Elfos Bernhard Hennen

No bosque, à luz da lua,

vi há pouco cavalgarem os elfos;

ouvi soarem suas trompas de caça,

e o tilintar de seus guizos.

Seus brancos cavalos levavam

dourados chifres de cervo

como cisnes selvagens voavam

cruzando o ar velozmente.

Sorridente, saudou-me a rainha,

sorridente, ao passar cavalgando,

seria por meu novo amor,

ou a morte significaria?

Heinrich Heine

Tomo I A Caçada dos Elfos

O homem-javali

Na clareira coberta de neve jazia o cadáver de um alce. Sua carne destruída ainda fumegava. Para Mandred e seus três companheiros ficou claro o que isso significava: haviam afugentado o caçador. O corpo estava coberto de sangue, e o pesado crânio da presa, partido. Mandred não conhecia nenhum animal que caçasse para se alimentar somente do cérebro da vítima. Um ruído abafado se fez ouvir. No fim da clareira, a neve escorregava dos galhos de um enorme pinheiro, formando cascatas sinuosas. O ar estava tomado por finos cristais de gelo. Desconfiado, Mandred espiou por entre as moitas. O bosque agora estava novamente em silêncio. Sobre as copas das árvores, as sinistras luzes verdes das fadas se agitavam em uma dança frenética bem alto no céu. Não era uma boa noite para cruzar florestas!

— Só um galho que se partiu com o peso da neve — disse o louro Gudleif, batendo em sua pesada capa para tirar o gelo — e pare de ficar espiando por aí como um cão raivoso. Você vai ver... No final, o que estamos seguindo é só um bando de lobos.

A preocupação tomava aos poucos os corações dos quatro homens. Todos pensavam nas palavras do ancião que os alertara sobre uma besta mortífera das montanhas. Ele devia ser levado a sério ou teria alucinações provocadas pela febre? Mandred era o jarl[1] de Firnstayn, um pequeno povoado atrás da floresta junto ao fiorde. Era sua obrigação afastar quaisquer perigos que ameaçassem o seu vilarejo. As palavras do ancião foram tão penetrantes que os perseguiam. E como...

Em invernos como este, que começavam cedo e traziam frio demais, quando as luzes das fadas faiscavam no céu, os filhos dos albos[2] adentravam o mundo dos homens. Mandred e seus companheiros também sabiam disso.

Asmund apoiara uma flecha no chão e piscava nervosamente. O homem ruivo e magricela nunca era de muitas palavras. Viera havia dois anos para Firnstayn. Dizia-se ter sido um conhecido ladrão de gado no sul, e que o rei Horsa Starkschild teria prometido uma recompensa em troca dele. Mas Mandred não se importava com isso. Asmund era bom caçador; trazia muita carne para o vilarejo. Isso contava mais que qualquer boato.

Mandred conhecia Gudleif e Ragnar desde quando era criança. Ambos eram pescadores. Gudleif é um cara robusto, forte como um urso; sempre bem-humorado, tem muitos amigos, mesmo sendo visto como um homem rústico. Ragnar é baixo e de cabelos escuros, bastante diferente dos altos e geralmente louros habitantes das terras do fiorde. Às vezes zombam dele por isso, chamando-o de duende pelas costas. Isso é um absurdo. Ragnar é um homem de coração de ouro. Alguém em quem se pode confiar incondicionalmente!

Saudoso, Mandred pensava em Freya, sua esposa. Certamente estava agora sentada perto do braseiro e permaneceria à espreita por toda a noite. Ele tinha consigo o seu clarim de alerta. Um toque significava perigo; se soprasse duas vezes todos no vilarejo saberiam que tudo correra bem e que os caçadores estavam a caminho de casa.

Asmund baixou seu arco e pôs o dedo sobre os lábios, em sinal de alerta. Ergueu a cabeça como um cão de caça que farejava algo. Agora Mandred também sentia. Um cheiro estranho — como o de ovo podre — invadiu a clareira.

— Talvez seja um troll — sussurrou Gudleif. — Dizem que eles descem as montanhas nos invernos rigorosos. Um troll consegue abater um alce com um simples soco.

Asmund encarou Gudleif de forma sombria, e fez um sinal para que se calasse. A madeira das árvores estalava baixinho no frio. Mandred foi tomado pela sensação de estar sendo observado. Havia alguma coisa ali. E muito perto.

De repente, os ramos de uma aveleira agitaram-se no ar, e duas silhuetas brancas revoaram sobre a clareira num barulhento bater de asas. Mandred apontou sua lança involuntariamente para o alto, e então respirou aliviado. Eram apenas pombos da neve!

Mas o que os assustara? Ragnar mirou seu arco na direção da árvore. O jarl baixou a arma, sentindo seu estômago encolher. Estaria o perigo ali, à espreita, escondido nos ramos? Ficaram imóveis e em silêncio.

Uma eternidade inteira pareceu passar, e nada ali se mexia. Os quatro formavam um semicírculo ao redor do arbusto. A tensão era insuportável. Mandred sentia o suor gelado escorrer por suas costas e se acumular em cima do cinto. O caminho de volta para o vilarejo era longo. Se sua roupa ficasse empapada e não o protegesse mais contra o frio, ele seria obrigado a armar um acampamento em algum lugar e fazer uma fogueira.

O gordo Gudleif ajoelhou-se de novo e fincou sua lança no chão. Enfiou as mãos na neve fresca e, sem fazer ruído, formou uma bola. Gudleif olhou para Mandred, que consentiu com a cabeça. A bola de neve voou até acertar o arbusto. Nada se moveu.

Mandred respirou aliviado. O medo que o grupo sentia tinha dado vida às sombras da noite. Foram eles mesmos quem afugentaram os pombos da neve!

Gudleif sorriu aliviado:

— Isso não foi nada. Seja lá o que matou o alce, já deve ter subido as montanhas faz tempo.

— Mas que belo bando de caçadores somos nós — zombou também Ragnar. — Daqui a pouco também vamos fugir correndo do peido de um coelhinho.

Gudleif se levantou e apanhou a lança.

—Agora vou espetar as sombras! — rindo, remexeu com a lança dentro da moita.

De repente, foi puxado com força, de um só golpe. Mandred viu uma grande mão em formato de garra segurar o cabo da lança. Gudleif deu um grito estridente, que logo se transformou num ruído gutural. O forte homem recuou cambaleante, com ambas as mãos em torno do pescoço. O sangue espirrava por entre seus dedos e escorria por seu manto de pele de lobo.

Da moita saiu um vulto gigantesco, meio homem e meio javali. O peso de sua enorme cabeça de javali lhe fazia curvar muito para a frente, e ainda assim ele tinha mais de um metro e meio de altura. O seu corpo era extremamente robusto; músculos fortes e cheios de nós cobriam seus ombros e braços. Suas mãos terminavam em garras escuras. Abaixo dos joelhos, suas pernas eram estranhamente finas, cobertas de cerdas grossas cinza-escuras. Em vez de pés, a criatura tinha grandes cascos.

O homem-javali soltou um grunhido grave e rouco. Presas longas como punhais saíam de seus maxilares, e seus olhos pareciam querer devorar Mandred.

Asmund apontou seu arco para cima e disparou uma flecha. Acertou a lateral da cabeça do monstro, deixando um rastro fino e vermelho. Mandred agarrou mais forte a sua lança.

Gudleif caiu de joelhos, vacilou alguns segundos e então tombou para o lado. Suas mãos crispadas se soltaram. O sangue ainda brotava de sua garganta, e suas fortes pernas tremiam desamparadas.

Mandred foi tomado por uma fúria cega. Lançou-se para a frente e cravou a lança no peito da besta. Teve a impressão de ter atacado uma rocha. A lâmina da lança só resvalou no monstro, sem causar qualquer dano. Uma de suas garras puxou e despedaçou o cabo da arma.

Para afastar a criatura de Mandred, Ragnar atacou-a pelo lado. Mas sua lança também não conseguiu feri-la.

Mandred atirou-se sobre a neve e tirou um machado do cinto. Era uma boa arma, com a lâmina fina e afiada. O jarl golpeou com toda a força os tornozelos da fera. O monstro grunhiu e então acertou o guerreiro com sua pesada cabeça. Uma presa acertou Mandred na parte interna da coxa, dilacerando seus músculos e despedaçando o clarim de prata que pendia do seu cinto. Em um só golpe, o ser monstruoso jogou a cabeça para trás, lançando Mandred por sobre a aveleira.

Meio anestesiado de dor, apertou a ferida com uma mão, enquanto com a outra rasgou uma tira de tecido de sua capa. Pressionou rapidamente a lã sobre a ferida aberta e então tirou o cinto para amarrar a tira na perna e estancar o sangue.

A clareira estava tomada de gritos estridentes. Mandred quebrou um galho da árvore e passou-o por dentro do cinto. Então apertou mais a tira de couro para deixá-la mais justa em sua coxa. Estava quase desmaiando de dor.

Os gritos na clareira silenciaram. Mandred espiou cuidadosamente por entre os galhos. Viu seus companheiros deitados na neve. O monstro estava curvado sobre Ragnar, ferindo-lhe mais e mais o peito com as presas. O machado de Mandred jazia bem ao lado da fera. Só conseguia pensar em pular perigosamente sobre o monstro, mesmo desarmado. Não era honrado fugir de uma luta como essa! Ele era o jarl responsável pelo vilarejo. Por isso precisava avisar os que ainda estavam vivos, mas não podia simplesmente voltar para Firnstayn. A sua pista levaria o monstro diretamente para a aldeia. Tinha de encontrar outro jeito.

Centímetro por centímetro, Mandred arrastou-se para trás, para fora do arbusto. A cada barulho que os galhos faziam, seu coração quase parava. Mas o monstro não percebeu: agachado na clareira, fazia seu horripilante banquete.

Quando Mandred conseguiu, arrastando-se, sair do arbusto, arriscou levantar. Uma dor aguda percorreu a sua perna. Apalpou os farrapos de lã. Crostas de gelo se formavam sobre eles. Por quanto tempo suportaria o frio?

O jarl percorreu mancando a curta distância até o limite da floresta. Olhou para o grande rochedo de cume escuro que se erguia sobre o fiorde. Ali em cima havia um antiquíssimo círculo de pedras. E bem perto dali estava empilhada a lenha para a fogueira de alerta. Se conseguisse acender a fogueira, a aldeia estaria avisada. Mas o caminho até lá em cima tinha mais de três quilômetros.

Mandred seguia a borda da floresta, mas avançava lentamente sobre a neve. Encarava angustiado vasto tapete branco diante de si que suavemente formava uma subida em direção ao topo do rochedo. Ali mal havia vegetação e as pegadas que ele deixaria não passariam despercebidas. Esgotado, recostou-se no tronco de uma velha tília e reuniu forças. Se tivesse ao menos acreditado nas palavras do ancião!

Certa manhã, encontraram-no diante da paliçada que protegia a aldeia. O frio quase tirara a vida do pobre homem. Enquanto delirava de febre, contou sobre um javali monstruoso que andava sobre duas pernas. Sobre um monstro que viera do norte, das montanhas distantes, para espalhar a morte e a desgraça nas aldeias das terras do fiorde. Um devorador de humanos! Se o velho tivesse falado dos trolls, que vinham do fundo das montanhas, ou dos duendes perversos, que tingiam seus gorros de lã com o vermelho do sangue de suas vítimas, ou então da Caçada dos Elfos e seus lobos brancos, Mandred teria acreditado. Mas sobre um javali que andava ereto e se alimentava de homens... De tal criatura ninguém jamais ouvira falar! Logo atribuíram o falatório do velho a confusas alucinações febris.

Veio a noite do solstício de inverno. Em seu leito de morte, o estranho chamara Mandred, a quem fez jurar que procuraria o monstro e alertaria as outras aldeias do fiorde. Só então ficou em paz. Mandred ainda não acreditava no ancião, mas era um homem honrado, que levava a sério os seus juramentos. Por isso saíra naquela jornada...

Se tivessem ao menos sido mais cautelosos!

Mandred respirava profundamente e seguia mancando sobre o vasto campo nevado. Sua perna esquerda estava totalmente entorpecida e dificultava o seu caminhar. Tropeçava o tempo todo. Meio em pé, meio agachado, lutava para ir adiante. Ao menos o frio tinha um lado bom: a ferida agora não doía mais. Já não ouvia mais a terrível criatura. Teria terminado o banquete?

Finalmente, chegou a uma vasta campina coberta de cascalho, onde ocorrera uma avalanche no último outono. A superfície traiçoeira agora estava oculta sob uma grossa camada de neve. Mandred respirava aos soluços. Brancas e espessas nuvens de vapor se formavam diante de sua boca, e se condensavam em sua barba como geada. Maldito frio!

O jarl lembrou-se do último verão. Viera ali com Freya algumas vezes, quando deitaram-se na grama para observar o céu estrelado. Gabou-se de suas aventuras de caça e contou-lhe sobre como escoltara o rei Horsa Starkschild durante sua expedição militar na costa de Fargon. Freya ouvia pacientemente e zombava um pouco dele quando exagerava demais nos seus feitos heroicos. Às vezes sua língua era afiada como uma faca! Mas ela beijava como... Não, sem pensar nisso! Ele engolia com dificuldade. Logo seria pai. Mas jamais veria seu filho. Seria um menino?

Mandred recostou-se em uma rocha para descansar. Já conseguira transpor metade do caminho até lá em cima. Seu olhar percorria de volta os limites da floresta. A escuridão do bosque escondia a luz verde das fadas, mas ali, na encosta das montanhas, via-se tudo tão nitidamente como numa clara noite de lua cheia.

Sempre gostara de noites como essas, embora aquela sinistra luz causasse medo na maioria dos habitantes das terras do norte. Parecia que um enorme pano de órbitas, tecido com o brilho resplandecente das estrelas, fora estendido no céu.

Alguns diziam que os elfos ocultavam-se nessa luz, quando cavalgavam à noite para caçar sobre o gelado e límpido céu. Mandred sorriu. Freya ficaria contente com esses pensamentos. Nas noites de inverno, ela amava se sentar diante do braseiro e ouvir histórias; histórias de trolls das montanhas distantes ou de elfos de coração tão frio quanto as estrelas de inverno.

Um movimento nos limites da floresta tirou Mandred de seus devaneios. O homem-javali! Então a fera seguira a sua pista. A cada passo em direção ao rochedo, ele era atraído para mais longe do vilarejo. Ele só precisava ser forte... A fera poderia tranquilamente rasgar o seu peito para comer o seu coração, desde que ele conseguisse acender a fogueira de alerta!

Mandred desencostou-se da rocha e tropeçou. Seus pés... eles ainda estavam lá, mas já não os sentia mais. Ele não deveria ter parado! Isso foi loucura... Até uma criança sabia que descansar num frio como esse poderia significar a morte.

Mandred olhou desesperado para os pés. Congelados e sem qualquer sensibilidade, eles não o avisariam caso o cascalho debaixo dele escorregasse. Eles o traíram, aliaram-se ao inimigo — o inimigo que queria impedir que ele acendesse a chama de alerta.

O jarl desatou a rir. Mas no seu riso não havia nem sinal de alegria. Os seus pés levaram o inimigo até ele. Que ironia! Aos poucos foi perdendo a razão. Os pés eram somente carne morta, a mesma carne morta que logo ele inteiro viraria. Furioso, tentou chutar o rochedo. Nada! Como se os pés não estivessem lá. Mas ele ainda conseguia andar. Era só uma questão de vontade. E de prestar muita atenção onde pisava.

Tomado pela preocupação, olhou para trás. A besta caminhava sobre o campo coberto de neve e parecia não ter pressa. Saberia ele que este era o único caminho para subir o rochedo? Mandred não conseguiria mais escapar. Mas ele não tinha mesmo essa intenção, desde que conseguisse acender o fogo!

Um ruído o assustou. A fera rosnava. Mandred teve a sensação de que o olhava diretamente nos olhos. É claro que isso não era possível àquela distância, mas... Uma gelada lufada de ar pareceu soprar sobre seu coração.

O jarl acelerou seus passos. Ele precisava manter vantagem! Seria necessário um pouco de tempo para acender a fogueira. Sua respiração assobiava. Quando expirava, o som era como o tilintar baixo dos pingentes de gelo que se acumulavam sobre as copas dos pinheiros e batiam uns contra os outros com o vento — mas mais suave. O beijo da fada do gelo! Lembrou-se de uma lenda que se contava às crianças: a fada do gelo era invisível e passeava pelas terras do fiorde durante as noites em que, de tão frias, até mesmo a luz das estrelas congelava. Quando ela se aproximava, o vapor da respiração desaparecia e um tilintar soava no ar. Mas se ela chegasse tão perto a ponto de seus lábios tocarem a face do viajante, então seu beijo causava a morte. Qual era o motivo? Por que o homem-javali não ousava se aproximar mais?

Mais uma vez Mandred olhou para trás. A fera não parecia fazer esforço para se movimentar pela neve. Na verdade, ela poderia alcançá-lo muito mais rápido. Por que estava brincando de gato e rato com ele?

Mandred escorregou e bateu a cabeça com força contra uma rocha, mas não sentiu dor. Passou as luvas sobre a testa. Sentiu seu sangue escuro escorrer. Estava com tontura. Isso não deveria ter acontecido! Acossado, olhava para trás. O homem-javali se detivera e de cabeça erguida olhava para cima, em sua direção.

Mandred não se aguentava mais sobre as pernas. Como fora tolo! Olhar para trás e andar ao mesmo tempo!

Com toda a força, tentou subir. Mas a perna meio congelada o impedia de prosseguir. Ele precisaria de uma grande rocha para conseguir se alçar para cima. Agora tinha de se arrastar. Que humilhação! Ele, Mandred Torgridson, o mais conhecido guerreiro dos fiordes, curvado e rastejando diante de seu inimigo! Só durante a expedição militar do rei Horsa, sete homens foram vencidos em duelos contra Mandred. Para cada adversário vencido fazia, cheio de orgulho, uma nova trança. E agora rastejava diante do inimigo dessa forma.

Entretanto, esse era um outro tipo de luta, advertiu a si mesmo. Não era possível se impor com armas diante desse monstro. Ele viu como a flecha de Asmund ricocheteara ao atingi-lo, e como o seu machado não lhe ferira. Não, essa batalha tinha outras regras. Ele a venceria se conseguisse acender o fogo.

Desesperado, Mandred rastejava sobre os cotovelos. Aos poucos, a força de seus braços também esvanecia. Mas o cume já não estava longe. O guerreiro olhou para as pedras erguidas; era como se vestissem gorros de neve, que as protegesse do verde cintilante do céu. Logo atrás do círculo de pedras estava empilhada a lenha para a fogueira de alerta.

Apertando os olhos, Mandred continuava a rastejar sobre o cascalho liso. Diante dele surgiu um dos pilares do círculo de pedras. Ele se apoiou na pedra e, vacilante, pôs-se de pé. Suas pernas já não conseguiriam levá-lo para muito longe.

O cume era achatado e tão plano quanto o fundo de um prato de madeira. Normalmente ele teria feito a volta em torno do círculo de pedra. Ninguém pisava entre as pedras erguidas! Não era uma questão de coragem. Certa vez, durante o verão, Mandred observou o cume por uma tarde inteira. Nenhum pássaro voou por cima do círculo de pedras.

Uma trilha estreita rente ao rochedo contornava-o, e por isso era possível dar a volta no círculo. Mas com as pernas anestesiadas, ele já não tinha mais segurança para se aventurar por esse caminho. Não lhe restava outra coisa senão passar por entre as pedras.

Como que se preparando para receber um golpe repentino, Mandred encolheu a cabeça entre os ombros ao pisar no centro do círculo. Dez passos e alcançaria o outro lado. Era um trecho tão ridiculamente curto...

Amedrontado, Mandred olhou ao redor de si. Não havia neve ali. Era como se o inverno não quisesse penetrar no interior do círculo. Nas pedras estavam riscados desenhos estranhos, de linhas curvas.

Dali até o fiorde, o penhasco era quase vertical. Lá de baixo, do vilarejo, parecia que alguém havia colocado uma coroa rochosa sobre o seu cume. Os blocos de granito, que formavam um amplo círculo ao redor do planalto rochoso, eram maiores que a altura de três homens. Dizia-se que estavam ali havia muito tempo, desde antes de os seres humanos chegarem às terras do fiorde. Eles também eram enfeitados com inscrições curvilíneas. A trama que formavam era tão fina que nenhum homem seria capaz de imitá-la. E, ao observá-la por muito tempo, a sensação era de se estar bêbado do pesado e condimentado hidromel de inverno.

Certa vez, alguns anos antes, um escaldo — um bardo que declamava sua poesia — viajou a Firnstayn, afirmando que as pedras ali erguidas eram velhos guerreiros élficos que teriam sido amaldiçoados por uma praga de seus ancestrais, os albos. Estavam condenados a permanecer solitários e despertos por toda a eternidade, até que num dia distante o próprio país clamasse por sua ajuda e o feitiço então fosse quebrado. Na ocasião, Mandred fez troça do escaldo. Qualquer criança sabia que os elfos tinham baixa estatura e não eram mais altos que os homens. As pedras eram vigorosas demais para serem elfos.

Ao atravessar o círculo, Mandred foi golpeado por um vento glacial. Agora estava quase conseguindo. Nada iria lhe... A pilha de lenha! Daqui ele já deveria conseguir vê-la! Ela estava sobre uma saliência na pedra, protegida contra o vento logo abaixo da borda do penhasco. Mandred caiu de joelhos e rastejou um pouco mais. Não havia nada ali!

O penhasco descia por quase sessenta metros até as profundezas. Teria havido uma avalanche? A saliência teria se partido? Mandred tinha a sensação de que os deuses estavam lhe pregando uma peça. Empregara todas as suas forças para conseguir chegar até ali, e agora... Desesperado, lançou um olhar sobre as terras do fiorde. Bem abaixo, do outro lado do braço de mar congelado, o seu vilarejo descansava sobre a neve.

Firnstayn. Era formado por quatro longas casas comunais e um punhado de pequenas cabanas, cercado de uma paliçada ridiculamente frágil: a muralha de madeira, feita de troncos de pinheiro, servia para afastar os lobos e era obstáculo para saqueadores. Jamais conseguiria deter o homem-javali.

O jarl tomou coragem, aproximou-se cuidadosamente do precipício e olhou para baixo, para o fiorde. A luz das fadas no céu lançava a mágica de suas sombras verdes sobre a paisagem coberta de neve. Não se podia ver homens nem animais. Dos fumeiros sob o vértice dos telhados subia uma fumaça branca, que era desfiada pelas rufadas de vento e varrida sobre o fiorde. Era certo que Freya estava sentada ao lado do braseiro, atenta ao sinal do clarim que anunciaria o retorno dos caçadores.

Se ao menos o clarim não tivesse sido destruído! Dali de cima, o seu chamado certamente seria ouvido da aldeia. Mas que peça cruel os deuses pregavam nele e nos seus! Será que assistiam a tudo aquilo e riam?

Mandred ouviu um ruído seco. Então virou-se, fraco. Deu de cara com o homem-javali, do outro lado do círculo de pedras. Deu a volta lentamente. Então ele também não ousava pisar entre as rochas? Em seguida, rastejou afastando-se da borda do penhasco. Sua vida tinha acabado, ele sabia. Mas se podia escolher, preferia ser morto pelo frio a virar comida de fera.

O bater dos cascos foi ficando mais rápido. Precisava ainda de um último esforço. Uma súbita arrancada e... Mandred conseguiu. Estava no círculo mágico de pedras! Um cansaço de chumbo pesava sobre suas juntas. O frio congelante cortava sua garganta a cada respiração. Esgotado, recostou-se em uma das pedras. Um vento violento lhe repuxava as roupas duras de gelo. O cinto em sua coxa se afrouxara. O sangue atravessava o retalho de lã.

Em voz baixa, Mandred rezava para seus deuses. Para Firn, senhor do inverno; para Norgrimm, senhor das batalhas; para Naida, a amazona das nuvens que rege os 23 ventos; e para Luth, o mestre tecelão que, com os fios do destino dos homens, tece uma preciosa tapeçaria para as paredes do átrio dourado, aquele no qual os deuses bebem na companhia dos mais valentes entre os guerreiros mortos.

Os olhos de Mandred se fecharam. Ele dormiria o longo sono... Perdera seu lugar no átrio dos heróis. Ele deveria ter morrido com seus companheiros. Era um covarde! Gudleif, Ragnar e Asmund — nenhum deles fugira. A pilha de lenha ter despencado do rochedo seria certamente um castigo dos deuses.

— Você tem razão, Mandred Torgridson. Os deuses deixam de proteger quem é covarde — uma voz soou em sua cabeça. Era a morte?, perguntou-se Mandred. Apenas uma voz?

— Mais que uma voz! Olhe para mim!

O jarl mal era capaz de sustentar suas pálpebras. Um hálito quente soprou-lhe o rosto. Ele olhou dentro de grandes olhos, azuis como o céu de um fim de tarde de verão, quando a lua e sol ali convivem. Eram os olhos do homem-javali! A fera se agachara ao seu lado, logo na extremidade exterior do círculo de pedras. A baba pingava de seu focinho coberto de sangue. Em uma das longas presas ainda pendiam fibrosos pedaços de carne.

— Os deuses deixam de proteger quem é covarde — ressoou a voz estranha na cabeça de Mandred. — Agora os outros podem pegar você”.

O homem-javali ergueu-se totalmente. Seus beiços tremiam. Ele quase parecia sorrir. Então deu meia-volta. Contornou o círculo de pedras e logo ficou totalmente fora do campo de visão.

Mandred levantou a cabeça. A fantástica luz das fadas ainda dançava no céu. Os outros? Logo foi cercado pela escuridão. Suas pálpebras teriam despencado sem que percebesse? Dormir... só por pouco tempo. A escuridão era tentadora. Era um prenúncio de paz.

Jogos de galanteio

Noroelle estava sentada à beira de um pequeno lago, à sombra de duas tílias, e deixava-se encantar pela flauta de Farodin e o canto de Nuramon. Era como se os dois pretendentes de modos afáveis lhe presenteassem com novas sensações. Contemplava o jogo de luz e sombras no teto de folhas muito acima dela. Seu olhar vagueou até a nascente que havia quase na fronteira das sombras, atraído pela luz do sol que cintilava nas pequenas ondas. Inclinou-se para a frente, deixou a mão molhar-se e sentiu um agradável formigamento, provocado pela magia da água.

Seu olhar seguiu o curso da nascente que formava o laguinho. Os raios de sol chegavam até o fundo e faziam brilhar as pedras preciosas coloridas que Noroelle certa vez pusera ali com cuidado. Elas absorviam parte da magia da nascente. O restante afluía, junto com a água, para um riacho. Lá fora, os prados se alimentavam dessa magia. E, à noite, as fadas das campinas deixavam suas flores e se encontravam para passear sob a luz das estrelas e celebrar com seu canto a beleza da Terra dos Albos.

Os campos vestiam seus mantos de primavera em flor. Um vento suave carregava o rico perfume das plantas e flores até Noroelle; sob as árvores, ele se misturava ao doce aroma das tílias. Um zumbido pairava sobre os elfos, que se unia ao canto dos pássaros e ao marulhar da água da nascente como acompanhamento para a música de Farodin e Nuramon. Enquanto Farodin conseguia, com a melodia de sua flauta, tecer um fino tecido de sons com todas as vibrações do lugar, Nuramon elevava sua voz sobre eles e inventava palavras que descreviam Noroelle como uma alba. Ela olhava afetuosamente para Nuramon, sentado sobre uma pedra plana perto da água, e novamente para Farodin, recostado no tronco da maior das duas tílias.

O rosto de Farodin era o de um príncipe elfo das velhas fábulas, cuja nobre beleza era exaltada como o brilho dos albos. Seus olhos, de um verde intenso, eram as joias da sua face e os cabelos, quase brancos de tão louros, lhe serviam de moldura. Vestia o traje dos trovadores, e tudo — a camisa, a calça, o casaco, o lenço no pescoço — era feito da mais distinta seda vermelha das fadas. Apenas seus sapatos eram de macio couro de gelgerok. Noroelle observava seus dedos, que dançavam sobre a flauta. Poderia passar o dia todo admirando-os...

Enquanto Farodin correspondia ao ideal de um elfo, o mesmo não se podia dizer de Nuramon. As elfas da corte zombavam declaradamente de sua aparência, mas depois cochichavam com entusiasmo sobre sua beleza peculiar. Nuramon tinha olhos castanho-claros e cabelos cor de mel, que caíam em ondas um pouco selvagens quase até seus ombros. Com seus trajes cor de areia, ele de fato não correspondia à figura de um trovador, mas ainda era uma visão agradável. Em vez da seda, elegera das fadas o seu tecido de lã — que certamente era menos precioso, mas tão firme e macio que provocava em Noroelle o desejo de deitar a cabeça no seu peito só ao observar sua camisa e o casaco cor de bosque. Até suas botas de cano médio, cor de terra e feitas de couro de gelgerok, despertavam em Noroelle o desejo de tocá-las. A expressão da face de Nuramon variava tanto quanto a sua voz, que dominava todas as formas do canto e dava vida a cada emoção com o som que melhor lhe cabia. Seus olhos castanhos, contudo, expressavam saudades e melancolia.

Farodin e Nuramon eram diferentes, mas cada um impressionava à sua maneira. Ambos tinham sua própria perfeição, assim como a luz do dia e a escuridão da noite eram encantadoras cada uma a seu modo, como o verão e o inverno, a primavera e o outono. Noroelle não queria abrir mão de nada disso, e comparar a aparência de ambos certamente não tornaria mais fácil sua decisão por um deles.

Alguns membros da corte aconselhavam Noroelle a levar em conta para sua escolha a linhagem da família de seu companheiro. Mas qual era o mérito de Farodin no fato de que sua bisavó fora uma alba? E tinha Nuramon alguma culpa por descender de uma família que estava distante dos albos havia muitas gerações? Noroelle queria que sua decisão não fosse condicionada pelos antepassados deles, mas somente por si própria.

Farodin sabia como cortejar uma elfa de estirpe. Conhecia todas as regras e costumes e agia sempre de forma tão apropriada e honrosa que era inevitável admirá-lo. Isso causava em Noroelle a impressão de que ele conhecia o seu âmago, de que era capaz de tocá-lo, encontrando sempre as palavras precisas, como se a todo momento compreendesse seus pensamentos e sentimentos. Mas era aí que também estava o seu defeito. Farodin conhecia todas as canções e todas as histórias antigas. Se sempre sabia qual doce palavra dizer, era porque já ouvira todas elas antes. Então como saber quais eram as suas próprias palavras e quais eram de poetas antigos? Essa melodia era mesmo sua ou ele já a ouvira antes? Noroelle teve vontade de sorrir; tal defeito visível não estava em Farodin, mas nela própria. Este lugar adorável não era exatamente como o descreveram os bardos antigos? O sol, as tílias, as sombras, a nascente, o encanto? Eles não nos presentearam, portanto, com as canções perfeitas para este lindo lugar? Devia então repreender Farodin só por não fazer diferente daquilo que já era tão apropriado? Não, ela não podia fazer isso. Farodin era perfeito em todos os aspectos, e o seu cortejo faria feliz toda e qualquer elfa sobre as campinas.

Mas Noroelle se perguntava quem Farodin realmente era. Ele se esquivava dela, assim como a nascente de Lyn repelia o olhar dos elfos com sua luz ofuscante. Ela desejava que ele brilhasse menos por um momento, para que ela pudesse lançar um olhar sobre sua própria nascente. Frequentemente tentava induzi-lo a isso, mas ele não compreendia os seus gestos. Assim, fora até então impedida de conhecer o seu interior. E às vezes temia que ali dentro pudesse estar à espreita algo de obscuro, algo que Farodin pretendia esconder a qualquer preço. De quando em quando, o seu preferido fazia longas viagens, mas nunca falava sobre elas — aonde ia e por qual motivo. E, quando voltava, surgia diante de Noroelle ainda mais fechado que antes, apesar da alegria do reencontro.

Por outro lado, no que dizia respeito a Nuramon, Noroelle sabia exatamente de quem se tratava. Já ouvira várias vezes que ele não era o elfo certo para ela, que não estava à altura de seu brio. Ele não só descendia de um clã numeroso, mas também de uma linhagem marcada por uma desonra. Nuramon carregava em si a alma de um elfo que, em todas as vidas que já viveu, não encontrou uma realização para sua existência, e que por isso não conhecia o luar. Aqueles que permanecessem alheios a esse caminho renasceriam sempre na mesma linhagem, até que o seu destino se realizasse. Mas nunca seriam capazes de se lembrar da vida anterior.

Ninguém havia reencarnado tantas vezes quanto Nuramon; já estava há milênios submetido ao jogo de vida, morte e renascimento. Junto com a alma, herdou o seu nome. A rainha reconheceu nele a alma de seu avô, e por isso batizou-o assim. A busca por seu destino, que parecia ser infinita, provocou escárnio arrogante até mesmo na sua própria família. Ao menos ninguém precisava se preocupar com aquele recém-nascido; porque, assim que ele morresse, sua alma retornaria imediatamente para lançar sua sombra sobre a linhagem. Mas ninguém sabia quem daria à luz o próximo Nuramon.

Em suma, ele não podia realmente prezar a sua ascendência e contar com elogios por ela. Ao contrário, todos diziam que Nuramon seguiria a mesma trilha de antes — buscaria o seu destino, morreria e renasceria. Noroelle era contrária a esse ponto de vista. Via sentado diante de si um homem primoroso e, enquanto Nuramon cantava mais uma canção em homenagem à sua beleza, sentia que cada uma de suas palavras era motivada por seu profundo amor por ela. Ele conseguira por si próprio tudo o que seu berço lhe havia negado. Só uma coisa ainda não conquistara: a chance de se aproximar dela. Nunca a tocara, nunca ousara fazer como Farodin: segurar a sua mão e beijá-la. Sempre que ela tentava demonstrar o seu carinho inocente, ele o rejeitava com doces e arrebatadoras palavras.

De qualquer perspectiva que Noroelle observasse seus pretendentes, jamais conseguia chegar a uma decisão. Se Farodin revelasse o seu íntimo, seria ele quem ela escolheria. Se Nuramon lhe estendesse a mão e segurasse a sua, seria dele a sua preferência. A decisão não dependia dela. Tais galanteios começaram havia apenas vinte anos; mais vinte anos provavelmente se passariam até que começassem a esperar por uma decisão. E caso não tomasse nenhuma, então aquele que se mostrasse mais determinado cairia em suas graças. E caso provassem ter o mesmo valor, então a corte poderia durar para sempre — o que fazia Noroelle sorrir só de pensar.

Farodin deu o tom de uma nova canção, e tocava de forma tão profunda que Noroelle fechou os olhos. Ela conhecia a música, ouvira-a certo dia na corte. Mas cada nota que Farodin tocava superava a que ouvira naquela ocasião. Diante disso, a voz de Nuramon perdeu um pouco a cor, até que Farodin iniciou novamente uma outra canção.

— Oh, veja, graciosa filha de albos! — cantava agora Nuramon. Noroelle abriu os olhos, surpresa com a repentina mudança em sua voz. — Ali, na água, um rosto!

Ele olhou para a água, mas ela não conseguiu acompanhar seus olhos, de tão encantada que estava com a voz.

— Oh, Noroelle, vá depressa; das sombras para a luz.

Noroelle levantou-se e obedeceu às palavras; ela se afastou alguns passos da nascente e ajoelhou-se na margem do lago, para olhar para dentro da água. Não havia nada ali.

Nuramon continuou a cantar:

— Os olhos azuis são um lago.

Noroelle viu os olhos azuis: eram seus próprios olhos, que Nuramon gostava de comparar a um lago.

— Os seus cabelos se agitam na brisa da primavera.

Viu então o seu próprio cabelo, como tocava de leve o pescoço, e sorriu.

—Você sorri como uma fada. Veja, graciosa filha de albos!

Observou-se atentamente e escutou como Nuramon cantava a sua beleza nas diferentes línguas dos filhos dos albos. Na língua das fadas tudo soava bonito, mas ele sabia falar até a língua dos duendes para lisonjeá-la.

Enquanto o ouvia, não era mais ela própria quem tinha diante dos olhos, mas outra elfa, muito mais bonita do que já se sentira, tão sublime quanto a rainha e tão encantadora quanto diziam ser os albos. Ainda que não se visse dessa forma, sabia que as palavras de Nuramon vinham direto do coração.

Quando os seus queridos emudeceram, desviou, insegura, o olhar da água; fitou Nuramon e depois, Farodin.

— Por que vocês pararam?

Farodin olhou para cima, para o telhado de folhas que os cobria.

— Os pássaros estão inquietos. Parece que não estão mais com vontade de cantar.

Noroelle virou-se para Nuramon.

— Era mesmo o meu rosto o que vi na água? Ou era um feitiço?

Nuramon sorriu.

— Eu não fiz nenhum encanto... Apenas cantei. Mas, se você não vê a diferença, então sinto-me lisonjeado.

Farodin ergueu-se repentinamente. Nuramon também se levantou e olhou para além do lago e das campinas. Um intenso toque de clarim soava, percorrendo todas aquelas terras.

Noroelle também se levantou.

— A rainha? O que pode ter acontecido?

Farodin estava a poucos passos de Noroelle, e pousou a mão sobre seu ombro.

— Não se preocupe, Noroelle.

Nuramon se aproximou e sussurrou-lhe ao ouvido:

— Certamente não é nada que não possa ser resolvido por um grupo de elfos.

Noroelle suspirou.

— Estava lindo demais para durar o dia todo. — Observou como os pássaros levantavam voo e iam em direção ao castelo da rainha, imponente sobre uma colina, do outro lado das campinas e dos bosques. — Da última vez a rainha o chamou para a Caçada dos Elfos. Preocupo-me com você, Farodin.

— Mas eu não voltei todas as vezes? E Nuramon não adoçou sempre a sua espera?

Noroelle soltou-se de Farodin e voltou-se para ambos:

— E se desta vez ambos tiverem de partir?

— Não me confiariam essa tarefa — retrucou Nuramon. — Sempre foi assim e sempre será.

Farodin permaneceu calado, mas Noroelle disse:

— Eu lhe darei o reconhecimento que os outros lhe negam, Nuramon. Mas vão agora! Apanhem os seus cavalos e cavalguem até lá! Eu irei em seguida e os verei hoje à noite na corte.

Farodin tomou a mão de Noroelle, beijou-a e se despediu. A despedida de Nuramon foi um sorriso carinhoso. Ele então foi até Felbion, o seu cavalo branco. Farodin já estava sentado no seu, que era baio. Noroelle acenou-lhes mais uma vez.

A elfa observou seus amados cavalgarem pelas campinas, desviando das flores das fadas, pelo bosque e até o castelo, que jazia do outro lado. Bebeu um pouco de água da nascente e pôs-se a caminho. Andava descalça pelas campinas. Queria ir até o Carvalho dos Faunos. Sob a sua sombra, conseguia refletir como em nenhum outro lugar. O carvalho falava com ela em silêncio, e na juventude lhe ensinara muitas magias.

Ao longo do caminho, pensava em Farodin e em Nuramon.

O despertar

Surpreendente este calor, Mandred pensou assim que acordou. Ouvia o gorjeio dos pássaros, mas certamente não adentrara o átrio dos heróis. Lá não havia pássaros... E jamais haveria o forte odor de hidromel que pairava no ar, muito menos o aroma doce da resinosa madeira de pinheiro que queimava na fogueira.

Só precisaria olhar para cima para saber onde estava. Mas Mandred adiava esse momento. Estava deitado sobre algo macio. Nada doía. Suas mãos e pés formigavam de leve. Não queria saber onde estava. Queria apenas aproveitar o momento, já que se sentia tão bem. Então assim era estar morto.

— Sei que está acordado — a voz soava como se tivesse dificuldade de formar as palavras.

Mandred levantou o olhar. Estava deitado sob uma árvore, cujos galhos se arqueavam sobre ele como uma cúpula. Um estranho estava de joelhos ao seu lado e apalpava o seu corpo com mãos fortes. Os galhos chegavam até bem perto da cabeça dele, e seu rosto permanecia oculto sob uma dança de luz e sombra.

Mandred piscou para poder ver melhor. Havia algo de errado. As sombras pareciam girar em torno do rosto do estranho como se quisessem escondê-lo intencionalmente.

— Onde estou?

— Em segurança — respondeu sucinto o estranho.

Mandred queria se levantar. Então percebeu que suas mãos e pés estavam amarrados ao solo. Conseguia apenas erguer a cabeça.

— O que você pretende fazer comigo? Por que estou preso?

Dois olhos lampejaram brevemente entre as sombras. Eram cor de âmbar-claro, como o que às vezes encontravam na costa do fiorde após fortes tempestades.

— Quando Atta Aikhjarto tiver curado você, poderá ir. Há algum tempo já não confio muito na sua sociedade, então achei prudente mantê-lo assim. Foi ele quem insistiu que cuidássemos de suas feridas... — O estranho fazia um ruído estranho, uma espécie de estalo. — O seu idioma dá um nó na minha língua. Ele não tem qualquer... beleza.

Mandred olhou em volta. Não havia ninguém além do estranho, oculto à meia-luz de forma sinistra. Folhas caíam dos galhos mais baixos da árvore imponente, como num dia de outono sem vento, e mergulhavam suavemente e balançantes até chão.

O guerreiro olhou para cima, para a copa da árvore. Estava deitado sob um carvalho. Sua folhagem brilhava num forte tom de verde-primavera, e seu cheiro era de terra boa e escura, mas também de decomposição; de carne estragada.

Um raio de luz dourado atravessou a copa de folhas e iluminou sua mão esquerda. Agora podia ver o que o mantinha preso: eram as raízes do carvalho! Elas enlaçavam o seu pulso, nodosas e grossas como um dedo. E os seus dedos estavam cobertos por uma delicada e branca teia de raízes. Era dali que vinha aquele cheiro podre.

O guerreiro tentou se erguer, forçando contra as raízes que o prendiam, mas qualquer resistência era em vão. Elas o detinham com mais força que correntes de ferro.

— O que está acontecendo comigo?

— Atta Aikhjarto se ofereceu para curá-lo. Sua morte era certa quando atravessou o portal. Ele ordenou que eu o trouxesse até aqui. — O estranho apontou para cima, para os galhos que se destacavam ao alto. — Ele está pagando um alto preço para acabar com a sua intoxicação pelo gelo e para devolver à sua carne a cor das pétalas de rosa.

— Por Luth, onde estou?

O estranho fez um ruído de reprovação, que de longe lembrava uma risada.

— Você está onde os seus deuses já não têm mais poderes. Você provavelmente os irritou, porque normalmente eles protegem vocês, filhos dos homens, de atravessar esses portais.

— Portais?

— O círculo de pedras. Nós ouvimos como você rezou para os seus deuses. — Novamente, o estranho emitiu o ruído de reprovação. — Você agora está na Terra dos Albos, Mandred, com os filhos dos albos. Aqui estamos muito longe dos seus deuses.

O guerreiro se assustou. Aqueles que atravessavam os portais para o Outro Mundo eram amaldiçoados! Já tinha ouvido histórias suficientes sobre a busca por homens e mulheres no reino dos filhos dos albos — e nenhuma delas teve final feliz. Mas... quando alguém corajosamente os cruzava, às vezes podia pedir favores. Será que eles sabiam sobre o homem-javali?

— Por que o Atta Aik... Atta Ajek... o carvalho está me ajudando?

O estranho ficou um tempo calado. Mandred queria conseguir ver o seu rosto. Aquilo que o protegia de seu olhar de forma tão persistente devia ser um feitiço.

— Atta Aikhjarto deve achar que você é importante, guerreiro. As raízes de algumas árvores muito velhas são tão profundas que estão presas ao seu mundo, humano. O que Atta Aikhjarto sabe sobre você deve ter tanto significado para ele que está sacrificando uma boa parte de suas forças por você. Ele está absorvendo o seu veneno e lhe oferecendo em troca a sua seiva da vida. — O estranho apontou para as folhas que caíam. — Ele está sofrendo no seu lugar, homem. E de agora em diante você tem a força de um carvalho no seu sangue. Você já não é mais como os outros da sua espécie, e vai...

— Chega! — Uma voz aguda interrompeu a fala do estranho. Os galhos da árvore se abriram e um centauro se aproximou do leito de Mandred.

O guerreiro observou a criatura, perplexo. Nunca ouvira nada sobre aquilo antes. O “homem-cavalo” tinha o tronco musculoso de um homem, que crescia do corpo de um cavalo! Seu rosto era emoldurado por uma barba torcida em cachos. O cabelo era cortado curto e um cordão de ouro descansava sobre sua testa. Trazia nas costas uma aljava cheia de flechas, atravessada entre os ombros, e na mão esquerda tinha um arco curto de caça. Poderia se passar por um imponente guerreiro, não fosse o corpo castanho de cavalo.

O centauro fez uma rápida reverência a Mandred:

— Meu nome é Aigilaos. A soberana da Terra dos Albos deseja vê-lo, e concedeu-me a honra de conduzi-lo até a corte real — disse com voz grave e melodiosa.

Mandred sentiu a força de ferro das raízes se afrouxar, até libertá-lo totalmente. Mas ele só tinha olhos para o centauro que, não sem motivo, recordava-lhe o homem-javali. Ele também era metade homem e metade animal. Como seria então a aparência da soberana a quem esse homem-cavalo obedecia?

Mandred apalpou a coxa. A ferida profunda se fechara sem deixar sequer uma cicatriz. Experimentou estender as pernas. Nenhum formigamento desagradável, nada de dor! Parecia totalmente curado, como se nunca tivesse sido mutilado pela fera e pelo frio.

Levantou-se cuidadosamente, ainda sem confiar na força de suas pernas. Através da sola de suas botas podia sentir o macio chão do bosque. Isso era mágica! Uma mágica poderosa que nenhuma bruxa das terras do fiorde seria capaz de fazer. Seus pés e pernas estiveram mortos. Agora a sensibilidade retornara a eles.

O guerreiro aproximou-se do imenso tronco do carvalho. Nem cinco homens conseguiriam juntos, de braços esticados, abraçar a árvore. Devia ter séculos de idade. Mandred ajoelhou-se respeitosamente diante dele e tocou com a testa a sua casca irregular:

— Agradeço a você, árvore. Devo-lhe a minha vida — pigarreou, então, constrangido. Como se agradece a uma árvore? A uma árvore com poderes mágicos, a qual o estranho sem face tratava com tanto respeito, como se fosse um rei. — Eu... Eu retornarei e darei uma festa em sua honra. Uma festa como as que fazemos nas terras do fiorde. Eu... — Ele abriu os braços. Era lamentável agradecer àquele que salvara sua vida assim, com o nada como promessa. Precisava ser algo sólido...

Mandred rasgou uma tira de tecido de sua calça e amarrou-a em um dos galhos mais baixos:

— Se houver algo que possa fazer por você, envie-me um mensageiro e peça-lhe que me entregue este pedaço de tecido. Eu juro pelo meu sangue impregnado nele que, de hoje em diante, o meu machado se colocará entre você e todos os seus inimigos.

Um ruído fez Mandred erguer os olhos. Uma bolota, fruto do carvalho, soltou-se da copa da árvore, tocou o seu ombro e caiu sobre as folhas secas.

— Fique com ela — disse o estranho em voz baixa. — Atta Aikhjarto raramente dá presentes. Ele aceitou a sua jura. Guarde bem a bolota. Ela pode ser um grande tesouro.

— Um tesouro que todos os anos ganha milhares de irmãos, que crescem nos galhos de Atta Aikhjarto — zombou o centauro. — Tesouros com os quais legiões de esquilos e ratos enchem suas barrigas. Você foi realmente presenteado com muita riqueza, filho de humanos. Venha agora, ou vai deixar a nossa soberana esperando?

Mandred examinou desconfiado o centauro e curvou-se para apanhar a bolota. Aigilaos tinha algo de suspeito.

— Tenho medo de não conseguir acompanhá-lo.

Dentes muito brancos reluziram no meio da barba espessa. Aigilaos sorriu largamente.

— Isso não será necessário, filho de humanos. Suba nas minhas costas e segure com força a tira de couro da minha aljava. No quesito força, eu não perderia para um cavalo de guerra do seu mundo, e aposto minha cauda que venceria uma corrida contra qualquer equino que encontrasse. Ao mesmo tempo, meu trote é tão leve que nenhum capim se dobra sob meus cascos. Eu sou Aigilaos, o mais rápido dos centauros, enaltecido por...

— ... uma língua ainda mais rápida — caçoou o estranho. — Dizem que os centauros têm a língua solta. Ela é tão rápida que às vezes ultrapassa até a verdade.

— E você, Xern, dizem ser tão rabugento que só as árvores o aguentam — retrucou Aigilaos, rindo. — E isso provavelmente só é assim porque elas não conseguem sair correndo de você.

As folhas do grande carvalho se remexeram, embora Mandred não tivesse notado nem uma brisa. Folhas murchas caíram como neve de primavera.

O centauro olhou para cima, para o vigoroso carvalho. O sorriso desaparecera de sua face.

— Com você eu não brigo, Atta Aikhjarto.

Uma corneta soou ao longe. O centauro de repente pareceu aliviado.

— As cornetas da Terra dos Elfos chamam. Devo levá-lo à corte da rainha, filho de humanos.

Xern saudou Mandred com a cabeça. O feitiço que escondia seu semblante desapareceu por um momento. Ele tinha o rosto estreito e belo, exceto pelos grandes chifres que brotavam de seus cabelos grossos. O guerreiro ficou sem ar. Recuou assustado. Então ali só havia homens-animais?

De repente todos os fatos se juntaram num quadro nítido diante de Mandred. Era dali que viera o homem-javali! Ele o poupara durante a caçada. Não foi por acaso o único a se livrar de ser morto por ele. A perseguição... Teria sido parte de um plano traiçoeiro? Será que tinha sido levado até o círculo de pedras? Talvez tenha sido presa daquela fera, fazendo justamente o que ela queria. Ele entrou no círculo de pedras...

O centauro bateu, inquieto, os cascos no chão.

— Venha, Mandred!

O guerreiro agarrou então o cinto da aljava e lançou-se sobre as costas do centauro. Ele encararia o que o esperava! Afinal, não era nenhum covarde. Essa misteriosa soberana podia fazer soar mil cornetas que ainda assim ele não se curvaria diante dela. Não, ele a encararia de cabeça erguida e cheio de orgulho, e exigiria uma indenização pela desgraça que a sua criatura bizarra causara nas terras do fiorde.

Aigilaos afastou com suas fortes mãos a cortina protetora de galhos e saiu para uma campina pedregosa. Mandred olhou em volta de si, admirado. Ali reinava a primavera e o céu parecia muito mais amplo do que no fiorde! Mas, então, como uma bolota madura podia ter caído da árvore?

O centauro iniciou um galope veloz. As mãos de Mandred se agarravam fortemente à aljava. Aigilaos não mentira. Corria sobre as colinas rápido como o vento. Passou pelas ruínas de uma enorme torre. Atrás dela se erguia um monte coroado por um círculo de pedras.

Mandred nunca fora um bom cavaleiro. Tinha cãibras nos músculos, de tão forte que pressionava as pernas contra os flancos equinos da criatura. Aigilaos ria. Divertia-se às suas custas! Mandred, é claro, jurou para si mesmo, em silêncio: jamais pediria ao centauro que galopasse mais devagar.

Atravessaram um ralo bosque de bétulas. O ar estava repleto de sementes douradas. Todas as árvores cresceram havia pouco e seus troncos brilhavam como marfim. Nenhum deles tinha a casca caindo aos pedaços as árvores que conhecia nas terras do fiorde. Rosas selvagens subiam por rochas erráticas solitárias. Era quase como se na mata reinasse uma ordem estranha e selvagem. Pois quem desperdiçaria o seu tempo para cuidar de um pedaço de floresta que não produzia nenhuma colheita? Certamente não um ser como Aigilaos!

O caminho subia continuamente e logo tornava-se pouco mais que uma estreita trilha selvagem. As bétulas se alternavam com faias de copas tão espessas que a luz mal conseguia atravessá-las. Para Mandred, os troncos altos e esguios se pareciam com colunas cinzentas. Tudo estava estranhamente calmo. Ouviam-se somente as batidas dos cascos, abafadas pelo grosso tapete de folhas. De vez em quando, Mandred notava nas copas ninhos esquisitos, que pareciam grandes sacos de linho branco. Luzes brilhavam em alguns desses ninhos e o guerreiro sentia-se observado. Havia algo lá em cima que os acompanhava com seu olhar curioso.

Aigilaos ainda voava em seu galope vertiginoso. Cavalgaram uma hora ou até mais pelo bosque silencioso, até finalmente subirem por um largo caminho. O centauro sequer suava.

O bosque então tornou-se mais ralo. Grossas faixas de cascalho cinzento e coberto de musgo cortavam o chão escuro. Aigilaos diminuiu o passo. Olhava atento em torno de si.

Mandred avistou outro círculo de pedras, meio escondido entre as árvores. As pedras erguidas estavam cobertas de heras. Uma imensa árvore estava caída, atravessando o círculo. O lugar parecia estar abandonado há muito tempo.

O guerreiro sentiu os cabelos de sua nuca se arrepiarem. Ali, o ar era um pouco mais fresco. Oprimia-lhe a sensação de que algo estava à espreita um pouco fora de seu campo de visão, algo estranho até para o centauro. Por que ergueram este círculo de pedras? O que teria acontecido naquele local?

O caminho os levava ao topo de um rochedo. A vista sobre as terras que os cercavam era de tirar o fôlego. Logo diante deles havia um amplo desfiladeiro que Naida, a amazona das nuvens, parecia um dia ter criado ao rachar o chão pedregoso com um raio violento. Um estreito caminho esculpido na pedra levava a uma ponte que formava um acentuado arco sobre o abismo.

Do outro lado do desfiladeiro havia suaves colinas que, na direção do horizonte, iam se transformando em montanhas cinzentas. Naquela margem do rochedo desaguava para dentro do abismo uma porção de pequenos riachos espumantes.

— Shalyn Falah, a ponte branca — disse Aigilaos respeitosamente. — Dizem que foi feita a partir do dedinho da gigante Dalagira. Quem a cruza adentra o coração da Terra dos Albos. Já se passou muito tempo desde que um filho de humanos teve a oportunidade de ver este lugar.

O centauro se aproximou da descida para o desfiladeiro. A água espumante molhava o chão de cascalho liso. Começou a descer cuidadosamente, tateando com os cascos e praguejando em uma língua que Mandred não compreendia.

Ao chegarem a uma ampla borda de pedra, Aigilaos pediu a Mandred para descer. Estavam diante da ponte. Tinha apenas sessenta centímetros de largura e as bordas eram levemente curvadas para fora, para que os respingos de água pudessem escoar em vez de se acumular em poças. Não havia corrimão.

— Uma maravilhosa construção, de fato — murmurou Aigilaos, mal-humorado. — Os construtores só não pensaram que por acaso pudesse haver criaturas com ferraduras nos cascos. É melhor para você que atravesse a ponte com seus próprios pés, Mandred. É esperado do outro lado. Vou por um desvio e só devo chegar ao castelo à noite, mas a soberana não deve esperar tanto — sorriu. — Espero que não tenha vertigem.

Ao observar a ponte lisa como um espelho, Mandred sentiu uma fraqueza. Mas não demonstraria medo diante do centauro!

— É claro que não tenho vertigem. Sou um guerreiro do fiorde. Sou capaz de escalar como uma cabra.

— Pelo menos não é peludo como uma cabra — Aigilaos sorriu, insolente. — Nos vemos na corte da soberana. — O centauro deu-lhe as costas e logo galgou a íngreme trilha na borda do desfiladeiro.

Mandred fitou a ponte. Nas lendas da terra das fadas, os guerreiros mortais sempre precisavam passar por provações. Seria essa a sua prova? Teria sido enganado pelo centauro? Não fazia sentido quebrar a cabeça com isso! Pisou na ponte, decidido. Surpreendeu-se que suas botas de inverno lhe davam bom apoio. Seguiu cautelosamente, pé ante pé. Os respingos d’água escorriam pelo seu rosto e o vento agarrava sua barba com mãos invisíveis. Logo estava em pé, bem no meio do abismo. A água espirrava sobre a ponte em nuvens cada vez mais densas. Era assim que os pássaros deviam se sentir nas alturas, entre o céu e a terra.

Curioso, examinava o chão de pedra. Não descobriu junções em nenhum lugar. Realmente parecia que a ponte havia sido recortada de uma única rocha. Ou teria mesmo sido feita do dedinho de uma gigante, como afirmara Aigilaos? Era lisa como marfim polido. Mandred afastou esse pensamento. Se uma gigante como essa caísse, sepultaria sob si toda a terra do fiorde. Essa história só podia ser uma lenda.

Quanto mais longe ia, mais seguro se sentia. Finalmente pisou do outro lado. Olhou para o abismo. As profundezas pareciam ter algo que o atraía e despertavam nele o desejo de pular; de se entregar à liberdade da queda. Quanto mais olhava, mais forte ficava o desejo de ceder a esse chamado.

— Mandred? — Do véu de vapor saiu um vulto alto e esguio. Estava todo vestido de branco. Sua mão esquerda repousava sobre o cabo da espada presa ao seu cinto. Por reflexo, a mão direita de Mandred buscou o lugar no cinto que abrigava o machado. Foi nesse momento que soube que estava desarmado.

Seu acompanhante percebeu o movimento.

— Não sou seu inimigo, filho de humanos. — Afastou o cabelo do rosto com um movimento displicente. — Meu nome é Ollowain. Sou o guardião da Shalyn Falah. Minha rainha me incumbiu de acompanhá-lo neste último trecho até o castelo.

Mandred examinou o homem. Ele se movimentava com a destreza de um gato. Não parecia muito forte, mas uma aura de autoconfiança o cercava, como se fosse o herói de muitas batalhas. Seu rosto era estreito e pálido. Orelhas pontudas espetavam o cabelo louro-claro, desgrenhado pelo respingar da água. Os olhos de Ollowain não revelavam o que estava pensando. Seu rosto era como uma máscara.

Mandred pensou nas histórias que contavam nas longas noites de inverno. Não havia dúvida: aquele deveria ser um elfo! E ele também sabia o nome de Mandred...

— Por que todos me conhecem nesta terra? — perguntou, desconfiado.

— As notícias correm rápido na Terra dos Albos, filho de humanos. Nossa rainha não deixa passar nada que acontece nos seus domínios. Ela envia a seus filhos mensageiros que viajam com o vento. Mas agora venha. Temos uma longa viagem diante de nós, e não permitirei que deixe minha soberana esperando. Siga-me! — O elfo virou-se sobre o patamar e pisou sobre a pequena ribanceira que havia depois da ponte.

Mandred seguia o elfo com os olhos, espantado. Mas o que era aquilo? Não é assim que se trata uma visita, pensou ele, irritado. E irritava-se ainda mais com o fato de que Ollowain aparentemente não duvidava em nenhum momento de que era acompanhado. Mal-humorado, seguia atrás do elfo pela ribanceira. As paredes vermelhas de pedra eram transpassadas por veios cinza-azulados e negros. Mas Mandred não tinha olhos para a beleza das cores. Continuava pensando que seguia o elfo como um cão segue o seu dono.

Se fosse tratado dessa maneira por um habitante do fiorde, o teria abatido sem hesitar. Em sua terra natal ninguém ousaria tratá-lo de forma tão desrespeitosa. Estava fazendo algo de errado? Talvez fosse falha sua? O elfo certamente era suscetível a elogios. Todo guerreiro gostava de falar sobre suas armas.

— Você leva uma espada magnífica, Ollowain.

O elfo não respondeu.

— Eu prefiro lutar com machados.

Silêncio.

Mandred cerrou os punhos. Mas que cara metido! Era o guardião de uma ponte e serviçal da rainha. De que isso valia? Para um guerreiro autêntico, o elfo era franzino demais.

— Na minha terra, só os homens mais fracos carregam espadas. O rei das lutas é o machado. Para lutar com um machado é preciso ter coragem, força e habilidade. Somente poucos guerreiros têm essas três virtudes na mesma medida.

O elfo continuava sem esboçar nenhuma reação. O que mais teria de dizer para tirar esse lacaio do sério?

As íngremes paredes de pedra finalmente começaram a recuar e deram em uma muralha alta e branca. Era construída em forma de semicírculo, como se recuasse diante do abismo. Mandred sabia qual era o sentido oculto disso: a muralha ficava mais longa. Dessa forma haveria lugar para mais arqueiros, caso um inimigo fosse louco o bastante para atacar o centro da Terra dos Albos por este caminho.

No meio da muralha havia uma torre estreita. Um grande portão de bronze se abriu quando se aproximaram.

— Se aquela torre ficasse no fim da ponte ou, melhor ainda, lá em cima, na trilha íngreme, seria mais fácil proteger a área central. Dessa forma um punhado de homens seria capaz de deter uma tropa inteira — disse Mandred casualmente.

— Não se pode derramar sangue sobre a Shalyn Falah, filho de humanos. Você realmente acha que é mais esperto que os construtores do meu povo? — Ollowain sequer se deu ao trabalho de se virar enquanto falava.

— De fato não tenho muito respeito por construtores que se esquecem do corrimão ao construírem uma ponte — retrucou Mandred, afiado.

O elfo parou de caminhar.

— Você é mesmo ingênuo assim, filho de humanos, ou está confiando demais na proteção da rainha? Sua ama não lhe contou o que os elfos fazem com os humanos que os desrespeitam desse jeito?

Nervoso, Mandred passou a língua sobre os lábios. Tinha ficado completamente louco? Seria melhor ter ficado com o bico calado! Mas seria humilhante não responder agora, seria... Ele sorriu. Ainda havia uma saída.

— Você mostra mesmo muita valentia ao zombar de um homem desarmado, elfo.

Ollowain virou-se, girando a sua capa. Sua espada ergueu-se no ar, com o cabo para a frente, a menos de um dedo de distância do peito de Mandred.

— Você acha que com uma arma na mão é perigoso para mim, filho de humanos? Pois então tente!

Mandred sorriu de forma insolente.

— Estaria lutando contra alguém desarmado.

— O primeiro sinal para reconhecer um covarde é a sua língua solta — replicou Ollowain. — Espero que agora não molhe as calças.

A mão de Mandred fez um movimento rápido e agarrou a espada de Ollowain. Em seguida, deu um salto para trás. Isso estava passando dos limites! Na verdade, não faria nada de mais contra esse cara arrogante, mas queria golpeá-lo com o lado largo da espada e mostrar-lhe que se metera com a pessoa errada. Lançou um olhar rápido para o merlão da muralha, e viu que ninguém os observava. Melhor assim, pensou. Certamente não seria o próprio Ollowain que sairia contando por aí que tinha levado uma surra.

Mandred examinou o oponente. Estava vestido de forma suntuosa, era verdade, mas herói ou mágico ele certamente não era. Que pessoa com a cabeça no lugar seria colocada como guardiã de uma ponte que ninguém cogita atravessar? Um babaca arrogante! Um zé-ninguém! Esse convencido agora ia aprender a ter respeito. Mesmo que fosse um elfo.

Deu alguns golpes rápidos no ar para soltar os músculos. A arma era estranhamente leve, muito diferente de uma espada humana. Era afiada dos dois lados. Precisaria ter cuidado se não quisesse ferir Ollowain por engano.

— Você vai me atacar agora ou vai precisar de mais uma espada? — perguntou o elfo, entediado.

Mandred lançou-se para a frente. Levantou a espada como se quisesse rachar o crânio de Ollowain. No último segundo mudou a direção do golpe, para acertar com as costas da mão o ombro direito do elfo. Mas sua espadada perdeu-se no vazio.

Ollowain se afastara o suficiente para que Mandred errasse o golpe por algumas polegadas. O guerreiro vestido de branco riu com petulância.

Mandred tomou distância. O elfo tinha a estatura de um menino, mas ainda assim queria lutar. Mandred tentaria o seu melhor truque: uma artimanha que custara a vida de três inimigos seus.

Pisou para a frente com o pé esquerdo como se quisesse dar uma sonora bofetada em Ollowain. Ao mesmo tempo, deu um golpe de espada dobrando a mão direita, mirando o joelho do oponente. Esse golpe de espada, dado com movimentos mínimos, só foi percebido por seus inimigos quando a lâmina já os atingira. Mas um soco desviou sua mão para o lado. E um pontapé atingiu a ponta da espada, fazendo-a errar o alvo. O elfo então cravou-lhe o joelho entre as pernas.

Mandred viu estrelas, e não conseguia respirar de tanta dor. Um empurrão no peito tirou-lhe o equilíbrio, e uma segunda pancada o fez tropeçar. Ele piscava para tentar voltar a enxergar melhor. Mas o elfo era tão rápido que seus movimentos sumiam, como espectros sobrenaturais.

Sem forças, Mandred deu um giro para se afastar do adversário. Algo atingiu sua mão direita. Seus dedos adormeceram de dor. A lâmina de Mandred agora só era guiada por seus instintos de guerreiro, e desenhou um semicírculo no ar. Sentia-se desamparado, enquanto Ollowain parecia estar em todos os lugares ao mesmo tempo. Então um empurrão arrancou a arma de sua mão. Um golpe de ar atingiu o guerreiro no lado direito da face. E a luta então acabou.

Ollowain recuara alguns passos. Tinha a espada na bainha, como se nada tivesse acontecido. Aos poucos, Mandred voltava a enxergar com clareza. Havia muito tempo que ninguém lhe dava uma sova como essa. O traiçoeiro elfo evitara acertá-lo no rosto, assim ninguém na corte perceberia o que aconteceu.

— Você deve ter ficado com muito medo — disse Mandred, ofegante —, já que precisou usar magia para me vencer.

— Então, se os seus olhos são lentos demais para me acompanhar, trata-se de magia?

— Nenhum humano é capaz de se mover tão rápido sem mágica — insistiu Mandred.

Os lábios de Ollowain esboçaram um sorriso:

— Isso mesmo, Mandred. Nenhum humano. — Ele apontou para o portão da torre, que agora estava bem aberto. Ali dois cavalos selados esperavam por eles. — Você me daria a honra de me seguir?

Todos os ossos de Mandred doíam. Com as pernas rígidas, andou até o portão. O elfo mantinha-se ao seu lado.

— Não preciso do apoio de ninguém — resmungou Mandred, mal-humorado.

— Caso contrário faria papel de coitado também na corte. — Um olhar amigável suavizou a acidez das palavras de Ollowain.

Os cavalos aguardavam pacientemente sob o arco do portão. Não se viam servos que os tivessem trazido até lá. Uma entrada abobadada penetrava na forte torre como um túnel. Ela estava vazia. Atrás dos merlões da muralha também não se via ninguém. De repente, Mandred mais uma vez se sentia observado. Será que os elfos queriam esconder algo, tão forte era a guarnição que guardava o portão para a área central? Será que o tomavam por um inimigo? Por um espião, talvez? Mas, se fosse assim, por que o carvalho o teria curado?

Dois cavalos, um branco e outro cinzento, esperavam por eles. Ollowain dirigiu-se ao garanhão branco e afagou seu focinho, brincalhão. Mandred teve a impressão de que o cavalo cinza o encarava com expectativa. Não entendia muito de cavalos. Estes animais eram de baixa estatura; tinham juntas magras e pareciam frágeis. Mas ele já se deixara enganar pela aparência de Ollowain. Eles provavelmente eram mais fortes e resistentes que qualquer outro cavalo que cavalgara até agora. Com a exceção de Aigilaos. A lembrança do centauro presunçoso fê-lo sorrir.

Mandred gemeu ao se lançar sobre a sela. Quando estava sentado mais ou menos ereto, o guerreiro elfo sinalizou que o seguisse. O pisar dos cascos sem ferraduras ecoava surdo nas paredes do túnel do portão. Ollowain seguiu por um caminho que subia pelas verdes colinas levemente inclinadas. Foi uma longa cavalgada até o castelo da rainha dos elfos, passando por bosques escuros e por uma infinidade de pequenas pontes. Às vezes via-se ao longe casas com telhados de abóboda muito curvados. Colocadas na paisagem com muito cuidado, lembravam a Mandred pedras preciosas, trabalhadas e engastadas de forma muito especial.

As terras que cruzava com Ollowain eram de primavera. Mais uma vez Mandred se perguntava quanto tempo teria dormido sob o carvalho. As lendas diziam que na terra dos elfos a primavera reinava eternamente. Certamente não se passaram mais que dois ou três dias desde que cruzara o círculo de pedras. Talvez até um só! Esforçava-se para organizar os pensamentos, para não se colocar diante da rainha como um tolo. Nesse meio-tempo se convenceu de que o homem-javali viera dali, do mundo dos elfos. Pensava em Xern e em Aigilaos. Aqui não parecia ser nada incomum que homens e animais se fundissem — justamente como no caso da criatura que o atacara.

Quando os nobres das terras dos fiordes se encontravam para falar de justiça, cabia a Mandred representar Firnstayn. Ele sabia o que era necessário fazer para cortar um conflito pela raiz. Se ocorresse um assassinato que vitimasse um homem, a família do assassino tinha de arcar com uma indenização à família da vítima. Feito isso, não havia mais motivos para vingança e derramamento de sangue. A criatura viera daqui. Por causa dela, Mandred perdera três companheiros e a rainha dos elfos tinha responsabilidade sobre isso. Firnstayn era tão pequena que a perda de três homens robustos poderia prejudicar a sua posição. Por isso exigiria uma alta indenização! Só Luth sabia quantos homens de outras aldeias foram mortos pela fera. Os filhos dos albos causaram o prejuízo, e agora precisavam se responsabilizar por ele. Nada mais justo!

Certamente os elfos não temeriam um conflito contra a sua aldeia. Mas, por seus amigos mortos, era seu dever se pronunciar diante da rainha para exigir justiça. Será que a soberana da Terra dos Albos pressentia isso? Sabia ela da culpa que tinha? Foi por isso que ordenou que o buscassem com tanta pressa e o levassem até a corte?

No fim da tarde avistaram pela primeira vez o castelo da rainha dos elfos. Estava ainda um pouco distante, sobre uma colina íngreme do outro lado de uma ampla região de bosques e campinas. A sua visão fazia Mandred perder a fala. O castelo parecia crescer diretamente da pedra e querer perfurar o céu com o topo das torres mais altas. As muralhas eram de um branco reluzente e contrastavam com o verde-azulado das torres — que lembrava o tom do bronze velho. Nenhum dos senhores das terras do norte tinha um domicílio que pudesse ser comparado à menor das torres deste castelo. Mesmo o átrio dourado do rei Horsa pareceria insignificante em comparação a todo esse esplendor. Quão poderosa devia ser a senhora que reinava nestas terras! E quão rica parecia ser... Tão rica que só precisaria estalar os dedos para mandar que cobrissem de ouro todas as casas comunais de sua aldeia. Ele precisava refletir sobre o valor que estabeleceria como compensação pela morte de seus companheiros de caça.

Embora não tivesse dito nada, Mandred estava surpreso com o quão lentamente se aproximavam do castelo. Os cavalos voavam sobre a terra, rápidos como o vento, mas no horizonte o castelo mal aumentava de tamanho. Passaram por uma árvore que parecia tão velha quanto as montanhas. Seu tronco era robusto como uma torre e havia coisas esquisitas em seus ramos amplamente espalhados. Era como se a madeira viva tivesse produzido cabanas redondas nas junções entre os galhos. Havia pontes de corda que se esticavam ligando as cabanas entre si. Entre os galhos, Mandred conseguia ver silhuetas semiocultas. Seriam elfos como Ollowain? Ou ainda um outro povo estranho?

De repente, uma revoada de pássaros levantou voo da árvore, como se obedecendo a um comando inaudível. Suas plumagens brilhavam em todos os tons do arco-íris. Passaram voando sobre Mandred, muito próximos, traçando um amplo arco no céu, e então deram voltas sobre os dois cavaleiros. Pareciam ser milhares. O ar se encheu do farfalhar das asas. A dança das cores das penas era tão maravilhosa que Mandred não conseguiu desviar o olhar, até que o bando aos poucos se dissipou.

Ollowain ficara em silêncio durante todo o percurso. Parecia estar absorto em pensamentos, e indiferente às belezas das terras centrais. Mandred, em contrapartida, não se fartava de admirá-las.

Passaram então por um lago raso. No fundo reluziam pedras preciosas. Que tipo de seres eram aqueles que simplesmente jogavam tesouros como esses na água? Bem, ele próprio já tinha feito oferendas aos deuses. Numa calma noite de lua cheia, levou o machado do primeiro homem que venceu à Fonte Sagrada, nas profundezas das montanhas, e com ele presenteou Norgrimm, deus das batalhas. Freya e as outras mulheres prestaram homenagens a Luth, trançando os galhos da tília da aldeia com tiras de tecido feitas artisticamente. Mas nada que se comparasse àquilo.Já que o povo élfico parecia tão rico, parecia apropriado oferecer pedras preciosas a seus deuses. No entanto, tanta riqueza irritava Mandred. Ele não sabia como chegara aqui, já que este reino não podia estar tão distante assim das terras do fiorde. E aqui havia tudo em abundância, enquanto seus semelhantes passavam necessidades no inverno. Apenas uma pequena porção destes tesouros já seria capaz de acabar com a fome para sempre. Qualquer valor que exigisse como reparação por seus companheiros mortos certamente seria insignificante para os elfos.

Em vez de ouro e pedras preciosas, ele queria outra coisa. Queria vingança. O corpo daquela fera, o homem-javali, teria de ser entregue sem vida a seus pés!

Mandred observou Ollowain. Um guerreiro como ele certamente seria capaz de derrotar o monstro com facilidade. Suspirou. Agora tudo parecia mais fácil.

Chegaram a um ralo bosque de faias. O som das flautas dançava no ar. Em algum lugar das copas das árvores soava uma voz tão pura que iluminava os corações. Embora Mandred não entendesse uma palavra sequer, a sua ira evaporou. O que sobrou foi somente o luto pelos amigos perdidos.

— Quem está cantando ali? — perguntou a Ollowain.

O guerreiro vestido de branco olhou para a copa das árvores.

— Uma donzela do povo da floresta. É um povo solitário e sua vida é muito ligada às árvores. Se não querem ser vistos, então ninguém consegue encontrá-los, a não ser os seus semelhantes, talvez. São conhecidos por seu canto e por sua habilidade com o arco e movem-se pelos ramos como sombras. Tenha cautela ao adentrar uma de suas florestas se tiver diferenças com eles, filho de humanos.

Aflito, Mandred levantou os olhos para as árvores. Vez ou outra acreditava ver sombras lá em cima, e estava satisfeito que logo deixariam o bosque novamente. O som morno das flautas ainda os acompanhou por um tempo.

O sol já tocava as montanhas no horizonte quando alcançaram o amplo vale sobre o qual o castelo da rainha se impunha. Ao longo de um pequeno riacho havia um acampamento. Estandartes de seda tremulavam ao vento e as barracas pareciam competir umas com as outras em suntuosidade. Nas colinas viam-se casas com corredores ladeados por colunas. Algumas delas eram ligadas entre si por longos caramanchões cobertos de rosas e heras. As construções em torno da encosta eram tão variadas que não era possível desviar o olhar. Porém, o que mais impressionava Mandred era o fato de não haver nenhuma muralha cercando a colônia dos elfos e nenhuma torre de observação nas colinas ao seu redor. Eles pareciam totalmente seguros de que este vale jamais seria atacado. Nem mesmo o castelo da rainha, com suas tão impressionantes torres da altura do céu, funcionaria como uma poderosa estrutura de defesa. Muito ao contrário: ele alegrava o olhar de um observador pacífico, em vez de intimidar conquistadores sedentos.

Mandred e Ollowain prosseguiram até o portão por um largo caminho, totalmente coberto pelas copas de árvores e iluminado pelo brilho dourado da luz de lampiões a óleo. O túnel do portão era mais curto que o outro, na fortificação no desfiladeiro após Shalyn Falah. Guerreiros elfos cobertos até os tornozelos por cotas de malha recostavam-se sobre seus escudos. Seguiam Mandred com o olhar — atentos, porém discretos. No amplo pátio aglomeravam-se nobres ricamente vestidos que o examinavam sem qualquer pudor. Seus olhares faziam Mandred se sentir sujo e insignificante. Todos ali vestiam túnicas luxuosamente bordadas, a ponto de refletir a luz dos candeeiros. Os trajes eram repletos de pérolas e pedras que Mandred sequer conseguia nomear. Ele, em contrapartida, estava vestido de trapos: uma calça rasgada e manchada de sangue, um colete de pele puído. Precisava passar por eles como um mendigo. Mas o fez altivamente, de cabeça erguida. Vestira, na falta de algo melhor, o seu orgulho!

Ollowain saltou da sela. Só então Mandred notou um fino rasgo na capa do guerreiro. Teria o atingido durante o duelo? Era certo que Ollowain jamais vestiria uma peça de roupa rasgada sem necessidade.

Mandred também apeou. Um rapaz com pernas de bode aproximou-se apressado e agarrou as rédeas do cavalo. Mandred observou abismado o cuidador, que fedia como um bode velho. De novo um homem-animal! Eles eram aceitos até mesmo neste magnífico castelo!

Do grupo de cortesãos veio um elfo bem alto. Vestia uma longa túnica negra, com a bainha ornada de bordados de prata em forma de folhas e flores entrelaçadas. Tinha cabelos grisalhos como prata até a altura dos ombros e uma coroa de folhas prateadas muito macias descansava sobre suas têmporas. Seu rosto era pálido, quase sem cor, e os lábios eram apenas linhas finas. Nos seus olhos queimava um azul frio e claro. Ollowain curvou-se rapidamente diante dele. A diferença entre os dois não poderia ser maior: para Mandred, eles eram como luz e sombra.

— Minhas saudações, mestre Alvias. Como nossa soberana Emerelle desejava, trouxe o filho de humanos em segurança até o castelo. — O tom de voz de Ollowain não deixava dúvidas de que o desejo de sua rainha era uma ordem.

Ambos os elfos trocaram olhares, e a Mandred pareceu como se conversassem em silêncio. Finalmente, mestre Alvias deu a entender com um gesto que deveria segui-lo.

O guerreiro sentiu-se como se estivesse preso em um pesadelo quando, seguindo mestre Alvias, começou a subir uma larga escada que levava a um corredor com colunas. Tudo ao seu redor era de uma beleza opressora e impregnado de uma estranha aura mágica — um lugar tão perfeito que causava medo.

Atravessaram dois amplos átrios. Cada um deles poderia abrigar toda uma aldeia. Do teto pendiam largos estandartes, enfeitados com águias e dragões estilizados, mas também havia figuras de animais que Mandred nunca vira antes. Embora não percebesse nenhuma corrente de ar, eles se movimentavam como se embalados por uma suave brisa. Ainda mais incomuns eram as paredes. Ao se aproximar, via-se que eram feitas de pedra branca, assim como a ponte de Shalyn Falah e a fortificação do outro lado do desfiladeiro. A pedra do castelo, contudo, parecia enfeitiçada: dela irradiava uma luz pálida e feminina. A poucos passos de distância desaparecia a impressão de se estar cercado de pedra. Quem ali estava então tinha a sensação de se mover por um átrio de luz.

Sempre que se aproximavam de uma porta, suas folhas se abriam como se movidas por uma mão invisível. No meio do segundo átrio havia uma fonte cujas águas saíam da garganta de um monstro para desaguar em um lago pequeno e redondo. A besta estava cercada de guerreiros petrificados. Aflito, Mandred sentia seu coração bater mais rápido. Se precisava de mais uma demonstração dos poderes mágicos da rainha, já a tinha. Se a aborrecesse, ela o transformaria num enfeite de pedra para o seu castelo!

Outro portão alto abriu-se diante deles. Adentraram um salão de paredes ocultas por uma cortina de água prateada e cintilante. Não tinha teto: em vez disso, era o brilho avermelhado do céu noturno que se arqueava sobre eles. Uma música baixa pairava no ar. Mandred não sabia dizer quais instrumentos seriam capazes de emitir tão lindos sons. A música dissipou o medo que crescera em seu peito desde que pisara no pátio do castelo. Este certamente não era um lugar feito para humanos. Ele não deveria estar aqui.

Cerca de três dúzias de elfos já esperavam no salão, cujos olhos pousaram todos sobre Mandred. Era a primeira vez que o guerreiro via elfas. Eram altas e magras, tinham quadris mais masculinos que as fêmeas humanas e os seios eram miúdos e rígidos. Quando se tratava de humanos, Mandred não gostava de mulheres assim, quase infantis. Mas as elfas eram diferentes. Tinham rostos de uma beleza capaz de fazer esquecer todo o resto. Não sabia dizer se era culpa de seus lábios curvos, dos traços sem idade ou dos olhos que atraíam para abismos que prometiam prazeres desconhecidos. Ao esconder as qualidades de seus corpos magros, realçavam-nas ainda mais. Mandred não conseguia tirar os olhos de uma das elfas. Vestida de forma mais provocante que as demais, o tecido de sua túnica deixava transpareceer as aréolas rosadas de seus seios e uma sombra atraente destacava-se entre suas coxas. Nenhuma humana ousaria vestir-se assim.

Defronte do portão, sete degraus subiam até o trono do povo élfico: uma cadeira lisa de madeira escura, com incrustações de pedras pretas e brancas no formato de duas serpentes entrelaçadas. Ao lado do trono havia uma coluna baixa com uma tigela rasa de prata. Diante do assento do soberano estava uma jovem elfa. Era um pouco mais baixa que as outras na sala. Seu cabelo louro-escuro caía em ondas sobre os seus ombros nus e brancos como leite. Seus lábios tinham a cor das amoras silvestres e seus olhos eram castanhos-claros como a pele de um filhote de corça. Trajava um vestido azul, com fios de prata entrelaçados. Foi diante dela que mestre Alvias se curvou.

— Emerelle, soberana, este é o filho de humanos Mandred, que adentrou o vosso reino sem ser chamado.

A rainha fitou Mandred com um olhar penetrante. Ele não conseguia decifrar em seu rosto o que ela estava pensando e permanecia inerte, como se talhado em pedra. Esse momento pareceu durar uma eternidade. A música foi baixando até sumir, e agora reinava apenas o suave murmúrio da água.

— Qual é o seu desejo, Mandred Filho de Humanos? — Finalmente soou a clara voz da rainha.

A boca de Mandred estava seca. Durante a cavalgada pensara muito no que deveria dizer quando estivesse de frente com a rainha dos elfos. Mas agora sua cabeça estava vazia, sem nada além da preocupação com os seus e da ira pela morte de seus companheiros.

— Exijo uma indenização pelo assassinato que um de seus súditos cometeu, soberana. Essa é a lei do fiorde! — Deu um passo adiante.

O barulho da água tornou-se mais alto. Atrás de si Mandred ouviu murmúrios de indignação.

— Qual de meus súditos teria cometido tal assassinato? — perguntou Emerelle com voz calma.

— Não sei o nome, mas é um monstro metade homem, metade javali. Vi muitas criaturas como ele ao longo do caminho para vosso castelo.

Uma ruga profunda surgiu entre as sobrancelhas da rainha.

— Não conheço nenhum ser como o que você descreve, Mandred Filho de Humanos.

Mandred sentiu o sangue subir até suas faces. Que mentira insolente!

— Vosso mensageiro foi um centauro, e no pátio do castelo um homem-bode levou os cavalos. De onde mais poderia ter vindo um homem-javali senão de vosso reino, rainha? Eu exijo...

A água agora corria retumbante parede abaixo.

— Você ousa chamar nossa rainha de mentirosa! — indignou-se Alvias. Uma multidão de elfos cercou Mandred.

O guerreiro cerrou os punhos.

— Eu sei exatamente o que vi!

— Mantenham a hospitalidade! — A rainha mal levantou a voz, mas foi ouvida por todos. — Fui eu quem convidou o filho de humanos a esta sala. Aquele que tocá-lo também cutucará a minha honra! E você, Mandred, segure a sua língua. Eu lhe digo: não existe na Terra dos Albos uma criatura como a que se referiu. Conte-nos o que esse homem-javali fez. Sei muito bem que vocês, homens, evitam o círculo de pedras. Por que você fugiu para cá?

Mandred contou sobre a caçada em vão e sobre a força da criatura. Quando terminou, viu que a ruga entre as sobrancelhas de Emerelle tornara-se ainda mais profunda.

— Lamento pela morte de seus companheiros, Mandred. Que eles sejam bem acolhidos nos átrios de seus deuses.

O guerreiro encarava a rainha, surpreso. Esperava que ela prosseguisse, que lhe fizesse uma proposta. Isso não podia ser tudo! O silêncio continuava. Mandred pensou em Freya. Cada hora perdida colocava-a ainda mais em perigo — isso se a fera já não tivesse se lançado sobre Firnstayn há tempos.

Envergonhado, baixou o olhar. De que valia o seu orgulho se fora pago com o sangue dos seus?

— Rainha Emerelle, eu... eu peço a vossa ajuda na caça a esse monstro. Eu... peço perdão se a ofendi. Sou só um homem simples. Lidar com palavras não é o meu forte. Eu falo com o coração.

— Você vem a meu castelo, Mandred, ofende-me diante de minha corte e agora pergunta se eu arriscaria a vida de meus caçadores para cuidar de um problema seu? Você só pode mesmo estar falando com o coração, filho de humanos. — A mão de Emerelle fez um movimento circular sobre o recipiente de prata, e ela lançou um rápido olhar sobre a água. — E por minha ajuda, o que me oferece em troca? O seu povo não paga sangue com sangue?

Mandred surpreendeu-se. Os soberanos das terras do fiorde sempre expressavam abertamente suas exigências, sem pechinchar como comerciantes. Pôs-se de joelhos:

— Liberte a minha pátria daquele monstro e vossa majestade reinará sobre mim. Estarei ao vosso dispor.

Emerelle riu baixo.

— Mandred, na verdade você não é exatamente um homem que eu gostaria de ver perto de mim todos os dias. — Ela se calou e voltou a olhar dentro da tigela prateada. — Eu exijo o que Freya, sua esposa, carrega no ventre. O primeiro filho que dará a você, Mandred Filho de Humanos. Não se consegue a amizade do povo élfico apenas com palavras vazias. Mandarei buscar a criança daqui a um ano.

Era como se Mandred tivesse sido atingido por um raio.

— O meu filho? —Voltou o olhar para os outros elfos, como que pedindo ajuda. Mas em nenhum dos rostos havia compaixão. Como dizia mesmo a história infantil? Os corações dos elfos são gelados como as estrelas de inverno... — Crave-me um punhal no peito, rainha. Minha vida termina aqui e agora. Pagarei esse preço sem hesitar se vossa majestade ajudar os meus semelhantes em troca.

— Grandiosas palavras, Mandred — replicou a rainha com frieza. — Mas de que serviria derramar o seu sangue diante dos degraus do meu trono?

— E de que serviria uma criança? — protestou Mandred, em desespero.

— Essa criança será um elo entre os homens e os elfos — retrucou calmamente. — Ela deverá crescer entre o meu povo, e terá os melhores mestres. Quando o seu filho tiver idade suficiente, poderá decidir se quer ficar conosco para sempre ou se deseja retornar para os seus irmãos humanos. Se quiser voltar, lhe daremos ricos presentes para levar consigo, e estou certa de que conquistaria o seu lugar entre os mais importantes do seu povo. Mas a dádiva mais importante que levaria para o mundo dos homens seria a amizade do povo élfico.

Mandred tinha a sensação de que a graciosa elfa segurava e apertava o seu coração com mão de ferro. Como poderia prometer aos elfos o filho que ainda não nascera? Mas, se recusasse, então a criança poderia sequer chegar a nascer. Quanto tempo duraria até que aquela besta adentrasse o pequeno povoado no fiorde? Já teria chegado lá?

— Freya, minha esposa, ainda está viva? — perguntou tristemente.

A rainha passou a mão suavemente sobre a tigela de prata.

— Alguma coisa está escondendo a criatura que você chama de homem-javali. Mas ela ainda parece estar próxima do círculo de pedras. Não atacou o seu vilarejo. — Ela ergueu os olhos e o encarou diretamente. — Qual é a sua decisão, Mandred Filho de Humanos?

“Ainda terei outros filhos com Freya”, Mandred tenta convencer a si mesmo. Talvez ela tenha no ventre uma menina, e a perda então não seria tão difícil. Ele era o jarl de sua aldeia, o responsável por todos. O que era uma vida se comparada a todas aquelas outras?

— Você terá o que exige, rainha. — A voz de Mandred não era mais que um sussurro. Seus lábios queriam trancar as palavras, mas ele se obrigava a falar. — Se os seus caçadores matarem o homem-javali, então o meu filho pertencerá a vós.

Emerelle acenou com a cabeça na direção de um elfo vestido de cinza-claro e pediu-lhe que desse um passo à frente.

— Farodin do clã Askalel, você já provou sua coragem muitas vezes. Sua sabedoria e experiência tornarão a caçada bem-sucedida. Convoco-o agora para a Caçada dos Elfos.

Mandred sentiu um arrepio subir por suas costas. A Caçada dos Elfos! Quantas histórias já ouvira sobre essa sociedade cercada de segredos!

Dizem que esses caçadores extraordinários não deixam passar nenhuma presa. E o seu alvo sempre encontra a morte. Lobos tão grandes quanto cavalos são seus cães de caça e, nas veias de seus cavalos, corre fogo líquido. Eles cavalgam pelo céu noturno, escondidos sob a luz das fadas, e se atiram sobre as presas como águias. Apenas os mais nobres e valentes podem participar da caçada. Todos são tanto guerreiros quanto feiticeiros e tão poderosos que os trolls escondem-se em seus castelos quando eles saem para caçar. Até os dragões os temem. Eu consegui colocá-los na pista daquela aberração, pensou Mandred, exultante. Eles destroçariam a fera numa vingança sangrenta por seus amigos mortos!

A rainha ainda chamou mais alguns nomes, mas os que foram chamados pareciam não estar na sala do trono. Finalmente indicou uma figura vestida de marrom, que à primeira vista parecia assustadora.

— Nuramon do clã Weldaron, a sua hora chegou.

Um murmúrio tomou conta dos elfos aglomerados.

Uma elfa se destacou de um dos grupos, dando um passo à frente. Parecia mais surpresa que os demais.

— Minha soberana, você gostaria mesmo de expô-lo a esse perigo? Você conhece a sua sina!

— Foi por isso mesmo que o escolhi.

Mandred encarou furtivamente o elfo de cabelos castanhos. Ele parecia inseguro. Certamente não era um caçador experiente!

— Amanhã cedo a Caçada dos Elfos deve partir para matar o monstro de que nos contaram. E você, Mandred Filho de Humanos, será o líder, pois conhece a fera e as terras que ela assola.

O murmurar na sala cessou repentinamente. Mais uma vez, Mandred sentia todos os olhares pousarem sobre ele. Ele não podia acreditar no que Emerelle acabara de dizer. Ele, o menos nobre aos olhos dos presentes, fora escolhido para liderar a Caçada dos Elfos! Queria apenas que Freya estivesse ao seu lado agora.

Uma noite na corte

Nuramon estava de pé no meio do seu quarto. A rainha convocara sete elfos para a Caçada dos Elfos, e havia sete quartos. Os aposentos foram construídos para que os caçadores pudessem se equipar e descansar. Era ali que os seus parentes prestavam-lhe as honras. E ali estava ele, completamente sozinho.

O quarto tinha paredes e teto ricamente decorados com afrescos e incrustados de pedras cor de âmbar que irradiavam uma luz quente. Na parede à direita de Nuramon havia um nicho onde repousavam algumas armas e outros equipamentos, mas também enfeites e joias cujos poderes mágicos ele podia sentir. Algum dia os seus predecessores carregaram tudo aquilo na Caçada dos Elfos. Quando voltavam da caçada sempre deixavam algo nos quartos.

Por ter sido chamado, Nuramon podia se apoderar de algumas dessas peças — ao menos foi o que Farodin lhe disse. Mas ele não queria tomar para si nenhuma dessas coisas; também não queria tirar o seu brilho. Então o seu equipamento permaneceu sendo apenas o que já possuía, o que, aliás, não era muito. Os costumes exigiam que os parentes o encontrassem aqui para prestar auxílio e equipá-lo. Mas o banco de pedra diante do nicho não estava servindo de assento para nenhum parente, nem guardando qualquer presente.

A rainha não lhe prestara uma grande honra ao convocá-lo para a Caçada dos Elfos? Ele não merecia que, como era de hábito, o seu clã viesse até ele para demonstrar sua alegria? Em vez disso, todos se mostraram surpresos. Sequer se esforçaram para cochichar quando zombavam dele. Ele era um renegado, e tinha certeza de que nem mesmo a rainha seria capaz de mudar isso.

E o que mais havia neste mundo que o prendesse aqui, com a exceção de Noroelle? Seus pais já haviam partido para o luar havia muito tempo. Não tinha irmãos, somente poucos amigos. Só havia Noroelle. Somente ela parecia não se afligir com seu legado. Se tivesse ouvido a decisão da rainha, certamente teria dividido com ele a sua alegria. Teria vindo até ele neste cômodo.

Nuramon ouvira as histórias da última Caçada dos Elfos. Os companheiros afastaram um líder troll de Kelpenwall. As famílias ofereceram armas e todo o tipo de preciosidades para os guerreiros escolherem. E aqueles cujos presentes foram escolhidos pelos caçadores encheram-se de orgulho.

Neste momento, enquanto estava ali sozinho, seus companheiros certamente recebiam equipamentos nos outros quartos. Com certeza também havia algumas pessoas com o filho de humanos. Nuramon perguntou a si mesmo se um elfo já invejara um humano alguma vez antes.

O barulho de passos diante da porta tirou-o de seus pensamentos. Virou-se na esperança de que fosse algum de seus primos, primas, tios, tias ou qualquer um de sua família. Mas antes que a porta se abrisse, Nuramon ouviu uma voz feminina chamar o seu nome. A porta se abriu. Uma elfa vestida com uma túnica cinza de feiticeira adentrou o quarto.

— Emerelle — disse ele, surpreso. A soberana tinha agora um aspecto totalmente diferente. Parecia menos uma rainha e mais uma feiticeira viajante de grandes poderes. Seus olhos castanhos-claros brilhavam à luz das pedras e nos seus lábios havia um sorriso. — Você veio até mim? — perguntou ele.

Ela fechou a porta.

— E parece que sou a única. — Aproximou-se dele com tamanha elegância e autoridade que Nuramon pensou ter diante de si uma elfa dos tempos das sagas heroicas. A rainha presenciara esses grandes tempos. Ela não fora gerada de elfos; descendia diretamente dos albos e os vira antes que deixassem o mundo. Em algum lugar deste castelo Emerelle escondia a sua Pedra dos Elfos, a joia que herdara dos albos e que ela só deveria utilizar para segui-los. Mas, então, por que viera até ele como uma maga?

Como se lesse os seus pensamentos, ela respondeu:

— É uma tradição que a rainha faça uma visita a cada membro da Caçada dos Elfos. E como ouvi vozes em todos os lugares, exceto no seu quarto, decidi começar por aqui. — Permanecia de pé diante dele, e o encarava com expectativa. Um hálito de flores frescas de primavera invadiu o seu olfato. Era o perfume da rainha que o confortava.

— Desculpe-me — disse em voz baixa. — Não conheço muito bem todas as tradições. — Olhou para baixo.

— Você nunca sonhou em participar da Caçada dos Elfos? Toda criança sonha, conhece as tradições e cada um dos passos da trilha que se percorre nessa noite.

Nuramon suspirou e a olhou nos olhos:

— Uma criança que não se sente aceita em lugar nenhum sonha com coisas menores.

Lembrou o tempo que se seguiu à ida de seus pais para o luar. Ele ainda era praticamente uma criança, mas ninguém veio para cuidar dele. Seus parentes o recusaram, e ele então retornou para a casa na árvore que fora de seus pais. Lá ficou sozinho. Somente os filhos dos albos, para os quais a maldição que os elfos atribuíam a Nuramon não tinha nenhum significado, o aceitaram por perto. E não tinham sido muitos.

— Eu sei como é difícil — disse a rainha, tirando Nuramon de suas lembranças com suas palavras. — Mas a minha decisão será simbólica para os demais. Agora eles estão surpresos, mas logo verão você com outros olhos.

— Eu queria poder acreditar nisso — disse e se esquivou do olhar de Emerelle.

— Olhe para mim, Nuramon! — ela exigiu. — Não se esqueça de que sou a sua rainha. Não posso fazer com que os outros o amem. Mas vou tratá-lo como trato os demais. Você se sente solitário e se pergunta se ainda pertence aos elfos, mas logo os outros o reconhecerão como o que você realmente é. — Ela baixou o olhar. — Você superou a dor da sua tenra idade. É como se Noroelle tivesse despertado forças em você que ninguém pensava serem possíveis. Agora chegou o momento de eu lhe dar o reconhecimento que você merece por suas virtudes.

— Eu vou aproveitar essa chance, Emerelle.

A rainha olhou em volta na direção da porta.

— Já que ninguém vem e os caçadores sempre precisam estar equipados, gostaria de me encarregar de seu equipamento. Pedirei que o tragam a seus aposentos mais tarde.

— Mas...

— Não diga que isso não compete a você! Olhe para cima. — Ela apontou para o retrato de uma elfa que lutava contra um dragão. — Aquela é Gaomee. Ela derrotou o dragão Duanoc, que chegou a nossas campinas pelo portão de Halgaris.

Gaomee! Duanoc! Halgaris! Esses eram nomes do mito que remetia a grandes proezas, e que lembrava os velhos tempos heroicos.

Muitos dragões já chegaram à Terra dos Albos, mas apenas poucos encontraram seu lugar neste mundo e fizeram um pacto com os elfos. Mas Duanoc estava muito longe de aceitar um pacto desse tipo. Pelo menos era o que se contava. E a jovem Gaomee o abateu. Um arrepio subiu pelas costas de Nuramon.

A rainha continuou:

— Gaomee já não tinha mais família. Eu a escolhi, o que naquela época causou grande surpresa. Via nela algo que certa vez vi em mim mesma. — Emerelle fechou os olhos e absorveu Nuramon totalmente em seu encanto. Ele nunca vira as pálpebras da rainha cerradas. Sua aparência devia ser essa quando dormia e sonhava com coisas que somente uma elfa de poderes extraordinários seria capaz de compreender. — Vejo Gaomee com tanta clareza na minha lembrança... Ela estava aqui em pé diante de mim, e lágrimas corriam por suas faces. Ela não tinha a armadura adequada para sair com os outros para lutar com Duanoc. Então eu a equipei. Um guerreiro jamais pode estar mal guarnecido, principalmente ao adentrar o reino dos homens.

— Então eu aceito. — Nuramon olhou para cima, para o afresco de Gaomee, e perdeu-se naquela visão. A rainha lhe abrira uma porta que ele jamais acreditou que se abriria para ele. Há muito se contentava com sua posição à margem dos demais.

— Eu sei que isso é novo para você — disse a rainha em voz baixa, arrancando-o mais uma vez de seus pensamentos. — Mas esse é um momento de transição para a sua alma. Nunca alguém a quem se deu o nome de Nuramon fez parte da Caçada dos Elfos. Você é o primeiro. E como a Caçada dos Elfos também tem a ver com glória, quando você retornar, muitos terão de decidir se o receberão com escárnio ou com reconhecimento.

Nuramon não conteve um sorriso.

— Por que sorri? Divida comigo os seus pensamentos — pediu Emerelle.

— Não pude evitar pensar no medo que vi no rosto de meus parentes quando fui escolhido. Agora sou mais que uma desonra: sou um perigo. Eles devem temer que, caso eu morra, nasça uma criança com a minha alma. Deveriam estar aqui para me entregar a melhor armadura, mas a aversão que têm a mim parece ser maior que o medo de minha morte...

Emerelle encarou-o com bondade.

— Não os critique tanto assim. Agora você precisa se acostumar à sua nova posição. Apenas os poucos que atravessam os séculos acostumam-se rapidamente ao novo. Ninguém fazia ideia de que eu o chamaria. Nem mesmo você esperava.

— É verdade.

— Está claro o que vai acontecer agora?

Nuramon não sabia o que ela queria dizer. Estava falando de sua vida ou desta conversa? Antes que ele pudesse dizer alguma coisa, Emerelle prosseguiu:

— Aqueles que participam da Caçada dos Elfos enfrentam perigos. Por isso a rainha dá a cada um deles um conselho para acompanhá-los nesse caminho.

Nuramon estava envergonhado por sua falta de conhecimento.

— Eu o seguirei, qualquer que seja.

— Que bom que confia em mim tanto assim. — Colocou a mão sobre seu ombro. — Você é diferente dos outros, Nuramon. Ao olhar o mundo, você vê algo diferente do que os elfos comuns veem. Você vê beleza no que os outros detestam. Você vê grandeza nos lugares que todos os outros percorrem com desprezo. E você fala de harmonia quando os outros não a podem suportar. E porque você é assim, vou repetir um conselho que certa vez ouvi o oráculo de Telmareen pronunciar: escolha a sua própria família! Não se preocupe com a sua aparência! Pois tudo o que você é está dentro de você.

Nuramon parecia estar sob o efeito de um encantamento. Tinha o privilégio de ouvir as palavras do oráculo de Telmareen da boca da rainha! Saboreou por um tempo essa sensação. Então, de repente, uma pergunta surgiu dentro dele. Hesitou, mas por fim ousou fazê-la:

— Você disse que ouviu o conselho. Mas, afinal, a quem o oráculo aconselhou?

Emerelle sorriu.

— Siga o conselho da rainha! — disse ela, beijando-o na testa. — Foi a mim que aconselhou. — Com essas palavras, ela se afastou, caminhando em direção à porta.

Perplexo, Nuramon seguiu-a com os olhos. Antes de fechar a porta atrás de si, ela disse, sem olhar novamente para ele:

— Vi Noroelle no pomar.

Quando Emerelle se foi, Nuramon deixou-se despencar sobre o banco de pedra, pensativo. O oráculo dera um dia esse conselho à rainha? Teria ela o chamado por se reconhecer nele? De repente, Nuramon tomou consciência do quanto se enganara em relação à ela. Sempre a considerara uma elfa inacessível, cujo brilho só se podia admirar da maneira como se admira uma estrela distante. Mas jamais lhe ocorrera a ideia de que pudesse haver algo em comum entre eles dois.

Emerelle era um exemplo e um ideal para todos os elfos e filhos de albos que viviam sob sua proteção. Como pudera ver-se como uma exceção? Ela tinha não somente revelado a ele um caminho que certa ver percorrera, mas também se referido a Gaomee. Durante a Caçada dos Elfos, Gaomee seria um exemplo para ele. Mas, acima disso, pairava o conselho da rainha.

As palavras dela mais uma vez vieram ao seu pensamento e então também se lembrou de Noroelle. Deixou o quarto e viu Mandred no fim do corredor, cercado por alguns elfos. Não segurou um sorriso. Ele não trocaria de lugar com Mandred ou com qualquer outro na Caçada dos Elfos, nem por nenhuma das riquezas daquele castelo.

Enquanto percorria o corredor, percebeu que não havia nenhuma elfa junto ao filho de humanos. Não se admirou com isso. Aparentemente já se espalharam pela corte os comentários sobre a forma imoral como ele olha para as elfas. Estava feliz que Noroelle não tinha sido exposta ao olhar de Mandred na sala do trono. Como alguém podia ser tão grosseiro?

Nesse momento Mandred gritou:

— Agora, meus amigos! Digam um feitiço que me faça caber nesta armadura, e então a aceitarei com satisfação... Parem! Deixem-me em paz com essas espadas e outras tralhas de criança... Eu sou Mandred! Vocês não têm um machado?

Nuramon balançou a cabeça. Uma voz rouca e um coração grosseiro! E modos que não passavam despercebidos.

No caminho até o pomar, Nuramon perguntou-se como Noroelle receberia a notícia de sua convocação. Será que o temor por ele prevaleceria sobre a alegria? As palavras da rainha incluíram um elogio a Noroelle. E aquela era mesmo a verdade: a sua amada o tinha mudado. Ela lhe dera autoconfiança e sua afeição o fizera crescer.

Nuramon logo chegou ao pomar. Ele ficava sobre uma saliência na rocha, acessível somente pelo castelo. Já anoitecera. Ele olhou para a lua. Esse era o objetivo da vida: finalmente partir para o luar! Por todos aqueles anos a lua fora sua confidente. Seus antepassados — aqueles que já carregaram sua alma e seu nome antes — provavelmente também sentiram essa conexão com a lua. Os raios de luz que o atingiam eram como um sopro refrescante de vento, que davam um pouco de frescor àquela quente noite de primavera. Nuramon avançou por debaixo das árvores.

Parou sob uma bétula e olhou ao seu redor. Fazia muito tempo que pisara neste jardim pela última vez. Diziam que cada uma das árvores dali tinha uma alma e um espírito, e que todos que lhes prestassem ouvidos seriam capazes de escutar os seus sussurros. Nuramon prestou atenção, mas não ouviu nada. Será que os seus sentidos ainda eram fracos demais?

Mas agora o que importava era encontrar Noroelle. Se este era um pomar, então ele deveria procurá-la sob uma árvore. Olhou em volta, buscando as árvores que davam frutas o ano todo. Viu maçãs e peras, cerejas e ameixas, damascos e pêssegos, limões e laranjas, mirtilos e... amoras. Noroelle ama amoras!

Quase no fim do jardim havia duas amoreiras, mas Noroelle não estava ali. Nuramon apoiou-se no muro e olhou as terras lá embaixo. À noite, as barracas diante do castelo pareciam lanternas coloridas. “Onde está você, Noroelle?”, perguntou-se Nuramon, baixinho.

Foi então que ele ouviu um sussurro que vinha de cima.

— Ela não está aqui, ela não esteve aqui!

Virou-se, surpreso, e viu apenas as duas amoreiras.

— Somos nós — ouviu dos ramos da maior das árvores.

— Vá até o pinheiro das fadas. Ele é sábio — disse a árvore menor. — Antes de ir, pegue algumas de nossas frutas!

— Mas não dizem por aí que as amoreiras que têm alma são conhecidas pela preocupação com suas frutas? — perguntou Nuramon, muito surpreso.

As folhas da árvore maior farfalharam.

— É verdade. Mas nós não somos como as nossas irmãs, desalmadas. Você irá encontrar Noroelle.

A árvore menor chacoalhou-se.

— Seria uma honra para nós que ela saboreasse as nossas frutas.

Duas amoras caíram diretamente sobre as mãos de Nuramon. A da árvore menor era vermelho-escura; a da maior, branca.

— Agradeço muito a vocês duas — disse Nuramon com a voz emocionada, pondo-se a caminho. Ele achava ter visto um pinheiro bem próximo da bétula.

Ao chegar ao pinheiro das fadas, lembrou-se delas. Quando era criança, brincava ali com as fadas das campinas. O pinheiro não era alto nem largo e na verdade era pouco vistoso. Mas era cercado de uma aura à qual nenhum frio resistia. Ele era dotado de um feitiço que o próprio Nuramon conhecia. O pinheiro tinha poderes de cura — ele sentia nitidamente.

Os seus galhos se moveram no vento.

— Quem é você que me incomoda? — sua copa sussurrou.

Um ruído instaurou-se em torno dele. Todos os lugares em que antes reinava o silêncio agora estavam tomados por sussurros.

— Quem é? — as árvores pareciam perguntar.

— Um elfinho de nada — foi a resposta.

O pinheiro das fadas pediu:

— Silêncio! Deixem-no responder!

— Eu sou só um humilde elfo — disse Nuramon. — E procuro a minha amada.

— Como você se chama, elfinho?

— Nuramon.

— Nuramon — ouviu soar de uma das copas. As outras árvores também murmuraram o seu nome.

— Já ouvi falar de você — esclareceu o pinheiro.

— De mim?

— Você mora numa casa na árvore, num carvalho que se chama Alaen Aikhwitan. A casa é feita da madeira que um dia já abrigou a alma da poderosa Ceren. Você conhece o Alaen Aikhwitan? E já ouviu falar em Ceren?

— Ceren eu não conheço, mas o Alaen Aikhwitan, sim. Sinto a sua presença quando estou em casa. A sua magia mantém a casa fresca no verão e aquecida no inverno. Foi com ele que minha mãe aprendeu a arte da cura e eu a aprendi com ela. Mas ele nunca se revelou para mim.

— Primeiro ele precisa se acostumar a você. Ainda é jovem. Os mensageiros dele me contaram... da sua solidão.

Nuramon tinha perguntas e mais perguntas na ponta da língua, mas a árvore por sua vez perguntou:

— Mas quem é a sua amada?

— Ela se chama Noroelle.

Um cochicho alegre circulou por entre as copas das árvores, e o nome de Noroelle também soou algumas vezes. Todavia, as vozes das árvores se confundiam de tal forma com o seu farfalhar característico que não era possível compreender o que diziam sobre ela.

Mas ele foi capaz de entender o pinheiro das fadas.

— Ela não está aqui, e tampouco esteve aqui esta noite.

— Mas a rainha disse que ela estava aqui no jardim.

— A rainha diz o que deve ser dito. Noroelle não está aqui, mas está perto. Vá até o terraço, ali onde há uma tília e uma oliveira lado a lado!

Nuramon gostaria de perguntar sobre Ceren, mas naquela hora era mais importante encontrar Noroelle. Ele então agradeceu à árvore e seguiu o caminho que o pinheiro indicou.

Logo viu a tília e a oliveira. Ficavam sobre a parede de pedra que alcançava até lá em cima, no terraço. Ao se aproximar, encontrou uma escada estreita que subia.

Ali estava Noroelle, de túnica branca, apoiada sobre o parapeito de pedra do terraço. Parecia um espírito que descera do luar. Ainda não o vira. Ele andou por baixo da tília. O pinheiro das fadas tinha razão: a rainha dissera o que devia ser dito. Ela teve o cuidado de trazê-lo a este lugar. Noroelle lá em cima, ele aqui embaixo! Esta situação remetia imediatamente a um poema declamado da sombra de uma tília para o alto, sob a luz da lua.

Noroelle disse alguma coisa. Estava falando com a lua? Ou com a noite? Agora ele se sentia no lugar errado, na hora errada. Ele a escutava sem que ela soubesse. Ela então virou-se para o outro lado. Ela não falava com a lua ou com a noite, mas com um elfo. Num piscar de olhos Nuramon viu para quem ela se voltara: Farodin.

Nuramon só queria ir adiante. Cambaleou da sombra da tília até a da oliveira. Recostado no tronco, deixava-se envolver pelas palavras que diziam lá em cima. Farodin falava num novo tom, e Noroelle parecia gostar. Pela primeira vez, expressava o seu amor do fundo do coração.

E então essa conversa também acabou...

Por entre os galhos, Nuramon observou Noroelle, sob a luz da lua, ceder à magia de Farodin. Nunca a vira tão feliz antes. Farodin despediu-se com um beijo e então se retirou. Noroelle permaneceu onde estava, sorridente, observando a noite. E porque Nuramon a amava, não podia evitar ele mesmo um sorriso. Não importava que Farodin tivesse vencido. A sua amada sorria, e isso o comovia.

Nuramon observou Noroelle por um bom tempo e viu o sorriso da face da sua amada desvanecer-se mais e mais, até ceder à tristeza. Seu sorriso também desapareceu. Prendeu a respiração ao ouvi-la pronunciar o seu nome na noite, em voz baixa. Farodin a fez sorrir, mas ela se afligia ao pensar nele. Ao ver as lágrimas correrem pelo rosto da feiticeira, não suportou mais. Tomou fôlego e sussurrou:

— Oh, ouça-me, graciosa filha de albos.

Noroelle se assustou.

— Ouça a voz da árvore!

Ela olhou para baixo, seus olhares se encontraram e logo ela voltou a sorrir.

— Eu a vejo aí, no vento da noite, como a fada do meu sonho.

Noroelle enxugou as lágrimas, respirou fundo e disse em voz baixa:

— Mas como um elfo pode se parecer com uma fada?

— Ora — começou ele, e logo continuou — o seu vestido é da cor das tílias. Ele brilha e me deixa cego de amor. — Foi da sombra da oliveira de volta para a da tília. — Acredite na voz de uma tília. Oh, ouça-me, graciosa filha de albos!

— Estou ouvindo, espírito da árvore. Mas é a primeira vez que ouço uma árvore recitar poesia!

Ele respondeu cochichando:

— Para mim também é difícil falar com voz de elfo para agradar a minha amada.

— Para mim foi como se também estivesse ouvindo uma oliveira falar.

— Nossas raízes são interligadas. Nós somos um espírito em dois troncos. Em nós se conectam o amor e a vida — retrucou ele.

— Não há bétulas bastantes aí embaixo? Por que você quer a mim?

— Como você está vendo, eu estou no fim do jardim, com o olhar levantado para você. A senhora deste lugar me disse que devo ficar ao lado daqueles que amam quando eles dizem palavras de amor à sua amada.

— Conheço este jardim, e sei que você só pode cochichar, e não falar. Você quebrou o seu silêncio por minha causa?

— Todos precisam em algum momento quebrar o seu silêncio. O infinito é longo e amplo.

— Então você me ama?

— Claro que sim.

Ele a viu tocar um galho.

— Você é uma árvore magnífica. E as suas folhas são macias. — Ela puxou o galho para junto de si e beijou uma folha. — Isso é bom, minha árvore?

— É como mágica. E gostaria de presenteá-la por isso.

— Um presente? Talvez uma oliva?

— Não. Todos os que pisam aí em cima pegam uma oliva, mesmo que eu não esteja de acordo. Não quero lhe presentear com algo de mim que todos podem ter. Para a minha amada é preciso que seja algo especial; nenhum custo é alto demais. Você sabe o ciúme que as amoreiras com alma têm de suas frutas?

— Sim. Por isso é mais esperto procurar as sem alma. Porque, para separar uma amoreira com alma de suas frutas, é necessário muito trabalho para convencê-la.

— Ora, mas foi exatamente isso o que fiz. Eu... Eu senti um vento soprar até as duas amoreiras cujas raízes as prendem ali no fim do jardim. Então as pedi que cada uma delas me entregasse uma fruta. De início elas se recusaram, dizendo que eu também era só uma árvore, afinal. O que é que eu podia fazer com as frutas? Mas quando elas descobriram que as frutas eram para você, então se tornaram generosas.

— Mas como elas fizeram para as amoras chegarem até você? Você está presa aqui e, como diz, estão bem longe de você.

— Ah, elas passaram de árvore em árvore e foram postas na grama, e então estiquei minhas raízes e fiz esforço o dia todo para alcançar o presente para a minha amada.

— Então você está com as amoras?

— Sim, e gostaria de entregá-las a você.

— Mas como? Quer que eu vá até você? Ou você as colocará em uma folha e as estenderá até mim com um galho?

— Nós, árvores, temos grandes poderes mágicos. Olhe aí! — Nuramon jogou a amora vermelha, que caiu sobre o parapeito do terraço, bem na frente de Noroelle. Atirou a amora branca a seguir, que Noroelle apanhou habilmente. — Chegaram as duas?

— Tenho uma na mão, e a outra está diante de mim. São tão lindas e tão frescas!

Nuramon viu a elfa comer as amoras. Observava seus lábios como se estivesse enfeitiçado.

Após ter saboreado as frutas, ela disse:

— Foram as amoras mais doces que já comi na minha vida. Mas, agora, o que será de nós, meu espírito de árvore?

— Você não quer vir até mim e criar raízes aqui embaixo?

— Mas você também pode soltar as suas raízes e subir as escadas até mim...

— Ouça-me! Escute a minha proposta! Na minha sombra há um rapaz dormindo e sonhando. Você por acaso gosta dele?

— Sim, junte-se a ele e venha até mim. O espírito por trás da sua voz no corpo dele é o que eu quero esta noite. Venha para mim, Nuramon!

O elfo hesitou. Hoje não era o dia dos milagres? Ele fora chamado para a Caçada dos Elfos. A rainha lhe revelou o seu oráculo. As árvores falaram com ele.

Criou coragem, pisou para fora da sombra da tília e subiu pela escada até o terraço, onde Noroelle o esperava. Primeiro quis manter distância dela, como sempre fazia, para não chegar perto demais. Não queria em hipótese alguma tocá-la. Mas ali estava ela, sedutora como nunca. O vento da noite fazia seu vestido e os longos cabelos flutuarem. Ela sorriu silenciosamente e inclinou a cabeça para o lado.

— Fiquei sabendo do que a rainha fez. Você deve imaginar o quanto estou feliz.

— E você não consegue esconder de mim a sua alegria.

— Eu sempre disse que um dia todos reconheceriam o seu verdadeiro ser. Eu sabia. Oh, Nuramon! — Ela mostrou-lhe as palmas das mãos e quis estendê-las em sua direção, mas se deteve.

Mas Nuramon venceu a timidez e segurou as mãos dela.

Noroelle olhou para baixo, como se precisasse se certificar de que eram mesmo as mãos dele que a tocavam.

Ele a beijou ternamente na face, fazendo-a suspirar. Quando os lábios dele lentamente se aproximaram dos seus, ela começou a tremer. E quando as bocas se tocaram, Nuramon sentiu como a tensão de Noroelle se dissolveu e ela retribuiu o beijo. Ela então pôs os braços ao seu redor e sussurrou-lhe ao ouvido:

— Na hora certa, Nuramon. Tão surpreendente.

Eles se olharam longamente, e Nuramon teve a sensação de que nunca tinha sido diferente entre eles.

Depois de algum tempo, Noroelle pediu:

— Conte-me o que aconteceu hoje.

Nuramon contou-lhe o que ocorrera, sem se esquecer do elogio velado que a rainha fez a ela. A ligação com Gaomee e a fala do oráculo pareceram emocioná-la em especial. Nuramon terminou com as palavras:

— Eu sinto a mudança. A rainha acendeu em mim um fogo que agora precisa queimar. Sou o mesmo de antes, mas agora finalmente consigo lidar com isso.

— É por isso que agora consegue me tocar?

— Antes eu tinha medo. E quando tenho medo, faço tolices. Tinha medo de que me rejeitasse; tinha medo de que me escolhesse. Era um dilema.

— Você e Farodin, vocês são únicos. Hoje no lago ainda parecia que você nunca se aproximaria de mim, e que Farodin também jamais me mostraria sequer um sopro de sua essência. Mas esta noite vocês dois se transformaram.

— Mas Farodin foi mais rápido que eu.

— Não seria correto, Nuramon... Só porque ele encontrou o caminho até mim primeiro? Devo puni-lo porque a rainha esteve com você? Não! Uma noite para mim é um momento só, e se ambos chegaram a mim esta noite, chegaram na mesma hora. Você vê o tempo como um bem escasso, Nuramon.

— É de se estranhar? Se sigo o caminho de meus antepassados, cada momento que me resta é precioso.

— Você não seguirá esse caminho. Você viverá muito tempo e caminhará no luar.

Nuramon olhou para a lua.

— É tão esquisito que a lua, algo que eu amo tanto, evite a minha alma por tanto tempo. — Ficou em silêncio e pensou em todas as histórias sobre a lua que já ouvira. Sua avó lhe contara sobre a lua no reino dos homens. — Você sabia que no mundo de Mandred a lua muda de formato?

— Não, nunca ouvi falar disso.

— Ela é muito menor que a nossa lua. E conforme os dias passam, ela emagrece, continua se transformando noite a noite em uma foice, até desaparecer totalmente. Então ela volta a crescer pouco a pouco até alcançar o seu tamanho completo.

— Isso soa como um feitiço. Eu não sei muito sobre o Outro Mundo. Aprendi algumas línguas com os meus pais. Mas no fundo não sei nada sobre o mundo dos homens. Que magia reina lá? Os elfos também podem passear no luar da terra dos homens? O que acontece se morrerem ali?

— Essas são perguntas que somente os sábios podem responder.

— Mas o que você acha, Nuramon?

— Eu acho que a magia que age lá é parecida com a nossa. Acredito que elfos podem andar no luar dos homens. Só que lá a lua fica mais distante. É uma viagem muito mais longa. E, se um elfo morre no reino dos homens, não é muito diferente do que acontece se perde a vida aqui. Porque para a morte todas as campinas são iguais. — Ele a encarou e viu um sopro de preocupação passar por seu rosto. — Você teme por nossa vida.

— A Caçada dos Elfos raramente chega até o reino dos homens. Você se lembra se algum elfo já morreu lá e voltou a nascer aqui?

— Dizem que um de meus antepassados teria morrido do outro lado. E veja! Eu estou aqui.

Ela riu, acariciou a face dele e voltou a observá-lo como que sob um encanto.

— O seu rosto é tão especial.

— E o seu é...

Ela escorregou os dedos por sobre os lábios dele.

— Não, você me disse essas palavras por anos e anos. Agora a ordem é: cale-se, lindo filho de albos! — Ela tirou os dedos de seus lábios, e ele permaneceu calado. Então passou suavemente os dedos pelo cabelo de Nuramon. — Você sempre pensou que as elfas só zombariam de você. E elas certamente gostam disso. Do seu nome, do seu destino... Elas fazem isso porque sempre foi assim. Mas a sua presença especial também não foi ignorada por elas. Você não vai acreditar em tudo o que já ouvi pelas suas costas, nos segredos que já ouvi cochicharem. — Nuramon queria dizer algo, mas Noroelle voltou a pousar as pontas dos dedos sobre a sua boca. — Não. Você agora precisa se calar, como ambas as árvores ali embaixo. — Recolheu a mão. — Você é muito mais que aquilo que as elfas normalmente veem em você. O oráculo tem razão. Tudo o que você é está dentro de você mesmo! E eu amo tudo o que está dentro de você, Nuramon. — E, então, ela o beijou.

Quando ela separou seus lábios dos dele e o encarou, Nuramon cautelosamente começou a falar.

— Tudo mudou. Mal posso acreditar que estou aqui com você, trocando estes carinhos e estas palavras. O que aconteceu? — Ele olhou ao redor de si, como se pudesse encontrar a resposta ali, no terraço, ou nas profundezas da noite.

— É algo que nem eu, nem você, nem Farodin teríamos conseguido realizar, mas somente a rainha. Agora o mundo se abriu para você.

— Não é o mundo aquilo pelo que anseio.

Ela balançou a cabeça afirmativamente.

— Depois que vocês voltarem, então tomarei minha decisão. Porque vocês já fizeram tudo o que podiam fazer. Agora é por minha conta... Confesso ter tido a esperança de que pudessem me cortejar ainda por muitos anos, mas isso era um sonho. Preciso escolher um de vocês. Será uma perda, tanto faz qual de vocês tenha de ser rejeitado! Mas que sorte grande para uma outra elfa!

Entreolharam-se em silêncio. Nuramon sabia o quanto uma rejeição seria dolorida. Para ele não havia outra elfa; nenhuma pela qual ele pudesse sentir um amor como este. Beijou mais uma vez as mãos dela, acariciou-lhe as bochechas e então pediu:

— Não vamos pensar nisso agora. Melhor que fique para quando Farodin e eu retornarmos.

Ela concordou com a cabeça.

— Amanhã você estará presente ou esta é a nossa despedida?

— Estarei lá — disse ela, em voz baixa.

— Então, mal posso esperar por amanhã. De que cor será o seu vestido?

— Verde. Foi Obilee que fez — perdida em pensamentos, afastou uma mecha de cabelo do rosto. Nuramon gostava desse seu gesto involuntário; ela tomava o cabelo entre os dedos anelar e mínimo ao puxá-lo para trás.

— Então o vestido com certeza é maravilhoso.

— Estou ansiosa para saber o que a rainha trará para você. O que quer que seja, será mais precioso que qualquer coisa que outra pessoa poderia lhe presentear.

— Presentear? Eu o aceitarei para a Caçada dos Elfos. Mas, quando retornarmos, devolverei a ela.

Noroelle não conteve um sorriso.

— Não, Nuramon. A rainha é generosa e não o aceitará de volta.

Ele a beijou na testa.

— Agora eu me vou, Noroelle.

— Quem sabe um de seus parentes ainda consiga ir vê-lo no seu quarto.

— Não, não acredito nisso — tomando as mãos dela, continuou —, mas quem sabe. — Olhou para cima, para as estrelas. — Esta noite tudo parece ser possível. — E soltando-se dela: — Boa noite, Noroelle.

Deu-lhe um beijo de despedida.

Nuramon deixou o terraço e, ao chegar à porta para o salão de festas, olhou mais uma vez para Noroelle. Ela era simplesmente perfeita. Nunca tinha visto isso com tanta clareza como neste momento.

Quando chegou ao corredor que levava aos quartos dos elfos caçadores, percebeu que agora todas as portas estavam fechadas. Os visitantes esperados já tinham apresentado seus cumprimentos, e ninguém parecia contar com mais visitas. A confusão de vozes que ainda se podia ouvir denunciava terem sido muitos os que vieram.

Parou diante de sua própria porta e pôs-se a escutar. Só o silêncio. Queria tanto que ao menos um de seus parentes tivesse superado as suas sombras e estivesse ali, esperando por ele. Nuramon abriu a porta e olhou para dentro. Ao lado da cama de fato havia uma silhueta imóvel, de costas para ele. Sua alegria durou só um minuto. Na sua ausência, alguém trouxera um suporte para a sua armadura que, à fraca luz das pedras, pareceu-lhe um elfo, de tanto que desejava uma visita.

Decepcionado, fechou a porta atrás de si. Aproximou-se do suporte e observou os presentes da rainha. Eram uma capa, uma armadura e uma espada curta.

Nuramon tirou a capa cor de vinho do suporte e sentiu-a com as mãos. Era pesada, feita de lã e linho; era tão trabalhada e tecida com tantos fios mágicos que nenhum golpe de vento ou gota d’água conseguiria atravessá-la ao longo do caminho. Ela o protegeria tanto do calor quanto do frio.

Noroelle tinha uma capa como aquela, que trouxera de Alvemer. Certamente não foi por acaso que a rainha mandou trazê-la. Um pedaço de Alvemer era um pedaço da terra natal de Noroelle. Se cavalgasse no inverno pelo mundo dos homens, ela o aqueceria.

Observou a armadura, curioso. Era feita da carcaça de um dragão. Armaduras como essa eram conhecidas por serem ao mesmo tempo resistentes e confortáveis. Para fabricá-las era preciso conhecer técnicas especiais. Era composta de incontáveis pedaços de couro de dragão, e protegia o tronco e os braços. Quem a fez era certamente um mestre naquele ofício. O couro de dragão foi cortado em muitos fragmentos pequenos, que então foram organizados e unidos da forma desejada. Entre cada pedaço foram fixados materiais em forma de gota, que aparentemente eram escamas de dragão cortadas no formato adequado. Mas se realmente o eram, só o artesão sabia — era o seu segredo. O couro tinha um cheiro agradável. O tratamento da pele acabou com o fedor típico dos dragões e deu lugar a um suave aroma de bosque.

Somente em Olvedes ainda se produziam armaduras de dragão, pois só lá o fogo cuspido por essas criaturas ainda representava um perigo. Os produtores de armaduras de Olvedes eram conhecidos e marcavam o seu símbolo nos trabalhos que executavam. Nuramon soltou o cinturão de armas e tirou a armadura do suporte. Procurou em seu interior a marca do mestre que confeccionou a incrível peça. Encontrou-a na região do busto. Havia a estampa de um sol e, logo abaixo, em letra pequena: Xeldaric.

Nuramon comoveu-se. Xeldaric era conhecido como um dos melhores artesãos de armaduras que já existiram. Ele partira para o luar após ter conseguido confeccionar para a rainha a sua obra-prima: uma armadura completa de albo. Nuramon ainda era criança quando ouviu a respeito dela. Xeldaric partiu para o luar na sala do trono do castelo, assim que a rainha recebeu a obra.

Vestir uma armadura feita pelas mãos de Xeldaric era uma grande honra. Mesmo quem não se esforçasse para encontrar a marca do mestre era capaz de reconhecer que aquele era um bem verdadeiramente nobre. Mesmo que à primeira vista não tivesse a uniformidade de uma armadura feita de chapas, cada um de seus pedaços estava no lugar certo e contava a história da caça ao dragão. A pele verde dos dragões de Olvedes fora trabalhada da mesma forma que o couro marrom dos dragões dos bosques de Galvelun e o dos dragões vermelhos do sol de Ischemon. Juntos, os fragmentos formavam um mosaico de cores da floresta que se misturavam umas às outras de forma natural.

Nuramon recolocou a armadura no suporte. Então pegou o cinturão da espada que colocara sobre a cama. Nele encontrou uma espada em uma bainha de couro simples. Seu pomo e guarda eram de ouro, ricamente enfeitados, e o punho feito de filetes de cobre e madrepérola. Nuramon puxou a arma da bainha e prendeu a respiração. A lâmina era forjada de lustre de estrelas, um metal que só se encontrava nos picos mais altos. A arma também era, como a armadura, uma obra-prima. No meio da guarda, bastante larga, havia runas incrustadas. Só ao olhar pela segunda vez Nuramon reconheceu quem era retratado ali: Gaomee! Ele tinha nas mãos a espada de Gaomee! Com esta arma ela derrotou Duanoc. E agora era ele quem a conduziria.

O chamado da rainha

Farodin despediu-se cedo das visitas. Queria ficar sozinho para pôr as ideias em ordem. Mal conseguia, pois do quarto vizinho vinha o barulho de um banquete. O filho de humanos era um maluco! Ninguém em seu juízo perfeito se embebedaria na noite anterior à Caçada dos Elfos. E uma risada relinchante revelava que Aigilaos o acompanhava nessa tolice.

Deitou-se sobre a cama dura, que já conhecia de outras noites, e deixou-se tomar por uma alegria serena ao relembrar os acontecimentos desta noite. Finalmente tomara coragem para se abrir para Noroelle. Ousara falar do seu amor com suas próprias e desajeitadas palavras. E o que milhares de canções não conseguiram, suas próprias frases, vindas do coração, finalmente alcançaram: tinha a certeza de ter ganhado Noroelle para si.

Batidas suaves na porta o arrancaram de seus pensamentos. Um duende carregando um lampião entrou no quarto.

— Desculpe-me por perturbar a sua tranquilidade na noite anterior à grande caçada, honorável senhor, mas a rainha gostaria de vê-lo. Siga-me, por favor.

Surpreso, o elfo alisou a túnica com as mãos. O que teria acontecido?

O duende olhou para fora, para o corredor. Seu nariz pareceu inchar enquanto buscava uma pista, como um cão farejador.

— O ar está limpo, honorável senhor. — Com saltos largos, percorreu apressado o corredor e abriu uma porta escondida atrás de uma tapeçaria na parede que retratava uma caçada de cervos. Conduziu Farodin subindo uma escada estreita, antes somente usada por duendes e gnomos. Abriu outra porta escondida sob um dos patamares da escada, por trás da qual se escondia um corredor azulejado. De tempos em tempos, o duende virava-se para Farodin, sorridente. Aparentemente estava gostando do papel que Emerelle lhe destinara.

Chegaram a uma escada em caracol oculta dentro de uma grande coluna. Através do muro, Farodin escutou uma música em volume baixo. Lembrou-se com angústia da última vez que Emerelle lhe atribuiu um encargo secreto. Mais de uma vez tivera de matar por ela. Durante as Guerras dos Trolls, havia setecentos anos, algo se quebrara dentro dele. Apenas a rainha sabia, e tirara proveito disso. Ele ocultou esse lado negro de sua alma. Na corte, todos conheciam somente o trovador elegante e um pouco superficial. Ao encontrar Noroelle pela primeira vez, brotou nele a esperança de voltar a ser aquele que já fora um dia. Somente ela seria capaz de operar esse milagre.

O duende parou no fim da escada, diante de um portão de madeira cinza.

— A partir daqui já não devo mais guiá-lo, honorável senhor. — Entregou o lampião a Farodin. — Você conhece o caminho. Estarei esperando aqui.

Ao cruzar o portão, Farodin sentiu uma suave lufada de vento no rosto. A melodia da canção que pairava no ar era uma velha conhecida sua. Quando criança, sua mãe sempre a cantava para ele. Falava do êxodo dos albos.

O corredor levou Farodin até a parte de trás da estátua de uma dríade. Com esforço, espremeu-se por uma fresta estreita entre a estátua e o muro e chegou a um pequeno mezanino, bem no alto da mesma sala em que a água corria. Olhando para cima, viu o telhado de uma torre, que fazia uma espiral como a concha de um caracol do mar.

— Alegro-me que tenha atendido ao meu chamado com tanta rapidez, Farodin — disse uma voz muito familiar. O guerreiro elfo voltou-se. Atrás dele estava Emerelle, de pé no mezanino. Vestia um robe leve e branco e trazia sobre os ombros um xale fino. — Estou muito preocupada, Farodin — prosseguiu Emerelle. — Uma aura de desgraça circunda o filho de humanos. Ele tem em si algo que se esquiva da minha magia, e me assusta a forma como veio parar aqui. É o primeiro filho de humanos a vir sem ser chamado. Até então, nenhum deles atravessara o portal para a Terra dos Albos com suas próprias forças.

— Talvez tenha sido por acaso — retrucou Farodin. — Um capricho da magia.

Emerelle balançou a cabeça, pensativa.

— Pode ser. Mas talvez haja mais por trás disso. Há algo do outro lado do círculo de pedras... algo que está se escondendo de mim. E Mandred tem relação com isso. Farodin, eu lhe peço, esteja especialmente alerta ao cavalgar até o Outro Mundo. A história de Mandred não pode ser verdade! Há muito tempo me aconselho com os anciãos. Nenhum deles jamais ouviu falar de um monstro meio homem, meio javali. — Emerelle fez uma pausa e, ao continuar, suas palavras não soavam mais preocupadas, mas frias e autoritárias. — Se o filho de humanos for um impostor, Farodin, então mate-o, assim como já matou em meu nome o príncipe de Arkadien e todos os outros inimigos da Terra dos Albos.

A noite no castelo dos elfos

Mandred recostou-se no corpo de Aigilaos. Essa birita vermelho-rubi que o centauro trouxe era realmente boa. Vinho! Mandred já ouvira falar dela, mas em Firnstayn bebia-se somente hidromel e cerveja.

Ergueu cambaleante o pesado copo dourado.

— À nossa amizade, Aigil… Ailalaos! Esse seu nome é impossível!

— Porque você ainda não ouviu os dos caolhos da montanha de pedra — retrucou o centauro, gaguejando. — Os trolls de Dailos, eles são pirados. Eles são tão malucos que arrancam um olho em homenagem ao seus heróis mais aclamados.

Mandred estava impressionado. Isso é que era lealdade! Algo assim certamente não havia entre os elfos! Eles eram tão... Não lhe ocorria nenhuma palavra apropriada. Frios, afetados, petulantes... Eles com certeza não sabiam celebrar! Foi para isso que trouxeram as taças e ofereceram esta pequena sala de festas para passar a noite. Mas quando ele e Aigilaos começaram realmente a se animar, então os elfos despediram-se um a um. Frouxos!

— Um homem que não sabe beber não é um homem de verdade!

— Sim, senhor! — concordou o centauro, com a voz rouca.

Vacilante, Mandred recuou um pouco para brindar mais uma vez com Aigilaos. Mas as taças douradas não eram muito boas para isso. Tudo o que os elfos faziam era bonito, mas não muito robusto. Sua taça já tinha amassado há muito tempo. Isso não teria acontecido com os chifres de hidromel. Por um momento, Mandred teve a preocupação de que se aborrecessem com ele. Mas os elfos tinham lhe dado ricos presentes. Se encrencassem por causa da taça, era só devolver algum deles.

O guerreiro observou-os, enfileirados no banco de pedra ao lado da porta. Um traje de malha de ferro que nem os nobres das terras do fiorde possuíam. Um elmo folheado a ouro com uma malha de ferro que chegava até a nuca. Uma aljava de couro ricamente bordada, repleta de flechas muito leves. Uma lança de lâmina azulada e reluzente. Uma suntuosa sela junto com ferraduras de prata. E a rainha lhe prometera que amanhã mandaria trazer um cavalo de seu próprio estábulo. Um que estivesse disposto o bastante para carregar até um filho de humanos, ela dissera. Mandred bufou, irritado. Como se um mero cavalo pudesse lhe causar aborrecimentos! Se o animal não se comportasse, ele simplesmente daria socos na sua cabeça, isso sempre funcionava. Ninguém gostava disso, nem mesmo cavalos teimosos.

— Você parece contrariado, amigo. — Aigilaos passou o braço pelos ombros de Mandred. — Logo vamos acabar com esse monstro. Você vai ver. Amanhã à noite vamos atravessar a cabeça dele com uma estaca e pendurá-la no meio da aldeia.

— Não é prudente cantar vitória antes da hora — disse uma voz familiar.

Mandred voltou-se. Na porta estava Ollowain, vestindo uma roupa impecavelmente branca. O elfo saltou um monte de estrume que sujava os mosaicos coloridos que enfeitavam o chão.

— Vocês conseguiram dar o charme de um estábulo a este quarto de caçador — disse ele, dando um sorriso de lábios finos. — Não vi ninguém conseguir essa proeza em todos esses séculos, desde que existe a Caçada dos Elfos.

Mandred colocou-se no caminho do elfo, com as pernas bem abertas.

— Pelo que entendi, a caçada também nunca foi conduzida por um humano antes.

Ollowain abanou a cabeça afirmativamente, pensativo.

— Mesmo os poderosos às vezes cometem erros. — Agarrou o cinturão que trazia no quadril e soltou-o. Embrulhou-o cuidadosamente em torno da bainha da espada e estendeu a arma a Mandred. — Eu não devia ter batido em você.

Mandred observou admirado a espada estreita, mas não a pegou.

— Por quê?

Não teria agido muito diferente de Ollowain. O que havia de desonroso em bater em alguém burro o suficiente para desafiar um oponente superior?

— Não é apropriado. Você é hóspede da rainha. — O elfo mostrou o rasgo em sua túnica. — Você não me acertou por um triz. Você, um humano! Isso me irritou... Mas, como disse, eu não devia ter batido em você. Você foi bem... para um humano.

Mandred pegou a espada. Era a arma que usara para lutar com Ollowain. Uma espada que parecia a de um rei.

— Na verdade não sou muito bom na luta de espada — retrucou Mandred, com um sorriso irônico. — Você devia ter me dado um machado.

As sobrancelhas de Ollowain tremeram um pouco, mas o resto de seu rosto permaneceu imóvel como uma máscara inexpressiva. Enfiou a mão por baixo de sua túnica e apanhou uma trança da grossura de um dedo. — Isso é seu, filho de humanos — seus olhos brilharam.

Mandred demorou um instante para entender o que era aquilo que Ollowain lhe estendia. Assustado, apalpou seu próprio cabelo. Ollowain segurava pouco acima de sua testa os curtos e destruídos restos de uma trança. Foi tomado pela fúria.

— Você... Você me mutilou, seu idiota dissimulado! Aberração! Elfo canalha! — Mandred quis puxar a espada, mas o cinto estava enrolado na guarda e na bainha, e ele não conseguiu puxá-la mais que uma polegada. Furioso, jogou a espada para longe e ergueu os punhos. — Vou socar esse seu lindo nariz até virar mingau!

O elfo desviou do golpe com um passo balançante.

— Vamos dar uma surra nele! — berrou Aigilaos, erguendo-se sobre as pernas de trás.

Ollowain mergulhou por baixo de suas patas da frente, que se agitavam no ar, ergueu-se novamente sobre as pernas com um movimento ágil e acertou um golpe no quadril do centauro.

Aigilaos deu um grito furioso. Ao baixar os cascos de volta para o chão liso de mosaico, escorregou em uma poça de vinho derramado.

Para desviar do centauro em queda, Mandred quis pular, mas o amigo tinha aberto os braços numa tentativa desesperada de se segurar nele. Então ambos caíram juntos no chão. A força do choque deixou Mandred sem ar. Ofegou por um instante, tentando recuperar a respiração. Com metade do corpo esmagada debaixo do centauro, ele mal conseguia se mexer.

Ollowain agarrou-o pelo braço e puxou-o para a frente por baixo de Aigilaos, enquanto este último tentava inutilmente se reerguer.

— Respire devagar! — ordenou o elfo.

Mandred arfava como um cão, e logo ficou tonto. Mas pouco a pouco finalmente recobrou a respiração.

— Como alguém se atreve a se embebedar uma noite antes de uma caçada perigosa? — Ollowain balançou a cabeça. — Todas as vezes que nos vemos, você consegue me fazer perder o autocontrole, Mandred Filho de Humanos! Se você não pensa em você mesmo, pense naqueles que o escoltarão. Amanhã você será o comandante, e responsável por eles! Vou mandar alguns duendes para cá para limpar toda esta sujeira, tirar o vinho de vocês e deixar aqui alguns baldes de água. Espero que até amanhã de manhã vocês tenham recuperado pelo menos um pouco da razão.

— Filhinho da mamãe — balbuciou Aigilaos. — Uma pessoa como você não é capaz de entender um homem de verdade.

O elfo sorriu.

— De fato, eu nunca tentei imaginar como um cavalo deve pensar.

Mandred permaneceu calado. Queria ter derrotado Ollowain, mas agora via que nunca teria chance contra ele. E o pior: lá no fundo, sabia que o elfo estava certo. Era estúpido se embebedar. Fora seduzido pelo doce e saboroso vinho e anestesiado pelo medo. Medo de que Freya já não estivesse mais viva; medo de enfrentar o homem-javali mais uma vez.

A despedida

A sala do trono raramente era tão movimentada quanto nesta manhã. Noroelle estava ali de pé, próxima a uma das paredes pelas quais a água fluía. Ao seu lado estava Obilee, em quem tanto confiava; tinha só quinze anos de idade e um porte gracioso. Seus gestos denunciavam sua timidez, e as expressões de seu rosto, a sua curiosidade. Ela vinha de Alvemer como Noroelle e parecia ser a irmã mais nova que ela sempre quisera ter. De cabelos louros e olhos verdes, Obilee mal tinha algo em comum com ela, mas eram íntimas como irmãs. Assim como Noroelle, tinha saído cedo da cidade de origem. Mas se Noroelle viera um dia com seus pais, Obilee fora entregue aos cuidados de Norolle por sua avó.

— Veja, Noroelle — sussurrou Obilee. — Todos estão olhando para você. Todos estão curiosos para saber o que seus amados levarão de você no caminho. Seja cuidadosa! Eles prestarão atenção em cada gesto e palavra. — Aproximou-se da orelha de Noroelle. — É neste momento que nascem os novos costumes.

Noroelle olhou em volta rapidamente. Sentir tantos pares de olhos sobre si causava-lhe mal-estar. Embora estivesse sempre na corte, ainda não se acostumara a isso. Respondeu baixinho:

— Você está enganada. É o vestido que eles estão olhando. Você se superou desta vez. Podem até achar que você tem mãos de fada.

— Talvez sejam os dois — disse Obilee, sorrindo. Então olhou por trás de Noroelle, e seu rosto foi tomado pela admiração.

Noroelle seguiu o olhar de sua fiel amiga e viu mestre Alvias, que se aproximava acenando amigavelmente com a cabeça.

— Noroelle, a rainha está no trono e quer vê-la.

A elfa percebeu vários olhares curiosos, mas escondeu a sua insegurança.

— Vou com você, Alvias. — E virando-se para Obilee: — Venha comigo!

— Mas ela só quer...

— Venha comigo, Obilee. — Noroelle agarrou a jovem elfa pela mão. — Ouça bem: agora vamos ver a rainha, e ela vai perguntar quem é você.

— Mas a rainha me conhece, não é? Ela conhece todos que estão aqui.

— Mas você ainda não foi apresentada a ela. Depois que eu indicar o seu nome, você pertencerá à sociedade da corte.

— Mas o que eu devo dizer?

— Só responda o que a rainha perguntar.

Alvias ficou calado; não se via em sua fisionomia nem um sorriso nem qualquer desconfiança. Noroelle e Obilee seguiram o mestre. As pessoas que Noroelle encontrou saudaram-na com palavras e gestos respeitosos. Ao chegarem diante da soberana, mestre Alvias pôs-se de lado, enquanto Noroelle e Obilee fizeram uma reverência.

— Minha saudações, Noroelle. — Emerelle olhou para Obilee e perguntou: — Quem é essa que você trouxe até mim?

Noroelle virou-se um pouco e apontou para a jovem elfa, num gesto elegante:

— Esta é Obilee, filha de Halvaric e Orone, de Alvemer.

Emerelle sorriu para a jovem elfa.

— Então você descende do clã da grande Danee. Você é bisneta dela. Todos nós observaremos o seu caminho. Com Noroelle você está em boas mãos. Noroelle, chegou aos meus ouvidos que um laço liga você à Caçada dos Elfos.

— É isso mesmo.

— Você é aquela que Farodin e Nuramon cortejam.

— Sim, é verdade.

— Uma Caçada dos Elfos em que a rainha e a amada não estejam de acordo está fadada ao fracasso desde o começo. Então lhe pergunto: na sua posição, você permite que seus amados participem da Caçada dos Elfos?

Noroelle não pôde evitar pensar no medo que preenchera seus sonhos na última noite; ela vira Farodin e Nuramon sofrerem. Apesar do orgulho que tinha deles, preferiria que eles não precisassem participar da caçada. Mas a pergunta da rainha era apenas uma formalidade. Noroelle não era livre para ir contra o desejo de Emerelle. Se a rainha pediu a ajuda de seus amados, Noroelle não podia impedi-la. Ela suspirou baixo e percebeu que o silêncio tomara conta da sala. O barulho da água era tudo o que se ouvia.

— Eu os cedo a você para a Caçada dos Elfos — disse por fim Noroelle. — No que você contar com eles, eles o farão por mim.

Emerelle levantou-se e aproximou-se de Noroelle. Disse:

— Então a rainha e a amada estão de acordo. — Ela tomou Noroelle e Obilee pela mão e conduziu-as degraus acima, ao lado do trono, para sentar-se novamente.

Noroelle ficava ali em pé com frequência, mas como em todas as outras vezes, sentia-se no lugar errado. Nos olhos de muitos dos presentes havia admiração, mas em outros via um ligeiro ar de deboche. Nenhum dos dois a agradava.

Com um gesto, a rainha pediu a Noroelle que se curvasse diante dela.

— Confie em mim, Noroelle — sussurrou em seu ouvido. — Já mandei muitos para a caçada. Farodin e Nuramon retornarão.

— Meus agradecimentos, Emerelle. Eu confio em você.

Mestre Alvias aproximou-se da rainha.

— Emerelle, eles estão aguardando diante do portão.

A rainha acenou com a cabeça a Alvias. Ele deu meia-volta, abriu os braços e gritou em alto e bom som:

— A Caçada dos Elfos está diante do portão. — Apontou o dedo para o outro lado da sala: — Uma vez iniciada, eles caçarão o seu alvo até cumprirem a tarefa, ou até fracassarem. Uma vez aberto este portão, não haverá mais volta para a caçada. — Ele atravessou a viela estreita que se formara no meio da sala. — Como sempre, é necessário aconselhar a rainha. — Encarou alguns dos presentes, que claramente representavam todos os demais. Então continuou: — Considerem a situação. Uma besta poderosa! Nas campinas dos humanos! Perto das nossas fronteiras! Deve a rainha manter o portão fechado e dessa forma tolerar que algo fique vagando lá fora, algo que um dia também pode nos ameaçar? Ou deve abrir o portão, para que possamos libertar dessa besta os humanos das terras do fiorde? Ambos os caminhos podem levar tanto à fortuna quanto à ruína. Caso o portão permaneça fechado, a besta pode um dia encontrar o caminho até nós. Mas, abrindo o portão, pode ser que o sangue dos elfos seja derramado em prol dos humanos. A escolha é de vocês. — Alvias apontou para Emerelle com um gesto suave. — Aconselhem a rainha sobre o que deve decidir! — com essas palavras, Alvias virou-se novamente para Emerelle e curvou-se diante dela.

Os olhares dos presentes dirigiam-se até o portão e de volta para a rainha. Logo algumas vozes se manifestaram, aconselhando Emerelle a abrir o portão. Mas havia outras que se pronunciaram contra. Noroelle viu que eram de parentes de Nuramon. Não esperava nada diferente. O medo estava escrito em seus rostos; mas não era por Nuramon, mas pelas consequências da morte dele.

A rainha perguntava a cada um deles por quais motivos se decidiam por isso ou por aquilo, e escutava pacientemente as explicações. Desta vez ela ouviu mais vozes do que jamais ouvira antes. Ao perguntar a Elemon, tio de Nuramon, por que ele queria ver o portão fechado, ele disse:

— Porque caso contrário, como Alvias disse, pode haver desventuras.

— Desventuras? — A rainha encarou-o com insistência. — Você tem razão. Isso poderia acontecer.

Então Pelveric, de Olvedes, tomou a frente. Sua palavra contava muito entre os guerreiros.

— Emerelle, pense no sangue de elfos que pode ser derramado. Por que devemos ajudar os humanos? O que temos a ver com suas dificuldades? Quando foi a última vez que nos ajudaram?

— Já faz muito tempo — foi só o que Emerelle respondeu a Pelveric. Ela finalmente virou-se para Noroelle e sussurrou: — O seu conselho é o que vou ouvir.

Noroelle hesitou. Podia aconselhar a rainha a manter o portão fechado, falando, como muitos outros, do sangue dos elfos e da ingratidão dos homens. Ela sabia, porém, que nessas palavras o que falaria era somente o amor pelos seus queridos. Mas aqui se tratava de algo maior do que ela própria. Disse baixinho:

— O meu coração teme pelos meus amados. Mas o certo é abrir o portão.

A rainha levantou-se solenemente. O barulho da água nas paredes aumentou devagar. Mais e mais água saía das fontes, descia paredes abaixo e desaguava ruidosamente no espelho-d’água. Emerelle olhava o portão. Parecia não perceber como o cintilante vapor de água se espalhava no ar, subindo para a ampla abertura no teto e lá fazendo surgir, sob a luz do sol, um grande arco-íris. De repente, as paredes por trás da água se acenderam. Um zumbido soou e uma lufada de vento atravessou a sala. As folhas do portão abriram-se para os lados, e o grupo da caçada ficou visível para todos. A água se acalmou, mas o vapor e o arco-íris permaneceram.

Os caçadores se detiveram embaixo do arco do portão por um instante, antes de entrar. À frente estava Mandred, o filho de humanos, que observava o arco-íris com muita admiração, mas cujo olhar logo encontrou a rainha. Atrás dele, à esquerda e à direita, vinham Farodin e Nuramon; mais atrás seguiam Brandan, o descobridor de rastros; Vanna, a feiticeira; Aigilaos, o arqueiro; e Lijema, a mãe dos lobos. Não era comum ver um homem participar da Caçada dos Elfos, embora seu porte fosse mais semelhante ao dos elfos que o de Aigilaos, o centauro. Entretanto, depois de todos aqueles anos, todos já haviam se habituado ao fato de que centauros podiam participar da Caçada dos Elfos. Mas um humano? Como Mandred vinha primeiro, isso tornava tudo ainda mais estranho. Sempre era um elfo quem liderava a caçada.

Nuramon e Farodin lembravam os heróis míticos. Farodin, como sempre, era uma visão imaculada, enquanto Nuramon correspondia ao ideal pela primeira vez aos olhos dos outros. Noroelle pôde reconhecer isso nitidamente nos rostos dos que os cercavam e estava feliz com isso. Mesmo que o seu prestígio pudesse durar pouco, ninguém podia privá-lo desse momento.

Os caçadores puseram-se diante da rainha. Ao chegarem diante da escada para o trono, os elfos curvaram-se sobre o joelho diante de Emerelle, e mesmo o centauro se esforçou para inclinar-se o máximo possível. Apenas Mandred permaneceu ereto, e parecia estar surpreso com a demonstração de respeito de seus companheiros. Estava a ponto de imitá-los quando a rainha dirigiu-se a ele na língua humana:

— Não, Mandred. No Outro Mundo você é o jarl da sua sociedade, um nobre entre os humanos. Você não precisa se pôr de joelhos diante da rainha dos elfos.

Mandred fez uma cara de surpresa e permaneceu calado.

— Todos os outros: levantem-se! — Emerelle disse, também em fiordlandês. Alguns dos presentes aparentemente não dominavam a língua e olharam para ela aborrecidos.

Fiordlandês! Os pais de Noroelle ensinaram-lhe muitas línguas humanas, mas ela nunca deixara a Terra dos Albos. Até agora, ela só conhecia a selvagem terra dos humanos em sua imaginação.

A rainha virou-se para Mandred.

— Das minhas mãos você recebeu uma dupla honra. Você é o primeiro filho de humanos a participar da Caçada dos Elfos. E além disso, convoquei-o como o líder. Não posso esperar de você que se comporte como um elfo. Essa escolha deixou muitos filhos de albos indignados. Mas a força de Atta Aikhjarto vive em você. Confio na sua intuição. Nenhum de nós conhece a sua terra como você, que será um bom líder para os seus companheiros. Mas, em tudo o que fizer, jamais se esqueça do que me prometeu.

— Eu mantenho a minha promessa, soberana.

Noroelle descobriu o pacto que o filho de humanos fez com a rainha. Examinava Mandred e estava surpresa com seus modos. Até então, não tivera nenhuma oportunidade de vê-lo, já que na noite anterior chegara à corte só mais tarde e não arriscara pisar na ala do palácio onde ficavam os aposentos dos caçadores. Contudo, ouvira muitos rumores sobre ele, embora provavelmente não fossem todos verdadeiros. Estava certa de que ele era largo como um urso e, à primeira vista, parecia um pouco ameaçador, com todo esse cabelo vermelho como o pôr do sol caindo de forma selvagem sobre os ombros. Algumas tranças finas se entrelaçavam ali no meio, e ele também tinha barba, como muitos dos centauros. Suas feições eram grosseiras, porém honestas. Ele lhe parecia estranhamente pálido e havia grandes anéis escuros sob seus olhos. Talvez não tivesse dormido de ansiedade? Certamente estava muito orgulhoso da homenagem da rainha. Ele agora carregava uma grande responsabilidade. Noroelle teve um arrepio só de pensar no preço que ele teria de pagar por essa ajuda. Ela jamais entregaria um filho seu, se é que um dia chegaria a ter um. Pensativa, encarou os seus dois pretendentes. A pergunta não era se, mas com qual deles ela um dia teria um filho.

Como se tivesse ouvido os seus pensamentos, Mandred encarou-a rapidamente e sorriu. Obilee agarrou a mão dela. Estava tremendo. Noroelle permaneceu calma e encarou os olhos azuis do filho de humanos. A presença dele certamente transmitia segurança, e ela podia tranquilamente confiar a ele os seus dois amados. Olhou para Nuramon e Farodin. Há vinte anos, desde que eles declararam seu amor por ela, um dos dois sempre esteve por perto. Agora ela ficaria sozinha, sem saber por quanto tempo.

— Vocês sabem o que fazer — disse a rainha. — Estão equipados e descansados. Estão prontos para partir?

Os caçadores responderam um após o outro, com as palavras:

— Eu estou pronto.

— Farodin e Nuramon, um passo adiante! — Ambos fizeram o que Emerelle ordenou. — Eu sou vossa rainha, e vocês estão sob minha proteção. Mas também estão ao dispor de uma elfa, e eu não posso falar por ela. Ela tomou a decisão. — Andou até Noroelle e conduziu-a degraus abaixo, até Farodin e Nuramon. Obilee a seguiu. — Aqui está ela.

Noroelle segurou a mão de ambos os homens e disse:

— Se estão ao meu dispor, vocês estão ao dispor da rainha.

— Então nós serviremos sempre a rainha — declarou Farodin.

— Que nossos atos tragam alegria a ambas — completou Nuramon.

Eles beijaram as mãos dela.

Noroelle sabia que agora viria a despedida. Mas era cedo demais; ela não queria dizer adeus a seus amados aqui, diante dos olhos de todos.

— A vossa amada ainda tem um desejo. Ela gostaria de acompanhá-los até o portão de Aikhjarto.

Farodin trocou um olhar com Nuramon. “Precisamos fazer o que nossa amada exige.”

A rainha sorriu e pegou a mão de Noroelle, assim como a de Obilee.

— Aqui, Mandred, trago-lhe estas duas, que estarão sob sua proteção até o portão. Trate-as bem.

— Assim o farei.

A rainha olhou para cima, como se pudesse ver algo na luz do sol coberta pelo vapor que não era visível aos olhos dos demais.

— O dia ainda é uma criança, Mandred! Vá e salve a sua aldeia!

Então Mandred colocou-se diante da Caçada dos Elfos, enquanto Noroelle e Obilee andavam no meio. No caminho, os filhos dos albos desejavam sorte aos caçadores. Noroelle virou-se e lançou um olhar para a rainha. Viu que estava de pé diante do trono e observava o grupo se distanciar com expressão preocupada. Estaria com medo de que algo os atingisse? Se era assim que se sentia, até agora Emerelle escondera bem os seus temores.

Obilee arrancou Noroelle de seus pensamentos.

— Eu também queria estar na Caçada dos Elfos — disse ela.

— Neste momento é como se você estivesse.

— Você sabe o que quero dizer — retrucou Obilee.

— É claro. Mas não ouviu o que a rainha disse? E eu também já não tinha avisado que você se parece com Danee? Um dia você também alcançará uma honra como essa, como uma grande feiticeira que também será mestre na arte da espada.

O grupo caminhou decididamente pelos salões até chegar ao ar livre. O pátio do castelo estava repleto de filhos de albos. Até os duendes e os gnomos tinham vindo para ver a Caçada dos Elfos partir. Uma caçada liderada por um humano era algo especial. Histórias sobre este dia seriam contadas por muitos e muitos anos.

Os cavalos dos caçadores estavam prontos e o equipamento já estava preparado. Apenas o centauro Aigilaos ainda amarrava algumas bolsas nas costas e reclamava baixinho da tensão que sentia na nuca. Parecia que para ele a última noite não tinha sido muito relaxante.

Enquanto mestre Alvias buscava mais dois cavalos, Noroelle observava Farodin e Nuramon. De repente eles pareciam tão inseguros... Logo os dois estariam separados dela. Que palavras ela podia dizer em tal situação? O que seria capaz de consolar os amados?

— A Caçada dos Elfos está pronta? — perguntou Mandred, como exigia o ritual. Os companheiros confirmaram com a cabeça, e o filho de humanos gritou: — Então vamos!

A Caçada dos Elfos pôs-se a caminho. Na frente cavalgava o filho de humanos e, atrás dele, Noroelle. À sua esquerda estava Nuramon, e à direita, Farodin. Atrás dela cavalgava Obilee, cercada por Brandan, Vanna e Aigilaos. Lijema fechava o pelotão. Altos gritos de despedida acompanharam-nos até o portão — os duendes eram insuperáveis nisso.

O grupo acabara de passar pelo portão e Noroelle não acreditava no que via. Na campina havia tantos filhos de albos como ela nunca vira antes. Todos queriam ver a partida da Caçada dos Elfos. No campo brilhavam sob o sol as asas das fadas das campinas; como todos sabiam, elas eram curiosas. Próximos ao caminho pelo qual o grupo seguiu estavam elfos do coração da Terra dos Albos, mas também dos lugares mais distantes do reino. Muitos não conseguiram chegar à corte no dia anterior, mas não queriam perder a partida da Caçada dos Elfos. Os companheiros esbarravam em cumprimentos por todos os lados. Mesmo nas colinas próximas ao bosque os elfos saíam das casas e acenavam para os enviados.

De repente, Noroelle viu uma pequena fada voar ao lado da cabeça de Mandred. O humano tentou acertá-la como faria com um inseto chato, mas errou o alvo. A fada gritou e veio voando até Noroelle. Mandred olhou em volta. Ele ouvira o grito, mas aparentemente não tinha visto a fada.

Aos poucos, ele foi aumentando a velocidade. Parecia estar gostando de cavalgar num cavalo de elfos. Queiram os deuses que ele não caia. Diziam que não tinha mostrado muito jeito ao cavalgar nas costas de Aigilaos.

Quando deixaram os filhos dos albos e suas saudações para trás, tendo diante de si somente as vastas campinas, Lijema ultrapassou-os à direita e logo posicionou-se ao lado de Mandred. Ele a olhou com surpresa. Mas Lijema tirou sua flauta de madeira do cinto e assoprou nela. Embora suas bochechas houvessem inflado visivelmente, não se ouviu nenhum som.

Logo a seguir Obilee gritou:

— Olhe lá! — Ela apontou para a direita. Algo branco se desprendera da sombra do bosque e se aproximava rapidamente.

— Lá estão eles! — disse Aigilaos.

— São sete! — contou Nuramon.

— Sete? — perguntou Farodin. — Inacreditável!

Mandred virou-se na sela.

— Sete o quê?

Noroelle sabia a resposta, como qualquer filho de albos. Eram os lobos brancos da Caçada dos Elfos. Ninguém sabia dizer quantos seguiriam a Caçada até que de fato se juntassem a ela. Quanto maior o número, mais importante era a ocasião e maior o perigo. Pelo menos era o que se contava por aí.

— Estes são nossos lobos! — gritou Lijema para Mandred.

— Lobos? Mas que raio de lobos imensos são esses!

Noroelle não conteve um sorriso. Os lobos de pelo branco e espesso eram do tamanho de pôneis.

— Eles são perigosos? — ouviu Mandred perguntar. Mas Lijema não entendeu, por causa do barulho do bater de cascos. — Eles são perigosos? — repetiu, mais alto.

Lijema sorriu.

— Mas é claro.

Quando os lobos os alcançaram, quatro deles colocaram-se diante da Caçada. Mais dois posicionaram-se à esquerda e à direita do grupo. O sétimo lobo corria bem ao lado de Lijema.

Logo que chegaram ao início da floresta, pararam para lançar um último olhar de volta ao castelo da rainha. Mesmo Mandred parecia estar emocionado. Farodin e Nuramon também não podiam desviar o olhar. Principalmente o rosto de Nuramon denunciava a preocupação que sentia por trás, enquanto Farodin tentava manter seus sentimentos ocultos. Mas Noroelle conseguia enxergar por trás da sua máscara de sangue-frio.

Os lobos estavam impacientes e cercaram o cavalo de Mandred. O filho de humanos parecia não saber muito bem como lidar com eles. Nunca os perdia de vista. Ele certamente já deve ter tido experiências negativas, pensou Noroelle. Talvez no seu mundo os lobos sejam um grande perigo, como os lobos de Galvelun eram para os filhos dos albos. Quando Mandred percebeu o olhar de Noroelle, abaixou-se na sela. Como se quisesse provar sua coragem, acariciou a pele do pescoço do lobo maior. O animal gostou!

— Devemos ir adiante? — perguntou o filho de humanos. O lobo rosnou e encarou Mandred.

Lijema riu.

— Ele não fala fiordlandês, mas gosta de você.

Lijema explicou aos lobos em élfico o porquê de não conseguirem entender Mandred, e então traduziu o que ele perguntara. O lobo abaixou bem a cabeça e de repente ficou inquieto. Os outros também se deixaram contagiar e andavam em círculos, para a frente e de volta para Mandred. Os lobos queriam continuar.

— Então eles entendem o que você diz?

— Cada palavra. São mais espertos que alguns elfos, pode acreditar.

— E eles? Como falam? — Mandred quis saber.

Lijema acariciou a pele do maior dos lobos brancos.

— Eles têm sua própria língua, e eu a domino.

Noroelle sorriu. Era fácil entender esse humano. Pela forma como ele observou o grande lobo, levantou uma sobrancelha e ao mesmo tempo mordeu o lábio, ele só podia estar pensando uma coisa: um lobo como esse seria um companheiro de caça perfeito.

— Eles com certeza são os melhores parceiros de caça — disse Mandred.

Noroelle precisou se controlar para não rir alto.

— Isso mesmo — respondeu Lijema ao filho de humanos.

— Eles são tão fiéis quanto cachorros?

Lijema riu animadamente.

— Não, você não pode compará-los a cães. Eles são muito mais espertos. Diga mais uma vez o que você acabou de dizer.

— Em fiordlandês?

— Sim.

— Devemos ir adiante?

E mais uma vez os animais ficaram inquietos e esperaram até que finalmente continuassem.

— Então vamos lá! — gritou Mandred, e o grupo continuou seu caminho.

O silêncio entre Noroelle e seus amados continuava. Os sete lobos aumentaram a preocupação de Noroelle com eles. Os animais intuíam o tamanho do perigo que esperava os caçadores. Eles mesmos decidiam qual seria o tamanho da matilha que se juntaria à Caçada dos Elfos. Quando Gaomee cavalgou para enfrentar o dragão Duanoc, oito lobos a acompanharam. Que criatura podia ser essa que esperava do outro lado do círculo de pedra? Noroelle de fato confiava na capacidade de seus amados, mas mesmo grandes heróis já morreram na batalha. E se acontecesse o pior? E se Nuramon estivesse enganado e as almas dos elfos que morrem no reino dos homens não renascessem na Terra dos Albos?

Passaram pelo Carvalho dos Faunos e pelo Lago de Noroelle. Ainda ontem estivera aqui com Farodin e Nuramon. Noroelle se perguntava se voltaria a ver um dia como esse.

Quando a torre de fortificação ao pé da ponte Shalyn Falah surgiu no horizonte, fizeram uma breve parada para se despedir de Aigilaos; ele não podia atravessar a ponte branca com as ferraduras em seus cascos. O centauro praguejou várias vezes contra a velha construção.

— Vejo vocês no portal — disse ele, e saiu trotando.

Noroelle seguiu o centauro com os olhos, e pensou em todas as histórias sobre ele que se ouviam por aí. Ele certamente invejava os cavalos dos elfos, que sem ferraduras e com toda a sua agilidade eram capazes de cavalgar sobre a ponte sem dificuldade.

— Mas então por que ele ferrou os próprios cascos, se é esse o motivo de não poder passar pela ponte? — perguntou Mandred.

— Dizem que os duendes da corte contaram a ele que, com ferraduras, ele conseguiria cavalgar mais rápido — respondeu Lijema. — Agora ele acha que é mais rápido, mas precisa ir pelo desvio.

Mandred riu.

— Isso parece mesmo coisa do Aigilaos!

Continuaram o caminho. Próximo à torre da Shalyn Falah, Ollowain aguardava o grupo. Mandred recebeu-o com frieza, o que o fez abrir um sorriso divertido. Atravessaram o portão rapidamente. Noroelle perguntava-se o que teria ocorrido entre Ollowain e Mandred.

Eles atravessaram a Shalyn Falah e, do outro lado, seguiram pelo largo caminho que passava pelas ruínas de Welruun. Um dia os trolls destruíram o círculo de pedras. Ela própria não presenciara o fato, mas as árvores se lembravam dele, como os espíritos da floresta. Antes, o portal de Welruun levava a um dos principados dos trolls. Ali Noroelle sentia nitidamente os poderes das sete trilhas albas, que se cruzavam formando uma grande estrela — a estrela dos albos. Os trolls haviam fechado o portal. E nenhum elfo sabia qual fora a mágica que usaram para isso.

A mata tornava-se cada vez mais densa. Noroelle lembrou-se de quando vinha com frequência a este bosque. Gostava dele. Os companheiros desceram pelo caminho entre as bétulas e finalmente chegaram à grande clareira, onde havia a colina com o círculo de pedra. Foi nas ruínas da torre que, certo dia, Landowyn dera o último golpe contra os trolls. Triste, Noroelle pensava em quantos elfos haviam morrido ali.

O grupo se deteve ao pé da colina para esperar por Aigilaos. Mandred apeou e, silencioso, distanciou-se dos companheiros. Queria ir até Atta Aikhjarto.

Noroelle ouvira dizer que o carvalho salvara a sua vida. Ela se perguntava o que Atta Aikhjarto vira em Mandred. O Carvalho dos Elfos certa vez contara a ela que o velho Atta Aikhjarto podia prever o futuro. Então o que será que o velho carvalho sabia, para decidir sacrificar a sua força para salvar um filho de humanos?

Noroelle deixou que Farodin a ajudasse a descer do cavalo. Nuramon chegou tarde demais, e por isso foi Obilee quem ele ajudou a apear. O gesto de Nuramon agradou tanto a jovem elfa que a deixou com as faces coradas. Ele conduziu-a até Noroelle.

Sentaram-se juntos sobre a grama, mas ainda era cedo demais para palavras. Logo os outros companheiros também se calaram. Até os lobos estavam estranhamente quietos.

Só quando Aigilaos chegou eles voltaram a falar.

— Demorei demais? — perguntou ele, sem fôlego. O suor brilhava no seu tronco.

— Não, Aigilaos. Não se preocupe — disse Noroelle.

O centauro estava esgotado e precisava descansar. Mais uma vez o silêncio tomou conta do grupo.

Agora era Mandred quem estava faltando, e então a Caçada dos Elfos partiria definitivamente. Mais de uma hora se passou até que o filho de humanos retornasse até eles. Noroelle daria tudo para saber o que Mandred descobrira junto a Atta Aikhjarto. Mas ele só perguntou:

— Estão prontos?

Os companheiros confirmaram com a cabeça. Noroelle sentia-se um pouco culpada. Sabia que o silêncio do grupo era sua culpa e agora queria consertar a situação.

— Venham, eu os acompanharei até lá em cima, até o círculo de pedras.

No caminho até o topo, Noroelle sentiu o poder da estrela alba como uma lufada de vento que ia de encontro a ela. O lugar não perdera nada de sua magia. Recostado em uma pedra, ali estava Xern, olhando para dentro do círculo, cujo centro estava tomado de névoa. Sem se voltar, ele perguntou:

— Quem vai entrar? — como falou em fiordlandês, aparentemente sabia que era Mandred.

O filho de humanos tomou a dianteira e respondeu:

— A Caçada dos Elfos!

Xern virou-se para eles.

— Então o portal está aberto para vocês. Mandred, você chegou a este mundo quase sem nenhuma fagulha de vida. E você o deixa com a força de Atta Aikhjarto. Que os poderes dele protejam você e o seu grupo! — Mostrou com a mão a cortina de fumaça.

Farodin e Nuramon encararam Noroelle, cheios de expectativa. Ela finalmente quebrou o longo silêncio.

— Lembrem-se de que estão fazendo isso por mim. Lembrem-se de que os amo muito, os dois. Cuidem um do outro; é o que peço a vocês.

— Cuidarei de Farodin com a minha vida — disse Nuramon.

Farodin confirmou:

— O sofrimento de Nuramon será o meu próprio. O que afetá-lo afetará a mim também.

— Por todos os albos! Suplico a vocês: não descuidem de vocês mesmos para proteger os outros. Não tomem conta só dos outros, mas também de vocês mesmos. Eu não quero que o destino tome minha decisão por mim de forma dolorosa. Retornem os dois!

— Farei de tudo para que ambos retornemos — disse Farodin.

— E eu prometo que nós dois retornaremos — acrescentou Nuramon.

Farodin parecia surpreso de ver seu companheiro prometer algo que não podia. Afinal, quem sabia o que aconteceria lá fora? Mas era justamente essa promessa que Noroelle queria ouvir.

Ela fez um sinal a Obilee e voltou-se novamente para seus amados.

— Gostaria de lhes dar um presente que os fará lembrar de mim durante a viagem.

Obilee trouxe duas bolsinhas. Noroelle apanhou-as e entregou uma a Farodin e outra a Nuramon.

— Abram! — pediu ela.

Ambos obedeceram o seu desejo e olharam o conteúdo. Enquanto Nuramon só sorriu, Farodin disse surpreso:

— Amoras!

— Elas carregam um feitiço — explicou ela. — Darão força a vocês e enchem a barriga mais do que podem imaginar. Pensem em mim quando comerem!

Os dois trocaram um breve olhar. Nuramon então disse:

— Faremos isso. E não só quando as comermos.

Noroelle abraçou Farodin primeiro e deu-lhe um beijo de despedida. Ele queria dizer algo, mas ela pôs os dedos sobre seus lábios.

— Não. Sem palavras de despedida. Sem doces juras de amor. Eu sei o que você sente. Sua língua não precisa dizer o que já vejo no seu rosto. Uma só palavra e você vai me fazer chorar. E eu ainda estou sorrindo. — Ele se calou e acariciou os cabelos da elfa.

Noroelle soltou-se de Farodin e abraçou Nuramon, beijando-o também. Ele tomou-lhe o rosto entre as mãos e olhou-a longamente, como se quisesse guardar a sua visão na memória nos mínimos detalhes. Sorriu pela última vez e soltou-a.

Os caçadores montaram em seus cavalos, exceto Aigilaos, que não precisava fazer isso, e já observavam a cortina de fumaça. Mandred então gritou:

— Sigam-me, companheiros!

E a Caçada dos Elfos adentrou o círculo de pedras.

Farodin e Nuramon cavalgavam atrás dos lobos, no fim do grupo. Olharam para trás, para Noroelle, uma última vez... e então também desapareceram na névoa.

Xern afastou-se do círculo de pedras e começou a caminhar lentamente. Obilee agarrou a mão de Noroelle. Quando a névoa se dissipou, um grande medo se apoderou da elfa. Tinha a sensação de ter visto Farodin e Nuramon pela última vez.

O mundo dos homens

Quando a névoa se dissipou, o hálito gelado do mundo dos homens acertou os caçadores como um golpe. Nuramon murmurou algumas magias de calor para expulsar o frio ao menos de suas roupas. Olhou em volta, curioso. Eles estavam em um círculo de pedras, no topo de um alto penhasco. Bem lá embaixo havia um vilarejo.

Mandred guiou seu cavalo até a borda do penhasco, dando a impressão de querer atirá-lo profundezas abaixo. Aparentemente o vilarejo do outro lado do fiorde exercia sobre ele uma enorme força de atração. Devia ser essa a aldeia sobre a qual ele falara na corte.

— Encontrei o rastro! — gritou Brandan. — Está muito fresco, como se o tal homem-javali tivesse estado aqui agora mesmo.

O lugar era exposto ao vento e lá em cima não havia nada para comer. O que teria mantido a besta ali por tanto tempo? Teria ficado esperando? Nuramon não conteve um sorriso. É claro que era loucura.

— Mandred! — chamou Farodin, com uma voz cortante.

O filho de humanos se juntou a eles, puxando as rédeas e afastando sua égua do penhasco.

— Desculpem. Eu só precisava saber como estão os meus semelhantes. A besta parece ainda não ter atacado Firnstayn.

Ele tomou a dianteira do grupo e conduziu-o penhasco abaixo. A alcateia caminhava dispersa na frente deles. Eles também haviam encontrado a pista do homem-javali.

Embora o rastro claramente conduzisse para longe da aldeia, Nuramon tinha a impressão de que o filho de humanos ficava mais inquieto a cada momento.

— Há algo de errado, Mandred? — perguntou a ele.

— Os cavalos — murmurou o guerreiro, com a voz sufocada. — Eles são enfeitiçados, não são?

Nuramon não entendeu o que ele queria dizer.

— Por que enfeitiçaríamos os cavalos?

— Eles não afundam na neve. Não pode ser. Aqui a neve está pelo menos na altura dos joelhos.

Nuramon percebeu Farodin e Brandan sorrirem um para o outro. Sabiam de alguma coisa?

— E por que os cavalos deveriam afundar na neve?

— Porque assim é! — Mandred refreou a égua. — Se os cavalos não estão enfeitiçados, então é a neve que está — ele se jogou da sela e num instante afundou na neve até os joelhos.

Brandan riu.

— Eu não acho engraçado — interferiu Aigilaos, correndo até Mandred e deixando pegadas profundas atrás de si. — Esses orelhas pontudas estão se divertindo às nossas custas. Até hoje não entendi como eles conseguem andar sobre a neve. Feitiço com certeza não é. E também não depende de os cavalos terem ou não ferraduras.

Nuramon esperava que o filho de humanos ficasse ofendido, mas de repente um brilho reluziu em seus olhos.

— Vocês acham que a rainha me daria o cavalo de presente quando nós voltarmos?

— Se você tiver êxito, talvez, humano — opinou Farodin.

— Vocês acham que um dos meus garanhões poderia cruzar com essa égua?

Aigilaos deu uma gargalhada relinchante.

Nuramon achou a ideia bizarra. O que o filho de humanos estava pensando?

— Não podemos ficar aqui à toa, fazendo piada — advertiu Vanna. — Logo vai começar a nevar. Precisamos prosseguir, senão vamos perder o rastro.

Mandred montou e o bando pôs-se novamente em movimento, seguindo o rastro. Nuramon percorreu as terras com os olhos. Imaginara o mundo dos homens de outra maneira. Aqui a neve era rígida e áspera, e as cadeias de montanhas tinham saliências tão irregulares que era difícil gravar a paisagem na memória. Nada parecia combinar com nada. Como encontrariam o homem-javali neste caos? Mil coisas atraíam o seu olhar, por serem diferentes de como eram na Terra dos Albos.

Todas essas novas impressões deixavam Nuramon cansado. Ele esfregou os olhos. Este mundo parecia vasto demais para o olhar. Quando via uma árvore, mal conseguia observá-la como um todo, de tanto que as suas particularidades o atraíam. Também era difícil estimar as distâncias — as coisas pareciam estar mais próximas do que de fato estavam, dando-lhe a impressão de que este mundo era muito apertado. Agora entendia por que a rainha convocara Mandred como líder. Tudo isso era familiar para ele.

O grupo seguiu a pista da besta durante todo o dia. Eles cavalgavam rápido quando seguiam o rastro numa campina aberta e cautelosamente quando adentravam bosques ou passavam por terrenos pedregosos. Estavam sempre prestes a dar de cara com o alvo. Ao menos era essa a impressão que Nuramon tinha.

Nas últimas horas, Brandan enfatizara que o rastro do homem-javali lhe parecia estranho. Simplesmente tinha a impressão de ser sempre fresco demais. Era como se a neve se recusasse a cair sobre suas pegadas. Isso deixava Nuramon inquieto, e Lijema também tinha no rosto uma expressão preocupada. Os outros pareciam levar o aviso de Brandan a sério, mas nenhum deles parecia duvidar de que cumpririam a sua missão. A Caçada dos Elfos partira, e agora os lobos, que corriam com gosto, causavam em Nuramon a sensação de que nada nem ninguém poderia detê-los, mesmo neste mundo esquisito.

À tarde a neve deu uma trégua aos caçadores. As pegadas levavam para dentro de um bosque denso, onde a besta podia estar à espreita em qualquer lugar. Mandred, então, ordenou que deveriam encontrar um lugar para acampar. Brandan memorizou a direção das pegadas e então seguiu Mandred. A expressão de Farodin tornou-se estranhamente desconfiada, tanto que Nuramon não foi capaz de interpretá-la direito.

Chegaram à borda da floresta e ali montaram seu acampamento. Aigilaos estava com fome e queria caçar de qualquer jeito. Ele seguiu algumas pegadas acompanhado por Brandan.

Nuramon e Farodin apearam. Vanna, a feiticeira, fez uma pequena fogueira no meio do acampamento. Seus pensamentos pareciam estar longe. Algo a preocupava. Lijema e Mandred se ocuparam dos lobos. A mãe dos animais esclareceu ao filho de humanos tudo o que ele queria saber. Estavam calmos, o que Nuramon via como um bom sinal.

Farodin soltou uma das selas e então parou para respirar.

— Foi assim que você imaginou a Caçada dos Elfos?

— Para dizer a verdade, não.

— De fora tudo parece sempre bem mais bonito e reluzente. Nós seguimos a pista da nossa presa, a abatemos e, em seguida, retornamos até a nossa soberana. No fundo é muito simples.

— Você já esteve aqui no mundo dos homens, não?

— Sim, várias vezes. Lembro-me da última vez. Tivemos de encontrar um traidor e levá-lo até a rainha. Foi como agora. Mal atravessamos o portal, também já encontramos a pista. Poucas horas mais tarde já estávamos no caminho de volta. Mas não foi uma Caçada dos Elfos de verdade.

— E então? Para você o Outro Mundo parece tão estranho quanto para mim?

— Você está falando da sensação de aperto?

— Sim, exatamente disso.

— É por causa do ar. A rainha me explicou uma vez. O ar daqui é diferente. Não é tão puro quanto o nosso.

Nuramon refletia.

— Aqui tudo é diferente — prosseguiu Farodin. — É em vão querer encontrar a beleza e a pureza da Terra dos Albos. As coisas não combinam. — Ele apontou para um carvalho. — Aquela árvore não combina com esta aqui — disse, tocando o carvalho que havia perto de si. — Na nossa terra as coisas são diferentes, mas estão sempre em harmonia. Não é de surpreender que os homens achem os nossos campos tão lindos.

Nuramon se calou. Apesar de tudo isso, achava o Outro Mundo fascinante. Aqui havia muito a descobrir. E, uma vez conhecendo o segredo deste mundo, então talvez seria possível encontrar harmonia nele.

— Para Mandred tudo parece estar em harmonia — disse baixinho, e lançou um olhar rápido sobre o filho de humanos.

— Mas ele não tem os sentidos apurados como os nossos.

Nuramon concordou com a cabeça; Farodin tinha razão. Mas... Talvez houvesse uma ordem por trás de tudo ali, cuja compreensão exigisse sentidos ainda mais apurados — mais até que os dos elfos.

Quando todo o trabalho já tinha sido feito, Nuramon sentou-se e deixou seu olhar passear pela paisagem. Farodin juntou-se a ele, oferecendo-lhe amoras da sua bolsa.

Nuramon ficou surpreso.

— Devo mesmo?

O companheiro consentiu.

Ele aceitou a oferta de Farodin. Comeram algumas amoras juntos e em silêncio.

Quando o pôr do sol se aproximou, Lijema perguntou onde estariam Brandan e Aigilaos.

Nuramon levantou-se.

— Vou buscar os dois.

— Devo ir junto? — perguntou Farodin.

—Não. — Ele olhou para a feiticeira. — É melhor perguntar para Vanna se está tudo bem — sussurrou. — Ela está há muito tempo calada, remoendo alguma coisa.

Farodin sorriu e ergueu-se para se juntar à feiticeira. Nuramon deixou o acampamento, seguindo as pegadas de Aigilaos e Brandan.

A trilha dos dois era fácil de seguir. As marcas das botas de Brandan de fato eram difíceis de reconhecer, mas Aigilaos deixara sulcos profundos na neve. Nuramon olhou para os pés várias vezes, pensando em Mandred e em como ele afundava no chão coberto de branco. Talvez fosse mesmo um feitiço o que fazia com que ele andasse sobre a neve sem afundar. Tentou deixar pegadas nítidas, e até conseguiu. Mas precisava se concentrar e pisar da forma mais desajeitada possível. Do contrário, seus pés se recusavam a afundar.

Pouco depois, as pegadas se tornaram diferentes. Nuramon viu que ambos os companheiros começaram a seguir a pista de um cervo. Logo depois se separaram: Aigilaos foi para a esquerda, enquanto Brandan seguiu à direita. O rastro do cervo seguiu em frente. Nuramon seguiu as pegadas de Aigilaos, porque eram mais fáceis de reconhecer.

De repente ouviu algo. Deteve-se e ficou à espreita. Primeiro escutou só o vento que soprava através da floresta. Depois ouviu um ruído baixo. Não devia ser nada além de um pouco de gelo soprado sobre uma árvore. Mas o ruído se repetia o tempo todo. Às vezes era mais longo, às vezes mais curto. Talvez fosse um animal da floresta. Mas também podia ser a besta que estavam caçando.

Cautelosamente, Nuramon deslizou a mão até a espada. Pensava se devia gritar por Aigilaos e Brandan, mas decidiu não fazê-lo. O centauro, temperamental como era, certamente apontaria sua lança para ele, caso se precipitasse e espantasse a caça com seu chamado.

O barulho parecia estar bem perto. Mas Nuramon não queria confiar demais nos seus sentidos. Esse mundo os enganava tanto! Hoje seus olhos já tinham lhe pregado peças o bastante. Seus ouvidos podiam estar fazendo o mesmo.

Com cuidado, Nuramon abandonou a pista de Aigilaos para ir atrás do ruído. Logo viu uma clareira entre as árvores. O barulho parecia vir dali.

Quando chegou à borda da clareira, Nuramon fez o reconhecimento da área. Quase no meio havia três carvalhos. O vento trouxe até ele um cheiro desagradável, que perdurou por um momento. Havia algo de errado nesse cheiro. Mas, para os sentidos dos elfos, o que havia de certo neste mundo?

Adentrou a clareira cuidadosamente e olhou em volta. Não havia ninguém. Mas a cada passo que dava, o ruído ficava mais alto. Qualquer que fosse a sua origem, era certo que estava ali, atrás das três árvores. Apertou com mais força o cabo gelado da espada. Quando já estava quase junto às árvores, viu à sua esquerda um amplo rastro que vinha da floresta. Eram as pegadas de Aigilaos!

Ele se apressou na direção dos três carvalhos. O zumbido se tornara horrivelmente alto e nítido. Quebrada e caída na neve, havia uma tiara de testa. Nuramon contornou rápido o pequeno grupo de árvores — e não acreditou no que seus olhos viram.

Diante dele, na neve, estava Aigilaos! Tinha a cabeça muito inclinada para trás e a boca aberta emitia aquele som. Sua barba cacheada estava toda coberta de sangue. E, no seu pescoço, Nuramon viu quatro feridas estreitas. Se não fosse por elas, certamente os gritos do centauro teriam sido ouvidos em toda a floresta. Mas, naquele estado, mal era capaz de emitir qualquer som. Sua voz tinha sido quase arrancada. O seu grito não era nada mais que um longo e tênue sopro de ar que saía de sua garganta.

No rosto de Aigilaos estava estampada a maior dor que Nuramon já vira em um ser vivo. Tinha os olhos enormemente arregalados. A todo momento se encolhia, queria gritar, mas só conseguia soltar um ruído doloroso.

As quatro patas do centauro estavam quebradas, e uma delas tinha o osso exposto. O longo ventre estava rasgado, expondo suas vísceras. Uma grande poça de sangue congelado se formara na neve. Um dos braços estava enterrado por baixo do corpo; o outro, deslocado e quebrado como as pernas. Na pele havia grandes feridas, como se um grande predador o tivesse atacado.

Nuramon não conseguia imaginar o tamanho da dor que Aigilaos devia estar sentindo. Nunca tinha visto um ser tão destroçado como o centauro estava agora.

— Farodin! Mandred! — gritou ele, indeciso entre ir buscar ajuda ou tentar fazer algo por Aigilaos. Olhou para as próprias mãos e viu como elas tremiam. Precisava fazer alguma coisa! Com certeza os companheiros no acampamento tinham ouvido o seu chamado.

— Vou ajudá-lo, Aigilaos!

O centauro parou com seus gritos sem voz, e, trêmulo, olhou para Nuramon.

Não havia esperança. Só a ferida no ventre já era suficiente para matá-lo. E as feridas no pescoço também tinham causado muitos danos. Devia mentir para Aigilaos?

— Primeiro vou tentar aliviar as suas dores. — Nuramon pôs as mãos sobre a testa de Aigilaos e encarou seus olhos cheios de lágrimas. Era um milagre que ainda estivesse consciente. — Tente aguentar só mais um instante! — disse Nuramon, concentrando-se no feitiço.

Nuramon começou a sentir um formigamento nas pontas dos dedos. Prestou atenção na pulsação do amigo e sentiu um calafrio descer por seus braços até as mãos. Percebeu a testa de Aigilaos se aquecer sob seus dedos. Sentiu o pulso acelerado do centauro e percebeu as batidas de seu próprio coração se ajustarem às do companheiro. Então os batimentos de ambos se tornaram mais lentos, e Aigilaos se acalmou. Isso já era bastante, mesmo que não fosse mais possível salvar o centauro.

Quando tirou as mãos da testa de Aigilaos, Nuramon percebeu como sua expressão aos poucos se tornava mais relaxada. Com todo o sangue que via, continuava surpreso que o centauro ainda estivesse consciente. Decidiu arriscar e tentar impedir a morte do colega, mesmo que isso parecesse inútil. Não tinha experiência com centauros. Quem sabe ele pudesse sobreviver aos ferimentos? Pousou cuidadosamente a mão sobre a garganta aberta do ferido.

Aigilaos já não sentia mais dor e o olhava gravemente nos olhos. Então chacoalhou a cabeça e olhou para a espada do elfo.

Nuramon estava horrorizado. Aigilaos sabia que era o seu fim. E agora ele deveria erguer a espada de Gaomee para aliviar o centauro com uma morte rápida. A espada com a qual Gaomee certa vez abatera Duanoc numa luta heroica agora tinha de ser manchada com o sangue de um companheiro.

Nuramon hesitou, mas o olhar do centauro era de súplica, e ele não podia evitar. Tinha de fazê-lo. Por compaixão! Então puxou a espada.

Aigilaos consentiu com a cabeça.

— Nos vemos de novo na próxima vida, Aigilaos!

Ele ergueu a arma e deixou-a descer. Mas a ponta da espada se deteve pouco antes de acertar o peito do centauro. Aigilaos olhou para cima, sem acreditar.

— Eu não posso — disse Nuramon, desesperado, balançando a cabeça. As palavras que dissera ao se despedir do centauro repicavam em sua alma como um sino violento. “Nos vemos de novo na próxima vida!” Quem era capaz de dizer algo assim? Nuramon não tinha certeza se a alma de Aigilaos encontraria seu caminho de volta deste mundo até a Terra dos Albos. Se tirasse a sua vida aqui, poderia privá-lo para sempre da chance de renascer.

Nuramon jogou a espada de lado. Quase manchara a arma com o sangue do parceiro. Só lhe restava uma coisa: lançar mão de seus poderes mágicos para tentar salvar o colega.

Checou de novo as feridas no pescoço. Mandred descrevera o javali como uma fera boçal. Mas essas feridas foram cortadas na pele de forma tão precisa que pareciam ter sido feitas por uma faca. A besta que caçavam seria capaz de manejar armas? Ou teria sido outra fera quem estraçalhou Aigilaos dessa maneira? O que surpreendia Nuramon era que, a não ser pelo sangue do colega, não se via mais nenhuma pista, nem mesmo a continuação do rastro do cervo que Aigilaos caçava. Também não se via nada de Brandan. Talvez também estivesse caído por aí, em algum lugar da floresta, igualmente ferido.

Nuramon sufocou o desejo de chamar pelos demais companheiros. Só atrairia a besta com isso. Com muito cuidado, pôs as mãos sobre as feridas. E mal pensara no feitiço, seus dedos já voltaram a formigar — mas dessa vez sem o arrepio que há pouco sentira nos braços. Em vez disso, o formigamento virou uma dor, que veio das pontas dos dedos e se espalhou pelas mãos e por todas as juntas. A dor pela cura! Era nessa troca que consistia o seu feitiço. Quando a dor finalmente diminuiu, Nuramon soltou as mãos de Aigilaos e observou o seu pescoço. As feridas tinham fechado.

Ao observar o corte aberto na barriga, soube que suas forças ali não conseguiriam nada. Seria necessário um encanto que reanimasse todo o corpo. Abaixou-se sobre o tronco de Aigilaos.

— Aigilaos, agora você consegue falar? — perguntou ao centauro.

— Não faça isso, Nuramon! — pediu Aigilaos, rouco. — Pegue a espada e dê um fim a isso!

Nuramon pôs as mãos sobre as têmporas de Aigilaos.

— É só um pouco de dor.

Ele sabia muito bem que ferimentos maiores causavam-lhe dores maiores. Mas ainda assim tentou se concentrar e respirar calmamente.

— Desejo a você a sorte dos albos, meu amigo — disse o centauro.

Em vez de responder, Nuramon deixou seus poderes mágicos fluírem de suas mãos pelo corpo de Aigilaos. Ele pensou em todos que já havia curado. Tinham sido muitas árvores e animais e, mais raramente, até elfos.

De uma só vez, uma dor aguda atravessou suas mãos e lhe subiu pelos braços. Esse era o preço da cura, e tinha de suportá-lo! A dor então foi crescendo e tornando-se monstruosa. Nuramon fechou os olhos, tentando lutar contra ela. Mas todas as suas tentativas de dispersar a dor falhavam, e era como se um raio o estivesse atingindo na cabeça. Ele sabia que bastaria se soltar para que a dor passasse. Mas então Aigilaos estaria perdido.

Não havia apenas as incontáveis feridas e o grande dano resultante do ferimento na barriga; havia ainda algo mais — algo que Nuramon não conseguia tirar. Seria um veneno? Ou um feitiço? Nuramon tentava relaxar, mas a dor era forte demais. Sentiu suas mãos se contraírem e todo o seu tronco começar a tremer.

— Nuramon! Nuramon! — ele ouviu uma voz rouca gritar. — Por todos os deuses!

— Quieto! Ele está curando-o! — disse a voz de um elfo. — Oh, Nuramon!

A dor crescia, e Nuramon apertava os dentes. Aquele sofrimento parecia não ter fim; só aumentava mais e mais. Ele sentiu que começava a perder os sentidos. Por um momento pensou em Noroelle. E de repente a dor sumiu.

Tudo ficou em silêncio.

Nuramon abriu os olhos devagar, e viu o rosto de Farodin sobre ele.

— Diga alguma coisa, Nuramon!

— Aigilaos? — foi tudo o que saiu de seus lábios.

Farodin olhou para o lado e então de volta para ele, e chacoalhou a cabeça.

Ouviu Mandred gritar bem perto:

— Não. Acorde! Acorde de novo! Não vá assim! Diga alguma coisa!

Mas o centauro continuava quieto.

Nuramon tentou se levantar. Aos poucos, suas forças retornavam. Farodin ajudou-o a se erguer.

— Você podia ter morrido — sussurrou ele.

Nuramon baixou os olhos até Aigilaos; Mandred chorava debruçado sobre ele. Embora os traços do centauro morto parecessem relaxados, o seu cadáver ainda era uma visão pavorosa.

— Você se esqueceu do que prometeu a Noroelle?

— Não, não esqueci — sussurrou Nuramon. — E foi por isso que Aigilaos teve de morrer.

Nuramon quis se virar e ir embora, mas Farodin deteve-o com força.

— Você não teria conseguido salvá-lo.

— E se tivesse conseguido?

Farodin calou-se.

Mandred levantou-se e virou-se para eles.

— Ele disse alguma coisa? — Mandred encarava Nuramon cheio de expectativa.

— Ele me desejou sorte.

— Você tentou de tudo. Eu sei disso. — As palavras de Mandred não eram capazes de consolar Nuramon.

Ele pegou a espada de volta, observou-a e lembrou do desejo de Aigilaos. Isso ele não podia contar a Mandred.

— O que aconteceu? E onde está Brandan? — perguntou Farodin.

— Não faço ideia — retrucou Nuramon lentamente.

Mandred chacoalhou a cabeça.

— Estaremos com sorte se ele ainda estiver vivo. — Olhou para Aigilaos e suspirou ruidosamente. — Por todos os deuses! Ninguém devia morrer assim. — Então olhou em volta. — Droga! Agora está escuro demais!

— Então vamos encontrar Brandan rápido — disse Farodin.

Lançaram um último olhar sobre Aigilaos e decidiram voltar para apanhá-lo mais tarde, à noite, caso isso fosse possível de alguma forma.

Nuramon conduziu Farodin e Mandred de volta para o rastro de Brandan. A noite já havia coberto a floresta com seu manto escuro.

— Se ao menos eu tivesse trazido do acampamento as pedras de barin! — disse Farodin. A trilha já era difícil de seguir por si só, mas naquele breu era praticamente impossível. Eles não eram bons leitores de rastros.

De repente, um uivo monstruoso soou um pouco atrás deles. Os três se voltaram. Mandred então gritou:

— O acampamento! Vamos!

Eles correram de volta. Nuramon tinha a impressão de que Mandred tinha muita dificuldade para se movimentar na escuridão. Ele esbarrava o tempo todo em galhos baixos, até que finalmente recuou para correr atrás de Farodin, seguindo-o. O filho de humanos praguejava por afundar até as canelas na neve, enquanto os elfos percorriam a distância com pés leves por cima dela.

Finalmente alcançaram o acampamento. Estava abandonado. A fogueira ardia e os cavalos estavam quietos, mas Vanna, Lijema e os lobos haviam desaparecido. Enquanto Farodin se ajoelhava ao lado dos alforjes de sua sela, Nuramon deu a volta no acampamento, procurando pegadas. Mandred estava como se paralisado, pensando que tudo estava perdido.

A floresta estava silenciosa.

Nuramon encontrou o rastro dos lobos e das elfas. Seguiam pela borda da floresta. Não se viam quaisquer sinais de luta ou algo do tipo. Mal anunciou a descoberta a seus companheiros, Farodin atirou-lhe uma pedra mágica. Jogou também outra para Mandred. Elas eram claras e iluminavam o caminho com uma intensa luz branca.

Quando ouviram um uivo alto vindo da floresta, puseram-se novamente a caminho. Chamavam o tempo todo por Vanna e Lijema, mas não havia resposta.

Então encontraram um rastro de sangue. Seguiram-no. Aparentemente, os lobos, Vanna e Lijema já haviam seguido o mesmo rastro antes deles. Logo se depararam com um dos lobos. Tinha a garganta dilacerada e já não se mexia. Estava morto. Tomados pela preocupação, continuaram seguindo as pegadas. O clima era sinistro: a cada poucos passos, sempre descobriam novos rastros de sangue.

Ouviram outro uivo. De repente, viram por entre as árvores os lobos brancos saltando freneticamente. Atacavam uma sombra. Um vulto enorme, que se defendia com golpes selvagens em torno de si. O ganido de um lobo transformou-se num uivo abafado de dor. E, em seguida, um grito agudo, feminino, rasgou a floresta.

Nuramon, Farodin e Mandred chegaram a uma clareira. O brilho de suas pedras mágicas afastava a escuridão. Nuramon viu os lobos perseguirem um vulto grande e agachado e desaparecerem na floresta.

A luz de Nuramon encontrou Vanna, a feiticeira, no meio da clareira.

— Voltem! Não temos tempo para vingança! —, gritou para os lobos. Mas eles não a ouviam. A feiticeira pôs-se de joelhos e inclinou-se sobre algo.

Mandred e Farodin já estavam bem perto dela. Nuramon só ousava se aproximar lentamente, olhando em volta. Três lobos jaziam mortos na clareira, entre eles, o líder. Havia algo atravessado em suas costas. Nuramon sentiu um forte cheiro no ar. Era o mesmo fedor que sentira antes, perto de Aigilaos. Devia ser o cheiro do suor da besta.

Quando Nuramon alcançou os companheiros, viu sob a luz das pedras de barin que Vanna estava curvada sobre Lijema. Quando a feiticeira se ergueu, Nuramon pôde ver que a mãe dos lobos tinha o peito destroçado. Algo havia perfurado o seu corpo e despedaçado coração e pulmões. Seus olhos ainda brilhavam, mas a face estava paralisada numa máscara horrorizada de morte. Vanna pressionou seu rosto carinhosamente contra o dela.

— O que aconteceu? — perguntou Farodin.

Vanna continuou calada.

Farodin agarrou a feiticeira pelos ombros e chacoalhou-a de leve.

— Vanna!

Com os olhos arregalados, ela parecia olhar através de Farodin. Apontou para o lado.

— Ali atrás da árvore está Brandan. A besta o pegou...

Vanna não terminou a frase.

Nuramon pôs-se em marcha. Queria chegar a Brandan o mais rápido possível. Tinha medo, pois não podia evitar pensar em Aigilaos. Enquanto isso, Mandred e Farodin começaram a discutir. O filho de humanos queria perseguir a besta, mas Farodin não queria permitir. Como eles eram capazes de brigar por algo assim agora? Talvez Brandan ainda estivesse vivo!

Nuramon chegou aos limites da floresta e encontrou Brandan. O descobridor de rastros estava deitado no chão. Tinha leves feridas nas têmporas e na perna. De fato, estava inconsciente, mas respirava lentamente e seu coração ainda batia. Nuramon pôs suas mãos mágicas sobre os ferimentos na cabeça e na perna. Sentiu o formigamento começar e logo seguiu-se a dor. Por fim, as feridas cicatrizaram sob seus dedos. Isso devia bastar por enquanto. Mais tarde o curaria completamente.

Com esforço, Nuramon tomou Brandan nos braços e, com passos pesados, começou a voltar até os outros. Graças ao peso extra, seus pés afundavam na neve. Ouviu a voz paciente de Farodin tentando convencer Mandred.

— A fera está brincando conosco. Não devemos nos deixar levar e fazer qualquer coisa sem pensar direito. Amanhã vamos atrás dela!

— Como quiser — retrucou Mandred, contrariado.

Quando viram Nuramon, foi visível o medo que os tomou. Andaram ao seu encontro.

— Ele está...? — balbuciou Mandred.

— Não, ele está vivo. Mas precisamos levá-lo até o acampamento.

Calados, Farodin, Vanna e Mandred deixaram a clareira.

O caminho de volta até o acampamento foi cansativo. Mandred carregou Brandan, enquanto Farodin e Nuramon levaram o corpo de Lijema. Deixaram os lobos onde estavam. Durante o percurso, Mandred tentou acordar Brandan. Mas o descobridor de rastros estava profundamente inconsciente.

Chegando ao acampamento, Farodin se encarregou de Lijema, embrulhando seu corpo em um cobertor. Mandred e Vanna sentaram-se perto do fogo, atentos aos sons da floresta. Nuramon os observava enquanto a cabeça de Brandan descansava sobre suas mãos, recebendo a sua magia. A postura do filho de humanos e da feiticeira dizia mais do que qualquer palavra. Dois membros da Caçada dos Elfos estavam mortos; seus lobos que não haviam morrido estavam desaparecidos.

Nuramon observou a lua. O que sua avó disse estava certo. Só se podia ver metade do astro, e ela era muito menor do que na Terra dos Albos. Voltou a pensar na conversa que teve com Noroelle. O que acontecia quando se morria na reino dos homens? Esperava que Lijema pudesse renascer. Quanto aos centauros, ele realmente não sabia. Alguns filhos de albos dizem que eles vão direto para o luar ao morrerem. Esperava que as almas dos seus colegas mortos não estivessem perdidas.

Quando a dor se arrastou do corpo de Brandan para suas mãos, Nuramon fechou os olhos e pensou em Aigilaos. Farodin estava certo: ele já não podia ser salvo. Em seguida, pensando em em Noroelle e na promessa que fizera, questionou-se sobre a culpa pela morte do centauro. Talvez com um pouco mais de esforço tivesse conseguido salvá-lo.

A dor desvaneceu de repente e Nuramon abriu os olhos. Farodin, Mandred e Vanna estavam ao seu lado, com a preocupação estampada em seus rostos. Ele soltou Brandan.

— Não tenham medo. Está tudo bem.

Pouco depois, Brandan despertou. Todos ficaram aliviados. Ele se sentia cansado, mas conseguiu contar o que aconteceu.

— De repente a besta estava lá, com aquele fedor. Foi como se eu estivesse paralisado. Não consegui fazer nada. Nada!

Ele fora golpeado pela fera até ficar inconsciente e serviu de isca para os demais. A última coisa de que se lembrava era de um terrível grito de agonia.

Nuramon contou a Brandan e Vanna o que aconteceu com Aigilaos. Descreveu o seu fim em todos os detalhes, omitindo somente que Aigilaos suplicara-lhe a morte. Os rostos dos companheiros refletiam puro horror.

Farodin sacudiu a cabeça.

— Há alguma coisa de estranho com esse tal homem-javali. Ele é mais que uma fera grosseira.

Mandred retrucou:

— Seja o que for, só vamos conseguir acabar com ele se não nos separarmos mais. Vamos nos revezar para ficar de guarda para não sermos surpreendidos por esse porco maldito.

Antes que decidissem sobre o primeiro turno da guarda, dois lobos voltaram ao acampamento, em silêncio e com o rabo entre as pernas. Não estavam feridos. Mandred ficou feliz em vê-los e acariciou a cabeça de um deles. Vanna se encarregou do outro. Os lobos estavam esgotados e fediam como o homem-javali.

— O que é aquilo ali? — perguntou Farodin, apontando para o focinho do lobo que estava com Mandred.

Para Nuramon, parecia sangue.

O filho de humanos examinou melhor.

— É sangue congelado. Vejam como é claro!

Nuramon percebeu um brilho prateado, mas não era capaz de dizer se era por causa do gelo.

Todos observaram melhor o sangue. Mandred então disse:

— Então é possível ferir a besta. Amanhã vamos descobrir onde ela está e dar o troco!

Farodin sacudiu a cabeça, resoluto. Nuramon e Brandan também concordaram.

Só Vanna não respondeu. Observava o focinho do seu lobo, que também parecia ensanguentado.

— O que há com você?

A feiticeira ergueu-se, deixou o lobo e se colocou entre Nuramon e Farodin. Tinha uma expressão preocupada, e inspirou profundamente.

— Ouçam bem. Esta Caçada dos Elfos não é como as outras. E não estou dizendo isso porque falhamos terrivelmente e dois companheiros estão mortos.

— O que isso quer dizer? — perguntou Mandred. — Você está sabendo de algo que não sabemos?

— No início era só uma suspeita. Ela me parecia tão equivocada que não disse nada, assim descartei-a de imediato. Eu sentia uma presença diferente, que me era familiar. Quando estávamos na pista da besta, prestei atenção no seu cheiro. E de novo tive aquela sensação, mas apenas o mau cheiro não era uma prova suficiente. Quando finalmente fiquei de frente com ela e vi como os lobos a enfrentavam; quando eu olhei nos seus olhos azuis e ela lançou mão de sua magia para ferir Lijema dessa forma, então eu soube com o que estamos lidando. Eu ainda não queria acreditar. Mas agora que estou vendo esse sangue não há mais dúvida... — Ela se calou.

— Do quê? — pressionou Mandred.

— Talvez isso não diga muita coisa para você, Mandred, mas a criatura que você chama de homem-javali não é nada mais do que um devanthar, um ser demoníaco do tempo dos albos.

Nuramon estava perplexo. Não era possível! O mesmo horror que ele sentia estava estampado no rosto de Farodin e Brandan. Era verdade que Nuramon sabia muito pouco sobre os devanthares, mas diziam que eram seres das sombras que praticavam tão somente o caos e a destruição. Os albos os combateram e os exterminaram. Era o que as lendas contavam; mas nelas só havia poucas palavras dedicadas a aqueles demônios. Diziam que eles podiam mudar de aparência e que eram feiticeiros poderosos. Provavelmente só a rainha sabia realmente do que se tratava. Mas Nuramon não achava que Emerelle os enviaria se soubesse que o alvo da caçada era um ser das sombras como esse. O que Vanna disse não podia ser verdade!

Farodin encarou a feiticeira com uma expressão neutra e disse o que Nuramon estava pensando:

— Isso é impossível! Você sabe.

— Sim, foi o mesmo que pensei. Mesmo quando vi esse ser claramente diante de mim, eu não queria acreditar. Tentei me convencer de que estava enganada. Mas o sangue com esse estranho brilho prateado me abriu os olhos. Esse ser é um devanthar.

— Bom, você é a feiticeira... É você quem tem a sabedoria dos nossos ancestrais — disse Farodin, nem um pouco convencido com a constatação da feiticeira.

— O que devemos fazer agora? — perguntou Brandan em voz baixa.

O olhar de Vanna passeou por todos eles.

— Nós somos a Caçada dos Elfos e precisamos pôr um fim nisso. Então vamos lutar contra um ser que foi um adversário à altura dos albos.

O terror estava estampado nas feições de Mandred. Só agora ele parecia entender do que Vanna estava falando. Aparentemente, os albos e seu imenso poder eram conhecidos até entre os humanos. Podia ser que para Mandred eles fossem algo parecido com deuses.

— Ainda não houve um elfo que tenha conseguido matar um devanthar — desafiou Farodin.

Nuramon trocou um olhar com Farodin, e mais uma vez pensou na promessa que fizera a Noroelle.

— Então nós seremos os primeiros! — disse ele, decidido.

O sussuro das sombras

Farodin se recolhera nas sombras da borda da floresta. Mais um pouco e o último turno de vigília estaria terminado. Eles haviam decidido deixar o acampamento ainda antes da alvorada para buscar o rastro do devanthar. Permaneceriam juntos. Não deixariam que a criatura brincasse com eles mais uma vez e os usasse de isca.

Depois de muito queimar, a fogueira transformara-se numa pilha de brasas escuras. O elfo evitava olhar diretamente para a luz para não prejudicar sua visão noturna. Ouviam-se roncos baixos. Mandred de fato estava dormindo. Desde ontem, quando viu do topo do penhasco que sua aldeia não fora devastada, ele mudou de comportamento. Apesar de todos os sustos, mantinha-se calmo. Aparentemente ainda estava convencido de que a Caçada dos Elfos mataria o monstro — mesmo depois de Vanna ter revelado contra quem eles foram lançados. A confiança ingênua do humano na caçada tinha algo de enternecedora.

De canto de olho Farodin percebeu um movimento. A menos de vinte passos de distância, debaixo das árvores, havia uma sombra. Farodin empunhou o arco que repousava em seu colo, mas a seguir baixou a arma novamente. Os troncos e a mata espessa tornavam impossível dar um tiro bem mirado. A criatura queria provocá-lo, mas ele não entraria no jogo.

O elfo tirou algumas flechas da aljava e fincou-as na neve diante de si. Assim poderia atirar mais rápido em caso de necessidade. Caso o devanthar tentasse sair da floresta para atacar o acampamento, dispararia contra ele ao menos três vezes. Invulnerável ele com certeza não era! Já era hora de pagar pelo que tinha feito.

Farodin piscou os olhos. A criatura estaria realmente ali, do outro lado? Ou era a escuridão que lhe pregava uma peça? Quando se observa uma floresta sinistra por tempo demais, pode-se ver qualquer coisa nela.

“Controle-se”, o guerreiro elfo ralhou consigo mesmo em pensamento. Uma brisa leve varreu o manto branco que cobria o campo. Bem fundo na mata, um galho estalou. Um dos dois lobos ergueu a cabeça e olhou para os limites da floresta, ali onde Farodin vira uma sombra. Emitiu um som de lamento e afundou a cabeça no macio gelado da neve.

Um forte fedor tomou conta do ar. Foi o tempo de uma inspiração, e logo sentia-se novamente só o odor fresco do frio.

— Espero vocês nas montanhas, Farodin Mãos Sujas de Sangue. Não se demorem.

O elfo se assustou. As palavras... escutara-as dentro dele.

— Apareça! — Sua voz era somente um sussurro. Ainda não queria assustar os outros.

— Mais uma vez encontro um de vocês sozinho — zombou a voz na sua cabeça. — Você se acha bom demais, Farodin. Não seria mais inteligente acordar seus colegas?

“Por que devo fazer o que você espera? A previsibilidade é a melhor amiga da derrota. Por que devemos comparecer a um lugar escolhido por você?”, pensou o elfo.

— É importante fazer as coisas no local e na hora certa. Você planeja o local e a hora quando viaja para as missões da rainha.

“Por isso eu conheço o motivo para não ouvir você”, retrucou o elfo.

— Sou capaz de matar cada um de vocês só com o pensamento. Vocês mal são um pálido reflexo dos albos. Esperava mais quando mandei o filho de humanos para o seu mundo.

Farodin olhou para o local do acampamento. Ainda podia ouvir o ronco baixo de Mandred. Devia confiar nas palavras de um devanthar? A rainha tinha razão em sua suspeita?

— Você acredita que o filho de humanos teria conseguido cruzar o portal com suas próprias forças?

“Então por que você quase matou seu enviado?”

— Para que fosse convincente. Ele não sabia a serviço de quem estava. Então a rainha não pôde descobrir qualquer mentira em suas palavras.

“Se você deseja a nossa morte, então resolva isso agora, no acampamento. Vou acordar os outros!”

— Não! Pergunte a Mandred sobre a caverna de Luth. Esperarei vocês lá daqui a três dias, à tarde.

Farodin pensou se devia tentar enrolá-lo mais um pouco, para conseguir acordar os outros. Talvez os lobos o tivessem ferido. Se ele se sentia invencível, por que não aparecia? Deviam matá-lo aqui e agora! Não negociaria com ele!

— Só com o pensamento já tenho força para matar, Farodin. Não me obrigue a fazer isso!

“Por que ainda estamos vivos?”, perguntou o elfo, bastante seguro de si.

— Neste mesmo momento o coração de Brandan parou de bater, Farodin Mãos Sujas de Sangue. Sua dúvida o matou. Se daqui a três dias não estiverem nas montanhas, então será essa a morte que vocês todos encontrarão. Achei que fosse um guerreiro. Pense bem: se quer morrer com a espada na mão sob o olhar do inimigo ou como Brandan, dormindo. Você pensa que é muito esperto. Quem sabe vai mesmo me matar? Espero vocês.

A menos de três passos de distância, um vulto maciço deu um passo adiante. Farodin escorregou a mão até a espada. Como o devanthar conseguira se aproximar tão furtivamente sem que ele percebesse? Não houvera qualquer barulho, qualquer sombra entre as árvores. Mesmo o cheiro de enxofre que o demônio exalava não havia ficado mais forte.

O devanthar balançou a cabeça como se o cumprimentasse com escárnio. Então voltou a se confundir com as sombras.

Farodin correu. Depois de menos de duas batidas de coração estava ali, onde o demônio estivera agora mesmo. Mas o devanthar já havia desaparecido há muito. Não havia pegadas na neve. Nada comprovava que a besta acabara de estar ali. Será que o vulto sombrio fora somente uma miragem? Ou que o demônio queria atraí-lo para longe? Farodin olhou para o acampamento. Seus companheiros ainda estavam deitados lá, junto ao fogo, enrolados em cobertores. Tudo estava calmo.

As velhas histórias contavam que os devanthares eram capazes de mentir duas vezes com uma só palavra. Farodin queria poder ver o que estava por trás da intimação de irem até a caverna.

O frio havia aumentado. Ele bateu com as mãos nas coxas para acabar com o formigamento nos dedos. Então voltou até a árvore onde seu arco estava recostado.

Apanhou as flechas da neve e checou-as cuidadosamente. Para enfrentar o devanthar, escolhera flechas de guerra, que tinham uma lâmina plana com farpas curvadas para dentro. As pontas eram frouxamente fincadas nos cabos. Caso alguém ferido com um projétil como esse tentasse arrancá-lo do ferimento, o cabo então se soltava, e as farpas curvadas da ponta permaneciam profundamente enfiadas na carne. Farodin queria ter podido atirar ao menos uma dessas flechas contra a besta.

Olhou mais uma vez para onde estava o acampamento. Ele precisava ter certeza! “Eles são capazes de mentir duas vezes com uma só palavra”, sussurrou baixinho. Se retornasse agora para o acampamento, faria exatamente o que o demônio esperava dele. Tinha sido assim desde que cruzaram o portal de Aikhjarto.

Farodin apanhou o arco e a aljava e foi até o braseiro que restava da fogueira. Cristais finos de gelo dançavam no ar. Nunca sentira um inverno tão gelado antes. Como os humanos conseguiram se estabelecer numa região tão inóspita? Deitou a arma sobre sua capa. Então ajoelhou-se ao lado de Brandan. O rastreador havia virado de lado. Tinha um sorriso nos lábios. Com o que será que estava sonhando?

Não perturbaria os sonhos do colega. Estava prestes a se alçar quando percebeu um minúsculo cristal de gelo no canto da boca dele. Apavorado, Farodin curvou-se sobre o caçador e sacudiu o seu ombro.

Brandan não se mexeu. O sorriso que dera durante o sono fora seu último suspiro.

Antigas feridas

Farodin segurava a tocha junto à lenha que empilhara. As chamas tomavam conta lentamente dos ramos de pinheiro, provocando uma densa fumaça branca que serpenteava em direção ao céu e espalhava um aroma de floresta, um misto de folhas de pinheiro e de resina.

— Que o fogo os guie na escuridão.

Então voltou-se. Trabalhara por horas para erguer aquela pira. Finalmente, os caçadores trouxeram Brandan e Lijema até a clareira. O centauro, esse era impossível mover.

Mandred ajoelhou-se junto ao fogo. Seus lábios moviam-se em silêncio. O humano surpreendia Farodin. Parecia ter guardado Aigilaos no coração como se fosse um irmão. E em tão pouco tempo!

O vento soprava e a fumaça os envolvia como um véu espesso. Logo espalhou-se no ar um primeiro hálito de carne em brasa.

Farodin reprimiu um acesso de náusea.

— Precisamos partir. Nosso tempo está acabando.

Nuramon encarou-o repreensivo, como se ele não tivesse coração. Ou estaria pressentindo alguma coisa? Vanna não conseguiu identificar do que Brandan morreu. Farodin ocultara dos demais essa parte de seu diálogo com o devanthar. Não queria acabar com a coragem deles, dizia para si mesmo. Eles não podiam saber que o devanthar era capaz de matar só com a força do pensamento! Talvez fosse só uma mentira. Talvez Brandan tivesse morrido de algo diferente. Já bastava que ele estivesse se torturando com essa pergunta.

— Vamos partir! — Mandred ergueu-se, batendo na calça para tirar a neve. — Vamos atrás dessa criatura para acabar com ela de uma vez por todas.

A pronúncia do fiordlandês soava como um cochicho ameaçador aos ouvidos de Farodin. A rainha devia ter se enganado. Este humano não os trairia. Ele era só uma vítima do devanthar, como todos eles!

O elfo lançou-se sobre a sela. Sentia-se cansado. Além da confiança, boa parte de suas forças também o abandonara. Ou era sentimento de culpa? Será que Brandan ainda estaria vivo se ele, Farodin, não tivesse hesitado? Olhou para os lobos. Somente dois dos caçadores selvagens ainda os acompanhavam. Amedrontados, traziam os rabos entre as pernas e mantinham-se sempre próximos aos caçadores ao deixar a clareira.

Farodin conduzia seu cavalo marrom bem ao lado do que o filho de humanos montava.

— Mas que lugar é esse? A Gruta de Luth?

Com um gesto nervoso, Mandred fez um sinal no ar.

— Um lugar mágico e poderoso — disse ele. — Luth, o tecelão dos fios do destino, enfrentou um longo inverno ali. Estava tão frio que as paredes da caverna tornaram-se brancas devido à sua respiração. — O guerreiro coçou o queixo barbado. — É um lugar sagrado. Lá poderemos acabar com o devanthar, pois os deuses estarão do nosso lado se... — O olhar do humano cravou-se na haste polida da lança que descansava diante dele, atravessada na sela.

— Se o quê? — completou Farodin.

— Se permitirem que cheguemos até lá. — Mandred apontou para o norte. — A gruta fica no topo das montanhas. Os desfiladeiros estarão cobertos de neve. Ninguém vai até lá no meio do inverno.

— Mas você já esteve lá? — perguntou o elfo, desconfiado.

Mandred sacudiu a cabeça.

— Não, mas os barbas de ferro nos indicarão o caminho.

— Barbas de ferro? O que é isso?

Mandred sorriu distraído.

— Não são inimigos, não há nada a temer. Não para nós, em todo caso. Os trolls os protegem e foram os sacerdotes que os levaram. São figuras de deuses, feitas de troncos de carvalhos sagrados. Aqueles que sempre vão à Gruta de Luth fazem oferendas a eles. Para conquistar a sua simpatia... ao menos a maioria das pessoas. As estátuas de madeira têm longas barbas, nas quais as pessoas enfiam objetos de ferro. Pregos, facas velhas, lâminas quebradas de machado. Assim, com o tempo, as barbas de madeira se tornam barbas de ferro.

— Vocês oferecem pregos aos seus deuses? — perguntou Farodin, incrédulo.

Mandred lançou-lhe um olhar de desaprovação.

— Aqui, nas terras do fiorde, não vivemos na riqueza. O ferro é valioso. Malhas de ferro como as que todos os guardas do castelo da sua rainha vestem, na minha terra, só os príncipes e reis possuem. Nossos deuses sabem disso!

E os trolls têm medo de ferro, pensou Farodin, mas guardando esse pensamento para si. Em vez de ferro, suas armas eram de madeira ou de pedra. O elfo lembrou-se da batalha em Welruun, quando os trolls destruíram o círculo de pedra que levava ao vale de suas cavernas reais. Eles não precisaram de ferro ou de aço. Sua força bastava para golpear um elmo com os punhos nus, mas tocar o ferro era desagradável para eles. Dessa forma, as armaduras eram uma proteção segura contra esses monstros. Cheio de nojo, Farodin lembrou-se da luta contra as gigantescas criaturas. Sempre que pensava nelas, era como se tivesse no nariz o cheiro rançoso que se desprendia delas.

— Vocês precisam fazer oferendas para os barbas de ferro — a voz do humano arrancou-o de seus pensamentos. — Mesmo que não acreditem neles.

— Com certeza.

Farodin balançou a cabeça. Não devia ter remexido nessas memórias. Aileen! Os trolls a haviam matado cinco passos diante dele. Lembrava-se da expressão no seu olhar quando o imenso machado de pedra destroçou sua malha de ferro como se fosse seda. Setecentos anos se passaram até que ele pudesse amar de novo. Durante todos esses séculos ele nunca deixou de ter esperanças. Toda a família de Aileen morreu durante as Guerras dos Trolls, então demorou para que ela renascesse. E ninguém era capaz de saber em qual família isso ocorreria. Farodin precisou de séculos para aprender um feitiço de busca e finalmente descobrir que ela estava em Alvemer. Ela retornara como Noroelle, mas o elfo nunca revelou a ela nada sobre o seu passado. Ele queria que ela se apaixonasse novamente por ele, que fosse puro amor, e não uma afeição nascida do sentimento de um antigo compromisso. Setecentos anos...

— Você tem medo dos trolls, não é? — Mandred ergueu-se na sela e deslizou a mão sobre o cabo da lança. — Não se preocupe! Nesse caso eles nos respeitarão. E eles também temem o meu clã. Eles nunca conseguiram matar nenhum dos meus antepassados.

— Então os seus antepassados têm algo em comum comigo — retrucou Farodin, furioso.

— O que você quer dizer com isso? Você já esteve alguma vez diante de um troll? — perguntou respeitosamente o filho de humanos.

— Sete não sobreviveram ao me encontrar. — Farodin não dizia isso para se gabar de suas proezas. Todo aquele sangue de trolls não conseguia apagar o ódio que queimava dentro dele.

Mandred riu.

— Sete trolls! Ninguém mata sete trolls.

— Acredite se quiser — rosnou Farodin. Puxou seu garanhão pelas rédeas e recuou até que Nuramon e Vanna o ultrapassassem. Queria ficar sozinho com seus pensamentos e consigo próprio.

A caverna de gelo

Mandred enfiou os quatro anéis do traje de malha de ferro em um prego enferrujado na barba da estátua de Firn. Bando de elfos convencidos, pensou ele. É claro que nenhum deles fez qualquer oferenda para o Senhor do Inverno quando passaram cavalgando diante de um homem de ferro. E agora os deuses estavam raivosos! A nevasca estava cada vez mais forte, e eles ainda não haviam encontrado a caverna.

— Você vem, Mandred?

O guerreiro, enfurecido, olhou para Farodin. Ele era o pior de todos. Farodin tinha em si algo de sinistro. Às vezes ficava calado demais, pensou Mandred. Isso é coisa de homens que têm algo a esconder. Apesar disso, faria uma oferenda por ele também.

— Perdoe-os, Firn — sussurrou Mandred, fazendo o sinal do olho protetor. — Eles vêm de um lugar onde há primavera no meio do inverno. Eles não sabem de nada.

O guerreiro se ergueu, mas só para logo depois apoiar-se pesadamente no cabo de sua lança. Precisava tomar ar. Nunca havia estado tão alto nas montanhas. Já tinham deixado a fronteira das árvores para trás havia muito tempo. Aqui já não havia mais nada além de rochas e neve. Quando o céu estava claro, viam-se bem perto o Barba Dentada e o Cabeça de Troll, dois cumes sobre os quais a neve nunca derretia — mesmo nos verões mais quentes. Estavam tão próximos dos deuses que mesmo um pequeno esforço já os deixava com a respiração curta. Aquele lugar não fora feito para humanos!

Mandred agarrou as rédeas de sua égua. Para ela, o frio parecia não importar. Também não se cansava para abrir caminho. Tanto fazia o quão frágil era a camada de gelo sobre a neve alta: ela nunca afundava, exatamente como os dois lobos e os elfos. Eles deixavam que Mandred fosse na frente, para ditar o ritmo. Sem ele, certamente teriam chegado até ali duas vezes mais rápido.

Obstinado, Mandred furava o vento gelado. A neve cravava-se no seu rosto como agulhas. Ele piscava e tentava proteger os olhos com a mão o melhor que conseguia. Torcia para que o tempo não ficasse ainda pior!

Subiram numa longa geleira, cujo lado esquerdo era contornado por uma encosta de rochas íngremes. A tempestade de inverno rebentava-se em uivos nos cumes de pedra, bem acima de suas cabeças. “Tomara que seja só a tempestade o que está uivando lá em cima”, pensou Mandred, angustiado. Dizem que no inverno há trolls ali.

O guerreiro olhou de volta para os elfos. Este frio maldito parecia não ser problema para eles. Certamente fizeram algum feitiço para se proteger. Mas ele não ficaria se lamentando nem pediria qualquer coisa que fosse!

Havia escurecido rápido. Logo precisariam parar. Seguir na escuridão significava correr enorme risco de cair em alguma fenda na geleira. Maldito clima! Mandred esfregou a testa, nervoso. Suas sobrancelhas estavam cobertas por uma crosta de neve. Precisava esclarecer aos demais que já não fazia mais sentido continuar procurando. Mesmo que não se acidentassem, era possível que, no meio da tempestade de neve, passassem pela gruta e não a vissem.

O guerreiro deteve-se repentinamente. Sentia um cheiro podre que lhe lembrava o suor da besta! Olhou através da nevasca. Nada! Teria sido somente a sua imaginação?

Um dos lobos soltou um uivo longo e arrastado.

A fera estava ali! Bem perto! Mandred soltou as rédeas e apertou o cabo da lança com ambas as mãos. Um pouco adiante uma sombra surgiu na neve.

— Por Aigilaos! — gritou o guerreiro.

Só no último momento ele reconheceu do que se tratava. Era um outro homem de ferro! Dessa vez, porém, ele não olhava para a frente, por cima da geleira, mas diretamente para o paredão de pedra. Uma trilha estreita levava até lá em cima. Estreita demais para que os cavalos pudessem galgá-la.

— Aí está. — Vanna aproximou-se de Mandred e apontou para cima da trilha na rocha. — Em algum lugar lá em cima várias trilhas albas se cruzam, formando uma estrela alba.

— O que é uma estrela alba? — perguntou Mandred.

— Um lugar mágico; é o ponto onde dois ou mais caminhos albos se cruzam.

Mandred não tinha certeza do que ela queria dizer com isso. Provavelmente eram caminhos que antes eram percorridos pelos albos com frequência. Mas o que eles buscavam na Gruta de Luth? Será que vinham para cultuar algum deus?

— Já estou observando essa trilha há horas — prosseguiu Vanna. — Se sete caminhos se cruzarem nesse lugar, terão formado um portal.

Admirado, o guerreiro encarou a elfa.

— Um portal? Lá não há nenhuma casa e nenhuma torre. É uma caverna.

Vanna sorriu.

— Se é o que você diz...

Farodin apanhou a coberta que afivelara atrás de sua sela. Puxou para fora uma segunda espada e afivelou o cinto em torno de seus quadris. A arma de Brandan! Então desenrolou a coberta e jogou-a em cima de seu cavalo.

— Os cavalos procurarão um lugar para se abrigar do vento e esperarão por nós enquanto suportarem o frio — explicou Vanna. Ela afagou o menor dos dois lobos entre as orelhas, e tentou convencê-lo e acalmá-lo: — Você fica aqui para proteger os cavalos dos trolls — disse, piscando para Mandred.

Os colegas imitaram o gesto de Farodin e também protegeram os outros animais com cobertas.

“Eles parecem estar com bem menos frio que eu”, pensou Mandred, aborrecido. Acariciou o focinho da sua égua e se aborreceu com a maneira como os olhos negros da equina o encaracam. Será que ela sabia de algo sobre o seu destino? Não era normal que um cavalo parecesse tão triste assim!

— Nós vamos rasgar a barriga desse porco maldito e desaparecer daqui o mais rápido possível. Aqui está frio demais para ficarmos demorando — disse Mandred, tentando ele mesmo criar coragem.

A égua pressionou as narinas macias contra a mão de Mandred, soltando um nitrido suave.

— Você está pronto? — perguntou Vanna de forma branda.

Em vez de responder, Mandred aproximou-se da parede de pedra. O clima desgastara a pedra cinzenta, esculpindo degraus. O guerreiro tateava cuidadosamente à sua frente. O gelo estalava sob seus passos. Firmou a mão esquerda na pedra, para que fosse um apoio a mais. Os degraus tornavam-se cada vez mais estreitos. No final, mal havia lugar para um pé inteiro.

Mandred já estava ofegante quando finalmente chegou ao fim da trilha. Um desfiladeiro cujas paredes eram tão próximas que dois homens não conseguiriam passar um ao lado do outro surgiu à sua frente.

Mandred praguejou em pensamento. O devanthar não escolhera este lugar por acaso. Aqui teriam de chegar a ele um de cada vez. Bem acima do desfiladeiro brilhava uma luz vermelha, que fazia a neve acumulada sobre a rocha parecer sangue congelado. Mandred fez o sinal do olho protetor. Então avançou lentamente. O ar rarefeito estava impregnado de fumaça. Em algum lugar lá em cima ardia a resinosa madeira de pinho! O odor encobriria o mau cheiro da besta.

— Porco maldito! — Mandred deixou escapar.

Até então, foram surpreendidos pelo devanthar todas as vezes. Era como se ele conseguisse ficar invisível. Só o seu odor denunciava sua presença. Mandred avançava sorrateiramente. Em cima dele, bem no alto, havia um enorme bloco de pedra calçado entre as paredes, cobrindo o caminho como um enorme batente. Será que foi deste lugar que Vanna falou quando se referiu a um portal? Ouviu o ruído de cascalho em uma das paredes de pedra. Assustado, ergueu a lança. Algo escalava o desfiladeiro acima dele, mas a escuridão não permitia que ele identificasse a criatura.

O guerreiro acelerou os passos. O desfiladeiro alargava-se aos poucos até um pequeno barranco. A menos de cem passos dele, uma garganta sombria abria-se na rocha. A Gruta de Luth! O chão do vale era coberto de grandes rochas. Uma fogueira queimava perto da gruta.

— Saia daí e renda-se! — Mandred ergueu a lança sobre a cabeça, em desafio. — Aqui estamos! — A voz ecoava nas rochas.

— Ele só vai sair quando estivermos exatamente onde ele quer! — disse Farodin ferozmente. O elfo soltou o broche de sua capa e deixou-a escorregar até o chão.

Mandred pensou rapidamente se também deveria tirar sua pesada capa de pele. Talvez ela pudesse dificultar seus movimentos na luta. Mas estava frio demais. Por via das dúvidas, ele conseguiria tirá-la com um simples movimento de mão.

Agora Farodin avançava. Movia-se entre as rochas com agilidade felina.

— Vamos ficar juntos — ordenou Mandred. — Assim podemos nos defender melhor.

O medo de Vanna era nitidamente perceptível. Tinha os olhos arregalados e a lança em suas mãos tremia levemente.

Nuramon foi o último a chegar ao barranco. O lobo restante mantinha-se bem a seu lado. Tinha as orelhas baixas e parecia ter medo.

— Ainda há algo que você possa nos contar sobre os devanthares, feiticeira? — perguntou Mandred.

— Ninguém sabe muito sobre eles — retrucou Vanna rapidamente. — Eles são descritos de forma diferente a cada história. Às vezes são comparados a dragões; outras, a espíritos das sombras ou a serpentes imensas. Dizem que podem se transformar e assumir formas diferentes. Mas nunca ouvi falar de um que assumisse a forma de um homem-javali.

— Isso não nos ajuda muito — murmurou Mandred, desapontado, descendo para dentro do pequeno vale.

Farodin os esperava perto da fogueira. Lá havia uma grande pilha de lenha, troncos despedaçados e galhos verdes de pinheiro. O elfo afastou um dos galhos para o lado. Ali embaixo jazia um tronco de madeira mais escura. Mandred só o reconheceu depois de olhar melhor.

— O devanthar parece não ter respeito pelos seus deuses.

Mandred puxou o pesado ídolo que estava debaixo dos galhos. Era um dos homens de ferro, que desta vez representava Luth. Muitas das oferendas haviam sido arrancadas da madeira, deixando cortes profundos. Mandred apalpou, incrédulo, a estátua profanada.

— Ele vai morrer — murmurou ele. — Morrer! Ninguém zomba dos deuses sem ser punido. Você o viu? — dirigiu-se a Farodin.

O elfo apontou para a caverna com a espada de Brandan.

— Suponho que ele esteja nos esperando lá dentro.

Mandred abriu os braços e olhou para o céu noturno.

— Senhores do céu e da terra! Deem-nos forças para ser as mãos que operam a vossa vingança! Norgrimm, guia das batalhas! Ajude-me a aniquilar o nosso inimigo! — Voltou-se para a caverna. — E você, criatura demoníaca, tema a minha ira! Atirarei o seu fígado aos cães e corvos!

Decidido, Mandred caminhou até a caverna e fez mais uma vez o sinal do olho protetor. Atrás da entrada havia um túnel que fazia uma acentuada curva à esquerda, e poucos passos depois dava em uma caverna maior que o salão de baile de um rei. Era de uma beleza estonteante. No centro dela havia uma grande rocha, diante da qual o chão era escurecido de ferrugem. “Deve ter sido aqui que Luth sentou-se perto do fogo”, pensou Mandred respeitosamente.

As paredes estavam cobertas de gelo brilhante. Parecia haver luzes presas por detrás delas. Assemelhavam-se a pequenas chamas e moviam-se para cima, até o teto, onde seu brilho se refletia em centenas de cristais de gelo. Dentro da caverna era quase tão claro quanto em uma campina em um dia de verão.

Entre os cristais de gelo, desciam do teto colunas de rocha que se fundiam a robustos espinhos, também de rocha, que vinham do chão. Mandred nunca vira algo assim antes. Era como se aqui a rocha crescesse, assim como os cristais de gelo cresciam, descendo dos telhados das casas comunais. Este era mesmo um lugar dos deuses!

Os três elfos também já haviam entrado e olhavam em volta, admirados.

— Estou sentindo apenas cinco — disse Vanna.

Mandred olhou para os companheiros. Não havia mais ninguém ali além deles!

— Cinco o quê?

— Neste lugar cruzam-se cinco trilhas albas. Para os conhecedores, aqui se abre um caminho entre os mundos. Quem começa sua viagem num local como este não irá se perder. Mas este portal está selado. Não acho que sejamos capazes de abri-lo.

Mandred encarou os elfos, admirado. Não entendia nem uma palavra do que diziam. Maluquices de elfo!

E vocês também não abrirão este portal, pois sua viagem termina aqui — ressoou uma voz em seus pensamentos.

Apavorado, o jarl deu a volta. Ali estava a besta, na entrada da caverna. Agora a criatura parecia ainda maior que na noite que o encontrou pela primeira vez. E isso porque a enorme figura estava bastante curvada.

A cabeça do devanthar era a cabeça de um javali selvagem, densamente coberta por cerdas negras. Só os seus olhos azuis não lembravam os de um animal. Brilhavam, debochados. Em seu focinho cresciam presas longas como punhais.

Seu torso era como o de um homem forte, mas os braços eram bem mais longos e pendiam quase até os joelhos. A forma das pernas era uma mistura de membros humanos e patas traseiras de javali. Elas terminavam em grandes cascos fendidos.

O monstro abriu bem as mãos, e das pontas de seus dedos despontaram garras. Mandred sentiu-se mal diante dessa visão. O devanthar tinha mesmo se transformado! Ele não tinha garras tão longas quando atacou a ele e a seus três companheiros na clareira perto de Firnstayn.

O lobo soltou um rosnado grave e gutural. Havia baixado as orelhas e colado a cauda entre as patas traseiras. Tinha, ao mesmo tempo, recolhido os beiços, e mostrava os dentes de forma ameaçadora.

O devanthar ergueu a cabeça e soltou um grito horripilante, um urro surdo que se tornou cada vez mais agudo até virar um guincho estridente.

Vanna apertou as mãos sobre os ouvidos e pôs-se de joelhos. Seria um feitiço? Mandred avançou, e um pedaço de gelo caiu diante de seus pés. O guerreiro olhou para o teto, assustado. No mesmo instante, centenas de cristais de gelo soltaram-se do teto, despencando como punhais de vidro.

Mandred pôs as mãos sobre a cabeça para se proteger. O som do gelo se estilhaçando tomou conta da caverna. Algo arranhou sua testa. Junto a ele despencou um cristal de gelo do tamanho de um braço, despedaçando-se no chão. Também sentiu algo atingir suas costas. E uma forte cacetada atingiu a parte de trás de sua cabeça.

Vanna estava no chão, deitada e muito encolhida. Um cristal de gelo trespassara sua coxa, e sua calça de couro de antílope estava encharcada de sangue. Nuramon fora atingido na cabeça, e estava recostado numa coluna de pedra, tonto, esfregando a testa. Só Farodin parecia não estar ferido.

— Chega de brincadeira! — O elfo puxou ambas as espadas e ergueu uma das lâminas. — Você reconhece esta arma? O seu dono está morto, e agora você irá encontrá-lo. Vai ser com ela que vou arrancar a sua vida!

Em vez de responder, o devanthar correu para dentro da caverna. Vanna tentou se arrastar para fugir dele, mas, antes que seu coração batesse de novo, a criatura já estava em cima dela. Com um simples tapa com as costas da mão, ele a nocauteou completamente. Pisoteou-a com um dos cascos. Seu crânio espatifou-se como um jarro de vinho que cai sobre o chão de pedra.

Nuramon lançou-se sobre o monstro com um grito estridente. Mas o devanthar reagiu surpreendentemente rápido. Desviou o golpe de espada com um movimento firme e, com sua mão em garra, dilacerou a capa do elfo.

Mandred pulou para a frente e tentou cravar a lança entre as costelas da fera. Um golpe de garra atingiu a lâmina, e por pouco não arrancou a arma da mão do guerreiro. Mandred escorregou no chão repleto de gelo.

O lobo enterrou seus dentes em uma das pernas do devanthar, enquanto Farodin o atacava com um turbilhão de golpes. Mas, em vez de desviar das espadadas, a criatura saltou para a frente e atacou, com força, usando uma de suas garras. Farodin recuou, esquivando-se, mas não o suficiente para evitar os quatro profundos sulcos que se formaram na sua face esquerda. O lobo arrastava a perna do devanthar. Mandred desejou que não tivessem deixado o outro lobo com os cavalos. Aqui ele seria de grande ajuda!

A fera fez uma volta e deu uma forte pancada nas costas do lobo. Mandred ouviu um estalo intenso. O animal ganiu. Trêmulas, suas patas traseiras vergaram-se para o lado, enquanto seus dentes continuavam cravados na perna do inimigo. Sangue claro brotava entre as cerdas negras. No entanto, bastou um simples pisão com um dos cascos para despedaçar a mandíbula e os dentes do lobo.

O devanthar se remexeu de forma selvagem. Nuramon tentara atacá-lo por trás. Um golpe de garra na mão do elfo derrubou a espada curta, e uma segunda pancada dilacerou a couraça de pele de dragão que lhe cobria o peito.

— Não pensem! — gritou Farodin. — Ele conhece todos os seus pensamentos. Não planejem o que querem fazer. Simplesmente ataquem!

Então a lança de Mandred rasgou a carne da fera. Fizera-lhe um corte fundo, bem embaixo das costelas. A criatura girou, bufando de raiva. O guerreiro levantou a arma para deter um golpe que tentou acertar sua cabeça. O cabo da lança quebrou-se com a força do choque. Mandred foi lançado para trás. Antes que a besta viesse ao seu encontro, Farodin se colocou à frente dela. Com impetuosos golpes de espada, o elfo a afastou de Mandred, dando ao humano a chance de se recuperar penosamente.

O jarl olhou para a arma destruída. A lâmina da lança tinha o tamanho de uma espada curta. Jogou fora a metade inútil do cabo. O sangue descia pelo seu braço. Ele sequer tinha percebido que fora atingido.

Enquanto isso, Farodin e a fera giravam um ao redor do outro, numa dança mortal, buscando a melhor posição para o ataque. Movimentavam-se tão rápido que Mandred não ousava avançar, com receio de atrapalhar Farodin.

A respiração do elfo tornou-se ofegante. O ar rarefeito! Mandred pôde ver como os movimentos de Farodin tornaram-se mais lentos. Com um tilintar, um golpe de garra rasgou-lhe o traje de malha de ferro, bem acima de seu ombro esquerdo. No mesmo instante, a espada de Brandan se ergueu. Sangue claro jorrou, e uma das garras do devanthar rodopiou no ar. A espadada amputara-lhe o pulso.

O devanthar grunhiu e recuou um pouco. Seria medo aquilo que se refletia em seus olhos azuis?

Farodin avançou. A besta, por sua vez, baixou a cabeça e imitou o gesto. Suas presas fincaram-se no peito de Farodin. Ambos despencaram no chão.

— Mandred...

A ponta da espada de Brandan estava atravessada no ventre da fera, saindo por suas costas. E mesmo assim ainda havia vida na criatura. Com horror, Mandred a viu se levantar.

— Nuramon... — O sangue escorreu dos lábios de Farodin. — Diga a ela... — E seu olhar se turvou.

— Farodin!

De repente Nuramon estava sobre o devanthar. Ergueu a espada com ambas as mãos e deixou-a despencar sobre a cabeça da fera. Com um som lancinante, a lâmina escorregou, deixando um sulco profundo e sangrento, mas sem penetrar. Com a força do próprio golpe, Nuramon recuou, vacilante. Seu rosto era a estampa de puro horror.

Ainda meio curvada, a besta voltou-se, perseguindo o elfo. Foi então que parou de repente.

“Esta é a minha última chance!”, pensou Mandred. O guerreiro, então, agiu rápido, aproveitando-se que a fera se ocupava de Nuramon. Deu a volta e, por trás do devanthar, agarrou, resoluto, sua presa com a mão esquerda, puxando-a com força e fazendo com que o monstro virasse a enorme cabeça para trás. Sem perder tempo, com a mão direita cravou a lâmina da lança num daqueles aterradores olhos azuis. Sem encontrar resistência desta vez, o aço forjado com a excelência élfica enterrou-se profundamente no crânio da fera.

O devanthar se revolveu uma última vez. Mandred foi arremessado contra a imensa pedra sobre a qual Luth um dia se sentou. Uma dor pesada palpitava em seu peito.

— Os cães comerão o seu fígado. — exclamou Mandred, tossindo.

Um sonho

O sonho que acometeu Noroelle naquela noite foi nítido. Primeiro seu olhar vagueou pelas imediações primaveris de sua casa, e depois sobre a costa de Alvemer. De repente ela viu uma estranha paisagem de inverno, montanhas escarpadas e florestas densas, permeadas por vozes e gritos. Diante de um tronco de carvalho jazia um centauro morto, ferido tão terrivelmente como nunca vira antes. Era Aigilaos. De súbito tinha Lijema diante dos olhos, deitada inerte na neve, com um enorme ferimento no ventre. De Lijema foi até Brandan, que jazia imóvel ao lado de uma fogueira de acampamento, enquanto berros sofridos de lobos ecoavam da floresta.

O olhar de Noroelle encontrou uma caverna de gelo, tomada por sons de luta. Ela não podia ver quem lutava ali. Via somente os que haviam sido abatidos. Lá estavam Vanna, a feiticeira, e também um lobo. Com um golpe, o ruído de luta cessou, e Noroelle viu Farodin no chão. Tinha uma ferida aberta no peito, e em seus olhos parecia não haver vida.

Noroelle gritou e gritou, sem respirar...

De repente estava novamente na sala da rainha, ao lado do trono vazio. Olhou em volta. Estava sozinha. As paredes estavam secas, não havia mais o doce murmúrio da água. A luz do dia atravessava o teto e refletia no salão. Noroelle olhou para baixo e viu que vestia uma camisola branca.

O portão abriu-se lentamente. Elfas vestidas de branco, com as faces ocultas por véus, traziam duas macas, uma ao lado da outra. Noroelle sabia quem traziam até ela. Desesperada, virou-se de costas. Não conseguiria suportar a visão.

As elfas se aproximavam mais e mais. Finalmente pararam diante da escada até o trono. De canto de olho, Noroelle observava as carregadoras das macas ali em pé, mudas e imóveis como se fossem estátuas. Não queria de forma alguma ver os corpos sem vida de seus amados. Mas, em vez de obedecê-la, seu olhar vagou até os corpos de Farodin e Nuramon. Pareciam estar intactos, mas a eles faltava qualquer vida.

Tremendo, Noroelle olhou em volta de si, como se ali tivesse de haver alguém para apoiá-la. Mas não havia uma pessoa sequer. Então viu sangue escorrendo pelas paredes. Olhou para cima e observou que ele vinha das fontes.

Noroelle correu dali. Atravessou a porta lateral, que era restrita à rainha, deixando o salão. Correu o mais rápido que podia, sem prestar atenção no destino a que seus pés a levavam.

De repente, estava de novo à margem de um lago. Foi até a nascente e ficou aliviada ao encontrar água em vez de sangue. Esgotada, recostou-se no tronco de uma das duas tílias e chorou. Ela sabia que era somente um sonho. Mas também sabia quantas vezes vira em sonho a mais pura verdade. Então tinha medo do despertar.

Pouco depois, ajoelhou-se junto ao lago e observou seu semblante na superfície da água. Não restara nada do que Farodin e Nuramon viam nela. Suas lágrimas caíam na água e turvavam o seu reflexo.

— Noroelle! — ouviu uma voz familiar dizer.

Ela se levantou e deu meia-volta. Era Nuramon.

— É você mesmo?

Ele vestia uma calça e uma camisa de linho simples. Estava descalço.

— Sim — disse ele, sorrindo.

Noroelle sentou-se sobre a pedra ao lado da água e sinalizou para que ele viesse junto de si.

Ele se acomodou perto dela e segurou sua mão.

— Você chorou.

— Tive um sonho ruim. Mas agora já passou. Você está aqui. — Ela olhou em volta. — É estranho. Tudo é tão nítido. Como se não fosse sonho.

— Você tem poderes sobre este mundo de sonho. Isso é o que sinto. O que você quiser vai acontecer. A dor lhe conferiu essa força. Ela despertou desejos em você.

— Não é a primeira vez que vejo você em meus sonhos, Nuramon. Você se lembra da última vez que nos encontramos aqui, durante o meu sono?

— Não. Pois eu não sou o Nuramon dos seus sonhos. Eu não sou a imagem que você faz de mim. Eu vim de fora do seu sonho.

— Mas por quê?

— Porque preciso me desculpar. Eu quebrei a minha promessa. Nós não voltaremos — disse isso com a voz tão suave que ela permaneceu totalmente calma.

— Então o que vi há pouco era verdade?

Ele concordou com a cabeça.

— A Caçada dos Elfos fracassou. Estamos todos mortos.

— Mas você está aqui.

— Sim, mas não posso ficar muito. Sou somente um espírito que a morte logo vai levar e que um dia renascerá. Agora você sabe o que aconteceu. E você não o ouviu da boca de qualquer outra pessoa. — Ele se levantou. — Eu lamento tanto, Noroelle.

Nuramon olhou-a, já sentindo saudades.

Ela pôs-se de pé.

— Você disse que tenho poderes sobre este sonho.

Ele confirmou com a cabeça.

— Então segure a minha mão, Nuramon!

Ele a obedeceu.

— Feche os olhos!

Nuramon satisfez o desejo.

Noroelle pensou no quarto dela. Muitas vezes havia imaginado o dia em que levaria Farodin ou Nuramon aos seus aposentos. E como no mundo desperto isso não aconteceria jamais, ela decidiu fazê-lo acontecer ali, no sonho. Ela o conduziu alguns passos sobre a campina, e desejou que estivessem em seu quarto. De repente havia muros ao redor deles. As plantas se transformaram em hera que subia pelas paredes e tomava todo o teto. O lago desapareceu, assim como as tílias. No lugar dele o chão se transformou em pedra e móveis de treliça cresceram dele. Raramente sentia nos sonhos ter um poder como esse.

— Abra os olhos, meu amado. — Ela disse em voz baixa.

Nuramon fez isso, e olhou em volta com um sorriso.

— É diferente do que tinha imaginado.

— Só é tão grande no sonho. E não é de admirar que aqui cresçam plantas por todos os lados.

Ele pôs as mãos sobre os ombros dela.

— Eu queria tanto ter cumprido minha promessa...

— E eu não queria que o destino tivesse me privado de minha decisão. Tudo o que nos resta é este sonho.

Ela esperou que ele dissesse ou fizesse alguma coisa, mas Nuramon hesitava. Se ele não tivesse evitado tocá-la por todos esses anos, ela teria ido ao seu encontro havia muito tempo. A decisão era dele, e ela não a tomaria para si.

Quando ele soltou as fitas da camisola de seus ombros, Noroelle respirou aliviada. Finalmente ele ousava dar esse passo! Ele encarou-a fixamente nos olhos. O pavor que Nuramon enfrentou no mundo dos homens o mudou — agora ele parecia mais sério.

A camisola escorregou pelo seu corpo até cair no chão.

Nuramon baixou o olhar.

Ela não esperava por isso. Ele certamente devia estar curioso sobre o seu corpo, que ele tantas vezes havia cantado. Mas o olhar dele não se desviou rápido demais? Então ela pensou no que ele havia dito. Logo ele precisava partir. Não lhes restava muito tempo. E nada seria pior que serem separados um do outro no momento errado.

Ele enlaçou Noroelle com os braços e sussurrou-lhe ao ouvido:

— Me desculpe. Eu não sou mais aquele que você conheceu. Para mim é difícil estar aqui. Eu sou apenas a sombra daquele que já fui um dia.

Noroelle calou-se; não queria dizer nada sobre isso. Ela também não se atrevia a imaginar qual seria o preço que Nuramon pagaria por enganar a morte por alguns instantes, para poder estar ali com ela. Ela deu alguns passos para trás e esperou.

Nuramon se despiu. Havia alguma coisa de errado... Ela o observou. Não era no seu corpo, que estava perfeito. Ela se lembrou do que as elfas diziam na corte. Algumas delas desejavam uma noite de amor com ele. Agora que ele se despia totalmente diante dela, Noroelle conseguia entender melhor o porquê dessas elfas se esquecerem de tudo o que contavam sobre a maldição de Nuramon. Ela nunca imaginou que ele tivesse a aparência de um dos lendários trovadores cujas aventuras amorosas faziam as elfas delirarem. Como havia conseguido esconder esse corpo?

Ao observar novamente o rosto de Nuramon, Noroelle por fim reconheceu o que havia de errado com o seu amado. Nos seus traços estava estampada uma dor intensa e muda. Tinha sofrido muito.

Nuramon aproximou-se timidamente. Estendeu a mão e tocou-a, como se quisesse se assegurar de que ela estava realmente ali. Acariciou suavemente seu ombro.

Noroelle percorreu o cabelo rebelde de Nuramon com as mãos, descendo pelo pescoço e tocando o seu peito. A pele dele era macia. Cercou-o com os braços e o beijou, fechando os olhos. Arrepiou-se ao sentir os dedos quentes dele escorregando suavemente por suas costas. Juntos, deixaram-se cair sobre a cama. Era diferente do mundo desperto. As treliças de madeira eram um pouco mais finas, e a folhagem macia parecia ser mais espessa. Nuramon alisou as folhas. Será que nunca tinha visto uma cama como essa antes? Ou só estava admirado com a sua maciez?

Ficaram imóveis e entreolharam-se longamente. Então era esse o fim de seu longo caminho. Sonharam com esse momento tantas vezes. E embora isso também fosse só um sonho, ela sentia tudo de forma tão intensa como nunca antes.

Nuramon tocou o cabelo dela e apertou suavemente uma mecha entre os dedos, beijando-a. Acariciou sua face com as palmas das mãos, e então trilhou com elas um caminho pelo pescoço e colo, parando-as ali. Noroelle contemplou-o carinhosamente. Seus olhos queriam mostrar que ele podia ousar tudo.

De repente Noroelle sentiu a mão dele escorregar entre seus seios, até chegar ao umbigo. Um arrepio percorreu o seu corpo. Não era apenas um arrepio causado pelo toque, mas também por toda aquela magia. Não era capaz de dizer se era por causa das mãos de Nuramon e seu poder de cura, ou de seus sentidos de feiticeira. Talvez uma combinação dos dois.

As mãos passaram pelos quadris e deslizaram até as costas dela. Então soltaram-se de seu corpo, mas permaneceram tão perto que Noroelle podia sentir o calor dos dedos. Ela fechou os olhos e deixou-se afundar na cama. Sentiu-o vir lentamente sobre ela, com as mãos acariciando seus seios e depois afagando o seu rosto. Era incrível como o corpo dele estava quente. Devia ser um feitiço que produzia esse calor.

Ao sentir o seu membro lhe tocar as coxas, Noroelle enlaçou Nuramon com as pernas. Arrepios percorriam o seu corpo um após o outro.

Quando a penetrou, a respiração dela parou. Ela sempre sonhara com noites de amor com Farodin ou Nuramon, sentia desejo e satisfazia-o, mas nenhum sonho fora tão rico em prazeres sensuais como este. Desta vez todos os seus sentidos de feiticeira estavam despertos. Então no mundo real também devia ser assim. Teria sido assim, se...

Nuramon deteve-se. Ela se perguntou o que ele estava esperando. Abriu os olhos e viu o rosto dele sobre ela. Quase tímido, ele a observou. Será que o havia assustado quando parou de respirar? Noroelle acariciou o cabelo dele, e então os seus lábios. Seu sorriso diria tudo a ele.

Cuidadosamente, ele começou a se mover dentro dela.

No mesmo momento, tudo desapareceu diante de seus olhos. Ela não sabia se era por causa do sonho ou se era a sua magia ou a dele que intensificava sua sensibilidade e inebriava os seus sentidos.

Um novo mundo parecia se abrir a cada movimento de Nuramon. Havia luzes e cores por todos os lados. E lá estava o rosto dele, que ia e vinha, e parecia mais lindo do que nunca. E o seu perfume! Era como se ela sentisse todos os aromas que associava a ele: das flores de tília, de amoras e do velho carvalho sobre o qual ficava a casa dele. Para ela, era como se um feitiço trouxesse esses cheiros das suas lembranças para o sonho.

A pele macia de Nuramon era igualmente sedutora. Parecia abraçá-la como uma coberta macia, e esquentou seu corpo frio por muito tempo. Noroelle podia sentir a respiração ritmada de Nuramon. Era um longo sopro, que ela gostava de inspirar e saborear.

De repente ela ouviu a si própria sussurrando o nome de Nuramon. Falava cada vez mais alto; tanto, que estava surpresa consigo mesma. Então houve um grito! Todas as sensações que seus sentidos percebiam misturaram-se num êxtase.

Noroelle acordou subitamente. Tudo o que ela sentiu no momento anterior desvaneceu-se; fugiu, enquanto sentia um formigamento no corpo. Ela não se atreveu a abrir os olhos para ver o que já estava sentindo há muito: que Nuramon se fora. Ela queria tatear em volta de si em busca dele, mas não conseguia. Queria dizer o seu nome, mas seus lábios não se moviam. Quando finalmente quis abrir os olhos, percebeu que suas pálpebras não obedeciam. Ela estava presa em seu próprio corpo e se perguntava se estava realmente acordada ou se ainda sonhava.

Foi então que sentiu a presença de outra pessoa em seu quarto. Seria mesmo Nuramon? Será que havia retornado para ela também no mundo desperto?

A pessoa que estava com ela, quem quer que fosse, aproximou-se de sua cama. Ouviu nitidamente os seus passos cautelosos. Então pôs-se de pé ao seu lado e ficou imóvel, até que ela não fosse mais capaz de dizer se ainda estava lá. Por fim, ela teve certeza de que estava sozinha.

De repente soaram passos diante de seu quarto. A porta foi aberta e ela ouviu a voz de Obilee chamar seu nome. Sua confidente se achegou, sentou-se a seu lado e tocou-a.

— Noroelle!

Desesperada, Noroelle tentou recobrar o domínio sobre seu corpo.

Obilee se levantou e fechou as folhas da janela. Então retornou até Noroelle e a cobriu.

De repente Noroelle parou de respirar, agitou-se, e no momento seguinte era novamente senhora do seu corpo. Abriu os olhos e ergueu-se num pulo.

Obilee se assustou.

— Nuramon!

A jovem elfa não conteve um sorriso.

— Eu estava sonhando, Obilee.

Noroelle viu sua camisola estendida a seu lado. E sabia que a janela tinha estado aberta.

— Foi mais que um sonho. Ele esteve aqui... Ele esteve mesmo aqui! — De repente, parou. — Se ele esteve aqui, então...

Então a Caçada dos Elfos fracassara. Foi exatamente como Nuramon disse no sonho. Tudo estava terminado.

Seus amados estavam mortos.

O feitiço de cura

Nuramon estava diante do devanthar morto como se estivesse anestesiado. O demônio fizera algo antes que Mandred o abatesse. Um sopro de magia o envolvera como uma sombra. Agora a besta jazia ali, inerte, com a lâmina da lança de Mandred atravessada pelo olho. O filho de humanos estava ajoelhado, e respirava com dificuldade.

Nuramon chacoalhou-se. Finalmente conseguia pensar claramente de novo. Voltou-se e viu os corpos sem vida de Vanna e do lobo. Farodin estava deitado de costas, com uma ferida profunda no peito.

Em um instante, Nuramon estava junto dele.

— Farodin! — chamou ele; mas seu companheiro perdera a consciência. Sua respiração era tênue e mal era possível sentir o seu pulso. Apesar dos riscos ensanguentados na face, para Nuramon seu rosto lembrava o de uma criança adormecida.

O elfo havia prometido a Noroelle que ambos voltariam para ela. E agora a vida de Farodin se esvaía diante de seus olhos. Junto com o fraco vapor de sua respiração, dissipavam-se também todas as esperanças. Pois não havia como curar um morto.

Nuramon agarrou a mão do colega, que ainda não estava totalmente fria. Ainda era possível sentir um pouco de calor. Certa vez sua mãe lhe dissera que existia um limiar; uma vez ultrapassado, não havia nada a fazer além de assistir a morte de um filho de albos. Ao observar aquele ferimento tão profundo, ele sabia que não era possível salvar Farodin.

O seu companheiro fizera o impossível para salvá-los. Nuramon devia sua vida a ele, e tinha de tentar tudo, assim como estava em dívida com Noroelle. Agora cabia a ele tentar o impossível. Se este era o fim e não havia mais nada a ganhar, então ao menos morreria tentando salvar Farodin.

Fechou os olhos e pensou mais uma vez em Noroelle. Ele viu seu rosto diante dele — e então iniciou o feitiço.

A dor veio imediatamente e avançou profundamente em seu corpo. Era como se cada veia dele se transformasse em um fio em brasa.

Nuramon ouviu seu próprio grito. Algo havia agarrado a sua garganta e ele precisava batalhar por cada respiração. Perderia seu fôlego para que Farodin pudesse recuperar o dele? Então algo segurou seu coração e apertou-o sem piedade. A dor o dominou. Queria soltar Farodin, mas não sentia o que estava fazendo. Era como se não tivesse mais corpo. Pensou em Noroelle. Por ela, queria segurar Farodin a qualquer preço e suportar esse tormento. Não sabia se ele mesmo ainda estava vivo, e também não sabia como Farodin estava. E sabia ainda menos quanto tempo havia se passado. O sofrimento preenchia todos os seus sentidos. Tudo o que lhe restava era um único pensamento: não soltar!

Nuramon de repente se sobressaltou. A dor fluiu de suas mãos. Ficou com tontura, e seus sentidos se confundiram. Ouviu uma voz dizer o seu nome. Ao levantar os olhos, viu uma sombra falar com ele. Demorou muito até reconhecer a voz de Mandred.

— Droga! Diga alguma coisa!

— Noroelle! — Sua voz soou estranha, como se viesse de uma grande distância.

— Vamos, não faça isso comigo! Fique acordado!

Nuramon viu-se de cócoras ao lado de Farodin. Ainda tocava o seu peito e enlaçava sua mão. Logo sentiu as batidas do coração do companheiro. A respiração dele retornara. Diante de sua boca, um hálito pálido cortava o ar gelado.

Nuramon tinha frio. Suas artérias pareciam ter virado gelo. Será que morreria ou a vida retornaria para dentro dele? Não sabia dizer.

Finalmente olhou Mandred nos olhos. O filho de humanos o observava, cheio de respeito.

— Você é um grande mestre da feitiçaria! Salvou a vida dele.

Mandred pôs a mão sobre seu ombro.

Nuramon soltou a mão de Farodin e deixou-se cair. Esgotado, olhava para o teto e observava o brilho mágico por trás do gelo. Só muito lentamente encontrava a calma interior.

De repente, Mandred percebeu o que acontecia.

— Você está ouvindo?

Nuramon escutava. Percebeu um ruído ao longe.

— O que é isso?

— Não sei. — O filho de humanos puxou a lança do crânio do devanthar. O cabo da arma estava destruído, mas ainda tinha o comprimento de um braço. — Vou checar.

Nuramon sabia que esse ainda não era o fim. Ainda precisava checar se Farodin estava realmente curado. Cansado, ergueu-se e examinou o amigo. Ele dormia calmamente, e o ferimento se fechara totalmente. Nuramon conseguia sentir que a força de Farodin crescia a cada respiração. Estava feito! Não quebrara a sua promessa!

Da entrada da caverna veio um grunhido agudo, que parecia não ter fim. Nuramon agarrou a espada, apavorado. Quando Mandred chegou perto, voltou a baixar a arma.

O filho de humanos parecia inquieto.

— Tem alguma coisa podre lá!

Nuramon se levantou. Ainda estava tonto.

— O que há?

— Venha, veja você mesmo!

Ele seguiu Mandred por alguns passos, e então olhou de volta para Farodin. Deixá-lo perto do devanthar morto era contra a vontade. Mas Mandred estava muito perturbado. Então acabou seguindo-o, apressadamente.

Ao chegar à saída da gruta, Nuramon não acreditou no que seus olhos viam. Havia uma espessa parede de gelo bloqueando o caminho para fora da caverna, e obstruindo a visão de fora. Do outro lado, uma luz cresceu aos poucos e depois diminuiu de novo.

— O que é isso, Nuramon? — perguntou Mandred.

— Não sei dizer.

— Tentei fazer um buraco no gelo com a lança. Mas parece que não dá. — O filho de humanos ergueu a lança e fincou a ponta com toda a força contra o gelo, mas ela apenas resvalou com um ruído. Mandred passou a palma da mão sobre a parede. — Nem um arranhão. — E encarou Nuramon, cheio de expectativa. — Talvez você possa usar as suas mãos e...

— O que eu faço é curar, Mandred. Nada mais que isso.

— Eu sei o que vi. Você buscou Farodin de volta da morte. Tente!

Nuramon abanou a cabeça, contrariado.

— Mas não agora. Preciso descansar. — O elfo sentia nitidamente o feitiço que agia sobre a parede de gelo. Seria vingança do devanthar? — Vamos voltar.

Mandred cedeu contra a vontade. Nuramon o seguiu, pensando na luta contra o devanthar. Tinham se saído bem; o filho de humanos honrara o seu povo e também os lobos e os elfos, os filhos dos albos. Mas não podiam ter vencido assim tão fácil. Ou será que se superaram tanto em sua ira que sua força se igualara à dos albos?

Uma vez de volta ao lugar da batalha, Nuramon encarou o devanthar morto. Mandred os observou.

— Nós derrotamos essa fera. E também vamos abrir o muro de gelo!

O filho de humanos estava enganado. Mas como podia estar tão certo disso? O devanthar era um inimigo dos albos. Para conhecer a medida correta do seu triunfo, deviam tomar os albos como parâmetro e se perguntar como um deles avaliaria a situação. Era justamente o que Nuramon tinha a fazer. Um albo só suporia uma coisa...

— Nós vamos congelar! — disse Mandred, arrancando Nuramon de seus pensamentos. O filho de humanos sentou-se com sua lança perto de Farodin. — Você não vai conseguir descansar aqui, Nuramon. Precisamos tentar passar por essa parede de gelo enquanto você ainda tem forças.

— Acalme-se, Mandred! Eu vou me recuperar, assim como Farodin. E nós não vamos congelar.

O filho de humanos fez uma cara preocupada.

— Isso também vale para humanos. — Sentou-se perto do guerreiro, soltou a bolsinha de Noroelle do cinto e abriu-a. — Aqui, pegue uma! — Estendeu as amoras para Mandred.

O jarl hesitou.

— Quer dividir comigo o que a sua amada deu a você?

Nuramon confirmou com a cabeça. As frutas tinham poderes mágicos. Se elas satisfaziam elfos e lhes davam uma sensação de bem-estar, em humanos fariam verdadeiros milagres.

— Nós lutamos lado a lado. Considere estas frutas um primeiro presente de Noroelle. Se você retornar conosco, ela o cobrirá de riquezas. Ela é muito generosa.

Cada um pegou uma amora. Melancólico, Mandred observava Vanna e o lobo morto.

— Há motivos para ver isso como uma vitória gloriosa?

Nuramon baixou os olhos.

— Nós sobrevivemos à luta contra um devanthar. Quem pode dizer isso de si mesmo?

O filho de humanos tinha uma expressão séria.

— Eu! Eu já lutei uma vez contra ele. E agora escapei dele mais uma vez. Não porque tenha sido tão fabuloso, mas porque ele queria assim. E agora, ao ver esse cadáver aí, não consigo acreditar que conseguimos o que só os albos já tinham feito.

Nuramon olhou para o devanthar.

— Eu entendo o que você quer dizer.

— Os albos! Para vocês eles são os pais e mães do seu povo, mas para nós eles são como deuses. Não os nossos deuses, mas dotados dos mesmos poderes que eles têm. Eles estão lado a lado: deuses e albos!

— Compreendo.

— Então me diga como conseguimos vencer essa fera!

Nuramon baixou o olhar.

— Talvez não tenhamos conseguido. Talvez ele esteja fazendo conosco o que já fez com você.

— Mas ele está aí deitado. Nós o abatemos!

— Mas pode ser que ele tenha conseguido exatamente o que queria. E o que vai acontecer se minhas forças não forem suficientes para abrir o muro de gelo? Nós vamos morrer aqui.

— Mas ele podia ter acabado conosco antes.

— Você tem razão, Mandred. Mas não se trata de você, pois ele podia tê-lo matado facilmente. Isso diz respeito a Vanna, a Farodin ou a mim. Um de nós precisa ser mantido preso aqui.

— Mas você me disse que as almas dos filhos de albos viajam de volta para suas campinas. Mesmo que morram aqui, vocês vão renascer.

Nuramon apontou para o teto.

— Veja essa luz. Este é um lugar mágico, que o devanthar não escolheu como campo de batalha por acaso. Pode ser que nossas almas nunca encontrem uma saída. Pode ser que fiquemos presos aqui eternamente.

— Mas Vanna não falou sobre um portal?

— Sim. Ela quis dizer que este lugar é semelhante ao círculo de pedras próximo à sua aldeia. Mas agora o portal daqui está fechado. E Vanna disse que não temos como abri-lo. Talvez o devanthar o tenha lacrado para sempre para nos manter presos aqui.

Mandred abanou a cabeça.

— Eu os trouxe a este lugar. Se eu não tivesse ido até o mundo de vocês, então...

— Não, Mandred. Nós não podemos evitar o nosso destino.

— Oh, Luth, como é que isso teve de acontecer na sua caverna? Por que você tece com os seus fios o tecido dos nossos cadáveres?

— Não diga isso! Nem mesmo para seres que eu não conheço. — Olhou então para Farodin. — Hoje não é a primeira vez que nós dois realizamos proezas impossíveis. Quem sabe realmente não conseguimos acabar com essa parede?

Mandred estendeu-lhe a mão.

— Amigos?

Nuramon ficou perplexo. Nunca na vida alguém quisera ser seu amigo. Segurou a mão de Mandred e também a de Farodin, que ainda dormia. Ambos sentiam frio. Doaria calor a eles.

— Segure a outra mão dele — pediu a Mandred.

O filho de humanos mostrou-se surpreso.

— Um feitiço?

— Sim.

Eles se sentaram, e Nuramon trocou o seu calor pelo frio dos colegas. E como o calor era produzido o tempo todo em seu corpo, cada vez menos frio dos companheiros chegava até ele, e logo o frio desapareceu do corpo de Mandred e de Farodin.

Após um tempo, o filho de humanos quebrou o silêncio.

— Diga-me, Nuramon, o que você acha? Quem estava na mira do devanthar?

— Eu não sei. Talvez o devanthar tivesse visões de coisas que um dia poderiam acontecer. Talvez Vanna se tornasse uma das grandes feiticeiras. E Farodin é um herói que já foi cantado em algumas epopeias. Quem sabe o que ele chegará a ser?

— É verdade que ele matou sete trolls?

Nuramon deu de ombros.

— Alguns dizem que foram até mais.

— Mais de sete! — Olhou para o colega que dormia, incrédulo.

— Ele não é do tipo que fica se gabando de suas façanhas. E porque é tão modesto, sempre viaja como enviado nas missões da rainha. — Nuramon o invejara por isso em silêncio e nunca havia entendido o porquê de isso aparentemente não significar nada para Noroelle.

— E qual motivo esse porco tinha para tentar matá-lo? — continuou Mandred.

— Quem sabe quais eram as suas razões? Mas agora vamos ficar em silêncio e respirar com calma. Ou então vamos acabar mesmo congelando.

— Tudo bem. Mas primeiro você ainda precisa me prometer uma coisa.

— O que seria?

— Trate de não contar para ninguém que fiquei de mãozinhas dadas com vocês.

Nuramon não gargalhou por pouco. Os humanos eram mesmo estranhos.

— Prometo.

— E eu prometo a você que sempre vai poder contar com Mandred — disse o filho de humanos solenemente.

Sua postura comoveu Nuramon.

— Obrigado, Mandred.

Outros elfos pouco teriam se importado com a amizade de um humano, mas para Nuramon ela significava muito. Ele pensou longamente e então disse:

— A partir de hoje, você é um amigo elfo, Mandred Aikhjarto.

O filho da feiticeira

Noroelle fechou os olhos. Um ano se passara desde a noite em que sonhou com o jogo de amor com Nuramon. Fora mais que um sonho. Durante as quatro últimas estações, ela carregara um bebê em seu ventre. Agora, era chegado o momento de dar à luz. Sentia isso de forma tão clara quanto a água em que estava flutuando e o toque das ninfas que estavam com ela.

Abriu os olhos. Era noite e o céu estava estrelado. Os elfos nasciam no luar, e ao luar um dia retornariam. Sentia a água fria tocar suas articulações. O feitiço da nascente penetrara nela, tocando também o filho ali dentro. Ela o sentia se mexer.

Uma das três ninfas apoiou a sua cabeça. Noroelle sentia seu peito subir e descer em respirações regulares. A segunda das ninfas cantou uma das canções de sua pátria distante, o mar. A terceira estava em silêncio ao lado dela, pronta para interpretar qualquer desejo que surgisse em seus olhos. Todas tinham vindo de Alvemer para ajudá-la no parto. Eram íntimas da feiticeira do mar, cujo nome nenhum elfo conhecia. Suas peles nuas brilhavam como se estivessem cobertas de minúsculos diamantes. O olhar de Noroelle vagueou até a margem e então de volta aos campos, onde as asas de incontáveis fadas das campinas brilhavam à luz da lua.

Na encosta estavam Obilee, a rainha e algumas elfas da corte. A jovem Obilee ria de felicidade. No rosto de Emerelle, contudo, não havia qualquer emoção. Ambos os rostos eram como um espelho do ano que se passara.

Obilee contara-lhe antigas histórias de elfos que, após a sua morte, visitavam suas amadas como espíritos para gerar um filho com elas. A rainha, porém, manifestou sua dúvida e mostrou-se demasiadamente fria.

Noroelle sentia a criança se movimentar no seu ventre. O conflito com a rainha ocupava bem menos os seus pensamentos que uma dúvida: se poderia ser uma boa mãe para seu filho. Ela conhecia as histórias contadas por Obilee em longas noites. E ela sabia qual parte a amiga sempre lhe omitira: a criança que era concebida carregava a alma do amado. Esse pensamento amedrontava Noroelle, pois diziam que Nuramon teria concebido a si próprio. Ele seria seu próprio pai e ela seria a mãe de seu amado.

Perguntava-se assustada se conseguiria ser uma mãe para Nuramon. Mas agora, que estava ali deitada, ela sabia a resposta. Sim, ela conseguiria! Ela manteria o pai na lembrança, como ele fora. E a essa criança, ela iria...

A hora chegara! Sua mãe lhe contara tanto sobre o parto nos tempos de outrora... Mas nada teria sido capaz de prepará-la para o que sentia agora. Como se um poderoso feitiço tivesse sido pronunciado, a criança se mexia. Noroelle sentia claramente como seu próprio corpo mudava. Ela crescia onde a criança queria ir, e se contraía no ponto de onde ela vinha. Era uma transformação constante. Ela sentia seu corpo absorver a magia da água da nascente como na dança das marés, para fazer tais mudanças e abrir caminho para o bebê. Sentia nitidamente como ele empurrava, querendo finalmente chegar a este mundo.

Mesmo o tempo parecia se esticar agora. O luar sobre a água, a canção das ninfas, a criança, até cada detalhe mais insignificante — tudo isso permaneceria para sempre na memória de Noroelle. Ela respirava calmamente; fechou os olhos e deixou que acontecesse o que tinha de acontecer.

De repente sentiu algo deixar o seu corpo, e uma onda de novas sensações chegar. Todo o seu ventre vibrava e se transformava uma última vez. Então ela ouviu o grito do recém-nascido. Abriu os olhos, encantada.

A ninfa cantora segurava o bebê de forma que sua cabeça ficasse logo acima da água. Era tão pequeno e tão frágil! E chorava a plenos pulmões.

A ninfa tocou o cordão umbilical e ficou visivelmente surpresa quando ele caiu sozinho. Noroelle sabia que para outros filhos de albos era necessária uma faca afiada para separar definitivamente a ligação com a mãe.

— Um menino! — disse a ninfa, baixinho. — É um... menino magnífico.

As outras ninfas empurraram Noroelle até a margem e a ergueram suavemente da água. Ela sentou-se sobre a pedra plana e olhou para o pequeno ser que a cantora ainda segurava na água.

Alguém pôs a mão sobre seu ombro. Ela olhou para cima e viu Obilee ao seu lado. Segurou a mão da confidente. Então levantou-se e olhou para baixo, para si mesma. Um corpo intacto. E tudo o que ouvira dizer sobre o nascimento de outros filhos de albos! Que durava horas ou até dias de puro cansaço. E que dores horríveis cobriam esse acontecimento maravilhoso como uma sombra. Nada em Noroelle dizia que ela havia acabado de ter um filho. Só por dentro sentia-se enfraquecida e vazia. Seu corpo sentia falta da criança.

As senhoras da corte se aproximaram, secaram Noroelle com toalhas macias como pétalas e ajudaram-na a vestir seu traje branco. Obilee estendeu-lhe o tecido em que embrulharia a criança.

Cheia de expectativa, Noroelle observava a ninfa com o recém-nascido. Finalmente ela veio para perto e estendeu o menino a Noroelle. A pele do bebê era totalmente lisa e a água deslizava por ela.

Noroelle pegou seu filho nos braços e embrulhou-o cuidadosamente no pano. Olhava para ele, curiosa. Tinha os seus olhos azuis e agora que estava com a mãe não chorava mais. Os poucos cabelos que ela secava com o tecido eram castanhos como os de Nuramon. Mas sua mãe lhe contara que seus cabelos também eram assim quando nasceu e só se tornaram mais escuros com o passar dos anos. A criança se parecia demais com ela. Somente as orelhas eram nitidamente diferentes. Eram de fato um pouco alongadas, mas nada pontudas. Mas isso também ainda podia mudar.

A rainha colocou-se ao lado de Noroelle.

— Mostre-me a criança para que possamos descobrir se ela carrega a alma de um elfo conhecido.

Noroelle estendeu o menino para a rainha.

— Aqui está o meu filho.

Emerelle esticou a mão com a intenção de tocar a testa da criança. Mas de repente pulou para trás. Havia horror estampado em seu rosto.

— Ele não é filho de Nuramon. Você se enganou, Noroelle. Ele sequer é um elfo.

O recém-nascido recomeçou a chorar.

Assustada, Noroelle afastou-se da rainha e apertou o filho contra o peito. Tentava acalmar a criança.

— Veja as orelhas! — disse Emerelle.

Estava certo, as orelhas eram redondas demais para um elfo. Mas talvez elas ainda assumissem a forma comum. Mas o que mais a inquietava era o fato de Emerelle parecer não ter visto Nuramon na criança.

— Tem certeza de que não é a alma de Nuramon a que habita o meu filho?

— O bebê é muito parecido com você, mas não é filho de um pai elfo.

Noroelle balançou a cabeça em negativa, decidida. A rainha devia estar enganada.

— Não! Não pode ser! É impossível. Foi Nuramon quem me visitou naquela noite.

— É como estou dizendo. Escute-me bem! — Emerelle apontou o dedo para ela. Nunca se dirigira a alguém com um gesto ameaçador como esse. — Daqui a três dias você trará o seu filho diante do meu trono! Lá vou decidir sobre ele e também sobre você. — Com essas palavras a rainha se voltou e deixou a margem do lago acompanhada por seu séquito.

Noroelle quis recorrer às ninfas. Mas elas haviam desaparecido. Olhou para o campo, do outro lado do lago. As pequenas fadas das campinas também tinham ido embora. Só Obilee permanecera com ela.

A confidente cobriu-a com um casaco.

— Não ligue para o que os outros dizem. Você ganhou um filho lindo.

Noroelle lembrou das palavras da rainha e sentiu tontura. Obilee a amparou.

— Venha, deixe-me guiá-la.

Juntas, puseram-se a caminho.

Este deveria ter sido o dia mais bonito da sua vida. E agora tudo estava destruído. A rainha deixou-a com medo. O que ela queria dizer com isso, que decidiria sobre o menino e sobre ela? Isso soava como uma sentença. Será que Emerelle podia julgá-la sem saber o que aconteceu naquela noite, um ano atrás? Quem poderia ter gerado nela essa criança senão Nuramon? Será que outro filho de albos a havia visitado, entorpecido e violado durante o sono? Noroelle olhou o bebê nos olhos, sem querer pensar nisso. Mesmo com suas orelhas disformes, ele era um belo menino. A rainha devia estar enganada.

Pela primeira vez na vida, Noroelle desconfiava de sua soberana. Emerelle estava escondendo alguma coisa. Vira isso no seu rosto. Por um curto momento, reconheceu nele o temor.

— Emerelle vai tirar a criança de você? — perguntou Obilee de súbito.

Noroelle deteve-se, horrorizada.

— O quê?

— Ela me deixou com medo. Você acha que ela está dizendo a verdade?

Noroelle acariciou as bochechas do filho.

— Olhe-o você! Você vê alguma coisa de ruim nos olhos deste bebê?

Obilee sorriu.

— Não. Ele é lindo, e muito parecido com você.

— Eu vou seguir tudo o que a rainha disser. Só não vou permitir uma coisa: que qualquer mal atinja esta criança.

Obilee acenou positivamente com a cabeça.

— Mas como é que ele se chama?

— Só posso dar um nome a ele. — Beijou o bebê docemente. — Nuramon! — sussurrou ela.

O vale abandonado

Noroelle atravessou a floresta com o bebê nos braços. Era noite, e um vento suave soprava entre as árvores. O filho apertava um de seus dedos. Estava quieto, como se sentisse a presença dos guerreiros que estavam próximos e os procuravam.

Ali! Um guerreiro elfo jovem e ruivo veio diretamente até ela. Vestia um longo traje de malha de ferro. O vento agitava o seu casaco cinza de capuz. O combatente olhou exatamente em sua direção. Tinha belos olhos verdes. Franziu a testa, confuso. Talvez sentisse alguma coisa, mas Noroelle tinha certeza de que ele não conseguiria enxergar através do seu feitiço de invisibilidade. Ele finalmente continuou andando, mas depois de poucos passos virou-se abruptamente mais uma vez. Agora estava tão perto que, se estendesse um braço, quase conseguiria tocá-la. Mas ele não a viu. Murmurou alguma coisa e então prosseguiu.

Para Noroelle foi fácil esquivar-se dos guerreiros armados. Ela passava entre as suas filas sem ser vista. Eles podiam ser bons guardas e descobridores de rastros, mas feiticeiros eles não eram. Então foi fácil enganá-los.

Quando encontrou o comandante do grupo, ficou imóvel e o encarou. Como os outros, ele vestia um casaco cinza de capuz que escondia o seu rosto, mas que deixava à vista a armadura brilhante.

— Você tem certeza de que entendeu a rainha direito? — perguntou o guerreiro ruivo. — Eu não consigo acreditar.

O comandante ficou ali parado, aparentemente sem reação.

— Se você a tivesse visto enfurecida como estava, não faria essa pergunta. — A voz soava familiar a ela.

— Mas por que ela nos mandou? Noroelle é uma exímia feiticeira, ninguém chega aos seus pés. E entre nós não há ninguém capaz de descobri-la aqui. Devia ter enviado um feiticeiro conosco!

— Porque a rainha não contava que Noroelle fosse se opor ao seu desejo. E isso sem saber qual é a nossa missão.

— Eu não sei se conseguirei cumprir essa missão.

— Devia ter pensado nisso antes de ter feito o juramento.

— Mas... Matar uma criança!

Noroelle se afastou dos guerreiros. Ela não podia acreditar no que acabara de ouvir. Será que tinha se enganado quanto a Emerelle por todos esses anos? Ela nunca se atrevera a pensar que a rainha mandaria seus guerreiros matar uma criança inofensiva. Uma ordem de prisão era o máximo com que havia contado. O que teria acontecido para que Emerelle desse uma ordem como essa? Será que ela fora sempre assim e Noroelle é que não tinha percebido?

A rainha não só tinha expedido essa ordem inédita de assassinato, como também havia perdido a confiança em Noroelle. Ela podia ter esperado até que a feiticeira se apresentasse com seu filho na sala do trono. Foi assim que exigira. E Noroelle o teria cumprido se a soberana não houvesse mandado os guerreiros até sua casa.

Noroelle só não entendia uma coisa: por que ela enviara somente espadachins? A resposta do comandante não bastava. Pois se Emerelle não imaginava que Noroelle se oporia ao seu desejo, por que então enviara seus guerreiros? Havia alguma coisa por trás disso. O que quer que fosse, agora Noroelle sabia o que tinha de fazer.

Ela jamais entregaria seu filho à rainha e seus guardas. Colocaria o bebê em segurança. Só havia um lugar onde Emerelle não poderia encontrar a criança: o mundo dos homens.

Noroelle deixou a floresta e percorreu lentamente as amplas campinas. Pensou em Farodin e Nuramon. Há um ano, quando ambos partiram para caçar uma fera no mundo dos humanos, sua vida não era mais a mesma. Um lobo do grupo veio ferido até a corte da rainha, mensageiro silencioso de um destino terrível. Pouco depois os cavalos dos seus amados também retornaram.

Na ocasião, Noroelle teve de lembrar de seu sonho. Os corpos de seus amados nunca foram encontrados. Todos os que buscaram por eles relataram que a aldeia do filho de humanos Mandred ficara incólume. Se não houvesse sonhado com Nuramon e tido um filho com ele, não acreditaria que estavam mortos.

Noroelle atravessou as terras durante toda a noite, e não foi vista por ninguém. Quando o sol da manhã se ergueu entre as montanhas, chegou a um vale solitário. Carregava o filho num tecido dobrado e cruzado junto ao corpo. Ele permaneceu calmo todo o tempo e até dormiu um pouco.

— Você é um bom menino — disse baixinho, acariciando sua cabeça.

Então sentou-se na grama e amamentou o bebê. Quando estava satisfeito, deitou-o ao seu lado e o observou. Seria uma despedida dolorosa. Mas seria a única forma de salvar o seu filho.

Noroelle levantou-se. O Outro Mundo! Ela cruzaria as fronteiras. Sabia muito sobre as trilhas dos albos, que atravessavam os três mundos e os ligavam uns aos outros, mas nunca pusera em prática esse conhecimento. Os portais fixos, como aquele que seus amados haviam atravessado, não eram um caminho que ela podia seguir. Lá Emerelle certamente já colocara guardas e também seria fácil demais seguir o caminho que ela tomasse, caso escolhesse um portal como esse para a sua fuga. Em lugares de grande poder, como no círculo de pedras de Atta Aikhjarto, cruzavam-se até sete caminhos invisíveis, que entrelaçavam todos os mundos com seus elos mágicos. Ao atravessar um lugar de grande magia como esse, chegava-se sempre ao mesmo lugar. Mas, quanto menos trilhas albas se cruzavam, mais inconstante era o portal para o Outro Mundo. Quando alguém ousava atravessar por pequenas estrelas albas como essas, não era possível dizer em que lugar do mundo dos humanos iria parar. E aqueles que não tivessem grandes poderes mágicos podiam até se tornar vítimas do tempo. Noroelle sabia que precisava ser cautelosa para que isso também não acontecesse com ela. Se cometesse um erro ao dar um simples passo através de um portal, cem anos poderiam passar instantaneamente.

Além disso, precisava se certificar de seguir uma trilha que levasse até o mundo dos homens. O Mundo Partido não era o seu destino, pois não era nada mais que as ruínas de um mundo: restos de campos de batalha nos quais os albos lutaram contra seus inimigos. Esse lugar desconsolado entre a Terra dos Albos e o Outro Mundo era formado só por duas ilhas desertas cercadas pelo vazio. Tais ilhas hoje serviam como locais de exílio, ou de casa para ermitões e solitários. Não levaria seu filho para uma prisão como essa. Por isso viera até este vale.

Noroelle sentiu uma estrela alba onde duas trilhas se cruzavam. Fechou os olhos e concentrou-se em reunir forças. Mesmo que Emerelle conseguisse encontrar seu rastro até ali, seria impossível encontrar sua pista até o Outro Mundo, pensou Noroelle. Ela poderia atravessar por esta estrela uma centena de vezes, e em cada uma delas chegaria a um lugar diferente no mundo dos humanos, porque aqui a ligação entre os dois mundos era fraca. O Carvalho dos Faunos contara-lhe que a ligação era quebrada a cada batida de coração, para na próxima fazer conexão com um lugar diferente. Na sua opinião, essa situação mostrava que a ligação entre o mundo dos homens e a Terra dos Albos foi certa vez tão abalada que ambos os mundos quase chegaram a se separar.

Noroelle olhou para o sol. Ele lhe daria força. Não seria a magia da água, a magia do seu lago, que a ajudaria a abrir o portão, mas sim a da luz. Ela pensou na luz que penetrava até o fundo de seu lago. Pensou no feitiço e então a mudança iniciou o seu curso. Agora não havia mais volta.

O sol encolheu e encolheu. Noroelle olhou em volta. Tudo mudara. As cores tornaram-se mais opacas, tudo parecia áspero e desfocado. As árvores desvaneceram e foram substituídas por troncos novos e sombrios. A primavera tornou-se inverno e os pastos de outono, campos nevados. As montanhas regrediram para colinas suaves. Logo qualquer semelhança havia desaparecido.

Então era esse o Outro Mundo!

Era um lugar sinistro. Noroelle se perguntava o que Nuramon sentira ao pisar nesses campos pela primeira vez. Certamente ficara tão admirado como ela estava agora.

De fato era inverno, mas a magia de Noroelle dava-lhe forças. Ela podia andar descalça sobre a neve sem sentir frio. Mas sem seu calor, aqui seu filho morreria congelado rapidamente. Então começou a procurar por humanos.

Ao longo do caminho, não viu sequer um único bicho. O inverno aqui parecia não permitir nenhuma forma de vida. Vagueou por muito tempo pelo deserto nevado até encontrar o rastro de uma lebre. A visão a acalmou. Continuou seu caminho. Pois, onde havia vida, havia esperança para seu filho.

Procurou por humanos durante muito tempo. Finalmente viu uma fina coluna de fumaça subir por trás do cume de uma colina. Ela seguiu esse sinal e encontrou uma casa que não podia ser mais simples. Pelo menos era o que parecia. Precisava confessar que não tinha experiência com casas humanas. A construção era pequena, feita de madeira. Suas vigas haviam entortado e por isso o telhado estava ondulado.

Noroelle aproximou-se lentamente da cabana. Temia a cada passo que um humano de repente abrisse a porta e saísse dela. Ela não sabia se o feitiço que ainda a tornava invisível também enganaria olhos humanos. Precisava estar preparada para tudo.

Ao chegar perto da porta, prestou atenção e ouviu móveis serem movidos sobre o chão de madeira. Uma voz límpida cantava alegremente. A canção lhe parecia estranha, mas gostava do som.

Noroelle beijou o filho e sussurrou baixinho:

— Nuramon... Espero estar fazendo o certo. É a única possibilidade. Tenha uma boa vida, meu filho.

Ela tirou o bebê da invisibilidade e colocou-o diante da porta. Ele continuou em silêncio e fitava-a fixamente com seus grandes olhos. Só quando Noroelle se voltou e deu os primeiros passos para longe, ele começou a chorar. Os olhos dela encheram-se de lágrimas. Mas precisava ir! Era para o bem dele.

Noroelle escondeu-se atrás de uma árvore próxima. O choro da criança era de cortar o coração! Por um momento ela cogitou apanhá-lo e permanecer com ele neste mundo para sempre. Mas a rainha a seguiria. Noroelle sabia que precisaria usar sua mágica se quisesse vencer no mundo dos humanos. Mas cada feitiço fazia as trilhas albas oscilarem. E logo ela atrairia a atenção dos capangas da rainha para si. Seu filho, em contrapartida, ainda era muito pequeno para usar os poderes que Noroelle sentia nele. E, como no mundo dos humanos não haveria nenhum mestre para instruí-lo, o seu dom aparentemente jamais despertaria. Então, ele permaneceria livre da fúria da rainha.

De seu esconderijo, Noroelle viu quando a porta da casa se abriu e alguém veio para fora. Era uma mulher. Curiosa e ao mesmo tempo aflita, a elfa observou aquela que poderia se tornar a nova mãe do pequeno Nuramon. A mulher de fato vestia roupas grossas, mas dava a impressão de, mesmo nua, ter quadris e ombros muito largos. Noroelle não pôde evitar pensar em Mandred. Aparentemente, esse porte robusto era característico dos humanos.

A filha de humanos fez uma cara de surpresa e olhou em volta, desconfiada. Certamente se perguntava quem teria sido capaz de deixar seu filho diante da porta e desaparecer sem deixar rastro. Curvou-se hesitante sobre o bebê de Noroelle. O rosto da mulher parecia duro. Tinha um nariz de batata e olhos pequenos. Mas, ao se inclinar sobre o bebê, sorriu, exibindo o calor de seu coração refletido no seu semblante. A filha de humanos consolou o bebê numa língua que Noroelle não dominava. Mas as palavras soavam tão amáveis que acalmaram a criança. A mulher procurou ao seu redor mais uma vez, e então levou o menino para dentro da casa.

Mal a porta se fechou, Noroelle deslizou de volta até a casa e espreitou pela janela. Queria se sentir segura de não ter se enganado a respeito da mulher, mesmo que soubesse que não poderia permanecer o suficiente para ter certeza absoluta.

Noroelle ouviu a mulher falar com nítida alegria.

Também havia um homem, que parecia menos contente. Sua voz estava repleta de dúvidas. Mas, depois de um tempo, ele pareceu mudar de opinião. Ainda que as palavras dos humanos parecessem grosseiras aos ouvidos de Noroelle, ela sentia que seu filho ali estava seguro. Agora, ela só precisaria cuidar que a rainha não encontrasse seu bebê.

Ela retornou para a proteção da árvore. Na verdade, havia planejado retornar ao lugar em que chegou ao Outro Mundo. Mas agora mudara de ideia. Ela queria dificultar a descoberta de seu caminho o quanto fosse possível. Durante um dia e uma noite, ela se distanciaria o máximo possível dessa cabana torta, e só então atravessaria para a Terra dos Albos com a ajuda de seu feitiço do sol. Uma vez nas trilhas albas, ela tomaria o caminho mais curto até a corte para se apresentar à soberana.

A sentença da rainha

Os guerreiros encontraram Noroelle junto ao Carvalho dos Faunos. Ela entregou-se a eles sem resistir, mas também sem revelar onde a criança se encontrava.

Os espadachins a conduziram ao castelo da rainha. À frente, ia o comandante; chamava-se Dijelon, um guerreiro tão leal que estaria pronto para renunciar a si mesmo a qualquer hora. Tinha ombros excepcionalmente largos para um elfo, que nem o longo traje azul nem os cabelos negros conseguiam disfarçar. Quando o portão da sala do trono abriu-se diante deles, Dijelon deteve-se. Mestre Alvias estava à sua frente. O velho não dignou-se a olhar para Noroelle.

— Siga-me — disse ele a Dijelon. — Ao restante de vocês peço que esperem aqui.

A conduta de Alvias não surpreendeu Noroelle. Tratavam-na abertamente como uma inimiga. Então permaneceu em pé sob o arco do portão e lançou um olhar para o salão. Quase todos os membros da corte estavam ali reunidos. Todos queriam presenciar a chegada da feiticeira decadente. Até o nascimento do filho, sua boa reputação crescera continuamente, mas num só golpe tudo estava acabado. Só as árvores não se haviam impressionado com a cólera da rainha. O Carvalho dos Faunos dera-lhe a sensação de que tudo acontecera rápido demais para que ela pudesse ponderar adequadamente sobre isso.

Noroelle olhou para as paredes. A água retumbava em cascatas espumantes. Evidentemente, a rainha queria assegurar que Noroelle soubesse a força que a esperava na sala do trono. Mas isso sequer era necessário. Noroelle sabia muito bem que ninguém na Terra dos Albos podia se comparar à soberana.

— Nós a encontramos no Carvalho dos Faunos. — Ela ouviu o guerreiro dizer. — Não quis nos dizer onde está a criança.

A água nas paredes secou e um silêncio terrível recaiu sobre a sala.

— Então Noroelle, a feiticeira, retorna.

A voz da rainha mantinha-se baixa, mas atravessava todo o salão até ela.

— E ela não faz ideia do quão grande é o mal que nos trouxe. Diga-me apenas um motivo para que eu ainda permita a sua entrada na minha sala do trono, Noroelle!

— Para que você, com sua sentença, volte a me banir dela.

— Então você compreende que fez algo abominável?

— Sim. Eu me opus a você. E isso é algo que ninguém sob a sua proteção deve fazer. Não estou aqui somente para receber uma sentença, mas também para fazer uma acusação.

Um murmúrio atravessou o salão. Ninguém na Terra dos Albos desafiara a rainha em sua corte assim, tão abertamente. Mas Noroelle não estava disposta a se calar e omitir o que Emerelle quisera fazer com seu filho. Ela estava surpresa que a rainha estivesse realizando esse encontro assim, publicamente. Tudo seria revelado dessa maneira.

— Então ponha-se diante do trono da Terra dos Albos, se você ousa.

Noroelle hesitou, mas atravessou o portão e foi ao encontro da rainha. Desta vez, os olhares de todos pelos quais passava não importavam para ela. Curvou-se diante da rainha e olhou rapidamente para o lado. Perto de mestre Alvias estava Obilee. Sua amiga tinha uma expressão desesperada, parecia à beira das lágrimas.

— Antes de me decidir sobre você, ouvirei o que tem a dizer — disse a rainha, com toda a sua frieza. — Você diz que deseja acusar alguém. De quem se trata?

Obviamente de Emerelle! Mas Noroelle não queria se atrever a atacar diretamente a rainha diante de toda a corte.

— Eu acuso Dijelon — disse ela, em vez disso. — Pois há três dias ele esteve em minha casa para matar o meu filho.

Noroelle viu o guerreiro ficar paralisado. Ela sabia que ele agira obedecendo ordens da rainha e estava ansiosa para saber até que ponto ia a sua lealdade.

A rainha olhou rapidamente para Dijelon e então novamente para Noroelle, como se quisesse pura e simplesmente verificar que o guerreiro ainda estava presente.

— E ele conseguiu?

— Não.

— E, em sua opinião, o que devo fazer, Noroelle? Nesse caso, aconselhe-me.

— Não quero nenhuma compensação e também não quero ver Dijelon punido. Só quero saber por que ele queria acabar com a vida de meu filho.

— Mas agora, Noroelle, a lealdade de Dijelon o proíbe de falar, então vou responder em seu lugar: foi uma ordem minha. — Um cochicho começou entre os membros da corte. — Mas penso que essa resposta não será suficiente para você, não é verdade? Você está se perguntando como eu, rainha de todos vocês, pude ordenar o assassinato de um filho de albos.

— É isso mesmo.

— E se ele não fosse um filho de albos, mas...

Noroelle interrompeu a rainha.

— Ele é meu filho, filho de uma elfa! E por isso ele descende de albos.

Os presentes na sala estavam indignados. O guerreiro Pelveric gritou:

— Como você ousa?

Todos concordaram, mas Emerelle permanecia calma. Ergueu a mão e o silêncio retornou.

—Noroelle, se você é água, então o pai dessa criança é fogo.

Noroelle percebeu ao que a rainha se referia. E, de repente, ficou com medo.

— Por favor, diga quem é o pai dessa criança. Um humano, por acaso? — Lembrou-se então das orelhas arredondadas de seu filho. — Não, já houve algumas vezes relações entre homens e elfos. Não, Noroelle. — Ela se ergueu. — Nada mais é como já foi um dia. Naquela noite, quando o filho de Noroelle foi concebido, iniciou-se algo que agora precisamos terminar com toda a força. Por tantos anos vivemos em segurança, mesmo quando foi necessário lutar contra trolls ou dragões. Lembro-me dos tempos em que o mundo que há entre o nosso e o dos humanos ainda florescia. Conheço a mais mortal de todas as ameaças. Nunca vou me esquecer do que os albos me deixaram ver quando estavam partindo: eu fui testemunha da queda do Mundo Partido. Vi a última batalha contra os inimigos dos nossos semelhantes: os devanthares!

Noroelle ficou paralisada. Nunca o nome dos velhos inimigos fora pronunciado em voz alta nesta sala.

— O ser que os seus amados tiveram de caçar era um devanthar — disse Emerelle. — Quando o lobo da Caçada dos Elfos retornou, isso ficou claro para mim, pois na pobre criatura ferida ainda estava impregnado o cheiro daquele mal que já deveria ter sido vencido há muito tempo!

— Então um devanthar matou Farodin e Nuramon?

— Eu queria saber responder. Mas uma coisa é certa: ele venceu, pois veio até você naquela noite e gerou o seu filho.

Era como se as palavras da rainha tivessem anestesiado Noroelle. Era impossível! Ela sonhara com Nuramon… Agora diziam que aquela visão havia sido na verdade a carranca de um demônio? Olhou em volta de si e percebeu o horror e a aversão dos presentes. Os guerreiros atrás dela recuaram. Até Obilee empalideceu.

A rainha continuou.

— Quando vi a criança, fui acometida por uma obscura noção de quem era o seu pai. — Apontou para a tigela mágica. — E quando, tomada pela dúvida, olhei dentro da água, a ilusão do devanthar revelou-se para mim. Naquela ocasião ele infiltrou-se no coração da Terra dos Albos sem que percebêssemos.

A agitação no salão crescia. Um tio de Nuramon gritou:

— E se esse demônio ainda estiver praticando o mal por aqui?

A rainha fez um gesto, tentando acalmar a todos.

— A pergunta é de direito, Elemon. Mas eu lhe asseguro que ele esteve aqui somente naquela noite e que depois retornou ao Outro Mundo.

— Mas ele poderia voltar — retrucou Elemon.

— Para ele, estava claro que eu o reconheceria se ficasse muito tempo na Terra dos Albos. Agora que sei sobre ele, verei-o assim que tentar novamente penetrar neste mundo. Não, meus filhos dos albos, o demônio plantou a sua semente. Com isso, o seu trabalho foi feito.

— De onde ele veio? — perguntou mestre Alvias, que em outros casos raramente tomava a palavra. — Não dizem que todos os devanthares foram eliminados pelos albos?

— Esse deve ter sobrevivido a todas as batalhas.

— O que você fez conosco! — gritou Pelveric, acusando Noroelle. — Como você foi capaz de se deixar seduzir por esse demônio?

A rainha pôs em palavras o que Noroelle estava pensando.

— Porque o amor dela foi maior que a razão.

— O que posso fazer? — perguntou Noroelle em voz baixa. — Se assim pedir, procurarei o devanthar e lutarei contra ele.

— Não, Noroelle, isso não é trabalho seu. Só me diga onde está a criança!

Noroelle encarou o chão. Sentiu que não era correto trair o bebê. Não vira nada de demoníaco no recém-nascido. Além disso, ela sequer conseguiria encontrar o caminho de volta até o seu filho.

— Eu não sei onde ele está. Levei-o até o Outro Mundo. Não gostaria de dizer mais nada.

— Mas é uma criança-demônio, filha de um devanthar! Aquele ser que possivelmente aniquilou os seus amados.

— Posso ter me enganado no sonho, mas jamais vi algo mais evidente que a inocência dessa criança. Não vou permitir que nada de ruim aconteça a ela.

— Por qual portal você adentrou o Outro Mundo?

— Por um lugar onde duas trilhas albas se cruzam. — Noroelle sabia que havia muitos lugares assim na Terra dos Albos.

— Diga-me onde fica essa estrela alba!

— Só direi isso se você me jurar por todos os albos que meu filho não corre nenhum risco.

A rainha calou-se longamente e encarou Noroelle.

— Não posso jurar isso. Precisamos matar a criança. Caso contrário, grandes desgraças recairão sobre nós. Esse bebê um dia aprenderá a arte da feitiçaria. Ele é perigoso demais para o deixarmos viver. Você é mãe e certamente deve amá-lo, mesmo que seja um demônio. Mas pense no preço que a Terra dos Albos terá de pagar pelo seu amor, caso você se cale.

Noroelle hesitou.

— Se meu filho perder a vida, sua alma então renascerá?

— Essa é uma pergunta cuja resposta eu desconheço. A criança não é nem devanthar nem elfo. Pense em fogo e em água! Pode ser que sua alma se perca entre os dois. Mas também pode ser que, ao morrer, a alma do seu filho se divida e o filho de albos e o devanthar sejam separados. Só assim o filho de albos renasceria.

Noroelle estava desesperada. Um devanthar! Deveria estar com asco, mas não conseguia. Não era capaz de ver o seu filho como um demônio. Ela o concebera com amor. Poderia ser ruim? Não, as mães sabem sobre a alma de seus filhos. E ela não vira qualquer maldade em seu bebê. Mas não havia nenhuma outra prova disso além da sua palavra — todo o resto falava contra ela. Ela sabia que a sentença da rainha poderia lhe custar a vida. Tinha, porém, a certeza de renascer. E por isso disse:

— Se essa vida é a única que o meu filho poderá ter, não posso entregá-lo à morte.

— Mas às vezes é necessário sacrificar o que amamos.

— Posso sacrificar a minha própria vida ou a minha própria alma. Mas não posso decidir sobre a vida ou a alma de outra pessoa.

— Talvez você já tenha feito isso uma vez. Você se lembra das suas palavras? “No que você contar com eles, eles o farão por mim.” Você não era a amada de Farodin e Nuramon? Pode ser que o devanthar tenha matado suas almas. Talvez você já tenha destruído uma vez aquilo que amava.

Noroelle ficou furiosa.

— Você é Emerelle, a rainha! E eu agradeço a você que tenha desmascarado o meu visitante naquela noite, que foi uma farsa. Isso me devolve as esperanças de que Nuramon e Farodin ainda estejam vivos. Não há certezas sobre o destino dos meus amados. Mas, mesmo que eu os tenha enviado em direção à ruína, isso aconteceu porque eu não sabia do perigo real. E como eu poderia saber o que nem a rainha sabia? Mas, se eu traísse meu filho agora, então estaria conscientemente pondo o peso da culpa sobre os meus ombros.

Emerelle pareceu não se impressionar.

— É a sua última palavra? — foi só o que perguntou.

— Sim, é a minha última palavra.

— Você levou a criança sozinha? Alguém a ajudou? — disse olhando para Obilee, que tremia.

— Não. Obilee só sabia que eu queria manter meu filho longe de qualquer sofrimento.

A rainha dirigiu-se a Dijelon.

— Obilee o atrapalhou de alguma forma, ou mentiu?

— Não, ela estava com medo demais para isso — respondeu o guerreiro, encarando Noroelle com seus frios olhos cinzentos.

A rainha voltou-se para Noroelle.

— Então ouça a minha sentença.

Ela levantou os braços, e de repente a água voltou a fluir da nascente.

— Você, Noroelle, assumiu uma grave culpa. Mesmo sendo uma feiticeira poderosa, não conseguiu distinguir entre o seu amado e um devanthar. Quando a criança-demônio crescia em você, não foi capaz de reconhecer a sua verdadeira natureza. Seu amor pelo filho é tão grande que sacrificaria até os povos da Terra dos Albos por ele. E mesmo diante da verdade, você coloca a vida de seu filho acima da vida de todos. Embora como elfa eu a entenda, como rainha não posso aceitar a sua decisão. Você traiu a Terra dos Albos e me obriga a puni-la. Você não deve sofrer a morte com esperança de renascimento, mas o exílio. Mas não deve ser levada a terras distantes ou ao Outro Mundo. Sua punição é o exílio eterno em uma ilha do Mundo Partido. O portal para esse lugar não existirá na Terra dos Albos, e ninguém poderá encontrar o caminho até você.

Um medo gelado se apoderou do coração de Noroelle. Essa era a pior punição que alguém poderia dar a um filho de albos. Ela voltou-se para a corte, mas nos rostos dos presentes encontrou somente aversão e ira. Então pensou em seu filho e a lembrança do seu sorriso lhe deu forças para percorrer até o fim o caminho que o destino lhe impusera.

— Você viverá eternamente nesse lugar. Caso procure a morte, não poderá ter esperanças de renascer — proclamou Emerelle com sua voz sem emoção —, pois sua alma também não poderá deixar o local do exílio.

Noroelle sabia o que isso significava. Ela jamais partiria para o luar. Em um lugar como aquele, um filho de albos jamais encontraria o seu destino.

— Você cumprirá a sua pena? — perguntou Emerelle.

— Sim, cumprirei.

— Você tem direito a um último desejo — disse a rainha.

Noroelle tinha muitos desejos, mas não podia expressar nenhum deles. Ela queria que nada disso tivesse acontecido. Queria que seus amados estivessem aqui e pudessem salvá-la, fugindo com ela para um lugar onde ninguém os encontraria. Mas eram somente sonhos.

Noroelle olhou para Obilee. Ela ainda era tão jovem. Certamente o fato de ter sido sua confidente a prejudicaria.

— Só quero uma coisa de você — disse Noroelle, por fim. — Não veja em Obilee a minha desonra. Ela não tem culpa, e tem um grande futuro diante de si. Por favor, aceite-a em seu séquito. Deixe-a representar Alvemer. Com a certeza de que esse desejo se realizará, partirei tranquila para o infinito.

A expressão de Emerelle mudou, e seus olhos brilharam. O frio inacessível sumiu de seu semblante.

— O seu desejo será realizado. Use este dia para se despedir. Hoje à noite irei ao seu lago. Então partiremos.

— Obrigada, minha rainha.

— Agora vá!

— Sem os guerreiros?

— Sim, Noroelle. Leve Obilee e aproveite este seu último dia da forma que quiser.

Obilee veio até Noroelle e enlaçou-a nos braços. Então passaram lado a lado entre os membros da corte. Noroelle sabia que nunca retornaria a esta sala. Despedia-se a cada passo. Seu olhar banhou-se no mar de rostos, conhecidos e desconhecidos. Mesmo aqueles que a puniram com seu desprezo ao chegar tinham a compaixão estampada em suas fisionomias.

O exílio

Noroelle apanhou três pedras mágicas que repousavam no fundo do lago há tantos anos. Escolhera um diamante, uma almandina e uma esmeralda e voltou-se para Obilee, que estava sentada à margem e brincava com os pés descalços na água. Repousou as três pedras sobre uma rocha plana, perto da jovem elfa. Então secou-se e pôs o seu vestido verde. Era o mesmo que usara na ocasião da partida dos seus amados.

— O diamante é para você —, apontou para o brilhante.

— Para mim? Mas você disse que eu devo...

— Sim. Mas são três. Este aqui é seu. Pegue-o!

Noroelle não tivera muito tempo para ensinar a Obilee os segredos da magia. A pedra prestaria bons serviços à aluna. Era como se tivesse sido feita para ela.

Obilee ergueu o cristal contra a luz do dia, que já se esvaía.

— Vou fazer um pingente com ela, para colocar em uma corrente. Ou assim ela perde o seu feitiço?

— Não, não perde.

— Ah, Noroelle... Eu não sei como vou fazer sem você.

— Você vai conseguir. O Carvalho dos Faunos vai ajudar. Ele vai ensinar a você o que já me ensinou um dia. Ollowain vai ensiná-la a lutar com espadas, já que você é uma herdeira de Danee. — Noroelle já se ocupara de todos os preparativos. Sua confidente ficaria bem.

Também havia pensado em todo o restante. Para si mesma, embalara algumas outras coisas em uma bolsa. Não precisaria de mais que isso. À sua família destinara algumas palavras, que Obilee transmitiria pessoalmente.

— Você se lembra de tudo o que eu disse? — perguntou.

— Sim. Nunca vou me esquecer das suas palavras. Guardei até os seus gestos e tom de voz. Será como se você mesma estivesse falando.

— Isso é bom, Obilee. — Noroelle observou o sol que se punha. — Logo a rainha deve estar aqui, trazendo a Pedra dos Albos. Ela é necessária para lacrar o portal com uma barreira, impedindo a passagem.

— Eu a acompanharei aonde quer que você vá.

— Use a razão, Obilee! Estou banida para sempre. Por que você jogaria a sua vida fora?

— Assim, pelo menos você não estaria sozinha.

— Isso é verdade. Mas então em vez de chorar por estar sozinha, eu choraria por sua causa. — Noroelle deu um passo para trás. O desespero no semblante de Obilee a comovia. — A rainha jamais permitiria que alguém me acompanhasse em meu exílio.

— Eu poderia fazer esse pedido.

— Mas entenda... O pensamento em você aqui me consolará. Se pensar em mim, às vezes vai ficar desconsolada, mas então lembre que estarei presente em tudo o que você fizer.

— Mas, se eu ficar, a tristeza será uma sombra sufocante sobre a minha vida!

— Então bastará vir até aqui. Aqui eu passei um tempo que foi precioso para mim. Despertei a magia da nascente e pus as pedras mágicas no lago. Aqui eu fui feliz com Farodin e Nuramon. E aqui você também foi apresentada a mim.

— E aqui você também teve o seu filho — disse Obilee, olhando tristemente para a água.

— É verdade. Mas disso eu me lembro sem tristeza ou mesmo raiva. Eu amo meu filho, mesmo que ele seja o que a rainha vê nele. E preciso pagar por isso. Mas você... Você pode aprender com os meus erros.

De repente Noroelle ouviu passos na grama. Deu meia-volta e ergueu-se quando reconheceu, à meia-luz, a silhueta graciosa.

Emerelle vestia uma túnica longa e azul, bordada com fios de prata e ouro. Noroelle não conhecia esse traje, apesar de já ter visto muitas túnicas da rainha. Na seda havia velhos símbolos de runas. Na mão esquerda, Emerelle trazia uma ampulheta, enquanto a direita estava cerrada.

Agora ela sabia qual feitiço a rainha pronunciaria para impossibilitar que chegassem à prisão de Noroelle. Depois de levá-la ao lugar estranho, Emerelle quebraria a ampulheta em uma trilha alba, de forma que os grãos de areia se espalhassem por todos os ventos. Jamais alguém conseguiria voltar a reuni-los e consertar o vidro novamente. E a barreira perduraria por toda a eternidade.

Emerelle mostrou-lhe o que havia em sua mão direita. Era uma pedra áspera, com cinco sulcos, que irradiava um brilho vermelho. Então era essa a Pedra dos Albos da rainha! Noroelle sempre quis ter permissão para vê-la uma vez. Mas nunca pensou que isso aconteceria nessas circunstâncias.

Noroelle sentia o poder da pedra. Ela ocultava, contudo, o seu poder real. Quem não conhecesse o seu segredo certamente poderia pensar que era uma pedra mágica como qualquer outra que havia em seu lago. Mas, na verdade, aquela tinha um poder com o qual Noroelle nunca se atrevera a sonhar. Dizia-se que toda a Terra dos Albos tirava o seu poder daquela pedra. Com ela, a rainha podia abrir ou fechar portais, criar ou destruir trilhas albas. E, com ela, criaria uma barreira intransponível que bloquearia o acesso a seu local de exílio. Disto seria feita a sua prisão: a Pedra dos Albos seria o muro, e a areia da ampulheta, a fechadura.

Noroelle virou-se para Obilee e abraçou-a.

— Você é como uma irmã para mim. — Ouviu a amiga começar a chorar, e tentava ela mesma conter as lágrimas. Deu um beijo de despedida na testa dela. — Adeus!

— Adeus, e lembre-se sempre de mim.

Não conseguiu mais conter as lágrimas. Apanhou a bolsa com as mãos trêmulas, e pôs-se diante da rainha.

Emerelle observou-a demoradamente, como se quisesse ver nos olhos de Noroelle se havia pronunciado a sentença certa. Mostrava-se tão solene ao fazer isso que todas as dúvidas que Noroelle tivera sobre a rainha se dissiparam. Então Emerelle deu meia-volta e pôs-se em marcha.

Noroelle olhou para trás mais uma vez, para Obilee. Certamente não seria fácil para a jovem elfa. Mas ela encontraria o seu destino — disso Noroelle tinha certeza. Pensou em Farodin e Nuramon. Dissera a Obilee tudo o que precisava saber para o caso de eles voltarem. A impressão que tivera ao ver a Caçada dos Elfos partir não estava errada: ela não voltaria a ver os seus amados.

Seguiu a rainha sem sentir antipatia por ela. Emerelle era a sua soberana e isso nunca mudaria. Ao longo do dia perguntara-se várias vezes o que teria feito se não se tratasse do seu filho. Precisou reconhecer que teria apoiado a decisão da rainha. Mas, como era a mãe da criança, preferia encarar a eternidade diante de si a ferir sua carne ou derramar o seu sangue. E era por isso que agora precisava deixar este mundo. Uma elfa não podia mudar o seu destino, mesmo que ele nunca fosse conduzi-la ao luar.

Olhou para trás uma última vez e sorriu. Enquanto o seu lago existisse, os filhos dos albos sempre se lembrariam de Noroelle, a feiticeira.

A saga de Mandred Torgridson

Sobre Svanlaib e o que encontrou no Vale de Luth

Svanlaib era filho de Hrafin, de Tarbor. O jovem humano tinha só vinte invernos de vida, mas já dispunha da força de um urso. Construía os melhores barcos dos fiordes e fazia para seus vizinhos estátuas do tecelão do destino. Um dia, o velho Hvaldred, filho de Heldred, veio até ele e contou-lhe a história dos barbas de ferro de Luth, que ficavam no topo das montanhas, do outro lado de Firnstayn, e indicavam o caminho até a gruta do tecelão do destino. E Hvaldred também lhe contou que os barbas de ferro de Luth haviam sofrido desonras. A gruta fora profanada, era o que diziam os sábios. Ali ninguém mais podia fazer oferendas ao tecelão.

Ao ouvir o relato, Svanlaib foi tomado pela ira e decretou:

— Irei até Firnstayn, subirei as montanhas e lá serei o primeiro a exigir reparação pelos crimes.

Do tronco de um carvalho, esculpiu um novo retrato do tecelão do destino. E todos em Tarbor homenagearam Luth, de forma que uma barba de ferro cresceu no tecelão de madeira.

Svanlaib pegou suas coisas e dirigiu-se para Firnstayn, cruzando neve e gelo e carregando a estátua de Luth nas costas. Lá encontrou os barbas de ferro e fez oferendas a eles, como exigia a tradição. Seguiu o caminho que os barbas de ferro indicavam e finalmente chegou à gruta de Luth. Encontrou-a fechada pelo hálito de Firn. Fez uma cara enfurecida, erguendo sobre a cabeça o barba de ferro que fizera. Luth então destruiu a barreira à qual as forças dos heróis nada eram capazes de causar.

Svanlaib esperou; não ousava pisar na caverna. Então ouviu vozes e passos em sua direção. Diante dele estava o filho de Torgrid. Sua figura era jovem, e seus cabelos, vermelhos. Ao seu lado estavam dois filhos de albos. Eram elfos da Terra dos Albos.

Svanlaib perguntou quem eram esses que saíam da caverna. Não conhecia o filho de Torgrid, que se apresentou:

— Sou Mandred Aikhjarto, filho de Torgrid e de Ragnild!

Svanlaib admirou-se, pois muito se contava sobre Mandred Torgridson e o demônio que ele acossara, e principalmente sobre o desaparecimento de caçador e caçado. Diziam que Mandred atracara-se com a besta e que juntos haviam caído em uma fenda na geleira. Tudo isso para salvar a sua aldeia.

Então Svanlaib perguntou ao poderoso Mandred o que acontecera. E Mandred deu a seu libertador a notícia da morte do homem que era também um javali. E agradeceu-lhe por ter quebrado com a força de Luth o gelo que bloqueava a caverna. Sobre os elfos, disse que o haviam ajudado. Chamavam-se Faredred e Nuredred. Eram irmãos e príncipes elfos, que estavam a serviço de Mandred.

O filho de Torgrid apanhou o barba de ferro que Svanlaib projetara e carregara e colocou-o no lugar onde jaziam os restos queimados do barba de ferro profanado. Em honra de Luth, Mandred depositou o crânio do devanthar aos pés da imagem.

O que ocorreu na caverna permaneceu oculto a Svanlaib, e só mais tarde foi revelado. Lá, Mandred conversara com Luth, com os elfos como testemunhas. O tecelão do destino revelara ao filho de Torgrid o seu fardo. E a partir daquele dia o tempo não teve mais qualquer poder sobre Mandred. Mas Luth não lhe contara o preço que teria de pagar por isso. Então Mandred retornou com Svanlaib e os irmãos elfos a Firnstayn.

Conforme narrativa do bardo Hrolaug, Livro 2 da biblioteca do templo de Firnstayn, págs. 16 a 18

O preço da palavra

O céu da primavera era de um azul tão límpido que os olhos de Mandred inundaram-se de lágrimas à sua visão. Finalmente livres de novo! Sem distinguir o dia da noite, era difícil dizer quanto tempo estiveram dentro da caverna. Mas era possível que somente poucos dias tivessem passado. Além disso, provavelmente havia algum feitiço em ação, pois de que outra forma poderiam ter entrado na gruta durante o inverno e deixá-la agora na primavera?

O olhar de Mandred seguiu uma águia que voava bem alto, com suas asas majestosamente abertas, em grandes círculos sobre a clareira.

Ali em cima das montanhas, o inverno nunca partia. Mas o sol iluminava os seus rostos enquanto andavam no gelo, descendo até o fiorde.

Seus companheiros estavam calados. Naquela manhã sepultaram Vanna e o lobo morto em uma pequena caverna afastada do Vale de Luth. Os elfos entregavam-se silenciosos aos seus pensamentos. E Svanlaib... O construtor de barcos tinha algo de estranho. É claro que até certo ponto o seu comportamento podia ser explicado pela reverência que sentia pelos elfos. Afinal, que outro mortal já tivera a chance de encontrar em pessoa os personagens cujas sagas emocionantes eram cantadas pelos bardos? Mas ainda havia algo mais no comportamento de Svanlaib. Algo latente. Mandred sentia o olhar cerimonioso do homem sobre as suas costas. Svanlaib lhe fizera algumas perguntas estranhas. O construtor de barcos parecia conhecê-lo.

Mandred sorriu satisfeito. Isso não era de se admirar! No fim, havia abatido sete homens sozinho em nome do rei e prendido o até então invencível devanthar no alto das montanhas, atravessando-o com sua lança. Olhou para o cabo destroçado da arma, que levava na mão direita. Um pesado e sanguinolento saco pendia debaixo da longa lâmina da lança. Fora cortado da pele da fera, e guardava o seu fígado. “Manterei a minha palavra”, pensou Mandred, feroz.

A descida das montanhas até o fiorde durou três dias. Cada passo que davam os levava cada vez mais para dentro da primavera. O verde-claro e fresco enfeitava os galhos dos carvalhos. Era arrebatador o aroma das florestas, mesmo que as noites ainda fossem muito frias. Svanlaib fizera a Farodin e Nuramon inúmeras perguntas sobre a Terra dos Albos. Mandred estava feliz por ser poupado da tagarelice do construtor de barcos. Mas o homem o seguia com o olhar. Sempre que achava que Mandred não perceberia, encarava-o insistentemente. “Se esse cara não tivesse nos tirado da caverna, já teria sido apresentado a meus punhos há muito tempo”, pensava Mandred de quando em quando.

Quando finalmente saíram dos bosques e apenas um extenso pasto os separava de Firnstayn, Mandred começou a correr. Seu coração batia selvagem como um tambor quando chegou ao cume de onde podia ver o fiorde ao longe. Bem acima dele estava o rochedo com o círculo de pedra. Lá homenagearia os deuses, mas só depois de apertar Freya em seus braços...

E seu filho! Sonhara com ele na Gruta de Luth. No sonho, era um jovem rapaz que vestia um longo traje de malha de ferro. Um espadachim, cujo nome era conhecido em todas as terras dos fiordes. Mandred sorriu. Essa história de espada era certamente um engano. Um verdadeiro guerreiro lutava com machados! Logo ensinaria isso a seu filho.

Mandred estava admirado com a dedicação com que se havia trabalhado na aldeia. Três novas casas comunais haviam sido erguidas e o píer fora prolongado um pouco mais para dentro do fiorde. Ainda havia mais de uma dúzia de cabanas menores. A paliçada fora derrubada e substituída por um muro de terra batida bem mais abrangente.

Durante o inverno, algumas novas famílias deviam ter chegado ao vilarejo. Talvez a fome os tivesse expulsado de seus lugares de origem. O punho de Mandred fechou-se com mais força em torno do cabo da lança. Aparentemente haveria luta. Um homem não é um jarl por herança de sangue. Esse era um título que era necessário conquistar e certamente havia na aldeia vários rapazes de sangue quente que gostariam de disputar a sua posição. Mandred olhou para os seus companheiros, que nesse meio-tempo haviam cruzado o pasto. Se voltasse para casa com dois elfos a seu lado, talvez isso faria muitos pensarem bem antes de comprar briga com ele. A presença de Nuramon e Farodin em seu átrio era necessária por pelo menos uma noite. A maior quantidade possível de homens deveria vê-los. Dessa forma, até o fim do verão a história da caçada ao devanthar se espalharia e ecoaria mesmo nos vales mais remotos das terras dos fiordes.

Nuramon olhou para cima, para o círculo de pedras, cheio de saudade. Mas Mandred disse:

— Sejam meus hóspedes ao menos por uma noite, camaradas! Vamos beber ao pé da lareira em memória a nossos amigos mortos. — Hesitou por um momento antes de completar: — Assim vocês me farão um grande favor. Gostaria que todos os homens e mulheres da aldeia os vissem.

Os elfos trocaram um olhar. Foi Farodin quem concordou com a cabeça. E juntos iniciaram a descida até o fiorde.

Desde que revira a aldeia, Mandred estava tomado de uma agitação sem fim. Será que Emerelle já viera? Não, não podia ser! Um ano, ela dissera. Ainda lhe restava tempo. Encontraria um jeito de salvar o seu primogênito.

A aldeia... Havia algo de errado com Firnstayn. Crescera rápido demais. Embora tivessem feito muitas provisões para o inverno, elas nunca teriam sido suficientes para alimentar tantas bocas. E os telhados das casas novas... Sua madeira estava escurecida e dos cumes desciam caminhos brancos de excrementos de gaivota. As ripas de madeira pareciam já ter visto mais de um inverno chegar e partir.

Mandred lembrou-se de seus sonhos na Gruta de Luth. Eram sombrios e repletos de ruídos de armas. Neles havia encontrado trolls e guerreiros poderosos para, por fim, ver-se cavalgando sob um suntuoso estandarte branco, no qual se via um brasão que estampava um verde carvalho. Os homens que o seguiam estavam armados de forma estranha. Vestiam armaduras feitas totalmente de chapas de ferro e seus rostos estavam escondidos sob pesados elmos. Aos olhos de Mandred, pareciam um muro de aço. Até os cavalos estavam vestidos com o metal. Mandred também vestia uma armadura como essa. O guerreiro sorriu e tentou insistentemente afastar do pensamento essa atmosfera obscura. Essa história de armadura era um bom agouro! Para poder pagar por tanto aço, um dia ele seria muito rico. O futuro então prometia coisas boas. E, em pouco tempo, teria Freya em seus braços!

Ao alcançar a margem do fiorde, Mandred acenou com os braços e gritou em alto e bom som, para chamar a atenção para si.

— Ei, venham nos buscar! Aqui estão três heróis e um peregrino, e temos a garganta seca!

Naquele ponto o fiorde ainda tinha mais de cem passos de largura. Alguém no píer reparou neles e acenou de volta. Então um dos barcos usados pelos pescadores foi preparado. Dois homens remaram para atravessar o fiorde, mas pararam ainda a uma boa distância da margem. Mandred jamais vira qualquer um deles.

— Quem são vocês? E o que querem em Firnstayn? — perguntou o mais jovem deles, desconfiado.

Mandred contara com isso — que os elfos talvez os pusessem medo. Esguios e bem armados, eles não pareciam viajantes habituais. O fato de sequer serem humanos não era mesmo perceptível à primeira vista.

— Diante de vocês está Mandred Torgridson, e estes são meus companheiros Nuramon, Farodin e Svanlaib Hrafinson.

— Você tem o nome de um morto, Mandred! — A voz ressoou sobre a água. — Se isso é uma piada, Firnstayn não é o lugar certo para brincadeiras assim.

Mandred gargalhou.

— Não foi a besta que acabou com Mandred... Eu aniquilei o monstro. — Ergueu a lança bem acima da cabeça, para que pudessem ver bem o saco ali preso. — E aqui está o meu troféu. Vocês dois não devem ser daqui! Vão buscar o Hrolf Dentes Negros ou o velho Olav. Eles me conhecem bem. Ou tragam Freya até mim, a minha mulher. Ela vai partir a cabeça de vocês com a colher de pau se a deixarem esperando mais tempo.

Os dois homens trocaram algumas palavras e então levaram o barco até a margem. Ambos o olhavam de forma esquisita.

— Você é mesmo Mangred Torgridson? — perguntou respeitosamente o mais velho dos dois. — Estou reconhecendo você, mesmo que não pareça ter envelhecido nenhum dia desde a última vez que o vi.

Mandred encarou bem o homem. Nunca o tinha visto na vida.

— Quem é você?

— Sou Erek Ragnarson.

Mandred franziu a testa. Conhecia uma criança com esse nome. Um moleque atrevido de cabelo vermelho. Filho de seu amigo Ragnar, que o devanthar assassinara.

— Leve-nos até o outro lado — disse Svanlaib, entrando na conversa. — Vamos continuar essa conversa na frente de uma boa caneca de hidromel. A minha garganta está seca como um rio na estiagem, e este não é um bom lugar para acolher viajantes cansados. Pelo menos de mim vocês se lembram, não? Estive aqui na aldeia há um par de dias.

O pescador mais velho abanou a cabeça afirmativamente. Então fez um sinal para que entrassem no barco. Quando Nuramon e Farodin embarcaram, Mandred viu Erek furtivamente fazer o sinal do olho protetor. Teria reconhecido o que eram?

A travessia sobre o fiorde transcorreu em profundo silêncio. Erek olhava sobre os ombros a todo instante. Em uma das vezes pareceu querer dizer algo, mas então sacudiu a cabeça e virou-se novamente.

Anoitecia quando o barco atracou no píer. Saía fumaça de baixo das vigas das casas comunais. O cheiro era de peixe assado e pão fresco. Mandred ficou com água na boca. Finalmente comer direito de novo! Assado e hidromel em vez de amoras e água de nascente!

Mandred percorreu o píer com passos decididos. Sentia como se tivesse uma grande gaivota no estômago, batendo as asas com força. Esperava conseguir conter as lágrimas quando Freya viesse ao seu encontro.

Um grande cão bloqueava o caminho no fim do píer. Rosnava em sinal de alerta. Outros cães também vieram da aldeia, seguidos de homens que carregavam lanças.

Mandred desamarrou o saco de pele pendurado em sua lança e atirou aos cachorros a sangrenta bola de carne.

— Aqui, meus caros. Trouxe algo para vocês.

Então olhou para cima. Não conhecia ninguém.

— Mandred Torgridson está de volta! — anunciou o velho pescador com voz solene. — Foi uma longa caçada. — Com um gesto autoritário, afastou os moradores armados para o lado. — Abram caminho para o jarl Mandred.

“É um bom homem”, pensou Mandred consigo mesmo. De fato não o conhecia, mas Erek lhe dizia algo.

Cada vez mais pessoas se aglomeravam para ver os visitantes. Mandred jogou pedaços de fígado aos cães, que faziam algazarra a seus pés, e por fim atirou-lhes o pedaço de pele que servira de saco.

Estranhou um pouco que Freya ainda não tivesse vindo. Com certeza tinha algum trabalho urgente para terminar. Quando cozinhava ou fazia pão, nada a tirava da frente do seu fogão.

Sua casa comunal atravessara bem o inverno. Mas alguém substituíra as duas cabeças cortadas de cavalo que havia no frontão por duas cabeças de javali.

Mandred abriu a pesada porta de madeira de carvalho, afastou a cortina de lã para o lado e acenou para que seus dois companheiros entrassem. Na sala sem janelas da casa comunal reinava uma turva meia-luz. No meio da sala havia um braseiro onde chamejavam brasas. Uma jovem mulher girava um espeto com um ganso. Ela ergueu os olhos, surpresa.

— Mandred Torgridson voltou — anunciou Erek, esmagando-se entre Nuramon e Farodin para entrar pela porta.

— Você devia ter vergonha de já estar bêbado antes de o sol se pôr, Erek — gritou a mulher. — E leve os seus parceiros de bebedeira com você. Não há lugar para eles na minha sala.

Mandred olhou em volta, admirado. Não viu Freya em nenhum lugar.

— Onde está minha mulher?

O pescador baixou a cabeça.

— Traga-nos hidromel, Gunhild — bradou num tom que não admitia protestos. — Depois reúna os idosos aqui. Busque Beorn, o coxo, Gudrun e Snorri. E traga hidromel para todos, mas que droga! Esta é uma ocasião de que nossos bisnetos um dia vão falar.

Mandred percorreu apressadamente com os olhos a parede com os nichos de dormir e abriu com força a última cortina. Ali Freya também não estava. Ao lado de onde ela dormia ainda estava o berço que ele construíra no início do inverno. Estava vazio.

— Sente-se, jarl. — O pescador tomou-o cuidadosamente pelo braço e conduziu-o para perto do braseiro.

Mandred deixou-se cair sobre um dos bancos, com as pernas abertas. O que estava acontecendo ali? Ficou com tontura.

— Você se lembra de quando deu uma velha faca de presente ao pequeno Erek Ragnarson e passou a tarde toda mostrando a ele como destripar uma lebre? — A voz do pescador tremia. Seus olhos tinham um brilho úmido.

Gunhild pôs uma caneca de hidromel entre eles, sobre o banco, junto com um pão de cheiro delicioso. Mandred rasgou um pedaço do pão e meteu-o na boca. Ainda estava quente. Então deu um grande gole de hidromel.

— Você se lembra? — insistiu o velho pescador.

Mandred chacoalhou a cabeça.

— Sim. Por quê?

— O menino. Era... Era eu, jarl.

Mandred pousou a caneca.

— Pensamos que estivesse morto — disse Erek. — Nós os encontramo... o meu pai e os outros. Só você que não... nem o monstro. Há muitas histórias sobre o que aconteceu naquele inverno. Alguns acreditam que você cercou a besta no gelo e despencou com ela nas profundezas geladas do fiorde. Outros pensavam que você tinha ido até as montanhas. E dizem que Luth, de luto por você, fez crescer uma cortina gelada diante de sua caverna. Freya nunca quis acreditar que você estivesse morto. Em todas as primaveras seguintes sempre enviou homens para procurar por você. E ela sempre foi junto até o filho nascer. Um menino forte. Só ele deu paz a ela. Oleif, esse era o seu nome.

Mandred suspirou profundamente. O tempo havia passado, ele sabia. E era primavera, embora, pela sua percepção, ainda devesse ser inverno. Na caverna sempre estivera claro. Apenas a luz por trás do gelo oscilava continuamente, mais forte e mais fraca. Fez força para se acalmar.

— Onde está a minha mulher? E o meu filho... — O guerreiro ergueu os olhos. Três homens com lanças haviam adentrado a sala, e encaravam-no. Novos desconhecidos atravessavam a todo momento a baixa porta de carvalho. Apenas Nuramon e Farodin não olhavam para ele. E Svanlaib. O que eles sabiam que Mandred ainda desconhecia?

Erek pôs a mão sobre seu ombro.

— Mandred, eu sou o menino que você presenteou com a faca. Você esteve desaparecido por quase trinta invernos. Você se lembra? Quando eu ainda era pequeno e mal conseguia andar, um dos cães de Torklaif me atacou. — Erek arregaçou a manga esquerda de sua rude camisa. Seu antebraço era coberto de cicatrizes profundas. — Eu sou o menino. E agora me diga: por que você não é um ancião, Mandred? Você tinha mais que o dobro da minha idade. E não estou vendo nenhum fio grisalho na sua barba, e nenhum cansaço em seus olhos. — Apontou para a porta da casa comunal. — Você ainda é o homem que há quase trinta anos deixou esta casa para ir atrás daquela ameaça. Foi por isso que pagou com o seu filho?

Uma fúria gelada apoderou-se do guerreiro.

— O que você está dizendo? O que tem o meu filho?

Deu um pulo e empurrou a caneca de hidromel do banco. Os curiosos recuaram de sua frente. A mão direita de Farodin tocou o cabo da espada. Observava atentamente os lanceiros.

— O que aconteceu com Freya e com o meu filho? — gritou Mandred com a voz esganiçada. — O que está acontecendo aqui? Por acaso a aldeia toda está enfeitiçada? Por que vocês estão todos tão diferentes?

— Você está diferente, Mandred Torgridson — gritou uma velha mulher. — Não me olhe assim! Antes de escolher Freya, você gostava de me ter nos braços. Sou eu, Gudrun.

Mandred encarou aquele rosto desgastado.

— Gudrun?

Naquela época ela era linda como um dia de verão. Podia ser verdade? Esses olhos... Sim, era ela.

— O inverno seguinte ao surgimento do monstro foi ainda mais severo. O fiorde congelou e certa noite eles vieram. Primeiro ouvimos somente os clarins ao longe, então vimos uma fileira de luzes. Cavaleiros. Centenas deles! Eles vinham do penhasco do outro lado do fiorde. Do círculo de pedras. E cavalgavam sobre o gelo. Ninguém dos presentes jamais se esqueceu daquela noite. Eram como espíritos, mas vivos. A luz das fadas flutuava no céu e tingia a aldeia de uma sinistra tonalidade verde. Os cascos de seus cavalos mal remexiam a neve, embora a fria rainha dos elfos Emergrid e a sua corte fossem de carne e osso. Eram belos e assustadores, pois os olhos refletiam o gelo de seus corações. No cavalo mais magnífico cavalgava uma elfa graciosa, com um vestido que parecia feito de asas de borboleta. Embora o clima estivesse gelado, ela parecia não sentir o frio. Ao seu lado cavalgavam um homem todo vestido de preto e um guerreiro de túnica branca. Falcoeiros a acompanhavam, assim como músicos que tocavam alaúdes, guerreiros em armaduras reluzentes e elfas trajando roupas perfeitas para uma celebração de verão. E lobos, grandes como cavalos montanheses. Pararam diante da sua casa, Mandred. Desta sala aqui!

A lenha estalou no braseiro e lançou fagulhas até o teto negro de fuligem. Gudrun prosseguiu.

— Sua mulher abriu a porta para a rainha Emergrid. Freya a recebeu com hidromel e pão, como pedem as regras da hospitalidade. Mas a rainha dos elfos não aceitou nada. Exigiu somente o que você prometera, Mandred. O seu filho! O preço para que esta aldeia pudesse continuar viva, para que a besta fosse afastada de nós.

Mandred escondeu o rosto nas mãos. Ela viera! Como pudera fazer essa promessa!

— Mas... E quanto a Freya? — balbuciou ele, sem forças. — Ela...?

— Além do seu filho, os elfos tiraram dela a vontade de viver. Ela gritou e implorou clemência pelo bebê. Ofereceu sua vida em troca, mas a rainha Emergrid não se compadeceu. Com os pés descalços, Freya correu pela neve e seguiu os elfos até o penhasco. Foi lá que a encontramos na manhã seguinte, no meio do círculo de pedras. Tinha rasgado o vestido e chorava sem parar. Nós a trouxemos até a aldeia, mas Freya não queria mais ficar conosco sob o mesmo telhado. Ela subiu no túmulo do seu avô, Mandred, e lá pediu vingança aos deuses e aos sombrios espíritos da noite. Sua mente foi ficando mais e mais perturbada. Sempre a viam com uma trouxa de trapos nos braços, como se segurasse uma criança. Trouxemos comida para ela, jarl. Tentamos de tudo. Na primeira manhã de primavera após o equinócio, nós a encontramos morta no túmulo do seu avô. Morreu com um sorriso nos lábios. Nós a sepultamos no túmulo ainda no mesmo dia. Uma pedra branca jaz sobre a sua sepultura.

Mandred sentia como se seu coração tivesse parado de bater. Sua ira selvagem se fora. As lágrimas corriam por suas faces, sem que se envergonhasse disso. Foi até a porta. Ninguém o seguiu.

O túmulo de seu avô ficava um pouco afastado do novo muro que protegia Firnstayn, bem perto do grande e branco rochedo à margem do fiorde. Foi ali que seu avô chegou e desembarcou. Havia fundado a aldeia e a nomeado inspirado naquela pedra, tão branca como a neve do meio do inverno. Firnstayn.[3]

Mandred encontrou a pedra sepulcral branca no flanco da colina. Ali ajoelhou-se por muito tempo. Suas mãos acariciavam afetuosamente a pedra áspera. No momento mais escuro da noite, Mandred pensou ver uma sombra de vestido rasgado no topo da colina.

— Vou trazê-lo de volta, Freya, mesmo que isso me custe a vida — sussurrou ele. — Vou trazê-lo de volta. Juro pelo carvalho que me devolveu a vida. Meu juramento é sólido como o tronco de um carvalho!

Mandred procurou o presente de Atta Aikhjarto e, quando o encontrou, afundou a bolota na terra escura da tumba.

— Vou trazê-lo de volta para você.

A lua surgiu entre as nuvens. A sombra no cume da colina havia desaparecido.

Retorno à terra dos Albos

Era inverno na Terra dos Albos e, mesmo com toda a beleza da paisagem coberta de neve, o frio congelante não dava a ele menos trabalho do que havia dado em seu mundo. Aqui o guerreiro também precisava abrir caminho com esforço em meio à neve alta enquanto seus amigos elfos andavam com passos leves ao seu lado. E desta vez faltavam-lhe forças. No túmulo de Freya teria podido disputar com toda a Terra dos Albos junta, mas hoje estava abatido e não sentia dentro de si nada além de desespero e vazio.

Mesmo o pensamento no filho, que seria um desconhecido para ele, não era capaz de consolá-lo. Queria vê-lo, de fato... Mas depositava pouca esperança nisso. Oleif provavelmente crescera e tornara-se um homem há muito tempo, e talvez visse outro como seu pai. Como ainda era inverno na Terra dos Albos, Mandred estava desanimado de vez. Esta era a terra dos elfos e das fadas, aqui a primavera deveria reinar para sempre! Pelo menos era isso o que diziam as lendas. Certamente era um mau presságio encontrar este mundo no inverno, mesmo que Farodin e Nuramon lhe houvessem assegurado uma centena de vezes que aqui as estações mudavam da mesma forma que no mundo dos homens.

Atta Aikhjarto não falou com Mandred quando ele o visitou junto ao portal. Será que as árvores hibernavam depois de deitarem suas folhagens ao chão? Ou será que havia outro motivo para isso? Ninguém os recebera no portal, mesmo que constasse que a rainha sabia de tudo o que acontecia em seu reino.

No primeiro dia, avançaram até o portal de Welruun. Ninguém cruzou o caminho. Mandred acreditava saber o porquê. O destino os seguira até aqui, até a Terra dos Albos! Desde a primeira hora, uma má estrela brilhara sobre a Caçada dos Elfos. E essa estrela não se havia apagado. O que eles viveram era uma história como as sagas dos heróis antigos. E essas histórias terminavam sempre de forma trágica!

Na manhã do segundo dia na Terra dos Albos, Mandred só se levantou de seu gelado leito noturno para que no futuro ninguém pudesse dizer que ele não percorrera o seu caminho até o fim. Ele traria de volta a Caçada dos Elfos — a primeira liderada por um humano —, ou ao menos o que ainda restava dela. E queria finalmente saber qual era o desfecho que o destino lhes reservava.

Nenhum guarda estava no caminho quando cruzaram o portão da Shalyn Falah. No castelo de Emerelle ninguém os aguardava, como se todos houvessem desaparecido. O som de seus passos ecoou de forma sombria quando passaram pela imponente construção. Mandred de fato tinha a sensação de estar sendo observado, mas em todos os lugares onde seu olhar pousava só encontrava cumes abandonados e janelas vazias.

Farodin e Nuramon mal falaram durante a viagem. Eles também pareciam inquietos.

Por que o evitavam? Foi o que Mandred se perguntou, aborrecido. Ficaram longe por um bom tempo, era verdade, e pagaram com muitas vidas... mas voltavam vitoriosos. Deveriam ser recebidos de forma digna! Mas quem era ele para querer compreender os elfos? O que acontecia aqui devia ter a ver com a sua sina... Com aquele último golpe do destino que põe fim a cada saga.

Nuramon e Farodin aceleraram seus passos. Num surdo staccato, o som de suas pisadas era devolvido pelas paredes transparentes do átrio.

Bem no fim da ampla sala, um vulto vestido de preto os aguardava. Era mestre Alvias. Inclinou levemente o tronco para Mandred, mas Farodin e Nuramon não foram dignos de um olhar seu.

— Saudações, Mandred Filho de Humanos, jarl de Firnstayn. A rainha previu a hora de sua chegada. Ela gostaria de ver você e os seus companheiros. Siga-me!

Como por obra de uma mão fantasma, o portão abriu-se para a sala do trono, que estava repleta de filhos de albos. Elfos e centauros, fadas, duendes e goblins apertavam-se ali, em silêncio. Mandred tinha a sensação de que algo tentava lhe estrangular a garganta. O silêncio dessa enorme multidão era ainda mais estranho que a infinidade de salas e pátios vazios. Não se ouvia nenhuma tosse, nenhum pigarro — nada.

O olhar de Mandred deslizou até o teto. Uma ampla cúpula de gelo substituía o arco-íris da primavera. Não pôde evitar pensar na Gruta de Luth.

A multidão estava dividida, deixando livre um caminho até o trono. O tempo não deixara vestígios na rainha. Emerelle ainda tinha a aparência de uma jovem elfa.

Mestre Alvias juntou-se a um grupo de jovens guerreiros, que estavam em pé à esquerda da escada que ia até o trono, enquanto Farodin e Nuramon curvaram-se sobre o joelho diante da soberana.

Um sorriso se esboçou nos lábios de Emerelle.

— E você, Mandred Filho de Humanos, continua sem se curvar diante da soberana da Terra dos Albos.

“Mais do que nunca”, pensou Mandred.

Emerelle apontou para a tigela ao lado de seu trono.

— Todas as vezes que olhei na água nunca consegui ver você nem os seus companheiros. O que aconteceu, Mandred, líder da Caçada dos Elfos? Vocês encontraram a sua presa?

Mandred pigarreou. Sua boca estava seca como se tivesse engolido um saco de farinha.

— A besta está morta. Foi abatida. Seu crânio foi posto aos pés de Luth, e seu fígado foi dado de comer aos cães. Nossa ira acabou com ela!

O guerreiro percebeu a careta de desdém que Alvias fez. Essa gralha negra podia pensar o que quisesse dele! Ou, melhor ainda — Mandred deu um sorriso colérico. A soberba corroeria Alvias e os outros quando descobrissem qual era a fera que haviam caçado.

— Cavalgamos à caça de uma criatura metade homem, metade javali. — Mandred fez uma curta pausa como as que os bardos às vezes faziam para atiçar a impaciência do público. — De fato encontramos uma criatura que não deve mais existir desde o tempo dos albos. Uma criatura conhecida entre os povos da Terra dos Albos como um devanthar!

Mandred observou a multidão de canto de olho. Estava contando ao menos com alguns desmaios de fadas de flores. Mas, em vez de vozes de surpresa, colheu somente o silêncio, como se os filhos dos albos não estivessem ouvindo nada de novo.

A quietude o perturbava. Com a voz um pouco trêmula, contou sobre a caçada, sobre os sustos e os mortos. Descreveu a subida até a geleira, contou enfurecido sobre os barbas de ferro profanados e elogiou a coragem heroica de Farodin e o poder de cura de Nuramon. O amargor quase lhe tirou a voz quando narrou a queda do devanthar e todos os anos que o demônio lhe roubara. Quando Mandred estava prestes a completar com o relato de seu retorno a Firnstayn, olhou rapidamente para os companheiros, que ainda estavam de joelhos a seu lado.

— Com meus dois últimos irmãos de caça eu fui...” — Farodin chacoalhou a cabeça de forma quase imperceptível.

— O que você queria dizer, Mandred? — perguntou a rainha.

— Eu... — Mandred não entendeu por que devia omitir o que aconteceu. Hesitou por um instante. — Eu queria dizer que retornamos a Firnstayn para passar uma noite com os meus. — As últimas palavras saíram num tom gelado.

A rainha não mudou de expressão.

— Agradeço por seu relato, Mandred Filho de Humanos — respondeu formalmente. — Vocês três prestaram um grande serviço. Mas qual você acha que era a intenção por trás dos atos do devanthar?

O guerreiro apontou para os seus companheiros.

— Conversamos muito sobre isso. Achamos que queria fazer da Gruta de Luth uma prisão para as almas dos elfos. Mas nós não sabemos qual era o seu alvo. De qualquer forma, ele fracassou em tudo. Nós o derrotamos e escapamos da sua prisão.

A rainha encarou-o em silêncio. Estaria esperando alguma coisa? Será que não tinha reparado em alguma baboseira de elfo que pedia que terminasse o seu relato? Durante o tempo de uma batida de coração pareceu-lhe que o olhar dela focara-se principalmente em Nuramon.

— Agradeço a você e a seus companheiros. A Caçada dos Elfos atingiu o seu objetivo. Você cumpriu bem a sua tarefa. — Ela permaneceu imóvel por um momento, e agora era para ele que sua atenção se voltava. — Como esteve em sua aldeia, você já sabe que exigi a minha compensação. Agora quero apresentar-lhe Alfadas, o seu filho.

A rainha apontou para um guerreiro ao lado de Alvias.

O coração de Mandred parou. O homem tinha a aparência de um elfo! As orelhas estavam cobertas pelo cabelo louro na altura dos ombros. Só quando o observou mais atentamente percebeu as diferenças sutis. Alfadas, como Emerelle chamava seu filho Oleif com toda a sua presunção, vestia um traje de malha de ferro até o tornozelo e uma longa túnica. Era quase uma cabeça mais alto que ele próprio. Sua estatura elevada disfarçava que era um pouco mais largo e forte que os outros elfos. E, se ele também parecia estranho, seus calorosos olhos castanhos acabavam com qualquer dúvida. Eram os olhos de Freya. E foi com o sorriso de Freya que o filho o cumprimentou. Mas por que, pelo machado dos algozes, o rapaz não usava barba? Seu rosto era liso como o de uma mulher... ou de um elfo.

Alfadas caminhou até o patamar do trono.

— Pai, eu nunca perdi a esperança... — Num gesto solene, pôs a mão direita sobre o coração e baixou a cabeça.

— Não se curve diante do seu pai! — disse Mandred duramente, abraçando o guerreiro. — Meu filho! — Pelos deuses, o rapaz cheirava como uma flor. — Meu filho — disse ele mais uma vez, agora mais baixo, soltando-se do abraço. — Alfadas? — Ao pronunciar o nome, parecia artificial. Mandred observou-o da cabeça aos pés. A figura de Oleif era como a de um herói. — Você é... alto —, disfarçou ele, simplesmente para dizer alguma coisa e conseguir voltar a ser senhor de seus sentimentos, que quase o dominavam. Seu filho... o filho que até cinco dias atrás ele pensava ter acabado de nascer... ele já era um homem.

O que o devanthar e Emerelle fizeram com ele! Roubaram o seu filho de uma forma que ele jamais teria sido capaz de imaginar! Há um par de dias ele ainda se alegrava com a chance de segurar um recém-nascido nos braços, e agora tinha diante dele um homem na flor da idade. Oleif podia ser seu irmão! Haviam-no enganado em tantas coisas! Todas as horas que ele teria gasto para ensiná-lo o que torna um homem honrado. Tardes despreocupadas de verão, em que partiriam para pescar juntos no fiorde. A primeira expedição, durante a qual um rapaz se tornava homem, longas caçadas no inverno...

E, apesar de tudo isso, ainda tinha de agradecer à sorte. Como é que teria sido estar diante de um homem com mais idade que ele e ter de chamá-lo de filho?

Encarou Oleif mais uma vez. Havia se tornado um rapaz imponente.

— Estou feliz de ser mais velho que você, garoto! — Mandred deu um sorriso maroto. — Talvez ainda haja uma ou duas coisas que eu possa lhe ensinar. Tenho medo de que esses elfos não façam ideia de como se luta com um machado, e...

O filho deu um sorriso iluminado... Como o de um elfo.

— Agora Alfadas deve segui-lo — esclareceu Emerelle solenemente. — Ensinei a ele o que havia para aprender aqui. Agora você deve levá-lo ao reino dos homens e lá instruí-lo como quiser.

Mandred não entendeu direito, mas teve a impressão de perceber um sopro de ironia nas palavras de Emerelle.

— É o que vou fazer — disse com voz firme, de forma que todos na ampla sala pudessem ouvir.

Emerelle acenou com a cabeça de forma desafiadora.

— Onde está a nossa amada? Nós fizemos o que ela desejava.

Mandred teve a sensação de que a sala do trono ficou um pouco mais fria.

— Vocês se lembram do terraço sobre o pomar? — perguntou Emerelle cerimoniosamente.

— Sim, soberana! — Farodin agora já não se esforçava mais para esconder a sua saudade. Nesse meio-tempo Nuramon também se levantara sem que tivessem pedido.

— Vocês devem ir até lá!

— Com a sua permissão, rainha? — perguntou então Nuramon.

A rainha consentiu, laconicamente.

Com passos leves, seus companheiros andaram de volta até o alto pórtico da sala do trono. Mandred os seguiu com o olhar; estava feliz que ao menos eles voltavam para sua amada, mesmo que nunca tivesse entendido como dois homens podiam amar a mesma elfa sem partirem o crânio um do outro.

Quando Farodin e Nuramon terminaram de cruzar o pórtico, a rainha esclareceu solenemente:

— Mandred, declaro a caçada ao homem-javali terminada. Ela trouxe algumas amarguras, mas por fim a carne daquele que se rebelou foi vencida. Você e seus companheiros passarão mais uma noite nas acomodações dos caçadores. Vocês devem limpar o corpo e a alma daqueles que não voltaram e despedir-se uns dos outros.

Emerelle levantou-se, pôs-se ao lado de Oleif e tomou a sua mão.

— Você foi quase um filho para mim, Alfadas Mandredson. Nunca se esqueça disso!

As palavras da rainha foram para Mandred como faíscas atingindo um pavio. Oleif tivera uma mãe! E ela certamente ainda estaria viva se Emerelle não houvesse exigido seu filho como preço para a Caçada dos Elfos! Só conseguiu se conter com muito esforço. Apesar de sua ira, percebeu que a despedida de Oleif realmente doía em Emerelle. Nem mesmo a soberana dos elfos, com seu coração gelado, era isenta de sentimentos. Então Mandred compreendeu como era insensato atribuir toda a culpa a ela. Sim, fora ela quem exigiu seu filho como preço pela Caçada dos Elfos, nisso ele estava certo. Ele havia negociado com sua própria carne e sangue. E sem sequer perguntar a Freya, que na ocasião ainda carregava o filho no ventre. O monstro fora vencido, mas sua decisão matara Freya, justo quem ele mais queria salvar dentre todos os outros. O que ela devia ter sentido ao ver elfos diante dela, fascinantes e ao mesmo tempo frios, exigindo dela tudo o que lhe restava de amado na vida? Teria aceitado a troca ou se revoltado? O que aconteceu naquela noite? Ele precisava saber!

— Rainha... O que minha mulher disse a você quando ordenou que apanhassem a criança?

Uma ruga profunda desenhou-se entre as sobrancelhas de Emerelle.

— Não ordenei que fossem buscar a criança. Fui eu mesma, com toda a minha corte, até Firnstayn! Não foi nenhum roubo, à noite e no meio da neve. Visitei a sua aldeia como faria com a corte de um rei, para prestar honras a você e a seu filho. Mas me apresentei sozinha à sua mulher. — E olhando para Alfadas: — Sua mãe estava com muito medo. Apertava você contra o peito para protegê-lo... Contei a história da caçada. E nunca vou esquecer as palavras dela, Mandred. Ela disse: “Duas vidas por uma aldeia inteira, essa foi a decisão do jarl. E eu a respeito”.

Emerelle afastou-se de Oleif e olhou Mandred diretamente no rosto. A pequena elfa estava distante dele só um palmo.

— Isso foi tudo? — perguntou Mandred. Ele sabia como Freya era capaz de brigar. Ele a amava também por isso.

— Há detalhes que só machucam, filho de humanos. Você fez o que precisava fazer. Deixe para lá, Mandred, e não faça perguntas.

— Quais foram as palavras dela? — insistiu ele.

— Você quer mesmo saber? Então... “Mas amaldiçoo o meu marido por ter arrancado o jovem tronco de sua família antes que ele pudesse criar raízes. Que ele nunca volte a encontrar uma casa para se tornar seu lar. Que ele vagueie sem descanso! Sem descanso como a minha alma, da qual ele arrancou tudo em que ela era capaz de se aquecer.”

Um nó duro como pedra formou-se na garganta de Mandred. Tentou engolir, mas a sensação não passou. Era como se estivesse sufocando.

— Tentei consolar a sua mulher — prosseguiu Emerelle. — Tentei contar sobre o futuro do seu filho, mas ela não quis ouvir nada e fez um gesto na direção da saída. Só ao fechar a porta atrás de si ela começou a chorar. Mas saiba, Mandred, que eu não tinha vontade de fazer atrocidades contra os homens. Seu filho era predestinado a crescer na Terra dos Albos. Chegará o dia em que os elfos precisarão da ajuda dos homens. E a linhagem que crescerá das sementes do seu filho será a que se manterá fiel à Terra dos Albos quando um mundo estiver em chamas. Agora é com você, Mandred. Leve seu filho de volta para as terras do fiorde. Dê a ele tudo o que um filho pode receber de seu pai. Ajude-o a encontrar o seu lugar entre os homens.

— O destino dele será tão cruel quanto o meu, rainha?

— Algumas coisas vejo com clareza, outras surgem de forma confusa e há também aquelas que não vejo. Já revelei demais sobre o vosso futuro! — Emerelle levantou a mão num gesto também dirigido à corte. — Ninguém deve conhecer o seu destino de forma precisa demais. Nas sombras do futuro, nenhuma vida é capaz de crescer.

As palavras de Noroelle

Farodin e Nuramon percorreram em silêncio o caminho até o terraço. Ambos estavam absortos em seus pensamentos. Após toda a estafa dos últimos dias, estavam loucos para rever a amada e ouvir a sua decisão. Farodin não conseguia deixar de pensar em todos os anos de cortejo a Noroelle, enquanto Nuramon ansiava pelo momento de poder dizer a Noroelle que havia mantido a sua promessa.

Ao atravessarem o portão e saírem para a noite, surpreenderam-se, pois quem estava no terraço não era Noroelle. Ali esperava uma elfa loura, de vestido cinza-claro, de costas para eles. Sua cabeça estava erguida. Ela parecia olhar para a lua.

Aproximaram-se, hesitantes. A elfa virou um pouco a cabeça, e pôs-se a escutar. Então suspirou e virou-se por completo.

Nuramon reconheceu-a imediatamente.

— Obilee!

Farodin estava, ao mesmo tempo, desconcertado e chocado. Sim, eles sabiam que tanto no mundo dos homens quanto ali, na Terra dos Albos, quase trinta anos haviam se passado. Mas só a visão de Obilee tornou claro para ele o que isso significava.

— Obilee! — disse Nuramon mais uma vez, encarando a elfa cujo sorriso não era capaz de esconder a melancolia dos olhos. — Você se tornou uma elfa maravilhosa. Exatamente como Noroelle disse.

Farodin via a imagem da grande Danee diante de si. Antes não havia mais que uma vaga semelhança, mas agora mal era possível distingui-la de sua avó. Vira Danee pela primeira vez na corte. Naquela ocasião, ele ainda era criança, mas ainda hoje se lembra nitidamente da admiração que tomou conta dele quando o olhar dela cruzou com o seu.

— Agora também estou vendo. Você tem algo da aura de Danee, bem como Noroelle sempre disse.

Obilee concordou.

— Noroelle tinha razão.

Farodin olhou para o pomar.

— Ela está lá embaixo?

A jovem elfa desviou o olhar.

— Não, ela não está no pomar. — Quando olhou novamente para ele, tinha lágrimas nos olhos. — Ela não está mais aqui.

Farodin e Nuramon trocaram um olhar inseguro. Farodin pensou nos trinta anos que haviam se passado. Será que Noroelle não acreditou que estavam mortos? Teria deixado a corte por isso e se recolhido na solidão?

Nuramon lembrou-se do silêncio na sala do trono. Todos que estavam lá sabiam de alguma coisa. O que poderia ter acontecido para deixar Obilee assim tão triste? Certamente não era a morte, pois ela é seguida do renascimento. Devia ser algo mais doloroso, e essa ideia provocava medo em Nuramon.

— Noroelle sabia — disse Obilee. — Ela sabia que vocês retornariam.

Farodin e Nuramon permaneceram calados.

— Anos se passaram, e vocês ainda estão carregando as coisas que levaram ao partir...

— Obilee! O que aconteceu? — perguntou Farodin de forma direta.

— O pior, Farodin. O pior de tudo.

Nuramon começou a tremer. Não pôde evitar pensar em todas as provas pelas quais passaram. Mas ele tinha feito de tudo para cumprir a sua promessa!

Como Obilee não prosseguia, Farodin perguntou:

— Noroelle nos abandonou? Ela voltou para Alvemer? Está desiludida?

Obilee deu um passo para trás e respirou fundo.

— Não... Ouçam estas palavras! Pois foi Noroelle quem as disse na noite em que foi embora.

Obilee olhou para cima.

— “Eu sabia que vocês retornariam. E agora vocês estão aí, e descobrirão o que aconteceu comigo.” — Ela dizia as palavras como se fosse Noroelle. O tom de sua voz refletia todas as emoções. — “Não façam mau juízo de mim quando descobrirem o que fiz e aonde o meu destino me levou. Pouco depois de vocês partirem, tive um sonho. Você, Nuramon, me visitou, e nós nos amamos. Um ano mais tarde dei à luz um filho. Pensei que fosse seu filho, Nuramon, mas eu me enganei. Pois não foi você quem esteve comigo naquela noite, mas sim o devanthar que vocês foram caçar no Outro Mundo.

Farodin e Nuramon ficaram sem ar. Só o pensamento de que o devanthar conseguira estar por perto de Noroelle já era insuportável para eles.

Farodin recordou da luta na caverna. O demônio havia facilitado demais para eles. Agora ele sabia por quê. Será que ele esteve sempre procurando um caminho até Noroelle?

Desolado, Nuramon abanou a cabeça. O devanthar assumira as suas feições para seduzir Noroelle. Havia se aproveitado do amor dela. Ela estava sonhando com ele quando o devanthar se aproximou e...

Obilee agarrou a mão de Nuramon, arrancando-o de seus pensamentos dolorosos.

— “Nuramon, não acuse a si mesmo. O demônio tinha o seu rosto. Eu me deixei seduzir pelo seu semblante e pelo seu corpo. Mas não pense que por isso sinta desprezo ou nojo. Eu o amo ainda mais do que antes. Por favor, não odeie a si mesmo, mas somente ao devanthar! Ele usou contra nós o que sentíamos um pelo outro. Somente se nos mantivermos fiéis ao que somos e ao que sentimos conseguiremos deixar para trás o que ele fez. Isso se torna irrelevante. Não se culpe.” — Obilee encarou-o como se estivesse esperando a sua reação. Havia uma súplica em seus olhos à qual ele não conseguia resistir. Ele respirou fundo e abanou a cabeça.

Então Obilee pegou a mão de Farodin.

— “E você, Farodin, não pense que já fiz a minha escolha. Não havia me decidido por Nuramon em segredo. Não foi por isso que o demônio veio até mim.”

— Mas onde você está, Noroelle? — perguntou Farodin. Ele estava confuso. Por um momento era como se sua amada realmente pudesse ouvi-lo.

Obilee sorriu deitando a cabeça para o lado, como Noroelle sempre fazia. Mas seus olhos não conseguiam esconder sua tristeza.

— “Eu sabia que faria essa pergunta, Farodin. Essa faísca que você me deixou ver naquela noite, esse olhar para o seu interior, isso bastou para conhecê-lo como sempre quis antes. Posso ler o seu íntimo exatamente como faço com o rosto de Nuramon. Onde estou? Vai doer em vocês saber disso. Pois estou em um lugar em que ninguém pode me alcançar. A rainha me baniu para sempre da Terra dos Albos. Agora nos separam barreiras que vocês não podem ultrapassar. Só me restam as lembranças; como a da noite da partida de vocês, em que tanto me deram. Você, Farodin, mostrou-me a luz do seu ser. E você, Nuramon, tocou-me pela primeira vez.”

Obilee deteve-se, e parecia hesitante. Por fim, disse:

— “Vocês também precisam saber por que fui banida. O filho que dei à luz tinha orelhas redondas, e a rainha o reconheceu como uma criança-demônio, filha do devanthar. Três noites após o parto, tinha a obrigação de me apresentar com meu filho à corte, mas a rainha enviou Dijelon e seus guerreiros durante a noite para matar o bebê. Levei meu filho para o Outro Mundo, para um lugar onde a rainha dificilmente o encontraria. E, quando estava diante de Emerelle, neguei-me a revelar o seu lugar de abrigo. Perdoem-me se puderem, pois não vi nenhuma maldade nos olhos do bebê. Agora vocês conhecem a minha mácula. Mas ela não deve ser a de vocês. Perdoem-me por ter agido de forma tão insensata.”— Obilee começou a chorar, pois naquele dia Noroelle também não conseguira mais conter as lágrimas. — “Por favor, lembrem-se dos lindos anos que passamos juntos, pois nada com vocês foi ruim; não aconteceu nada de que devamos nos arrepender. Aconteça o que acontecer, por favor, não me esqueçam. Por favor, não se esqueçam de mim...” — Obilee não conseguia conter seus sentimentos por mais tempo.

Finalizou dizendo:

— Essas foram as palavras de Noroelle! — Tinha a voz sufocada pelas lágrimas, afundando o rosto no ombro de Nuramon que, por sua vez, olhava para Farodin e percebia seu semblante congelado. Em suas feições não encontrou nenhuma lágrima, nenhuma emoção, sequer um mínimo sinal de tristeza. O próprio Nuramon mal era capaz de conceber o que Obilee dissera. Era demais para suportar assim, de uma só vez.

Farodin, contudo, viu nos traços de Nuramon tudo o que ele sentia em seu íntimo, todas as lágrimas e o sofrimento. Mas para ele pareciam que seus próprios sentimentos estavam separados do seu corpo. Estava ali em pé e não entendia como não estava chorando.

Demorou até que Obilee recobrasse a calma.

— Desculpem-me! Não pensei que seria tão doloroso. Carreguei essas palavras em mim ao longo de todos esses anos; palavras que Noroelle disse a uma jovem e que agora vocês ouvem de uma adulta. — Obilee afastou-se dos dois e andou até a borda do terraço. Ali apanhou algo do parapeito e voltou até eles. — Tenho um último presente de Noroelle para vocês. — Ela abriu as mãos e mostrou-lhes uma almandina e uma esmeralda. — São pedras do lago dela. Para que não a esqueçam.

Farodin pegou a esmeralda e pensou no lago. Noroelle dissera-lhe uma vez que as pedras cresceriam sob o feitiço da nascente.

Nuramon apanhou a almandina da mão de Obilee. Hesitou um pouco, e depois acariciou a superfície lisa da pedra castanha com as pontas dos dedos. Ele sentia a magia presente na gema, os poderes mágicos de Noroelle.

— Eu também os sinto — disse Obilee. — Ela também me deu um presente como esse. — A elfa tinha um diamante no pescoço, pendurado em uma corrente.

Nuramon segurava a almandina nas mãos e sentia sua magia suave. Era tudo o que restava de Noroelle: o calor e o sopro mágico desse presente.

Obilee recuou.

— Agora preciso ir — disse ela. — Desculpem-me! Preciso ficar sozinha.

Farodin e Nuramon seguiram-na com o olhar enquanto deixava o terraço.

— Por trinta anos ela carregou essa dor dentro dela — disse Nuramon. — Se para nós esses poucos dias pareceram uma eternidade, ela então viveu milhares de eternidades.

— Então esse é o fim — disse Farodin. Ele não conseguia entender. Tudo em sua vida girara em torno de Noroelle. Havia imaginado muita coisa: que morreria, que Noroelle escolheria Nuramon... Mas nunca, jamais, havia contado com isso.

— O fim? — Nuramon não parecia pronto para aceitar. Não, esse não era o fim. Era o começo, o começo de um caminho impossível. E mesmo que dissessem que não se deve desafiar demais o destino, ele faria de tudo para encontrar e libertar Noroelle. — Vou falar com a rainha.

— Ela não vai ouvi-lo.

— É o que vamos ver — retrucou Nuramon, querendo ir.

— Espere!

— Por quê? O que ainda tenho a perder? E você deveria se perguntar quão longe está disposto a ir por ela! — Com essas palavras, Nuramon desapareceu castelo adentro.

— Até o fim de todos os mundos — sussurrou Farodin consigo mesmo, pensando em Aileen.

Três faces

A porta para a sala do trono estava aberta. Na outra ponta, Nuramon viu a rainha de pé ao lado da tigela de prata. Queria entrar, mas mestre Alvias colocou-se no caminho.

— Aonde quer ir, Nuramon?

— Quero falar com a rainha sobre Noroelle e pedir clemência.

— Você não deve pisar nesta sala assim alterado!

— Você teme que eu erga a mão contra Emerelle?

Mestre Alvias olhou para baixo.

— Não.

— Então saia do meu caminho!

Alvias olhou para a rainha, que consentiu com a cabeça.

— Ela irá recebê-lo — disse ele, contrariado. — Mas domine os seus sentimentos! — Com essas palavras, afastou-se.

Enquanto Nuramon seguia em direção a Emerelle, ouviu o portão se fechar atrás de si. A rainha desceu até os degraus diante do trono. Seu semblante era de calma e bondade. Nunca vira ela personificar tão bem a mãe de todos os filhos dos albos.

Nuramon sentiu sua ira esvanecer. A rainha continuou ali, em silêncio, olhando-o como naquela noite em que o visitara em seu quarto e lhe dissera palavras encorajadoras. Era inevitável pensar na fala do oráculo que ela compartilhara e que para ele tanto significava.

— Eu sei o que está pensando, Nuramon. Aprecio em você que ainda não tenha aprendido a ocultar os seus sentimentos.

— E até agora sempre apreciei o seu senso de justiça. Você sabe que Noroelle jamais poderia fazer algo abominável.

— Obilee contou o que aconteceu?

— Sim.

— Esqueça por um momento que Noroelle era sua amada, e diga-me que ela não tem culpa!

— Ela é o que mais amo. Como poderia me esquecer disso?

— Então você não é capaz de entender o porquê de precisar ter feito isso.

— Eu não vim aqui para entender. Eu vim aqui para implorar misericórdia.

— A rainha nunca voltou atrás de uma sentença.

— Então também vou me exilar no lugar em que Noroelle está. Conceda a mim ao menos esse ato de misericórdia.

— Não, Nuramon. Não vou fazer isso. Não posso banir um filho de albos inocente.

E o que era Noroelle? Ela não era mais vítima que culpada? Ela fora enganada e estava sendo castigada por isso. Emerelle não deveria reunir suas forças para punir o verdadeiro malfeitor?

— Onde está o devanthar?

— Ele fugiu para o mundo dos humanos. Ninguém é capaz de dizer com que aparência ele se disfarçou. Só sabemos de uma coisa: ele é o último de sua espécie. E ele quer o nosso declínio. Sua essência é a vingança.

— A culpa de Noroelle será abrandada se formos capazes de exterminá-lo?

— O devanthar jogou o seu lance. Agora está só esperando para ver no que vai dar.

Nuramon estava em desespero.

— Mas o que podemos fazer? Não é possível que não possamos fazer nada!

— Há uma coisa... Mas a pergunta é se você está pronto para isso.

— Você pode pedir qualquer coisa... Prometo fazer tudo para libertar Noroelle.

— Uma promessa ousada, Nuramon. — A rainha hesitou. — Eu aceito a sua palavra. Consiga companhia e encontrem o filho de Noroelle. Lembre-se que agora ele já é adulto. Muitos já procuraram por ele em vão. Então você não é o primeiro a partir. Talvez tenha mais sorte, pois você tem a motivação necessária para encontrar o filho de um demônio.

— Noroelle temia pela vida de seu filho. Não devemos temer também?

Emerelle fez um longo silêncio e encarou Nuramon.

— Noroelle tinha escolha. Ela escolheu a condenação quando decidiu proteger o filho de um devanthar.

— E como posso ser capaz disso se não era o que ela queria?

— Suas promessas duram assim tão pouco? — objetou Emerelle. — Para que eu liberte Noroelle, você e seus companheiros precisam matar o filho do devanthar.

— Como você pode me infligir uma dor como essa? — retrucou Nuramon em voz baixa.

— Pense na sua culpa e na de seus companheiros. Porque vocês falharam, o devanthar conseguiu vir até Noroelle. Ele assumiu a sua forma, aproveitou-se de Noroelle e gerou esse filho. Por isso Noroelle não pôde desistir: por achar o tempo todo que você fosse o pai da criança, e que por isso ela carregava a sua alma. Ela até mesmo deu a ele o seu nome. Você não estará fazendo isso somente por Noroelle, mas também por você e por seus companheiros.

Nuramon hesitou. Não conseguia ficar alheio à verdade que havia em suas palavras. Ele tinha certeza de que jamais conseguiria matar uma criança. Mas o filho de Noroelle já seria há muito tempo um adulto. Certamente já haveria revelado sua verdadeira essência.

— Encontrarei o filho de Noroelle e o matarei — sentenciou.

— E eu escolherei os melhores guerreiros para acompanhá-lo. Farodin certamente o acompanhará.

— Não. Aceitarei a ajuda de seus guerreiros, mas não vou pedir a Farodin que me acompanhe. Se Noroelle voltar, ela tem o direito de me odiar por ter matado o seu filho. As mãos de Farodin, contudo, não estarão cobertas de sangue. Ela encontrará o amor que merece nos braços dele.

— Está bem, a decisão é sua. Mas ao menos você não rejeitará os cavalos do meu estábulo, tenho certeza. Escolha os mais apropriados para você e seus companheiros.

— Assim o farei, rainha.

Emerelle aproximou-se dele. Agora observava-o cheia de compaixão. O aroma que a cercava trazia calma.

— Todos nós devemos seguir o nosso destino até onde ele nos levar. Mas escolhemos como trilhar esse caminho. Acredite nas palavras com as quais o aconselhei naquela noite. Elas ainda valem. O que quer que digam sobre você no futuro, jamais poderão dizer que traiu o seu amor. Agora vá e descanse no seu quarto. A Caçada dos Elfos retornou, e vocês devem se recuperar em seus aposentos. Decida você mesmo quando quer partir. Dessa vez vocês não cavalgarão como a Caçada dos Elfos, mas somente a serviço da rainha.

Nuramon lembrou da armadura que Emerelle lhe concedera.

— Gostaria de lhe devolver a armadura, o casaco e a espada.

— Estou vendo, a armadura de dragão e o casaco lhe prestaram bons serviços. Deixe-os no seu quarto, como manda a tradição. Mas a espada é sua. É um presente. — Emerelle ergueu-se nas pontas dos pés e beijou-o na testa. — Agora vá e confie na sua rainha.

Nuramon obedeceu às suas palavras. Olhou para trás mais uma vez antes de deixar a sala. Ela sorria amigavelmente. Ao chegar lá fora e juntar-se aos outros, não conseguia entender a mudança de rumo que a conversa tomara. Emerelle o recebeu como uma mãe benevolente, julgou-o como uma rainha de coração gelado e dispensou-o como uma velha amiga.

Três grãos de areia

Farodin apoiou a cabeça na parede. Uma estreita faixa de luz iluminava a sala secreta que dava para a varanda dos aposentos da rainha. Ele não tinha permissão para estar ali.

Vestia um gibão discreto, uma calça justa e uma grande túnica com capuz, todos cinza, e também luvas finas de couro, um cinto largo e braçadeiras, nas quais havia punhais enfiados. Ele esperava não precisar fazer uso das armas. Embaixo dele, nas escadas e corredores secretos, Farodin ouvia ao longe as gargalhadas dos duendes. Toda uma nova geração deles já crescera desde o dia em que Noroelle foi condenada.

Numa fúria desamparada, Farodin cerrou os punhos. A dor ainda era recente demais. Fora o carrasco secreto da rainha tantas vezes e em nenhuma delas havia duvidado de seu elevado senso de justiça. Sequer uma vez pensara que as sentenças secretas de morte que cumpria pudessem não ser nada mais que pura arbitrariedade. Agora, uma sentença dela havia acabado com a sua vida, mesmo que ainda estivesse ali, vivo e respirando.

Ninguém conhecia Noroelle como ele. Ninguém sabia que um dia fora Aileen, aquela que perdera a vida ao seu lado na violenta luta contra os trolls. Procurou por ela ao longo de séculos, e agora, que a havia encontrado, estava sendo arrancada dele mais uma vez. E, desta vez, não podia contar com o renascimento de Aileen. Se ela morresse em seu local de exílio, então não haveria caminho de volta. Sua alma ficaria aprisionada para sempre naquele lugar.

Lágrimas de raiva escorriam pela face de Farodin. Noroelle fora enganada por um devanthar, uma criatura conhecida justamente como mestre da enganação! E o demônio se aproveitara do amor dela...

Por que havia assumido a forma de Nuramon? Farodin se esforçava para suprimir as dúvidas, que só cresciam. Em vão. Será que o devanthar sabia de algo? Será que Noroelle escolheria Nuramon quando a Caçada dos Elfos retornasse? E se o que ela disse a Obilee fossem somente palavras ao vento, um consolo para ele diante da certeza de que nunca voltariam a se ver?

No fim de tudo, ela ainda se entregara rápido demais ao Nuramon falso. Ambos a cortejaram por tantos anos, e ela nunca havia conseguido tomar uma decisão... E de repente pôde tomá-la em uma só noite. “Deve ter sido o feitiço do devanthar”, Farodin tentou convencer a si mesmo.

Noroelle era inocente! Seu coração era puro. Ela tem o coração puro! Ela está viva! E por isso ele a encontraria, jurou Farodin para si mesmo. Tanto fazia quanto tempo a sua busca pudesse durar. A rainha estava errada ao impor a Noroelle a pior de todas as penas. Ele não aceitaria a sentença. Farodin olhou para o pequeno vão iluminado no fim da escada. Ele realmente não devia estar ali. Mas que diferença fazia agora? Emerelle o usara para exercer a sua justiça quando o direito falado já não ajudava mais. Agora ele faria a sua própria justiça!

Decidido, Farodin espremeu-se para passar pelo vão estreito. Saiu cautelosamente para o parapeito da varanda e olhou para as profundezas. Uma cúpula de gelo ocultava a sala do trono do seu olhar, mas ele sabia que Emerelle estava ali embaixo, acompanhada da corte.

Aproximou-se da ampla porta que dava para os aposentos da rainha e encontrou-a destrancada. Seria por causa de sua arrogância? Será que confiava que os tabus fossem mais fortes que as trancas?

Farodin apagou as pegadas rasas que deixara na neve e abriu cuidadosamente a porta. Durante todos os séculos em que foi o carrasco secreto de Emerelle, nunca esteve em seus aposentos. A decoração modesta o surpreendeu. Os poucos móveis eram de uma elegância despretensiosa. A luz da chama na lareira mergulhava o quarto numa meia-luz avermelhada que o tornava agradavelmente quente.

Desnorteado, Farodin olhou em volta. Sabia que havia um quarto de vestir — uma sala onde a rainha guardava suas luxuosas vestes. Noroelle falara dela uma vez. Era ali que devia iniciar a sua busca! Precisava encontrar o vestido que Emerelle usava quando levou Noroelle para o seu exílio. Mas onde podia estar escondida a entrada para o quarto de vestir? Não via mais nenhuma porta além da que dava para a varanda e de outra que devia dar nas escadas. Tateou as paredes, olhou por trás de tapeçarias e finalmente se viu diante de um grande espelho. Sua moldura era de ébano com incrustações de madrepérola. Deslizou os dedos sobre o desenho de flores e folhas. Havia uma rosa contornada por um vão visível. Apertou cuidadosamente a peça de madrepérola.

Farodin ouviu um clique baixo e o espelho então deslizou para o lado. Surpreso, deu um passo para trás. A entrada para um cômodo repleto de silhuetas luminosas revelou-se. Silhuetas sem cabeça. O elfo respirou fundo e riu baixo. Eram só vestidos. Estavam esticados sobre manequins de varas de vime para que mantivessem a forma. Sob os manequins havia velas aromáticas, que os faziam brilhar como grandes lampiões.

Se o quarto de dormir da rainha era modesto, este era maravilhoso. Farodin foi totalmente envolvido pela enorme variedade de aromas. Pêssego, almíscar e menta eram os perfumes que prevaleciam. Emerelle não se vestia só de túnicas, mas também de perfumes.

O quarto se curvava acompanhando o formato exterior da torre, de forma que não era possível vê-lo por completo olhando da porta. Farodin atravessou a soleira e o espelho fechou-se atrás dele. O elfo ainda estava dominado pela infinidade de estímulos. Junto às paredes havia almofadas de veludo acomodadas sobre pequenos nichos, sobre as quais brilhavam as joias da rainha. Pérolas e pedras preciosas de todos os tons do arco-íris emanavam uma luz quente. Devia ser um grande prazer sonhar entre todos aqueles vestidos e joias.

Mas quanto a janelas, ali estranhamente não havia nenhuma.

— Noroelle — sussurrou o elfo.

Ela teria amado o quarto de vestir da rainha. A infinidade de vestidos. Os trajes de caça de veludo e couro, os vestidos de noite refinadíssimos, as túnicas transparentes e incrivelmente macias que Emerelle jamais vestiria na presença da corte. Os brocados magníficos, mantidos no formato por barbatanas de baleia e arames; os corpetes para eventos solenes e cerimoniais na corte, que nada mudaram ao longo dos séculos.

Havia infinitas estantes repletas de sapatos enfiados em suportes que lhes preservavam a forma. Calçados de dança estreitos, sapatos de tecido e botas de pernas de couro. Um longo friso estava cheio de luvas.

Farodin ajoelhou-se e tirou de sua bolsa de couro um anel com três pedras cor de vinho. Era o anel de Aileen. Havia sido de grande ajuda durante sua busca por ela. Era uma âncora firmemente presa aos abismos do passado e ajudava-o a se concentrar em sua amada. A esmeralda, presente de despedida de Noroelle, seria uma segunda âncora. Murmurou baixinho as familiares palavras mágicas e iniciou o feitiço de busca. Era o único feitiço que ele dominava, pois o experimentara durante os séculos em busca de Aileen.

Entre todos os vestidos deste quarto devia estar a túnica que Emerelle vestia quando levou Noroelle para o exílio. Se conseguisse encontrá-lo, poderia ser o primeiro passo na direção da amada. Farodin tinha um plano. Era tão desesperado que não o contaria a ninguém.

O poder do feitiço tomou conta do elfo. Agarrou a pedra preciosa e a ergueu lentamente. De olhos fechados, Farodin tateou o quarto de vestir, guiado somente por uma tênue intuição. A saudade e as lembranças iam ficando mais densas. Por um instante, foi como se pudesse ver com os olhos de Noroelle. Viu as feições da rainha; seu rosto refletia determinação e uma tristeza contida. A imagem desapareceu. Farodin abriu os olhos. Viu-se diante de um manequim sobre o qual estava esticado um vestido de seda azul entrelaçada por fios de ouro e prata, formando sinuosas estampas de runas. A luz das velas sob o vestido tornava as varas de vime visíveis, fazendo-as parecer ossos.

Um arrepio percorreu as costas de Farodin. Então era isso o que Emerelle vestia quando baniu a sua amada. Seus dedos deslizaram sobre o tecido macio. Lágrimas vieram-lhe aos olhos. Ficou ali em pé por um longo tempo, somente lutando para recobrar o controle.

As runas no tecido tinham poderes mágicos. Ao passar os dedos por elas, ele sentia um leve formigamento e mais ainda... Sentia o que Noroelle sentiu no momento da despedida. Um pouco dela ficou preso nas runas. E nelas não havia medo. Ela se entregara a seu destino e fora em paz com a rainha e consigo mesma.

Farodin fechou os olhos. Seu corpo todo tremia. O poder das runas também se apoderou dele. Viu uma ampulheta se quebrar sobre uma pedra e sentiu o equilíbrio mágico se alterar. O caminho para Noroelle estava fechado. Ela estava aprisionada. E impossível de ser encontrada.

O elfo caiu de joelhos. Numa teimosia desesperada, fez novamente o feitiço de busca. Ele sabia o que havia acontecido. Mas simplesmente saber e vivenciá-lo intensamente pelo poder das runas eram coisas totalmente diferentes...

— Venha! — sussurrou ele. — Venha para mim!

Estendeu a mão e pensou na ampulheta. Um golpe de vento o atingiu e quis arrastá-lo. Estava no meio de areias sinuosas e parecia preso no redemoinho da ampulheta.

Assustado, Farodin abriu os olhos. Tinha sido somente uma visão, uma miragem nascida de sua saudade... O quarto de vestir parecia estar mais escuro, como se houvesse algo de estranho ali. Algo que asfixiava a luz das velas aos poucos.

Três minúsculos pontos luminosos ergueram-se da seda fria e azul e pairaram até a mão de Farodin. Três grãos de areia da ampulheta que Emerelle destruíra. Provavelmente ficaram presos nas pregas do vestido.

O feitiço e o turbilhão de sentimentos acabaram com as forças de Farodin. Mas os três pontos de luz, que lentamente enfraqueciam, plantaram novas esperanças em seu coração. Ele reencontraria Noroelle, mesmo que precisasse procurar mais sete séculos por ela. Jogou a esmeralda no fundo do bolso da calça. Os grãos de areia, contudo, queria manter bem guardados na mão. Eles eram a chave. Se encontrasse todos os grãos de areia da ampulheta destruída, então conseguiria quebrar o encanto da rainha. Esse era o único caminho que o levaria à sua amada!

Partida noturna

Era tarde da noite e tudo no castelo tornara-se calmo. Lá fora se ouvia o leve barulho do vento. Nuramon olhou a noite clara através da janela aberta. Tinha parado de nevar. O luar era refletido pela neve e emprestava a tudo um brilho prateado. Logo o sol do amanhecer transformaria a prata em ouro. Não conseguia imaginar momento mais apropriado para a sua partida.

Tinha já tudo preparado. Seu olhar deslizou para a armadura e o casaco, que novamente descansavam sobre o suporte. Tinham sido de grande serventia no mundo dos homens. Mas agora Nuramon vestia a roupa com a qual Noroelle o vira pela última vez. Era um traje simples de couro macio que quase não lhe oferecia proteção no caso de uma eventual batalha, embora duvidava que fosse precisar de alguma. Afinal, não se tratava de enfrentar uma besta, mas de matar um homem provavelmente desarmado. Não havia nada de brilhante nessa tarefa. Ele se envergonharia disso para sempre.

Observou a espada. A rainha, com efeito, lhe presenteara com a espada de Gaomee. Era evidente que queria que a tarefa fosse executada com aquela lâmina. Desde que pegou a arma na mão, parecia haver uma maldição presa a ela. Por isso, não abriria mão dela. Afinal, quem ia querer carregar essa arma depois de seus infelizes dedos a terem tocado?

Alguém bateu na porta.

— Entre — disse Nuramon, esperando que fosse alguém a serviço da rainha, um companheiro que ela lhe destinou e a quem ele podia ter imposto a obrigação de ficar em silêncio. Mas essa esperança aparentemente não se cumpriria.

Mandred e Farodin entraram. Tinham semblantes aflitos.

— Que bom que você ainda está acordado — disse Farodin, que parecia comovido.

Nuramon tentou não deixar transparecer nada. Era melhor esconder de seus companheiros a qualquer preço a missão vergonhosa que aceitara.

— Não estou conseguindo dormir. — Isso até era verdade. Naquela noite mal conseguira pregar um olho.

Farodin apontou para o filho de humanos.

— Mandred me disse que você falou a sós com a rainha. Então ela o recebeu.

— Sim, ela me recebeu.

— Também tentei ser ouvido por ela, mas, desde que você esteve lá, ela não aceitou ver mais ninguém. Rumores estranhos estão correndo por aí.

— Que rumores? — perguntou Nuramon, esforçando-se para esconder sua agitação.

— Alguns dizem que a rainha o acalmou e que você aceitou a sentença dela. Outros afirmam que ela lhe deu consentimento para procurar por Noroelle.

— Isso Emerelle não me permitiu. Mas aceitei sua sentença.

A suspeita tomou conta do rosto de Farodin.

— Não esperava isso de você.

Finalmente Farodin demonstrava alguma emoção! Talvez o melhor fosse atrair o ódio dele para si. Assim, Farodin conseguiria encarar Noroelle com a consciência limpa.

Mandred fez uma cara desconfiada. O filho de humanos parecia ter percebido que Farodin entendeu errado as palavras de Nuramon.

— Como você pode duvidar de Noroelle dessa forma? — prosseguiu Farodin, decepcionado. — Você realmente a amou um dia?

Mesmo que as palavras do amigo não tivessem justificativa, elas doeram.

— Eu a amo mais do que nunca. E por isso machuca tanto saber que não podemos fazer mais nada. Não podemos obrigar a rainha a libertar Noroelle. — Para Nuramon era difícil omitir a verdade.

Agora Farodin parecia também ter ficado desconfiado. O companheiro o encarava como se pudesse ver o que se passava dentro dele.

— O que o garoto está dizendo é balela — afirmou Mandred secamente.

— E ele é um péssimo mentiroso — completou Farodin.

Mandred viu as bolsas sobre o banco de pedra.

— E eu estou quase suspeitando que ele quer partir para encontrar a amada sem nós.

— O que a rainha disse? — insistiu Farodin. — Você pediu para também ser banido? Você tem permissão para ir onde Noroelle está?

Nuramon sentou-se no banco, ao lado das bolsas.

— Não. Eu tentei de tudo. Mas a rainha não se deixou convencer por nada. Não quis me mandar para o exílio. Mesmo que matássemos o devanthar de vez, isso não mudaria nada.

— E então você quer partir sozinho para procurar Noroelle.

Nuramon olhou Farodin longamente. Era impossível esconder dele o seu plano.

— Queria que fosse tão fácil. Queria poder pegar minhas coisas, partir e procurar qualquer forma de ajudar Noroelle. — Fez uma pausa. — Se eu pedir para simplesmente me deixar partir sem fazer perguntas, você faria isso?

— Ainda tenho uma dívida para saldar. Você me buscou de volta da morte... Mas penso que o destino ligou nós dois. E acho que Noroelle ainda não fez a sua escolha. Por isso o nosso destino é procurá-la juntos.

— Poucas horas atrás poderia ter sido assim, da forma como você diz.

A conversa com a rainha tinha mudado tudo.

— O que a rainha disse a você? — perguntou Farodin novamente. — Tanto faz no que você se meteu, não vou odiá-lo por isso. Mas agora fale!

— Então está certo — disse Nuramon, levantando-se. — Ela disse que não havia jeito de salvar Noroelle. E eu prometi que faria tudo o que ela exigisse.

— Isso foi um erro. — Farodin sorriu piedoso. — Será que você nunca vai aprender?

— Você me conhece, Farodin. E sabe como é fácil me induzir a fazer besteiras. Emerelle também sabia disso.

Mandred se meteu novamente na conversa.

— E o que ela exigiu de você?

Nuramon desviou o olhar do filho de humanos. De todos eles, era quem havia pago o preço mais alto.

— O que ela quer de você agora? — insistiu Farodin.

Nuramon hesitou em responder, pois logo que seu companheiro soubesse a verdade também não haveria mais sorte em sua vida.

— Diga, Nuramon!

— Você tem certeza de que quer ouvir, Farodin? Às vezes é melhor não conhecer a verdade. Se eu disser, nada será como antes para você. Se ficar em silêncio, você pode ser feliz... Eu imploro! Deixe-me partir sem arrancar mais nada de mim e sem me seguir! Por favor!

— Não, Nuramon. Qualquer que seja esse fardo, nós temos de carregá-lo juntos.

Nuramon suspirou.

— Foi você quem quis assim. — Mil pensamentos passaram por sua cabeça. Será que lhe faltavam forças para cometer aquele assassinato sozinho? Será que no fundo ele queria dividir a culpa com Farodin, por isso estava cedendo? Não era presunçoso querer decidir sozinho? Farodin não tinha direito de saber o que a rainha exigira? — Vou partir para procurar o filho de Noroelle e matá-lo — disse Farodin baixinho.

Farodin e Mandred olhavam-no fixamente como se ainda estivessem esperando por suas palavras.

— Deixem-me ir sozinho! Você ouviu, Farodin? Espere aqui até Noroelle voltar.

— Ele sabia o que aconteceria agora. Não havia mais volta.

Como se estivesse anestesiado, Farodin sacudiu a cabeça.

— Não, não posso fazer isso. Você acha que vou ficar aqui sentado esperando por Noroelle? O que direi a ela quando voltar? Que o deixei partir sabendo que iria matar seu filho? Não, agora que eu sei, tenho só duas possibilidades: posso detê-lo ou acompanhá-lo... Se eu o impedir, Noroelle não receberá ajuda. Então preciso compartilhar do seu destino de salvá-la.

Mandred balançou a cabeça, perplexo.

— Oh, Luth, mas em que trama você foi meter esses elfos!

— Parece que os seus deuses não estão do nosso lado — confirmou Nuramon. — Mas, no fundo, a culpa é nossa. A rainha me lembrou do nosso fracasso na caverna. — E contou a seus companheiros a repreensão de Emerelle.

— E por acaso é nossa culpa que não sejamos albos? — indignou-se Mandred.

— Se é assim, então nascemos com essa culpa. Toda a nossa existência está marcada por esse estigma. Parece que há trilhas ainda mais sombrias diante de nós. Vamos partir!

Nuramon voltou-se para o filho de humanos.

— Nossos caminhos se separam aqui, Mandred. Você encontrou o seu filho. Dedique seu tempo a ele e seja ao menos agora o pai de que o destino o privou. Você não está condenado como nós. Trilhe o seu caminho e deixe-nos seguir o nosso soturno destino.

O filho de humanos fez uma cara aborrecida.

— Tolices de elfo! Se a rainha diz que nós devíamos ter vencido o demônio, então eu também falhei. A partir de agora, nossos caminhos estão entrelaçados.

— Mas, o seu filho! — intrometeu-se Farodin.

— Ele nos acompanhará. Preciso mesmo ver se ele serve para alguma coisa. Não me levem a mal, mas não posso imaginar que seja bom para um rapaz crescer numa corte de elfos. Os perfumes daqui... As camas macias, a comida fina... Aparentemente, ele nunca aprendeu como estripar um antílope, e não sabe que depois deixamos a carne pendurada alguns dias para que fique bem tenra. Então nem tentem me impedir de levá-lo conosco. A partir de agora, a regra é: aonde vocês vão, Mandred também vai!

Nuramon trocou um olhar com Farodin. Já conheciam aquele cabeça-dura o bastante para saber que não conseguiriam dissuadi-lo de sua decisão. Farodin acenou de forma quase imperceptível com a cabeça.

— Mandred Aikhjarto! — começou Nuramon. — Você tem a solidez do velho Atta. Se é esse o seu desejo... É uma honra para nós tê-lo ao nosso lado.

— Quando partimos? — perguntou Mandred, ansioso para agir.

Antes que Nuramon pudesse responder, Farodin disse:

— Imediatamente. Antes que percebam alguma coisa.

Mandred riu, satisfeito.

— Então vamos lá! Vou preparar as minhas coisas. — E com essas palavras, deixou o quarto.

— O filho de humanos é tão barulhento que não vamos conseguir escapar despercebidos — disse Farodin.

— Quantos anos Mandred tem? Quanto tempo vive um humano?

— Não sei direito. Talvez cem anos?

— Ele está disposto a sacrificar o seu curto tempo de vida para nos ajudar. Será que ele tem ideia de quanto tempo a nossa busca pelo filho de Noroelle pode durar?

Farodin deu de ombros.

— Não sei dizer. Mas tenho certeza de que ele está falando sério. Não se esqueça do poder de Atta Aikhjarto. O velho carvalho mudou-o quando o salvou. Ele não é mais como os outros homens.

Nuramon concordou com a cabeça.

— Será que ainda dá para ficar pior? — perguntou Farodin subitamente.

— Se fizermos o que a rainha exige, vamos de fato libertar Noroelle, mas para isso teremos de conviver para sempre com o seu desprezo. O que pode ser pior que isso?

— Vou pegar as minhas coisas. — Foi tudo o que Farodin respondeu. Deixou o quarto sem fazer barulho.

Nuramon aproximou-se da janela e olhou para a lua. O desprezo de Noroelle, pensou com tristeza. E, sim, ainda era possível piorar. Podia ser que ficasse desesperada ao saber que seus amados mataram seu filho. O destino, ou Luth, como Mandred o chamava, os conduzira por um caminho doloroso. Em algum momento a sorte tinha de surgir.

Não demorou até que Farodin voltasse. Esperaram em silêncio pelo filho de humanos, até que soaram vozes no corredor.

— ... Isso é vingança — disse Mandred.

— A vingança não vai mudar nada. Minha mãe está morta. E o que o filho de Noroelle tem a ver com isso?

— Ele também é filho do devanthar. A dívida de sangue do pai dele foi transmitida a ele.

— Isso tudo é loucura! — retrucou Alfadas.

— Então foi isso o que os elfos ensinaram a você! No meu mundo, o filho obedece a palavra do pai. E é exatamente o que você vai fazer agora!

— Senão, o que acontece?

Nuramon e Farodin se entreolharam. De repente o silêncio diante da porta era mortal.

— O que eles estão fazendo? — perguntou Nuramon num murmúrio.

Farodin deu de ombros.

A porta se abriu de repente. Mandred estava com a cara vermelha.

— Eu trouxe o meu filho. Para ele é uma honra nos acompanhar.

Farodin e Nuramon apanharam as suas trouxas.

— Vamos! — disse Nuramon.

Alfadas esperava diante da porta. Esquivou-se do olhar de Nuramon, como se estivesse com vergonha do pai.

Devagar, puseram-se a caminho até os estábulos.

As baias estavam iluminadas, apesar das altas horas da noite. Um servo de pernas de bode abriu o portão para eles, como se os estivesse esperando. E não estava sozinho. Quatro elfos vestidos de longas túnicas cinzentas estavam de pé ao lado dos cavalos, equipados como se quisessem ir para a guerra. Todos vestiam trajes de malha de ferro e estavam bem armados. Seu líder virou-se com um sorriso estreito no rosto e olhou para Mandred.

— Ollowain! — gemeu o filho de humanos.

— Bem-vindo, Mandred! — respondeu o guerreiro, e dirigindo-se a Nuramon: — Estou vendo que encontrou parceiros de armas. Isso fortalecerá nosso poder de luta.

— Mestre! — Alfadas estava surpreso.

Mandred fez uma careta, como se tivesse levado um pisão de cavalo nas partes baixas. Nuramon sabia o que Mandred achava de Ollowain. Era uma terrível peça que o destino lhe pregava, que seu filho tivesse sido treinado justamente por esse guerreiro elfo.

Ele deu um passo à frente.

— Foi a rainha quem os escolheu? — perguntou a Ollowain.

— Sim. Ela disse que devíamos aguardar aqui, a postos. Ela sabia que você não perderia tempo.

— Ela também disse qual é a missão?

O sorriso de Ollowain desapareceu.

— Sim. Nós devemos matar o filho do demônio. Não posso imaginar o que se passa dentro de vocês, mas sou capaz de ver o quão amargo esse caminho deve ser. Noroelle sempre foi boa para mim. Temos de ver na criança não o seu filho, mas o do devanthar! Só dessa forma seremos capazes de vencer nossa tarefa.

— Nós vamos tentar — disse Farodin.

Ollowain apresentou-lhes seus acompanhantes.

— Estes são meus sentinelas, os melhores guerreiros da Shalyn Falah. Yilvina é um verdadeiro furacão na luta com duas espadas curtas. — Apontou para a elegante elfa à sua esquerda. Tinha cabelos curtos e louros e retribuiu o olhar de Nuramon com um sorriso maroto.

A seguir Ollowain apresentou Nomja, uma guerreira esguia. Devia ser muito jovem; seus traços finos eram quase infantis. Estava apoiada em seu arco como um soldado experiente, mas o gesto parecia estudado.

— E este é Gelvuun.

O guerreiro tinha uma espada longa afivelada às costas, cujo punho se podia ver debaixo da túnica. Retribuiu o olhar de Nuramon de forma inexpressiva. Isso não surpreendeu o elfo, que já ouvira falar dele. Era conhecido como um brigão rabugento. Alguns diziam existirem trolls mais sociáveis que ele. Mas, na sua presença, as zombarias cessavam.

Ollowain aproximou-se de seu cavalo e apanhou um machado de cabo longo que estava pendurado na sela. Virou-se com destreza e lançou-o para Mandred.

O coração de Nuramon deu um pulo, mas sentiu alívio ao ver Mandred pegá-lo no ar. O filho de humanos alisou a lâmina dupla da arma quase carinhosamente, e admirou os retorcidos nós élficos que a enfeitavam.

— Belo trabalho. — Mandred dirigiu-se a seu filho: — É assim que é uma arma de homem.

Quis devolvê-lo a Ollowain, mas ele sacudiu a cabeça.

— É um presente, Mandred. No mundo dos homens devemos estar sempre preparados para aborrecimentos. Estou ansioso para ver se você luta melhor com o machado do que com a espada.

Mandred brincou com o machado, fazendo-o rodopiar no ar.

— É uma arma bem balanceada. — De repente ficou imóvel e aproximou o ouvido da lâmina do machado. — Ouviram? Ela está pedindo sangue.

Nuramon sentiu o estômago encolher. Será que Ollowain presenteara o humano com uma arma com algum tipo de maldição? Nuramon conhecia algumas histórias sombrias sobre espadas que precisavam derramar sangue toda vez que eram puxadas. Eram armas coléricas, forjadas nos piores dias da primeira Guerra dos Trolls.

Um silêncio incômodo instaurou-se no grupo. Ninguém além de Mandred ouvia o grito do machado, mas isso não queria dizer nada.

Finalmente, Alfadas foi até um dos boxes bem no fundo do estábulo e selou um cavalo. Isso quebrou o encanto do silêncio.

Nuramon perguntou ao servo do estábulo:

— A rainha preparou cavalos para nós?

O pernas de bode apontou para a direita.

— Lá estão eles.

Nuramon não acreditou no que seus olhos viram. Era o seu cavalo branco!

— Felbion! — gritou, indo até ele.

Farodin também estava surpreso de rever o seu cavalo castanho. Até Mandred disse:

— Por todos os deuses, esse é o meu cavalo!

Conduziram os animais até Ollowain.

— Como isso é possível? — perguntou Nuramon. — Tivemos de deixá-los para trás no Outro Mundo.

— Nós os encontramos perto do círculo de pedras do fiorde. Estavam esperando por vocês — esclareceu Ollowain. Ele olhou para o rapaz do estábulo. — Ejedin cuidou bem deles. É verdade, não é?

— Com certeza — respondeu o fauno. — Até a rainha veio ver os cavalos algumas vezes.

Nuramon achou que esse era um bom presságio. Até o ânimo de Farodin pareceu melhorar. Nuramon reparou que Farodin se comportava de forma reservada diante de Ollowain. Não era antipatia, como no caso de Mandred. Talvez Farodin já não confiasse na rainha tanto quanto antes e, como Ollowain era um criado dela, devia também desconfiar dele.

A manhã se aproximava com suas asas prateadas quando o grupo saiu com seus cavalos para o pátio. O castelo ainda estava silencioso. Ninguém os veria partir além dos guardas do portão. A diferença em relação à última partida não poderia ser maior. Naquela vez se puseram a caminho à luz do dia, como heróis. E agora saíam assim, furtivamente, esquivando-se como capangas.

A saga de Alfadas Mandredson

A primeira viagem

Ainda no mesmo inverno, Mandred e Alfadas deixaram lado a lado o reino dos albos. O pai queria se certificar de que o filho era digno de um sucessor seu. Eles partiram com os príncipes elfos Faredred e Nuredred e procuraram aventuras onde elas se ofereciam. Eles jamais fugiam à luta, quem se colocasse em seu caminho se arrependeria antes mesmo de o primeiro golpe ser dado. Alfadas seguiu seu pai por lugares que nenhum habitante dos fiordes já vira antes. Mas o filho de Torgrid preocupava-se demais com o seu rebento. Instruiu-o na luta com o machado, mas só raramente permitia que Alfadas pusesse à prova o seu conhecimento. E sempre que o perigo era grande, o filho de Mandred era incumbido de vigiar os cavalos ou o acampamento.

Um ano se passou, e Alfadas então disse a Mandred: “Pai, como posso aprender a ser como você se sou sempre protegido de qualquer perigo? Se você sempre temer que algo aconteça a mim, então nunca me tornarei o jarl de Firnstayn”.

Mandred reconheceu que até então estava privando sua carne e sangue de qualquer glória. Pediu conselhos aos príncipes elfos. Eles disseram-lhe que deveria submeter seu filho a uma prova. Então, à noite, Mandred saiu furtivamente para subir uma montanha cheia de perigos. Ao chegar ao cume, cravou o seu machado no chão e, sem ele, retornou até o vale. Na manhã seguinte, disse a Alfadas: “Suba aquela montanha e apanhe o que escondi lá em cima”.

Alfadas então partiu. Mandred foi tomado pela preocupação, pois a subida da montanha era repleta de perigos. Alfadas, contudo, esforçou-se e finalmente encontrou uma caverna no cume. Lá havia uma espada no gelo. Apanhou-a e escalou até o topo para desfrutar a vista. Encontrou o machado do pai, mas deixou-o onde estava e retornou ao vale para junto dos outros. Eles ficaram admirados ao ver a espada desconhecida. Somente Mandred se aborreceu: “Filho! Essa não é a arma que escondi lá em cima”.

Alfadas, então, retrucou: “Mas, pai, a única arma escondida lá era esta espada. O seu machado estava exposto, enfiado no gelo do cume. Se eu tivesse a visão de uma águia, certamente poderia vê-lo daqui. Você me indicou o alvo errado, embora tenha me mostrado o caminho correto”.

Então Mandred precisou escalar a montanha mais uma vez para buscar o seu machado e retornou praguejando. Mas, quando Faredred e Nuredred esclareceram ao filho de Torgrid que reconheciam na espada de Alfadas uma nobre espada da Terra dos Albos, a ira de Mandred desapareceu e ele ficou orgulhoso de seu filho, pois a espada era digna de um rei. Alfadas decidiu que seria a sua arma no futuro, porque fora um presente de Luth. Disse ao pai: “O machado é a arma do pai, e a espada, a do filho. Assim pai e filho nunca poderão ser comparados um ao outro”.

Seguiram viagem, mas Mandred ainda tinha dúvidas quanto a seu filho. Pouco depois, cruzaram uma cordilheira. Dizia-se que um troll vivia ali. À noite, ouviram o som de marteladas e pensaram que o troll queria assustá-los. Faredred e Nuredred então decidiram descer para abater o monstro, mas Mandred os deteve. Disse ao filho: “Vá você até o troll! De suas ações tirarei a sua medida”.

Alfadas desceu corajosamente até a caverna do troll. Encontrou-o em pé ao lado de uma bigorna. O troll o viu e ergueu seu martelo. Então Alfadas ameaçou-o com sua espada e disse: “Uma parte de mim vê um inimigo e diz: acabe com ele! Outra parte vê um ferreiro diante dos olhos. Decida o que você quer ser!”.

O troll preferiu ser seu inimigo e atacou-o. Mas Alfadas desviou dos pesados golpes de martelo e o fez sentir sua espada. Então o troll se rendeu e disse: “Meu nome é Glekrel, e se você poupar a minha vida, irei dar-lhe um presente digno de um rei”.

Alfadas não confiou no troll. Mudou de ideia quando a criatura apanhou uma armadura élfica e a entregou a ele. Alfadas, cheio de alegria, despiu a sua para vestir a que ganhara. Mas, antes que estivesse pronto, foi atacado novamente. Então o jovem guerreiro foi tomado por uma fúria tamanha que arrancou uma das pernas do troll. E seguiu seu caminho, levando a armadura élfica no corpo. Até hoje a armadura está em posse do rei e lembra esses dias passados. Mesmo os trolls conhecem o ocorrido, pois Glekrel sobreviveu e narrou o que o filho de Mandred lhe fizera.

Na manhã seguinte, Alfadas retornou para seus companheiros. E, quando Mandred viu o filho, ficou novamente orgulhoso de ser seu pai. Alfadas agora realmente tinha o aspecto de um rei.

A seguir, os companheiros percorreram as campinas do sul, depararam-se com um vasto mar e poderosos reinos. Realizaram grandes feitos, de forma que seus nomes ainda hoje estão na boca de todos. Certa vez, fizeram recuar uma centena de guerreiros de Angnos para salvar uma aldeia que lembrava a jovem Firnstayn. Também libertaram as celebrações de Rileis de seus espíritos. Em numerosos duelos, Alfadas mostrou-se um hábil espadachim, comparável a Faredred e Nuredred. Então já haviam se passado mais dois anos quando Mandred e Alfadas, por amizade aos príncipes elfos, os seguiram até a cidade de Aniscans. Ali os príncipes queriam procurar uma certa criança trocada...

Conforme narrativa do bardo Ketil, Livro 2 da biblioteca do templo de Firnstayn, pág. 42

O milagreiro de Aniscans

Três anos se passaram desde que os guerreiros deixaram a Terra dos Albos. Ainda assim, todos os dias havia algo de novo para Nuramon descobrir no mundo dos humanos. As línguas humanas o interessavam em especial: já havia aprendido muitas delas. Por isso se surpreendia com o quanto era difícil para Mandred aprendê-las. Alfadas, que Mandred sempre chamava de Oleif, embora esse nome humano lhe fosse estranho, tinha as mesmas dificuldades com isso. A esse respeito, pouco parecia servir-lhe o fato de ter crescido entre elfos. Que estranhos eram os humanos!

A busca pelo filho de Noroelle não dera resultado até então. Tinham cruzado as grandes florestas de Drusna; passado pelo Reino de Angnos, devastado pela guerra; procurado durante muitas luas nas esparsas Ilhas Aegílicas e, por fim, chegado ao Reino de Fargon. Era um lugar verde e fértil; um lugar que queria ser conquistado pelos humanos, como Mandred sempre repetia. Muitos refugiados de Angnos chegaram ali nos últimos anos, trazendo suas crenças. Alguns dos poucos humanos que já viviam ali há gerações recebiam os estranhos com curiosidade, enquanto outros os viam como uma ameaça.

Os companheiros tinham seguido muitos rastros. Sua única esperança era que o filho de uma elfa com um devanthar possuísse poderes mágicos. Se ele fizesse uso desse dom, destacaria-se entre os demais. Os humanos falariam dele. Então, os guerreiros iam atrás de cada história sobre feitiços ou milagres contada entre os homens. Até então tinham se decepcionado todas as vezes.

Enquanto os elfos e Alfadas mostravam-se caçadores resistentes, com o passar dos anos faltava a Mandred cada vez mais paciência. Frequentemente se embebedava, como se quisesse esquecer que uma vida humana podia ser curta demais para a busca pelo filho do demônio.

Nuramon se surpreendia que Alfadas, ao contrário do pai, mantinha a calma como um elfo. Suportava até as horas de lições com Mandred com uma paciência que beirava a abnegação. Alfadas parecia ter herdado muito pouco do pai, exceto talvez pela cabeça-dura, pois mesmo depois de três anos continuava se recusando a reconhecer o machado como rei de todas as armas, o que visivelmente dava muito prazer a Ollowain.

Uma nova primavera irrompera. Eles desciam as montanhas para seguir uma pista na cidade de Aniscans. Nomja, Yilvina e Alfadas já tinham se tornado amigos havia tempo e isso fazia com que às vezes lhes faltasse a seriedade necessária durante a busca. Gelvuun seguia sendo um lobo solitário, que mal separava os dentes. Um dia, Farodin revelou que certa vez os trolls quebraram todos os dentes de Gelvuun. Por isso ele não abria a boca. Até hoje Nuramon não sabia se isso era só uma brincadeira.

Ollowain era o único a não perder de vista o dever que fora imposto a eles. Fazia-os ficar pouco tempo em cada lugar e seguir viagem rápido sempre que uma pista não dava em nada.

Farodin, em contrapartida, deixava o grupo toda vez que podia. Era ele quem se dispunha voluntariamente a explorar o caminho. A Nuramon às vezes parecia que Farodin não buscava a criança, mas procurava alguma outra coisa em segredo. Talvez também estivesse tentando protelar a viagem para não ter de cometer o assassinato contra o filho de Noroelle.

Mandred cavalgava ao lado de Nuramon; juntos, conduziam sua pequena tropa ao longo da descida por entre as colinas. O filho de humanos, cuja amizade Nuramon aceitara na caverna de gelo, sempre os divertia com suas palavras e atos, fazendo os elfos se esquecerem por um tempo do motivo pelo qual viajavam. Mesmo quando o juízo retornava logo depois da alegria — a consciência de que o objetivo deles poderia ser o começo de uma existência marcada por sofrimentos da alma —, Nuramon estava contente de que Mandred tivesse o dom de diverti-los.

— Você ainda se lembra da vez em que encontramos aqueles ladrões? — perguntou Mandred, sorrindo. A noção de tempo que o filho de humanos tinha era diferente da de um elfo. Um ano se passava e ele já se regalava com lembranças. O mais estranho era que Nuramon também se contagiava com a sensação de terem vivido muita coisa e, por isso, de muito tempo ter se passado.

— De que ladrões você está falando? — Tinham encontrado alguns. E a maioria fugira deles imediatamente.

— Os primeiros. Os que realmente se defenderam.

— Sim, eu me lembro. — Como ele poderia esquecer os saqueadores de Angnos? Ele e os outros elfos tinham vestido seus casacos de capuz e não foram reconhecidos num primeiro momento como filhos dos albos. Foi uma descoberta ruim para os ladrões. Não queriam se render, pois se achavam infinitamente superiores. Então, tiveram de descobrir de forma dolorosa a diferença entre força e poder.

— Aquela, sim, foi uma luta! — Mandred olhou ao redor. — Bem que eu queria que alguns ladrões de galinhas estivessem agora à nossa espreita.

Nuramon ficou em silêncio. Esse desejo de Mandred só podia significar uma coisa: hoje à noite Alfadas tinha de estar pronto para mais uma prova. Mandred não desistia de tentar entusiasmar seu filho pela luta com o machado. Mas Alfadas provava uma vez depois da outra que era capaz de se igualar a ele, mas na luta com a espada. Quando Mandred era superado por seu filho, Nuramon nunca entendia muito bem os sentimentos do guerreiro. Ficava orgulhoso ou ofendido? Certa vez, Nuramon até suspeitou que Mandred estivesse secretamente se refreando no exercício de luta, preocupado que pudesse ferir Alfadas.

Chegaram à crista de uma colina e agora tinham visão livre sobre o amplo vale do rio lá embaixo. Nuramon apontou para a cidade na margem oeste.

— Aniscans! Finalmente deixamos as terras selvagens.

— Finalmente vamos entrar de novo em uma taverna e receber algo razoável para beber. Meu estômago já está pensando que alguém cortou a minha cabeça. — Mandred estalou a língua. — O que vocês acham? Eles têm hidromel lá embaixo?

Parecia que o filho de humanos quase se esquecera de seu desgosto por Freya. Mas Nuramon olhou por trás das aparências e viu um homem que queria ocultar e anestesiar a sua dor.

Desceram vagarosamente a encosta. Ao pé da colina passava uma estrada que levava diretamente até a cidade. Uma ponte se esticava sobre o largo leito do rio com sete arcos rasos. O degelo da neve aumentara a corrente, trazendo restos de madeira das montanhas. Sobre a ponte havia homens com longas varas, que com elas evitavam que os troncos que desciam o rio ficassem presos, atravessados nos pilares da construção, e represassem a água.

A maioria das casas de Aniscans era feita de pedras de alvenaria castanhas. Eram construções altas e robustas, amontoadas bem perto umas das outras. Seus únicos ornamentos eram as ripas do telhado, de um vermelho bem vivo. Vinhedos haviam sido plantados ao redor da cidade. Mandred com certeza teria chance de se embebedar, pensou Nuramon amargamente.

— Uma terra cheia de tolos — esbravejou de repente o filho de humanos. — Vejam isso! Uma cidade tão rica e eles sequer têm uma muralha. Firnstayn é bem melhor fortificada.

— É que eles não contavam com a sua visita, pai — disse Alfadas, rindo. Os demais companheiros caíram na gargalhada. Até Gelvuun sorriu.

Mandred ficou vermelho.

— A inconsequência é a mãe de muitos infortúnios — disse então, com seriedade.

Ollowain riu.

— Parece que o sol de primavera derrete a crosta de gelo do bárbaro-mor. E, que milagre! Debaixo dessa crosta surge um filósofo.

— Eu não sei que tipo de insulto é esse, mas você pode ter certeza de que o bárbaro-mor vai enfiar o machado na sua goela logo mais!

Ollowain enlaçou os braços um sobre o outro e fez como se tremesse.

— E, de repente, o inverno retorna e faz os lindos botões de primavera congelarem.

— Você acaba de me comparar com botões de flores? — trovejou Mandred.

— Só uma alegoria, amigo.

O filho de humanos franziu a testa. Então abanou a cabeça.

— Aceito as suas desculpas, Ollowain.

Nuramon precisou morder os lábios para não rir alto. Ficou contente que, no momento seguinte, Alfadas tenha começado a cantar para interromper a infeliz disputa. O jovem tinha a voz linda demais... para um humano.

Eles seguiram a estrada que margeava o rio, passando por estábulos e pequenas fazendas. O gado pastava ao longo do caminho. A paisagem ali parecia estranhamente desordenada. Mesmo depois de todo aquele tempo nos reinos dos humanos, Nuramon não conseguira se acostumar às diferenças deste mundo. Mas, de fato, havia aprendido a ver beleza no desconhecido.

As casas da cidade apinhavam-se ao redor de uma colina, sobre a qual havia um templo. Suas paredes estavam cercadas de andaimes e era possível ouvir as marteladas dos pedreiros bem além do rio. A construção era simples, com muros tão grossos como os de uma torre de fortificação, mas havia um encanto próprio em sua simplicidade rústica. Parecia querer gritar ao observador distante que ali não havia nada para distrair os fiéis, pois nenhuma obra de arte se compara à beleza da fé verdadeira.

Nuramon lembrou-se do velho pregador itinerante que encontraram nas montanhas alguns dias antes. Com brilho nos olhos, o homem contara sobre Aniscans e sobre o sacerdote cujo nome aparentemente estava na boca de todos no vale do rio: Guillaume. Ele falava com tanto fervor sobre o deus Tjured que a força de suas palavras contagiava os ouvintes. Dizia-se que os aleijados conseguiam voltar a andar quando prestavam atenção nele, quando ele tocava seus membros com as mãos. Seus poderes mágicos pareciam curar qualquer dor e vencer qualquer veneno.

Quantas vezes seguiram rumores como esse nos últimos três anos, todas em vão! Procuravam um homem de cerca de trinta anos que pudesse operar milagres. Essa breve descrição batia com a de Guillaume, como já batera com a de uma dúzia de outros homens, dos quais nenhum sequer possuía mesmo poderes. Os homens eram ingênuos demais! Estavam sempre prontos a acreditar em qualquer charlatão que fingisse de forma mais ou menos convincente ser capaz de fazer magias.

O pregador itinerante afirmara que, em sua infância, o lugar onde agora estava a cidade não passava de um pequeno círculo de pedras, onde os humanos se encontravam nos dias de solstício para prestar homenagens aos deuses.

Nuramon olhou para cima. Aparentemente, o círculo de pedras estivera na pequena colina onde agora se construía o templo.

O bater de cascos dos cavalos soou como tambores sobre o pavimento da ponte. Alguns dos trabalhadores se voltaram. Vestiam jalecos simples e chapéus de abas largas, feitos de palha trançada. Inclinaram a cabeça humildemente. Guerreiros tinham muito valor naquele reino.

O olhar de Nuramon vagueou sobre as casas da cidade. Suas paredes eram de pedra rústica e pareciam brutas e sólidas. Levando em conta o que os homens costumavam construir, de fato não era um trabalho ruim. Quase todos os muros eram retos e somente poucos telhados curvavam-se sob o peso de suas vigas.

Antes de deixarem a ponte, Mandred e Alfadas assumiram a ponta do pequeno grupo de cavaleiros. Quem via os dois provavelmente imaginava que fossem nobres do norte selvagem com sua misteriosa comitiva. Os habitantes os observavam cheios de admiração, mas logo retomavam suas tarefas diárias. Aparentemente, as pessoas dali estavam habituadas a forasteiros.

Na cidade, porém, reinava uma inquietação que nada tinha a ver com eles. Quanto mais os companheiros se aproximavam do templo, mais perceptível ela se tornava. Algo acontecia em Aniscans bem diante deles. A cidade inteira parecia estar na rua. As pessoas se espremiam nas vielas estreitas, a caminho do topo da colina. Logo eles já não conseguiam mais passar com os cavalos. Precisaram apear. Levaram os animais até o pátio de uma taverna, onde ficaram sob a vigilância de Nomja. Os restantes prosseguiram em fila pelo meio de toda aquela gente que fluía em massa até o templo. Reinava uma atmosfera que a Nuramon lembrava um casamento de duendes: todos corriam numa alegre confusão.

Nuramon conseguia ouvir pedaços de conversas. Falavam sobre o curandeiro milagroso e seus lendários poderes, que no dia anterior salvara uma criança que por pouco não morrera sufocada, e que cada vez mais forasteiros chegavam à cidade para ver Guillaume. Um velho senhor contava com orgulho que o rei convidara Guillaume para ir à corte e permanecer nela, mas que o sacerdote negou-se a deixar a cidade.

A pequena tropa finalmente chegou à praça diante do templo. No meio da multidão era difícil estimar quantas pessoas se aglomeravam ali, mas deviam ser centenas. Preso entre os humanos espremidos e suados, Nuramon sentia-se cada vez pior. Tudo fedia a suor, roupas sujas, gordura rançosa e cebola. De canto de olho, o elfo viu Farodin apertar um lenço perfumado contra o nariz. Nuramon também gostaria de uma forma de alívio como essa. Humanos e asseio, essas eram duas coisas que simplesmente não andavam juntas — como ele já sabia há muito tempo por causa de Mandred. Nos últimos três anos, Nuramon tornara-se um pouco menos sensível a essa abundância de cheiros que se sentia, principalmente, nas cidades. Mas, ali, no meio da multidão de humanos, o fedor era realmente insuportável.

De repente uma voz soou bem à frente. Nuramon esticou o pescoço, mas não conseguiu reconhecer quem falava no meio do aglomerado. Parecia estar de pé perto do grande carvalho que ocupava o meio da praça. A voz era harmoniosa e seu dono dominava todos os recursos da retórica. Cada sílaba era refletidamente entoada, como faziam os filósofos de Lyn, que se exercitavam há séculos em disputas para levar suas possibilidades vocais à perfeição. Era daí que vinha a arte, que alguns dominavam, de convencer não por argumentos, mas dizendo as palavras de forma a fazer o espírito sucumbir totalmente à voz. O que esse humano realizava ali adiante era quase comparável a um feitiço.

As pessoas ao redor de Nuramon e seus estranhos companheiros não os observavam mais, tão absorvidas estavam pelas palavras do homem.

Farodin se espremeu até chegar ao lado de Nuramon.

— Você está ouvindo essa voz?

— Magnífica, não é?

— É isso o que me preocupa. Talvez estejamos perto do alvo.

Nuramon calou-se. Tinha medo do que precisaria ser feito caso fosse realmente o filho de Noroelle quem falava ali na frente.

— Ollowain — disse Farodin —, você dá a volta com Yilvina e Gelvuun pela esquerda. Mandred e Alfadas, vocês vão pelo meio. Nuramon e eu contornaremos pela direita. Primeiro vamos somente observá-lo. Aqui no meio da multidão não podemos fazer nada.

Os companheiros se separaram. Nuramon foi à frente de Farodin. Apertavam-se cuidadosamente entre as inúmeras pessoas que ouviam, em pé, como se estivessem sob encanto. A voz do sacerdote encobria nitidamente o murmurinho na praça.

— Aceite a força de Tjured — disse ele, mansamente. — Ela é um presente dele que entrego a você.

Logo a seguir alguém gritou:

— Vejam! Ele está curado! A ferida cicatrizou!

— O júbilo tomou conta da praça.

Uma velha senhora agarrou Nuramon pelo pescoço e beijou-lhe a face.

— Um milagre! — gritou ela, exultante. — Ele fez outro milagre! Ele é a bênção desta cidade!

Nuramon encarou a velha sem entender. Devia ser realmente um milagre para beijar um estranho assim.

Então o sacerdote subiu no muro baixo da ponte, ao lado do carvalho, e falou com os humanos. Mas Nuramon mal prestava atenção nas palavras. Estava absorto pela postura e pelos gestos do homem. Guillaume tinha cabelos negros que lhe caíam até os ombros. Como todos os sacerdotes de Tjured, vestia um hábito azul-escuro. Tinha o rosto oval, o nariz estreito, o queixo suave e a boca curvilínea. Se Noroelle tivesse um irmão gêmeo, ele se pareceria com esse sacerdote.

Esse homem era filho dela!

Nuramon observou Guillaume voltar-se para um homem de cabelo grisalho e desgrenhado, agarrar a mão dele, que parecia rígida e fazer uma prece. Pulou de susto. Era como se algo tivesse invadido o seu íntimo, como se uma mão poderosa tocasse a sua alma. Essa sensação sinistra durou só um piscar de olhos. Perturbado, o elfo cambaleou para trás e topou com uma jovem.

— Você não está se sentindo bem? — perguntou ela, preocupada. — Você está muito pálido.

Ele sacudiu a cabeça e se espremeu até chegar ao fim da multidão, que formara um círculo bem ao redor da fonte.

O homem que fora até Guillaume ergueu a mão. Fechou-a e voltou a esticar os dedos.

— Ele me curou! — gritou ele, com a voz esganiçada. — Curou! — O homem grisalho atirou-se aos pés do sacerdote e beijou a barra de sua túnica.

Guillaume pareceu constrangido. Segurou o velho pelos ombros e ajudou-o a se levantar.

“Ele faz feitiços como a mãe dele”, pensou Nuramon. A rainha se enganara. O filho de Noroelle não era um demônio. Ele curava.

De repente um grito soou na multidão.

— Guillaume! Guillaume! Alguém desmaiou aqui!

— Ele está morto! — gritou uma mulher de voz estridente.

— Tragam-no até mim! — ordenou calmamente o sacerdote.

Dois homens troncudos de aventais de couro carregaram uma figura magra até a fonte. Era um homem vestindo túnica cinza. Guillaume tirou-lhe o grande capuz. Diante do milagreiro estava Gelvuun.

Desnorteado, Nuramon olhou para Farodin, que disse com um gesto que deveriam esperar. Então sussurrou:

— Espero que Mandred não faça nenhuma besteira.

Agora, um murmúrio se espalhava nas primeiras fileiras. Guillaume afastara o cabelo de Gelvuun para trás, de modo que seria possível reconhecer as orelhas pontudas. Gelvunn, sempre tão rabugento, agora parecia em paz como uma criança adormecida.Guillaume curvou-se sobre ele. O sacerdote parecia perturbado. Se era só a visão do elfo ou alguma outra coisa, Nuramon não era capaz de dizer. Então Guillaume olhou em volta, fazendo com que Nuramon sentisse seu olhar o tocar. Um calafrio percorreu suas costas. Os olhos do curador eram de um azul brilhante.

O capelão ergueu-se e disse:

— Este homem não está sob a proteção de Tjured. Ele é um filho de albos, não um humano. Ninguém mais pode ajudá-lo. Ele chegou tarde demais. Não consigo reconhecer a doença de que sofria. Parece que seu coração simplesmente parou de bater. Dizem que para os filhos dos albos também está reservada a existência do outro lado da vida. Então rezem por sua alma. Sepultarei seu corpo com todas as honras, mesmo que ele nunca tenha rezado para Tjured. É grande a misericórdia do nosso Senhor. Ele também se compadecerá deste elfo.

Mais uma vez, o olhar de Guillaume encontrou o de Nuramon. Havia algo de paralisante naqueles magníficos olhos azuis.

— Venha, Nuramon — murmurou Farodin —, nós precisamos ir.

O companheiro agarrou-o e arrastou-o consigo pelo meio da densa multidão. Nuramon não conseguia tirar aquele rosto e aqueles olhos da cabeça. Era o rosto de Noroelle; eram os olhos de Noroelle os que esse homem tinha.

De repente, foi sacudido.

— Acorde! — disse Farodin, áspero.

Nuramon olhou em volta, admirado. Haviam deixado a praça e agora estavam de novo em uma das estreitas vielas. Ele não percebera quão longe tinham ido.

— Era o rosto de Noroelle! — disse ele.

— Eu sei. Venha!

Encontraram Nomja e os cavalos. Mandred e Alfadas chegaram ao pátio poucos momentos depois, levando Yilvina entre eles. A jovem elfa estava pálida e parecia mal ter forças para se aguentar nas próprias pernas.

Mandred estava totalmente fora de si.

— Vocês viram isso? Maldição! O que aconteceu?

Farodin olhou em volta.

— Onde está Ollowain?

Alfadas apontou para a entrada do pátio.

— Lá vem ele!

O medo estava estampado nos olhos do mestre da espada.

— Venham! Não estamos mais seguros aqui. — Olhou de volta para a rua. — Vamos ganhar distância desse filho do demônio. Vamos! Subam nos cavalos e vamos para fora da cidade!

— O que aconteceu com Gelvuun? — perguntou Nomja.

Nuramon ficou calado. Pensou no estranho poder que o invadira por dentro, nos olhos azuis e no quanto Guillaume lembrava Noroelle. Agora Gelvuun estava morto e Yilvina parecia tão mal como se tivesse escapado da morte por pouco.

— O que aconteceu? — Agora Ollowain também perguntava, virando-se para a elfa pálida.

Yilvina tomou fôlego com esforço.

— Ele foi empurrando e chegou até a frente... Quase até o fim da multidão. No momento em que o sacerdote pegou a mão do velho... — Ela olhou para o céu, com lágrimas nos olhos. — Não sei como descrever. Foi como se uma garra entrasse no meu peito para rasgar o meu coração — disse e começou a soluçar. — Foi... Eu pude sentir a morte... A morte eterna, sem esperança de renascer ou de ir para o luar. Se não tivesse ficado alguns passos para trás... — Ela não conseguiu continuar.

— Ele reparou em vocês e atacou imediatamente? — perguntou Nomja.

Ollowain hesitou.

— Não tenho muita certeza... Não acho que isso foi um ataque. Aconteceu no momento em que ele curava o velho. Eu pude sentir o seu poder... Yilvina tem razão. Eu também senti a morte de repente.

Mandred voltou-se para Nuramon.

— Como ele fez isso?

O filho de humanos pensava que as habilidades de Nuramon eram maiores que as de fato. Só porque uma vez o elfo se superou para curar Farodin, sempre pedia o seu julgamento sobre tudo, por menos que tivesse a ver com magia.

— Não faço ideia, Mandred.

— Mas eu faço! — intrometeu-se Ollowain. — A magia do filho do demônio é totalmente maligna! Ela pode nos matar imediatamente. Um simples feiticeiro que cura humanos pode nos aniquilar. Agora está claro para mim qual é o perigo que a rainha vê no filho de Noroelle. Precisamos matá-lo.

— Não vamos fazer isso! — disse Nuramon resoluto. — Vamos levá-lo até a rainha!

— Esse falso curandeiro é capaz de nos executar com um mero feitiço! — disse Ollowain. — Está claro para você?

— Sim, eu sei.

— Como você vai obrigá-lo a deixar a cidade?

— Não vou obrigá-lo. Ele virá conosco por livre e espontânea vontade. Ele não sabia o que suas mãos curadoras estavam fazendo com o nosso companheiro. Ele não é o filho do demônio que a rainha esperava.

— Você quer se virar contra a rainha? Ela nos enviou para matá-lo!

— Não, Ollowain. A rainha ordenou a mim que o matasse. Só eu preciso me justificar perante ela.

— Não sei se posso permitir isso — disse Ollowain devagar. — Por que, Nuramon? Por que você mudou de opinião?

— Porque tenho a sensação de que matar Guillaume será um erro desastroso. Isso não resultará em nada bom. Temos que levá-lo para a rainha. Então ela poderá vê-lo cara a cara e decidir a seu respeito. Deixem-me falar com ele. Se eu não voltar até meio-dia de amanhã, então vocês podem matá-lo.

Ollowain sacudiu a cabeça.

— Você quer levar um filho do demônio, cuja magia é fatal a nós, elfos, para a corte de Emerelle? Vá, então! Fale com ele! Nós não vamos vê-lo novamente com vida! Você tem tempo até o crepúsculo de amanhã, e aí vou pegá-lo do meu jeito. Até lá estaremos acampados fora da cidade.

Nuramon buscou apoio nos rostos dos outros. Mas ninguém se opôs a Ollowain, nem mesmo Mandred. Montaram os cavalos ao sinal do mestre da espada. Alfadas levava os cavalos de Gelvuun e Nuramon pelas rédeas.

Farodin foi o último da pequena tropa de cavaleiros a deixar o pátio. Abaixou-se na sela na direção de Nuramon.

— Você tem certeza de que quer correr esse risco? E se acontecer com você o mesmo que ocorreu com Gelvuun?

Nuramon sorriu.

— Então nos vemos de novo na próxima vida.

Visitando Guillaume

Nuramon observou Guillaume por toda a tarde. Ouviu os seus sermões e o viu sepultar o corpo de Gelvuun. Por fim, seguiu o filho de Noroelle pela cidade. Ao fazer isso, teve algumas vezes a opressora sensação de também estar sendo seguido. Mas todas as vezes que olhou ao redor não descobriu ninguém que se comportasse de forma estranha. Havia somente os moradores de Aniscans, ocupados com seus afazeres. Então voltou a prestar atenção em Guillaume e a segui-lo, até que ele chegou à colina do templo e ali desapareceu para dentro de uma pequena casa. Com suas paredes de pedra de alvenaria, ela combinava com a imagem da cidade; se esse era o lar de Guillaume, ele parecia dar muita importância à modéstia.

Nuramon deteve-se e observou a casa da viela defronte dela. Esperava que Guillaume abrisse a janela para deixar entrar os últimos raios de luz do fim do dia. Mas ela continuava fechada. Quando a noite caiu sobre Aniscans, Nuramon viu a quente luz de velas irradiar por suas fendas.

Criou coragem e andou até a porta do milagreiro. Agora só precisava bater. Mas ele não se atrevia a isso. Estava com medo; não de que pudesse lhe suceder o mesmo que a Gelvuun, mas de cometer um grave erro. Ele não conhecia Guillaume e não sabia como ele receberia a verdade. Mas então pensou em Noroelle. Essa era a única esperança de salvar Guillaume da morte e ao mesmo tempo talvez salvar Noroelle — é claro que somente se a rainha reconhecesse que seria um erro matar Guillaume.

Bateu na porta.

Nada se moveu dentro da casa, e Nuramon pensou se deveria bater mais uma vez. Quando erguia o braço, ouviu finalmente passos. Seu coração acelerou. Logo a porta se abriria e o rosto de Noroelle o encararia. Tirou o capuz, para que Guillaume soubesse imediatamente com quem estava lidando.

A porta foi destravada e aberta. Nuramon não se enganara. Era Guillaume. O jovem sacerdote não parecia nada surpreso por ter um forasteiro diante de si. Incapaz de dizer sequer uma palavra, Nuramon observou o rosto do filho de Noroelle. Mas de que forma a expressão de Guillaume se alteraria quando descobrisse tudo sobre sua própria origem?

— Entre, filho de albos — disse o sacerdote com sua voz calma, sorrindo, antes de virar-se. Parecia estar esperando por ele.

A casa de Guillaume era muito simples. A sala em que Nuramon entrou ocupava todo o térreo. Ali havia tudo o que era necessário, do fogão a lenha até o oratório. Só não se via uma cama. Provavelmente o quarto de dormir ficava no andar de cima, ao qual se chegava subindo a escada diante da porta da casa.

— Você veio por causa do seu companheiro — disse Guillaume, sentando-se à pequena mesa no meio da sala. Ali queimava um lampião diante de um prato de madeira ainda com restos de carne. Com um gesto convidativo, Guillaume apontou para uma segunda cadeira na ponta da mesa.

Nuramon sentou-se em silêncio.

O sacerdote afastou o prato para o lado.

— Temo que o seu companheiro já tenha sido enterrado no cemitério. Espero que isso não prejudique o seu renascimento.

— Entre nós, dizem que a alma se solta do corpo dos filhos dos albos no momento da morte — esclareceu Nuramon. — Então, se houver um caminho para as almas que ligue o seu mundo e a Terra dos Albos, Gelvuun já o tomou e está lá, esperando pelo renascimento.

— Então a alma já havia partido quando enterrei o corpo.

— Sim. Mas não é por Gelvuum que estou aqui. Vim por sua causa.

Tais palavras pareceram não surpreender Guillaume.

— Porque eu o matei...

Nuramon ficou perplexo.

— Como você sabe disso?

O curador baixou o olhar.

— Eu soube quando o examinei. Ele parecia ter marcas de estrangulamento no pescoço que correspondiam aos meus dedos. — Ele parou e encarou Nuramon. — Ler as expressões nos rostos dos elfos não é fácil. Não vejo ira nos seus traços. Mas você certamente veio para exigir vingança.

— Não, também não é por isso que estou aqui.

Guillaume olhou-o surpreso.

— Eu só queria saber o que você vê no seu futuro.

— Eu sou alguém numa busca constante a serviço de Tjured. Acredito que este mundo é repleto de tesouros ocultos que só poucos são capazes de encontrar. Eu sei que o poder dos deuses se acumula em determinados lugares. Sou capaz de sentir esses lugares e seguir fluxos invisíveis que se conectam uns aos outros. — Ele claramente falava das trilhas albas, que pensava serem trilhas do seu deus. — Uso esse conhecimento para curar pessoas e pregar a paz. Gostaria que o ódio desaparecesse. Mas depois do dia de hoje parece que o preço disso é muito alto. Que tipo de dom é esse que cura humanos e mata filhos de albos?

— Posso dar uma resposta para isso. Mas pense bem se quer ouvi-la.

— Você sabe alguma coisa sobre a vocação que me permite fazer os meus milagres?

— Eu conheço a origem dela.

— Então você sabe mais que todos os sábios e sacerdotes que encontrei até hoje. Por favor, conte...

— Devo realmente fazê-lo? Pois, se você me ouvir, também vai saber por qual motivo eu e meus companheiros viemos a esta cidade, e porque eu estou aqui cometendo a ousadia de me aproximar de você.

— Você conhece os meus pais? Os meus pais verdadeiros?

— Sim, eu conheço ambos.

— Então fale!

— Você é filho de uma elfa que se chama Noroelle. Certo dia, ela assumiu a mais terrível de todas as penas para proteger a sua vida. — Com essas palavras Nuramon começou a sua narrativa. Falou de Noroelle, de seu amor e do de Farodin por ela, do devanthar e da Caçada dos Elfos, de como Guillaume foi salvo e do exílio de Noroelle. Enquanto isso, observava o semblante de Guillaume ficar cada vez mais sério, e a semelhança com Noroelle desaparecer traço a traço. Terminou com estas palavras: — Agora você sabe quem são seus pais e por que você tem esse poder que cura os homens, mas mata os elfos.

Guillaume fixou o olhar na mesa, e então repentinamente começou a chorar. Essa visão doía em Nuramon, não só pelo fato de o milagreiro se parecer tanto com Noroelle, mas porque se punha no lugar dele. Precisou se controlar para também não irromper em lágrimas.

Depois de um longo silêncio, o curador disse, por fim:

— Que tolo fui ao achar que era um escolhido de Tjured!

— Tanto faz de onde vem a sua vocação: você a usou para fazer o bem para os humanos, exatamente como a sua mãe usava a dela para cuidar dos filhos dos albos. Até a noite em que ela... — Não quis dizer mais uma vez.

— Conte-me mais sobre a minha mãe — pediu Guillaume em voz baixa.

Sem pressa, Nuramon contou ao milagreiro sobre seus vinte anos na companhia de Noroelle. Ficou até tarde da noite. Suas palavras trouxeram-lhe de novo à lembrança tudo o que viveu com a amada. Mas, quando terminou, seu ânimo mudou; agora que havia contado tudo, ficou claro para ele que tudo estava perdido e que Noroelle jamais retornaria. Guillaume também parecia profundamente perturbado agora que sabia do sacrifício da mãe.

— Você rasgou o véu que havia em torno da minha origem — disse o curador. — E me esclareceu de onde vieram os meus poderes. Mas não me disse o que o trouxe aqui.

Nuramon respirou fundo. A hora tinha chegado.

— Perguntei à minha rainha o que poderia fazer para salvar Noroelle. E ela me disse que eu deveria partir para matá-lo.

Guillaume recebeu a notícia com muita calma.

— Você já poderia ter feito isso há muito tempo. Por que me deixa viver?

— Pelo mesmo motivo que sua mãe o trouxe até este mundo. Porque eu não sinto nenhum traço do devanthar na sua alma.

— Mas, se os meus poderes de cura mataram o seu companheiro, isso deve ter sido herança do meu pai. E quem sabe o que ainda há adormecido dentro de mim!

— Você aceitaria a morte de Gelvuun para curar a mão do homem?

— Jamais.

— Então ao menos o seu espírito está livre da força sombria do devanthar, mesmo que a essência dele se reflita na sua magia.

— Mas assim é o destino. Mesmo inocente, eu sou culpado. Por minha causa minha mãe foi banida. Por minha causa o seu companheiro morreu. E eu não posso fazer nada a respeito. Parece que minha culpa é estar vivo.

— E exatamente por isso é errado matar você. E por isso eu gostaria de levar a cabo a minha tarefa de maneira diferente da que a rainha previu. Mesmo que assim eu volte a ira dela contra mim.

— Você me deixaria fugir?

— Sim, eu faria isso. Mas os meus companheiros descobririam-no rápido. — Nuramon pensou em Ollowain. — Você precisa entender por que estou aqui. Se não fosse assim, agora você já estaria morto. Eu vim para fazer uma proposta que talvez possa salvar a sua vida e libertar Noroelle. Mas ela não é mais do que uma vaga esperança.

— Faça-a!

— Posso levá-lo até a rainha e mantê-lo a salvo de qualquer perigo a caminho da Terra dos Albos. Se você falar com Emerelle na corte, talvez consiga convencê-la da sua verdadeira natureza, da mesma forma como convenceu a Noroelle e a mim. Isso é a única coisa que posso oferecer.

— Aceito a sua proposta. Por minha mãe.

Nuramon admirou o curador em segredo. Havia se perguntado se ele aceitaria assim prontamente, pois não havia qualquer garantia de que a rainha se mostraria misericordiosa. Podia ser que Emerelle se mantivesse firme em sua decisão. Mas, apesar de tudo o que acontecera, Nuramon tinha tanta confiança na sua soberana que duvidava que ela ignoraria a sua objeção.

— Quando devemos partir?

— Devemos deixar a cidade no máximo até meio-dia. Não precisamos ter pressa.

— Então conte-me algo sobre a Terra dos Albos.

Nuramon descreveu a região central para Guillaume e também contou-lhe sobre Alvemer, onde Noroelle nasceu. Nuramon terminou quando o galo cantou, e propôs que partissem com o raiar do dia, para que pudessem sair despercebidos.

Guillaume concordou e arrumou suas coisas. Então agradeceu a Nuramon por ter lhe contado a verdade.

— Nunca vou me esquecer do que fez.

Nuramon estava satisfeito. Havia alcançado a sua meta, mesmo que com isso estivesse agindo contra as ordens da rainha. Era certo que Ollowain resmungaria, mas eles levariam o filho de Noroelle até Emerelle. Isso era um meio-termo com o qual o mestre da espada também tinha de se dar por satisfeito. Mas ele seria cuidadoso, e não perderia o guerreiro elfo de vista.

Guillaume preparou um mingau de painço, avelã e uvas-passas. Perguntou a Nuramon se também queria comer alguma coisa. O elfo recusou, agradecendo. O curador tomava seu café da manhã quando um tumulto se formou lá fora, na cidade. Nuramon pôs-se a escutar e acreditou ouvir gritos. Ao escutar cascos de cavalos, levantou-se num pulo, com a mão segurando a espada.

— O que está acontecendo? — perguntou Guillaume.

— Pegue as suas coisas! — disse Nuramon.

Nas vielas o som de luta agora se misturava com gritos de dor. A cidade estava sendo atacada!

Guillaume se levantou e agarrou a trouxa.

Os sons de luta ficaram mais próximos. De repente houve um estrondo na porta da casa, que cedeu, para o horror de Nuramon. Uma silhueta entrou violentamente. Nuramon puxou a espada para atacar o intruso. Mas assustou-se ao reconhecer o vulto. Não era ninguém menos do que...

O infortúnio

Farodin bateu a porta com pressa e empurrou a trava de madeira.

— Guarde essa espada, senão vai matar o único amigo que ainda tem na cidade. — E olhando depressa ao redor: — Há outra saída?

Guillaume o encarava como se fosse um fantasma.

— O que está acontecendo lá?

— Homens armados. Ocuparam todas as estradas que saem da cidade e invadiram o templo. Parecem ter pouca paciência com sacerdotes como você. — Farodin aproximou-se da janela que dava para a praça do templo e abriu somente uma fresta. — Veja!

Os guerreiros estavam muito bem armados. Quase todos vestiam trajes de malha de ferro e elmos com caudas negras de cavalo. Cerca de metade deles estava munida de machados ou espadas. Nos escudos redondos e vermelhos estava estampado um brasão de armas com uma cabeça branca de touro. Os demais homens estavam equipados com bestas. E mesmo que tivessem arrancado os sacerdotes do templo sem nenhum respeito, estava claro que não eram simples saqueadores. Eles avançavam disciplinadamente. Os besteiros cercavam a praça enquanto os soldados com machados empurravam os sacerdotes até o grande carvalho.

Por ordem de um enorme guerreiro louro, um dos sacerdotes, um homem corpulento e já um pouco mais velho, foi separado de seus companheiros de sofrimento. Amarraram-lhe uma corda ao redor dos pés, lançaram a outra ponta sobre um galho forte e puxaram-no pelas pernas. Desesperado, o religioso tentava puxar o hábito, que insistia em escorregar, exibindo suas partes íntimas.

— Pai Ribauld! — murmurou Guillaume, atemorizado. — O que eles estão fazendo?

— Ouvi dizer que os homens armados perguntaram por seu nome, Guillaume. — Farodin examinou o jovem sacerdote da cabeça aos pés. Certamente não era um guerreiro. — Parece que você acaba de fazer inimigos mortais em dois mundos. O que você fez para que esses homens estejam procurando por você?

O sacerdote afastou o cabelo do rosto, pensativo. Foi só um pequeno gesto, mas Farodin foi invadido por uma dor profunda. Dessa mesma forma Aileen e também Noroelle tiravam o cabelo da testa quando estavam mergulhadas em pensamentos. O sacerdote tinha traços admiravelmente delicados. Farodin via Noroelle no rosto dele, como num espelho distante. Nele, ela continuava viva.

Farodin seguira Nuramon porque temia que seu companheiro pudesse ajudar o sacerdote a fugir. Nos três últimos anos, Farodin fizera as pazes consigo mesmo. Aceitara a ordem da rainha. No dia anterior, na praça do templo, estava pronto para matar Guillaume. Mas, agora... Precisava desviar o olhar, de tanto que Guillaume lembrava Noroelle. Se erguesse uma arma contra ele, seria como se estivesse a apontando contra sua amada.

Ollowain o alertara quando deixou o acampamento para seguir Nuramon em segredo. As palavras do mestre da espada ainda soavam nitidamente em seus ouvidos: “Não se esqueça de que ele também é filho de um devanthar, um mestre no embuste. Ele abusa dos traços de Noroelle como uma máscara que esconde o mal que há por trás dele. Um devanthar é, em carne e osso, o ódio contra os albos e contra nós, seus filhos. Tudo o que pode haver de bom nele já está há muito tempo envenenado pela herança do pai. Você viu o que aconteceu com Gelvuun. Não podemos levá-lo prisioneiro. Na realidade seríamos nós os seus presos. Mesmo que o colocássemos em correntes, poderia matar todos nós apenas com a palavra. E ainda pior: imagine o que uma criatura como essa poderia provocar na Terra dos Albos! Como poderíamos combatê-lo? Temos de cumprir a ordem de Emerelle. Na tarde de hoje, na praça do templo, reconheci a sabedoria da rainha”.

— Eles vieram por algo que eu não fiz — respondeu Guillaume à pergunta de Farodin.

— O quê? — disse Farodin, arrancado de seus pensamentos.

Enquanto isso, os guerreiros na praça batiam com longas varas em Ribauld. Desvalido, o homem balançava para lá e para cá. Seus gritos ressoavam por toda a praça e provavelmente também podiam ser ouvidos ao longe, na cidade. Mas nenhum dos cidadãos correu até ali para ajudar o sacerdote.

— Você está vendo as cabeças de touro nos escudos? — perguntou Guillaume. — Esses são os homens do rei Cabezan. Sua guarda pessoal. Cabezan os mandou atrás de mim. Dizem que seus membros estão apodrecendo com ele ainda vivo, e que está morrendo de forma lenta e dolorosa. Ele ordenou que eu fosse curá-lo. Mas não posso fazer isso. Se eu salvar a vida dele, centenas morrerão, pois Cabezan é um tirano cruel. Ele assassinou seus próprios filhos porque tinha medo de que cobiçassem o seu trono. Ele é dominado pela loucura... Só permite que todos se apresentem nus diante dele, de medo que possam esconder armas nas roupas. Aquele que quer pertencer à sua guarda pessoal precisa assassinar um recém-nascido com os próprios punhos diante dele... Ele só aceita homens sem remorsos ao seu redor. Com Cabezan, o mal reina em Fargon. Por isso não vou curá-lo... Não posso fazer isso. Quando ele finalmente morrer, a maldição que há sobre estas terras terminará. — Os gritos do sacerdote ainda ecoavam na praça. — Eu não posso... — Guillaume tinha lágrimas nos olhos. — Ribauld é como um pai para mim. Eu cresci em uma família pobre de camponeses. Quando meus pais... quando meus pais adotivos morreram, ele me adotou. Ele é...

Um dos sacerdotes mais jovens dos que foram arrancados do templo pelos soldados apontou para a casa de Guillaume.

— Há outra saída? — perguntou Farodin novamente. Em seguida, dois guerreiros atravessaram a praça na direção deles.

O sacerdote disse que sim com a cabeça. Apanhou uma longa faca de pão da mesa e escondeu na manga do hábito.

— Eu vou, assim eles não os matarão também. Mas o rei Cabezan não me verá vivo.

Nuramon colocou-se no caminho.

— Não faça isso. Venha conosco!

— Então você acha que seria mais esperto segui-lo até uma rainha que o mandou para me matar? — Nas palavras de Guillaume não havia nenhuma provocação; ele soava infinitamente triste. — Eu sei que você não quer o meu mal. Mas, se eu sair agora, talvez salve a vida de meus irmãos de ordem e a de vocês. E se você informar minha morte à sua rainha, então ela talvez perdoe minha mãe.

Ele abriu a tranca da porta e saiu para a praça.

Farodin não compreendia por que Nuramon não faria mais nenhuma tentativa de deter o sacerdote. Correu para a porta, mas já era tarde demais. Guillaume já havia sido agarrado pelos guerreiros.

— Cavaleiros do rei — gritou com voz vibrante. — Deixem meus irmãos em paz. Vocês me encontraram.

O líder louro fez um sinal para que seus homens baixassem as bestas. Foi até Ribauld, agarrou o velho homem pelos cabelos e puxou sua cabeça para trás.

— Então você diz ser o curandeiro milagroso! — gritou o guerreiro. Puxou uma faca do cinto e passou-a pela garganta de Ribauld. — Então nos mostre do que você é capaz.

Farodin prendeu a respiração. Guillaume ainda estava muito perto da casa. Se usasse os seus poderes de cura, Nuramon e ele morreriam.

O velho sacerdote balançava para lá e para cá na corda, pendurado na árvore como gado de corte no gancho de um açougueiro. Agora tinha as mãos agarradas ao redor da garganta.

Farodin abriu com força as folhas da janela, que bateram contra a parede da casa com estrondo. Agarrou com ambas as mãos no friso da janela, soltou-se dela e saltou para fora, mostrando sua elasticidade ao aterrissar diante da casa.

— Tire as mãos da minha presa, filho de humanos! — Sua voz era como gelo.

O guerreiro louro pôs a mão sobre o cabo da espada.

— Você já fez a sua entrada triunfal. Agora escape disso aqui.

— Você vai empunhar a arma? Quer um duelo? — Farodin sorriu. — Eu sou o primeiro guerreiro da rainha da Terra dos Albos. Pense bem se quer comprar briga comigo. Estou aqui para buscar o sacerdote Guillaume. Como você vê, eu estava em sua casa. Eu o descobri antes de você. E não vou deixar que arranquem minha presa de mim. Ontem à tarde, ele matou um elfo, e vai responder por isso.

— O primeiro guerreiro da rainha da Terra dos Albos — repetiu o guerreiro louro em tom de zombaria. — E eu sou Umgrid, rei da Terra dos Trolls. — Os homens ao seu redor riram.

Farodin puxou o cabelo para trás, para que pudessem ver suas orelhas pontudas.

— Então você é Umgrid? — O elfo inclinou a cabeça. — Você é mesmo feio o bastante para ser um troll. — Deu meia-volta e olhou para os telhados das casas que cercavam a praça.

— Quem não é troll deve ir embora agora. Esta praça está cercada de elfos. E não vamos deixar que tirem Guillaume de nós.

Alguns dos guerreiros olharam para cima com medo, e ergueram seus escudos.

— Palavras! Nada mais que palavras! — O líder já não soava tão confiante como antes.

— Você deve pedir nossa permissão antes de deixar qualquer um desses avarentos partir — soou a voz de Nuramon. O elfo sacara sua espada e agora estava em pé na porta da casa de Guillaume.

— Matem eles! — O líder dos guerreiros apanhou uma das flechas da besta e apontou-a para Farodin.

O elfo lançou-se para a frente com um salto mortal. Apoiou-se sobre as mãos no pavimento rústico, rolou sobre o ombro esquerdo e chegou à fonte em um instante. Uma flecha atingiu sua face de raspão, deixando um risco de sangue.

Farodin saltou para não se tornar um alvo imóvel para os guerreiros. Parou diante dos pés de um lutador de machado, que aplicou-lhe um golpe com seu escudo redondo que fez Farodin perder o equilíbrio. Cambaleou e chocou-se contra a beirada da fonte. Ainda assim conseguiu desviar do golpe de machado que mirava sua cabeça.

Farodin chutou o escudo do humano para o lado e puxou a espada. Com um golpe de revés, rasgou a barriga do guerreiro e arrancou o machado da mão do moribundo. De todos os lados vinham guerreiros. Na porta da casa, Nuramon já se defendia de dois inimigos. Não havia esperanças para a sua causa. Os homens ganhavam deles em número — eram quase dez para um.

Farodin pulou da beirada da fonte e atirou o machado contra um dos besteiros que o mirava. A arma encontrou seu alvo, que emitu um som terrível.

O elfo desviou de mais um golpe de machado, esquivou-se de uma espada e feriu um dos agressores no ombro, por cima do escudo. Os guerreiros agora formavam um grande círculo ao seu redor.

— E agora, quem é o próximo de vocês a agonizar? — provocou Farodin.

Enquanto isso, o gigantesco líder havia colocado um elmo e afivelado um escudo no braço.

— Vamos pegá-lo! — disse, avançando e erguendo o machado duplo.

Farodin era atacado por todos os lados. O guerreiro elfo ficou de cócoras para desviar dos golpes raivosos. Fez um giro baixo com a espada. Como uma faca quente na cera, sua lâmina de aço élfico cortava as pernas de todos que se aproximavam.

Algo roçou o braço esquerdo de Farodin, e sangue encharcou sua camisa. Com uma calma mortal, deteve um golpe de machado que mirava seu peito. A espada destroçou o cabo de madeira da arma. Os humanos moviam-se desajeitadamente. Farodin já observara isso em Mandred antes. Eles eram valentes e fortes, mas, comparados a um elfo que treinara a luta de espada ao longo de séculos, eram como crianças. Mas quanto ao resultado da luta, dificilmente haveria dúvidas. Eles simplesmente eram numerosos demais.

Como um dançarino, Farodin movimentava-se entre as fileiras de adversários, abaixando-se sob os golpes para reagir imediatamente em contra-ataque.

De repente estava diante do comandante louro.

— Vou fazer um colar com suas orelhas — provocou o homem. Ele atacou com um golpe impetuoso, mirando o braço de Farodin que segurava a espada, mas mudou de direção no meio do ataque.

Com um passo dançante, Farodin esquivou-se e chutou o gigante com toda a força sob a borda do escudo. Com um ruído repulsivo, a borda de cima do escudo, revestida de ferro, chocou-se contra o queixo do agressor. O gigante mordeu com força o lábio inferior e cuspiu sangue.

Farodin fez uma rotação e aplicou outro pontapé no escudo, que caiu para o lado. Com o lado plano da espada, atingiu o rosto do líder em cheio.

O gigante tropeçou. Farodin o agarrou, arrancou-lhe o elmo da cabeça e pôs a lâmina sobre sua garganta.

— Parem de lutar ou o seu líder morre! — gritou o elfo.

Os guerreiros recuaram. Um silêncio lúgubre baixou sobre a praça, interrompido somente pelos gemidos baixos dos feridos.

Nuramon saiu da casa do sacerdote. Sua camisa de couro estava suja de sangue.

— Vamos recuar para dentro do templo! — gritou Farodin para ele.

— Vocês jamais sairão vivos de Aniscans — disse o líder dos humanos, de forma ameaçadora e alto o suficiente para que seus homens pudessem ouvi-lo. — A ponte está ocupada. Todas as ruas estão bloqueadas. Estávamos preparados para o caso de o curandeiro criar dificuldades. Entreguem-se e prometo a vocês uma morte rápida.

— Nós somos elfos — retrucou Farodin friamente. — Você realmente acha que seria capaz de nos deter? — Fez um sinal para Nuramon, e seu companheiro foi com dois sacerdotes até a porta do templo.

Guillaume estava pálido como um cadáver. Durante a luta ficara simplesmente ali em pé, observando. Estava claro que era totalmente incapaz de infligir dor a alguém.

— Você está sangrando, elfo — disse o guerreiro louro. — Você é de carne e osso como eu. E pode morrer, assim como eu. Antes que o sol se ponha, beberei vinho no seu crânio.

— Para um homem com uma espada na garganta, é notável como você parece confiar no futuro. Farodin andou lentamente de costas na direção da alta porta do templo.

Os besteiros ao seu redor recarregavam suas armas.

Farodin pensou em Mandred e nos demais companheiros que havia deixado para trás na montanha do vinhedo. Será que viriam? Eles provavelmente viram o templo ser atacado.

Ele empurrou seu prisioneiro rapidamente para o chão e pulou através da porta do templo. Flechas dos besteiros zuniam ao seu redor. Nuramon bateu a pesada porta de carvalho e colocou a barra atravessando a porta. Farodin observou preocupado a camisa de Nuramon, empapada de sangue.

— Está muito ruim?

O elfo olhou para baixo.

— É mais sangue de humanos do que o meu próprio.

Estava escuro e frio dentro do templo. Sólidas vigas de madeira atravessavam o teto, suportado por fortes colunas. O templo inteiro era composto de uma só sala. Não havia móveis, nem um púlpito onde um orador pudesse subir. O único adorno era um menir, uma pedra de mais de dois metros de altura com alguns caracteres gravados. As paredes eram caiadas de branco e divididas em duas galerias, que iam até o fim das paredes internas. Ainda acima das galerias havia janelas altas, através das quais a luz pálida da manhã cintilava. Lâmpadas a óleo queimavam em nichos ao longo das paredes e, em torno do menir, erguiam-se incensários de cobre, dos quais subia uma fumaça pálida.

A construção como um todo lembrava a Farodin mais uma torre de fortificação que um templo. Que tipo de deus seria Tjured? Um guerreiro certamente não era, tão desamparados estavam seus criados. Ambos os sacerdotes ajoelharam-se diante do menir, no meio do átrio redondo do templo. Rezavam submissos, agradecendo por terem sido salvos.

— Guillaume? — gritou Nuramon, que ainda estava em pé perto da porta. — Onde você está?

O curador saiu de trás de uma das colunas. Parecia estranhamente calmo, quase absorto.

— Vocês deviam ter me cedido a eles. Depois do banho de sangue na praça do templo, eles não descansarão até que estejamos todos mortos.

— Será possível que você esteja ansiando por sua própria morte? — perguntou Farodin aborrecido.

— Mas vocês não foram enviados para me matar? Que sentido faz disputar o privilégio de ser meu carrasco?

Farodin fez um gesto de desdém.

— O que rumina sobre a morte durante uma luta é o que deixará a vida. É melhor que você tenha alguma utilidade. Leve-nos até a saída dos fundos. Talvez possamos escapar por lá.

Guillaume abriu as mãos num gesto de desamparo.

— Isto é um templo, não uma fortaleza. Não há saída traseira, nenhum túnel escondido nem portas secretas.

Farodin olhou em volta sem acreditar. Ao lado do portal, uma escada em caracol subia até ambas as galerias. Sob as vigas do teto, os muros eram cortados por altos vitrais arqueados e coloridos. Eles mostravam imagens de sacerdotes vestindo os hábitos azuis-escuros dos veneradores de Tjured. Confuso, o elfo observava os vitrais. Um deles exibia um sacerdote sendo jogado em um caldeirão sobre uma fogueira. Em outra imagem, um sacerdote tinha os braços e pernas cortados e, em uma terceira, um homem de hábito azul era queimado em uma fogueira por selvagens que vestiam peles de animais. Quase todos os vitrais retratavam cenas de assassinatos. Agora Farodin entendia o motivo de Guillaume permanecer tão sereno. Ter um fim terrível era aparentemente a maior realização de um sacerdote de Tjured.

O som de um trovão arrancou o elfo de seus pensamentos. Poeira fina penetrou por entre as fendas da porta do templo. Outro trovão se seguiu, e as pesadas folhas da porta rangeram em seus ângulos. Farodin praguejou baixo. Parecia que os guardas do rei haviam encontrado algo para servir de aríete.

— Parem de rezar e façam alguma coisa de útil — bradou o elfo a ambos os sacerdotes, ajoelhados diante do menir. — Recolham todas as lâmpadas de óleo dos nichos. Nuramon, tente encontrar uma tocha. Então subam até a galeria superior. Depois vou tirá-los de novo dessa armadilha e trazê-los para baixo.

Com um estalo, uma das grossas tábuas de madeira da porta se partiu. Logo ela não conseguiria mais detê-los.

Inclemente, Farodin obrigou os sacerdotes a se apressar. Para subir a escada em caracol sem tropeçar, precisavam segurar seus longos hábitos, como se fossem saias. Da segunda galeria era possível chegar às janelas do templo. Por causa da espessura dos muros, elas ficavam em nichos profundos. Ao esticar os braços, Farodin conseguia agarrar diretamente a beirada inferior dos nichos. De um só golpe, ele puxou-se para cima e subiu diante da imagem de vidro de um dos sacerdotes, cujos membros destroçados eram trespassados pelos raios de uma roda. Os rostos dos torturadores pareciam impassíveis; o artista também não refletira sobre a combinação das cores do vidro com a luz da manhã. Era uma obra de arte inferior, que mesmo alguém sem talento conseguiria criar em um ou dois anos de trabalho razoável e ambicioso. Esse trabalho malfeito sequer podia ser comparado aos vitrais do castelo de Emerelle, feitos juntando milhares de fragmentos de vidro. Naquelas janelas trabalharam os mais talentosos artistas da Terra dos Albos ao longo de décadas, para conseguir criar uma combinação perfeita do vidro com a luz de cada hora do dia.

Farodin puxou a espada e golpeou o sacerdote no vitral bem em seu rosto deformado de dor. A vidraça quebrou-se com grande ruído. Com poucos golpes, o elfo arrancou as armações de chumbo dos fragmentos de vidro para que pudessem pisar no nicho da janela e observar os agressores na praça do templo.

Farodin ouviu os sacerdotes se lamentarem na galeria. Escutou nitidamente a voz de Guillaume:

— Por Tjured, ele destruiu o retrato de São Romuald. Estamos perdidos!

Farodin recuou um pouco no nicho para que não pudesse ser visto da praça. A torre do templo estava cercada por um andaime de madeira. Pouco mais de meio metro abaixo da janela, havia uma plataforma estreita para os trabalhadores. De lá era possível subir mais pelo andaime. Desconfiado, Farodin examinou as escoras de madeira. Para ele, tudo parecia inacabado.

Lateralmente à torre do templo havia uma casa para peregrinos. Sua fachada era dividida por nichos onde havia estátuas de santos. Era mais enfeitada que a torre onde os humanos rezavam para Tjured. Com um pouco de ousadia, era possível pular do andaime sobre o telhado. A partir dali podiam passar para outros telhados e escapar dos enviados do rei.

Farodin atravessou a janela, voltando para dentro. Os sacerdotes o aguardavam de cara fechada. Sem poder fazer nada, Nuramon deu de ombros:

— Eu não os entendo.

— Mas o que há de tão difícil para entender? — perguntou um sacerdote jovem e ruivo. — Vocês destruíram um retrato de São Romuald. Ele era um homem colérico, que encontrou tarde o caminho para Tjured e que foi assassinado pelos pagãos nas florestas de Drusna. Amaldiçoou todos que levantaram a mão contra ele. Em poucos anos, seus assassinos estavam mortos. Os pagãos ficaram tão impressionados com isso que passaram a crer em Tjured aos milhares. Dizem que sua maldição ainda vigora. Quem profana um de seus retratos tem de contar com o pior. Mesmo como santo, Romuald continuou um homem colérico.

Farodin não acreditava no que ouvia. Como podiam crer numa loucura dessas?

— Vocês não fizeram nada. A maldição de Romuald só vai atingir a mim. Não precisam se preocupar, nós... — A porta do templo arrebentou sonoramente.

— Nuramon, vá na frente. Conduza os sacerdotes. Precisamos escalar o andaime, um a um, e então saltar para a casa vizinha. Assim damos menos na vista. E não devemos sobrecarregar o andaime com muito peso.

Lá embaixo, no átrio, soavam os gritos dos guerreiros.

— Joguem o óleo das lâmpadas no andaime depois de fugir.

— Por que eu? — perguntou Nuramon. — Você conhece o caminho...

— E eu luto melhor com a espada.

Nuramon encarou-o ofendido.

— Vá! Eu vou segurá-los.

Ouviam passos pesados na escada em caracol. Farodin agarrou as lâmpadas e jogou-as degraus abaixo. Então rasgou uma manga de sua camisa e a embebeu em óleo. Pôs fogo no tecido com o pavio de uma lâmpada. O óleo não era de boa qualidade e o fogo demorou para pegar; uma fumaça densa e escura subiu quando o pano finalmente começou a queimar. O elfo lançou a manga escada abaixo e observou como as chamas queimaram rápido o óleo derramado e o fogo consumiu o tecido num instante... e se apagou.

Perplexo, Farodin examinou os degraus. A qualidade do óleo era mesmo terrível! Um primeiro guerreiro surgiu na beirada da escada. Amedrontado, escondia-se detrás de seu escudo. A visão do elfo o fez hesitar. Então foi empurrado pelos guerreiros que o seguiam e obrigado a prosseguir.

Farodin esticou-se, alongando os músculos. Estava decidido a ter uma boa luta contra os humanos. De canto de olho, viu um grupo mirar suas flechas no átrio inferior. A direção dos tiros foi péssima. As flechas bateram no revestimento de madeira da galeria e uma das grandes janelas quebrou-se com ruído.

Impulsionado pelos gritos enfurecidos de seus companheiros, o escudeiro deu mais um salto para a frente e escorregou nos degraus cobertos de óleo. Caiu pesadamente pela escada e levou vários de seus camaradas consigo.

— Venha! — Guillaume estava de pé no nicho da janela, acenando para Farodin. — Os outros já estão no telhado.

O elfo embainhou a espada. Guillaume agarrou seu braço e o puxou para cima, para o nicho da janela. Apesar de ser magro, o sacerdote era surpreendentemente forte. Só com uma mão ajudara Farodin a subir. Seria essa força uma herança de seu pai?

Uma flecha atingiu ruidosamente o topo arqueado do nicho da janela. Ouvia-se a voz do líder dos guerreiros na praça do templo. Tinha descoberto a rota de fuga.

— Vá na frente! — disse Farodin.

O sacerdote hesitou.

— O que você está esperando?

— Eu... eu tenho medo... de altura. Se olhar para baixo fico paralisado. Eu... eu não consigo. Deixe-me para trás!

Farodin agarrou Guillaume rudemente pelo braço.

— Então nós vamos juntos!

Arrastou-o até a beirada do nicho. Juntos pularam sobre a plataforma de madeira sob a janela. O andaime tremeu com o impacto. Com o coração batendo forte, Farodin espremeu-se contra a parede de pedra. Um golpe surdo soou, e o andaime inteiro balançou novamente. Em algum lugar embaixo deles uma viga de madeira se soltou e despencou sonoramente nas profundezas.

Quando o andaime tremeu uma terceira vez, Farodin curvou-se sobre a borda e viu com horror o que acontecia. Lá embaixo, diante da porta, um grupo de guerreiros agarrara uma barra grossa e batia-a continuamente contra a viga de sustentação do andaime. Aqueles tolos pareciam não perceber que eles mesmos seriam enterrados sob os escombros, se o andaime de quase quinze metros de altura desmoronasse!

Algo partiu-se sob eles. Sentiram um solavanco quando uma das plataformas de construção se inclinou e despencou nas profundezas, destruindo algumas vigas de sustentação.

Farodin sentiu seu estômago encolher dolorosamente. Só mais alguns instantes e todo o andaime viria abaixo.

— Cuidado! — soou a voz do sacerdote.

O elfo deu meia-volta. No mesmo momento o guerreiro que escorregara degraus abaixo pisou sobre o estrado. Um som de estilhaços acompanhou o impacto da subida do pesado homem. Atacou com seu pesado machado, num golpe rápido.

Farodin deixou-se cair para desviar do golpe. Queria enganchar um pé por trás do calcanhar do agressor, quando a plataforma cedeu. Por reflexo, o elfo agarrou-se em um pilar de madeira enquanto seu oponente despencou, agitando os braços. Naquele momento pareceu que a pesada plataforma encontrara um equilíbrio instável. Estava inclinada para baixo num ângulo íngreme.

O coração de Farodin batia como um trovão. Precisavam ir adiante e sair do andaime. Como se quisesse enfatizar esse seu pensamento, uma seta disparada por uma besta cravou-se na madeira a um palmo de sua cabeça. O sacerdote se salvara sobre uma tábua estreita que dava em uma escada, pela qual era possível descer até o nível seguinte do andaime. Guillaume enlaçara os braços ao redor dos joelhos e espremia-se o quanto podia contra a parede da torre. Nuramon e os dois sacerdotes de Tjured estavam no telhado da casa dos peregrinos, para fugir da mira dos besteiros da praça do templo. Farodin viu o líder da guarda enviar pequenas tropas de homens para cercar a casa. A tentativa de fuga falhara.

Com muito barulho, o aríete chocou-se contra a pilastra do andaime. Chiados e rangidos percorreram a frágil construção de madeira. A plataforma ao lado de Farodin inclinou-se. Angustiado, o elfo olhou para baixo. Como uma gigantesca lâmina de machado, várias vigas transversais se romperiam assim que se soltasse.

Farodin pendurou-se em uma viga ao longo da tábua onde Guillaume estava agachado. O sacerdote tinha os olhos fechados e rezava em voz baixa.

— Precisamos sair daqui — gritou Farodin. — Tudo vai despencar a qualquer momento.

— Eu não consigo — gemeu Guillaume. — Não consigo me mover nem mais uma polegada. Eu... — ele soluçou. — Meu medo é mais forte que eu.

— Você tem medo de cair? Se você não se mexer, então vamos morrer os dois!

Como se quisesse reforçar as palavras de Farodin, um novo solavanco percorreu o andaime. A plataforma danificada balançava para a frente e para trás. De repente ouviu-se um estampido agudo. O último suporte cedera sob o peso, e a plataforma despencou no vazio.

Farodin agarrou o sacerdote e empurrou-o para a frente. Como um enorme machado, a plataforma de obras rompeu madeiras e vigas. Um pedaço inteiro do andaime soltou-se da parte principal e inclinou-se lentamente na direção do carvalho na praça do templo.

O pânico deu a Farodin uma força inimaginável. Ele levantou o sacerdote e carregou-o nos braços como uma criança grande. Apavorado, Guillaume se agarrava a ele. O elfo mal era capaz de ver onde pisava.

Agora tudo no andaime parecia estar em movimento. A tábua em que andava tremia cada vez mais forte. Horrorizado, Farodin viu os ganchos de fixação no muro do templo se quebrarem. Não conseguiriam mais descer a escada até a plataforma que os levaria com um pequeno salto até o telhado da hospedaria. Precisariam tentar um pulo de uma altura maior!

Então, correu como raras vezes correra na vida. Vigas e hastes de madeira choviam do alto sobre eles. O andaime chacoalhava para lá e para cá. O elfo sabia que carregando Guillaume era difícil conseguir dar um salto muito longo. Como alguém que se afoga e, com medo, puxa seu salvador para baixo junto consigo, o sacerdote não largava o elfo.

Sem aviso prévio, a tábua em que estavam vergou-se. Mais dois passos e alcançariam o ponto certo para saltar... Na queda, Farodin agarrou uma corda que estava enroscada ao redor da viga de sustentação, que igualmente curvou-se para o chão.

Algo pesado como o punho de um troll atingiu Farodin nas costas. Sentiu várias costelas se partirem. A corda de suporte balançara na direção da casa de peregrinos e agora oscilava de volta.

Semiconsciente, Farodin soltou a corda que segurava. Guillaume deu um grito estridente enquanto caíam. Despencaram com força sobre o telhado. Ripas de madeira se despedaçaram com o choque. Farodin foi jogado em outra direção e, sem força, rolou seguindo a inclinação da superfície, escorregando sobre a beirada do telhado. Com a mão esquerda, ainda conseguiu segurar-se em uma viga horizontal diante dele. Seu corpo balançou e bateu com força contra o muro da construção.

— Ali está um deles — gritou alguém de baixo.

Farodin segurava-se firmemente com ambas as mãos na viga, mas suas forças já não eram suficientes para lançar-se para cima. Flechas de bestas cravaram-se ao seu redor.

Com um estrondo ensurdecedor, o andaime junto ao templo veio abaixo. Uma imensa nuvem de poeira cobriu a praça.

Uma pancada atingiu a coxa direita de Farodin. O elfo berrou de dor. Uma flecha transpassara sua perna e fincara-se, suja de sangue, na parede da construção.

Lentamente, os dedos de Farodin escorregavam da beirada da viga. Sua vontade se despedaçara. Não era mais capaz de lutar.

— Segure a minha mão.

Farodin encarou os olhos azuis arregalados de medo de Guillaume que, debruçado no telhado, estendia-lhe a mão.

— Eu não consigo mais...

— Tjured, afaste o meu medo — murmurou o sacerdote.

Sua face brilhava de suor quando avançou um pouco mais e agarrou o pulso de Farodin. Com um tranco que quase deslocou seu braço, o elfo foi puxado para cima do telhado.

Farodin arfava. Estava com frio. Seu ferimento na coxa sangrava muito.

Guillaume, que enroscara um pé entre os caibros para encontrar apoio, ergueu metade do corpo. Olhava a ferida com preocupação.

— Vou amarrar sua perna para fazer um torniquete. Senão você vai...

Uma última fagulha de vida acendeu-se em Farodin. Assustado, rastejou para se afastar do sacerdote.

— Não me toque. Você... Não tente me...

Guillaume riu cansado.

— Amarrar. Não falei de cura. Eu só queria... — Ele tossiu. Sangue escorreu de seus lábios. O sacerdote apalpou a boca e olhou para os dedos ensanguentados. Uma mancha escura crescia rápido em seu hábito. Uma flecha de besta o atingira sob as costelas e atravessara o seu tronco.

De repente Guillaume tombou para o lado como uma árvore. Farodin tentou agarrá-lo, mas tudo foi rápido demais. O sacerdote despencou pela beirada do telhado. Farodin pôde ainda ouvir o filho de Noroelle estatelar-se contra o chão da praça do templo.

As janelas muradas

O estrondo do andaime despencando pôde ser ouvido até na montanha do vinhedo. Mandred apertou os olhos na clara luz da manhã. Os guerreiros forasteiros penduravam algo no carvalho da praça do templo, mas ele estava muito distante para ver direito o que acontecia lá.

— Precisamos ir até a cidade — disse Mandred insistentemente.

— Não — repetiu Ollowain pela terceira vez. — Por acaso nós sabemos o que está acontecendo ali? Provavelmente Nuramon e Farodin estão escondidos em algum lugar esperando que esses incendiários sumam de lá.

— Provavelmente não basta para mim! — Mandred agitou-se na sela. — Pelo visto, na língua dos elfos a palavra amigo tem um significado diferente do nosso — completou ele. — Em todo caso, não vou ficar mais aqui sentado sem fazer nada. O que vocês vão fazer? — disse olhando para Oleif e para ambas as guerreiras. Das elfas, ele não esperava muito. Eram totalmente submissas a Ollowain. Mas seu filho... Cavalgaram juntos por três anos. Será que em todo esse tempo não conseguira ensinar a ele ao menos um pouco do senso de honra? É claro que Mandred sabia que sozinho não conseguiria fazer nada e, sim, mesmo em cinco eles não conseguiriam vencer os inimigos, que estavam em maior número. Mas ficar simplesmente esperando ali, com a esperança de que seus amigos fossem embora, não era como um homem deveria se portar.

Oleif lançou um olhar de interrogação para Ollowain. O filho parecia surpreso com o comportamento do mestre da espada.

— Vocês todos viram que quase cem homens atravessaram a ponte cavalgando no raiar da manhã — disse Ollowain.

Mandred acariciou o cabo do machado que pendia de sua sela.

— Essa promete ser uma luta empolgante. Pelo que estou vendo, as proporções estão quase equilibradas. — Ele puxou as rédeas e guiou seu cavalo pela trilha estreita que descia da montanha até o vale.

Ao chegar à estrada que levava à cidade, ouviu um bater de cascos atrás de si. Não se voltou, mas seu coração se encheu de orgulho. Dessa vez Oleif não agia como um elfo.

Cavalgaram calados lado a lado. Seu silêncio dizia mais que palavras poderiam expressar.

Cinco guerreiros guardavam a ponte. Mandred viu um dos homens preparar uma besta. Um rapaz corpulento, de cabeça raspada, pôs-se no caminho deles. Apontou a ponta da lança contra o peito de Mandred.

— Em nome do rei, deem meia-volta. Esta ponte está bloqueada.

Mandred sorriu simpático, e arqueou-se para a frente. Sua mão direita escorregou até o nó de couro que prendia o machado à sela.

— Negócios urgentes me trazem a Aniscans. Por favor, libere a minha passagem, amigo.

— Desapareçam daqui, ou vou rasgar sua barriga e pendurá-lo pelas próprias tripas na primeira árvore que encontrar. — A lança do guarda avançou palpitante e parou a poucos dedos da garganta de Mandred.

Mandred ergueu o machado como um raio e despedaçou o cabo da arma. Um golpe de revés destroçou o crânio do guarda.

O jarl abaixou-se rente à nuca do cavalo para dificultar a mira dos besteiros. Oleif pulara da sela e causava estragos nos guardas desprevenidos. Esquivava-se de suas lanças e girava sua espada por círculos mortais. Nem escudos nem trajes de malha de ferro ofereciam resistência ao aço élfico. Em poucos instantes os cinco guerreiros jaziam no chão.

A ponte agora estava livre. Aparentemente não estavam sendo observados da outra margem. Mandred saltou da sela e ajoelhou-se ao lado do besteiro caído. O homem não estava mais consciente. Um pisão de cavalo transformara seu rosto em uma massa sangrenta. Mandred puxou uma faca do cinto dele e cortou-lhe a garganta. Então revistou o morto. Encontrou uma fina bolsa de couro com algumas peças de cobre e um anel de prata escurecido.

— Não pode ser verdade, pai!

Mandred ergueu rapidamente os olhos para seu filho, e então foi até o careca que ameaçara pendurá-lo pelas tripas.

— Alguma coisa está incomodando? — perguntou Mandred, apalpando as vestes do homem corpulento em busca de moedas escondidas.

— Você rouba dos mortos! Isso é... repulsivo! Imoral!

Mandred virou o líder dos guardas de lado. Ele tinha orelhas grandes e carnudas e usava um único brinco com uma linda pérola. Com um puxão, Mandred arrancou o brinco, rasgando sua orelha.

— Imoral? — Ergueu a pérola contra a luz. Era grande como uma ervilha e tinha um brilho rosado. — Imoral talvez seria roubar dos vivos. Esses aqui não ficarão mais chateados se eu privá-los de seus pertences. Se eu não fizesse isso, os próprios companheiros deles iriam fazê-lo.

— Nem me fale de companheiros! Neste mesmo instante parece que para você tanto faz se aqueles que você chama de amigos estão lutando pela vida. Ollowain tinha razão!

Mandred andou até o próximo morto.

— Você poderia manter os olhos na outra margem enquanto dá o seu sermão, filho? Você certamente se daria bem com Guillaume. E no que Ollowain tinha razão?

— Ele disse que você era como um animal, que agia só por instinto. Nem bom nem ruim... Simplesmente primitivo!

Um dos lanceiros mortos usava um anel de prata com uma grande turquesa. Mandred puxou o anel, mas ele não se moveu.

— Não tire os olhos da outra margem — foi tudo o que Mandred disse.

Cuspiu na mão do morto e esfregou a saliva, para que o anel deslizasse melhor no dedo, mas isso não ajudou. Irritado, sacou um punhal.

— Você não vai fazer isso, pai.

Mandred posicionou a ponta do punhal na junta do dedo do anel, e bateu com a polpa da mão no cabo da arma. Ouviu-se o ruído do aço partindo o osso fino. O jarl apanhou o dedo, arrancou-lhe o anel e enfiou-o junto com os demais espólios em uma bolsa de couro.

— Você é pior que um animal!

O guerreiro se ergueu.

— Para mim, tanto faz o que você pensa de mim e dos animais. Mas nunca volte a dizer que meus amigos não me importam.

— Ah, entendi. É pura consideração continuarmos aqui enquanto eles lutam. Você não quer acabar com a diversão deles.

Mandred pulou sobre a sela.

— Você realmente não entende o que estamos fazendo aqui, não é?

— Entendo, sim. É óbvio que está certo. Você está enchendo os bolsos... Provavelmente para, na próxima cidade, poder encher a cara e caçar vadias por aí. Será que também foi por isso que Freya o amaldiçoou?

Mandred deu uma bofetada ruidosa em Oleif.

— Nunca mais fale da sua mãe e de vadias na mesma frase.

O jovem guerreiro encolheu-se na sela, tonto com a força da pancada inesperada. Marcas vermelhas surgiram-lhe na face.

— E agora me ouça com atenção em vez de ficar tagarelando, e aprenda alguma coisa. — Mandred falava baixo e exagerando na ênfase. Ele não podia esquecer! Talvez tivesse sido melhor dar uma bela sova nesse espertinho do seu filho. O que os elfos fizeram com o seu garoto! — A maioria dos guerreiros humanos tem medo da luta. Eles falam demais, mas quando chega a hora, ficam cheios de medo até as tripas. Eu mesmo tenho medo de que haja besteiros à espreita nas casas da outra margem, que nos matarão a tiros quando atravessarmos a ponte. Se eles estiverem posicionados lá, ficarão esperando que cheguemos perto o bastante para que não errem o alvo. Eu apeei e enchi a minha bolsa para deixá-los mais tempo com o medo. Pois eles também têm medo de nós. Eles têm medo de não nos acertarem, e de chegarmos às casas antes que consigam recarregar as armas. Quanto mais tempo eles nos virem e tiverem de esperar, maior será a probabilidade de um deles perder a cabeça e atirar. Então, pelo menos vamos saber o que nos espera.

Por alguns instantes reinou um silêncio tenso entre pai e filho. Ouvia-se somente o som dos passos nas tábuas que cruzavam os pilares da ponte.

Oleif olhou para as casas na outra margem.

— Você tem razão. Se cavalgarmos às cegas e cairmos numa emboscada, não seremos de ajuda nenhuma para Nuramon e Farodin. Nada está se movendo ali do outro lado. Você acha que podemos atravessar a ponte em segurança?

Mandred sacudiu a cabeça.

— Guerra e segurança são duas coisas que não caminham juntas. Mas agora tenho certeza de que não há guerreiros comuns esperando por nós ali do outro lado. Se houvesse, pelo menos um deles teria atirado. Mas, se em vez de fedelhos quem estiver nos esperando forem uns velhos tarados e espertalhões, veteranos que já lutaram em muitas batalhas, então eles conhecem esse truque e estão esperando com toda a calma do mundo.

Mandred curvou-se bem sobre o pescoço da égua e esporeou-a.

— Nos vemos na outra margem!

Ele observou as casas com desconfiança, mas nenhuma chuva de flechas os recebeu quando deixaram a ponte. Os cinco guerreiros pareciam ser os únicos guardas deste lado da cidade.

Mandred e Oleif refrearam os cavalos. Diante deles havia uma estrada larga e sinuosa, que passava pelo mercado e prosseguia para cima da colina, até a praça do templo. Aniscans parecia abandonada. Ninguém ousava pisar na rua. Continuaram cavalgando lentamente. Olhos assustados os seguiam através de janelas semicerradas. Da colina ouviam-se gritos. Também se podia ouvir nitidamente o som de espadas.

— Se eu estivesse no comando, entraríamos na cidade e bloquearíamos as vielas — esclareceu Oleif.

Mandred concordou.

— Parece que os elfos ensinaram-lhe algo além de dizer asneiras ou de cantarolar musiquinhas. Vamos apear. A pé somos mais ágeis.

Deixaram a rua principal e adentraram o labirinto de vielas estreitas, levando os cavalos pelas rédeas atrás de si. Mandred olhou em volta, aflito. A cidade inteira era como uma grande armadilha. Restava-lhes esperar que ninguém tivesse visto a carnificina na ponte.

Ambos atravessaram uma praça estreita de terra batida. Uma grande casa de janelas muradas ocupava um lado inteiro da praça. Com um portão alto que dava em um pátio interno, parecia quase um castelo.

— Vamos guardar os cavalos aqui — ordenou Mandred, conduzindo sua égua para atravessar o portão.

Muitas janelas davam para o pátio interno. Desconfiado, olhou ao redor. O prédio lhe parecia estranho. Em uma das janelas, viu rapidamente uma jovem com um corpete entreaberto, que então desapareceu. Ninguém saiu pela única porta da casa ou falou com eles de alguma das janelas. Para ele isso não podia estar certo.

Em frente ao portão havia um galpão aberto com uma longa bancada de trabalho. Sobre essa mesa havia uma pilha de tamancos e, ao lado dela, uma grande variedade de ferramentas de entalhe, enfileiradas de forma organizada: plainas, cinzéis e facas de lâminas estranhamente curvadas. Ali também não se via nenhuma alma viva.

Mandred amarrou as rédeas em uma argola de ferro que havia em uma das paredes da casa. Observou longamente, então, as janelas que davam para o pátio.

— Eu sei que vocês estão nos observando. Se os cavalos não estiverem mais aqui quando eu voltar, então vou subir até aí e cortar as suas gargantas. — Apanhou a bolsa de couro presa ao cinto e tirou dela uma única moeda, que ergueu para o alto. — Mas, caso os cavalos estejam alimentados e tenham bebido água, deixarei esta peça de prata aqui.

Sem esperar por resposta, Mandred pôs o machado no ombro e saiu pelo portão.

— Você tem um plano? — perguntou Oleif.

— Claro. Não se preocupe. Eu sei exatamente o que precisamos fazer. Temos de seguir os sons de luta.

O filho franziu a testa.

— E tem mais algum outro?

Mandred fez um gesto aborrecido.

— Planos demais só dão dor de cabeça e forçam as pessoas a não fazerem mais nada. Um bom líder não fica de muita conversa; ele age.

Mandred iniciou um trote rápido. Mantinha-se bem perto das paredes das casas para ser um alvo mais difícil para os atiradores. O som das espadas agora estava bem próximo.

De repente, um guerreiro saiu cambaleando de uma casa. Trazia um grande escudo redondo afivelado ao braço, com um brasão com uma cabeça branca de touro. Nuramon surgiu na porta. O elfo apertava a mão contra o lado esquerdo do quadril. Sangue escuro brotava entre seus dedos.

Um soco de Mandred derrubou o guerreiro surpreso no chão, antes mesmo que ele pudesse levantar o escudo para se proteger.

— Bom ver vocês, filhos de humanos — grasnou Nuramon. Ele deixou a espada cair e recostou-se no batente da porta, esgotado. — Venham.

Ambos seguiram o elfo para a penumbra dentro da casa. Atravessaram uma cozinha destruída e pularam por cima de dois corpos que bloqueavam a porta para a sala de jantar. Ali todas as janelas também estavam vedadas e somente filetes estreitos de luz adentravam a sala. Farodin estava deitado sobre uma longa mesa de jantar que dominava o cômodo. Havia um jovem sacerdote, de cabelos vermelhos como chamas, de pé ao seu lado, curvado sobre ele.

— É melhor não se mexer, senhor — o rapaz tentou convencer o elfo em tom de súplica. — O ferimento vai abrir de novo. E você perdeu muito sangue.

Farodin afastou o sacerdote de Tjured para o lado.

— Só vou poder ficar deitado por aí quando estivermos fora da cidade e em segurança.

— Mas você vai... — começou o sacerdote, nervoso.

Nuramon o tranquilizou.

— Mais tarde vou cuidar dos ferimentos dele.

Farodin ergueu-se e voltou-se para o filho de humanos.

— Vocês demoraram. Onde Ollowain se enfiou?

Mandred desviou o olhar do elfo.

Farodin bufou com desprezo.

— Foi o que pensei.

Em poucas palavras, ele contou sobre o ataque ao templo e de como conseguiram fugir.

— E Guillaume? — perguntou Oleif quando Farodin terminou.

O elfo apontou para as janelas bloqueadas.

— Ali na praça do templo.

Mandred e o filho atravessaram a sala e espiaram cuidadosamente por uma fresta. Havia guerreiros do rei por todos os lados. Haviam empilhado madeira do andaime destruído ao redor do carvalho sagrado. De um dos galhos da árvore pendiam, de cabeça para baixo, dois cadáveres nus e profanados. Um homem velho, de baixa estatura, e... Guillaume. Seus corpos tinham sido esfolados com golpes de vara. Flechas de besta e cabos quebrados de lanças saíam de seus torsos.

Enojado, Mandred afastou-se da janela.

— Por que estão fazendo isso? Você disse que queriam levá-lo até seu rei.

— Depois de cair do telhado, Guillaume já não estava mais apresentável — retrucou Farodin friamente. Então apertou os lábios até se tornarem um traço fino e sem cor.

— A flecha que o atingiu certamente era para Farodin — disse Nuramon com voz inexpressiva. — Eu...

— Guillaume queria a morte — interrompeu Farodin furioso. — Você sabe disso. Ele queria sair e se entregar a esses assassinos!

— Para nos salvar — retorquiu Nuramon calmamente. — Não estou repreendendo você por nada. Mas, entre Emerelle e Cabezan, Guillaume já não via mais chance de viver. Restou-lhe escolher de que forma queria morrer. Quando os guerreiros ergueram seu cadáver do chão, foram tomados por fúria cega. Eles profanaram e penduraram o seu corpo.

— E agora virão nos buscar — disse Oleif, ainda de pé à janela.

Mandred olhou para fora e praguejou. O homem que derrubara diante da porta tinha recuperado a consciência. Ele correu até a praça e gritou apontando para a casa em que se escondiam.

— Maldito falatório sobre a moral! Antes eu teria simplesmente cortado o pescoço dele.

Farodin agarrou a espada, que jazia ao seu lado sobre a mesa.

— Eles teriam vindo nos buscar de qualquer maneira. — E voltando-se para o sacerdote que cuidara de suas feridas: — Obrigado, filho de humanos. Agora procure o seu irmão de ordem e se esconda. Não poderemos mais protegê-los. — Tentou levantar-se, mas sua perna ferida não parecia disposta a carregá-lo.

Mandred segurou o elfo pelos ombros para oferecer apoio.

— Não preciso de ajuda — murmurou Farodin.

Mandred o soltou. Em pé, o elfo vacilava, mas pelo menos... Estava em pé.

— Não faz sentido lutar aqui. Vamos tentar chegar até os cavalos. Se a ponte não estiver ocupada novamente, talvez consigamos escapar. — E fazendo um gesto para Oleif: — Ajude Nuramon. Ele é menos teimoso.

— Não saiam pela porta — disse repentinamente o sacerdote ruivo. — Eu... eu também queria agradecer a vocês. Segestus, meu irmão de ordem... Eu não preciso mais procurá-lo; ele já conseguiu fugir. Há um outro caminho. Sigam-me!

Mandred olhou para Farodin.

— Não temos mais nada a perder — decidiu o elfo. — Travem as portas. Isso vai detê-los um pouco. Mas que caminho é esse que o seu irmão de ordem tomou?

O sacerdote acendeu um candeeiro e os conduziu da cozinha até uma despensa. A sala estava toda repleta de ânforas de todas as formas e tamanhos. Do teto pendiam presuntos e linguiças defumadas.

O irmão da ordem prosseguiu. Mandred ficou um pouco para trás e escondeu duas grandes linguiças defumadas debaixo da roupa. Esse era o começo de uma fuga selvagem e só Luth sabia quando seria a próxima vez que ele comeria algo razoável novamente. Também teria preferido levar uma das ânforas de vinho. O deus Tjured devia ser realmente importante para seus sacerdotes poderem manter uma despensa tão bem recheada como aquela. Estranho, pensou Mandred, ele só ouviu falar de Tjured pela primeira vez duas semanas atrás. Mas isso certamente era ignorância sua...

O jovem sacerdote levou-os até um portão baixo, atrás do qual havia uma escada que descia para as profundezas. Dali foram parar em uma sala onde estavam armazenados imensos barris. Mandred mal acreditava no que via. Nunca pensou que veria barris na vida. Eles estavam enfileirados junto às paredes, de ambos os lados. Seguindo em frente, o porão caía na escuridão. Ali estava estocado um mar inteiro de vinho!

— Pelos seios de Naida, padre, o que vocês fazem com tanto vinho? Vocês tomam banho aí dentro? — Mandred caiu na risada.

— Aniscans é uma cidade de vinicultores. O templo sempre recebe vinho de presente. Nós o comercializamos. — Ele parou, olhou para trás e contou nos dedos em silêncio os barris pelos quais passaram. Então lhes mostrou mais um pedaço de caminho e os conduziu finalmente por um vão entre dois altos barris. Oculta pela escuridão, ali abriu-se uma passagem para um túnel baixo.

— Algumas pessoas dizem que sob Aniscans há uma segunda cidade escondida. São os grandes estoques subterrâneos dos vinicultores. Muitas das câmaras são ligadas umas às outras por túneis como este. Num dia chuvoso, quem conhece os caminhos aqui embaixo consegue chegar de uma ponta a outra da cidade com os pés secos. Mas aqui também é possível se perder desesperadamente...

— Pelo menos aqui embaixo ninguém morre de sede.

O sacerdote encarou Mandred com olhar de reprovação. Então abaixou-se e desapareceu no túnel. Mandred afundou a cabeça entre os ombros, mas ainda assim bateu-a no teto uma porção de vezes durante a travessia na escuridão. A luz fraca do candeeiro era quase totalmente encoberta pelos companheiros, que andavam na frente dele, obrigando-o a seguir tateando as paredes. Ali embaixo era abafado e um cheiro azedo pairava no ar. Logo Mandred teve a sensação de o caminho estar durando uma eternidade. Ele contava os passos para se distrair. No 33 eles chegaram a um segundo estoque cheio de barris.

O sacerdote levou-os até uma escada que terminava num alçapão. Foi por aí que deixaram o túnel, chegando a um pátio ensolarado.

— Aonde vocês querem ir agora? — perguntou.

Mandred encarou a luz e respirou fundo.

— Nossos cavalos estão em um pátio interno. É uma casa grande junto a uma pequena praça, cujas janelas que dão para ela estão muradas — esclareceu Oleif. — Você pode nos dizer como chegamos até lá?

O sacerdote corou.

— Uma casa de janelas muradas? — ele pigarreou, constrangido.

— Há algo de errado com ela? — perguntou Mandred. — Eu também me perguntei por que transformaram a casa numa fortaleza.

O sacerdote pigarreou novamente.

— É que... é por causa da taverna do outro lado da praça. O taverneiro criou um ambiente especial no segundo andar. Quem quiser beber lá precisa pagar uma moeda de cobre a mais por cada caneca de vinho.

— E?

O sacerdote deu as costas de tão constrangido.

— Da sala da taverna era possível ver bem as janelas do outro lado da praça.

Mandred perdia aos poucos a paciência.

— E o que tinha lá para ver?

— Ela é... é uma casa aonde vão os homens solitários. Da taverna eles podiam ver o que se fazia nos quartos. Por isso o proprietário mandou murar as janelas.

Nuramon riu alto e logo apertou a mão contra o ferimento no quadril.

— Um bordel! Você guardou os cavalos em um bordel, Mandred?

— No pátio de um bordel — retorquiu Oleif, que também tinha ficado vermelho. — No pátio.

— Eu aposto que é o único bordel da cidade — completou Farodin. — E você o encontrou em cheio.

Mandred não entendia o que havia de tão engraçado nisso.

— Eu não sei de nada. No pátio há uma oficina de um artesão honesto, isso foi tudo o que vi.

— É claro — respondeu Farodin com um riso irônico. — É claro.

Mandred encarou surpreso os dois elfos. As lutas e a morte medonha de Guillaume — tudo isso provavelmente foi demais para eles. Não conseguia explicar de outra forma essa explosão de gracejos.

O rapaz os conduziu em caminhos furtivos por vielas estreitas e pátios internos. Várias vezes ouviram os gritos dos soldados do rei bem próximos, mas não foram descobertos. Mandred tinha a sensação de que já deviam ter chegado há muito tempo ao bordel, quando o sacerdote de repente parou e fez um sinal para que ficassem em silêncio.

— O que está acontecendo, amigo rezador? — murmurou o jarl, impelindo-se para a frente.

Pôs-se a ouvir cuidadosamente os sons da praça. Haviam chegado a seu destino, mas diante da taverna na frente do bordel havia sete guerreiros. Uma magra funcionária da taverna trazia-lhes canecas de cerveja e pratos de madeira cheios de queijo e pão.

— Luth ama tecer desenhos complicados com os fios do destino — gemeu Mandred. E virando-se para seus companheiros: — Vou distrair os soldados. Tratem de chegar até os cavalos. E quanto a você, padre? Quer fugir com a gente?

O rapaz pensou um pouco, e então sacudiu a cabeça.

— Tenho amigos na cidade. Eles me esconderão até essa corja ir embora.

— Então você não deve ser visto conosco. Agradeço a sua ajuda. Mas agora é melhor que vá embora.

— O que está planejando, pai? Você não está querendo lutar sozinho contra sete...

Mandred acariciou a lâmina do seu machado.

— Somos dois. Trate de chegar o mais rápido possível até os cavalos com Nuramon e Farodin. Quando já tiverem chegado até os limites da cidade, talvez Ollowain os ajude caso encontrem dificuldades.

— E você? — perguntou Nuramon. — Nós não podemos simplesmente deixá-lo para trás.

Mandred fez um gesto de desdém.

— Não se preocupem comigo. Vou sair daqui de algum jeito. Você sabe, nem mesmo o devanthar foi capaz de me matar.

— Você não devia...

Mandred não ouviu mais as objeções de seus companheiros. A qualquer momento, uma das tropas de busca podia aparecer por trás deles na viela. O tempo para as palavras já se esgotara. Ele agarrou seu machado mais forte e saiu para a praça, como se estivesse passeando.

— Ei, caras. Estou feliz de ver que aqui tem mais alguma coisa para beber além de suco de uva.

Os soldados levantaram os olhos admirados.

— O que você está fazendo aqui? — perguntou um guerreiro de cabelo desgrenhado e barba por fazer.

— Sou um peregrino a caminho do templo de Tjured — esclareceu Mandred. — Dizem que lá há um curador que faz verdadeiros milagres. — Ele se alongou: — Meus dedos estão ficando lentamente curvos por causa da artrite.

— O sacerdote Guillaume morreu hoje de manhã tentando curar a si mesmo. — O soldado sorriu irônico e hostil: — Agora mesmo estamos no banquete do seu funeral.

Mandred já quase chegara até os soldados.

— Então vou beber à saúde dele. O homem...

— Isso no machado dele é sangue! — gritou um guerreiro.

Mandred correu e atacou com o machado o homem que estava mais à frente, enquanto cravou o ombro contra o peito de outro, fazendo-o cair. Uma lâmina de espada acertou ruidosamente sua camisa de malha de ferro, sem atravessá-la. Mandred deu uma volta, bloqueou um ataque com o machado e acertou um soco no rosto de outro guerreiro. Um machado voador errou por pouco a sua cabeça. O jarl abaixou-se e avançou. Armadura nenhuma ofereceria resistência à mortal lâmina dupla de seu machado. Ceifou um guerreiro como um lavrador faz com o milho, e foi quando um grito de alerta o cercou.

De uma das vielas laterais correram até a praça mais guerreiros com escudos de touros. Oleif se colocou no caminho, enquanto Farodin e Nuramon tentavam fugir cambaleantes até o pátio do bordel.

Mandred desvencilhou-se dos guerreiros restantes e correu para ajudar o filho. Oleif movia-se com a graça de um dançarino. Era um estilo de luta que parecia afeminado, pensou Mandred, mas que não deixava nenhum dos guerreiros interromper o sinuoso arco que sua longa espada desenhava no ar.

Lutando lado a lado, pai e filho foram lentamente recuando para a entrada do pátio. Quando estavam sob o portão e não podiam mais ser atacados pelos lados ou pelas costas, os guerreiros do rei recuaram.

Mandred e Oleif fecharam o pesado portão e o bloquearam com uma barra transversal. Respirando com dificuldade, o jarl deixou-se cair no chão. Sua mão esquerda brincava com uma de suas tranças.

— Eu esqueci de contar — murmurou, cansado.

O filho sorriu de soslaio.

— Eu diria que foram pelo menos três. Com os dois na ponte, cinco no total. Se você quiser continuar fazendo uma trança para cada morto, logo vai precisar arrumar mais cabelo.

Mandred abanou a cabeça, mal-humorado.

— Tranças mais finas. Essa é uma solução — disse, ofegante, ao erguer-se.

Nuramon e Farodin estavam perto dos cavalos. Os elfos não estavam em condições de ajudar a lutar para livrar o caminho através da cidade.

Um rapaz careca com cicatrizes no rosto surgiu na porta para o pátio. Poucas vezes Mandred encontrara um homem assim tão feio. Seu rosto parecia ter sido pisoteado por uma manada de bois.

— Os cavalos beberam água e estão alimentados, guerreiro. Ficaria agradecido se você deixasse a minha casa agora!

— Há uma segunda saída?

— Claro, mas eu não vou mostrar nenhuma. Você vai embora pelo mesmo portão que entrou. Não dou abrigo a fugitivos da guarda do rei.

Oleif deu um passo ameaçador na direção da porta, mas Mandred agarrou-o pelo braço e puxou-o de volta.

— Ele tem razão. Eu faria a mesma coisa no lugar dele.

O jarl ergueu a cabeça e olhou para as janelas. Duas jovens observavam curiosas o que acontecia no pátio.

— Aqui é mesmo um bordel? — perguntou Mandred.

— Sim — retrucou o careca. — Mas não acho que lhe resta muito tempo para se engraçar com alguma das minhas garotas, guerreiro.

Mandred soltou a bolsa de dinheiro do cinto e pesou-a na mão. Então jogou-a para o homem de cara marcada.

— Pode ser que a sua casa sofra alguns danos na próxima hora. Mas talvez isso também possa ser compensado... Você me abriria a porta se eu pedisse?

— Vocês podem contar com o meu apoio, mas só para sumir daqui.

— Então fique a postos perto do portão.

Mandred sorriu para o filho:

— Você tinha razão. Deixo mesmo todo o meu dinheiro em bordéis.

— Desculpe...

— Esqueça isso. Em vez disso, me ajude! —

Eles foram até o galpão e Mandred derrubou os tamancos da bancada com o braço. O tampo da mesa era uma tábua de carvalho de 8 centímetros de espessura. Mandred afagou a madeira manchada.

— As regras para fazer um cerco são claras, garoto. Há os que ficam atrás dos muros. Ficam sentados, esperam os acontecimentos e se defendem. E há os que ficam diante dos muros. Eles estão sempre em vantagem, pois decidem quando tudo acontece. Acho que precisamos inverter um pouco essas regras.

Oleif encarou-o sem entender.

Mandred enfiou algumas das facas de entalhe no cinto.

— Acho que até agora não disse que você se saiu muito bem, mesmo tendo sido educado por aquele Ollowain.

— Você acha que vamos morrer aqui?

— Um verdadeiro guerreiro não deve morrer na própria cama.

Ele hesitou. Ainda tinha tanto para dizer a seu filho... Mas o tempo urgia. De repente, ficou com a boca seca.

— Eu... eu queria que nunca tivéssemos pisado nesta maldita cidade. E queria ter passado um verão com você em Firnstayn. É só uma pequena aldeia... Mas, à sua maneira, ela é mais linda do que tudo o que vi na Terra dos Albos. — Ele soluçou. — Aposto que nunca o ensinaram a pescar. No fim do verão, o fiorde fica cheio de salmões... Chega de tagarelice! Não vamos dar mais tempo para que eles lá fora se aglomerem ainda mais. Talvez agora ainda consigamos atravessar. Eles estão espalhados por toda a cidade para procurar por nós. — Ele arrastou a bancada. — Muito pesada, mas que droga. — Olhou rapidamente para os dois elfos. — Eles não conseguem mais nos ajudar nas lutas. E, com dois cavaleiros na sela, os cavalos são lentos demais. — Hesitou: — Vamos ficar aqui... Vou bater nas patas traseiras da minha égua assim que estivermos lá fora. Se ela atravessar, Nuramon vai ter de se esforçar para permanecer na sela, sem fazer nenhuma loucura heroica. Desse jeito talvez ele consiga sair da cidade.

Oleif respirou fundo. Então consentiu com a cabeça.

— Vou ficar com você. Que os deuses os acompanhem em sua busca por Noroelle. A vida deles tem um objetivo... Eu sou alguém que sequer sabe a que mundo pertence.

Mandred enlaçou os braços ao redor do filho.

— Estou orgulhoso de ter lutado ao seu lado, Alfadas — disse, com a voz sufocada pela emoção. Era a primeira vez que o chamava por seu nome élfico. Ficaram ali imóveis por alguns instantes, dominados pelos sentimentos, e então saíram em direção aos cavalos.

Nuramon encarou-os, abatido.

— Vocês fazem ideia de como vamos sair daqui?

— Claro! — Mandred esperava que seu sorriso não parecesse forçado demais. — Nós vamos surpreendê-los, rachar os seus crânios e então fugir daqui a cavalo com toda a calma do mundo. Na verdade, eu acharia meio incômodo ter de cavalgar em dois na mesma sela.

Farodin riu baixo.

— Irresistivelmente simples. Um legítimo plano de Mandred.

— Não é? — O jarl foi até Nuramon e ajudou-o a subir na sela. — Tratem de ficar nos cavalos, senão só encontrarão dificuldades.

Quando ambos os elfos se sentaram, Mandred e Alfadas voltaram ao galpão para erguer a bancada e carregá-la diante de si como um grande escudo.

— Tenho um último pedido a você, meu filho.

O rosto de Alfadas estava deformado pelo esforço.

— O quê?

— Se sairmos vivos daqui, por favor, não use mais esse perfume. Isso é coisa de mulher e de elfo. E também afasta Norgrimm do seu lado. Você não deveria abrir mão da graça do deus da guerra. — Mandred esticou a cabeça para a frente. — Abra o portão, cara de cicatriz!

O dono do bordel arrancou a barra transversal e empurrou as duas folhas do portão.

— Por Freya! — gritou Mandred com toda a força enquanto avançavam.

Tiros de besta atingiram a tábua da mesa como uma chuva de granizo. Colados na prancha de madeira, os dois correram às cegas até a praça, até chegarem a um grupo de guerreiros. A pesada bancada derrubou cinco homens no chão.

Mandred olhou ao redor de si e estremeceu até a medula. Em todas as janelas ao redor deles havia besteiros, que recarregavam suas armas com toda a pressa. Nas vielas que levavam à pequena praça havia barricadas e soldados de guarda. A tropa de guerreiros sobre a qual tinham avançado recuou, apressada, para sair da linha de tiro.

De repente, ouviram o som de cascos de cavalo. Um garanhão branco pulou por cima de uma das barricadas. Uma cavaleira com os cabelos ao vento puxou a rédea fazendo o cavalo dar a volta, e apontou o seu arco. Com um movimento ágil, atirou a flecha da corda e já puxara outra da aljava. Com um grito, um dos atiradores despencou de uma das janelas da taverna ali defronte.

Agora um tropel soava de uma outra viela. Ollowain saltou por uma barricada golpeando um lanceiro. Levava consigo o cavalo de Nuramon pelas rédeas.

— Vai, filho de humanos, monte logo! Você pode ter me ensinado uma lição de honra, mas não é por isso que vou ficar muito tempo esperando.

Mandred agarrou a sela e puxou-se para cima. Viu Yilvina apear perto de uma terceira barricada e avançar como louca sobre os soldados, com suas duas espadas curtas.

De repente o ar se encheu de flechas de besta. Os cavalos deram relinchos estridentes. Algo atingiu Mandred nas costas, fazendo-o lançar-se para a frente.

Nomja continuava atirando quando uma flecha acertou seu cavalo na cabeça. Um mar de sangue esguichou sobre a sua pele branca. Como se atingido por um raio, o enorme animal caiu de joelhos. O solavanco jogou Nomja da sela, que tentou desviar dos cascos pisoteantes dos outros cavalos.

Obstinada, a elfa ergueu seu arco e atirou de volta.

— Vá até Yilvina! — gritou Ollowain. — Ela deixou o caminho livre para nós!

Mandred conduziu seu cavalo até Nomja e estendeu-lhe a mão.

— Venha!

— Só mais um! — Logo a flecha partiu do arco. Ela deu meia-volta e, de repente, sobressaltou-se. Mandred a agarrou quando ela ameaçou cair de bruços e puxou-a para cima do cavalo. Apesar de sua altura, ela parecia não pesar mais que uma criança.

Mandred arrancou com o cavalo e acertou-o com as esporas. Deram um largo salto sobre a barricada e saíram correndo pela viela, num ritmo de quebrar o pescoço. Logo chegaram à ponte. Em nenhum lugar havia soldados bloqueando o seu caminho; eles pareciam estar todos aglomerados na praça junto ao bordel.

Só quando estavam na ponte Mandred ousou olhar para trás. Seu filho, Farodin, Nuramon, Ollowain e Yilvina, todos conseguiram! Muitas flechas tinham atingido sua tropa, todos estavam feridos, mas escaparam!

Uma alegria indescritível tomou conta de Mandred. Ele tinha tanta certeza de que morreria... Ergueu triunfante o machado sobre a cabeça e chacoalhou-o:

— Vitória! Por Norgrimm! Nós escapamos deles... Vitória!

Ele agarrou Nomja, que ainda estava deitada de atravessado sobre a sela, para ajudá-la a se sentar. A cabeça dela caiu sobre o ombro.

— Nomja?

Os olhos verdes da elfa estavam arregalados, e encaravam o céu sem foco. Só então Mandred viu o talho do tamanho de uma avelã em sua têmpora.

Os escritos sagrados de Tjured

Livro 7 — O Profeta

O sucedido deu-se no mesmo dia em que um anjo surgiu para o rei Cabezan. Tinha asas prateadas e portava uma espada de prata. Mas nada nele brilhava como os seus olhos, de um azul muito claro e límpido. E o anjo disse a Cabezan: “Envie os seus guerreiros, pois o perigo reina em Aniscans. O profeta Guillaume teme por sua vida, pois os filhos dos albos a põem em perigo. E isso somente porque um deles chegou tarde demais a suas mãos curadoras”. Então Cabezan ordenou que seus melhores guerreiros montassem seus cavalos e enviou-os a Aniscans sob o comando de Elgiot.

Ainda não havia muralhas cercando Aniscans. Assim, os filhos dos albos entraram na cidade sem serem vistos. Eram seis elfos e um troll. Procuraram Guillaume no templo, mas encontraram somente os demais sacerdotes de Tjured. Então, levaram-nos até o grande carvalho diante do templo e os mataram.

O profeta ouviu o que ocorria lá fora na cidade. Deixou sua casa e, vejam, entregou-se aos filhos dos albos! Foi até eles, curvou-se e disse: “Façam o que quiserem comigo. Tjured os julgará por seus atos”. Então os elfos o abateram e o troll pendurou-o no grande carvalho. O profeta, porém, ainda estava vivo e rezava para Tjured quando uma elfa empunhou seu arco e acertou-o.

Enquanto isso, Elgiot e os guerreiros do rei chegaram e lutaram pela vida do profeta. Mas a elfa arremessou suas flechas em chamas contra o carvalho, que se incendiou totalmente. Os guerreiros de Cabezan pagaram-na com a mesma moeda, assassinando-a. E, por Guillaume, puseram os elfos restantes e o troll para correr. Pois esperavam que o profeta ainda estivesse vivo, de forma que o tiraram do carvalho e das chamas. Ao jogarem água no fogo e o apagarem, viram que o carvalho estava totalmente negro. Retiraram o profeta da árvore. Ele também estava queimado e sem vida. Mas vejam! A água que escorria da árvore caiu sobre seu rosto e lavou a fuligem. O claro semblante de Guillaume ressurgiu. Então os guerreiros lavaram o corpo do profeta e constataram que as pontas de ferro das flechas atravessavam seu corpo, mas as chamas o haviam poupado. E ele abriu os olhos, segurou a mão de Elgiot, o líder, e disse: “Vocês escolheram o seu caminho. Que Tjured conceda-lhes a graça que merecem”. Assim o profeta morreu sob a árvore escurecida. E, com esse ato, os filhos dos albos puseram uma maldição sobre seus ombros. Assim foi dito.

Citação da edição de Schoffenburg Volume 5, fólio 43 R.

O Jarl de Firnstayn

Os companheiros subiram de volta as montanhas ao norte de Aniscans. Sepultaram Nomja sob um pinheiro próximo a um lago de geleira e penduraram as armas da elfa na copa da árvore.

Entre os elfos e humanos reinava uma atmosfera sombria. Apesar das forças curadoras de Nuramon, levaram quase duas semanas para se recuperar dos ferimentos. Mas as feridas em suas almas não queriam curar tão cedo. Ninguém imaginara que a ausência do calado e sempre rabugento Gelvuun deixaria um vazio tão grande. E isso sem falar em Nomja, de quem todos gostavam.

Quando não havia mais desculpas para adiar a partida, concordaram em viajar para Firnstayn, até a estrela alba no círculo de pedras bem acima do fiorde, para tomar o rumo da Terra dos Albos.

A viagem durou quase três luas. Evitaram o quanto puderam passar por aldeias e cidades para não dar na vista. Duas vezes viram ao longe tropas de cavaleiros carregando o estandarte do rei Cabezan. De mercadores, cujo carro de carga os acompanhou ao longo de um dia, ficaram sabendo dos “terríveis acontecimentos em Aniscans”. Dizia-se que a cidade fora atacada por filhos de demônios, que assassinaram o curador Guillaume e profanaram o templo de Tjured.

Nenhum deles contestou os rumores pelo bem da verdade — nem mais tarde, quando atravessaram o mar Neri em um pesado navio de carga até Gonthabu, cidade real das terras dos fiordes. Durante a semana no mar, também ouviram versões ainda mais enfeitadas da história.

Já era alto verão quando finalmente chegaram a Firnstayn. Alfadas ficou surpreso com quão pequena era a colônia à margem do fiorde. Pelo que o pai contava, imaginara-a muito mais importante. Havia nove casas comunais e três dúzias de pequenas cabanas, cercadas de uma paliçada de madeira sobre um muro de terra.

No portão da colônia havia uma torre de observação fortificada, feita de madeira. Mal haviam alcançado o cume da colina sobre a aldeia, uma corneta de alarme foi soprada. E, quando se aproximaram do portão, a paliçada foi tomada por uma tropa de arqueiros.

— Ué, em Firnstayn ninguém conhece mais as leis da hospitalidade? — gritou Mandred, raivoso. — Diante do vosso portão está o jarl Mandred Torgridson, que exige que permitam a sua entrada.

— Você, que se designa como Mandred — retrucou um jovem e imponente guerreiro —, saiba que o clã de cujo nome você se apropria se extinguiu. Eu sou o jarl eleito de Firnstayn, e digo-lhe que você e seu séquito não são bem-vindos aqui.

Alfadas olhou para o pai, esperando a qualquer momento uma daquelas explosões de temperamento que tanto temia.

— Disse bem, jarl! No seu lugar não teria feito diferente. — O pai tirou a pulseira de prata que afanara de um mercador no jogo de dados. — Eu ofereço isto aqui por um barril de hidromel e convido-o a beber comigo e com meu filho.

O jovem jarl examinou Alfadas. Então, balançou a cabeça:

— Você exagera, rei da mentira! Como um homem pode ter um filho quase da mesma idade que ele próprio?

— Se quer ouvir essa história, então beba comigo por minha conta — gritou Mandred, rindo.

— Abra logo o portão, Kalf! — Um velho homem debruçou-se sobre a paliçada e acenou para eles. — Agora você acredita em nós? Veja só, ele até trouxe os elfos de novo! — O velho fez um rápido sinal de proteção. — Não seja tolo, Kalf, e não impeça o acesso dos elfos à aldeia. Você conhece bem as histórias antigas.

— Saudações, Erek Ragnarson — disse Mandred. — Bom ver que você e o seu barco furado não foram parar no fundo do fiorde. Quer sair conosco? Quero ensinar meu filho a pescar antes de seguirmos viagem.

— Vai, abra o portão! — ordenou Erek, agora de forma decidida. E ninguém se opôs a ele.

Mandred e os elfos ficaram por três semanas. Durante elas, Alfadas aprendeu a ver o mundo dos homens com novos olhos. Ele desfrutou o respeito rude com que foi tratado e a forma como as jovens o seguiam com os olhos. A vida era fácil. Precisavam principalmente cuidar que os caminhos lamacentos da aldeia não fossem arruinados por porcos rebeldes. Não havia luxos. A lã grosseira que as mulheres fiavam arranhava a pele. Ventava nas casas e a fumaça queimava os olhos quando se sentavam até tarde da noite nas casas comunais bebendo e contando histórias. Alfadas ouviu quando Kalf contou que, no inverno anterior, viram patrulhas de trolls nas florestas da outra margem do fiorde. Por isso a paliçada ao redor da aldeia havia sido reforçada. Até os elfos levaram esse relato a sério.

Depois de passarem vinte dias em Firnstayn, os companheiros, principalmente Ollowain e Farodin, começaram a insistir para cavalgar até a estrela dos albos.

Kalf foi o único a ficar aliviado quando Erek Ragnarson, na manhã do vigésimo primeiro dia, fez a travessia da pequena tropa para a outra margem do fiorde. Alfadas, porém, sentia um grande peso no coração, pois na margem ficou Asla, a neta de Erek. Com seu jeito tranquilo, ela realmente o encantara. Qualquer uma das elfas da corte de Emerelle a superaria em beleza, mas nela ardia uma paixão que os elfos, cujas vidas duravam mais que séculos, mal conheciam. Ela não estava acostumada a ocultar seus sentimentos por trás de lindas palavras. Então seus olhos encheram-se de lágrimas ao ver Alfadas atravessar o fiorde.

O guerreiro olhava para trás o tempo todo enquanto cavalgavam na subida até o círculo de pedras. E mesmo quando eles já mal podiam ser vistos, a garota de vestido azul ainda permaneceu na margem, com os louros cabelos ao vento.

— Você deveria aceitar Kalf como jarl — disse Mandred de repente. — Ele é um bom homem.

Alfadas ficou surpreso com as palavras do pai.

— Você é o jarl de Firnstayn — retrucou Alfadas, nervoso.

— Isso foi há mais de trinta anos. Não pertenço mais a este mundo. Não seria justo perante Kalf e todos os outros que nasceram depois de mim que eu voltasse a Firnstayn. E tampouco perante você, meu filho. A sua hora chegou.

Alfadas não sabia ao certo o que dizer. Ficaram um pouco para trás dos elfos, para que não pudessem ouvir a conversa.

— Todos os anos, durante as celebrações do solstício de inverno, a aldeia escolhe o jarl para o ano seguinte. Não acho que farão você jarl neste inverno. Primeiro, você precisará se afirmar na luta, mas também na vida cotidiana. Eu vejo em você todas as características de um bom líder, meu filho. Eu sei que você encontrará o seu caminho se ficar aqui.

Mandred refreou sua égua e olhou para baixo, para a aldeia. Sua voz soou rouca quando continuou.

— Ela continua olhando para você lá de trás. Veja... Não pense demais. Uma mulher como ela você não vai encontrar na Terra dos Albos. Ela é orgulhosa e não vai dar o braço a torcer... Tenho certeza de que às vezes vai azedar a sua vida. Mas ela o ama, e vai envelhecer junto com você. Isso nenhuma elfa pode dar a você. Chegaria o dia em que uma elfa de vida longa só continuaria com você por pena ou por hábito.

— Se fosse para ficar, eu o faria principalmente por causa das histórias sobre os trolls — retrucou Alfadas com seriedade.

O pai disfarçou um sorriso.

— Claro. E preciso dizer que ficarei mais tranquilo se souber que há na aldeia um homem que foi instruído por Ollowain na luta com a espada e a quem ensinei nos últimos anos todos os truques sujos... E, caso não goste daqui, suba numa noite de lua cheia até o círculo de pedras e chame pelo nome de Xern. Tenho certeza de que vão ouvir você.

— De início, vou ficar só por um inverno — decidiu Alfadas. E ficou surpreso com o alívio que sentiu de repente.

— Exatamente. Por causa dos trolls — confirmou Mandred, olhando para a margem do fiorde como se fosse por acaso. — Ela é mesmo cabeça-dura. Ainda está esperando você.

— Você também não quer ficar? Firnstayn poderia lucrar muito com o seu machado.

— Lá não há mais ninguém me esperando. Não conseguiria suportar viver assim, à sombra do carvalho do túmulo de Freya. O devanthar arrancou minha amada de mim. Ajudarei Farodin e Nuramon a reencontrar a deles, e levarei minha disputa de sangue com o devanthar até o fim. O meu passado são cinzas, e o meu futuro é sangue. Fico aliviado que não estará cavalgando ao meu lado. Talvez... — Ele hesitou. — Quando eu tiver certeza de que o devanthar esteja morto, talvez possa viver em paz em Firnstayn. — E, sorrindo: — É claro que apenas se o jarl Alfadas Mandredson não tiver nada contra aceitar um velho teimoso na aldeia.

A sombra de uma nuvem cobriu a encosta. Os pássaros e grilos silenciaram. Num átimo, Alfadas teve a sensação de que nunca mais veria seu pai.

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