disse Farodin. — As outras anotações leremos mais tarde. — E voltando-se para Nuramon: — Nós descobrimos muitas coisas. Há várias referências que indicam que não precisamos de todos os grãos de areia para quebrar o feitiço de Emerelle.

— O destino está a nosso favor — completou Mandred, sem fazer menção de se levantar de seu confortável lugar.

Nuramon esperou até o rapaz deixar a sala. Então desencostou-se da parede e foi em direção a Farodin.

— Eu também tenho boas notícias, que podem nos levar adiante.

Mandred se levantou.

— Conte! — disse ele.

Nuramon relatou com o que se deparara no livro de Yulivee. Enquanto repetia as palavras de mestre Reilif, percebeu que Farodin o escutava sem muito interesse. Em contrapartida, com Mandred, que andava inquieto para lá e para cá, trocou olhares inequívocos. Ainda assim, mesmo o oráculo pareceu não entusiasmar os dois.

Quando Nuramon terminou, o silêncio se instaurou. Finalmente, Farodin disse:

— Mandred e eu descobrimos muitas coisas. Nós nutrimos a esperança de que não precisamos de todos os grãos de areia para quebrar o feitiço de Emerelle. Assim que tivermos reunido grãos de areia suficientes, eles nos levarão ao lugar onde está o portal de Noroelle. Também descobri escrituras que me ajudarão a aperfeiçoar o meu feitiço de busca. Por que deveríamos nos deter com Yulivee? Ela e Valemas já ficaram para trás. Nós já chegamos muito mais longe. E agora você nos diz que devemos dar meia-volta e tentar um outro caminho.

O ponto de vista de Farodin não causou surpresa a Nuramon. Quando viu os rostos entediados de seus companheiros, ficou claro o que estava por vir. Farodin estava acostumado a dar ordens e não tolerava qualquer contestação.

— Em outras palavras, vocês não gostaram do caminho que abri para nós — Nuramom concluiu, decepcionado.

— Não vejo nenhum caminho.

— Até aqui a minha trilha era boa o suficiente para vocês.

— E o que quer dizer com “sua trilha”? Até agora não dei nenhum passo de que não estivesse convencido. E assim vai continuar.

— O meu caminho poderia ser um atalho. Digo francamente: os seus grãos de areia não são a solução do enigma. Nós precisamos percorrer outros caminhos para salvar Noroelle. Você se esqueceu do deserto? É um mundo de areia. Você já esteve no mar e já mergulhou a cabeça na água? Viu do que o fundo do mar é feito? Eu prefiro fazer dez viagens para chegar ao oráculo que vagar sem rumo pelo mundo, recolhendo grãos de areia aqui e ali.

— Eu sei — disse Farodin. — Seguir um caminho até o fim nunca foi o seu forte.

Nuramon ficou sem fala. Ele entendera totalmente a alusão, mas que culpa tinha ele pelo destino de seus antepassados? Ele não pedira para carregar a alma deles. Pouco sabia sobre eles, mas uma coisa era certa: todos morreram jovens e nunca viram o luar. Jamais esperara que Farodin ferisse os seus sentimentos em vez de tentar convencê-lo com argumentos.

— Você sempre pensou assim de mim e ficou guardando isso até agora?

— Na minha opinião, você é alguém que está fazendo um caminho muito longo até o luar.

— E o que o luar tem a ver com a nossa busca? — intrometeu-se Mandred na briga que eclodia entre os elfos.

Farodin ergueu as mãos pedindo calma.

— Você tem razão, filho de humanos. Não é esse o nosso assunto agora. Mas, no que diz respeito ao oráculo, não estou pronto para trocar o certo pelo duvidoso. Você se perguntou alguma vez se esse oráculo já não partiu para o luar há muito tempo? Quanto tempo já passou desde que Yulivee esteve lá?

Nuramon permaneceu calado.

— O seu silêncio diz tudo. Você está confessando que não existem respostas para as minhas perguntas. Eu digo: vamos continuar no caminho que já percorremos até agora. Assim, mais cedo ou mais tarde vamos alcançar o nosso objetivo.

— Eu prefiro a incerteza do mais cedo à certeza do mais tarde! O oráculo tem o conhecimento que vai nos ajudar a seguir adiante.

— Então vamos supor que você encontre o oráculo e ele responda às suas perguntas. O que ele pode nos oferecer que não podemos encontrar aqui nestas salas?

— Olhe em volta, Farodin! Por mais que eu estime tanto este lugar, para mim está claro que o conhecimento abrigado aqui é do passado; o conhecimento daqueles que não podem mais transmiti-lo a nós com sua própria voz. Mas precisamos é do conhecimento do presente e do futuro. Precisamos tomar Yulivee como um exemplo para nós.

Farodin cruzou os braços na frente do peito.

— Será que você perdeu o interesse em Noroelle, e em vez disso prefere seguir a pista de Yulivee?

Nuramon cerrou os punhos.

— Será possível que você esteja tão cego? O que você mais devia saber é o quanto essa sua repreensão é absurda! Mas... Pensando melhor, essa cegueira é da sua natureza. Você só vê o que quer. Está claro para você que o nosso cortejo a Noroelle poderia ter acabado anos mais cedo?

Poderia... Essa é uma palavra que está sempre na boca dos fracassados — retrucou Farodin friamente.

— E você não acha que fracassou no seu amor por Noroelle? Assumiu o papel do trovador perfeito, mas nunca compreendeu o que Noroelle realmente esperava. Ela queria que você falasse do seu amor com suas próprias palavras, e não por meio de canções escritas por outros. De mim ela esperava que eu também a tocasse com as mãos além das palavras. O que acha? Por que eu demorei tanto?

Os cantos da boca de Farodin tremiam.

— Eu o observei, Farodin. E me perguntava o que havia de errado com você. O que esconde na sua essência mais profunda? O que é isso que o impede de se abrir até para a mulher que você acredita amar? No fim, será que por trás de todas as palavras emprestadas se esconde um coração vazio? Que tipo de amor é esse que não é possível dizer como realmente é?

Farodin pôs a mão sobre a espada:

— Você está bem em cima de um limite que nenhum de nós quer ultrapassar.

— Farodin, nós já ultrapassamos nossos limites há muito tempo. Você acha mesmo que vou seguir um homem que não é capaz de amar?

Mandred agarrou Farodin pelos ombros e puxou-o para trás. O filho de humanos claramente estava convencido de que a qualquer momento sangue seria derramado.

— Basta, Nuramon! — disse firmemente.

— Tenho a impressão de que nossa união chegou ao fim — disse Farodin, com a expressão petrificada.

— Já chegou há muito tempo. Nós só estávamos nos recusando a reconhecer isso até agora.

Nuramon voltou-se para o filho de humanos:

— E você, Mandred? Qual é o seu caminho?

O jarl hesitou.

Nuramon não pôde evitar lembrar da caverna de Luth, quando Mandred e ele se tornaram amigos. A partir de então fora sempre muito ligado ao filho de humanos.

— Desculpe, Nuramon. Eu sei o quanto estou em dívida com você. E, ainda por cima... Eu não sou muito bom em expressar meus sentimentos e pensamentos em belas palavras. Mas Farodin tem razão. Eu acho que é melhor seguir o rastro de areia. Pode ser um caminho longo, mas certamente nos levará ao nosso objetivo. Eu sinto muito mesmo... Eu... — A voz de Mandred desapareceu.

Então estava sozinho de novo...

— Não preciso de compaixão. Sou eu quem sente muito por vocês. Então sigam o seu caminho miserável, e procurem os seus grãos de areia! Eu vou tomar o meu próprio caminho.

— Não seja tolo, Nuramon! — disse Mandred com um gesto apaziguador. — Nós somos como um barco. Eu sou o casco, Farodin é o leme e você é a vela que agarra o vento.

— Será que você não entendeu, filho de humanos? Eu não preciso de mais ninguém para me impor o caminho. A tempestade arrancou a vela de vocês. Agora vejam até onde vão conseguir chegar remando com as próprias mãos!

Com essas palavras, Nuramon deixou a sala.

O diário de bordo da galera Vento púrpura

34º dia da viagem:

Abrigados nas ilhas de Iskendria, esperamos pelos barcos de carga de Sem-la. Os remadores tiveram tempo para se recuperar. Como combinado, embarcamos uma caixa de vidro do deserto, um retrato de mármore e dez peças de tecido fino de Iskendria. Mas ninguém nos avisara que também teríamos de levar passageiros conosco: um elfo da Terra dos Albos chamado Farodin e um humano, aparentemente do norte, de nome Mandred. Sem-la assumiu os custos das passagens. Os dois claramente não possuem ouro, mas fora isso estão bem equipados. Só os dois cavalos da Terra dos Albos já valem uma fortuna.

35º dia da viagem:

Trajeto lento a norte-noroeste. Calmaria e sol forte. Os remadores se cansaram rápido. O humano que levamos a bordo é admiravelmente instruído. Sabe muito sobre o mar e rema como três homens, por ter muita força nos braços. Foi proveitoso para o Vento Púrpura, sobretudo porque fala daílico e pode ajudar na negociação com os centauros de Gygnox. Talvez desta vez deveríamos arriscar atracar em Gygnox. O filho de humanos fala o tempo todo sobre velhas lendas que ouviu em Iskendria e sobre as terras do fiorde bem ao norte. Se ele soubesse dos mares que já navegamos!

36º ao 38º dia da viagem:

Mar tranquilo. Tripulação satisfeita. Curiosidade perante o filho de humanos.

39º dia da viagem:

A tripulação está bem-disposta. Vento sul, clima ameno. Estamos fazendo uma boa viagem. Os remadores podem se poupar por termos progredido mais rápido que o esperado. À tarde: espetáculo diante de nós no mar. Cruzamos a rota de um navio de humanos, uma galera aegílica. Então apareceu uma enorme serpente do mar. Os humanos fizeram o que todos os sabichões fazem: deram no pé! Como esperado, a serpente do mar os seguiu e destruiu o navio como se não fosse nada mais que um pequeno barco de pescador. Trouxemos a bordo os poucos sobreviventes.

Uma hora mais tarde a serpente do mar apareceu novamente. Emergiu a menos de 15 metros a estibordo. Os humanos salvos ficaram fora de si; muitos deles lançaram-se ao mar. Aqueles tolos não sabiam que é preciso ir em direção a uma serpente do mar para intimidá-la. Essas feras só caçam quem tem medo delas. Então fomos na direção da serpente. Mandred foi o único dos humanos a não demonstrar medo. Ele agarrou um arpão e correu com ele até a proa. Ordenou que atacássemos a cobra. Quando a besta finalmente submergiu e fugiu nadando, o filho de humanos ficou decepcionado. Ficou praguejando contra ela. Todos nós rimos, porque ele praguejava em daílico. Soava quase como um centauro...

45º dia da viagem:

Entramos em águas rasas e atravessamos os bancos de areia diante da cidade humana de Jilgas, navegando cuidadosamente. Ali deixamos na costa os sobreviventes do ataque da serpente. Antes do pôr do sol vamos ancorar na frente de Gygnox. Talvez seja mesmo possível persuadir o filho de humanos...

51º dia da viagem:

Graças a Mandred, bons negócios com os centauros de Gygnox. A única coisa de um centauro que o filho de humanos não tem é o corpo de cavalo. Ele bebeu e cantou músicas grosseiras com eles. Depois disso, eles negociaram conosco com boa vontade. Chamou a atenção o fato de Mandred e Farodin encontrarem um portal para a Terra dos Albos mas não quererem atravessá-lo. Será que estão banidos?

53º dia da viagem:

Partida. Mar calmo, remadores bêbados. Filho de humanos no tambor! O elfo da Terra dos Albos parecia se sentir mal. Talvez sejamos um pouco brutos para elfos. O que o tempo no mundo dos humanos faz com um elfo! À noite: Farodin surpreendeu-se com meu diário de bordo atualizado. Quem se relaciona com Iskendria aprende logo a apreciar a escrita! O elfo da Terra dos Albos pediu que fizéssemos uma alteração na rota. Contou de algo que queria apanhar no fundo do mar. Como não era um grande desvio e ainda fiquei curioso, consenti.

55º dia da viagem:

Chegada ao lugar buscado após pesado trajeto a remo. Tripulação cansada e insatisfeita. Não entendem mudança na rota. Quanto a Farodin: as águas são profundas demais para ele. Foi corajoso, mas não conseguiu chegar ao fundo. Então me ofereci, pois domino um feitiço da água e do ar. Mas Farodin disse que eu não conseguiria encontrar o que ele procura. Então mergulhamos juntos e, de tempos em tempos, eu lhe dava ar. No fundo do mar algo estranho: meteu a mão na areia e fez um sinal para subirmos. Lá em cima abriu a mão cheia de areia. Nela procurou algo: um único grão! Confesso que pareceu haver algo de mágico nele...

57º dia da viagem:

Tempestade inesperada! Precisamos lutar. No fim: nenhum ferido, só pequenos consertos, sem perder nenhuma carga. Uma tempestade do bem...

67º dia da viagem:

Na costa da cidade humana de Tilgis, a oeste de Angnos. Significa adeus. O filho de humanos e o elfo da Terra dos Albos foram um bom reforço para nós. Tentei convencê-los mais uma vez a seguir conosco, mas foi em vão. Que perda! Teria gostado de apresentar ao meu soberano principalmente Farodin. O único consolo foi o bom negócio que fiz com o elfo. Ele trocou quatro pedras de barin por 400 denares angnósicos...

78º dia da viagem:

Chegamos ao estreito marítimo de Quilas e passamos pelo portal. À noite: chegada a Reilimee.

Mercadorias descarregadas. Fim da viagem. 78 dias, uma boa marca.

Registrado pela elfa Aranae, capitã do Vento púrpura, no ano 1287 após a fundação de Reilimee

Pátria perdida

Mandred estava nervoso como um adolescente a caminho do festival do solstício de verão, quando queria dançar com sua amada e tudo mais... Esporeava sua égua, impulsionando-a a subir a encosta levemente inclinada. Cerca de três anos já deviam ter se passado desde a última vez que esteve em Firnstayn. As muitas viagens haviam confundido sua noção do tempo, de forma que não conseguia estimar exatamente quanto tempo fazia desde que se despediu de Alfadas. Será que seu filho já havia sido eleito jarl?

Era um outono dourado, como daquela vez que Mandred deixou Firnstayn. A melhor época para pescar.

Bafejando, a égua chegou ao cume da colina. Dali se tinha uma vista ampla sobre o fiorde. Até Firnstayn ainda havia mais de um quilômetro. Mandred fez sombra sobre os olhos com a mão, e piscou contra o sol baixo no céu. O que havia embaixo dele era uma pequena cidade. Uma muralha sólida, de pedra e com torres atarracadas cercava a colônia. Ancoradouros esticavam seus braços bem longe, fiorde adentro. Cerca de vinte navios grandes estavam atracados ali. A margem era debruada por armazéns e, em cima da colina, onde um dia esteve a casa de Erek, estava erguido um pavilhão de pedra à altura de honrar um príncipe. Será que errara o caminho nas montanhas?

Desnorteado, Mandred olhou para o rochedo íngreme coroado pelo círculo de pedras. Aquele era o penhasco, e ali embaixo devia estar a sua aldeia. De nada adiantava tentar se enganar.

Mandred teve a sensação de que uma mão invisível apertava sua garganta. Engoliu com dificuldade. Agora Farodin também alcançara o topo da colina. O elfo refreou seu cavalo castanho e olhou em silêncio para o fiorde lá embaixo.

— Nós... nós devemos ter ficado longe muito tempo — irrompeu Mandred hesitante.

Fechou os olhos e pensou no tempo que passou com Alfadas, nos poucos anos que esteve com o filho. Como se tivesse sido ontem, lembrou-se de como eles remaram no fiorde no barco de Erek e de como Alfadas, travesso, jogou-o na água. Pensou no salmão de dez quilos que ele apanhou, que era maior que qualquer peixe que seu filho já fisgara no anzol. Eles se embebedaram juntos, assaram o salmão na brasa e o comeram com pão duro.

Quantos anos Alfadas teria agora? Quanto tempo teria demorado para que a pequena aldeia tivesse se tornado aquela cidade? Vinte anos? Quarenta anos?

Tinham vindo do oeste, atravessando as montanhas desertas, e há semanas não viam mais nenhuma alma viva. Ninguém que contasse ao redor da fogueira novidades e velhas histórias. Se tivesse sido assim, talvez estivesse preparado... Mandred mordia o lábio de baixo e tentava desesperadamente dominar seus sentimentos, que ameaçavam vencê-lo. Os elfos tinham avisado sobre o perigo de viajar pelos portais. Depois da experiência na caverna de gelo, ele devia saber...

Mas daquela vez eles tinham sido carregados pelo tempo por um feitiço maligno do devanthar! Farodin e Nuramon aprenderam a dominar os portais. Como isso podia ter acontecido?

Tomado pela inquietação, conduziu a égua colina abaixo. Precisava ir até Alfadas! Qual seria a aparência de seu filho? Será que tinha filhos? Talvez até netos?

Sem serem parados pelos guardas, atravessaram o portão da cidade, muito bem fortificada. Devia ser dia de feira. As ruas estavam cheias de humanos. Por todos os lados havia barracas espremidas bem perto das casas. Um magnífico aroma de maçãs preenchia o ar. Mandred tinha apeado e conduzia sua égua pelas rédeas. Fitava fixamente o rosto de todos que vinham em sua direção, procurando traços conhecidos.

Mesmo as roupas das pessoas tinham mudado durante o tempo de sua ausência! Quase todos ali vestiam bons tecidos. A atmosfera que reinava era de festa. Firnstayn se tornara rica. Mas ele já não conseguia mais se orientar ali. Nenhuma das casas que ele conhecera estava de pé.

Por fim, Mandred não suportou mais a dúvida e parou um homem de cabelos grisalhos. O velho vestia uma camisa branca com bordados coloridos nos ombros. Uma pesada corrente pendia de seu pescoço, com cabeças de cavalo de prata na ponta, identificando-o como alguém importante.

— Onde eu encontro o jarl Alfadas? — perguntou Mandred, nervoso. — O que aconteceu aqui?

O velho franziu a testa. Apertou um pouco os olhos azuis, tentando entender que piadista era aquele que tinha diante de si.

— Jarl Alfadas? Não conheço nenhum jarl com esse nome.

— Quem manda nesta cidade?

— Você está vindo de muito longe mesmo, guerreiro. Você nunca ouviu falar do rei Njauldred Klingenbrecher[5]?

— Rei? — Mandred quase engasgou. — Um rei governa Firnstayn?

— Não zombe de mim! — ralhou o velho, irritado, já querendo ir embora quando Mandred o segurou pela manga.

— Olhe para mim! Você já me viu alguma vez?

Mandred abanou a cabeça, de forma que as tranças finas acertaram seu rosto.

— Eu sou Mandred Torgridson, e vim em busca de meu filho Alfadas.

Ao redor deles algumas pessoas pararam. Alguns homens tocaram suas espadas, claramente prontos para intervir caso o estranho importunasse ainda mais o velho. Este último, contudo, havia ficado lívido. Se visse um fantasma provavelmente não pareceria mais assustado.

— Mandred Torgridson — repetiu inexpressivamente.

O nome foi ouvido pelos que estavam em volta. Como uma chama sobre um rastro de pólvora, ele correu pela multidão e logo estava na boca de todos.

— É certo que você veio buscar a elfa ferida — irrompeu finalmente o velho. — Ela está na casa comunal do rei. Ele mandou chamar curandeiros e bruxos de muito longe...

— Eu estou aqui por causa de Alfadas, meu... — Farodin pousou a mão em seu ombro, apaziguador.

— De que elfa vocês estão falando?

— Os caçadores a encontraram no desfiladeiro de Larn. Estava mais morta que viva. Eles a trouxeram à cidade do rei porque ninguém era capaz de ajudá-la. — O velho apertou os olhos. De repente estendeu a mão e passou-a pela face de Farodin. — Você é... Quero dizer, vocês são... Vocês também são...

— Onde encontramos a sala do rei? — perguntou Farodin, cortês porém determinado.

O ancião fez questão de guiá-los pessoalmente pela cidade. Em algum lugar da multidão alguém gritou:

— O jarl Mandred voltou!

Com isso a aglomeração e o alvoroço ao redor deles tornou-se ainda maior. Alguns somente encaravam Farodin e ele embasbacados. Outros tentavam tocar Mandred, como se quisessem se convencer de que não era um espírito. Finalmente chegaram à colina onde ficava a sala do rei. Uma escada larga, ladeada por estátuas de leões, conduzia para cima até o trono do soberano. Só quando os dois começaram a subir os degraus a multidão ficou para trás.

Mandred sentia-se dividido entre sentimentos conflitantes. Ficou aborrecido que o velho não tivesse lhe contado nada sobre Alfadas. Por outro lado, também estava orgulhoso. Ele era famoso! Todos na cidade pareciam conhecer o seu nome. Certamente havia cantos heroicos sobre sua luta contra o homem-javali!

Estavam quase chegando ao salão da corte quando Mandred virou-se e olhou para a praça. Todos lá embaixo pareciam estar olhando para ele. Cada um dos comerciantes estava imóvel.

O jarl puxou o machado e esticou o braço para o céu.

— Minhas saudações ao povo de Firnstayn! Aqui está Mandred Torgridson, que retornou para visitar seus herdeiros!

Brados de júbilo vieram de encontro a ele, que saboreava a gritaria e o entusiasmo. Quando finalmente se virou, um vulto robusto o aguardava no fim da escada, um guerreiro de barba selvagem e vermelha, onde se aninhavam largas mechas grisalhas. Um séquito de homens jovens e bem armados o cercava.

— Então você diz ser Mandred — disse o guerreiro mais velho de forma desafiadora. — E por que deveria acreditar?

O jarl pousou a mão sobre o machado. Sua vontade era de inculcar um pouco de respeito naquele sujeito. Então não conteve um sorriso. A cabeça-dura do velho... Devia ser coisa de família. Sem dúvida...

— Vocês não terão dificuldades para reconhecer Mandred Torgridson, já que ele viaja na companhia de um elfo — intrometeu-se Farodin, puxando seus longos cabelos louros para trás, para que todos pudessem ver melhor suas orelhas pontudas.

O rei franziu a testa. De repente, parecia sério, admirado como se tivesse acabado de receber uma notícia terrível.

Mandred permaneceu ali em pé como se petrificado. Se esse velho homem ali em cima fosse seu neto, então Alfadas já devia estar morto havia muito tempo.

— Você é Faredred ou Nuredred? — perguntou educadamente o rei.

— Farodin — respondeu o elfo.

Mandred sentiu seus joelhos começarem a tremer. Tentava se manter firme e imóvel, mas já não tinha mais domínio de si.

— Alfadas — disse baixo. — Alfadas.

O rei desceu a escada e envolveu Mandred com os braços. Novamente soaram na praça gritos altos de júbilo.

— O que você tem? — perguntou Njauldred em voz baixa.

Mandred sacudiu a cabeça.

— O que houve com Alfadas?

O rei passou um braço sob os ombros de Mandred para ampará-lo. Para todos os outros deve ter parecido um gesto de amizade.

— Vamos conversar na minha sala, não aqui.

Subiram devagar os últimos degraus. Os portões da sala do rei estavam bem abertos. O interior era iluminado pela clara luz de tochas, que se refletia nas colunas guarnecidas de ouro. Bandeiras capturadas pendiam do teto alto. Na outra ponta do átrio, havia um trono de madeira escura sobre um pedestal.

Aquele luxo surpreendeu Mandred. Nem mesmo o átrio dourado de Horsa Starkschild era tão impressionante. Uma das paredes era enfeitada com escudos grandes como portas e com machados de pedra que pareciam pesados demais para terem sido feitos para mãos humanas.

De trás de uma das colunas apareceu uma mulher ruiva e jovem. Trajava um vestido longo de couro de antílope, totalmente enfeitado com ossículos, penas e amuletos de pedra.

— Senhor, ela não vai durar até o pôr do sol. Não há nada que possamos fazer.

— Então tragam uma maca. Nós a levaremos lá em cima até o círculo de pedras. Mandred e seu companheiro Faredred vieram para buscá-la.

— Ela também está fraca demais para isso. Mesmo sobre uma maca e envolta em cobertas quentes ela não resistirá à subida do rochedo. É um milagre que ela tenha sobrevivido por tanto tempo.

— Levem-me até ela — exigiu Farodin. — Imediatamente!

O rei consentiu. Então, a mulher do vestido de couro tomou Farodin pela mão e levou-o embora.

Mandred encostou-se em uma das colunas. A visão da sala o fizera esquecer por um instante de sua fraqueza.

— Alfadas? — perguntou suplicante, com os olhos fixos nas mechas grisalhas da barba do rei.

Njauldred bateu palmas e fez um gesto amplo para seu séquito.

— Tragam hidromel e dois chifres de beber. E então me deixem sozinho com o meu antepassado!

Antepassado! Algo em Mandred se encolheu.

Os jovens guerreiros se retiraram. Uma criada trouxe os dois chifres de beber e deixou um grande jarro de barro com hidromel. Eram belos chifres, circundados por largas faixas douradas.

— Há quanto tempo Alfadas está morto? — perguntou Mandred com a voz afônica.

— Beba! — foi só o que Njauldred respondeu. — Eu vou responder a todas as suas perguntas.

Mandred pousou o chifre. O hidromel era doce e ao mesmo tempo forte. Delicioso. Quando Mandred encheu mais um chifre, Njauldred esclareceu a ele sem rodeios que era o décimo primeiro rei das terras do fiorde da linhagem de Alfadas. Pousou a mão no ombro de Mandred tentando consolá-lo, e começou a contar:

— Pouco depois de você deixar Firnstayn, Alfadas tornou-se jarl e, em poucos anos, ascendeu à nobreza da corte. Tornou-se homem de confiança do rei e de seus generais em tempos de guerra. Alguns anos se passaram e, pouco depois dos festejos de um solstício de verão, um elfo veio a Firnstayn e pediu a ajuda dele. Um exército de trolls invadira a Terra dos Albos e tudo ia muito mal para os elfos. Alfadas aconselhou-se com o rei e com o príncipe das terras do fiorde, e por fim formou o maior exército jamais visto no norte. Eles atravessaram por um portal aberto pelos elfos e lutaram lado a lado com centauros, duendes e elfos. A guerra continuou por muitos anos. Quando finalmente os trolls foram expulsos da Terra dos Albos, eles começaram a atacar cidades e aldeias nas terras do fiorde. Conquistaram Gonthabu e assassinaram o rei e toda a família dele. Pouco depois, Alfadas cercou os saqueadores no fiorde de Göndir e os presenteou com uma amarga derrota. Ainda no campo de batalha, o nobre Alfadas foi proclamado o novo rei. Juntamente com seus aliados elfos, expulsou os trolls para o norte. Alfadas tornou Firnstayn capital, porque ao mesmo tempo tem um portal para a Terra dos Albos e fica tão ao norte que a fronteira para os trolls é próxima. Desde esses tempos há uma aliança entre os elfos da Terra dos Albos e os homens das terras do fiorde.

— E o que aconteceu com o meu filho? — Mandred quis saber. ansioso.

— Ele morreu como herói. Alfadas caiu em uma emboscada e foi morto por trolls que roubaram o seu cadáver. Mas seu amigo elfo Ollwyn trouxe o corpo sem vida do rei de volta e vingou de forma sangrenta o seu assassinato. Alfadas foi sepultado em Firnstayn. Ao lado de sua mãe, sob o Carvalho de Mandred, ele encontrou sua última morada.

Amargura e orgulho — esses eram os sentimentos conflitantes que agora comoviam Mandred. Como gostaria de ter passado mais uma vez algumas semanas despreocupadas com Alfadas, como daquela vez que vieram juntos a Firnstayn! Ele ergueu seu chifre de beber em direção ao teto.

— Que você possa encontrar para sempre um lugar de honra à mesa dos deuses, ao lado de Luth — sussurrou.

Então derramou um pouco do seu hidromel em homenagem ao deus e esvaziou o seu chifre.

— Com certeza ele terá seu lugar de honra nessa mesa — disse o rei.

Njauldred se levantara e apontava para uma coluna dourada. No ouro estavam presos largos painéis com personagens, exibindo guerreiros sobre cavalos. Njauldred apontou um cavaleiro enfiando sua lança no ventre de um gigante.

— Está vendo? Este aqui é o seu filho, quando ele matou o príncipe troll Gornbor. — O rei apontou para cima na longa sala. — Em quase todas as colunas você encontrará uma imagem de Alfadas. Seus feitos heroicos são inúmeros. Ele cavalgou muitas vezes com o elfo Ollwyn para caçar os espiões dos trolls. Ao mesmo tempo, ele é nosso orgulho e nossa maldição, pois a partir dele mais ninguém pôde concorrer com seu heroísmo.

— Vocês ainda lutam contra os trolls?

— Não. Há muito tempo a paz reina aqui. Às vezes, quando um barco é empurrado bem para norte por uma tempestade, os pescadores veem no meio da névoa um dos grandes navios trolls. Às vezes, no inverno, alguns caçadores também encontram pegadas de trolls na neve. Mas as lutas acabaram. — O rei lançou um olhar sério a Mandred: — Por que você veio, Mandred Torgridson?

— Queria abraçar Alfadas, meu filho, mais uma vez.

O rosto do rei ficou sombrio.

— Deve estar claro para você que nenhum humano vive por séculos. Diga-me o verdadeiro motivo para estar aqui.

O tom de voz do rei soou quase como hostil.

— Quando se viaja com elfos, o tempo passa mais lentamente. Para mim, parece que só três ou quatro anos se passaram desde meu último encontro com Alfadas. Olhe para mim. Ainda sou jovem, Njauldred, mesmo que seja pai de Alfadas.

O soberano acariciou a barba, pensativo.

— Vejo que a sua dor pela morte de Alfadas é genuína, então quero acreditar em você. Porém, a sua chegada a Firnstayn mergulhou-me em grande inquietação.

Mandred estava admirado e também um pouco irritado.

— Eu não aspiro a seu trono, Njauldred.

— Eu o entregaria a você, se quisesse tê-lo — retrucou o rei, nervoso. — Trata-se da sua saga. Alfadas também sempre falou sobre isso.

— O quê?

— Dizem que você retornaria ao seu povo em um momento de grande urgência. Não estamos vivendo nenhum perigo, Mandred. Então me pergunto o que está por vir. Primeiro, encontramos uma elfa muito ferida, depois de ninguém ter visto sequer um elfo em todo o reino por mais de trinta anos. E então você vem com um companheiro elfo tão belo e inacessível como um mensageiro da morte. Minhas preocupações são profundas, Mandred. Será que haverá uma nova guerra dos trolls?

O jarl abanou a cabeça.

— Não acredito nisso. Não tenho nenhum conflito com trolls. Nunca vi um deles na vida.

Njauldred apontou para a imagem de Alfadas e Gornbor.

— Eles são horríveis. Dizem que um deles é tão forte quanto dez homens. Fique contente por jamais ter encontrado um. Um homem sozinho não consegue sair vitorioso contra um troll. Só Alfadas conseguia.

— E quanto a essa elfa? De onde ela vem?

O rei deu de ombros.

— Ninguém sabe dizer. Está gravemente ferida, como se um urso a tivesse atacado. Quando foi encontrada, estava quase congelando. Tinha febre alta e falava dormindo, mas não a entendíamos. Espero que seu companheiro seja um feiticeiro poderoso. Só uma magia forte poderá salvá-la. Minha filha Ragna é uma curandeira talentosa. Ela acabou com as dores da elfa e fez a febre baixar. Mas os ferimentos não querem fechar há semanas. Está ficando cada vez mais fraca. Ragna teme que ela morrerá ainda esta noite. Mas agora o seu companheiro está lá.

Mandred queria que fosse Nuramon quem estivesse sentado junto ao leito da elfa. Ele seria capaz de trazê-la de volta até dos átrios dourados dos deuses. Mas Farodin... O elfo louro era um guerreiro, não um curador.

— Você pode me levar até a elfa?

— Claro. — O rei o encarou com olhos arregalados. — Você também é um curandeiro?

— Não — Mandred sorriu. — O rei devia pensar que quem pudesse sobreviver aos séculos era capaz de tudo.

Eles deixaram a sala do trono e adentraram uma ala lateral. Mandred ficou admirado com as tapeçarias artisticamente tecidas que adornavam as paredes de pedra. Njauldred subiu com ele uma escada estreita até um corredor de onde saíam várias portas. Uma pira rasa afastava o frio que se instalara nos muros de pedra. Diante da última porta estavam um guerreiro e a jovem do vestido de couro que Mandred já vira na sala solene.

Ragna abriu os braços num gesto de desamparo.

— Ele não deixa ninguém entrar. No começo podíamos ouvir sua voz. Mas agora o quarto já está em silêncio há muito tempo.

— E houve aquela luz — disse o guerreiro respeitosamente. — Por que não conta sobre ela, Ragna? Uma luz prateada saía por debaixo da porta. E o cheiro era estranho. Como o de botões de flores.

— E depois disso não veio mais nenhum som do quarto? — perguntou o rei.

— Nada — confirmou o guarda.

Mandred aproximou-se da porta.

— Você não deveria fazer isso — disse Ragna. — Ele disse muito claramente que não toleraria ninguém no quarto. Nas sagas dos escaldos, os elfos são mais educados.

O jarl empunhou a maçaneta.

— Ele me tolerará ao seu lado. — Certeza absoluta ele não tinha. — Mas nenhum de vocês deve vir atrás.

Mandred entrou e fechou imediatamente a porta atrás de si. Estava num pequeno quarto no sótão. Grande parte do cômodo era tomada pelo leito. Uma bela tapeçaria estava estendida nas vigas do telhado. Mostrava uma cena de caça com javalis. O quarto cheirava a flores.

Em cima da cama havia uma grossa coberta de lã e várias peles de ovelha. Havia uma pequena concavidade no colchão. Farodin estava ajoelhado diante da cama, com o rosto escondido entre as mãos. Mandred não via a elfa em lugar algum. E não havia local no pequeno quarto onde ela pudesse estar escondida.

— Farodin?

O elfo ergueu a cabeça lentamente.

— Ela partiu para o luar. Ela esteve viva até cumprir o seu destino, que era transmitir a notícia.

— Você quer dizer que ela morreu?

— Não, não é a mesma coisa. — Farodin levantou-se. Seu rosto era inexpressivo. — Agora ela está onde todos os filhos dos albos vão um dia. O seu fardo ela deixou comigo.

Ele puxou a espada e testou a lâmina com os polegares.

Mandred nunca presenciara seu companheiro com um humor como esse. Não se atrevia a falar com Farodin. Uma gota de sangue correu pelo fio da espada do elfo.

— Trolls! — disse Farodin finalmente, depois de um longo silêncio. — Trolls. Houve uma guerra contra eles, que já está terminada há muitos anos. Já no final da guerra, eles capturaram um grande veleiro. Quase trezentos elfos estavam a bordo. Eles foram raptados e aprisionados. Alguns deles ainda estão vivos. Yilvina está entre eles.

— Yilvina? A nossa Yilvina?

Mandred lembrou da jovem e loura elfa. Com suas duas espadas curtas ela sempre lhe parecera invencível na luta. Como era possível que tivesse sido presa?

— Yilvina e meia dúzia de outros. Sim. Eles ainda estão vivos, mesmo depois de mais de dois séculos na prisão. Orgrim, o comandante dos trolls, simplesmente ficou com eles, mesmo que haja paz há muito tempo. — Farodin apontou para a cama vazia. — Shalawyn escapou deles. Eles a acossaram como um animal selvagem. Ela queria voltar à Terra dos Albos para avisar Emerelle.

— Devemos agora mudar de plano para levar a notícia dela à Terra dos Albos? — para Mandred era desconfortável a ideia de ter de se apresentar novamente à rainha.

Farodin limpou o sangue de sua espada com a coberta e empurrou-a de volta para a bainha.

— Não faria sentido. Emerelle mandaria um mensageiro à corte do rei dos trolls para perguntar sobre os prisioneiros. Ele então pediria explicações ao duque Orgrim e o general negaria convictamente o fato de ainda manter elfos prisioneiros. Agora não há mais nenhuma testemunha viva disso. Se Emerelle insistisse que Orgrim estaria mentindo, poderia ser o bastante para desencadear uma nova guerra contra os trolls. A rainha não correrá esse risco. Então tudo ficaria como está.

— Então Shalawyn fugiu em vão.

— Não, filho de humanos. É necessário que os trolls paguem pelo que estão fazendo com os prisioneiros. Ela me contou tudo.

Mandred recuou um passo. Havia algo no olhar de Farodin que o advertia a ter cuidado.

— O que... O que eles estão fazendo?

— Não pergunte! Só de uma coisa você precisa saber: o duque Orgrim vai pagar com sangue! Vou encontrar o caminho até ele e fazê-lo arrepender-se do que fez.

O enigma do portal

Lentamente Nuramon pisou em uma trilha alba, na frente de seu cavalo Felbion. Podia sentir como o poder da trilha era atraído por uma estrela alba. A esperança de finalmente chegar ao oráculo Dareen o preenchia. Várias vezes seguira por trajetos errados. Os humanos de Angnos não eram capazes de distinguir feitiços de ilusões e o que chamavam de oráculo não era nada mais que uma farsa. Lá não descobriu nada que ele mesmo ainda não soubesse. Desde essas experiências decepcionantes, Nuramon estava procurando por um velho oráculo que estivesse calado havia muito tempo ou que não concedesse acesso a mais ninguém.

O caminho de Iskendria a Angnos e a viagem pelo reino haviam sido cansativos. Ele circulou por cidades e aldeias e mostrou-se somente para viajantes solitários e ermitões. Ninguém achava que fosse um elfo. Vestia um capuz que cobria suas orelhas e parte do rosto. Sua voz ainda era de elfo, mas que humano já ouvira um elfo falar alguma vez? Certamente achavam que era um viajante misterioso de uma terra distante, o que de certa forma era verdade.

Durante suas viagens, memorizou o curso das trilhas dos albos. Logo conhecia tantas delas em Angnos que já arriscava pular de uma estrela para outra, sem trocar de mundo. Admirou-se como fazia isso com facilidade. O feitiço era o mesmo; só era necessário escolher uma trilha que não deixasse o mundo em que estava. Mesmo assim, ainda não tinha obtido sucesso.

Havia pouco tempo, estava percorrendo uma região cujas trilhas eram novas para ele. Fazia dias que não via mais nenhum humano. Mas encontrava sinais de filhos de albos. Reconhecia-os em intervenções que só mãos de elfos conseguiriam executar. Em alguns lugares, a vegetação lembrava a da Terra dos Albos e a fertilidade incomum daquela região o fazia suspeitar que, em algum lugar dali, houvesse uma nascente mágica semelhante à de Noroelle. Todos esses sinais estavam ligados à natureza rala e selvagem, que naquele solo pedregoso normalmente só produzia pouco verde.

Pensando no deserto, ele se perguntou se não fora secretamente injusto com este mundo. O mar de areia mostrou-lhe que também havia paisagens no mundo dos humanos que eram de grande beleza.

A trilha alba, cujo poder ele sentia sob seus pés, conduzia a uma subida lenta, diretamente para o alto de uma montanha. Ela não seguia, contudo, ao cume da montanha, então podia ser que passasse diretamente através do rochedo.

Quando Nuramon já tinha deixado a subida para trás e estava bem diante do paredão de pedra onde a trilha desaparecia, perguntou-se se o oráculo que buscava não podia estar no interior da montanha. Ele deixou a trilha e pôs-se a contornar o monte ao lado de Felbion. Enquanto isso, procurava uma caverna ou uma passagem oculta que levasse para dentro do rochedo. Cruzou mais duas trilhas albas que igualmente desapareciam na montanha. Quando deparou com a quarta trilha, na qual podia sentir o conhecido fluxo de energia, não teve mais dúvidas de que as trilhas cruzavam-se em uma estrela alba em algum lugar na rocha.

Na metade do caminho ao redor da montanha, Nuramon encontrou uma trilha que continuava além do rochedo. Devia ser aquela que o conduziu até lá em cima, cruzando a estrela e então seguindo seu curso pelo mundo. Ele seguiu a trilha de volta até bem perto da montanha, mas ficou desapontado ao encontrar um paredão maciço de pedra em vez da entrada de uma caverna.Concentrado, examinou a rocha. Alguma coisa brilhava à luz do sol! Foi ao encontro do brilho. Depois de alguns passos, viu: alguém incrustara pedras preciosas no paredão! Não sabia o que o deixava mais surpreso: o fato de as pedras preciosas serem grandes como maçãs ou de há muito não haverem sido roubadas.

À esquerda, havia um diamante encaixado bem fundo no paredão; à sua direita, um rubi, partido mas ainda incrustado no seu nicho de rocha. Ao lado havia um cristal, no qual havia linhas escuras que coloriam a pedra de negro. Parecia ser um cristal de rocha no qual estavam engastados minerais escuros. Embaixo do rubi estava presa a última pedra preciosa. Era uma safira.

O rubi era o centro da figura. Estava ligado às outras pedras preciosas por um sulco na rocha de um dedo de profundidade. Como estava partido, Nuramon primeiro suspeitou que alguém tivesse tentado soltar a pedra do rochedo, sem sucesso. Mas então censurou-se por sua suspeita, pois sentiu que bem à frente dele cruzavam-se sete trilhas albas. A pedra preciosa estava partida em sete lugares. O rubi era uma estrela alba! Cada ponto quebrado correspondia a uma trilha.

À esquerda, ao lado do diamante, e à direita, perto do cristal de rocha, havia caracteres esculpidos na pedra. Os que estavam perto do diamante ele conseguia ler, pois estava escrito em élfico: “Cante a canção de Dareen, filho do sol! Cante a sabedoria dela, com sua mão na luz! Cante as palavras que um dia você disse, e então entrem lado a lado”.

O oráculo! Tinha passado por tantas trilhas e procurado por tanto tempo. E agora... Nuramon pensava no que podia ser a canção de Dareen. Então, ocorreram-lhe as palavras que mestre Reilif, o guardião do saber trajado de preto, dissera a ele em Iskendria. Foram as palavras de Yulivee.

Ele pousou a mão sobre o diamante e cantou: “Você veio até nós. A sua voz veio. Você nos mostrou as estrelas. Elas brilhavam. Nós pudemos ver”.

De repente o diamante reluziu. Uma luz ofuscante percorreu o sulco na direção do rubi, penetrou nele e o fez brilhar. Em seguida, logo abaixo uma luz vermelha irradiou do rubi em direção à safira. Quando o feixe vermelho de luz a encontrou, saíram faíscas. A luz vermelha não conseguia penetrar na pedra preciosa.

Quando Nuramon soltou a mão do diamante, a torrente ofuscante de luz entre o diamante e o rubi desvanceu-se; o mesmo aconteceu com o fluxo vermelho entre o rubi e a safira.

A parte esquerda do enigma estava desvendada.

Nuramon observou a inscrição ao lado do cristal de rocha. Era desconhecida para ele. De fato, suspeitou conhecer a língua, até achou possível que fosse alguma das faladas na Terra dos Albos, mas a escrita era feita só de poucos sinais, todos muito complicados e difíceis de memorizar. Era esse o verdadeiro enigma.

Pousou a mão sobre a pedra preciosa e cantou novamente as palavras de Yulivee. Nada aconteceu. Voltou mais uma vez à inscrição em élfico. Ela lhe dizia que devia entrar lado a lado com alguém. A canção também se referia a nós. Quem quer que fosse esse outro, deveria poder ler a escrita estranha e tinha de tocar a pedra preta enquanto entoasse a canção. Talvez fosse por isso que a canção era tão curta: por ser só um pedaço de algo maior. Mas um pedaço ele tinha de cantar, e o outro, o seu companheiro. Mas de quem poderia se tratar? Talvez de um humano?

Nuramon observou o todo que a imagem diante dele formava. O rubi era a estrela, diziam que a safira era a pedra da água e das nascentes. Aqui com certeza representava uma fonte de conhecimento, portanto, Dareen, o oráculo. O diamante era o símbolo dele ou de alguém como ele. Era a pedra da luz. “Você, filho do sol”, constava diante dele na parede. Mas se ele era filho do sol, então a outra inscrição devia se referir a um filho da noite. O cristal de rocha não era conhecido como pedra da noite, mas a teia negra que havia nele poderia ter relação com isso.

De repente, Nuramon teve uma inspiração. Ele era um filho de albos, ali era designado como filho do sol. Nos tempos antigos, os elfos também foram chamados de filhos de albos da luz. Da sua casa no carvalho ele conseguia ver as montanhas nas quais um dia os filhos de albos das trevas viveram. Um filho de albos das trevas! Era quem ele precisava encontrar para abrir este portal junto com ele.

Os filhos de albos das trevas passaram da Terra dos Albos para o Outro Mundo havia muito tempo, para procurar um novo lar. Havia algumas histórias a respeito deles, mas que aos poucos caíram no esquecimento. Os sábios diziam que a distinção entre albos da luz e albos das trevas não fazia sentido e que era necessário esquecê-la, assim como o povo a que se referia o conceito de filhos de albos das trevas. Não era possível, contudo, apagar totalmente a lembrança dos filhos de albos das trevas e os rumores a seu respeito. Alguns afirmavam que eles eram malignos e que, nos tempos antigos, houve muitas lutas contra eles. Não suportaram o esplendor da Terra dos Albos e, por isso, teriam ido para esse mundo sombrio. Outros diziam que eram inofensivos se não provocados e que tinham partido para o Outro Mundo para criar algo novo lá. Os mais velhos se calavam, embora só eles conhecessem a verdade. Então, os filhos de albos das trevas permaneciam um mistério.

Onde ele deveria procurar esse povo misterioso? Como o portal para Noroelle, eles podiam estar em qualquer lugar deste mundo. Nuramon suspirou. Era como se tivesse retornado ao ponto de partida. Podia prosseguir em sua busca somente de uma maneira: ao modo dos elfos. Ele procuraria o povo perdido e Noroelle. Em algum momento encontraria um dos dois. E talvez isso resultasse em alguma pista nova em que ele ainda não havia pensado. Só uma coisa estava fora de cogitação: voltar até Farodin para segui-lo por sua trilha de areia!

A ira de Farodin

Mandred não era um homem medroso, mas a forma como Farodin se transformou o deixou assustado. O que se escondia nos abismos da alma do elfo? Após todos aqueles anos ele pensou conhecer o seu companheiro. Ledo engano! Depois que o elfo ouviu o relato de Shalawyn, algo obscuro cresceu nele. Não! Pensando melhor, agora estava certo de que essa essência sombria sempre estivera lá. Farodin é que aprendera a ocultá-la. Mas agora algo havia despertado, algo que fazia Farodin se esquecer até da busca pelos grãos de areia.

O elfo solicitara a ele que pedisse permissão ao rei Njauldred Klingenbrecher para usar um dos armazéns dos barcos. Também pediu a ajuda de alguns criados experientes, que foram concedidos generosamente. Passou as semanas seguintes exclusivamente no armazém, construindo um barco como Firnstayn jamais vira. Tratava os criados quase como escravos, de tão duro que os fazia trabalhar. Eles praguejavam contra ele, mas também admiravam sua capacidade. Nunca Farodin mencionara conhecer a arte da construção naval. Mas, afinal, quanto é possível aprender quando sua própria vida dura séculos?

Em apenas dez semanas, um barco pequeno e estreito foi construído. Sua quilha fora cortada de um único tronco de carvalho, que o próprio Farodin escolhera nas florestas ao norte da cidade, assim como as hastes que formavam o esqueleto do casco. A vela era feita do mais fino linho, reforçada com cordas atadas no formato de uma rede. O barco media cerca de cinco metros de comprimento, mas não mais que um metro na sua parte mais larga. Quando foi lançado ao mar, os moradores de toda Firnstayn se reuniram para admirá-lo. Era esguio e tinha um belo formato. Suas tábuas se sobrepunham umas às outras como Mandred nunca vira em outro barco.

Quando Farodin explicou ao rei e seu séquito que no dia seguinte se lançaria em sua busca, ninguém pôde acreditar no que ouvia. Deixar o fiorde no inverno velejando para o norte era loucura pura. Tanto fazia a qualidade do navio: nada nem ninguém sairia vitorioso contra as tempestades e o gelo.

Essa intenção era tão maluca que ninguém esperava que Mandred seguisse o elfo. Recusar essa viagem não tinha nada a ver com falta de lealdade a um irmão de armas. Mas o filho de humanos sentia-se preso a Farodin. Ele, Mandred Torgridson, não era aquele guerreiro invencível que os escaldos cantavam quando pronunciavam seu nome. Também não realizara aqueles feitos heroicos que lhe atribuíam em todo lugar. Mas talvez a verdade e os cantos à sua saga pudessem se fundir em uma só vida se ele seguisse Farodin agora.

O rei Njauldred abasteceu o navio com as melhores provisões. Carne de urso, ótima para recuperar forças após uma luta; roupas de peles de lontra, que repeliam a água gelada; e um barril com óleo de cachalote, que, se aplicado sobre a pele, protegia contra o frio. Mandred sabia que o companheiro não temia o frio, mas se alegrava por si mesmo de saber que o barril estaria a bordo.

Njauldred convidou-os a sua sala real e fez uma festa em sua honra. Mandred sentia-se como convidado em uma celebração fúnebre. Embora os escaldos se esforçassem, a atmosfera não era de animação. Farodin deixou o festejo ainda cedo. Estava tão mergulhado em seus pensamentos que saiu para a noite sem se despedir.

Mandred também se retirou logo. Não queria precisar suportar o olhar triste de Ragna, filha de Njauldred, por mais tempo; além disso, não ousava mais se embebedar na noite anterior à partida para uma aventura audaciosa.

O vento frio do norte fez sua capa esvoaçar quando saiu do salão da corte. Um ruído de algo raspando o fez escutar com atenção. Não havia lua no céu. As estrelas escondiam-se atrás das nuvens. Mais uma vez, aquele ruído. Vinha dos leões de pedra que ladeavam a escada para a sala do rei. O que se ouvia era como se eles raspassem inquietos com as patas contra os degraus da escada.

Uma sombra saiu do degrau mais baixo. Mandred gritou para o vulto, mas não recebeu resposta. Como a fumaça que brotava dos frontões das casas comunais, o vulto desapareceu na noite como se nunca houvesse existido. O guerreiro baixou a mão para o machado em seu cinto. Desceu lentamente os degraus da escada. Além do vento, que passava com um uivo sob os telhados, não se ouvia mais nenhum ruído.

Não é nada, pensou Mandred acalmando a si mesmo. Foi até a casa que um dos filhos de Alfadas mandara erguer para ele. Quando abriu a porta com um solavanco, o fogo queimava no fogão a lenha. Fumaça e um calor agradável preenchiam a sala. Não se via Farodin. Talvez tivesse descido para o armazém do barco. Apesar do frio, ele passou a maioria das noites lá.

Mandred tirava sua capa quando um barulho o fez ficar imóvel. Alguém estava ali. Ouvira um leve farfalhar da palha do nicho de dormir. Uma mão branca puxou a cortina de lã grosseira. Era Ragna, a filha do rei! Suas bochechas estavam vermelhas. Não conseguia olhar Mandred nos olhos.

— Não é o que você está pensando — balbuciou ela. — Eu... Eu pensei que o elfo tinha chegado.

Eu me escondi ali. Acendi o fogo para que fique aquecido nesta noite difícil. — Ela olhou para a porta.

— Obrigado, Ragna — respondeu Mandred, acanhado.

Ela era linda. Tinha a pele branca como leite. Sardas pálidas decoravam o seu rosto. O cabelo ruivo estava preso em pesadas tranças. Ragna descendia da linhagem de Alfadas, mas Mandred não conseguia reconhecer nenhum traço de seu filho no rosto dela.

— Você precisa mesmo velejar com ele? — perguntou, tímida.

— É uma questão de honra!

— Para o inferno a tal da honra! — Seu acanhamento desapareceu. A fúria se refletia em seus olhos. — Você não vai voltar de lá. Ninguém volta do Pico da Noite!

Mandred resistia ao olhar dela. Seus olhos tinham o verde-claro das mudas de pinheiro. Tinham um pedaço da primavera preso neles.

— Já estive em muitos lugares dos quais diziam que as pessoas não voltariam — disse ele, vaidoso.

— Como dois homens querem vencer centenas de trolls? Se quer morrer, você pode se jogar agora mesmo do penhasco no mar, seu... — Assustada, ela ergueu a mão na frente da boca. — Não quis dizer isso. Eu...

— Por que é tão importante para você que eu continue vivo?

“E por que minha vida significa tão pouco para mim?”, acrescentou Manred em pensamento. “Porque fui empurrado para fora do tempo? Porque vivo embora os meus ossos já devessem estar apodrecendo há séculos no túmulo?”

— Você é o homem mais imponente que eu já conheci. Não é como os rapazinhos petulantes da corte de meu pai. Cada centímetro seu é de um herói.

Mandred sorriu.

— Antes eram os homens que cortejavam as mulheres.

Ragna ficou muito vermelha.

— Não foi isso que eu quis dizer... Eu... É que... — Ergueu as mãos sem ter o que fazer. — É que, para mim, não é indiferente que amanhã você veleje a caminho da ruína.

— E você faria tudo para que eu ficasse?

Ela empurrou o queixo para a frente e encarou-o, desafiadora.

— Isso você vai ter de descobrir por você mesmo. Afinal, os tempos não mudaram tanto assim.

Filhos de Albos das trevas

Nuramon respirou fundo. O caminho íngreme pelo desfiladeiro tinha sido cansativo. Felbion o seguira com alguma distância, e agora caminhava bem ao seu lado. Caminhavam entre árvores e neve. Diante deles havia uma descida abrupta para um vale amplo. As montanhas ao redor causavam em Nuramon um sentimento de familiaridade. Podia ser que fossem semelhantes às de sua terra, mesmo que não pudesse reconhecer de forma evidente qualquer traço comum. Talvez seu instinto fosse mais refinado que sua visão.

Na sua busca pelos filhos de albos das trevas, ousara penetrar nas cidades dos homens e vasculhar sua sociedade para espreitar suas histórias. Sempre escondeu bem as orelhas, de forma que todos sempre o tomaram por um guerreiro do oeste distante. Os homens tinham outros nomes para os albos das trevas, e contavam entre si que eles procuravam suas vítimas entre os moradores das montanhas e arrastavam-nos para vales sombrios e cavernas para, então, devorar sua carne.

Nuramon seguira as trilhas dos albos até as montanhas. Aquela região parecia tudo menos sombria e, nessa altura, o ar era quase tão puro quanto na Terra dos Albos.

Durante a descida para o grande vale, Nuramon pensou em Noroelle. Ao longo da viagem, passara por duas estrelas albas cujas trilhas estavam seladas. Tentara usar seus poderes nelas, mas não conseguiu quebrar as barreiras mágicas. Talvez até já houvesse estado no portal de Noroelle! Perguntava-se como poderia reconhecer o portal que levaria até sua amada. Não sabia a resposta. Só a esperança no oráculo o impedia de se desesperar.

Logo a trilha tornou-se mais larga e também menos íngreme, de forma que o elfo pôde voltar a cavalgar Felbion. Enquanto trotavam, pensou no tempo que havia podido passar com Noroelle. A lembrança era tão poderosa que acabava com qualquer dúvida que ele nutria em seu íntimo. Ele a encontraria um dia e a libertaria, com ou sem Farodin.

De repente, Felbion parou. Nuramon olhou em volta. Ouviu um leve farfalhar de folhas na moita à sua esquerda, e à direita algo se moveu nas sombras das árvores.

— Quem é você? — gritou uma voz de homem na língua dele, embora com um sotaque estranhamente áspero.

Nuramon sequer virou a cabeça para o lado, só deslizou a mão até a espada.

— Direi isso com prazer a você e seus companheiros se vierem ao meu encontro como filhos de albos honrados, e não como ladrões maltrapilhos.

— Essas são palavras grandiosas para alguém que está perturbando a calma deste vale — retrucou a voz. — Você é um elfo.

— E como vocês ainda estão na sombra das árvores e aparentemente têm medo dos raios do sol, suponho que sejam filhos de albos das trevas.

Nuramon sabia que era uma suposição ousada. Mas, se não estava com a razão, o fato de mencionar esse nome ao menos intimidaria filhos de albos que fossem hostis.

Não obteve resposta. Por um bom tempo, nada aconteceu. De repente, o barulho voltou. Nuramon agarrou mais forte a espada. Quando viu as silhuetas que saíram da mata e das sombras das árvores, soltou os dedos da arma, admirado.

Eram oito homenzinhos. Tinham barbas longas e deviam chegar no máximo até o seu peito, embora tivessem constituição realmente forte. Cinco deles carregavam machados nas mãos; outros dois traziam espadas montantes, e o outro, uma besta. Seriam esses filhos de albos das trevas?

Cada um dos homens baixos e troncudos vestia uma pesada armadura de metal e um cinto onde ficavam enfiadas mais armas, como punhais, espadas curtas e facas. Essa comunidade sem dúvida estava preparada para combates.

Um dos homens se aproximou. Parecia ser o mais jovem.

— De onde você conhece os albos das trevas? E quem contou sobre os filhos deles? — perguntou o homem que se acercara.

Nuramon reconheceu que a voz era a mesma que falou com ele de dentro da floresta.

— Ouvi falar deles diante dos Iolídens.

As pequenas figuras trocaram olhares admirados.

— Você viu os Iolídens? — perguntou o chefe.

— Com os meus próprios olhos.

O elfo lembrou-se de todas as horas que passou sentado à janela de sua casa, olhando para as montanhas azul-acinzentadas.

— Você não devia acreditar nele — disse o arqueiro. — Está mentindo! Só quer ganhar tempo para nos enfeitiçar.

Nuramon percebeu que o arqueiro mirava sua cabeça e tentou disfarçar sua tensão.

— Vamos, deixe-me atirar nele!

— Calma! — gritou o chefe, erguendo a mão. E voltando-se novamente para Nuramon: — Seja bem-vindo a Aelburin. Meu nome é Alwerich e esses são meus companheiros. — E apresentou cada um deles.

— Meu nome é Nuramon.

— O que o traz a este vale? — perguntou Alwerich.

— Estou procurando filhos de albos das trevas... e informações sobre o oráculo Dareen.

— Os filhos dos albos das trevas você já encontrou. E no que diz respeito ao oráculo, você certamente encontrará em nosso reino todas as respostas que pudermos oferecer a você.

— Isso soa muito hospitaleiro.

— Com certeza. Somos conhecidos por nossa hospitalidade.

Nuramon tinha uma resposta na ponta da língua, mas conteve qualquer palavra afiada.

— Agora siga-nos — disse Alwerich.

— Só mais uma pergunta, por favor.

— Vá em frente, elfo!

— Se vocês são filhos de albos das trevas, então digam-me como estão andando por aí à luz do sol. Não vivem na escuridão?

Alwerich sorriu.

— E vocês, elfos, vivem à luz do dia, mas eu também o vi passear à noite.

Nuramon ficou envergonhado em dobro. Não reparara em Alwerich durante a noite. Além disso, tinha de ter contado com essa resposta dele. Tinha demonstrado fraqueza.

— A propósito, ficaríamos agradecidos se você nos chamasse de anões — continuou Alwerich.

Anões! Os velhos contos narravam sobre seres que eram chamados de onões ou gronões. Eram mestres da mineração e já viveram na Terra dos Albos, debaixo da terra ou nos rochedos. Que os anões eram os filhos de albos das trevas nem sequer passara pela cabeça de Nuramon.

O arqueiro finalmente baixou a arma e avançou com seus companheiros. Nuramon os seguia montado em Felbion, a passos calmos. Como cavalgava um pouco atrás deles, percebeu que os anões sempre olhavam para trás, desconfiados, e que a distância que mantinham não era por causa dele, mas por Felbion. Podia ser que os anões estivessem com medo de um cavalo?

O pico da noite

Lá estava de novo o som raspante e metálico. Mandred não precisou se virar para saber de onde vinha o ruído. Farodin estava de pé na popa. Tinha o timão preso sob a axila direita; havia puxado um punhal e agora afiava sua lâmina. Desde que deixaram Firnstayn, já fizera isso dezenas de vezes. O barulho dava nos nervos de Mandred. O rangido era ameaçador. Um som que jurava de morte.

Ragna tinha razão. A terra bem ao norte não era feita para humanos. Era apropriada para elfos, trolls e espíritos, mas ali ele estava no lugar errado!

O cordame do pequeno barco estava coberto de gelo. A vela, também congelada, rangia de encontro ao vento. Há sete dias seguiam paralelos à costa em direção ao norte. Mandred lembrou com saudades dos dias no Vento Púrpura, no mar aegílico, do calor e de como se esticava sob o para-sol no meio do dia para cochilar.

Olhava à frente na meia-luz da noite de inverno, procurando icebergs. Silenciosos e ameaçadores, os gigantes brancos iam em direção ao sul. Farodin o alertara sobretudo quanto aos blocos menores, que ficavam quase escondidos na água e podiam danificar seriamente o casco do barco. Os pensamentos de Mandred vagueavam. Estava cansado e pensava em Firnstayn. Lá as mulheres com certeza já começavam os preparativos para as celebrações do solstício de inverno. Os gansos eram cevados para que ganhassem um pouco mais de gordura nos últimos dias. O hidromel era posto para descansar em grandes tonéis e o aroma dos bolinhos de mel certamente pairava por toda a cidade.

O jarl tirou uma das luvas e meteu a mão no barril de óleo de cachalote, já endurecido pelo frio. Apanhou um pedaço e segurou-o um pouco na mão para que derretesse. Então aplicou no rosto e limpou os dedos na pesada jaqueta de pele de foca. Maldito frio!

Impiedoso, Farodin fazia o barco avançar. Só raramente eles ancoravam no abrigo do vento oferecido pelos rochedos ou por alguma baía protegida, para dormir algumas horas. O elfo e o gelo que os cercava pareciam ter se tornado um só. Como se estivesse paralisado, ele ficava em pé junto ao timão, olhando para longe. O punhal ele acomodara na trouxa que descansava atrás dele na popa. Às vezes, Mandred se perguntava se era de fato a mesma arma que Farodin ficava afiando. Não combinava com o elfo ficar fazendo sempre a mesma coisa sem qualquer sentido. Mas talvez essa ação refletisse a sua inquietação, que fora isso ele sabia esconder muito bem.

Mandred olhou para cima e observou o céu para se livrar daquela ruminação que não servia de nada. Estavam tão ao norte que o sol não aparecia mais. Era a luz verde das fadas que se estendia de horizonte a horizonte. Como pedaços de tecido franzido, ela ondeava sobre as cabeças deles. Mandred não tinha muito o que fazer. Farodin poderia conduzir o barco mesmo sozinho.

Muitas vezes o jarl sentava-se na proa e ficava horas olhando a luz no céu. Ela o consolava naquela imensidão deserta de mares revoltos e abrolhos negros. O vento varava-lhe os ossos enquanto sonhava ali sentado.

Geleiras altas como torres margeavam a costa. Certa vez, Mandred viu ao longe uma avalanche de gelo despencar no mar e revolver a água. Outra vez pensou ter visto uma serpente do mar.

No nono dia de viagem, Farodin ficou agitado. Haviam adentrado um fiorde. Dedos cinzentos de névoa rastejavam em direção a eles sobre a água. Mandred estava de pé na proa e devia tentar ver recifes escondidos. A água estava calma. Logo a névoa os havia engolido. Bem próximo se podia ouvir o som baixo da rebentação.

Farodin parecia já ter estado ali alguma vez. Sabia das depressões antes mesmo que Mandred o alertasse com um grito.

Uma sombra gigantesca surgiu diante deles do meio da neblina. Primeiro Mandred achou ser um rochedo, mas então viu uma luz fraca. Um odor rançoso tomou conta do ar. A névoa agora estava bem quente, e se condensava na barba do humano.

De repente, uma voz rouca rasgou o ar. Era grave como o ronco de um urso enfurecido. Farodin sinalizou para que não se mexesse e pôs um dedo sobre os lábios. Em seguida, respondeu no mesmo tom, em uma língua gutural que Mandred nunca ouvira.

Uma saudação rápida soou de volta e então a sombra desapareceu. Farodin continuava num silêncio tenso. Uma eternidade pareceu passar. A névoa privava Mandred de qualquer noção de tempo. Finalmente, o elfo acenou-lhe com a cabeça.

— Logo vamos chegar ao Pico da Noite. Há nascentes quentes aqui no fiorde. Elas o mantêm sem gelo por todo o inverno. Elas também são as culpadas pela névoa que esconde a montanha dos trolls. Você sabe como tem de se comportar?

Mandred fez que sim com a cabeça. O que devia acontecer no Pico da Noite foi o único tema de conversa que Farodin tolerou durante a viagem. O que não queria dizer, contudo, que tivessem discutido sobre os planos do elfo. Mas ele confiava em seu companheiro. Farodin sabia o que estava fazendo!

Involuntariamente, o jarl pousou a mão sobre o machado em seu cinto. Lembrou-se dos conselhos de Farodin para a luta contra os trolls e das histórias que ouvira na infância. Os trolls eram caçados em grupos, assim como os ursos das cavernas. Um homem sozinho não era capaz de vencê-los. Mas então pensou em seu filho. Alfadas correra em auxílio aos elfos na Terceira Guerra dos Trolls. Saíra vitorioso de várias batalhas sangrentas contra esses monstros. Mas, no fim, ele foi mesmo morto por eles, Mandred alertou a si mesmo. Acariciou a lâmina do machado. Mais um motivo para vir até ali!

A névoa se dispersava. Na frente deles surgiram rochedos escarpados. Farodin apontou para um deles que lembrava vagamente a cabeça de um lobo.

— Veja! É o Pico da Noite. Lá há uma caverna que não pode ser vista do fiorde. Foi onde escondi meu barco da última vez.

— Então você já esteve aqui.

O elfo concordou.

— Há mais de quatrocentos anos. Naquela ocasião, matei o duque dos trolls, o comandante deles, que chefiou os exércitos dos trolls durante as campanhas na Terra dos Albos.

Esse era Farodin! Só transmitia seu conhecimento no último momento!

— Você bem que podia ter me dito isso antes! — resmungou Mandred.

— Por quê? Isso teria mudado alguma coisa na sua decisão?

— Não, mas eu...

— Então era desnecessário que você soubesse. Aliás, há mesmo uma mudança no nosso plano. Você vai sozinho ao Pico da Noite.

O queixo de Mandred caiu.

— O quê?!

— Eles jamais me admitiriam em sua corte. Sabe como eles me chamam? Morte noturna. Eles me matarão assim que me virem. Então você pode ver que é inevitável que parta sozinho. Vou encontrar um outro caminho para a montanha. Como um suposto enviado, você está submetido, em contrapartida, às leis da hospitalidade. Não podem fazer nada com você enquanto não violar essas leis. Eles tentarão, porém, induzir você a isso. Resista, não importa o que eles façam!

— E por que eles me receberiam como um enviado? Um humano! Eles devoram os meus semelhantes!

Farodin ajoelhou-se e abriu a trouxa que guardava na popa. Mostrou a Mandred um galho de carvalho embrulhado em linho fino.

— É por isso que eles vão recebê-lo. Este é um galho de uma árvore com alma. Só mensageiros da rainha carregam este símbolo. Eles são intocáveis.

Admirado, Mandred apanhou o galho e envolveu-o de novo no tecido.

— Ele é de verdade, não é? Onde você conseguiu?

Farodin ficou claramente desconfortável com a pergunta.

— Ele cresceu de uma bolota de Atta Aikhjarto. Espero que me perdoe pelo meu ato. Nós precisamos dele.

— Você o arrancou da árvore sobre o túmulo de Freya?

— Ela me deu permissão. Ela sabe para que vamos precisar do ramo.

Mandred se perguntou se Farodin se referia à árvore ou ao espírito de Freya. Suas mãos começaram a tremer. Prendeu-as sob as axilas. Farodin devia ter percebido o tremor.

— Frio maldito — queixou-se o jarl. Não queria fazer papel de covarde.

— Sim — Farodin concordou. — Até eu estou com frio. Pense em Yilvina. O que estamos ousando fazer vale a pena por ela e pelos outros.

O barco contornou uma rocha alta como uma torre no fiorde. Agora estavam indo em linha reta até a ribanceira. O elfo manobrou habilmente para passar entre os rochedos. Então eles deitaram o mastro. Mandred agarrou os remos e opôs-se à força da maré. Bem à frente deles, oculta entre as pedras, abria-se a entrada plana de uma caverna.

— Só é possível encontrar a caverna na maré baixa! — gritou Farodin competindo com a força das ondas. — Na maré intermediária, a entrada já fica escondida sob a água.

Só de pensar em ir a uma caverna que claramente já ficava embaixo d’água na cheia, o estômago de Mandred se encolheu. Farodin sabia bem o que estava fazendo, avisou a si mesmo em pensamento. Mas, desta vez, isso não ajudava a vencer sua inquietação.

Precisaram baixar a cabeça, de tão baixa que era a entrada. Uma onda agarrou o barco e o arrastou para a frente. Por um instante, ficaram na escuridão completa. O costado passou roçando em rochas que eles não viam. Mandred soltou um grito.

Finalmente chegaram a águas mais calmas. Farodin acendeu um lampião e segurou-o bem alto sobre a cabeça. Cercados de uma pequena ilha de luz, eles prosseguiam deslizando. Mandred apoiou-se nos remos e olhava o tempo todo sobre os ombros. Um pouco adiante, surgiu uma larga faixa de cascalho. Rangendo, o barco deslizou sobre a margem.

Eles pularam para fora e puxaram seu frágil veleiro pela margem, bem para cima da marca da maré. Admirado, Mandred olhou ao redor. A caverna era muito maior que pensara de início.

Farodin andou até ele e pousou a mão em seu ombro. Um calor agradável o percorreu.

— Obrigado por ter vindo comigo, filho de humanos. Desta vez eu não teria êxito sozinho.

Mandred duvidava que pudesse ser de grande ajuda. Já estava lhe custando todas as forças dominar o medo em seu íntimo, fato que, com certeza, não tinha ficado oculto de Farodin.

O elfo o conduziu sobre um friso de pedra ao longo da água, até uma saída escondida. Eles se equilibraram sobre rochas lisas, com crostas de gelo, até finalmente chegarem a uma praia. Agora a hora da despedida chegara. Ficaram em silêncio por um momento, de frente um para o outro. Farodin então agarrou o pulso de Mandred num cumprimento de guerreiros. Era a primeira vez que o companheiro se despedia dele dessa forma. O gesto dizia mais que qualquer palavra.

Com passos de pluma, o elfo correu pela praia e desapareceu na névoa. Deixou somente pegadas rasas na neve, que o vento logo apagou. Mandred virou-se e manteve-se bem perto da água, caminhando ruidosamente sobre o chão de pedras. Ali, onde a rebentação enxaguava o cascalho cinzento, não havia neve. Lá ele também não deixaria nenhuma pegada traidora.

Por cerca de uma hora, ele andou pela praia. De uma hora para outra, a névoa se dissipou. Sem a sua proteção, não passaria despercebido para nenhum guarda. Tinha a sensação de estar sendo observado, embora ninguém aparecesse. Recuou um passo e deu meia-volta. Para ele, era como se tivesse atravessado uma fronteira invisível. Atrás dele ainda havia, sobre o mar, um espesso véu branco. À sua frente, porém, a noite estava clara.

A luz das fadas pairava estranhamente baixa no céu. Diante de Mandred, surgiu um pico escarpado de rocha, no qual subia uma imensa torre. Uma luz fraca e amarelada brilhava por trás das janelas opacas. O Pico da Noite era totalmente diferente de como ele imaginara uma construção feita por trolls, quase como uma variante um pouco mais grosseira e escura do Castelo dos Elfos de Emerelle. Ladeada por pilares e arcos de sustentação, a torre subia bem alto para o céu e tocava a luz das fadas. A construção devia ter centenas de janelas. Em alguns lugares, pilares cresciam dos muros como enormes espinhos. Sem dúvida, o Pico da Noite era uma construção magistral. O construtor havia usado de toda a sua habilidade para fazê-la parecer o mais sombria e ameaçadora possível.

Mandred arrancou o galho de carvalho do pano de linho e agora segurava-o como um escudo na frente do peito. Pensou em Luth, o deus do destino, e em como não haveria ninguém que cantasse seu canto heroico se ele morresse naquela noite. Será que devia ter ouvido Ragna? A noite com ela foi totalmente diferente de todas as aventuras nos bordéis. Ela realmente o amava. Ele, seu antepassado! Não, esse amor jamais poderia dar em alguma coisa. Embora entre os dois houvesse tantas gerações, sentiu-se mal em pensamento naquela noite. Tinha sido uma boa decisão ter partido com Farodin.

— O que um filho de humanos faz nas sombras do Pico da Noite? — soou de repente uma voz grave.

Sob uma saliência na pedra, talvez a uns vinte passos de distância, adiantou-se um vulto gigantesco. Media mais que um homem e meio e tinha costas largas de impor respeito. Mesmo os antebraços do troll, que apesar do frio vestia somente uma pele ao redor do torso, eram mais fortes que as coxas de Mandred. Na luz fria das fadas, o humano não conseguia distinguir nitidamente o rosto dele. O vulto como um todo tinha algo de vago e instável.

— O que quer aqui? — perguntou o guarda na língua das terras do fiorde, com sotaque pesado.

— Sou um enviado de Emerelle, rainha dos Elfos. — O jarl ergueu o ramo de carvalho. — E exijo a hospitalidade de Orgrim, duque do Pico da Noite.

Ouviu-se um som gorgolejante.

— Você exige? — O troll curvou-se para a frente e apanhou o galho. Ficou imóvel por um momento e farejou. — Você de fato tem cheiro de elfo, humanozinho. — As mãos nodosas alisaram cuidadosamente o galho. Ele olhou para o mar escuro. — Como chegou até aqui?

Mandred olhou para cima. Ainda não podia ver com clareza o rosto de seu interlocutor. Desejou saber mais sobre os trolls. Nas histórias que ouvira sobre eles na infância, não eram exatamente tidos como espertos. Será que descobriria uma mentira?

— Você sabe o que são trilhas albas?

O troll fez que sim com a cabeça.

— Eu vim por uma delas. Um elfo me abriu um portal menor, perto da praia. Então cheguei ao coração do reino dos trolls.

Mandred estava satisfeito com a sua mentira. Ela explicava o fato de os espiões não o terem descoberto antes.

— Sei... — Isso foi tudo que o troll disse a respeito. E virando-se de súbito: — Siga-me!

O troll levou Mandred a um porto cercado de rochedos, ao pé do Pico da Noite. Ali estavam atracados enormes navios escuros. Pareciam fortalezas flutuantes. Do quebra-mar do porto, saía um caminho para cima do rochedo que dava em um túnel extenso, iluminado parcamente por pedras de barin.

A todo momento passavam por guardas, silhuetas obscuras que se apoiavam em pesadas clavas e machados de pedra do tamanho de homens. Nenhum deles fez qualquer pergunta aos dois. Mandred tinha a sensação de que seu guia gozava de grande prestígio. Agora, à luz das pedras de barin, podia vê-lo melhor. Sua pele era de um cinza-escuro com partes claras, o que a fazia lembrar um pouco o granito. O troll tinha a testa recuada e sua mandíbula era proeminente. Seus olhos eram esquisitos. Brilhavam na cor das pedras de barin, assim como os de Xern, o primeiro filho de albos que encontrou. Os braços dos trolls não eram proporcionais ao corpo, pareciam longos demais para Mandred. Músculos nodosos atestavam a sua força. Nas lutas, os trolls deviam ser oponentes terríveis.

Finalmente os dois chegaram a uma sala ampla. Ali estavam reunidos cerca de uma centena de trolls. Alguns bebiam ou jogavam com dados de osso; outros dormiam esticados junto a lareiras. Tudo fedia bestialmente a gordura velha, vômito azedo e cerveja derramada. O lugar era mais uma caverna que um salão de uma corte, pensou Mandred. Ao longo da sala havia mesas e bancos grosseiros, mas a maioria dos trolls parecia preferir ficar de cócoras no chão. Eram todos assustadoramente grandes. Seu guia da praia não era de maneira alguma um gigante entre seus semelhantes. Mandred estimava que o maior de todos ali na sala medisse mais de três metros da sola dos pés ao topo da cabeça. Só depois reparou que nenhum deles tinha cabelo. Muitos enfeitavam suas caras grosseiras e crânios calvos com tatuagens em padrões intrincados.

Quando os gigantes viram Mandred, a inquietação tomou conta deles. Gritos selvagens soaram. O guia ergueu o galho bem alto e berrou; sua voz encobriu todas as outras. Depois disso, tudo ficou um pouco mais calmo, mas Mandred podia ver ódio evidente nos olhos cor de pedras de barin do troll.

Ao longe ecoou o som de uma corneta. Mandred lembrou-se de Farodin. Será que no fim os elfos o tinham descoberto?

O guia deixou-se cair de pernas abertas sobre um dos bancos e sorriu-lhe, insolente.

— Diga o que você tem para nos dizer, humanozinho.

— Desculpe, mas só vou falar com o duque Orgrim — insistiu o jarl, olhando em volta com a esperança de ver em algum lugar um troll de pulseiras de ouro e pesadas correntes de prata.

Era assim que os heróis das sagas sempre reconheciam os nobres dos grandes povos. Mas nenhum deles ali usava nenhum adorno como esse.

Seu guia gritou algo na sala. Logo grunhidos altos se espalharam ao seu redor. Mandred levou alguns instantes para compreender que aquilo deveriam ser risadas.

— O que é tão engraçado? — perguntou friamente.

O guia sugou o lábio de baixo e encarou-o de forma penetrante.

— Você realmente não sabe, não é? — perguntou finalmente, com seu sotaque pesado.

— O quê?

— Eu sou Orgrim, duque do Pico da Noite.

Mandred examinou-o, cético. Será que o sujeito estava de brincadeira com ele? Não se distinguia em nada dos outros trolls ao redor. E se ele realmente fosse o duque e agora não lhe desse resposta, então seria uma ofensa. Porém, se ele afirmava ser o líder dos trolls e Mandred revelasse a ele o falso recado, então não poderiam acusá-lo — ao menos pelo padrão humano — de ter se colocado de forma indelicada perante o seu anfitrião.

— A rainha Emerelle gostaria de saber se ainda há elfos aprisionados.

Orgrim gritou algo ao seu redor. Mandred teve a impressão de que alguns dos trolls sorriam com ódio. Então o duque bateu palmas e deu uma ordem.

— Eles trarão comida e bebida para nós — disse Orgrim formalmente. — Não podem dizer que eu não servi a um hóspede o que temos de melhor para oferecer no Pico da Noite.

Dois chifres de beber do tamanho de braços foram trazidos. Orgrim pôs o seu nos lábios e esvaziou-o em um só gole. Então olhou impacientemente para Mandred.

O jarl precisava se esforçar só para erguer o seu chifre. Não podia se embebedar em nenhuma hipótese! Não naquela noite! Mas, se não bebesse nada, estaria ofendendo o seu anfitrião. Então, deu um gole e deixou boa parte do hidromel viscoso escorrer por sua barba.

Orgrim riu alto.

— Aqui entre nós até as crianças bebem mais que você, humanozinho.

Mandred pousou o chifre.

— Olhando aqui ao meu redor, tenho a impressão de que as crianças de vocês talvez já venham ao mundo com a minha estatura.

O duque deu-lhe um tapa no ombro que quase derrubou Mandred do banco.

— Bem falado, humanozinho. Nossos recém-nascidos realmente não são aqueles vermezinhos rosados e delicados como os filhos de vocês.

— Voltando mais uma vez à pergunta da rainha dos Elfos...

— Aqui não há nenhum elfo aprisionado. — O duque sugou novamente seu lábio inferior. — Quem é que está afirmando algo assim?

— Uma elfa que esteve aqui na prisão — retrucou Mandred sucintamente.

O duque dos trolls apoiou o queixo sobre ambas as mãos e olhou-o pensativo.

— Quem será essa criatura tão perturbada? A guerra já terminou faz tempo. Todos os prisioneiros foram trocados.

Se não fosse pelo pesado queixo com as presas salientes, Orgim teria conseguido dar um sorriso simpático. Mas, por ser assim, o que fez foi uma careta de meter medo.

Eu espero realmente que Emerelle não tenha levado esse boato a sério.

Mandred ficou inseguro. Se outra pessoa que não Farodin tivesse lhe contado sobre a prisão de Shalawyn, bem que teria acreditado em Orgrim. O duque era muito diferente de como ele tinha imaginado um troll. Nas histórias, eles eram devoradores de homens, burros, grosseiros e fáceis de engabelar. Mas esse, definitivamente, não era o caso de Orgrim. Ao contrário! Mandred tinha a sensação de que o duque estava jogando com ele.

Uma velha mulher troll sentou-se na outra ponta da mesa. Trouxera uma tigela rasa de madeira com sopa e uma grande colher torta. Seu vestido grosseiro tinha centenas de remendos, cada um de um tecido diferente. Uma película leitosa cobria seus olhos. Ela piscava intensamente sempre que os levantava de sua tigela. Ao redor do pescoço enrugado, trazia algumas tiras de couro com amuletos pendurados: pequenas figuras entalhadas em osso, anéis de pedra, penas, uma cabeça de pássaro desidratada e algo que parecia metade da asa de um corvo.

— Quem é essa? — perguntou Mandred, sussurrando para seu anfitrião.

— Ela se chama Skanga. É tão velha quanto o nosso povo. — Havia respeito na voz de Orgrim, talvez até um pouco de medo. Ele falava muito baixo. — Ela é uma xamã poderosa, que fala com os espíritos e é capaz de aplacar ou chamar tempestades.

Mandred olhou furtivamente para a velha. Será que conseguia ler seus pensamentos? Então seria melhor pensar em coisas inofensivas!

— Depois de meu longo caminho por lugares desertos, estou quase morrendo de fome. Poderia facilmente roubar a tigela da velha!

O duque desculpou-se sem poupar palavras pelo fato de a comida estar demorando um pouco mais. Ainda deviam estar no abate, para que a carne chegasse bem fresca à mesa. Orgrim contou que a carne de porco ficava bem mais tenra quando se batia um pouco nos animais antes do golpe fatal. Dizia-se que o segredo era abater o animal antes de ele pressentir que seria morto. Orgrim afirmava que o medo produzia substâncias ruins que estragavam a carne. Mandred nunca ouvira falar de coisas assim, mas o duque soava bastante convincente.

Enquanto esperavam, Orgrim fazia o tempo passar contando-lhe da caça aos cachalotes. Também deixou Mandred lisonjeado ao elogiar a audácia dos homens que lutaram na última guerra ao lado dos elfos. Salientou principalmente os feitos de Alfadas, o rei dos heróis.

Mandred riu por dentro em silêncio. O que Orgrim diria se soubesse que está sentado ao lado do pai de Alfadas? Mas não revelaria isso a ele. Um orgulho melancólico tomou conta dele quando o duque contou das batalhas em que lutara contra seu filho.

Finalmente serviram os dois. Um troll inchado e com cara de porco trouxe duas grandes placas de madeira. Nelas havia um assado cheiroso, guarnecido de anéis de cebola dourados. O maior dos dois assados bastaria sem esforço para satisfazer três homens famintos. O assado menor talvez pesasse um quilo, estimou Mandred.

— Como convidado, a escolha cabe a você. — Orgrim apontou para as tábuas. — Qual dos dois assados você quer?

O jarl lembrou-se das palavras de alerta de Farodin. Se ele aceitasse o pedaço maior e comesse só uma pequena parte dele, os trolls poderiam considerar uma ofensa.

— Considerando a minha estatura, seria mais que exagerado pedir o pedaço maior — disse Mandred afetadamente. O cheiro do assado enchia-lhe a boca de água. — Por isso eu escolho o pedaço menor.

— Assim seja.

O líder dos trolls fez um sinal com a cabeça para o cozinheiro, que pousou as pesadas tábuas diante deles na mesa.

Orgrim comeu com as mãos. Despedaçava a carne sem esforço e enfiava-a em grandes pedaços na goela. Junto com ela serviram-lhe pão fresco, que eles mergulhavam no molho.

Mandred puxou a faca de seu cinto e partiu o assado em seis fatias grossas. Quando cortou a carne, sangue escuro escorreu para o pesado molho de cebola. O assado estava delicioso. Tinha uma boa crosta, mas por dentro ainda estava macio e ensanguentado. Mandred comeu com vontade. Nos longos dias no barco não houvera nada quente para comer. O suco do assado escorria-lhe pelos cantos da boca enquanto mastigava. Salpicava o pão fresco com molho e cebola com gosto, bebendo o pesado hidromel para acompanhar.

“Orgrim realmente sabia mimar seus hóspedes”, pensou.

Os demais trolls, contudo, comportavam-se de forma estranha. No decorrer da refeição, iam se tornando cada vez mais quietos. Alguns, por sua vez, assavam carne em longos espetos de madeira. Mas a maioria deles simplesmente olhava para Mandred. Será que o invejavam por sua refeição deliciosa? Aos poucos, começava a sentir-se mal com os olhares penetrantes.

Com um arroto imponente, Mandred terminou sua refeição. Não conseguira comer toda a carne. Ficou inclinado para a frente, sentado no banco de madeira e gemeu baixinho.

— Posso oferecer-lhe mais alguma coisa? — perguntou Orgrim educadamente. — Pedaços de maçã em conserva no mel, talvez? Uma delícia, acredite. Simplesmente inigualável. Scandrag, meu cozinheiro, é um verdadeiro artista.

Mandred acariciava a barriga.

— Por favor, me desculpe. Mas, como você mesmo já disse, eu sou só um humanozinho. Não aguento mais.

Orgrim bateu palmas. Um pouco depois surgiu o troll que os servira, com uma segunda e grande tábua. Sobre ela descansavam duas cestas emborcadas. A tábua estava escura de sangue escorrido.

— Para nós é um costume olhar nos olhos do que comemos. Hábito de caçadores, se quiser chamar assim.

Orgrim estalou os dedos, e o troll colocou a tábua sobre uma mesa vizinha. Então ergueu a maior das duas cestas. Embaixo dela havia a cabeça de um porco selvagem, com a boca bem aberta. Suas presas eram longas como punhais. Mandred lembrou-se imediatamente do devanthar.

O duque cumprimentou o cozinheiro pela refeição primorosamente preparada. Então ergueu a segunda cesta. Embaixo dela estava a cabeça de uma mulher de cabelos louros e curtos. Sua testa estava arrebentada e a sobrancelha esquerda, totalmente esfolada. As orelhas pontudas atravessavam o cabelo curto. Sua pele era tão pálida como Mandred nunca vira antes em uma elfa. Era quase tão branca como a neve recém-caída.

Incrédulo, Mandred encarou aquele rosto. Os ferimentos claramente haviam sido causados por um golpe de clava. O jarl conhecia aquela elfa tão bem como seu próprio filho. Por três anos eles haviam cavalgado lado a lado. Yilvina! Seu estômago encolheu e revolveu-se de repente.

O reino dos anões

Quando, depois de um dia e uma noite, eles finalmente deixaram a floresta, Nuramon mal acreditava no que seus olhos viam. Diante deles estava um gigantesco paredão de pedra — as muralhas do Reino dos Anões. Um imenso portão de ferro formava a entrada. No paredão de pedra havia janelas, colunas e brechas escavadas. Contudo, o que mais impressionava Nuramon eram todas as torres que cresciam na pedra como cogumelos, esticando-se em direção ao céu. Quem quer que tivesse construído aquilo, certamente era um mestre em seu ofício.

Nuramon apeou de Felbion; não conseguia desviar o olhar da fortaleza.

— É impressionante, não é verdade? — perguntou Alwerich. — Vocês, elfos, certamente não são capazes de construir algo assim.

Nuramon olhou para as bandeiras que tremulavam nas torres. Os enormes tecidos desfraldados estampavam um dragão prateado sobre fundo vermelho. Eram tão grandes que o brasão podia ser reconhecido a muitas milhas de distância. Os anões viviam tão recolhidos que dificilmente um forasteiro encontraria o caminho até eles. Aparentemente, o que importava para eles não era a utilidade, mas a visão que aquilo tudo oferecia. A esse respeito, os anões eram semelhantes aos elfos, já que essa construção magistral expressava tudo menos adequação modesta.

Nuramon seguiu os anões a caminho do portão. Quanto mais perto chegavam daquele monstro de duas folhas, menor o elfo se sentia. Era um portão gigante, considerando as criaturas tão pequenas que eram os anões. Mas talvez houvesse qualquer coisa no reino deles que exigisse aquela grandeza. Olhou para as bandeiras acima e examinou o animal no brasão. Aquele portão era grande o suficiente para permitir a entrada de um dragão.

Na frente do portão não havia guardas, mas as numerosas seteiras chamaram a atenção de Nuramon, assim como o comprido balcão bem acima delas. Naquela entrada não era necessário ter mais nenhum guarda. Sem que os acompanhantes de Nuramon precisassem dizer qualquer coisa, ouviu-se um estalo perto do portão, e suas folhas abriram-se na direção deles, chiando e rangendo. Como é que os anões conseguiram forjar um portão de ferro assim tão grande? Como eles o transportaram e ergueram? A única resposta que ocorria a Nuramon era feitiçaria.

A grande peça trazia, em molduras enfeitadas, o retrato de várias cenas de caça, com silhuetas de heróis durante lutas e paisagens. A imagem mais acima só se reconhecia vagamente, devido à altura do portão. Mostrava uma cordilheira; Nuramon tinha certeza de se tratar dos Iolídens. Havia ainda caracteres gravados. Logo à primeira vista, o elfo reconheceu que se tratava da mesma escrita que havia no portal do oráculo Dareen.

Ele não tinha se enganado. Viera ao lugar certo. Em uma fortaleza enorme como esta deveria haver um anão disposto a acompanhá-lo ao oráculo!

Pelo meio das folhas do portão que se abriam, Nuramon pôde lançar um primeiro olhar sobre o interior do Reino dos Anões. Do outro lado do limiar surgiu um pavilhão imenso, sustentado por colunas semelhantes a árvores. A luz do sol penetrava em seu interior por claraboias estreitas, localizadas bem alto na rocha. Havia pedras de barin das mais diversas cores embutidas nas colunas, iluminando os pontos onde os raios de sol não chegavam. No salão reinava uma movimentação animada. Mesmo que numerosos anões olhassem curiosamente na direção dos recém-chegados, a maioria deles parecia seguir seus caminhos cotidianos.

— Você teria algo contra a sua montaria esperar aqui fora? — perguntou Alwerich.

Nuramon concordou e cochichou algo para Felbion. O garanhão trotou dali para pastar nas proximidades do portão. Pareceu satisfeito de ficar para trás naquele gramado suculento.

Os anões conduziram Nuramon para o interior. Foi ali que viu um sentinela pela primeira vez. Ele estava em pé, à sua direita; de pronto perguntou a Alwerich quem era o elfo e aonde o anão pensava levá-lo. Alwerich disse seu nome e esclareceu que Nuramon vinha da Terra dos Albos.

— Vou levá-lo ao rei — prosseguiu Alwerich.

Receberam permissão para passar. Nuramon reparou em uma grande roda que várias dúzias de anões fizeram girar. Lentamente, o portão fechou-se.

— Por aqui — disse Alwerich, apontando para a frente.

Todos os anões que eles encontraram no caminho pela fortaleza imponente vestiam metais, embora ali certamente não estivessem contando com nenhum perigo. Parecia que, para os anões, o metal era mais uma vestimenta que uma armadura. Alguns preferiam pesados trajes de malha de ferro e pareciam especialmente protegidos dentro deles; outros vestiam camisas de trama aberta sobre tecidos finos, guarnecidos de pequenas chapas metálicas. Claramente não havia roupas feitas sem nenhum metal.

Todos os que cruzaram o caminho de Nuramon o examinaram como se nunca tivessem visto um elfo na vida. E era bem possível que fosse verdade. Alguns cochichavam e o cumprimentavam discretamente. Ele se mostrava amigável, esperava que seus gestos fossem interpretados corretamente.

Pela primeira vez o elfo viu também anãs, cujas roupas expressavam toda a habilidade artística daquele povo das montanhas. Fios de metal e joias ornavam os trajes; mesmo aquelas que não podiam pagar por ouro ou prata vestiam trabalhos adornados com metais menos preciosos. Uma anã em especial, cujo vestido estava adornado com pequenas chapas de cobre no formato de folhas, chamou a sua atenção. Embora do ponto de vista da estatura ela fosse baixa e larga, lembrava-o uma fada das árvores, como as convidadas de Alaen Aikhwitan que vira uma vez.

Os rostos das anãs pareciam meigos e amáveis. Tinham cabelos longos, na maioria das vezes presos em tranças. O da anã do vestido de cobre era louro e caía-lhe sobre os ombros em quatro grossas tranças. O fato de Nuramon observá-la tão detidamente deixou-a claramente constrangida. Ela sorriu para ele e desviou os olhos escuros fitando o chão.

Quando Alwerich e os seus o conduziram à direita do caminho central entre as colunas, Nuramon perguntou-se por que aquele mundo de pedra agradava tanto um elfo como ele, embora nas salas dos anões ainda sequer tivesse visto qualquer planta. Será que havia mesmo beleza naquele lugar? Ou será que se tratava da sua visão peculiar, da qual, aliás, seus parentes sempre zombavam em casa, na Terra dos Albos? Ele não sabia dizer. Mas o que acontecia era que ele sentia aquela vizinhança como bonita, mesmo que lhe fosse desconhecida e ele parecesse um gigante esguio no meio dos anões atarracados.

Nuramon seguiu Alwerich para dentro de outra sala, não menos impressionante do que a entrada para o Reino dos Anões. Ali, as colunas agrupavam-se sobre largos pedestais, formando pilares que sustentavam arcos imensos. Escadas amplas criavam pequenas praças e conectavam-se umas às outras. As pessoas percorriam seus degraus de uma praça para a outra, subindo de nível em nível. Muitas das praças eram usadas pelos anões. Ali havia mesas e bancos nos quais eram postas à venda as mais diversas mercadorias. Era um mercado barulhento. O falatório dos anões era acompanhado por um murmúrio de água corrente. Em algum lugar ali perto devia haver um curso d’água.

Na borda do átrio chegaram a uma escada íngreme, dividida por imensas colunas. Em frente havia uma fonte impressionante. Duas enormes anãs de pedra seguravam vasos de onde a água fluía, caindo ruidosamente na grande bacia embaixo delas e abafando qualquer conversa ao redor. O ar sobre a fonte cintilava nos pilares de luz, que desciam por uma ampla abertura no teto. Aquela luz não parecia ser do sol, pois era de uma coloração azulada. Espuma voou na direção deles quando passaram pela fonte. Seu sabor era fresco e um pouco salgado.

Mal tinham deixado a escada e os grupos de colunas para trás, atravessaram uma sala ampla, chegando a uma larga escada em caracol, que primeiro desaparecia na rocha levando-os para as alturas, para então abrir-se do lado esquerdo e oferecer uma ampla vista da sala da escada. Ao longe, Nuramon viu as colunas do átrio grande, próximas à entrada.

Alwerich sinalizou que continuassem em frente. Por fim, pararam diante de um largo corredor vigiado por dois guerreiros. Eles não queriam permitir a passagem de Nuramon. Alwerich então decidiu prosseguir e levar seu pedido até a corte. Enquanto isso, Nuramon deveria esperar ali.

O elfo observou os arredores próximos. Ali a luz também parecia pairar sob o teto. Ele daria muito para descobrir o segredo daquela luz. Embora fosse estrangeiro, sentia-se como na Terra dos Albos. Assim como Yulivee fizera em Valemas, os anões tinham construído um novo lar para eles. Evidentemente, também mineravam cristais. À esquerda, na parede distante, havia muitas jechilitas, que cintilavam como a grama coberta pelo orvalho da manhã. À sua direita erguiam-se montanhas de cristais da altura do teto, que brilhavam por dentro e pareciam conter paisagens da selva.

Nuramon observava os anões que circulavam pelas ruas de pedra lá no alto e pelas pontes de madeira. Para eles, aquele luxo devia ser tão cotidiano quanto a vista do castelo de Emerelle era para o seu povo. Certamente havia anões que percebiam tudo de forma semelhante a ele, que se encantavam com aqueles ambientes e todo o seu esplendor.

Depois de um tempo, Alwerich retornou e despachou seus companheiros. Estava com uma cara desconfiada.

— Siga-me, por favor! Mestre Thorwis quer falar com você.

Nuramon nunca ouvira esse nome antes. Seguiu o anão sem mais nenhuma palavra. Eles passaram pelos dois guardas e percorreram um corredor silencioso, cruzando com alguns sentinelas e com anões e anãs nobremente vestidos. Todos observavam Nuramon como se fosse um espírito luminoso. O elfo tentava se manter orientado, o que era difícil sem o céu ou ao menos um telhado de árvores sobre si.

Nuramon conseguia entender bem a surpresa no rosto dos anões. Ele provavelmente era o primeiro elfo que fazia aquele caminho. Só lhe restava esperar que os anões não o vissem como um enviado de Emerelle. No fundo, ele não sabia se os anões tinham simpatia por elfos. E se eles tivessem partido da Terra dos Albos brigados? Nesse caso, seguia rumo à sua própria ruína.

— Bem, aqui estamos — disse Alwerich, adentrando um átrio com cerca de uma dúzia de portas altas, algumas vigiadas.

Enérgico, Alwerich aproximou-se de um velho anão de cabelos brancos, que esperava na frente de uma das portas.

— É este o forasteiro, mestre — disse, baixando a cabeça.

O ancião examinou Nuramon com a expressão imóvel.

— Você executou bem a sua tarefa, meu jovem guerreiro. Agora vá!

Alwerich lançou um último olhar a Nuramon e então desapareceu pelo mesmo caminho pelo qual tinham vindo.

— Por favor, olhe para mim! — ressoou a voz do ancião.

Nuramon atendeu o pedido e olhou o anão diretamente nos olhos verde-acinzentados. Thorwis parecia estar checando cada pormenor de seu rosto. Aquele velho anão dominava a feitiçaria, sentiu Nuramon. Além disso, sua túnica simples e cinza indicava que não era um guerreiro. Era o único anão ali que não vestia nada de metal. Até o seu anel era de jade.

— Siga-me! — disse por fim o ancião.

Ele abriu a porta e entrou. Do outro lado dela estendia-se um corredor estreito. Depois que Nuramon entrou, Thorwis fechou e trancou a porta.

Nuramon seguiu o velho por corredores que não combinavam com a pompa das outras salas. Ali as paredes eram simples e sem qualquer adorno. Somente as portas eram artisticamente enfeitadas, nenhuma igual à outra. Estava claro que elas eram adequadas à realidade da sala para onde eles iam.

— Só poucos podem ver estes corredores — esclareceu Thorwis. — Nenhum elfo já pôs o pé... — Ele interrompeu-se de repente e olhou para a espada de Nuramon. Então sorriu. — Desculpe! O que queria dizer é: você pode se sentir satisfeito por estar aqui.

— Eu já me sinto — foi tudo o que Nuramon respondeu.

Estava admirado com a conduta do feiticeiro. Será que não era habitual carregar uma espada naqueles corredores?

Logo chegaram a passagens amplas onde novamente se viam anões. Eles vestiam roupas nobres e não pareciam menos surpresos do que os de antes. Alguns se assustaram quando ele dobrou uma esquina junto de Thorwis.

— Em um reino tão grande, aqueles que têm poder de decisão precisam se deslocar rápida e discretamente entre os lugares importantes — esclareceu o velho.

Nuramon sentiu que os corredores não haviam sido construídos ao acaso. Muitos deles seguiam uma trilha alba. Quem porventura quisesse ir de um lugar para outro no reino dos anões, poderia servir-se de uma estrela alba.

No fim de um longo corredor, Thorwis parou, abriu uma porta à direita e entrou. Nuramon seguiu-o e viu-se novamente em uma sala vazia. Comparada aos átrios e corredores, era bastante pequena. À esquerda faltava uma parede, de forma que dali era possível ter um panorama do vale. A luz do dia lançava seu brilho até a parede oposta, onde havia um mosaico com pedras preciosas que reproduzia a imagem do vale.

— Desculpe-me! — disse Thorwis, desaparecendo por uma porta com figura de pedras preciosas.

Nuramon perguntou-se o que os anões pensavam dele. Claramente acreditavam que quisesse alguma coisa deles que justificasse recebê-lo naquela suntuosa parte do reino. Para ele, teria bastado encontrar alguém lá embaixo, no salão principal, que tivesse coragem de ir junto com ele na viagem até o oráculo.

Aproximou-se da parede aberta e olhou para o vale. As nuvens flutuavam baixo no céu azul. Nuramon tinha a sensação de serem rostos que riam para ele. Do vento que empurrava as nuvens lá fora, Nuramon sentia só um sopro suave. Ele estendeu sua mão para o ar livre e sentiu-a atravessar algo invisível. O vento roçou seus dedos. Na casa dele, na Terra dos Albos, um feitiço semelhante agia. Alaen Aikhwitan cuidava para que nenhuma rajada de vento soprasse pela casa. No castelo da rainha, esse feitiço agia no teto da sala do trono. Mais uma vez ele descobria uma semelhança entre os anões e os elfos.

De repente, a porta na parede de pedras preciosas abriu-se. Por ela, passou um anão em um nobre traje de malha de ferro. Vestia ainda um nobre casaco verde. Levava uma coroa esguia. Era seguido por Thorwis e alguns outros gnomos distintos, alguns deles guerreiros.

O rei ainda não tinha visto Nuramon. Conversava com seus guerreiros.

— Eu gostaria que ali não fosse mais escavado! E eu digo a vocês que... — O rei deteve-se e contemplou o elfo.

Thorwis pôs-se ao lado de seu soberano.

— Este é o visitante de quem lhe falei.

O rei virou-se um pouco para os guerreiros, mas mantendo o olhar em Nuramon.

— Vão e façam o que eu disse! — ordenou. E virando-se para Thorwis: — Você não me disse que ele era um elfo.

— Queria surpreendê-lo. Veja só!

O rei dos anões aproximou-se de Nuramon com passos calculados. Tinha o cabelo grisalho e uma barba com tranças artisticamente tecidas. Parou bem perto dele e observou-o com os olhos arregalados.

Nuramon curvou-se diante do rei. Sentiu-se estranho por ainda ter de olhar para baixo para encontrar os olhos do soberano.

— Meu nome é Nuramon. Venho da Terra dos Albos e estou em viagem neste mundo.

O rei voltou-se para Thorwis:

— Você viu?

Ele parecia não acreditar que tinha um elfo diante de si.

— Sim, meu rei.

O velho dirigiu-se a Nuramon:

— Este é Wengalf, rei dos anões e soberano de Aelburin.

— Eu sabia que você viria. Só não sabia quando — esclareceu o rei Wengalf.

Nuramon não ficou tão admirado com isso. Como Emerelle com frequência sabia o que havia acontecido, o que estava acontecendo em outros lugares e o que um dia poderia acontecer em algum lugar, o rei dos anões talvez olhasse para os tempos remotos e visse o que podia acontecer.

— O que o traz até nós?

— Estou em busca de uma elfa e tenho esperanças de que o oráculo de Dareen possa me ajudar nisso. Mas o caminho até ele está trancado para mim. Só com a ajuda de um anão o portão talvez possa ser aberto.

Nuramon então descreveu o portal de Dareen em detalhes e contou o que havia se passado lá.

Wengalf dirigiu um olhar a Thorwis, que o velho interpretou como um sinal para dirigir a palavra a Nuramon.

— Nós conhecemos o oráculo de Dareen. No tempo que deixamos a Terra dos Albos, outros filhos de albos também partiram para encontrar seu lugar neste mundo. Anões e elfos encontraram-se um dia e descobriram Dareen do outro lado de um portal que levava a um lugar distante deste mundo. E ele nos disse como deveríamos fechar o portal. Nos velhos tempos, nós o usávamos com frequência. Mas os elfos se retiraram. Alguns esconderam-se em florestas encantadas; outros criaram seu reino no Mundo Partido. A maioria deles, contudo, retornou para a Terra dos Albos. Nós não podíamos abrir o portal sozinhos. E a necessidade e a curiosidade nunca foram tão grandes a ponto de querermos recorrer ao oráculo.

Nuramon lembrou-se de Yulivee. Ela devia ter sido um dos elfos que um dia encontraram os anões.

— Pois então, um anão estaria pronto para me acompanhar? — perguntou ele, esperançoso.

— Um anão estará ao lado de um elfo da mesma forma como um elfo um dia esteve ao lado dos anões — disse Wengalf solenemente.

Nuramon não sabia o que o rei dos anões queria dizer com isso. Talvez se referisse a quando os anões ainda viviam na Terra dos Albos e formavam alianças com os elfos.

— Você não se lembra — disse o rei.

— Não. Sou jovem demais. Eu não vi o tempo em que elfos e anões viveram lado a lado na Terra dos Albos.

— Mas você não mudou nada. Eu ainda o reconheço. E Thorwis também o reconheceu imediatamente. Quantos anos já faz? Certamente mais de três mil anos.

— Três mil, duzentos e setenta e seis anos, precisamente — explicou Thorwis.

De um só golpe, ficou claro para Nuramon ao que o anão se referia.

— Você deve estar me confundindo com um dos meus antepassados!

— Não, nos referimos a você — disse Thorwis. — Eu o reconheci. Você é Nuramon. Não há dúvidas.

— Um dia nós nos declaramos amigos — continuou o rei.

Nuramon não conseguia entender. Ele viera a um lugar onde as pessoas se lembravam de um de seus antepassados e estavam prontas para falar sobre ele. E o rei dos anões um dia considerara esse seu antepassado um amigo!

— Foi no tempo em que eu ainda esperava ser nomeado rei que nós cultivamos essa amizade. Você foi embora da Terra dos Albos ao nosso lado. Nosso povo empreendeu uma grande jornada junto com você e descobriu este lugar. Nós caçamos, lutamos e celebramos juntos. E também encontramos a morte.

— Eu morri aqui? — perguntou Nuramon.

Wengalf apontou para baixo, vale adentro.

— Lá, uma centena de anões lutou contra o dragão Balon. Só nós dois o vencemos, mas pagamos o feito com nossa vida. Você morreu lá fora; eu, alguns dias mais tarde. Coroaram-me rei em meu leito de morte.

Nuramon mal podia acreditar no que estava ouvindo. Wengalf realmente achava que ele era o mesmo elfo de antes. Ele tinha a sensação de estar ouvindo uma saga, mas sem conseguir se lembrar de nada desse tipo.

— Eu ainda me lembro de como você morreu. Nós dois estávamos deitados no sangue quente do dragão. Você disse: “Esse não é o fim. Eu voltarei”. Essas foram suas últimas palavras. Por quanto tempo esperei o seu retorno! Preciso confessar que o tempo tornou-se tão longo que só raramente pensei nisso, sempre no aniversário daquela data. Eu imaginava como sua alma renasceria eu algum outro lugar, mas que você não conseguiria se lembrar do que já fez um dia. Por fim, tanto tempo se passou que eu pensei que você já havia partido há muito para o luar. Mas me enganei.

Nuramon pôs-se de joelhos para ficar com os olhos na mesma altura dos de Wengalf.

— Eu queria que, junto com a alma, tivesse mantido também a memória dos meus antepassados. Mas não é assim. O que você está me contando é a história de um outro. Não consigo considerá-la um pedaço da minha própria.

Thorwis interviu.

— Como assim você não consegue? Quando você se deita para dormir e acorda de novo, então você ainda é o mesmo? E se você é o mesmo, como sabe disso?

— Eu sei porque me lembro do que aconteceu antes — respondeu Nuramon.

Thorwis pousou a mão no ombro dele.

— Então encare o que você descobre sobre os seus antepassados como uma lembrança da sua alma; como algo que você só esqueceu. E, quem sabe, um dia a lembrança da sua alma também pode se tornar a do seu espírito.

— Você quer dizer que um dia eu talvez possa me lembrar da luta contra o dragão e da minha amizade com Wengalf?

— Não posso prometer isso nem criar essa esperança em você. Só posso dizer que já aconteceu assim antes. Há filhos de albos que ainda se lembram de suas almas anteriores. A maioria deles é anã. Talvez um dia você também encontre a trilha para suas vidas anteriores. A feitiçaria não é desconhecida para você, seus sentidos estão muito despertos. O primeiro passo desse caminho é reconhecer que o Nuramon que já se sacrificou um dia e o Nuramon que está diante de nós é o mesmo filho de albos.

— Agradeço pelo seu conselho, Thorwis. E a você, Wengalf, agradeço pelo que me contou. Você me permite fazer uma pergunta?

— Vá em frente — pediu-lhe o rei.

— Vocês conhecem uma elfa de nome Yulivee?

Wengalf e Thorwis trocaram um olhar surpreso.

— É claro — respondeu o rei. — Mas já faz muito tempo. Lado a lado, nós colocamos um cristal de rocha e um diamante no portal até Dareen, para que elfos e anões só pudessem encontrar juntos o caminho para o oráculo.

— Eu o encontrei em minha vida anterior?

— Não, naquele tempo você seguiu o seu próprio caminho e só mais tarde deparou-se novamente conosco.

— Obrigado, Wengalf. E também a você, Thorwis. Vocês não podem imaginar o quanto todas essas palavras me tocam. Vou seguir o conselho e tornar o que contam sobre minha vida anterior minha própria lembrança.

Wengalf sorriu e deu tapas vigorosos nos ombros de Nuramon, que ainda estava ajoelhado.

— Então preciso contar urgentemente sobre as festas, para que você se lembre do que bebemos e comemos. Naquela época, você conseguia comer e beber muito. Venha! Vamos celebrar como nos velhos tempos!

O rei dos anões abraçou-o.

O último caminho

Farodin puxou de volta a faca do olho do troll. Limpou a lâmina no grande casaco de lã do morto e empurrou-a de volta à bainha que trazia afivelada ao redor do antebraço esquerdo. Em seguida, agarrou o troll pelos ombros. Seus músculos quase se romperam enquanto puxava o gigante lentamente, centímetro por centímetro, até a borda do quebra-mar, deixando-o deslizar para dentro da água escura.

— Que você espere muito até renascer — sussurrou ele.

Então subiu um trecho do cais, comparando o que via com a antiga referência que tinha na memória. O quebra-mar recebera um novo calçamento e fora prolongado. Tomara que o resto não tivesse mudado ainda mais!

Olhou cheio de desprezo para os enormes navios negros. Não tinham qualquer elegância! A proa e a popa pareciam ter sido feitas como se a verdadeira intenção fosse construir torres de fortificação em vez de uma embarcação. Erguiam-se ameaçadoramente sobre a água. Que inimigo ousaria enfrentar esses navios?

Bem alto acima dele, sobre o Pico da Noite, Farodin pôde ouvir uma centena de risadas. Será que Mandred estava se mantendo firme? Ou será que o filho de humanos já estava morto há muito tempo?

Simplesmente não tinha pensado bem sobre o seu plano. Acreditar que em todos aqueles séculos nada teria mudado ali não fora muito esperto! Farodin já encontrara murados três portões escondidos para o labirinto de corredores secretos que atravessava os rochedos e a torre. E tudo isso era um trabalho antigo de alvenaria. Até mesmo os trolls tinham compreendido de onde ele viera aquela outra vez, quando matou o comandante. E agora o quebra-mar também estava reformado!

Sem grandes esperanças, desceu uma escada até a água. Tirou a capa, enrolou-a e amarrou-a como uma faixa ao redor dos quadris. Assim ela o atrapalharia menos. Atento para não fazer nenhum barulho que o traísse, deixou-se deslizar lentamente para o abraço gelado da água. Precisava se concentrar totalmente para que suas roupas não se ensopassem e o arrastassem para o fundo.

Restava-lhe pouco tempo para a sua busca. Não demoraria para que o frio o paralisasse, a despeito de qualquer feitiço, pensou, desesperado. Ele apalpou o muro cuidadosamente, como que buscando algo, e então mergulhou. Depois de poucas braçadas, encontrou o que procurava: uma abertura no quebra-mar. Desta entrada, os trolls evidentemente se esqueceram. Talvez até nunca a tivessem encontrado.

Um túnel cheio de ar levava do porto até uma gruta profunda, sob a torre. Dali saíam vários caminhos que seguiam para cima, até o labirinto escondido, nas muralhas das torres. Diziam que o Pico da Noite teria sido erguido por duendes sequestrados pelos trolls como seus escravos. Como no castelo de Emerelle, ali eles também tinham construído corredores secretos em que podiam se mover longe dos olhos de seus senhores. Esses túneis eram estreitos e baixos, obrigando Farodin a andar quase que agachado por eles; um troll, porém, jamais conseguiria chegar ali. Eram caminhos perfeitos.

O elfo estava congelando de frio quando chegou à Gruta Branca. Ele não sabia como os duendes deviam chamar aquele lugar no tempo deles, mas naquela época, durante as longas horas de espera, batizou-o assim devido aos sedimentos de calcário branco como a neve que revestiam o teto e as paredes. Grandes estalactites desciam do teto. Em alguns locais havia pedras de barin incrustadas nas rochas, que séculos depois da morte dos mestres de obras secretos ainda irradiavam sua luz quente e amarelada.

Farodin sacudiu suas roupas e secou-as com a ajuda do feitiço que o protegia do frio. O cinto largo e as braçadeiras onde suas facas de atirar ficavam enfiadas estavam bem engraxados. A água não tinha lhes causado nenhum dano.

Os séculos de experiência haviam ensinado a ele que facas pesadas de atirar eram as melhores armas na luta contra os trolls. O corpo deles era tão maciço que lhes causar ferimentos mortais era uma arte. Já vira trolls que, embora com o corpo crivado de flechas, ainda continuavam lutando. Uma faca lançada nos olhos era sua maneira preferida de matá-los rápida e silenciosamente.

Se aprendera algo em todos aqueles séculos de conflito, era que não se devia lutar corpo a corpo com um troll. Um único acerto com suas pesadas clavas ou machados podia ser o bastante para destroçar um elfo; em contrapartida, o efeito de um golpe de espada contra aquelas bestas na maioria das vezes só causava arranhões. Também era impossível conter as suas batidas: o peso de suas pancadas quebrava qualquer braço que se pusesse no caminho. Só era possível desviar delas, mas o melhor de tudo era simplesmente não chegar perto.

Quando se queria matá-los em um só ataque, era preciso acertá-los na garganta. Mas só o tamanho deles já tornava difícil aplicar um golpe como esse. A única opção era uma pontada diagonal de baixo para cima, acertando seu coração por entre as costelas. Isso só podia funcionar depois de conseguir fazê-los baixar a guarda, mas alguém que ama a vida jamais devia se aproximar de um troll tanto assim.

Farodin acocorou-se no chão gelado e alongou os braços de leve. Esvaziou seus pensamentos, tentando concentrar-se totalmente nas trilhas secretas dos duendes. Era possível chegar a quase todos os cômodos do Pico da Noite por esses caminhos. Onde Mandred estaria? E será que as trilhas ainda existiam? Ou os trolls as teriam descoberto e murado as portas escondidas, da forma como fizeram lá fora ao pé do rochedo íngreme?

Carne

Mandred despertou com uma sensação ruim. Sua cabeça latejava de dor. Com dificuldade, abriu os olhos, mas pouco conseguiu enxergar, pois o ambiente estava quase totalmente escuro. Sentiu o chão balançar com seus movimentos. Percebeu, então, estar preso em uma gaiola, provavelmente pendurada por uma corda. Tentou se esticar, mas seus braços estavam amarrados às suas costas. Ao tentar levantar-se, percebeu que era inútil: a gaiola era tão pequena que ele precisava se manter agachado. Lembrou-se dos prisioneiros sobre o mercado de cavalos em Iskendria, aterrorizado. Eles eram colocados em jaulas para que morressem à míngua. Tentou mais uma vez se empinar em suas amarras, mas tudo o que conseguiu foram dolorosos cortes nos pulsos, provocados pelas finas e ásperas tiras de couro das amarras.

Mandred tentou se lembrar de como chegara até ali. Ele tinha vomitado no meio da sala. Os trolls riram e o empurraram de um lado para o outro. Cheio de repugnância, chamou o duque de mentiroso infame. Mas isso não impressionara muito Orgrim. Ao contrário: ele perguntou cinicamente se Mandred chamava suas cabras e gansos de prisioneiros. Não suportou tamanho escárnio, e então sacou seu machado. Que erro absurdo de estúpido! Mas ele não podia fazer outra coisa. Com um grito lancinante, voou sobre Orgrim para partir-lhe o crânio. Antes que pudesse chegar até ele, no entanto, um dos trolls acertou-lhe uma cacetada entre as pernas, fazendo-o cair. Com um pontapé, Orgrim o desarmou. Entregou-o a Scandrag, o cozinheiro. Este agarrou Mandred pela nuca, como uma cadela leva seu filhote, e amarrou suas mãos às costas. Qualquer resistência teria sido em vão; contra os trolls, ele era inofensivo como uma criança. A última coisa que Mandred ouviu de Orgrim foi o anúncio de que se veriam novamente no jantar do solstício de inverno. Assim que gritou ao duque que ele iria se engasgar com essa refeição, Scandrag o nocauteou.

Um cochicho arrancou Mandred de seus pensamentos. Alguém estava acima dele, um pouco de lado. Falava com uma voz baixa e gutural. Silêncio breve. Então o cochicho retornou. Dessa vez, o tom e a melodia estavam diferentes. Por fim, a voz falou em élfico, mas Mandred só pôde entender algumas palavras. Parecia falar de uma tentativa, de pessoas, provavelmente dele.

— Você entende daílico? — perguntou Mandred na língua dos centauros.

— Quem é você? — soou outra pergunta em daílico.

Mandred hesitou. Será que podia ser uma artimanha dos trolls para arrancar dele aquilo que não contara à mesa de jantar?

— Sou Torgrid de Firnstayn — mentiu ele por fim.

— Como eles o prenderam? — perguntou a voz acima dele.

— Eu estava caçando.

Lentamente, seus olhos iam se acostumando à escuridão. Pôde ver outras gaiolas penduradas ao seu redor.

— E por que um caçador humano fala a língua dos centauros? Quem a ensinou a você? Desde os tempos de Alfadas, os filhos dos albos raramente têm contato com os humanos.

Mandred praguejou em pensamento: a mentira tem pernas curtas!

— Um amigo me ensinou.

— O filho de humanos está mentindo para nós — disse agora uma voz cansada, bem acima na escuridão. — Meus ouvidos não suportam nem as mentiras dele, nem a forma como mutila a língua daílica. Deixem-no! Vai ser o próximo que Scandrag vem buscar. Não falta mais muito tempo até as celebrações do solstício de inverno, eu estou sentindo. Até lá, recomendo o silêncio a vocês, meus irmãos e irmãs. Porque, afinal, nós somos só carne. E carne não fala.

“Calem-se, seus bastardos”, pensou Mandred consigo mesmo. “Repreendam-me! Em duas ou três horas, Farodin vai me tirar daqui. E aí vocês beijarão meus pés por eu ter vindo até aqui.”

O espelho

Nuramon acompanhou o rei dos anões. Tinha certeza de que, no fim do caminho, outra surpresa esperava por ele. Na sua vida atual ele jamais encontrara tanto reconhecimento como ali, nos átrios dos anões. O rei dera uma festa em sua honra e Nuramon celebrou de forma tão animada que ele mesmo mal se reconheceu. Um pouco de amabilidade bastara para que já se sentisse parte da comunidade. Embora os anões afirmassem que ele erguera o copo de forma muito nobre, tinha se esforçado o tempo todo para assumir suas maneiras cruas à mesa e aceitar pratos e bebidas que ele jamais teria comido em outra ocasião.

Muitos anões lhe perguntaram se ainda se lembrava de tê-los encontrado. Mas, para o seu pesar, ele não reconhecia ninguém de sua vida anterior. Até tivera esperanças de que o ambiente familiar pudesse refrescar sua memória, mas estava claro que não era assim tão fácil. Mas acreditava em Thorwis, então um dia ele voltaria a reconhecer seus amigos e a compreender o que um dia viu, pensou e sentiu.

Há muito Nuramon já entendera o porquê de ter sido tão próximo dos anões em sua vida anterior, embora à primeira vista tivessem tão pouco em comum com ele. Thorwis dissera-lhe que os anões de fato conheciam o luar e o chamavam de luz de prata, mas que até então só poucos haviam partido para essa luz. A maioria dos anões guardava as experiências de uma vida e morria em algum momento, para então tomar posse de sua própria herança em uma nova vida. Desde o começo, o renascimento foi a regra para os filhos de albos das trevas. E todos viam a morte somente como uma interrupção da vida, como um sono que turvava a memória. Com o tempo, era possível recuperar essas memórias. A morte, então, não era mais que um sonho curto.

Alguns anões tinham resgatado as lembranças de todas as suas vidas. Thorwis e Wengalf estavam entre eles. Mas a maioria ainda encontrava-se no caminho para essa meta. Até que a alcançassem, leriam os escritos que eles mesmos deixaram para trás para tomar conhecimento de seu passado.

Nuramon ainda estava distante dessa lembrança. Sabia pouco sobre suas vidas e também não havia deixado nada para si mesmo. Wengalf e Thorwis haviam relatado que ele conhecera os anões na Terra dos Albos, que fora embora dali com eles e que nesse lugar realizara alguns feitos heroicos. Mas o que eles tinham a dizer sobre ele ia contra a imagem que construíra de si mesmo. Eles falavam de um herói como os que eram cantados nas antigas canções. Mas o que ele já concretizara nesta vida para merecer um reconhecimento como esse? Nada!

Wengalf arrancou Nuramon de seus pensamentos.

— Estamos quase lá. Precisamos seguir por aqui.

O anão virou em um largo corredor. Ali estava frio, o que não combinava nada com a luz morna que as pedras de barin nas paredes forneciam. A uma certa distância, Nuramon pôde ver uma luz mais forte que brilhava até o corredor.

— Que lugar é aquele? — perguntou Nuramon.

— Aqueles são os átrios das faces — respondeu o rei dos anões de forma enigmática.

Eles estavam cada vez mais próximos daquela luz. Alguns passos adiante, Nuramon reparou que as paredes pareciam estar incrustadas de gelo. Um olhar mais atento o fez perceber que se tratavam de cristais. Quando chegaram à luz, Nuramon viu como as paredes eram arranjadas: minerais brancos cresciam delas em finas agulhas de cristal, parecendo tufos. Do outro lado desse trecho, abria-se um corredor para uma sala redonda, com uma cúpula abobadada relativamente baixa e que deixava a luz descer do teto até cobrir um cristal de rocha da altura de um elfo. Dentro desse cristal havia uma silhueta.

— Você não me perguntou o que fizemos com o seu corpo depois da morte — disse Wengalf em voz baixa, enquanto andavam ao encontro do grande cristal.

Nuramon assustou-se. Diante dele, dentro do cristal, havia um elfo vestido com uma armadura de metal. Seus olhos estavam fechados como se estivesse dormindo. Para Nuramon, era como se olhar no espelho. Era verdade que o homem ali dentro tinha cabelo preto em vez de castanho e muito mais longo que o dele. Seu rosto era um pouco mais largo e o nariz, mais curto. Mas, apesar das diferenças, ele reconhecia a si mesmo naquele elfo. Os anões haviam trazido seu corpo sem vida àquela sala e, com suas habilidades mágicas, posto-o dentro do cristal de rocha. O resultado parecia a estátua de um herói. Nuramon deu a volta em torno do cristal e examinou o corpo de sua vida anterior. Comparado a esse guerreiro, de ombros largos e porte nobre, ele devia parecer uma criança. Mas ainda assim não havia dúvidas de quem se tratava.

— Como vocês fazem isso? — perguntou a Wengalf. — Por que vocês amortalham os corpos assim? Como eu posso acreditar em uma só grande vida se aqui vejo o corpo de outra pessoa diante de mim?

Wengalf levantou os olhos para ele com seriedade.

— Thorwis achou que você devia ver isso e que agora era o momento certo. E eu tenho a mesma visão. Você precisa aprender que é muito mais do que só o seu corpo. — E apontando para o cristal: — Na morte, você se despiu desse aí como faz com uma armadura cujos dias chegaram ao fim. E que dias foram aqueles! — O olhar do rei dos anões perdeu-se no vazio. — A morte é dolorosa, e a lembrança dela raramente é agradável. Mas, quando venho a estes átrios para ver meus corpos antigos, eu me fortaleço. Eu contemplo o meu rosto anterior e reconheço o que fui. Minha lembrança torna-se clara. Diante dos meus corpos anteriores, sinto-me transportado para os velhos tempos.

Wengalf tinha razão. Por que deixar o corpo perecer se a sua visão podia servir de ponte para o passado? Nuramon aproximou-se da pedra. Só agora percebia que havia algo apoiado no cristal. Tinha passado despercebido, tamanho foi o encanto que o vulto exerceu sobre ele. Era uma espada com o cinto e a bainha, e ao lado dela havia um arco esticado com uma aljava cheia de flechas.

— Por que as armas não estão fechadas ali dentro junto com ele? — perguntou ao rei dos anões.

— Essa é uma pergunta inteligente. Mesmo um anão faria essa pergunta. — O rei dos anões veio ao seu lado e olhou para cima, para o velho corpo de Nuramon. — Você e eu falamos com frequência sobre a morte. Thorwis nos disse que sua alma retornaria à Terra dos Albos quando você morresse. E lá não havia ninguém que pudesse contar a você a história da sua vida. Você precisa saber que, quando renasceu, precisou tolerar certa zombaria naquela época.

Nuramon pensou no seu clã. Com certeza ainda viviam com medo de que algo pudesse acontecer a ele de forma a fazer o próximo Nuramon renascer junto deles.

O rei prosseguiu:

— Mas você tinha certeza de que o caminho o traria de volta para cá caso perdesse a vida. Você dizia: “Quando eu morrer, guardem minhas armas. Na nova vida eu as apanharei de volta”. — Wengalf sacudiu a cabeça. — Na época nós rimos. Não pensávamos que a morte chegaria tão rápido para nós. Essas aí são as suas armas. Você era um arqueiro distinto e um mestre da espada.

— Eu era um bom arqueiro? Não posso acreditar nisso.

De fato, Nuramon conseguia lidar razoavelmente com um arco, mas mal era possível compará-lo com os mestres caçadores de sua pátria.

— Você precisa se acostumar ao fato de que outrora foi diferente do que é hoje. Um dia você irá transpor as barreiras que o separam da sua lembrança. E então as suas habilidades crescerão.

— Assim como as suas cresceram?

— Exatamente. Quando lutamos lado a lado contra o dragão, eu conhecia minhas vidas passadas somente pelos escritos que deixara para mim, pelo livro do rei e pelo que minha família contava. Ainda no meu leito de morte, contei a Thorwis sobre a minha luta contra o dragão para que, na nova vida, também pudesse descobrir sobre ela. Aí eles me coroaram, pois eu nunca me despedi da vida sem carregar uma coroa. Então morri. Mas eu não precisei fazer esforço para recuperar minhas lembranças. Eu as consegui logo na vida seguinte.

— Se você se lembra, então também sabe como é... morrer.

Wengalf riu.

— A morte não é nada mais que um sono. Você adormece e em algum momento acorda. Mas alguns de nós sonham. Eles veem os albos, veem a luz de prata, descobrem sobre o passado ou o futuro. Mas o que isso significa só os sábios podem dizer.

— Você quer dizer Thorwis.

— Eu sempre tentei induzi-lo a me revelar alguma coisa sobre os sonhos da morte. Mas ele disse que nunca sonhou enquanto estava morto, que não pode falar do que nada entende.

— Você já sonhou?

— Sim. Mas o que quer que tenha visto, preciso guardar para mim até o fim.

Nuramon não perguntou mais. Olhou para as armas a seus pés e apanhou o arco. Talvez ele pudesse trazer de volta a sua lembrança. Queria saber como viveu um dia na Terra dos Albos. E talvez, ao contrário de Thorwis, tivesse sonhado na morte.

O arco era de madeira clara; a corda, de um material totalmente desconhecido para ele. Brilhava na luz. Devia ser um dos arcos encantados que ele conhecia das lendas de sua infância.

Ele passou a mão sobre a madeira lisa do arco. Ainda estava intacta. Um aroma chamou sua atenção. Ele cheirou os dedos, e depois diretamente a madeira. Conhecia-a melhor que qualquer outra na Terra dos Albos. Era de Ceren, a árvore que fora usada para construir a sua casa. Melancólico, lembrou-se de seu lar. Sem se despedir nem mesmo de Alaen Aikhwitan, ele partira de forma precipitada para alguém que talvez jamais voltasse. Com esse arco longo, ele carregaria algo consigo que sempre o lembraria de sua casa. Mas de onde vinha a corda? Parecia um fio de prata. Testou-a, passando os dedos ao longo dela, e então puxou-a. Ela emitiu um som nítido, quase como o de um alaúde.

— Antes você torcia o nariz para as nossas bestas, dizendo que o arco era melhor.

— E? Eu tinha razão?

— As armas são sempre tão boas quanto aqueles que as manejam. Assim, para você o arco era superior à besta. Pegue-o! Talvez com ele alcance as alturas que um dia já percorreu. — Ele apanhou o arco. — Estas flechas nós produzimos para você. São um presente especial, pois o arco não é feito para nós, anões. Mas olhe as pontas delas. — Ele puxou uma flecha para fora. Sua ponta era de ferro lustroso. — Desde o dia da sua morte, há mais de três mil anos, elas estão aqui, e não sofreram nenhum dano. É o feitiço do metal dos anões.

Toda vez que os anões se referiam a quando ele morreu ali, ele se perguntava quantas vidas houve entre aquela e a de hoje. Mesmo para um elfo, três mil anos eram muito tempo.

Wengalf estendeu-lhe a aljava com a cinta. Nuramon apoiou o arco na perna e então pegou-a. O anão sorriu.

— Você não se esqueceu de tudo. Veja como apoia o arco... Exatamente como naquele tempo!

Nuramon admirou-se. Tinha feito sem pensar.

Agora o rei dos anões estendia-lhe a espada.

— Esta é a sua espada. Sua lâmina estreita é dos tempos remotos, quando anões e elfos forjavam lado a lado.

Nuramon recebeu a arma. Era leve para uma espada longa. Seu pomo era em forma de disco; a guarda, estreita, não oferecia muita proteção à mão. O punho era curto, mas ajustava-se à sua mão como se tivesse sido feito para ela. Nuramon puxou a arma da bainha e examinou a lâmina. Era mais longa que a da espada de Gaomee. Não apresentava sulcos, mas ainda assim era leve. Isso devia ser em parte pelo fato de a lâmina ser realmente estreita. Mas só isso não podia explicar seu baixo peso. O metal tinha a aparência de aço comum. Devia haver um feitiço na arma, embora não sentisse nada. Estranhou, pois desde a busca por Guillaume, havia se tornado muito sensível a magia.

— Uma espada lisa, e sim, encantada! — esclareceu Wengalf. — Você me disse uma vez que a espada era um velho tesouro de sua família.

A espada era sua! Quem sabia em quantas vidas ele a carregara consigo? Agora ele possuía duas espadas que foram usadas contra dragões. Uma estava conectada a esta vida, e a outra às anteriores. Olhou novamente para seu corpo de antes. Ele usaria a espada de Gaomee até que chegasse o dia em que se lembrasse de suas vidas anteriores e os feitos do guerreiro morto diante dele se tornassem o seu próprio passado.

A despedida de seu corpo antigo e da sala não foi fácil. Tinha a sensação de estar deixando algo para trás. Contrafeito, seguiu Wengalf para a sala do rei, onde guardas esperavam por eles. Mesmo que, enquanto isso, os caminhos já tivessem se tornado familiares, ele poderia passar séculos no Reino dos Anões sem desvendar todos os segredos daquele mundo na montanha. Se algum elfo da Terra dos Albos soubesse o quanto aquele lugar o agradava, com certeza a zombaria aumentaria ainda mais. Os elfos não queriam ter nada com os anões.

Como esse povo podia ter caído em tamanho esquecimento, a ponto de sequer se saber que eram eles os filhos de albos das trevas? O rei Wengalf atribuía isso ao conflito que fez com que elfos e anões rompessem. Os anões não reconheceram nenhuma rainha élfica e, por isso, até fizeram guerra, para então virar as costas para a Terra dos Albos. Depois disso, os anões tornaram-se personagens de lendas e os filhos de albos das trevas, mitos.

Nuramon desejou que pudesse ficar ali, aprender com os anões e um dia retornar à Terra dos Albos como alguém que recuperara as lembranças de suas vidas anteriores. Mas bastava um pensamento em Noroelle e a saudade e a preocupação o incentivavam a ir adiante. O que sua amada acharia daquele lugar? Ele não sabia dizer.

Eles caminharam até o portão, onde Thorwis os aguardava. O velho feiticeiro vestia uma túnica branca reluzente e segurava um bastão de madeira petrificada nas mãos.

— Ouça-me, Nuramon, amigo dos anões!

Nos últimos dias ele ouvira esse nome com frequência. E também dessa vez um arrepio percorreu suas costas.

Thorwis continuou:

— Seus feitos ao lado do nosso rei jamais serão esquecidos. Meus companheiros e eu precisamos nos esforçar para convencer o rei Wengalf de que o lugar dele é aqui e de que outra pessoa deve procurar pelo oráculo Dareen ao seu lado. Foi tarefa minha escolher o seu acompanhante.

— Você fez a sua escolha? — perguntou Wengalf.

— Sim, meu rei. Não foi fácil. Pois vozes vieram ao meu encontro de todos os lados, pedindo-me para escolher este ou aquele. Eu tive dificuldade e não queria dar prioridade a um em detrimento do outro. Mas, então, percebi que o destino já havia tomado a decisão. — Ele apontou para uma fila de guerreiros bem armados. — Aí vem o seu companheiro.

Os guerreiros abriram caminho para Alwerich, que apresentou-se carregando uma grande bagagem e vestindo um traje de malha de ferro e um casaco pesado.

— Aqui está o anão cujos olhos o encontraram primeiro nesta vida! — disse Thorwis, acenando para o jovem guerreiro.

Alwerich curvou-se diante do rei e então baixou a cabeça para Thorwis e Nuramon.

Wengalf pousou a mão sobre o ombro do jovem.

— Alwerich, esta é a primeira viagem em muito tempo que levará um anão pela trilha para fora destas montanhas. O último a empreender uma jornada lado a lado com um elfo fui eu. Honre o nosso povo e jure que será um companheiro para Nuramon como fui um dia.

— Eu juro! — disse Alwerich solenemente.

Thorwis colocou-se ao lado do rei.

— Você sabe que pergunta deve fazer ao oráculo.

— Sim, eu sei, mestre. E eu voltarei com a revelação dele.

Alwerich virou-se mais uma vez, aproximou-se de uma anã nobremente vestida e abraçou-a. Então retornou.

— Este é o meu machado, irmão de armas!

Puxou o machado de guerra e estendeu-o na frente de Nuramon. A arma tinha o cabo curto, com uma grande lâmina em uma ponta e a parte oposta em forma de bico.

— Você deve cruzar armas com ele — sussurrou Wengalf.

Nuramon sacou a espada de Gaomee da bainha. Se ainda há pouco soavam cochichos, ruídos metálicos e um pouco de excitação no átrio dos anões, agora todos os sons tinham se calado. Só o murmúrio do vento e da água da fonte quebravam o silêncio. Os olhos de Wengalf, assim como os de Alwerich, eram os de quem tinha visto um fantasma. Thorwis era o único que não parecia surpreso. Em vez disso, olhava para a arma com um sorriso estampado na face.

— Lustro de estrelas! — disse Wengalf, baixo.

O som de suas palavras ecoou por todos os lados em novos sussurros.

Lentamente, Nuramon conduziu sua espada até o cabo do machado de guerra de Alwerich e disse:

— Irmãos de armas!

Sem desviar o olhar da espada de Gaomee, o jovem anão puxou seu machado de volta.

Nuramon estava inseguro. Todos olhavam a espada tão desconcertados que ele só conseguiu deixá-la escorregar para dentro da bainha com muita hesitação.

— Você tem ideia do quanto essa espada é valiosa? — perguntou Wengalf.

— Aparentemente eu não a avaliei bem — respondeu ele ao rei. — Aqui não existe lustro de estrelas?

— Não, só há na Terra dos Albos. Nós só pudemos trazer um pouco conosco. Só o lustro de estrelas já torna essa espada algo impressionante. Mas, além disso, essa arma é de tempos ancestrais. Ela é mais jovem que a sua velha espada, mas é o trabalho de um anão. Ele forjou muitas armas como essa e foi um dos poucos que partiu para a luz de prata. Posso vê-la mais uma vez?

Nuramon puxou a espada novamente e estendeu-a para o rei. Wengalf pegou-a e passou os dedos sobre a lâmina.

— O grande Teludem fez esta arma para um elfo. — O rei apontou para o nome de Gaomee, em escrita tortuosa. — Este símbolo aqui foi acrescentado mais tarde por mão de elfo. — E, devolvendo a espada a Nuramon: — Há somente quatro dessas espadas élficas feitas pelas mãos de anões. Diziam que todas haviam sido aniquiladas nas Guerras dos Trolls e na luta contra os dragões. Não consigo imaginar um portador melhor para essa arma que você, Nuramon. Ela lhe prestará bons serviços.

Nuramon curvou-se sobre o joelho diante do rei para ficar com os olhos na altura dos dele. Então disse:

— Agradeço a você, a Thorwis e a todos os outros. Eu cheguei a este átrio com esta vida, e estou deixando-o com todas as anteriores. Agradeço a você por tudo que me ofereceu e por aquilo de que ainda não consigo me lembrar. Nós nos veremos novamente, Wengalf. Se não nesta vida, então em uma próxima.

— Se todos os elfos fossem como você, Nuramon, não teríamos virado as costas para a Terra dos Albos — respondeu o rei. — E agora vocês dois precisam ir, antes que eu aja totalmente contra a razão e resolva acompanhá-los.

Nuramon fez que sim com a cabeça. Então se ergueu.

— Adeus! Até a vista!

Lançou um olhar para Alwerich. O anão veio até o seu lado. Nuramon olhou mais uma vez para dentro do átrio gigantesco. Então, os dois companheiros saíram para a luz do sol.

Caminhos sem fim

Farodin acordou em um salto e bateu a cabeça. Estava completamente escuro ao seu redor. Tonto, tateou na escuridão. Suas mãos apalparam rochas e cascalho; doíam.

Lentamente, a lembrança começou a voltar. Tinha adormecido de cansaço. Os trolls haviam preenchido uma parte dos corredores secretos com entulho. Em alguns lugares haviam sido colocadas até armadilhas primitivas, fossas com lanças e pedras pendulares que esmagavam os que estivessem distraídos.

Eles deviam ter mandado duendes ou escravos humanos ali para baixo. Tudo de que Farodin se lembrava já não era mais como agora. Longos túneis tinham desaparecido, portas secretas haviam sido muradas e escadas, demolidas.

Com as mãos nuas, o elfo estivera cavando para penetrar no cascalho. Em algumas partes, só conseguira avançar rastejando de barriga para baixo. Duas vezes tinha cavado por um túnel semicoberto de entulho somente para dar de cara com um pesado bloco de pedra que obstruía a passagem.

Por quanto tempo teria ficado dormindo? Sentia uma fome que o corroía por dentro. Sua garganta estava seca e os lábios, rachados. Será que ficara dias inteiros ali? A escuridão privava-o de qualquer noção de tempo. Só a fome e a sede serviam de medida para os dias que se passaram. Devia fazer cerca de cem horas desde que se separara do filho de humanos. Agarrou o cascalho e afastou as pedras soltas de lado para baixo dele. Como uma toupeira, avançava centímetro por centímetro. O que teria acontecido com Mandred? Ele devia fazer o papel de enviado somente por algumas horas. Quatro dias era tempo demais!

Com um estrondo, os escombros rolaram para a frente. Tinha conseguido abrir passagem! Escorregou um último trecho sobre pedras angulosas e então chegou a um corredor em que conseguia andar abaixado. Seguia em frente tateando cuidadosamente. Dez passos. Vinte passos. O corredor subia levemente.

De repente deparou com um muro de pedra de alvenaria e argamassa. abriu os braços, nervoso. À direita e à esquerda havia sólidas paredes de rocha. Estava cercado de pedra pelos três lados. O elfo gania de raiva. Mais uma vez, tinha caído em um beco sem saída!

Irmãos de armas

Nuramon e Alwerich haviam deixado as montanhas. Andavam sobre os prados das planícies, seguidos por Felbion. O anão olhou em volta. Para ele, o horizonte aberto parecia não ter limites, era possível sentir nitidamente que a amplitude o deixava inseguro. Além disso, Alwerich simplesmente não queria cavalgar com Nuramon sobre Felbion. Caminhou ao lado do cavalo por dias até que seus pés estivessem totalmente feridos. Se ele não tivesse negado convictamente a proposta de Nuramon de viajar pelos portais que o elfo da Terra dos Albos conseguia criar, já estariam em seu destino há muito tempo. Mas o anão tinha uma cabeça tão dura como Nuramon até então só havia encontrado em Mandred.

Alwerich baixou o olhar para os pés.

— Suas mãos curadoras são poderosas.

— Mas elas nunca tinham tocado pés de anão antes — disse Nuramon, sorrindo. — Pelo menos não nesta vida.

— Se seus amigos elfos na Terra dos Albos soubessem disso, com certeza torceriam o nariz.

— Você podia lavá-los pelo menos de vez em quando — disse Nuramon, lembrando-se da cura que fizera.

Tocar os pés do anão fora um grande sacrifício para ele.

— Vou melhorar nisso.

— Não se preocupe com isso. As mãos dos elfos não ficam sujas. A poeira não fica presa na minha pele; a água forma gotas redondas ao tocá-la; consigo me livrar de esguichadas de lama somente com uma chacoalhada rápida.

— Então você não precisa se lavar nunca?

— Mas eu me lavo mesmo assim.

— Quando? Eu nunca vi.

— O que você não vê ainda assim pode acontecer, Alwerich. Só quando aquilo que você vê não acontecer é que deve começar a se preocupar. Agora diga... Antes de partirmos, você foi até uma mulher e a abraçou. Era a sua mulher?

— Sim. Aquela era Solstane.

— O amor dos anões dura para sempre? Vocês se veem de novo nas novas vidas?

— Nós nos vemos de novo, mas não necessariamente precisamos nos amar. Veja o caso do rei. Nesta vida ele ainda não escolheu nenhuma mulher. A rainha de sua última vida já era mais velha quando Wengalf nasceu na sua vida atual. Quando cresceu, ele tomou-a como esposa novamente. Mas eles não se suportavam mais. Com a morte, ela foi separada dele. Em algum momento, ele escolherá uma outra mulher e gerará descendentes.

— Então não existe algo como o amor eterno?

— Ah, sim. Alguns prometem tirar a própria vida quando os amados morrem. Então eles os seguem, e assim podem crescer juntos e algum dia se amarem novamente. Foi isso o que cumpri com minha amada. Na escritura da minha vida, consta que Solstane e eu já éramos um casal na Terra dos Albos. Nós nos amamos, ficamos muito velhos e geramos muitos filhos.

Nuramon admirava Alwerich. Um amor que durasse para sempre era algo com que ele mal ousava sonhar. Ele sequer sabia se seria possível salvar Noroelle. Esperava que sim e acreditava nisso, mas saber, de fato, só Emerelle sabia. E mesmo que ele e Farodin conseguissem libertar a amada e que os anos no Mundo Partido não a tivessem mudado, ela ainda precisaria se decidir por um deles. Talvez o seu amor por Noroelle pudesse mesmo se tornar um amor eterno...

De repente, foi tomado por dúvidas. E se a lembrança de suas vidas anteriores retornasse e lhe mostrasse que tinha um amor imortal por outra mulher? E se ela também tivesse renascido?

Mergulhados em pensamentos, eles seguiram adiante em direção ao oráculo Dareen.

Menu especial

Um grito eufórico anunciou a chegada da comida. Agora com as mãos livres, Mandred mordeu a coxa pingando de gordura contra sua vontade. Toda vez que o cozinheiro real Scandrag aparecia, não conseguia evitar a lembrança da refeição com o duque. No começo, Mandred se recusara a comer carne. Mas então a fome venceu. Além disso, ele precisava ter forças quando Farodin viesse...

Por falar em Farodin, o que teria acontecido com ele? Se ainda estivesse vivo, já teria vindo há muito tempo! Calma, advertia-se Mandred em pensamento. Farodin virá! Algo devia ter atrasado o seu caminho, mas nada era capaz de dissuadi-lo do que ele metia na cabeça. E, além disso, ele era danado de difícil de matar.

Mandred olhou furtivamente para Scandrag. O troll acabara de cortar uma pilha enorme de cebola. Ele cuidava bem dos hóspedes da despensa do duque, ao menos pelo padrão dos trolls. A cada poucas horas, descia a gaiola de Mandred e o fazia comer. Havia muito pão, legumes, ovos frescos e peixe. Hoje Scandrag estava especialmente atencioso. Já tinha fritado ovos com toucinho para o filho de humanos em uma frigideira enorme duas vezes. Gostava das gemas ainda moles. Ele mergulhava pão fresco nelas e o enfiava na boca, em grandes pedaços...

Mandred acabara de se virar para pegar no forno uma segunda borda de pão, quando viu Scandrag rapidamente esconder alguma coisa atrás de suas costas largas.

Num ter meedo, homem pequenum. Faz carne duura! Te acabo rápido! — Pelo tom que usava, o troll parecia estar falando com uma criança travessa.

Mandred agarrou a grande frigideira. Era de cobre escuro. Não havia ferro em toda a cozinha.

O cozinheiro franziu a testa e esfregou o nariz gordo. Ainda tinha a mão direita escondida atrás das costas.

Por favoor. Eu seempre fui bom pra homem pequenom. Sem nervooso agoora.

Ele avançou de repente. O troll era assombrosamente ágil para o seu tamanho. Agora brandia sua enorme clava, mirando na cabeça de Mandred.

O humano jogou a frigideira quente na direção do cozinheiro, que se defendeu lançando-a de lado com um movimento rápido.

Acabaar isso agoora!

Mandred agarrou uma faca de pedra e pôs-se de joelhos. Os longos dias na gaiola tinham deixado suas articulações rígidas. Scandrag errou-o por pouco com sua clava.

Saltou sobre o imenso cozinheiro e enfiou-lhe a faca, atravessando seu pé. O troll grunhiu, furioso. Um chute com o pé intacto varreu Mandred para o lado e arremessou-o contra o grande forno de alvenaria. A sensação do guerreiro foi de ter quebrado todos os ossos. Semiconsciente, ainda viu Scandrag erguer-se diante dele com a clava na mão.

Vai ficaar gostooso com croosta de meel!

A maldição do duque dos trolls

Com um rangido baixo, finalmente uma porta começou a se abrir. Farodin suspirou aliviado. Quase não acreditava que ainda conseguiria. Finalmente tinha saído do labirinto!

Continuou empurrando cuidadosamente a porta secreta até a fresta ficar larga o suficiente para que pudesse passar por ela. O elfo agora se via em um corredor estreito, banhado por uma meia-luz cinzenta. Fechou novamente a porta secreta com cuidado, até encaixá-la perfeitamente no batente de madeira. Puxou uma das facas e fez um pequeno entalhe na madeira para que mais tarde ele ou outras pessoas pudessem encontrá-la de novo. Então enfiou o punhal de volta no forro de couro da manga e pôs-se a caminho na descida. Ele sabia onde encontraria Mandred, isso se o seu companheiro ainda estivesse vivo. Shalawyn descrevera a ele o destino dos prisioneiros. Se tudo corresse bem, os trolls iriam se lembrar daquela noite por muito tempo.

Logo o elfo chegou a uma escada de caracol que levava para baixo até os armazéns. Ali na torre nada havia mudado. Tinha menos móveis e estava mais suja, mas, fora isso, tudo estava como na sua memória. A fortaleza era tão enorme que, seguindo pelos corredores e escadas um pouco mais afastados, mal era necessário temer encontrar alguém. Para esquivar-se de trolls, uma vez Farodin escondeu-se sob um patamar da escada; em outra, sumiu nas sombras de um nicho profundo. Eles eram desatentos. Mas também por que deveriam ser cuidadosos? Séculos já haviam se passado desde a última vez que alguém ousou atacá-los.

Farodin estava quase no destino quando chegou a um corredor com vários trolls deitados. Seus roncos gargarejantes o alertaram. Eram cinco. Jaziam de atravessado no corredor, recostados nas paredes. Um barril vazio alimentava a esperança de que não acordariam tão fácil assim. Por um momento, teve o forte desejo de cortar-lhes as gargantas. Mas seria tolo deixar um rastro como esse. Quanto mais tarde os trolls percebessem que havia um inimigo na torre, melhor.

Com cuidado, começou a passar furtivamente entre os trolls adormecidos. Estava quase conseguindo, quando um deles se espreguiçou e rolou para o lado, para cima de uma poça de vômito sangrento. Grandes vermes esbranquiçados boiavam nela. Não... Não eram vermes. Eram dedos magros, brancos como a neve que acabou de cair. Um calafrio de náusea percorreu o elfo. O tamanho e a forma dos dedos só admitiam uma conclusão sobre a quem pertenciam. O sussurro torturado de Shalawyn à beira da morte soou novamente em seus ouvidos: Eles nos mantêm em gaiolas, como aves; nos fazem engordar e, finalmente, nos abatem para suas festas.

Sacou um punhal e aproximou-se do troll que rolara sobre seu próprio vômito. Sua mão adiantou-se. A lâmina entrou poucas polegadas acima do olho esquerdo do troll. Por ali era fácil cravar o aço bem fundo no crânio. O troll nem sequer pôde perceber que sua vida acabara. Mas Farodin não devia se entregar ao ódio.Não podia ser descoberto cedo demais! De surpresa, mataria ainda mais trolls! E, sobretudo, era importante matar somente aqueles dos quais se aproximasse sem aviso.

O elfo expirou lentamente. Sem perder o controle, advertiu a si mesmo em pensamento. “Calma! Primeiro você salva todos os que ainda estão vivos. Depois começa a matança!”

Correu apressado pelo corredor. O cheiro de assado pairava no ar. Sentiu náuseas. Acelerou seus passos e chegou a um cômodo de teto abobadado. Não se lembrava desse lugar no passado. Havia seis saídas. O elfo hesitou. O cheiro repugnante de assado estava em todo lugar. E também havia um leve aroma de mel.

Um som alto de metal ressoou. Vinha do corredor em frente. Sem pensar muito em manter a guarda, Farodin avançou naquela direção. Ainda tinha na mão a pesada faca.

Chegou a uma cozinha espaçosa, onde queimavam muitas chamas. O ar estava terrível. Cheirava a fumaça, gordura rançosa, pão fresco e carne assada. Ao lado de um forno de alvenaria havia um troll imenso. O devorador de elfos ergueu sua clava para acertar alguém que Farodin não conseguiu ver.

Vai ficaar gostooso com croosta de meel!

O braço de Farodin moveu-se rápido. O punhal acertou a nuca do troll, bem na junção da coluna cervical com o crânio. Mesmo ali da porta, pôde ouvir o estalo do aço cortando entre os ossos. O troll soltou sua pesada clava de madeira. Então caiu de joelhos, sem emitir qualquer som.

Ao se aproximar do forno para puxar a faca da nuca do morto, Farodin viu Mandred. O jarl estava caído e sangrava por um machucado na testa. Mal tinha forças para se pôr em pé.

— Você chegou tarde — resmungou Mandred, cuspindo sangue. — É bom pra diabo te ver. — Ele estendeu a mão. — Vai, ajude a levantar. Parece que um bando de cavalos selvagens trotou sobre o meu corpo.

Farodin sorriu.

— Acho que desta vez você exagerou no seu esforço para conseguir um bom lugar na mesa do banquete.

Mandred suspirou.

— Pelo seu humor, você deve ser parente de Luth. Em dias como este eu sempre me pergunto se o deus do destino me odeia ou se isso é só uma forma muito peculiar de mostrar o carinho dele por mim.

— Ainda há outros prisioneiros vivos?

O humano apontou para uma porta semioculta por sacos de farinha.

— Ali.

Mandred levantou-se apoiando no forno.

— Posso entrar primeiro? Ainda tenho uma coisa para resolver lá.

Farodin o amparou, pois Mandred não tinha forças para se manter sobre as pernas. Sua calça estava ensopada de sangue.

Mancando, conseguiu chegar até a porta e escancarou-a.

— Aqui está o mentiroso de vocês, e ele diz que estão livres! E quem não acreditar em mim pode apodrecer na gaiola.

Mandred falara em daílico, com um sotaque tão forte que mal era possível entendê-lo. Farodin olhou desconcertado para os colegas de prisão dele.

— Acho que é isso — o jarl sorriu satisfeito. — Agora eles sabem como é. — Apontou para algumas varas longas com ganchos nas pontas. — Com aquilo você consegue trazer as gaiolas para baixo.

Mandred soltou-se de Farodin e vergou-se quase imediatamente. Praguejando, afundou nos sacos de farinha e apertou a perna esquerda. Uma ponta de osso saía da sua calça rasgada.

— Esse maldito troll bastardo — praguejou.

Suor frio brilhava em sua testa.

Farodin examinou a ferida. Tíbia e fíbula estavam quebradas, e atravessavam os músculos. O amigo devia estar com dores terríveis. Estava aguentando assombrosamente bem. Mas não conseguiria dar nem um passo sem ajuda, e a fuga pelos corredores secretos seria uma tortura mortal para ele.

— Vou fazer talas com as varas de madeira — disse Mandred com esforço. — Aí vai ficar tudo bem.

— Claro — Farodin concordou.

Então apanhou um dos ganchos e entrou no cômodo escuro. O fedor de podridão quase o impedia de respirar. Levou alguns instantes até que seus olhos se acostumassem à escuridão. A câmara era maior que ele esperava, media pelo menos uns vinte passos de diâmetro. Gaiolas em forma de gota pendiam do teto. Devia haver uma centena ou mais. A maioria delas estava vazia.

Farodin conseguiu libertar sete elfos. Eram os últimos sobreviventes. O longo cativeiro deixara marcas neles. Sua pele, que não via a luz do dia fazia dois séculos, se tornara de uma palidez quase mórbida. Seus olhos estavam vermelhos e inflamados, e não conseguiam suportar a luz. O pior de tudo era o que as gaiolas pequenas demais tinham feito a eles. Devido ao tempo em que ficaram curvados, manter-se eretos causava-lhes dores. Não demonstraram alegria quando Farodin os soltou. Agacharam-se silenciosamente no chão. Um homem de cabelo longo e branco tomou a palavra. Elodrin fora um dia o príncipe do distante mar da Alvemer. Farodin se lembrava de tê-lo visto algumas vezes na corte de Emerelle.

— Não foi a rainha que o mandou aqui, não é verdade? — disse o velho com a voz cansada. — Conheço histórias sobre você, Farodin. Você está aqui para a sua própria vingança.

— Isso não vai me impedir de levá-lo para casa.

Elodrin bufou com desdém.

— Olhe para nós! Veja o que eles fizeram conosco! — E apontou para uma elfa, agachada no chão aos soluços. — Nardinel já foi tão bela que não encontravam palavras para descrevê-la. Agora ela é uma mulher entrevada, de alma aflita, e não suporta mais olhar para a luz. Todos aqui ansiávamos pela chegada da morte. Ela não nos assustava. Pelo contrário, a morte significava liberdade e renascimento.

— Para você realmente dava na mesma acabar como carne na mesa do duque dos trolls? Você já tinha desistido assim? — retrucou Farodin, afiado.

Elodrin encarou-o longamente em silêncio. Então sacudiu a cabeça de forma quase imperceptível.

— Perdoe-me se não consigo agradecer a você. Tente nos entender. Você na verdade só salvou a nossa carne. Orgrim já nos tirou a vida há muito tempo.

Os elfos precisaram vendar os olhos para conseguir atravessar a cozinha com suas chamas claras. Mandred não ficara tanto tempo preso na escuridão para se tornar tão sensível como os outros. O filho de humanos teria de guiá-los, pensou Farodin, pois ele próprio não voltaria com eles para o barco.

Scandrag guardava os bens de suas vítimas em arcas. Entre joias e armas, encontraram o machado de Mandred. Os elfos nem queriam saber de tudo aquilo, mas Farodin insistiu que cada um deles pegasse pelo menos uma arma. Mesmo que fosse para que pudessem tirar a própria vida antes de serem novamente presos pelos trolls.

Estavam prestes a deixar a cozinha, quando Elodrin recomendou que pusessem fogo nela.

— Esta torre é feita só de pedra — zombou Mandred, que claramente não suportava o velho elfo. — Pedras não queimam. Colocar fogo seria em vão.

— Não se trata disso, filho de humanos. A torre é como uma lareira gigante. A fumaça vai subir. Isso vai desviar a atenção da nossa fuga, e talvez asfixiar algumas dezenas de trolls. Scandrag estoca aqui muitos barris de óleo de baleia. Quando eles pegarem fogo, já não haverá mais chance de apagá-los.

Não demorou muito para encontrarem os barris. Eles partiram alguns para que o óleo jorrasse no chão. Farodin precisou de várias tochas para conseguir atear fogo neles. Junto com a cozinha de Scandrag, também uma boa parte das provisões do Pico da Noite seria aniquilada, e isso no meio do inverno. Em pouco tempo, esses malditos devoradores de elfos passariam fome, pensou Farodin, satisfeito. Colocar fogo ali tinha sido um bom plano! Se os trolls tivessem ideia do que era ter um elfo como Elodrin como inimigo, teriam-no abatido há muito tempo.

Farodin conduziu os fugitivos por um desvio para evitar os trolls adormecidos. Mesmo a luz fraca das pedras de barin nos corredores era clara demais para os prisioneiros acostumados à escuridão completa. Com os olhos vendados, andavam em fila indiana, cada um com a mão direita sobre o ombro do elfo à frente. Nardinel, a elfa de cabelos escuros, apoiava Mandred. O jarl tentava não deixar transparecer nada, mas por causa da dor estava quase tão pálido quanto os elfos.

Se Luth, cujo nome o filho de humanos pronunciava sempre que podia, realmente existisse, então estava de acordo com a fuga deles. Nenhum troll cruzou o caminho até Farodin escoltá-los à porta por onde entrara. Disse aos elfos como encontrariam a Gruta Branca, descendo do labirinto dos duendes. Na escuridão dos corredores eles certamente conseguiriam se orientar. Esperava também que a noite do solstício estivesse escura o bastante para ocultá-los quando andassem pela praia.

Farodin puxou Elodrin de lado.

— Saiba que o humano não sobreviveria se vocês nadassem pela enseada. Ele não pode se proteger do frio da água. — Farodin desejava que Elodrin finalmente tirasse a venda para que pudesse olhá-lo nos olhos enquanto falava. — Mandred veio até aqui sem conhecê-los, e arriscou a vida por vocês.

— Eu não pedi que ele fizesse isso — retrucou o velho.

— A água gelada o mataria, Elodrin. Vocês precisam passar pelo píer e então caminhar pela praia até a caverna.

— Se for para fazermos esse caminho, então já podemos nos entregar agora mesmo para os trolls. Se a lua estiver no céu, na praia nós não passaremos despercebidos.

— Não há outro caminho para Mandred!

— Então foi uma decisão imprudente ele ter vindo até aqui.

Farodin tinha a sensação absurda de que Elodrin podia vê-lo através da venda; de que o velho o estudava, cada um de seus gestos e cada oscilação em seu tom de voz.

— Você ficou tempo demais no mundo dos homens, Farodin. Agora há algo deles em você. Eu sinto nitidamente. Se você está tão preocupado com a vida de Mandred, então venha conosco.

Indeciso, Farodin olhou para o corredor estreito que subia. Tinha certeza de que ele levava até o duque dos trolls. Mandred e os elfos restantes já tinham desaparecido há muito tempo no labirinto dos duendes.

— Vocês têm de deixar a caverna antes da maré cheia. Se até lá eu não estiver com vocês, então não esperem mais por mim. Se eu não voltar, viaje em meu lugar a Firnstayn. Deixem um recado para Nuramon, dizendo-lhe que, de agora em diante, terá de procurar sozinho por Noroelle. — Farodin puxou de seu cinto a pequena garrafinha de prata com os grãos de areia. Já havia reunido 347. — Providenciem para que Nuramon receba isto — disse, apertando a garrafinha na mão de Elodrin. — Ele saberá o que deve fazer.

O velho elfo recebeu a garrafinha.

— Vou cuidar que Mandred passe adiante o seu recado e isto aqui. — Ele agarrou o pulso de Farodin no cumprimento dos guerreiros. — Deixe Orgrim morrer lentamente, se você puder. — Com essas palavras, entrou no labirinto.

Farodin fechou então a porta de madeira. Alisou sua capa rasgada e puxou o capuz sobre a cabeça. Finalmente estava só, ele e as sombras do Pico da Noite.

Ainda não havia sido dado nenhum alarme quanto ao fogo, mas a aparente calmaria não duraria muito tempo. Farodin correu por escadas e corredores. Seu caminho o levava cada vez mais para cima na torre. Pulou por cima de trolls adormecidos e, por duas vezes, conseguiu evitar guardas que faziam sua patrulha. Na segunda vez, precisou se esconder em um recuo na parede externa da torre. Ventos gelados que vinham de baixo agitaram suas roupas. Olhando por entre seus pés, conseguia enxergar até o porto. Sob ele havia mais de sessenta metros até as profundezas.

Finalmente chegou ao acesso para a escada negra. Foi assim que, quando estivera lá da última vez, chamou a escada feita de obsidiana que, escondida em uma parede estrutural da torre, levava até o seu topo. A porta secreta de pedra dançou levemente em seus ângulos. Ficava totalmente disfarçada, atrás da estátua de um urso-polar erguido nas patas de trás, pronto para atacar.

Alguém tinha feito a travessura de arrancar as garras dianteiras em riste do urso. Mas estava claro que nenhum troll nunca se dera o trabalho de observar melhor o nicho atrás da estátua.

Pedras de barin iluminavam com seu brilho fraco os degraus brilhantes da escada. Farodin lembrou-se de seu último dia com Aileen. Dolgrim, o então duque dos trolls, a matara durante as lutas pela Shalyn Falah. Antes de ela morrer, Farodin jurou a ela que jamais haveria outra mulher em sua vida. E jurou perseguir o duque, de renascimento em renascimento.

Farodin havia encontrado e matado Dolgrim ainda antes de o funeral de Aileen ser celebrado. Já assassinara o duque renascido mais três vezes. Assim, evitava que ele partisse para o luar e que o destino do troll se realizasse. Os trolls facilitavam o seu trabalho. Seu chefe era sempre escolhido entre as almas renascidas. Quando um duque morria, seu posto não podia ser ocupado até que um xamã importante tivesse certeza absoluta de ter descoberto o renascido. Só quando um deles partia para o luar é que seu lugar ficava realmente livre. Sempre que ele matasse o duque do Pico da Noite podia ter certeza de que a vida que extinguia era mesmo a do Dolgrim renascido.

Com o coração sobressaltado, Farodin parou no fim da escada de obsidiana. Ouvira um ruído distante, semelhante ao soar de um gongo. Será que o fogo havia sido descoberto? Agora não podia se permitir mais nenhuma hesitação. Agarrou a alavanca de pedra na parede a seu lado. Sem nenhum ruído, o teto sobre ele escorregou até sumir. Farodin admirava as habilidades manuais dos duendes. Tinham colocado aquela porta secreta ali fazia séculos, mas o tempo não fora capaz de desgastá-la nem um pouco. Passou cuidadosamente pela abertura.

A portinhola no chão se fechou atrás dele. Agora não havia mais nenhuma pista da existência dela. Não tinha a menor ideia de como era possível abrir a porta secreta a partir do cômodo em que estava agora. Talvez nunca fora descoberta porque dali não se podia abri-la. Como da outra vez, precisaria escapar por algum outro caminho.

O quarto do duque tinha mudado. Agora parecia menor. Seria por causa da cama imensa? Será que ela era simplesmente maior e agora ocupava mais espaço?

O elfo ouviu a respiração do duque adormecido. Aproximou-se silenciosamente da cama. Por alguns instantes ficou ali quieto, observando a figura que dormia. Acreditava reconhecer alguns traços de Dolgrim na fisionomia de Orgrim, como as rugas profundas nos cantos da boca e ao redor dos olhos. Até durante o sono havia algo de cruel naquele rosto.

Com um movimento ágil, Farodin puxou uma faca e enfiou-a no pescoço do troll, bem acima da laringe.

Orgrim acordou num sobressalto e sua boca se abriu, mais nenhum som saiu por entre seus lábios. Somente um gargarejo baixo do sangue que corria por sua laringe para sufocá-lo. A pontada cortara suas cordas vocais.

O troll agarrou a garganta e torceu-se grotescamente. Seus braços se contorceram e tornaram-se mais finos. Ao mesmo tempo, sua cabeça virou. Atemorizado, Farodin recuou. Nunca vira algo assim antes. A cabeça da criatura na cama agora lembrava a de um grande cão negro.

Uma luz ofuscante preencheu a sala.

— Mas que cão fiel — disse em élfico uma voz quente e obscura. — Está morrendo pelo seu dono.

Farodin deu meia-volta. A parede do fundo do quarto havia desaparecido. Ou melhor, a ilusão da parede do fundo. Agora o cômodo de dormir do duque era novamente tão grande como o que tinha na lembrança. Orgrim estava sentado em uma cadeira escura de carvalho. Bem ao seu lado, uma velha troll estava agachada sobre um banco. Na frente dela havia pequenos ossinhos espalhados no chão, que ela encaixava com seus dedos curvados de artrite formando padrões intrincados. Quatro trolls fortemente armados ladeavam o trono do duque.

— Como você pode ver, esta noite acaba a maldição que você impõe sobre a minha alma. Você é um homem valente, Farodin. Valente, mas louco de pensar que poderia vir a este quarto mais uma vez sem ser notado. Vou comer o seu coração em respeito à sua coragem, mas certamente não o seu cérebro, elfo. Há três dias esperamos por você aqui todas as noites.

A única porta da torre para o quarto se abriu. Lá também o esperavam trolls fortemente armados.

Farodin puxou uma faca e arremessou-a contra o duque. Ele desviou e a lâmina errou seu pescoço por menos de um dedo, enterrando-se na madeira escura do trono. Farodin praguejou. Orgrim movia-se extraordinariamente rápido para um troll.

Os guardas avançaram de trás do trono. Farodin deixou-se cair, rolou no chão e puxou a próxima faca. Rolando para a frente, cortou os tendões do calcanhar de um troll. O gigante encolheu-se de dor.

Um golpe de machado errou o elfo por pouco. Ele se pôs de pé em um salto e fincou seu punhal no ventre de um troll. Agora estava no meio dos guardas; pôde ver que eles se atrapalhavam uns aos outros com seus grandes escudos e armas de cabo longo.

Farodin desviou de uma pancada de escudo, agachou-se novamente e cravou seu punhal por trás do joelho do agressor. O gigante deu um grito estridente e saiu do alcance de Farodin com um salto desajeitado.

O elfo pulou para se erguer, puxando outro punhal durante o movimento. Agarrou a borda do escudo do guerreiro à sua frente. Apoiado nele com toda a força, lançou-se para o alto como um acrobata, pulando sobre o escudo com uma cambalhota. Ainda no ar, acertou um punhal no olho do dono do escudo.

Com os braços para o alto e num equilíbrio perfeito, Farodin aterrissou atrás do troll. Não sairia vitorioso contra todos eles, que estavam em maior número, mas talvez pudesse levar Orgrim consigo na morte! Puxou, então, duas facas. Mais guardas vieram apressados da porta do quarto, mas naquele preciso instante havia somente um troll entre ele e o duque. Desviou de um golpe de clava do último guarda, atravessando um punhal no pulso do troll e fazendo com que ele deixasse sua pesada arma cair.

Enquanto isso, Orgrim levantara seu pesado trono e o arremessara na direção de Farodin. O elfo jogou-se no chão para desviar, batendo com força seu ombro. O pesado móvel voou por cima dele e arrebentou-se na parede oposta.

Ainda caído, um grito gutural desviou sua atenção. O ar naquele quarto ficara repentinamente gelado. Era a velha xamã, que agora elevava seus magros braços. Raios de luz clara dançavam ao redor de suas mãos. Farodin arremessou seu punhal, e a xamã despencou de seu banco com as mãos na garganta. Sangue escuro brotou entre seus dedos.

Orgrim, no entanto, aproveitou-se da distração de seu inimigo para apanhar uma clava.

Farodin puxou sua espada e a última faca. De canto de olho, viu guerreiros entrarem pela porta. Um deles ergueu o braço para lançar seu machado. Como um raio de prata, a faca partiu da mão do elfo e acertou a testa do guerreiro.

Orgrim, porém, agora estava próximo e brandia sua clava no ar. O elfo quis mergulhar por baixo do golpe, mas o duque mudou sua direção no último momento. Farodin ainda conseguiu erguer a espada, mas a violência da pancada arrancou-lhe a arma da mão. Ela deslizou no chão até a porta.

Orgrim deu uma gargalhada estridente.

— Então é isso, elfinho. Desarmado, você está morto!

Farodin saltou e bateu com os dois pés sob o queixo do gigante. Pôde ouvir os dentes do duque se estilhaçarem com a violência da batida das mandíbulas. Com a força do choque, Orgrim cambaleou para trás.

Farodin rolou para o lado. Em meio a gemidos e gritos, um tilintar o fez dar meia-volta. Os guerreiros restantes mantinham distância dele. A xamã estava novamente de pé, com o punhal no chão diante dela. Bem lentamente, ela pôs um pé sobre a arma.

O elfo ergueu os olhos. A ferida na garganta da velha mulher havia se fechado. Seus olhos ardiam febris.

Farodin baixou o olhar, mas já era tarde demais. Contra a sua vontade, deu um passo para trás. Ela assumira o controle sobre o elfo.

As folhas da janela se abriram com um estalo. O ar gelado adentrou o quarto.

— Você realmente achou que conseguiria matar o duque novamente? E pensou que eu toleraria isso até o fim dos tempos? — disse, desafiadora. — Há séculos eu sabia que você retornaria. Sua presunção é o que vai custar a sua vida, elfo; a crença de que conseguiria nos vencer uma vez depois da outra. Nem Emerelle é tão atrevida quanto você.

A vontade da xamã obrigou Farodin a erguer a cabeça e olhá-la no rosto. Deu outro passo para trás, e então mais um...

Farodin tentou combater desesperadamente o feitiço que ditava os movimentos de seu corpo. Mas estava desamparado como uma criancinha que esperneava para se desvencilhar de um adulto. E sentia a presença dela em seus pensamentos. Estava se apoderando de suas memórias!

A xamã o obrigou a subir no parapeito da janela. O frio cortante o golpeou. Uma nevasca havia começado. Isso era bom. Não! Ele não podia... Tentou pensar em Noroelle.

A velha sorriu.

— Os prisioneiros elfos fugiram, e também levaram o filho de humanos.

Lançou a Farodin um olhar inquiridor. O elfo tentou esvaziar seus pensamentos, invocando a imagem de um amplo e branco campo nevado. A xamã, no entanto, se apossava de suas lembranças sem esforço aparente.

— Os fugitivos querem chegar a um barco escondido em uma caverna do outro lado do fiorde.

— Mandem tropas de busca para a praia — ordenou Orgrim. — E também deixem dois navios prontos para partir.

— Você está em boa companhia, duque. — De forma fantástica, a voz da velha encobriu os bramidos da tempestade. — Ele também já matou soberanos de seu próprio povo. Por ordem de sua rainha. Você tem medo da morte, carrasco? — perguntou ela, curiosa.

De repente, duas rugas profundas se formaram em sua testa. Seus olhos se arregalaram de espanto.

— O devanthar...

Farodin sentiu o poder sobre ele se afrouxar de repente, e como ela, assustada, se retirou de suas memórias.

Seu corpo agora o obedecia totalmente. Farodin pôs as mãos sobre o parapeito congelado da janela. Ela esperava que ele, com medo, desse um salto para a frente? Estava totalmente equilibrado. Em segurança. Baixou a cabeça como um membro da corte:

— Vocês me dão licença de guardar meus pensamentos só para mim?

Com essas palavras, Farodin jogou-se para trás do parapeito da janela. Contra o duque, não conseguiria fazer mais nada. Era melhor morrer assim do que se entregar aos trolls sem ter controle de si.

Farodin despencou na escuridão. Suas costas bateram com força contra um dos pilares que sustentavam a torre. Ele escorregou dali e caiu, cada vez mais para o fundo. Meio anestesiado pela dor, tentava controlar a queda, esticando o corpo para se adiantar e tentar se agarrar a um parapeito ou a uma saliência qualquer. Mas, enquanto caía, sua capa esvoaçante enrolou-se nele como uma mortalha, impedindo os seus movimentos. Mais alguns instantes e ele de fato precisaria de uma.

De repente, sentiu um solavanco. Algo agarrou sua garganta como se quisesse arrancar sua cabeça. Farodin se sacudiu. A queda terminara abruptamente. Suas mãos e pés tateavam no vazio. Por alguns momentos, ficou totalmente desorientado. Então percebeu que estava pendurado em algo, desamparado como um filhote de gato que a mãe segurava pela nuca.

Farodin estendeu a mão sobre a cabeça. Ali encontrou apoio. Seus dedos agarraram-se na pedra coberta de gelo. Uma gárgula! Sua capa ficara presa na cabeça esticada da criatura de pedra. Tremendo, Farodin puxou-se para cima e chegou em relativa segurança a um friso de pedra, de onde sobressaía a estátua. Soltou o broche da capa que lhe salvara a vida. Seu pescoço estava ferido pelo tecido. Os músculos de sua nuca queimavam, distendidos. Mal conseguia mexer a cabeça. Então, tomou consciência do tamanho da sorte que teve. Na verdade o golpe podia quebrar o seu pescoço!

Farodin tentou estimar em que altura da torre se encontrava, mas na nevasca pesada pouco podia enxergar. Muito profunda sua queda certamente não havia sido, senão o solavanco o teria matado. Indeciso sobre o que fazer, piscou para tirar a neve dos olhos. Diante dele, um arco de sustentação perdia-se na escuridão. Não podia se demorar. Dali não havia nenhum caminho para o interior da torre. Precisaria descer escalando se quisesse se colocar em segurança. Se ficasse ali, os trolls cedo ou tarde o encontrariam.

O vento violento puxava a capa que Farodin agora segurava na mão. Deixou-a ir embora voando na escuridão. Ela só atrapalharia a sua descida. Esticou-se cuidadosamente e deixou-se escorregar sobre o arco de sustentação. Deslizava centímetro por centímetro sobre ele. Logo o arco deu em um pilar largo que descia verticalmente nas profundezas.

Com cuidado, Farodin tateou com os pés no escuro. O pilar era enfeitado com carrancas de pedra. Neve e gelo haviam se acumulado nelas. Descia escalando absurdamente devagar. Logo o frio entorpeceu suas mãos. Sua pegada tornava-se cada vez mais insegura.

Quando chegou ao próximo arco de sustentação ligado ao pilar, parou sobre um friso por um momento. Concentrou-se para criar um estofo de calor por baixo de suas roupas. Demorou para que a magia se sujeitasse ao seu desejo. Feitiços nunca eram fáceis para ele, principalmente quando estava exausto. Quando se sentiu um pouco mais aquecido, o sono ameaçou vencê-lo. Apoiou-se na parede e olhou para dentro da nevasca a seus pés.

Três ou quatro metros mais abaixo havia um vitral. Por trás dele brilhava a luz fraca de uma pedra de barin. Farodin pensou em como conseguiria chegar até lá. Do paredão da torre saíam algumas escoras de pedra. Tinham sido projetadas algum dia para sustentar varandas que não chegaram a ser construídas. Elas se sobressaíam da parede com dois palmos de largura e quase um metro de comprimento. Uma dessas escoras ficava imediatamente acima da janela. Pensou, então, em um plano desesperado para sair dali.

Cada grupo de cinco escoras ficava a uma distância de pouco mais de dois passos do próximo. Um pouco abaixo, outras cinco escoras saíam da parede. Estavam dispostas exatamente umas sobre as outras. Caso a tentativa de alcançá-las falhasse, ainda haveria esperança de se segurar. Não, a primeira tentativa precisava dar certo! Desesperado, examinou as pedras cobertas de neve. Para conseguir chegar até elas, precisava ir do maciço pilar de sustentação de volta para o muro da torre.

Farodin, então, subiu escalando em um dos arcos que se uniam ao paredão da torre. Avançou com dificuldade, centímetro por centímetro, até chegar à parede. Lá ele se agachou. Estava agora exatamente sobre uma das escoras transversais que se projetava da parede cerca de três metros abaixo. Farodin praguejou. Teria de saltar sobre a pedra coberta de gelo, um movimento extremamente arriscado.

Olhou para baixo por um tempo. Sentia o frio penetrar em seus membros. O feitiço de calor se extinguira tão logo deixara de se concentrar nele. Saltou!

Farodin aterrissou na escora, mas as solas de seus pés não encontraram apoio. Meio caindo e meio se jogando, conseguiu virar e pousar, caindo, com as pernas abertas, sobre a escora mais abaixo. A dor fez encher seus olhos de lágrimas.

Gemendo, soltou o cinto dos quadris e prendeu-o ao redor da pedra. Tirou a camisa e amarrou uma das mangas ao cinto. O vento gelado cortava as suas costas nuas como uma faca afiada. Agora o vitral estava abaixo dele.

Farodin fez um grande nó na ponta da segunda manga, torcendo muito para que as costuras da camisa fossem sólidas. Então jogou-se do friso. A camisa se esticou de uma vez. O couro do cinto rangeu sobre a pedra áspera. Balançando, o elfo pegou impulso, lutando contra a ventania violenta. Depois de muito esforço, a janela agora estava quase na mesma altura dele. Lentamente seus dedos rígidos foram perdendo a firmeza. Mais um impulso e... Ele se soltou.

A janela explodiu, barulhenta, com o impacto de suas botas. O vidro cortou seus braços. Chocou-se com força contra o chão e rolou para o lado. Sangue quente escorria de sua testa.

Respirando com dificuldade, ficou ali, deitado. Tinha conseguido escapar! Nesse primeiro instante, não conseguiu fazer nada além de simplesmente fitar o teto sobre ele. Quase não podia acrecitar. Estava vivo!

Embora estranhasse que ninguém tivesse ouvido a janela se quebrar, acabou tomando consciência de que o ruído havia sido abafado pelo enorme barulho que retumbava na torre. Batidas de gongo soavam. O fogo!

Nuvens de fumaça passavam na frente da pedra de barin abaixo do teto. A fumaceira tornava-se espessa rapidamente. Farodin conseguiu sentar, mas já sentia tontura. Seus olhos lacrimejavam.

Ele rasgou uma tira de pano da calça e pressionou-a sobre o nariz e a boca, à guisa de filtro. A fumaça facilitaria a sua fuga — caso não o matasse.

A canção de Elodrin

Mandred estava apreensivo. Não poderiam esperar mais. Logo a maré estaria tão alta que não seria mais possível sair da caverna. E então ficariam presos lá por horas! Tremendo, enrolara um cobertor ao redor dos ombros. O estrondo da maré que subia ecoava nas paredes da gruta. Sentia-se muito fraco. Desamparado, estava à mercê dos elfos. Haviam atravessado o fiorde a nado com ele. Landal, um elfo magro e louro, agarrou-o pela barba e puxou-o atrás de si. O feitiço dele livrou o jarl de morrer na água gelada. Ele se sentia, contudo, mais morto do que vivo. O frio penetrara fundo em seus ossos. Estava deitado no chão do barco enrolado em várias cobertas, e mal conseguia se mexer.

— Conduzam o barco para fora da gruta — comandou Elodrin, aproximando-se do timão na popa. — Vamos esperar lá fora, no fiorde. Ali pelo menos não estaremos sentados na armadilha.

Os demais elfos se posicionaram nos remos. Lutar contra a forte correnteza na entrada da caverna exigia todas as suas forças. A água estava tão alta que a curva da roda de proa do barco batia o tempo todo contra o teto baixo da caverna. Já parecia ser tarde demais para escapar quando o pequeno veleiro, de repente, deu um pequeno salto para a frente, vencendo uma onda. E então eles estavam livres.

Com muita habilidade, Elodrin os conduziu pelos recifes e baixios até finalmente chegarem às águas mais profundas e navegáveis do meio do fiorde. Esgotados, os elfos se puseram de cócoras ao longo do costado do barco, recuperando-se da luta contra o mar. Somente Elodrin estava de pé na popa. Inquieto, espreitava através da névoa densa.

— Um feitiço poderoso está agindo — disse ele em voz baixa. — Sinto magia em todo lugar. Não deveríamos ficar aqui.

— Nós vamos esperar Farodin! — insistiu Mandred.

— Isso não é muito esperto. — O velho elfo apontou para adiante, para onde devia estar o Pico da Noite do outro lado da névoa. — Farodin veio até aqui para morrer.

— Não, você não o conhece. Ele dedicou sua vida toda à busca por sua amada. Ele não vai morrer aqui.

Elodrin sorriu cansado.

— Então você conhece a alma dos elfos assim tão bem, filho de humanos?

“Maldito sujeitinho petulante”, pensou Mandred.

— Se vão abandoná-lo, então me levem até a margem. Vou procurar por ele!

— O que você quer fazer? Arrastar-se até o Pico da Noite?

— Seja como for, não vou deixar um amigo na mão.

— E se você também morrer, de que isso vai servir a Farodin? — perguntou Elodrin.

— Isso você nunca vai compreender, elfo. Não abandonar os amigos é uma questão de honra para nós, humanos. Tanto faz em que circunstâncias. Tenho certeza de que Farodin faria a mesma coisa por mim!

O velho elfo concordou com a cabeça.

— Sim, ele mudou muito. Isso eu pude sentir. Talvez... Fique quieto agora, filho de humanos. Preciso de silêncio!

Elodrin soltou o timão e agachou-se na popa. Começou a entoar, quase sussurrando, uma canção de ninar. O suave balanço do barco e o cansaço estavam deixando Mandred com sono. Sua cabeça tombou para o lado. Não adormecer — esse foi o seu último pensamento.

Assustado, Mandred acordou num sobressalto. Os elfos estavam novamente sentados junto aos remos e a névoa tinha se dissipado. Pareciam ter deixado o fiorde! Furioso, Mandred ergueu os olhos para Elodrin.

— Seu patife covarde! Você me adormeceu com um feitiço para fugir!

Tateou em busca do machado. Não estava lá. Cada movimento fazia uma dor lancinante percorrer sua perna.

O velho elfo havia recolocado a venda. Inclinou a cabeça na direção de Mandred e sorriu.

— O fato de você acordar só agora mostra como é forte o laço de amizade entre vocês.

— Você vai me levar imediatamente de volta ao fiorde, seu miserável, comedor de lama...

— Nardinel! Landal! Ajudem-no a se levantar! O falatório dele está atrapalhando o meu feitiço!

Os elfos que ele chamou recolheram seus remos e vieram até ele. Estavam novamente vendados. Mandred gemeu de dor quando o agarraram e o puseram sobre as pernas.

— Eu não sei como você conseguiu — sussurrou Nardinel em seu ouvido —, mas a sua insensatez também contagiou Elodrin! Os xamãs dos trolls estão dissipando a névoa do fiorde. Todos podem nos ver. E, ainda assim, estamos indo para o porto do Pico da Noite!

Enquanto se apoiava nos elfos, Mandred podia ver por cima da balaustrada. A nevasca tinha cessado. O céu estava claro e cheio de estrelas. A cerca de um quilômetro de distância, a torre dos trolls erguia-se sobre o fiorde. Tochas moviam-se em todo lugar sobre os rochedos e ao longo da praia. O pé da torre estava cercado por uma claridade débil e avermelhada, muita fumaça densa brotava de suas janelas.

O longo quebra-mar estava cheio de trolls. Pelo visto, tripulavam seus navios a todo vapor.

— Você o vê? — perguntou Elodrin da popa. — Farodin deve estar perto de nós, na água. Sinto sua proximidade. Mal preciso de força para manter o feitiço de busca.

Mandred espreitou o movimento suave das ondas. Seria possível ver claramente um nadador que estivesse revolvendo a água. Mas ali não havia nada.

— Você tem certeza de que ele está aqui? — perguntou.

Elodrin apontou para a esquerda da roda de proa.

— Ali. Esta é a direção em que você deve olhar!

Mandred apertou os olhos. A luz das tochas refletia-se no mar calmo. De repente, uma pequela bola de fogo subiu a pino do Pico da Noite em direção ao céu. Ela traçou um arco amplo e lançou-se sobre eles, caindo a muitos passos de distância. Era uma lança com uma pequena chama na sua ponta de pedra.

Mal ela desapareceu na água escura, duas novas lanças de fogo partiram do Pico da Noite. Do porto, vinham gritos guturais. Mandred viu um dos grandes navios negros soltar os cabos.

O jarl procurava desesperado na água. Finalmente descobriu algo. Uma mancha clara. Cabelo dourado embalado pelo ritmo suave das ondas.

— Ali! Mantenham-se um pouco a estibordo! Farodin!

O amigo não reagiu. Boiava com o rosto submerso.

— Rápido! Um remo!

Mandred esbarrou com a pá do remo em Farodin, mas o elfo não fez nenhuma tentativa de se agarrar nele.

— Landal, tire-o da água! — ordenou Elodrin.

O elfo soltou-se de Mandred, pulou na água e tateou com o remo até chegar a Farodin. Virou-o, agarrou-o pelo cabelo e retornou ao barco, rebocando-o com braçadas vigorosas. Quando Nardinel o soltou para ajudar, Mandred teve de se agarrar à balaustrada. Não conseguia pôr peso sobre sua perna quebrada. Mas, ainda assim, lentamente recobrava suas forças.

Ambos os elfos foram puxados a bordo. Farodin não se mexia. Seus olhos arregalados e sem foco fitavam as estrelas. Seu tronco estava nu e azul por causa do frio. Estava coberto de cortes e contusões.

Com um assobio, uma das lanças de fogo passou bem perto do barco, atingindo a água.

Elodrin ordenou a Mandred que assumisse o lugar de Landal no último banco de remo. Estavam virando o barco. Todos se posicionaram junto aos remos. Outra lança flamejante passou voando por cima deles, desta vez bem perto.

Landal cuidava das feridas de Farodin. Tateava o corpo do elfo e arrancava cacos de suas costas, tudo isso de olhos vendados. Demonstrava grande habilidade em cada movimento. Por fim, envolveu Farodin em uma coberta. De repente parou e ergueu a cabeça como se tivesse percebido o olhar de Mandred. Landal fez um gesto para que ficasse calmo.

— Você não precisa se preocupar. Ele vai se recuperar.

— Mas ele estava boiando com o rosto na água. Como um... um... — A palavra não saía pela boca do jarl.

— Foi o frio que o salvou — explicou o elfo franzino. — Tudo fica mais lento na água gelada. As batidas do coração, o fluxo sanguíneo... até a morte. Não quero iludi-lo, filho de humanos. Ele não está bem. Está esgotado demais e tem dezenas de feridas. Mas ele vai se recuperar.

Um sinal de alerta soou. Apreensivo, Mandred olhou para trás. Um dos imensos navios trolls dirigia-se à saída do porto. Os remos foram puxados do casco e revolviam o mar escuro. Mesmo com a distância, era possível ver que estava mais veloz que o pequeno veleiro em que navegavam. Batidas surdas de tambor ecoavam sobre a água. Logo os remos do navio troll moviam-se no mesmo ritmo.

Mandred e os elfos remavam com tudo. No entanto, por mais que se esforçassem, os trolls venciam cada vez mais a distância. Assim que a perseguição começou, estava claro como terminaria. Mandred estava banhado em suor. Cada movimento castigava sua perna com dores latejantes. A perseguição já durava meia hora ou mais. O Pico da Noite já estava fora do campo de visão havia muito tempo. Rochedos altos e a parede de gelo de um glaciar ladeavam o fiorde.

Mandred estava sentado de costas para a proa e podia ver nitidamente o que se passava a bordo do navio dos trolls. A fortificação dianteira, que se erguia como uma torre sobre o convés principal, estava iluminada por tochas. Havia dezenas de trolls aglomerados ali. Haviam disposto bacias com brasas e, sobre elas, feixes de flechas. Como se não bastasse, um segundo navio troll os seguia a algumas centenas de metros de distância.

Farodin ainda não voltara a si. Pela fúria com que os trolls os perseguiam, devia ter tido êxito em seu plano audacioso, pensou Mandred.

Um comando estridente ecoou sobre a água. Os arqueiros ergueram suas armas e, no instante seguinte, uma saraivada de flechas partiu, caindo no mar bem atrás do barco dos elfos.

— Por quanto eles nos erraram? — perguntou Elodrin calmamente.

— Por dez ou quinze passos.

— O que há nas margens agora?

O sangue-frio dos elfos ainda deixava Mandred furioso. Elodrin fizera essa pergunta vinte vezes ou mais. De que importavam as margens? Ali eles não conseguiriam atracar. Por terra eles seriam ainda menos capazes de escapar dos trolls. Novamente, uma chuva de flechas acertou a água atrás deles. Desta vez, caíram a menos de dez passos de distância.

— A margem! — questionou Elodrin.

— Rochedos! Ainda rochedos! — retrucou Mandred, enervando-se. — A geleira agora está talvez uns sessenta passos atrás de nós.

— Landal, assuma o remo por favor.

O elfo franzino rendeu Elodrin, que se sentou ao lado de Mandred. Seu rosto estava consumido. As últimas horas haviam lhe custado suas últimas forças. Ele tirou a venda e pousou-a no chão diante de si. Mantinha os olhos bem fechados.

Mais flechas partiram. Muitas atingiram a água novamente, mas, desta vez, com um som surdo, várias perfuraram a popa. A próxima salva transformaria o veleiro no navio da morte, pensou Mandred desesperado.

— Para um humano, você é mesmo notável, Mandred — disse Elodrin amigavelmente. — Foi muito rude da minha parte puni-lo com o silêncio durante a nossa prisão. Queria me desculpar por isso.

Mandred curvava-se para a frente e para trás no ritmo das remadas. O velho era maluco. Lutavam com unhas e dentes por cada centímetro de vantagem sobre o navio inimigo e agora ele vinha com essa.

— Aceito suas desculpas! — arfou, contrariado.

Elodrin parecia não mais ouvir. Como alguém que rezava, suas mãos estavam erguidas para o céu. Tinha a boca escancarada e o corpo tenso, como se gritasse em agonia. Mas nenhum som passava por entre seus lábios.

Mais flechas atingiram o barco. Uma delas atingiu Nardinel bem no peito, arrancando-a do posto de remo. Outra cravou-se no banco bem ao lado de Mandred. O jarl começou a remar ainda mais ferozmente, saindo do ritmo dos outros remadores. Com isso, o barco, descompensado, derivou para estibordo. Isso os salvou. A chuva de flechas seguinte teria feito um grande estrago, mas acabou na água.

De repente, ouviram um estrondo violento vindo da geleira, como se um gigante batesse com a mão aberta no mar. Um pedaço de gelo grande como uma carroça de feno quebrara-se e precipitara-se no mar escuro. O pequeno barco foi suavemente erguido por uma onda e empurrado um pouco adiante.

Ouviram-se ordens a bordo do navio dos trolls. Mandred pôde ver que, desta vez, os arqueiros atearam fogo às suas flechas.

Como uma multidão de estrelas cadentes, os tiros de fogo voaram em direção ao barco. Mandred abaixou-se por reflexo, embora soubesse ser inútil. Flechas cravaram-se ao seu redor. Um dos elfos gritou. Elodrin caiu. Uma flecha saía de sua boca escancarada e duas outras estavam cravadas em seu peito.

A coberta em que Farodin estava embrulhado pegou fogo. Mandred puxou-a e jogou-a do barco. Enquanto isso, viu os arqueiros levantarem suas armas mais uma vez.

Um som que Mandred nunca ouvira ecoou dos rochedos da geleira. Lembrava o estrondo do tronco de uma árvore ao tombar para o lado quando os lenhadores tiram a sua sustentação. Só que era infinitamente mais alto. Um enorme pedaço da geleira soltara-se, desencadeando uma avalanche. Agora, cada vez mais gelo se partia, revolvendo o mar em um redemoinho de espuma e grandes ondas. Desajeitado, o navio dos trolls dançava desamparado sobre as ondas, sem conseguir desviar dos blocos de gelo que acabaram por destroçar o seu costado.

Em seguida, outra onda gigante começou a descer o fiorde. A popa do barco dos elfos foi lançada para cima. Landal agarrou-se no remo com toda a força. A água bateu sobre a balaustrada. Eles flutuavam no meio da espuma branca sobre a crista da onda. Tão rápido quanto um cavalo élfico em pleno galope, eles foram arremessados à frente. Mandred mal ousou respirar. Felizmente, Luth estava do lado deles. Os navios trolls ficaram presos nas barreiras de gelo no fiorde. Era impossível continuar a perseguição.

Landal assumiu o comando entre os elfos a bordo. Decidiu que o corpo de Elodrin não devia ser entregue às ondas. Ele foi embrulhado em cobertas e deitado entre os bancos de remo. Nardinel, ferida, entoou uma canção fúnebre para ele, enquanto os outros elfos erguiam o mastro para que a força do vento impelisse o barco a partir de então. Mas, até deixarem o fiorde, ainda precisariam se esforçar nos remos.

Quando alcançaram o mar aberto, Landal decidiu seguir uma rota a sudeste. Mandred estava mergulhado num esgotamento mudo. Para ele, não importava mais o que os elfos fizessem. Sua perna o torturava e sentia um frio deplorável. Farodin ainda estava profundamente desmaiado ao lado do cadáver de Elodrin. Seu companheiro respirava regularmente, mas todas as tentativas de despertá-lo tinham sido em vão.

Landal afirmava que o sono em que Farodin estava imerso era de cura, mas Mandred tinha suas dúvidas. O elfo franzino tinha algo de inacessível. Parecia ser dotado de poderes mágicos extraordinários. Sem esforço, ele seguia uma trilha alba sobre o mar. No terceiro dia de viagem, encontrou uma grande estrela alba e abriu um portal cuja aparência era totalmente diferente de qualquer um que seus companheiros haviam criado até então. Como um arco-íris reluzente, ele se erguia alto sobre as ondas.

Ao atravessarem para a Terra dos Albos, Farodin acordou num sobressalto. Precisou de muito tempo para compreender onde estava. Não quis contar sobre o que ocorrera no Pico da Noite. Aproximou-se da proa e ficou olhando o mar.

Na Terra dos Albos estava menos frio. O vento constante preenchia a vela e, dois dias depois de atravessarem o portal, chegaram a Reilimee, a cidade branca junto ao mar. Landal hospedou-os em sua casa. Todos os sobreviventes juraram não revelar a Emerelle que Farodin e Mandred haviam voltado.

A inquietação de Farodin crescia a cada dia na cidade branca. Porém, o ferimento grave de Mandred não os permitia deixar a cidade tão logo. E o filho de humanos estava desfrutando a paz. Todos os dias, a entrevada Nardinel vinha vê-lo. Ela se recuperara admiravelmente rápido da flechada. Suas mãos curadoras uniam os ossos dele com grande habilidade e faziam ainda mais: nenhuma elfa jamais tratara Mandred como Nardinel. Já no barco, ela o aquecia com o corpo quando os calafrios o acometiam, e em Reilimee também dividia o leito com ele com frequência. Falava muito pouco. Até o dia da despedida, Mandred não conseguiu explicar para si mesmo de onde vinham os sentimentos dela.

Duas semanas depois da chegada, quando Mandred se lançou novamente ao mar para retornar com Farodin ao mundo dos homens, ela não usou gestos nem encontrou palavras para a despedida. Em silêncio, enfiou uma pulseira no braço dele, tecida com seus longos cabelos negros. Então virou-se e logo desapareceu na multidão do porto.

Sua estranha forma de amor deixou em Mandred um sentimento inquieto. Com isso, ficou satisfeito de estar indo para o seu mundo, onde, pelo menos às vezes, pensava que conseguia entender as mulheres.

Dareen

Nuramon tinha a sensação de que uma eternidade se passara desde que estivera naquele lugar e resolvera a sua parte do enigma. No paredão de pedra diante deles descansavam as pedras preciosas: diamante, cristal de rocha, rubi e safira.

Alwerich conseguiu ler a inscrição sobre o cristal de rocha em voz alta: Cante a canção de Dareen, filho da noite! Cante a sabedoria dela, com sua mão na escuridão! Cante as palavras que um dia você disse, e então entrem lado a lado.

— Como são as suas palavras? — perguntou Nuramon ao seu irmão de armas.

— Elas são: Em uma noite calma de outono / como os albos / as estrelas na gruta / claras como nunca / como elas nasciam.

— Você se lembra das minhas palavras? Nós precisamos unir os nossos versos e cantar juntos. Então fica: Você veio até nós em uma noite calma de outono / A sua voz veio como os albos / Você nos mostrou as estrelas na gruta / Elas brilhavam claras como nunca / Nós pudemos ver como elas nasciam.

Um sorriso se desdobrou no rosto de Alwerich.

— De duas canções fazer uma! Agora estou entendendo. — Ele pousou a mão sobre o cristal de rocha. — Venha, vamos entoar juntos a canção-chave!

A canção-chave! O anão encontrara a expressão certa para ela. Era a chave do portal do oráculo. Nuramon levou a mão sobre o diamante, trocou um rápido olhar com Alwerich e então os dois começaram a cantar.

Mal suas palavras terminaram, o diamante e o cristal de rocha se acenderam. Do diamante irradiou a luz brilhante que Nuramon já conhecia, enquanto do cristal de rocha saiu uma luz cor de chumbo, que fluiu pelo sulco na direção do rubi central. Os feixes de luz encontraram-se na pedra vermelha e juntaram-se em um só, que desceu brilhando até atingir a safira. A pedra azul se iluminou e pulsou, como se dentro dela batesse um coração de luz.

Repentinamente as pedras preciosas, os sulcos e as inscrições desapareceram da frente deles. Alwerich recuou assustado. Nuramon só olhou para a própria mão, que agora tocava a rocha nua. Agora era tão macia que era possível penetrar nela. As pontas de seus dedos já estavam afundadas na parede. Quando pôs a mão para dentro da rocha, percebeu que Alwerich já estava novamente ao seu lado. O anão olhava surpreso para o braço de Nuramon, então arriscou também deixar sua própria mão desaparecer para dentro do rochedo.

Nuramon voltou-se para Felbion, que se mantinha um pouco à distância.

— Venha conosco!

Em vez de se aproximar, o cavalo deu meia-volta. Felbion preferia claramente esperar lá fora. Isso não parecia coisa daquele animal curioso.

— Vamos entrar antes que esse portal estranho se feche de novo! — gritou o anão.

Lado a lado, Nuramon e Alwerich adentraram a pedra.

Teria sido assim que os albos um dia viajaram por suas trilhas, com olhos conscientes e atravessando os elementos?

Nuramon sentiu-se cruzar o limiar da estrela dos albos. O cenário mudou: a rocha clara transformou-se em marrom-avermelhada. Saiu da rocha dois passos à frente e, diante dele, surgiu um corredor entre duas paredes cor de canela. Estava em uma garganta estreita, na qual a luz do sol penetrava hesitante. O chão era irregular e coberto por areia. Devia ser um antigo leito de rio que ninguém atravessava havia uma eternidade.

Nuramon olhou ao redor. Alwerich não estava ao seu lado. Virou-se assustado. Então finalmente um rosto com um sorriso bobo saiu da pedra. Era o anão.

— Onde você estava? — perguntou Nuramon.

— Se aqui é o portão, eu estava na guarita. E lá eu encontrei isso aqui. — Alwerich abriu a mão. Dentro dela havia uma pequena estátua de dragão de pedra verde. — É um amuleto anão feito de jade, um talismã.

Nuramon balançou a cabeça, surpreso. O anão, que havia pouco recuara diante do portal, agora movia-se nele como se fosse um corredor de sua própria casa.

Alwerich alisou as paredes ao longo da quebrada.

— Nunca tinha visto rochas sólidas como esta. Onde estamos?

Nuramon não sabia ao certo. O ar era tão límpido como nas montanhas do mundo dos humanos, mas não tão puro quanto na Terra dos Albos.

— Estimo que ainda estamos no mundo dos homens. Mas eu não sei... — Nuramon interrompeu-se, pois ouviu algo ao longe. Olhou para cima. Ouviu gritos a distância que penetraram até ali, naquela garganta. Pareciam sons de animais. — Onde quer que seja, resta esperar que Dareen ainda esteja aqui.

Eles seguiram a garganta estreita. Nuramon foi na frente; ali a areia era tão fina que mesmo ele deixava pegadas. Ficava contrariado por ter de destruir com cada passo a harmonia dos finos padrões de ondas. Ao olhar para trás, viu que não se podia comparar suas pegadas com as marcas profundas das botas de Alwerich, que sequer parecia perceber o que estava fazendo.

A trilha subia lentamente. No céu azul, um grande pássaro desconhecido para Nuramon voava em círculos. Era semelhante a um falcão. Aquele certamente não era o Mundo Partido, pois havia vida demais para isso. Devia ser algum lugar ainda no mundo dos homens.

A garganta estreita logo se abriu em um pequeno barranco. À direita havia um lago, próximo ao paredão de rocha, em cujo centro erguia-se uma pedra da qual brotava água. Nas margens do lago cresciam grama, árvores, flores e arbustos com botões em formato de estrela. Do outro lado do vale, na parede de pedra, abria-se a entrada para uma caverna. Lá podia estar a gruta das estrelas de que falava a canção-chave!

Em silêncio, Nuramon e Alwerich se aproximaram. Não queriam perturbar o oráculo. Nuramon contemplou o lago. Perguntou-se para onde a água fluía, e foi inevitável lembrar do Lago de Noroelle e de seu feitiço especial.

Então era esse o lar de Dareen. Nuramon nunca vira um oráculo de verdade antes, embora ainda houvesse alguns poucos na Terra dos Albos. Mas quase ninguém procurava se aproximar deles, pois haviam se tornado silenciosos. Ele se perguntava qual seria a aparência de Dareen. Talvez ela fizesse parte dos povos que ainda viviam na Terra dos Albos. Talvez fosse uma elfa, uma fada, uma ninfa, talvez até uma centaura.

Mal deixaram o lago para trás, na entrada da caverna surgiu uma mulher, uma elfa em uma túnica simples cor de areia. Seus cabelos negros caíam sobre os ombros em largas ondas. Ficou ali em pé, inerte, olhando na direção deles.

Hesitantes, Nuramon e Alwerich se aproximaram dela. E, quando estavam à sua frente, Nuramon não ousou lhe dirigir sequer uma palavra. O olhar da elfa parecia atravessá-lo; seus olhos negros exerciam algum encanto nele.

— Vejo filhos da luz e das trevas de mãos dadas — disse ela com voz clara. — Já faz muito tempo que vocês vieram até mim. Sou Dareen, o oráculo.

Nuramon olhou para seu o companheiro, que fitava a elfa como se estivesse enfeitiçado. Ao voltar-se novamente para ela, assustou-se por ter de repente uma anã diante dos olhos, que de fato tinha semelhança com a elfa que surgira antes para ele.

— Eu me mostro de muitas formas aos filhos dos albos. Vou facilitar para vocês.

Primeiro nada aconteceu, mas foi só Nuramon piscar e repentinamente tinha diante dele uma filha de albos que podia se passar tanto por uma elfa baixa e atarracada como por uma anã muito magra.

— Qual é a sua verdadeira forma? — perguntou Nuramon.

O oráculo sorriu com voz suave.

— Qual é a sua verdadeira forma, Nuramon? É essa que está à minha frente? Ou é o guerreiro que você viu há pouco? Talvez seja o corpo que carrega o seu primeiro nome. Mas também pode ser que sua verdadeira forma ainda esteja esperando por você. Então qual forma é a sua?

— Eu não sei. Perdoe-me pela pergunta.

— Não peça perdão! Eu estou aqui para responder perguntas. E se eu mesma respondo com uma pergunta, é apenas para abrir a sua mente. Eu possuo uma forma real, mas ela é desconhecida para vocês e lhes diria muito menos do que este corpo. — E voltando-se para o anão: — Venha, Alwerich! Siga-me até a Gruta das Estrelas, lá embaixo! — Para Nuramon disse, contudo: — Você espera aqui! Pode se refrescar ali no lago. — Desapareceu então na caverna, seguida por Alwerich.

Nuramon, que ficou para trás, estava com tontura. Foi até o lago e bebeu de sua água. Estava fria, o que causou um arrepio em seu corpo. A tontura desapareceu. Quando seu olhar pousou sobre a superfície da água, pensou novamente na nascente de Noroelle. Tirou a corrente do pescoço e mergulhou a almandina, que sua amada lhe presenteara por meio de Obilee, na água gelada. Ali a pedra preciosa castanho-avermelhada brilhou como todas as outras pedras faziam no Lago de Noroelle.

Nuramon olhou para a entrada da caverna. O que Alwerich estaria perguntando? O anão não quisera lhe dizer nada durante toda a viagem. Para se justificar, invocava a promessa que fizera a Thorwis.

Nuramon, em contrapartida, havia se aberto e contado sobre Noroelle. E ficou evidente que Alwerich conseguiu compreender o que movia o elfo. O anão seguira algumas vezes sua mulher Solstane na morte para estar próximo dela na vida seguinte. Nuramon queria que o caminho fosse assim fácil para ele. Alwerich se oferecera para acompanhá-lo no restante de seu caminho. Mas ele recusara. O anão devia voltar para Aelburin e lá levar, com sua mulher, a vida que havia conquistado. Nuramon contara-lhe sobre a mulher de Mandred, do tempo que passou para eles enquanto deram somente alguns passos. Ele não queria que a vida de Alwerich desse uma virada como essa, ainda que ele — ao contrário de Mandred — fosse renascer.

Ao colocar a corrente novamente e sentir a pedra fria sobre o peito, Nuramon perguntou-se qual era o poder que se escondia naquela almandina. Ela repousara por tantos anos no fundo do lago... Noroelle contara a ele que a pedra preciosa era alimentada pelo feitiço do lago. Era muito mais que uma recordação da amada. Mas Nuramon não sabia como liberar o poder particular daquela pedra. Talvez ainda não tivesse chegado a hora.

Quando Alwerich saiu da caverna, sua expressão era de perplexidade. Claramente o anão descobrira coisas com as quais jamais havia contado. Disse, gaguejando:

— Agora você pode entrar.

E então deixou-se cair sobre uma pedra perto do lago, fitando a água.

Nuramon não perguntou a seu companheiro o que ele ouvira. Se não quisera lhe contar a sua pergunta, certamente também não revelaria a resposta. Assim, deixou seu irmão de armas para trás no lago e adentrou a caverna.

Primeiro chegou a uma pequena sala da qual partiam três corredores que levavam mais fundo para dentro do rochedo. De um deles vinha um brilho azul, enquanto nos outros corredores o que reinava era uma meia-luz cinzenta.

Dareen entrou no corredor com a luz azul. Nuramon seguiu-a em silêncio. Continuaram em frente e em declive para dentro de uma caverna escura. As paredes eram tão negras quanto a noite, mas acima arqueava-se um céu estrelado, que fornecia um pouco de luz. As estrelas pareciam tão reais como se Dareen as tivesse apanhado no céu noturno. Então era essa a Gruta das Estrelas!

O oráculo posicionou-se no meio da caverna, onde uma superfície de pedra azul e brilhante estava incrustada no chão. Logo a seguir Dareen começou a falar com voz sensível:

— Vejo dois desejos no seu espírito. Dos dois só posso realizar um. Quanto ao outro, só posso mostrar-lhe o caminho. O primeiro desejo é o da sua lembrança. Você gostaria de ser um só com suas vidas anteriores. O outro desejo é libertar a sua amada. Posso presenteá-lo com sua memória aqui e agora, mas não seria capaz de libertar Noroelle. Só o ajudarei um pouco em seu caminho. Qual desejo deve ser, portanto?

As palavras de Dareen acertaram Nuramon como um golpe. Estava somente a uma pergunta de distância da sua lembrança. Ali, naquele momento, poderia conseguir de volta todas as suas vidas anteriores. E talvez isso até o ajudasse em sua busca por Noroelle! Não queria, todavia, correr esse risco. Mesmo a menor indicação sobre o paradeiro de Noroelle valia mais para ele do que a lembrança de suas vidas anteriores.

— Eu vim com a intenção de perguntar sobre o lugar onde minha amada está exilada. E eu espero poder partir com uma resposta. Minha lembrança um dia virá até mim por si só.

— É uma escolha inteligente, Nuramon. Pois bem, eu vejo em você o que aconteceu. E eu lhe direi coisas que podem ser úteis. Não posso dizer tudo, pois se você souber demais não acontecerão coisas que precisam acontecer. O que posso mostrar você pode ver ali.

Ela apontou para o teto de abóbada.

Nuramon olhou para cima. Das estrelas surgiu uma paisagem: um grande lago, ou então a enseada de um mar com florestas na margem. No fundo via-se ao longe uma cadeia de montanhas. Longe da costa havia uma ilha com uma pequena mata.

— Esse é o lugar que você procura. Se encontrar o caminho dessa ilha para o Mundo Partido, então você chegará à sua amada.

— Eu encontrarei esse lugar, mesmo que precise buscá-lo por séculos — disse Nuramon, sem desviar o olhar da paisagem.

A forma da imagem ficou marcada em sua mente. Nunca a esqueceria. Ele agora tinha o seu alvo literalmente diante dos olhos. E essa imagem era muito elucidativa. Estava claro que o portal para Noroelle ficava no norte do mundo dos humanos ou então muito alto nas montanhas. No deserto, em seus arredores e no árido reino de Angnos ele não precisaria mais procurá-la.

De repente, a imagem desvaneceu à sua frente. A ilha, a água e a costa se dissiparam. Nuramon continuou olhando para cima. Tinha conseguido gravar tudo na memória.

— Ainda digo mais — disse Dareen. — Só duas coisas podem quebrar o feitiço: a ampulheta completa ou uma pedra de albos.

Nuramon não conseguia entender o que o oráculo estava dizendo. Ouvir que a ampulheta e os grãos de areia de fato eram um caminho era algo que o deixava menos pensativo que a menção às pedras albas. Ele partira para encontrar um caminho mais fácil que o de Farodin. E agora descobria que seu caminho talvez fosse muito mais difícil. Ele sacudiu a cabeça, confuso.

— Mas como posso conseguir uma pedra alba? Eu só sei que Emerelle tem uma. Mas ela...

— Ela não a dará a você. Você precisa procurar outra pedra alba se não acredita no caminho de seu companheiro Farodin. Mas tanto faz o que decidir: primeiro você precisa se unir aos seus companheiros. Acabem com essa briga. Não há caminhos errados. Cada um contribui com a sua parte para alcançar o objetivo. Vá para o norte e aguarde os seus amigos na cidade do filho de humanos. Seja paciente e espere como um elfo.

— Vou fazer isso.

— Então isso é tudo o que Dareen tem para dizer. Até logo, Nuramon!

Ela avançou para dentro das sombras e desapareceu.

Nuramon esperou para ver se Dareen apareceria mais uma vez. Nada. Aquela parecia mesmo ter sido a despedida. Ele pensou no que ela dissera. Revelou a ele o caminho que procurava e mostrou-lhe o lugar onde se encontrava o portal para a prisão de Noroelle. Mas por que era tão importante juntar-se a Farodin e Mandred? Ele pensava sempre em seus companheiros e na briga tola que os separara. Sentia falta deles. A voz de Dareen suplicara que se reconciliasse com seus amigos.

Por fim, decidiu. Ele iria até Firnstayn e lá esperaria por Farodin e Mandred.

O livro de Alwerich

A despedida do irmão de armas

Os ditos do oráculo mudaram tudo. Você vê as coisas com outros olhos, principalmente o seu irmão de armas. Ele de fato age como antes, mas o conhecimento questionado a Dareen também lançou uma nova luz sobre Nuramon.

Ele contou sobre uma viagem para o norte e que Dareen ofereceu a ele suas memórias, que ele negou para saber de sua amada. Esse ato tocou o seu coração e você pensou em Solstane. Você teria feito o mesmo por ela. Finalmente, pôde sentir por que Nuramon não quer tê-lo a seu lado durante a busca dele. Você já conquistou tudo o que ama. Mas ainda se pergunta se ajudar o elfo não valeria uma vida.

Vocês tomam o caminho de volta e evitam os humanos desconfiados. Enquanto isso, você se acostumou à presença de Felbion, mas recusa a oferta de aprender a montar. Isso já seria demais. Você gosta do cavalo, mas sentar-se totalmente sozinho sobre ele não é do seu gosto.

O dia da despedida chega. No pé da montanha vocês irão se separar. Você desce de Felbion pela última vez. Nuramon curva-se sobre o joelho para ficar olho no olho com você e coloca a mão sobre o seu ombro. Das palavras que ele diz você não se esquecerá mais nesta vida: “Obrigado, Alwerich. Você foi um bom companheiro para mim, um verdadeiro irmão de armas. Mas agora devemos seguir nossos caminhos”. Ele olha para as montanhas lá embaixo e então continua: “Diga obrigado a Thorwis e Wengalf por mim. E abrace Solstane em meu nome. Você me contou tanto sobre ela que já se tornou minha conhecida”. Ao que você responde: “Ela vai lamentar que você não retornará comigo para casa”. Nuramon concorda e diz: “Conte a ela sobre Noroelle e a minha busca”. Então o elfo se levanta e diz: “Adeus, amigo”. Nuramon estende a palma da mão em sua direção e de repente parece muito inseguro, como se temesse que você recusasse o cumprimento de mão. Você o aceita e diz: “Até a vista, amigo. Talvez nesta vida, provavelmente na próxima. Pode até ser que nos encontremos novamente na luz de prata”.

Nuramon sorri e responde: “Nós nos veremos novamente. E talvez nos lembremos de encontros anteriores dos quais agora nada suspeitamos”.

O elfo não sabe que suas palavras são verdadeiras. Ele não me perguntou se nós já nos encontramos em alguma outra vida. Mas, da mesma forma como o fato de estarmos aqui de pé, sei que os acontecimentos se repetem. Os amigos se reencontram, mesmo depois de algumas vidas.

Nuramon sobe em Felbion e olha mais uma vez para você, de forma elogiosa. Então vai embora cavalgando. Os seus olhos o seguem. Você se lembra do oráculo. Se ao menos o tivesse preparado para o que o espera! Mas Dareen insistiu para que você se calasse perante ele.

Quando o elfo desaparece por completo, então você se põe a caminho para deixar para trás o último trecho até Aelburin. E, lá, tomar Solstane nos braços.

A nova sala de escritos, volume XXI, página 156

A cidade de Firnstayn

Nuramon percorreu o fiorde com os olhos. Era inverno como da vez em que partiram para a Caçada dos Elfos. Foi ali que tudo começou. Lá em cima, junto ao círculo de pedras, Mandred lutara contra a morte. Ali o devanthar dera início ao seu terrível jogo.

Ele se lembrava como aquele mundo lhe parecera estranho. Mas agora estava habituado à visão dele. Sabia o quão longe eram as montanhas dali e conseguia estimar as distâncias corretamente. Mas uma coisa continuava igual: o mundo continuava árido, como a viagem de até então comprovou. Era um inverno especialmente rigoroso até para o mundo dos homens, que martirizava tanto ele quanto Felbion. Às vezes, esse era um mundo rude demais para um elfo.

Lá embaixo estava Firnstayn, junto ao fiorde congelado. A aldeia de então havia se tornado uma cidade. Estava certo, os humanos tinham vida curta. E, por isso, para eles era mais importante que se multiplicassem. Mas uma colônia crescer assim num tempo tão curto causava-lhe surpresa. Lembrou-se do alerta do Carvalho dos Faunos. Talvez tivesse se tornado vítima do tempo. Ele de fato atravessara somente poucos portais, mas em Iskendria tivera uma sensação estranha.

A cidade e suas muralhas de pedra atestavam que, naquelas terras, mais que só uns poucos anos já haviam se passado desde a última vez que esteve no círculo de pedras sobre o rochedo.

— É isso mesmo — disse alguém ao seu lado.

Nuramon puxou a espada de Gaomee e deu meia-volta. Na borda do círculo de pedras estava Xern. Seus poderosos cornos de cervo pareciam uma coroa. Envergonhado, Nuramon guardou a arma de volta.

— Você veio mesmo — seus grandes olhos cor de âmbar cintilavam.

— Não para voltar para casa — retrucou Nuramon. — Mas é bom ver um rosto conhecido.

— O que o traz aqui? — perguntou Xern.

— Ali embaixo, junto dos humanos, vou me encontrar com meus companheiros. Minha busca não terminou.

— Isso provavelmente é um erro, Nuramon. A rainha não esqueceu o que vocês fizeram. Ela não fala mais sobre isso, mas você precisava ter visto a fúria dela quando descobriu que vocês partiram! Raramente alguém contradisse tanto as suas ordens.

— Você está aqui em nome dela?

— Não, em meu próprio... e porque Atta Aikhjarto me disse que você viria. Você sabe: as raízes dele chegam longe. E os sentidos de Emerelle também. Ela verá você se continuar por perto. Até Firnstayn é perto demais do portal.

— Quanto a isso não posso mudar nada. Vim aqui por conselho do oráculo Dareen. E na palavra dele eu confio.

— Dareen! Esse é um nome de tempos mágicos. Deixou a Terra dos Albos um dia porque o mundo dos homens é um reino de mudanças.

— E ela tinha razão. A cidade lá embaixo é a prova disso.

Xern pôs-se ao lado de Nuramon, e juntos eles olharam para Firnstayn.

— Esse é o legado de Alfadas.

— Ele não está mais vivo? — perguntou Nuramon com pesar.

Teria gostado de rever o filho de Mandred.

— Não. Ele cresceu entre os filhos dos albos, mas sua vida era a de um humano. Então ele morreu quando foi sua hora.

— Quanto tempo se passou desde que deixamos a Terra dos Albos?

Xern esforçou-se visivelmente para conseguir expressar o fluxo dos anos em um número. Na Terra dos Albos, o tempo era muito menos importante do que para os humanos ou anões. Mal havia mudanças lá e a vida durava muito. O que importavam dez ou cem anos? Na Terra dos Albos, quase tudo era como devia ser. Um anão, em contrapartida, certamente teria sido capaz de lhe dar uma resposta naquela situação.

— Já faz cerca de 250 verões que vocês desapareceram.

Duzentos e cinquenta anos! Antes esse número não significaria nada para um elfo como ele. Mesmo que sua noção de tempo não tivesse mudado sensivelmente, ele há muito já entendia quanto eram 250 anos para um humano. Então não tinha se enganado. Eles deviam ter dado um salto no tempo.

Xern prosseguiu:

— Nesses anos muita coisa aconteceu.

Nuramon lembrou-se de que a rainha havia mandado vigiar todos os portões.

— Pois bem, Emerelle revogou abertamente sua proibição.

Devia ter sido isso mesmo, pois Xern certamente não quebraria as regras da rainha somente para falar com ele.

— Sim, e isso foi uma surpresa para todos nós. Alfadas atou um laço entre os elfos e os humanos nestas terras do fiorde. Nós lutamos juntos contra os trolls.

— Houve algo como uma outra Guerra dos Trolls?

Xern apontou ao seu redor.

— Aqui foi um dos campos de batalha. Tudo foi muito rápido, rápido demais para muitos de nós. A rainha disse que um novo tempo se iniciava e que precisávamos nos acostumar ao novo.

Nuramon ainda tinha muitas perguntas, mas uma em especial o afligia. Será que tinha dado o salto no tempo junto com seus companheiros ou sem eles? Se ele se tornou vítima dos anos ao entrar em Iskendria, então aconteceu o mesmo a Mandred e Farodin. Mas, se dera o salto junto com Alwerich para chegar ao oráculo, então Mandred já podia estar morto há muito tempo. E para Alwerich o retorno para casa certamente teria sido amargo.

— Você ouviu algo a respeito de Farodin? Ou de Noroelle?

— Não, nem de Farodin nem da sua amada. Quanto a isso tudo continua como antes. Agora, pouco se fala sobre você e seus companheiros. Há outras histórias. — O olhar de Xern perdeu-se ao longe. — Um tempo de heróis passou por nós. Entre os humanos, eles se tornaram lendas há muito tempo, mas entre nós eles estão vivos e gozam de reconhecimento, ou então renasceram. Grandes nomes! Zelvades, Ollowain, Jidena, Mijuun e Obilee!

— Obilee! Ela lutou na guerra?

— Sim. Ela fez jus às honras de sua antepassada.

Nuramon imaginou Obilee tornando-se admirada por todos e apresentando-se à rainha como uma guerreira feiticeira. Ela já era uma jovem mulher quando eles retornaram da caçada ao devanthar. Certamente se tornara a elfa que Noroelle sempre viu nela. Ele tinha perdido tanta coisa. Com certeza ainda falariam muito sobre a Guerra dos Trolls, assim como falavam daquela de que Farodin participou um dia.

— Você gostaria de ver Obilee, não é?

— Pelo visto ainda é fácil ler o meu rosto — Nuramon respondeu sorrindo.

— Obilee deve estar em Olvedes. Eu poderia mandar um recado para ela. Ela não se esqueceu de Noroelle e certamente nem de você.

— Não, isso só abriria velhas feridas — Nuramon respondeu.

Talvez agora ela até insistiria em acompanhá-lo em sua busca. Pensar nisso podia ser interesseiro, mas ele se tranquilizava de saber que pelo menos a antiga confidente de Noroelle na Terra dos Albos ainda tinha algum valor. Tinha certeza de que sua amada ficaria orgulhosa de sua protegida.

Xern baixou a cabeça e deu de ombros.

— Como quiser. Não vou contar a ninguém além de Atta Aikhjarto sobre este encontro.

— Obrigado, Xern.

— Torço para que encontre Noroelle. — Com essas palavras, Xern recuou para o círculo de pedras e desapareceu na névoa fina.

Nuramon voltou a olhar para a cidade lá embaixo. No caminho até lá, estivera atento ao lugar que Dareen mostrou a ele. Fez até um desvio. Julgando pelas árvores que vira, o portal que eles procuravam devia ficar no norte gelado, perto do mar, ou então junto a um lago nas montanhas altas. Era só isso o que ele sabia dizer.

O oráculo tinha razão. Ele precisaria da ajuda de seus companheiros. Aliando o seu conhecimento ao feitiço de Farodin, eles conseguiriam juntos descobrir a pista para aquele lugar. Talvez Mandred e Farodin o estivessem esperando lá embaixo. Podia ser que o destino voltasse a reuni-los ali.

Nuramon agarrou as rédeas de Felbion e iniciou a descida. No pé da colina, montou e cavalgou em direção à cidade. Enquanto isso, ficou pensando na Caçada dos Elfos. Embora para a sua noção de tempo só tivessem se passado poucos anos, sua sensação era de que ela tinha acontecido em outra vida. A morte de Aigilaos, a luta com o devanthar e o terrível retorno à Terra dos Albos... Parecia já fazer tanto tempo, como se ele já estivesse há uma eternidade em busca de Noroelle.

Quando Nuramon passou diante do portão da cidade, a guarda já o tinha visto havia muito. Mas ele estava aberto. Assim, pôde entrar sem que o sentinela perguntasse sobre sua origem e o que queria. Em vez disso, ele anunciou em fiordlandês que um elfo havia chegado. Embora os filhos dos albos — como Xern disse — agora estivessem mais próximos dos humanos, parecia ser um acontecimento especial elfos virem para Firnstayn.

Sentado sobre Felbion, Nuramon deixou o cavalo caminhar calmamente entre as fileiras de casas, acompanhado por crianças, por olhares que vinham das janelas e por saudações amigáveis. Ele não sabia o que os firnstaynenses viam nele. Isso o desagradava, pois não fizera nada para merecer essas honras. Então apeou para continuar caminhando.

Nuramon tentava se orientar, mas nada mais era como ele conhecia. Finalmente, chegou a uma praça com uma casa comunal de pedra. Aquela devia ser a nova morada do jarl. Uma escada larga, ladeada por estátuas de leões, levava até lá em cima. Os humanos aglomeravam-se ao redor de Nuramon, mas mantendo uma distância respeitosa. Ninguém ousava se aproximar demais dele. Lembrou-se da partida junto aos anões. Que mudança em sua vida o fato de ser recebido ou se despedir com prestígio de todos os lugares onde passava!

Hesitante, um guerreiro humano desceu a escada. Era um homem forte, que trazia uma espada montante no cinto.

— Você veio para falar com o rei? — perguntou ele.

Nuramon hesitou para responder. Antes chamavam seu líder de jarl. Será que isso também era legado de Alfadas? O que Mandred diria quando descobrisse que em Firnstayn agora havia um rei?

— Estou procurando Mandred Torgridson — esclareceu Nuramon.

Um murmúrio se espalhou, e então o silêncio retornou. Mencionara um nome que eles certamente só conheciam das lendas... Mas a resposta do guerreiro que se aproximara de Nuramon surpreendeu-o ainda mais:

— Mandred esteve aqui, acompanhado de um elfo chamado Farodin. Eles partiram há muito tempo.

De repente, as pessoas abriram caminho para um filho de humanos, reconhecível como líder por sua vistosa armadura de placas. Aquela armadura não era obra de humanos — provinha dos ferreiros da Terra dos Albos. Talvez fosse um presente de Emerelle. Podia ter pertencido a Alfadas. Quem a vestia agora era um homem de cabelos grisalhos. Chegou com passos largos e estufou o peito diante do elfo. Era um humano gigante e carregava uma espada estreita demais.

— Sou Njauldred Klingenbrecher, rei das terras do fiorde — disse ele baixando a cabeça.

Uma força bastante ameaçadora irradiava dele. Nuramon não teve dúvidas de que, uma vez despertada, a fúria de Njauldred não conhecia limites.

— Minhas saudações, Njauldred! — disse Nuramon, admirado com o fato de que o rei não trajava uma coroa, como era comum entre os humanos.

Era estranho para ele que as terras do fiorde agora fossem regida dali. Será que era mérito de Alfadas que Firnstayn tivesse se tornado a cidade real?

— Você está procurando por Mandred? — perguntou Njauldred.

— É isso mesmo, e eu espero que possa me dar algum conselho sobre onde posso encontrá-lo — disse Nuramon com voz amigável.

— Depende de quem está perguntando por ele — disse o gigante, cruzando os braços na frente do peito. — Afinal, ele é meu antepassado.

Era certo que não se podia negar alguma semelhança entre Njauldred e Mandred. Principalmente os olhos do rei eram parecidos com os de Mandred. Mas esse homem era muito mais velho. Nuramon continuava não sendo muito bom para fazer estimativas sobre humanos, mas acreditava que Njauldred estivesse para lá dos cinquenta anos, pois seu cabelo era grisalho. A maior parte de suas rugas ficava meio escondida sob a barba, sendo totalmente visíveis apenas ao redor dos olhos e na testa.

— Meu nome é Nuramon, e eu...

Njauldred não permitiu que terminasse.

— Você por acaso foi companheiro de luta de Mandred? Também o chamam de Nuredred, o Príncipe dos Elfos?

Nuramon estava surpreso. Os humanos claramente haviam enfeitado a seu gosto a história acerca de Mandred Torgridson.

— Sou companheiro de luta de Mandred. Só isso corresponde à verdade. No que diz respeito ao restante, temo que vocês vejam em mim mais do que sou.

Njauldred sacudiu a cabeça.

— A modéstia é a virtude dos heróis.

Nuramon olhou nos rostos dos humanos. Eles o contemplavam como se os próprios albos tivessem retornado. E, enquanto deixava seu olhar vaguear, reparou em algo. No ombro da estátua de leão à esquerda ao pé da escada havia uma inscrição.

— Um trabalho magnífico, não é? — disse Njauldred.

— Com certeza — foi tudo o que Nuramon conseguiu responder.

Seu olhar estava preso nas artísticas runas élficas, que diziam: “Desculpe-me e espere por nós se puder. Farodin.”

— Alfadas mandou fazer esses leões em memória de Mandred, de quem descendia. — O olhar de Njauldred se obscureceu. — Esse sinal alguém gravou aí há muitos anos. Esse alguém com certeza não era de Firnstayn. Ninguém daqui jamais profanaria um memorial a Mandred Torgridson dessa forma.

Nuramon alisou a inscrição com a palma da mão.

— Eu acho isso lindo! Foi perfeitamente executado e louva o herói Mandred. Parece ser trabalho de um elfo.

Njauldred fez uma cara surpresa.

— Mesmo?

Nuramon confirmou suas palavras. Ao olhar no rosto bondoso do rei, repreendeu-se por engabelar um soberano. Era hora de mudar de assunto.

— Rei Njauldred, eu tenho uma pergunta. Mandred lhe disse aonde queria ir?

O olhar do rei endureceu.

— Aqui eles encontraram uma elfa agonizante. Por longos anos ela foi prisioneira do Pico da Noite, uma fortaleza troll que dizem ficar ao norte. Desde os dias do rei Alfadas, nenhum humano ousou ir até lá. Mas Faredred, o amigo elfo de Mandred, estava cegamente decidido a viajar ao Pico da Noite e libertar os elfos que restavam encarcerados lá. Mais de três anos já se passaram desde que eles partiram. Ninguém mais ouviu falar deles.

Nuramon balançou a cabeça gravemente. Dois homens contra uma fortaleza cheia de trolls — isso combinava mesmo com eles!

— Se você permitir, majestade, então esperarei pelo retorno de Mandred e seu amigo elfo entre vocês.

— Você acha que depois de tanto tempo os dois ainda vão retornar?

— Eu não acho, tenho certeza — respondeu Nuramon com uma firmeza que surpreendeu a ele mesmo.

Esse não pode ser o fim de nossa busca por Noroelle!

O rosto do rei se iluminou.

— Ainda há esperanças de que Mandred retorne para nós — gritou para a multidão que nesse meio-tempo se aglomerara na praça. — E o ilustre Nuredred será nosso hóspede em Firnstayn. Mas que honra!

— Eu sou Nuramon. Nuredred é o que fizeram de mim — disse o elfo em voz baixa.

— Você conhece a história do nosso antepassado. Você estava com ele. Você esteve mesmo na caverna daquela vez, não é? Pode contar a verdade aos escaldos. De forma que tudo seja relatado como realmente aconteceu. Você pode fazer isso, não é?

— Eu posso e farei com prazer.

É claro que ele não lhes contaria toda a verdade. Prometera a Mandred não dizer a ninguém que ficaram de mãos dadas. Os humanos viam em Mandred mais que o homem que Nuramon conhecia. Ficariam decepcionados se descobrissem aquele detalhe. Então decidiu contar tudo sobre ele e Farodin da forma como se sucedera, mas no que dizia respeito ao nome de Mandred, providenciaria que se tornasse imortal. Os humanos de Firnstayn ainda ergueriam mais memoriais para o filho de Torgrid.

— Venha! — disse Njauldred, batendo amigavelmente no ombro de Nuramon. Então apontou adiante. — Ali atrás, onde um dia foi a velha casa dele, agora há uma que pertencerá a Mandred para sempre. Você pode morar lá. Vamos dar uma festa! O seu companheiro, Faredred...

— Perdão, mas o nome dele é Farodin! — objetou Nuramon.

— Tanto faz, de qualquer jeito o jovem bebeu muito. — Deu mais um tapa em suas costas. — Vamos ver do que você é capaz.

Um banquete maior que o que vivera junto dos anões os homens certamente não poderiam oferecer. Mas ele estava aberto a surpresas. Precisava se acostumar com os humanos dali. Quem saberia quanto tempo Mandred e Farodin ainda demorariam? Talvez algumas luas, talvez um ano, talvez ainda mais. Ele esperaria e se prepararia para o dia em que continuaria a busca com seus companheiros. Talvez os humanos pudessem até ajudá-lo. Tinha reparado em dois navios no porto cuja aparência lembrava vagamente os navios elfos. Talvez algum dos navegadores conhecesse a ilha que o oráculo lhe mostrara.

Famílias firnstaynenses

Nuramon, o elfo

Naqueles tempos, quando Pai Soreis iniciou as Crônicas de Firnstayn por ordem de Mandred Torgridson, no décimo quinto ano do reinado de Njauldred, Nuramon, o elfo, veio a Firnstayn. Ele dizia que esperaria pelo retorno de Mandred.

Na ocasião eu ainda era criança. Hoje, porém, minha vida declina em direção ao fim. E posso dizer com orgulho que vivi o tempo em que um elfo esperava aqui entre nós. Eu estava lá quando Nuramon veio. Caminhei atrás de seu cavalo e o segui até a praça. E estava lá quando dali ele partiu cavalgando ao lado de Mandred e do elfo Farodin.

Nuramon foi um ganho para a nossa cidade. Gosto de recordar aqueles dias. Lembro-me de como, na primeira primavera, o desafio dos escaldos começou após a chegada dele. Nunca se ouvira uma saga como aquela, narrada em canções e versos. Com suas palavras melancólicas sobre o seu amor perdido, ele caiu nas graças das mulheres. Como isso aborrecia os homens, o dia terminou em pancadaria. Mas o elfo saiu ileso. Ah, tantas vezes Njauldred tentara ter o sangue dos elfos em sua linhagem real! Mas Nuramon era tão fiel ao seu amor perdido que recusava todas as mulheres, ainda que fossem muito bonitas. O elfo era, contudo, mais que um escaldo. Em um ano, treinou o tiro com arco e levou essa arte à perfeição. Olhos humanos nunca haviam podido observar um elfo novato tornar-se mestre de uma arte. Ele produzia estátuas e pinturas de grande beleza.

Durante dois anos não fez outra coisa além de ir ao templo de Luth e falar com o Pai Soreis, e mais tarde comigo, sobre o destino. Parecia ser um pensador e um homem das artes. Disso se originava também algum mal, pois os jovens viam-no como um exemplo e logo muitos queriam trocar a espada e o machado pelo alaúde. Alguns diziam até que o elfo representava um perigo para os jovens e, por isso, para o futuro de Firnstayn.

Quando Njauldred chamou Nuramon e expôs a ele tais repreensões, o elfo disse que gostaria de instruir um punhado de jovens na luta e lembrá-los das virtudes de Mandred. Ele chamou seus guerreiros de mândridos, os filhos de Mandred, e ensinou a eles a luta de espada, o tiro com arco e também a luta com o machado. De fato, era raro vê-lo manejar um machado, mas ele mostrou aos jovens o que vira junto a Mandred.

Como Mandred e Farodin haviam deixado seus cavalos para trás, Nuramon cuidou deles. Ele dizia que era um sonho de Mandred que sua égua gerasse uma linhagem dos melhores cavalos. Os mais nobres garanhões do norte foram levados a ela e os cavalos de Nuramon e Farodin, por sua vez, cobriram as éguas mais vistosas. Foi essa a origem dos cavalos firnstaynenses.

No décimo nono ano do reinado de Njauldred, Nuramon lutou com seus homens contra os guerreiros da cidade de Therse e devastou os inimigos como um louco, somente para depois disso servir ao rei como seu conselheiro mais ilustre. Todo e qualquer guerreiro seu saiu vivo dessa luta.

Nuramon instruiu o jovem Tegrod, filho de Njauldred. Ele o ensinou não somente o que transmitira aos mândridos; mostrou-lhe também como ele próprio poderia tornar-se um mestre. E as habilidades de Tegrod falavam por si mesmas.

Por gratidão, o velho Njauldred presenteou Nuramon com um navio, ao qual Nuramon deu o estranho nome de Estrela dos Albos. Mas o elfo nunca saiu com ele. Em vez disso, cuidava da embarcação e punha-se a seu lado para olhar para o mar. A oscilação entre alegria e melancolia era a sua marca característica. Uma vez por mês, ele passava o dia todo no Carvalho de Freya e recordava a mulher de Mandred, embora tenha me confessado em uma noite de inverno que nunca a vira. Da mesma forma, uma vez por mês subia até o círculo de pedras. Diziam que ali ele se encontrava com outros filhos dos albos. Uma vez ele me acompanhou montanha acima até a Gruta de Luth. Fez a oferenda de homens de ferro seguindo o costume e contou-me na caverna que, desde os dias de Alfadas, o que um dia ali se sucedera havia voltado a ser sagrado.

E um dia então veio a despedida, surpreendente até mesmo para Nuramon.

Lurethor Hjemison, de Luth, em Firnstayn, p. 53-55

Velhos companheiros

Nuramon acordou sobressaltado da sesta. Uma grande gritaria reinava lá fora. Levantou-se e começou a se vestir. Terminava de abotoar sua camisa quando a porta se abriu de repente. Era Neltor, o jovem rei de Firnstayn.

— Majestade? Como posso servi-lo hoje?

Nuramon um dia instruíra o jovem soberano em nome de seu pai e ele ainda o via como uma espécie de mentor. O rei não lembrava em nada o pai, que se assemelhava muito a Mandred. Neltor parecia-se mais com Alfadas.

— É outro conflito?

— Não, imagine! — seus olhos brilhavam. — Meu antepassado está velejando fiorde acima. Como devo tratá-lo?

— Mandred? Mandred Torgridson?

— Ele mesmo!

Nuramon expirou aliviado. Para ele, aliás, era quase como se tivesse prendido a respiração pelos últimos 47 anos...

Finalmente seus companheiros estavam voltando. Embora tivesse encontrado distrações abundantes em Firnstayn, sempre estivera preocupado com os amigos e, ainda mais frequentemente, quase caíra na tentação de seguir sozinho em sua busca por Noroelle.

— Também há um elfo ao seu lado?

— Sim!

Nuramon sorriu para o rei.

— Você me perguntou como deve receber Mandred. E como conselheiro fiel eu lhe digo: já está vestindo a armadura certa. — Era a de Alfadas. — Se ainda se armar com o seu melhor machado e surgir na escada para a sala do rei junto às estátuas de leão, então Mandred ficará admirado.

— Obrigado, mestre!

— Neltor! Me chame de amigo, me chame de homem de confiança, mas, por favor, não me chame mais de mestre.

O jovem sorriu e se foi.

Nuramon agora estava com pressa. Saiu para a rua e pôs-se a caminho do portão. Qual seria a aparência de Mandred? Talvez fosse somente um velho.

De repente Voagad estava ao seu lado. Fora um de seus alunos e estava admirado.

— Mandred Torgridson! Isso vai ser uma festa!

— Você, como sempre, só pensando na bebedeira... Faz bem, pois Mandred saberá apreciar isso. Mas agora vá e reúna os mândridos! Eles devem se agrupar no Templo de Luth. De maneira alguma devem vir à praça antes que eu dê o sinal.

Voagad logo desapareceu. Nuramon seguiu o rapaz com os olhos. Com os anos, Mandred se tornara mais que o antepassado dos reis — era o ancestral de Firnstayn. E Nuramon contribuíra muito para isso. Lançara uma luz sobre o companheiro que há muito tempo ultrapassara as fronteiras de Firnstayn e se propagara para todas as terras do fiorde.

Nuramon não contara a história toda ao povo de Firnstayn. Também havia ocultado dos fiordlandeses que o devanthar ainda estava vivo. Nos anos passados, Nuramon pensara com frequência no demônio. Será que ele seguira outros caminhos para arruinar outras pessoas? Ou estava à espreita em algum lugar, só esperando para fazer frente a ele e seus companheiros mais uma vez? Ele não sabia dizer, mas se perguntara com frequência o porquê de o destino estar brincando com eles de forma tão dura, e se algumas vezes não teria havido a mão do devanthar nisso.

O júbilo irrompeu. Então Mandred já estava na cidade! Uma multidão de humanos seguia espremida ao longo da rua. Cinquenta anos atrás, não teriam sido tantos assim. Firnstayn parecia crescer incessantemente. Mais cinquenta anos e Mandred não conseguiria dar mais nenhum passo diante desses humanos barulhentos.

Nuramon resistiu e esperou. Em algum lugar ali na sua frente, entre os firnstaynenses, deviam estar os seus companheiros. De repente formou-se um corredor entre os humanos.

Ali estavam eles! Mandred e Farodin. Sua aparência era exatamente a mesma de como Nuramon os tinha na lembrança. Estava feliz que Mandred não havia envelhecido. Seus companheiros o viram. Os humanos ao redor deles prenderam a respiração. Claramente queriam acompanhar o reencontro de Nuramon, o elfo, com Mandred, seu companheiro de luta.

— Nuramon, seu fanfarrão! — gritou Mandred, correndo arrebatado em sua direção.

Farodin, por sua vez, manteve-se em silêncio, mas seu rosto encheu-se de alívio.

Mandred abraçou o elfo tão forte que ele mal conseguiu respirar. Ao longo dos anos com Njauldred, Nuramon aprendera a lidar com aquelas brutalidades de amigo.

Nuramon baixou os olhos até o jarl.

— Já estava achando que jamais os veria novamente.

Mandred deu um sorriso largo.

— Nós tivemos de chutar o traseiro de alguns trolls!

— E, enquanto isso, esquecemos um pouco do tempo — completou Farodin, provocando expressões de admiração nos humanos ao redor. Estava claro para Nuramon que uma estrela alba os tornara vítimas do tempo.

Farodin e Nuramon seguiram caminhando, enquanto Mandred mergulhava na massa de humanos. Farodin contou sobre os trolls, sobre a morte de Yilvina e a libertação dos outros elfos da prisão. Narrou também como tiveram de fugir por uma estrela alba menor.

A notícia sobre Yilvina sensibilizou Nuramon. Durante a busca por Guillaume, ela foi uma boa companheira. Deviam somente a ela o fato de terem conseguido escapar da Terra dos Albos. Se ela não tivesse permitido que a nocauteassem, talvez até hoje ainda não tivessem partido em busca de Noroelle.

— Quanto tempo você esperou? — perguntou Farodin, arrancando-o de seus pensamentos.

— Quarenta e sete anos — respondeu Nuramon.

A risada de Mandred aproximou-se deles por trás.

— Então você viveu mais tempo aqui do que eu! Ora, então agora você é um legítimo firnstaynense?

Nuramon virou-se para ele.

— Talvez. Mas também pode ser que os firnstaynenses tenham se tornado verdadeiros elfos.

Mandred riu ainda mais alto, acompanhado dos humanos ao seu redor.

— Como é que o rei se chama?

— Ele se chama Neltor Tegrodson; o avô dele, Njauldred, você chegou a conhecer.

Mandred abriu caminho até Nuramon e perguntou baixo:

— Ele presta para alguma coisa?

— Ele é um rei sábio e...

— Digo, ele é um bom guerreiro? Um verdadeiro...

— Eu sei o que você quer dizer... Sim, ele é um bom guerreiro. Um excelente arqueiro. — Viu como Mandred torceu a cara. — Ele se destaca com a espada longa, mas principalmente com a espada curta... — O mau humor tomou conta dos traços do filho de humanos. — Mas é insuperável na luta com o machado!

A expressão de Mandred transformou-se repentinamente. Agora estava radiante.

— Então a melhor arma conseguiu mesmo se impor — disse ele, orgulhoso.

— Venha! Vou apresentá-lo ao seu descendente — disse Nuramon, apontando adiante. — Mais tarde, vou levá-lo à sua égua para que conheça os descendentes dela.

— Égua? Descendentes? Você...?

— Assim como você é o ancestral dos reis, a sua égua é mãe dos cavalos firnstaynenses.

Mandred sorriu orgulhoso.

— Nuramon, eu te devo uma!

Quando chegaram à grande praça, ficou evidente o quanto a cidade havia mudado. Todas as ruas tinham calçamento, as casas eram de pedra talhada — mas o Templo de Luth era de tudo o que mais prendia os olhos. Humanos de todo o reino o tinham construído ao longo de trinta anos. A praça estava praticamente vazia, embora os moradores se espremessem nas ruas laterais e nas janelas das casas. Neltor fizera um bom trabalho, pensou Nuramon. Assim, Mandred teria espaço para ficar frente a frente com o rei e seu séquito.

— Aquele é ele? — perguntou Mandred, olhando para Neltor do outro lado.

— Sim. Venha! Vamos até ele.

Os três caminharam até ficar lado a lado com o rei.

— Seja bem-vindo, Mandred Torgridson. Sou Neltor Tegrodson, seu descendente. — E curvando-se: — Sua permanência entre nós é uma honra e tenha certeza de que para nós você será sempre o jarl Mandred.

A insegurança de Neltor diante de seu ilustre antepassado era perceptível. Seu olhar estava inquieto e suas mãos tremiam levemente.

Mandred parecia não dar importância a isso. Aparentava estar tocado e falou pouco enquanto Neltor encontrava as palavras mais amigáveis para expressar o seu respeito e a importância de Mandred.

Depois de Neltor mencionar os serviços de Nuramon a ele, ao seu pai e ao seu avô, o elfo fez um sinal e os mândridos vieram da rua lateral detrás do Templo de Luth.

— Mandred, aqui estão alguns firnstaynenses que você deve conhecer.

Nuramon apontou para as duas dúzias de guerreiros. Ele vestiam armaduras leves de couro e todos estavam armados com uma espada curta e um machado. Além disso, alguns portavam arcos e flechas e outros traziam escudos redondos afivelados às costas.

— Estes são os homens que eu ensinei — disse Nuramon. — Eles são os mândridos.

Mandred olhou na direção dos guerreiros com grande espanto.

— Por Norgrimm, nunca vi rostos assim tão determinados! Com esses homens eu partiria a qualquer momento.

— Eu os treinei.

Nuramon estava orgulhoso por ter instruído os guerreiros e feito deles bons lutadores com o machado. Para isso, tinha se lembrado de tudo que Mandred ensinou a seu filho Alfadas, temperando ainda um pouco com o que Alwerich lhe mostrara.

— Ao longo dos anos, esses guerreiros puderam provar várias vezes o seu valor na luta.

— Com esses sujeitos do nosso lado teríamos conseguido trazer o fígado do duque dos trolls para os cães da cidade — resmungou Mandred ferozmente.

Nuramon trocou um olhar com Farodin. O companheiro balançava a cabeça de forma quase imperceptível.

— Mandred, seria uma honra para mim se me acompanhasse até o meu salão para celebrar com um pouco de cerveja e hidromel — disse Neltor.

— Uma oferta que Mandred não pode negar! Mas eles ali também vêm junto — disse, apontando para os mândridos. E virando-se para Nuramon e Farodin: — E quanto a vocês?

— Esse é um assunto entre o jarl e os seus descendentes — retrucou Farodin.

Em vez de responder, Mandred se deixou conduzir por sua família. Pareciam falar com ele por todos os lados. As pessoas nos limites da praça e nas ruas laterais seguiram o cortejo real.

— Ele está saboreando demais tudo isso — disse Farodin.

— Ele vai poder se alegrar com essa lembrança por um tempo, quando estivermos a caminho do portal de Noroelle.

Farodin encarou-o, incrédulo.

— Você o encontrou?

— Eu o vi.

— E como ele é? — Nuramon nunca vira Farodin assim tão curioso.

— Venha comigo até a casa de Mandred!

Farodin seguiu-o inquieto. Estava claramente impaciente, e Nuramon não o culpava por isso. Embora ele mesmo tivesse esperado por Farodin e Mandred quase cinquenta anos, teria preferido mil vezes procurar pelo lugar que vira na Gruta das Estrelas de Dareen.

Quando chegaram à casa de Mandred, Farodin olhou em volta surpreso. Ao longo daqueles anos, Nuramon tinha mudado algumas coisas. Havia sido um cliente enfastiante dos artesãos de Firnstayn. Armários, mesas e cadeiras precisavam cumprir tanto as exigências élficas quanto as de Mandred. Para isso, as armas e arcas, assim como os escudos nas paredes, precisavam lembrar que aquela era a casa de um guerreiro. Nuramon estava orgulhoso principalmente do grande machado de guerra. O ferreiro o forjara de acordo com as suas instruções, assim como o machado comum, que fora inspirado na arma de Alwerich.

— Mandred vai gostar disso. É simples e ameaçador. E esta pintura aqui... — Estava diante de um retrato de Alfadas. — Foi você que pintou?

— Sim.

— Você me surpreende.

— Então veja essa aqui, para começar! — disse Nuramon, aproximando-se de um quadro coberto sobre seu cavalete.

Então tirou o pano que cobria a pintura, na qual tinha trabalhado por mais de trinta anos. Ela mostrava a paisagem que ele vira na gruta com o oráculo.

Farodin recuou um passo para poder observar melhor a pintura. Seu olhar vagueou inquiridor pelo grande quadro: sobre a água, pela ilha, pela terra firme com suas florestas e pelas montanhas.

— Algum tempo depois de ter partido de Iskendria, encontrei o portal para o oráculo. — Enquanto seu companheiro sondava a pintura em todos os seus detalhes, Nuramon contou-lhe sobre o enigma no portal, sobre os filhos de albos das trevas e sobre a imagem que viu na Gruta das Estrelas. — Dareen me disse que devia me juntar a vocês novamente. Que devia esperar por vocês aqui. Você não faz ideia de quantas vezes quase caí na tentação de partir em busca desse lugar, mas as palavras do oráculo e a sua inscrição na estátua me impediram.

Farodin tocou a pintura.

— Isso é tinta de Yal?

— Sim. Eu mesmo a produzi. As pessoas daqui não entendem muito das cores de Yaldemee.

Farodin o encarou de forma elogiosa.

— É uma obra de arte.

— O tempo pode demorar muito para passar. E você devia ter visto as minhas primeiras tentativas. Mas agora é isso mesmo o que eu vi. Dareen ainda disse mais uma coisa... — Ele se calou e lembrou do oráculo e de sua aparição.

— O que foi?

— Que haveria duas possibilidades de quebrar o feitiço no portal de Noroelle: com a ajuda da ampulheta ou de uma pedra alba. Eu pensei muito sobre isso e me pergunto se, na verdade, também não precisaremos do vidro além da areia.

— Vamos primeiro encontrar essa paisagem. A imagem é maravilhosa. Onde pode ser isso?

— No meu caminho até aqui procurei encontrar o lugar. E perguntei a marinheiros se eles o conhecem. Mas não tive êxito. Estou tão feliz que vocês estejam aqui.

— Esse quadro vai nos ajudar. Junto com os grãos de areia, devemos conseguir encontrar essa ilha. — Farodin foi até bem perto da pintura. — Eu me pergunto se isso aqui é um lago ou o mar.

Nuramon levara anos para pensar na paisagem da costa que aparecia no quadro.

— É o mar. Fiquei muito tempo fazendo as ondas. São ondas do mar. — Deixou seus dedos deslizarem pelo quadro. — Esta cordilheira também pode ser uma ajuda. Ela é muito imponente, mas não tão alta para haver neve nos cumes.

— Pode ser um fiorde. Talvez esteja por aqui, nos nossos arredores.

— Não. Aqui não há montanhas claras como essas. Eu perguntei a cada marinheiro, a cada viajante, a cada conhecedor local. No meu caminho até aqui, mantive os olhos abertos para essas montanhas. Elas não se encontram aqui nas terras do fiorde.

Farodin recuou e observou o todo do quadro.

— Por todos os albos! Agi errado com você em Iskendria. Esse quadro! Sinto claramente que tudo em mim busca esse lugar.

— Nós dois agimos errado um com o outro. Mas nós precisávamos nos separar para que pudéssemos fazer progressos no caminho... no nosso caminho até Noroelle. Tenho a sensação de que o Carvalho dos Faunos nos mandou intencionalmente através do portal para o deserto. Talvez a árvore tenha visto algo no futuro. Eu refleti muito sobre isso. Nenhum dia se passou sem que eu me perguntasse por que a rainha simplesmente não mandou me buscar.

— Ninguém da Terra dos Albos esteve aqui?

— Ninguém! Encontrei Xern por acaso. A rainha não fala sobre nós e não tolera que se desperdice nem uma palavra conosco na sua presença.

O canto da boca de Farodin tremeu.

— Ou ela está fora de si em fúria e só esperando nós voltarmos para poder nos julgar, ou então tem alguma outra coisa aí — disse ele por fim.

— Os portais estão novamente abertos e não são mais vigiados desde que a Guerra dos Trolls terminou. Parece que a ameaça de que Emerelle tinha medo foi afastada.

— Ela disse que a morte de Guillaume poderia provocar algo e que ainda sentia o poder do devanthar como antes. Como isso poderia simplesmente passar?

— O devanthar nunca foi visto novamente. Todos se calam também a seu respeito. Pelo menos é o que diz Xern... Pensei muito no que o devanthar estaria tramando agora, quem ele está perseguindo e se realmente encerrou os planos que tinha para nós.

— Não fique quebrando a cabeça com isso! Vamos evitar a Terra dos Albos, se for possível, e esquecer o devanthar por enquanto. Com este quadro você talvez tenha me mostrado um caminho. De alguma forma, eu tenho a sensação de que é assim mesmo.

— Ainda tem mais uma coisa. Com os anões eu...

De repente a porta se escancarou, e Mandred entrou cantando alto.

Então veio o filho de Torgrid, trazendo ali um fígado de javali! Ah, aí estão vocês! E? Vocês a viram?

— Quem? — perguntou Farodin.

— Ah, ela. Aquela mulher maravilhosa! A irmã de Neltor!

— Para mim todas as mulheres daqui são iguais — retrucou Farodin.

Nuramon sorriu.

— Ele está falando de Tharhild.

— Sim! E que nome! Tharhild! — o filho de humanos sorriu atrevido.

— Quem imaginaria — disse Farodin. — Mandred Torgridson está apaixonado.

O jarl pareceu não ter ouvido as palavras de Farodin.

— Nós somos parentes muito próximos? — perguntou a Nuramon.

— Deixa eu pensar. Você é pai de Alfadas, que por sua vez é pai de... — Ele se calou e ficou pensando. Mas então se perguntou por que seu amigo queria saber. Estava claro que, a respeito de Ragna, esses pensamentos não lhe ocorreram. Ou ele estava com medo de que Tharhild pudesse ser sua filha? — Há onze gerações entre você e Tharhild. Então você não precisa se preocupar. A não ser que...

— A não ser o quê?

— Você se lembra do nome Ragna?

Medo puro se espalhou no rosto de Mandred.

— Tharhild por acaso é...

Nuramon enrolou um pouco o amigo antes de responder.

— Diga logo o que Ragna tem a ver com Tharhild!

— Então, Ragna é nada mais que... tia de Tharhild.

Mandred respirou aliviado.

— E que fim levou ela? Ela ficou triste por minha causa?

— Mandred Torgridson, o grande herói das mulheres! Caçador de aventais de Firnstayn! É só dividir a cama com uma moça um dia e ela irá chorar eternamente por ele e esperá-lo voltar... Não, Mandred. Ela encontrou um bom marido, deu filhos a ele e morreu depois de uma vida feliz. Mas...

— Mas o quê? Vamos, bota isso para fora!

— Eu escutei as mulheres na corte. Elas contam histórias sobre você. Não sobre Mandred, o herói, mas sobre Mandred, o amante, que retornou depois de anos para seduzir as mulheres.

Mandred sorriu.

— Você gostou da sua casa? — perguntou Farodin ao jarl, deixando claro que queria mudar de assunto.

Ele olhou em volta.

— Por Norgrimm! Esta... Esta é a sala de um guerreiro! — E aproximando-se do grande machado de pedra: — Gostei disso... — Então pareceu parar para pensar. — Mandred, o amante! — sussurrou. — Agora preciso ir. Nuramon, meu amigo, vamos nos sentar juntos mais tarde para eu ouvir como você passou...

Mandred saiu tão rápido quanto chegou. Na pressa, nem chegou a reparar no retrato do filho.

Farodin olhou para a porta que se fechava atrás do filho de humanos.

— Ele estava falando sério.

Nuramon suspirou.

— Sim. Mas você pode ter certeza de que amanhã, quando vir o carvalho de sua Freya, será um despertar ruim para ele. Vê-lo fará todas as velhas feridas se abrirem de novo. Eu o conheço.

— Os humanos não são tão fiéis quanto nós, Nuramon. Talvez ele já tenha terminado sua história com Freya.

— O carvalho é um símbolo poderoso demais. Sempre que o vir, ele se lembrará de Freya.

— Você aprendeu muito sobre os humanos.

— Sim. Foram 47 anos! Fiz muita coisa. Este mundo obriga um elfo a aproveitar o tempo de forma diferente de como está acostumado. Eu vi jovens se tornarem anciões e meninas virarem mães e avós. Por mais que tenha apreciado esse tempo, agora quero finalmente procurar Noroelle.

— Você mudou, meu amigo.

Nuramon ficou tocado. Sim, ele havia mudado, mas Farodin também já não era mais o mesmo. Ouvir a palavra amigo de sua boca era um presente que Nuramon jamais esperara, sobretudo depois da briga em Iskendria.

— Eu estou feliz que esteja aqui com Mandred, amigo!

A força da areia

O jovem rei de Firnstayn mostrara-se generoso. Mandara equipar o navio de Nuramon, o Estrela dos Albos, pois desde o começo ficou claro para os companheiros que o barco de Farodin era pequeno e frágil demais para a viagem que tinham diante deles. O rei Neltor também estava consciente disso, então insistiu que sua guarda pessoal, os mândridos, os acompanhassem. E deu a eles, para que levassem consigo em seu caminho, uma pesada arca com prata para que nos portos distantes pudessem completar suas provisões.

Farodin saiu para a viagem com muitas dúvidas. Nuramon depositara grandes esperanças no quadro que pintou e não queria ouvir nada a respeito do quanto talvez fosse necessário procurar para encontrar a ilha. Como viajar a um lugar que não se sabe onde fica? Da tripulação eles esconderam suas incertezas. O que os humanos diriam sobre isso? Até Mandred, que já os conhecia havia tantos anos, estava inquieto. Ele se preocupava com seus mândridos e temia que pudessem ficar velhos antes que a busca terminasse.

Farodin memorizara com exatidão o quadro da ilha de Nuramon. Todos os dias tentava encontrar a pista para o lugar com a ajuda de seu feitiço. Mas isso era diferente do que ocorria com os grãos de areia: ele os encontrava ou não. Quando procurava pela paisagem do quadro, era acometido por uma vaga sensação de que tinham de virar para o leste. Mas será que uma sensação bastava, ainda mais uma assim tão vaga?

Eles evitaram as águas dos trolls e seguiram por semanas a costa acidentada de Skoltan.

Era uma manhã de verão e acampavam em uma praia sob pedras de calcário cinzentas. Farodin se afastara dos outros. Como sempre, usou o feitiço de busca uma primeira vez para encontrar indicações sobre a paisagem da imagem. Procurava mais que uma vaga sensação.

Queria saber em qual direção deviam seguir em vez de apenas suspeitar dela.

Então fez o feitiço de busca uma segunda vez. Agora segurava firmemente nas mãos a garrafa de prata com a areia e procurava os demais grãos da ampulheta quebrada. Um pouco adiante, na terra, sentiu um único grão. Concentrou-se e então deixou o poder da areia fluir. Como um imã atrai uma lasca de ferro, a areia na garrafa puxou para perto o grão solitário.

Farodin estendeu a mão e logo sentiu um toque muito suave. Satisfeito, o elfo acrescentou o grão à areia de dentro da garrafa. Era somente um passo minúsculo, mas cada um desses passos o levava um pouco mais para perto de Noroelle.

Fechou a garrafa de prata cuidadosamente. Então Farodin fez o feitiço de busca pela terceira vez. Fechou os olhos e pensou no mar. De fato, também conseguia rastrear os grãos de areia que jaziam no fundo dele, mas atraí-los era difícil. O movimento constante da água os detinha. Um curto instante de desatenção e ele perdia a ligação com eles. O melhor seria se aproximar dos grãos o quanto fosse possível. Sair com um barco e agarrá-los assim que chegassem à superfície.

O mar o preocupava. Quantos grãos de areia ele poderia ter engolido? Grãos de areia que ele talvez jamais encontraria! E quantos grãos da ampulheta poderiam estar faltando quando tentassem quebrar o feitiço da rainha?

Farodin reprimiu seus pensamentos e voltou a concentrar-se totalmente no feitiço. Sentiu alguns grãos no lodo do oceano e... Um arrepio o percorreu. Havia algo de estranho ali. A garrafa de prata tinha se mexido em sua mão. Havia algo que a puxava. Farodin ficou tão surpreso que perdeu o fio da meada e precisou desistir do feitiço. O que acontecera?

Ficou sentado por um bom tempo na praia, olhando para o mar. Qual poderia ter sido a causa daquele fenômeno esquisito? Talvez houvesse um lugar com mais grãos de areia reunidos que todos os que conseguira juntar ao longo dos anos? Será que não poderia se tratar da pedra onde Emerelle destruíra a ampulheta? Ou então será que havia mais alguém juntando os grãos de areia — alguém que estivesse se saindo melhor que ele? Haveria uma possibilidade de excluir essa suspeita? Talvez devesse tentar ligar a pintura de Nuramon ao feitiço de busca dos grãos de areia. Fechou os olhos mais uma vez e concentrou-se. Novamente sentiu uma puxada para o nordeste, até mais nítida que a anterior. Uma imagem formou-se em seus pensamentos. Ele viu a pedra onde Emerelle quebrara a ampulheta. E o que isso provava? Não podia ser que, apesar disso, ainda houvesse mais alguém juntando os grãos? Talvez estivesse nesse lugar esperando por eles.

Farodin afastou esses pensamentos. Podia estar ficando maluco aos poucos com aquela busca. Também havia uma explicação muito mais simples. Em que lugar poderia haver mais grãos de areia do que naquele em que Emerelle destruíra a ampulheta? Ele devia ter sentido o lugar onde ficava a passagem para a prisão de Noroelle no Mundo Partido. Decidiu não contar tudo a seus companheiros. Por que deveria atormentá-los com seus medos, que talvez fossem infundados? Ele desceu até o acampamento e relatou que, a partir de então, deviam velejar a nordeste, para o mar aberto.

Por mais valentes que fossem os mândridos, a inquietação tomou conta deles depois de três semanas sem ver a costa. Certa manhã, até Mandred, cuja coragem estava longe de ser questionada, revelou sua preocupação com o fato de poderem chegar à borda do mundo e despencar no nada se não mudassem de rota.

Foi Nuramon, com sua língua de seda, quem novamente dissipou a perturbação dos humanos. Eles confiavam nele. Era capaz de escolher as palavras tão habilmente que logo estavam até rindo com ele. Mas não conseguiu fazê-los esquecer de que a água em seus barris logo estaria tão viciada que seria um sacrifício beber dela. As demais provisões também já estavam no fim. Mas logo eles estariam no destino.

Farodin agora precisava segurar a garrafa de prata com força quando fazia o feitiço de busca, para que não fosse arrancada de sua mão. No 37º dia da viagem, avistaram terra firme. Tiveram de se aproximar da margem e perderam dois dias, pois já não era mais possível manter os mândridos a bordo do Estrela dos Albos. Procuraram água e saíram para caçar. Farodin também gostou de finalmente poder saborear de novo a água fresca da nascente. Porém, para ele era difícil manter a calma sabendo quão perto estavam de seu destino.

Quando os estoques estavam renovados e os mândridos, recuperados, Farodin os conduziu para o norte ao longo da costa. Os dias de aflição em alto-mar já estavam esquecidos. Quase reinava de novo entre os humanos a mesma atmosfera eufórica do começo da viagem com seu ilustre antepassado. Até os filhos de humanos pareciam sentir como estavam perto do alvo.

No 39º dia, a margem recuou bastante a leste. Chegaram a uma ampla baía. Vento fresco preenchia a vela e estavam em boa velocidade quando, de repente, Nuramon deu um grito agudo.

— As montanhas! Veja as montanhas!

Farodin também reconheceu uma das montanhas do quadro de Nuramon. Tudo parecia bater. As árvores que cresciam junto à margem, as cores das montanhas ao longe. Embora o navio estivesse rápido, os mândridos pularam sobre os bancos e remaram o quanto puderam para impulsioná-lo ainda mais.

Farodin e Mandred, nervosos, estavam de pé na proa. O vento fresco brincava com os cabelos longos de Farodin. Ele tinha lágrimas nos olhos e não se envergonhava delas.

— Está sentindo isso? — perguntou Nuramon, apontando para um pontal que avançava bastante da baía. — Aqui há muitas trilhas albas. Todas seguem para um único ponto, que deve ficar do outro lado da floresta.

Quando finalmente contornaram o pontal, Nuramon deu outro grito de alegria. Como se estivesse possuído, começou a dançar no convés do navio. Os mândridos riram e fizeram algumas piadas grosseiras. Eles não conseguiam imaginar o que aquele momento representava para os dois elfos, pensou Farodin. Ele não era capaz de extravasar sua alegria tão livremente quanto o seu camarada; sua alegria era muda, mas não por isso ele estava menos comovido. Diante deles havia uma pequena ilha coberta de floresta, com a margem rochosa. Era a ilha do quadro de Nuramon.

Os mândridos novamente assumiram os remos com toda a força. Como um grande pássaro aquático, o navio disparou sobre a água com sua grande vela azul. Mas então precisaram mudar de curso. Recifes cinzentos revolviam a água na frente deles. Já estavam a menos de cem passos de distância da margem, mas não havia um lugar seguro para atracar. Teriam de contornar a ponta norte da ilhota e procurar do outro lado por águas navegáveis.

Farodin olhou para Nuramon. O companheiro o compreendeu sem que precisassem trocar uma palavra e sorriu com ar maroto. Então lançaram-se ao mar. A água batia-lhes no peito. Meio nadando e meio patinhando, aproximaram-se da margem enquanto o navio seguiu para o norte para contornar a ilha.

Agora Farodin também sentia as linhas de força das trilhas albas que se encontravam em uma estrela. Deslocaram-se para o sul ao longo da ilha, para dentro da baixada inundada. Logo estavam no entroncamento das trilhas. Com a maré, ele ficava oculto sob a água, mas não era necessário vê-lo para sentir a sua força. Tudo ao redor estava de acordo com o quadro de Nuramon. Não havia dúvidas. Tinham encontrado o lugar de onde Emerelle banira sua amada para dentro do Mundo Partido.

Comovido por um estranho sentimento de felicidade, Farodin enlaçou seus companheiros com os braços. Sua busca tinha finalmente terminado! Agora tudo ficaria bem!

Um feitiço para a maré baixa

Era de manhã e Nuramon estava sentado na pedra em que a rainha um dia quebrara a ampulheta. Ali tinham encontrado muitos grãos de areia. Farodin contou então que tivera uma visão daquela pedra no quarto de vestir da rainha.

Nuramon ainda não conseguia acreditar que realmente haviam encontrado o lugar que o oráculo indicara. A maré estava baixa. O mar havia recuado bastante e deixado um chão ondulado entre a ilha e a terra firme. A baixada lembrava Nuramon do caminho até o oráculo, que parecia um leito vazio de rio.

A cerca de vinte passos de distância apenas estava a estrela dos albos. A maré baixa a deixara livre. O lugar era reconhecível pelos mariscos que se acumulavam ao redor da estrela.

Era quase um milagre que tivessem encontrado terra ali, no leste tão distante. Do outro lado da ilha parecia haver todo um continente, do qual os humanos nas terras do fiorde, em Angnos, Drusna ou Fargon, nem faziam ideia. Parecia quase uma terra virgem.

— A hora chegou! — disse Mandred, batendo no ombro de Nuramon. — Farodin está pronto.

O filho de humanos parecia cansado. Passara os últimos dias remando com Farodin no pequeno bote por toda a enseada para procurar grãos de areia espalhados.

Nuramon apenas consentiu com a cabeça.

— Dessa vez vai dar certo.

A tentativa de Mandred de animá-lo não estava rendendo frutos. Nos dias passados, Nuramon se esforçara várias vezes para abrir o portal para Noroelle. Mas em cada uma das vezes fracassara miseravelmente. Primeiro tentou durante a maré cheia, mas a água parecia enfraquecer o seu feitiço. Para abrir o portal para Noroelle precisava contar com toda a sua força.

Nuramon levantou-se.

A tripulação se aproximou e aglomerou-se na praia. Não queriam perder o espetáculo, mesmo que nos últimos dias tivesse havido pouco para ver. Farodin não estava com eles.

A ilha em que se encontravam poderia ser um espelho de outra no Mundo Partido. Só faltava atravessar um portal na estrela dos albos e estariam com Noroelle! Nuramon não podia acreditar que estavam tão perto de sua amada e não conseguiam chegar até ela. Era impossível abrir um portal na estrela dos albos com a própria força, pois a barreira da rainha era poderosa demais.

— Agora Farodin encontrou todos os grãos de areia que há aqui — disse Mandred.

As palavras do companheiro não conseguiam distraí-lo do fato de que ainda possuíam poucos grãos de areia e de que o feitiço da rainha era poderosíssimo.

Farodin finalmente apareceu. Parecia descansado.

— Lembre-se, Mandred — disse com voz relaxada. — Vocês não devem vir em nosso auxílio, o que quer que aconteça. O feitiço talvez esteja falhando por causa da preocupação de vocês.

— Prometido! — respondeu Mandred. Os demais firnstaynenses também concordaram. Então o jarl bateu no ombro de Nuramon. — Lembre-se do seu ato heroico na Gruta de Luth!

Juntos, Nuramon e Farodin caminharam até a estrela dos albos. Os mariscos formavam um círculo e seguiam um pouco as trilhas, formando algo que parecia o desenho do sol. No meio do pequeno círculo estavam acumulados alguns deles. Aparentemente, a maré estava fraca demais para levá-los embora. A estrela dos albos os mantinha presos.

Eles se posicionaram no círculo de mariscos.

— O que foi, Nuramon? — perguntou Farodin, por fim.

— Nós estamos tão perto dela, e...

Farodin o interrompeu.

— Eu vou extrair a força da areia. Nisso eu sou bom. E vou deixá-la fluir para você. Dessa forma, vamos empregar todos os meios que temos.

O fato de Farodin poder ajudá-lo dessa forma tranquilizava Nuramon, mas seu companheiro nem fazia ideia de quão forte era a barreira da rainha. A comparação de Mandred com a Gruta de Luth não era despropositada. Ao tentar quebrar o feitiço no dia anterior, Nuramon sofrera dores terríveis. Farodin havia igualmente tentado abrir um portal, mas fracassara logo no começo. Então não pôde sentir como era grande o poder que enfrentavam. Precisariam dispor de muito mais força para alcançar o seu objetivo. O destino parecia colocá-los o tempo todo diante de tarefas inextricáveis. Nuramon lembrou-se da luta contra o devanthar. Estavam totalmente desarmados para ela, da mesma forma como estavam para esse feitiço. Mas, se eles se superassem uma única vez, talvez isso fosse o bastante para salvar Noroelle.

— Você está pronto? — perguntou Farodin.

— Não, não estou pronto. Mas quero ir até Noroelle!

Nuramon pegou na mão de Farodin e segurou-a com força. Então fechou os olhos e se concentrou. De repente, as trilhas dos albos surgiram diante de seus olhos. Duas eram paralelas ao solo e só uma saía do chão, passando pelo centro da estrela e subindo direto para o céu. Essa era a trilha que levava a Noroelle. Era negra e transpassada por artérias de luz verde. Nuramon conseguia sentir a barreira da rainha, mas não podia vê-la. Era como uma crosta que agasalhava o caminho para a amada, bloqueando-o. Como uma peneira, ela parecia deixar passar somente uma parte do poder da trilha. A crosta era mais dura que tudo o que Nuramon conhecia. Decidiu lutar diretamente contra ela em vez de, como antes, tentar cercá-la e entendê-la cuidadosamente.

Então ele teceu o feitiço e preparou-se para penetrar na barreira com um golpe poderoso, abrindo uma ferida na estrela alba. Como uma espada, seus poderes mágicos avançaram contra a barreira. Contudo, antes que encontrassem a muralha de força, Nuramon sentiu algo se acumular diante dele. De repente, aquilo o atacou. Uma dor aguda o percorreu.

O elfo interrompeu o feitiço quando já não podia sentir mais o próprio corpo. Então soltou-se da barreira. Num instante, a dor desapareceu.

Nuramon abriu os olhos, soltou a mão de seu companheiro e respirou fundo.

Farodin encarou-o com compaixão.

— Você não pegou nenhuma força de mim — afirmou ele.

— Eu sequer cheguei a esse ponto. Esta barreira é mais forte que o portal para o Reino dos Anões.

— Você quer desistir? — perguntou Farodin. — Ninguém vai chamar você de fracote.

— Noroelle está do outro lado! Vou tentar mais uma vez.

Ele agarrou a mão de Farodin, fechou os olhos e concentrou-se novamente. Só precisava ir mais rápido! No momento em que a força da barreira se juntasse para lhe causar a dor, precisava já ter penetrado na crosta com o seu poder. Repetiu o feitiço mentalmente mais uma vez. Então tentou de novo. Sua força acertou a barreira e desta vez penetrou nela como uma espada no corpo de um adversário, mas ainda assim não conseguiu quebrar a parede mágica antes que a dor o dominasse. Para ele, foi como ter enfiado uma lâmina em seu próprio corpo.

Neste momento, Farodin apoiou-o com seus poderes mágicos. Os grãos de areia deram-lhe muita força e ajudaram Nuramon a suportar a dor. Ele tentou desesperadamente penetrar na barreira, mas era empurrado lentamente para trás. Quanto mais poder aplicava para quebrar o feitiço da rainha, maior tornava-se a dor.

Nuramon ouviu um grito. Era Farodin! O tormento pareceu também ter se apoderado de seu companheiro. Nuramon sentiu que agora dividiam a dor. Percebeu que lhe restava mais força para o seu feitiço e então penetrou ainda mais fundo na barreira. Mas a cada passo que avançava, a dor crescia, até por fim tornar-se tão grande que os gritos de Farodin pareciam não querer mais terminar. Agora a dor estava em toda parte. Como daquela vez na caverna de gelo, Nuramon ia perdendo gradualmente as sensações de seu corpo. Mas continuava avançando com o feitiço. A magia de proteção estava quase quebrada. Logo ele poderia começar a focar sua força na trilha escura dos albos para abrir o portal. Centímetro a centímetro, ele se aproximava disso. Logo estariam com Noroelle!

De repente, a dor cresceu até a imensidão. Ainda sentia a mão de Farodin, mas seu companheiro já não conseguia mais fornecer força. Ela parou de fluir dele e isso atingiu o espírito de Nuramon como um raio. Lutou desesperadamente contra o fracasso. Mas então o seu poder também se apagou e ele foi empurrado para trás pelo feitiço.

Nuramon abriu os olhos. Soltou cuidadosamente a mão de Farodin. Seu companheiro o encarava com os olhos vidrados, respirando com dificuldade. A garrafinha com os grãos de areia escorregou de seus dedos. Nunca antes vira Farodin vulnerável como naquele momento.

— Desculpe-me! Eu estava no fim das minhas forças! — disse ele por fim. — Essa dor! Foi isso o que você sentiu ontem?

— Sim — respondeu Nuramon. — A cada tentativa eu era tomado por essa dor.

— Eu não fazia ideia... Onde você aprendeu a suportá-la?

— Na Gruta de Luth.

Farodin fez uma cara admirada.

— Nosso feitiço não falhou por causa da dor — esclareceu Nuramon. — Nosso poder não basta para medirmos forças com a rainha. Sinto-me como uma fada das campinas querendo passar uma rasteira em um centauro. Estou oco e consumido. Você está quase do mesmo jeito, não é?

Farodin fez que sim com a cabeça e inspirou fundo.

Nuramon olhou para Mandred. O jarl e os firnstaynenses tinham caras preocupadas, mas, como prometido, não se mexeram do lugar.

— Tudo em ordem? — gritou Mandred para eles.

— Já passou! — respondeu Nuramon, rabugento.

A decepção no rosto de Mandred doeu em Nuramon. O filho de humanos sempre acreditou em suas habilidades mágicas e o via como um grande feiticeiro.

Mandred e os firnstaynenses retiraram-se para a floresta que cobria quase a ilha toda. Quando todos já tinham desaparecido, Nuramon dirigiu-se a Farodin.

— Precisamos conversar sobre como devemos continuar com isso.

Lado a lado, eles caminharam de volta para a margem e entraram na floresta, passando pela pedra. Ficaram muito tempo em silêncio. Nuramon lembrou-se das palavras do dschinn de Valemas. Combater a grande força com força maior ainda! Ainda não estavam nem perto de quebrar a barreira.

— Nós precisamos desistir por enquanto e fazer outro caminho — disse Nuramon.

— Vamos tentar de novo amanhã — respondeu Farodin.

— Eu estou dizendo: por enquanto, é impossível!

— Nós estamos tão perto da meta! Não podemos agora...

Nuramon interrompeu o companheiro.

— É impossível! — repetiu ele. — Quantas vezes você já me ouviu dizer isso?

Farodin ficou perplexo.

— Nenhuma...

— Então acredite em mim. Nós ainda não estamos à altura dessa força. Só há uma esperança: uma pedra dos albos!

Farodin ergueu sua garrafinha.

— Aqui estão os muitos grãos de areia que encontramos. Agora vai ser fácil para mim encontrar mais. Então poderemos tentar mais uma vez.

— Eu não consigo acreditar que você ainda não tenha desistido disso, Farodin. A força dos grãos de areia é pequena demais, ela não está conectada. Se nós pelo menos tivéssemos a ampulheta!

— Eu estive verificando isso, mas aqui não há nenhum rastro. Não há simplesmente nada.

— Os grãos de areia fizeram o seu papel. Eles nos trouxeram até aqui e no fim talvez nos sirvam mais uma vez... Imagine que, no Mundo Partido, Noroelle deve estar caminhando entre as árvores exatamente como nós, pensando em nós e talvez em Obilee. Eu queria que só esse pensamento já pudesse me dar as forças de que precisamos. É claro que podemos nos superar, mas tudo tem limites; e eu sinto que ainda nos falta muito poder para conseguir.

— Mas como vamos obter uma pedra dos albos? Além da rainha, não conheço nenhum filho de albos que tenha uma pedra como essa. E Emerelle jamais nos daria a dela. — Ele hesitou. — Mas talvez alguém pudesse roubá-la?

Nuramon apoiou as costas em uma árvore.

— Não vamos nos rebaixar! Deve haver outras.

— Mesmo que haja, não conseguiríamos encontrá-las, pois ninguém vai indicar o caminho para nós. Quem tiver uma a manterá escondida. Mesmo supondo que encontremos uma: você saberia usá-la?

— Não. Mas há um lugar onde podemos aprender isso. E talvez lá também encontremos a pista para uma pedra dos albos.

— Iskendria! — respondeu Farodin.

Nuramon concordou com a cabeça:

— Sim, Iskendria.

Eles chegaram ao outro lado da ilha, onde haviam assentado o acampamento.

Mandred aproximou-se ansioso de Nuramon e Farodin.

— E agora, como vai continuar? — perguntou ele.

— Nós falhamos e vamos continuar falhando, não importa quantas vezes tentemos — respondeu Farodin. — Vamos retornar quando estivermos mais fortes.

— Nós vamos procurar uma pedra dos albos e juntar todos os grãos de areia que pudermos encontrar. Só então teremos chance de êxito aqui.

Mandred concordou com um gesto de cabeça. O seu desapontamento pareceu ceder.

— É tolo lutar uma batalha que não se pode ganhar. A guerra é ganha por quem vence a última batalha. E a nossa última batalha ainda está longe. — Voltando-se para a tripulação, comandou: — Levantar acampamento!

Enquanto os homens se punham ao trabalho, os três companheiros dirigiram-se ao navio. Mandred quebrou o silêncio:

— Aqui há trilhas de albos. Nós poderíamos chegar a Firnstayn por uma delas?

— Para corrermos o risco de dar mais um salto no tempo? — retrucou Farodin. — Nós já nos conformamos com isso, mas e quanto aos homens? Vamos amaldiçoar a nós mesmos se eles voltarem para casa e seus filhos já forem anciãos... Você não quer isso, não é?

— Claro que não. Eu só perguntei se era possível.

— O Carvalho dos Faunos nos disse que um dia poderíamos viajar através das estrelas albas de um mesmo mundo. Mas acho que ainda não chegamos tão longe.

Nuramon se intrometeu.

— Sim, nós chegamos, Farodin. Eu tentei o feitiço durante minha busca pelo oráculo quando viajei por Angnos. Em algum momento, simplesmente me atrevi a tentar e deu certo. No fundo, é bem simples. Só é preciso conhecer exatamente a trilha. Eu usei o feitiço que o Carvalho dos Faunos nos ensinou. Em vez de escolher uma trilha para dentro de outro mundo, você toma uma que não deixe o mundo em que está.

— Como você não me disse isso? — perguntou Farodin.

Nuramon não conteve um sorriso. Tinha na ponta da língua as palavras para lembrar seu companheiro quantas vezes ele ocultara deles o que sabia.

— Perto de tudo o que aconteceu, isso me pareceu secundário. Mas Mandred mais uma vez fez a pergunta certa. — Nuramon viu o orgulho no rosto do jarl. — A viagem que deixamos para trás foi uma viagem de caminhos largos. A que temos diante de nós é de outro tipo. — Ele apontou para a trilha dos albos. — Nós esbarramos muito cedo nessa trilha. Se não estou enganado, ela atravessa o sul das terras do fiorde. Agora ela não vai nos ajudar, porque não sabemos a qual estrela dos albos ela leva. Mas pode ser que nos sirva para voltarmos para cá, já que a barreira bloqueia somente a trilha de Noroelle.

— Você quer dizer que, de agora em diante, devemos pular de uma estrela alba para a outra?

— Assim podemos chegar rápido a Iskendria e evitar humanos e viagens longas por regiões desagradáveis — disse, lembrando-se do deserto.

Farodin sorriu.

— Então você quer viajar como os albos.

— Foi isso o que o Carvalho dos Faunos sugeriu — respondeu Nuramon.

— O que você diz a respeito, Mandred? — perguntou Farodin.

O jarl deu um sorriso largo.

— Você está me perguntando se quero viajar só alguns instantes em vez de meses? E o que mais eu poderia responder além de sim, droga?

Farodin concordou.

— Então vamos voltar para Firnstayn e, a partir dali, caminhar firmemente sobre as pegadas dos albos.

A crônica de Firnstayn

No quinto dia do quarto mês do terceiro ano do reinado de Neltor, o Estrela dos Albos retornou a Firnstayn. Mandred, Nuramon, Farodin e os mândridos chegaram sãos e salvos. Foi um dia de alegria, celebrado com uma grande festa. Tharhild pôs seu filho diante de Mandred, que reconheceu a criança como sua. O rei Neltor até ofereceu transmitir sua coroa ao jarl se ele assim desejasse. Mas o jarl recusou, dizendo que o reino precisava de um soberano constante, que cuidasse de tudo no próprio local, uma vez que o seu destino seria vaguear sem descanso e, por isso mesmo, raramente demorar-se em Firnstayn. Quando ele segurou a criança nos braços, em seus olhos refletiu-se a tristeza, como se soubesse que jamais a veria novamente. E a partir de então ele a evitou.

Mandred e seus companheiros permaneceram dez dias na cidade, enquanto preparavam-se para mais uma grande viagem. Os mândridos, que haviam acompanhado os três companheiros, contaram sobre uma terra no leste distante, sobre a feitiçaria dos dois elfos e a sabedoria de Mandred. Não havia sido uma viagem de lutas, mas de magia.

Quando Mandred, Nuramon e Farodin então partiram, presumimos que o jarl não voltaria durante o nosso tempo de vida. Nos dias que se seguiram, a melancolia reinou em Firnstayn. Mas o rei assegurou que sempre poderiam recorrer a Mandred se grandes perigos os ameaçassem. E, desde aquele dia, esperamos pelo retorno do poderoso jarl de Firnstayn. Alguns de nós também o temem, pois, se ele retornar, é certo que terá despontado no horizonte um tempo de urgências.

Registrado por Lurethor Hjemison, volume 17 da Biblioteca do Firnstayn, pág. 89

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