3. O CONSELHO DA VILA


A rede local de comunicações de Tarna nunca operava com mais do que 95 % do seu potencial, mas, por outro lado, nunca acontecia menos de 85 % dela funcionarem ao mesmo tempo, em qualquer ocasião. Como a maior parte do equipamento em Thalassa, fora projetada por gênios há muito mortos, de modo que colapsos catastróficos fossem virtualmente impossíveis. Mesmo que muitos componentes falhassem, o sistema ainda assim continuaria a funcionar razoavelmente bem, até que alguém se irritasse o suficiente para fazer os consertos.

Os engenheiros chamavam isso de „degradação graciosa”, uma expressão que, segundo alguns céticos, descrevia de modo bastante preciso o estilo de vida lassiano.

De acordo com o computador central, a rede oscilava agora em torno dos seus 90 % de funcionabilidade e a prefeita Waldron teria ficado satisfeita com muito menos. A maior parte do vilarejo lhe havia telefonado durante a última meia hora e pelo menos cinqüenta adultos e crianças se aglomeravam na sala do conselho, número muito superior ao que ela fora planejada para alojar em pé, para não falar de assentos. O quorum para uma assembléia normal era de doze pessoas, e às vezes eram necessárias medidas draconianas para reunir até mesmo esse número de corpos aquecidos num único lugar. Os outros 548 habitantes de Tarna preferiam observar e votar, quando se sentiam suficientemente interessados, a partir do conforto de suas próprias casas.

Tinha havido também dois telefonemas do governador da província, um do gabinete do presidente e outro do serviço noticioso da Ilha do Norte, todos fazendo o mesmo pedido totalmente desnecessário. Cada um tinha recebido a mesma resposta curta: é claro que nós avisaremos, se acontecer alguma coisa, e obrigado pelo seu interesse.

A prefeita Waldron não gostava da agitação e sua carreira política, moderadamente bem-sucedida, fora baseada na capacidade de evitar isso. Algumas vezes, é claro, isso era impossível. Seu veto dificilmente teria desviado o furacão do ano 09, que até agora fora o acontecimento

mais notável do século.

— Todo mundo quieto! — gritou ela. — Reena, deixe essas conchas aí. Alguém teve um bocado de trabalho para arrumá-las! É hora de vocês irem para a cama, de qualquer maneira! Billy, saia da mesa! Já!

A velocidade surpreendente com que a ordem foi restaurada demonstrou que pelo menos dessa vez os cidadãos estavam ansiosos para ouvir o que a prefeita tinha para dizer. Ela desligou o bip insistente de seu fone de pulso direcionando a chamada para o centro de mensagens.

— Francamente, eu não sei mais do que vocês e não é provável que tenhamos outras informações por várias horas ainda. Com certeza aquilo era algum tipo de espaçonave que já tinha reentrado, eu suponho que o correto seria dizer que tinha entrado, em nossa atmosfera, quando passou sobre nós. Suponho que, já que não existe nenhum outro lugar para se descer em Thalassa, ela presumivelmente retornará às Três Ilhas mais cedo ou mais tarde. Isso pode levar horas se ela estiver dando a volta em torno do planeta.

— E tentativa de contactá-los pelo rádio? — Alguma perguntou alguém ansiosa.

— Sim, mas até agora não tivemos sorte. Será que não deveríamos tentar? — perguntou uma voz.

Um breve silêncio se estabeleceu na assembléia, e o conselheiro Simmons, principal crítico da prefeita, bufou de aborrecimento.

— Isso é ridículo. Não importa o que façamos, eles poderão nos encontrar em dez minutos. De qualquer modo é provável que saibam exatamente onde estamos.

— Concordo inteiramente com o conselheiro — disse a prefeita Waldron, apreciando essa rara oportunidade. Qualquer nave colônia certamente terá os mapas de Thalassa. Eles podem ter mil anos, mas indicarão o local do Primeiro Pouso.

— Mas alienígenas. suponha, apenas suponha, que se trate de A prefeita suspirou, julgava que a tese tinha morrido de exaustão há séculos.

— Não existem alienígenas — disse ela com firmeza.

— Pelo menos nenhum com inteligência suficiente para viajar pelas estrelas. É claro que nunca poderemos ter cem por cento de certeza, mas a Terra pesquisou durante mil anos com todos os instrumentos concebíveis.

— Existe outra possibilidade — disse Mirissa, que estava de pé junto com Brant e Kumar no fundo da sala. Todas as cabeças se

voltaram em direção a ela, o que deixou Brant ligeiramente aborrecido. A despeito de seu amor por Mirissa, havia ocasiões em que desejava que ela não fosse tão bem informada, e que a família dela não estivesse encarregada dos arquivos pelas últimas cinco gerações.

— Qual é, querida? Agora era a vez de Mirissa ficar aborrecida, embora ela escondesse muito bem sua irritação. Não gostava de ser tratada de modo condescendente por alguém que não era de fato muito inteligente, embora fosse indubitavelmente astuta, ou talvez a palavra melhor fosse ardilosa. O fato de que a prefeita Waldron estivesse sempre olhando para Brant não incomodava Mirissa, que apenas achava graça e chegava a sentir certa simpatia pela mulher mais velha.

— Pode ser outra semeadora robô, como aquela que trouxe os padrões genéticos de nossos ancestrais para Thalassa.

— Mas agora? Tão tarde? — Por que não? Os primeiros semeadores só podiam atingir uma baixa porcentagem da velocidade da luz. A Terra continuou a aperfeiçoálos até ser destruída. Como os últimos modelos eram quase dez vezes mais rápidos, os primeiros foram ultrapassados em coisa de um século. Assim muitos deles ainda devem estar a caminho. Não concorda, Brant? Mirissa tinha sempre o cuidado de incluí-lo em qualquer debate, e se possível fazer com que ele pensasse tê-lo originado. Ela estava bem ciente dos sentimentos de inferioridade dele e não desejava de modo algum aumentá-los. Às vezes ser a pessoa mais inteligente de Tarna era algo um pouco solitário, embora ela se comunicasse freqüentemente com meia dúzia de seus iguais nas Três Ilhas. Mas raramente desfrutava dos encontros pessoais que mesmo depois de todos estes milênios nenhuma tecnologia de comunicações pudera igualar.

— É uma idéia interessante — disse Brant.

— Você pode estar certa.

— Embora História não fosse o seu forte, Brant Falconer tinha o conhecimento técnico a respeito da complexa cadeia de eventos que levara à colonização de Thalassa.

— E o que devemos fazer? — ele perguntou.

— Se for outra nave semeadora e ela tentar nos colonizar novamente? Diremos — muito obrigado, mas hoje não? Houve alguns risinhos nervosos, então o conselheiro Simmons observou pensativamente: — Tenho certeza de que saberíamos lidar com uma nave semeadora, se fôssemos obrigados a fazê-lo. E não acham que os robôs seriam suficientemente inteligentes para cancelar o programa ao verem que o trabalho já está feito? — Talvez, mas eles podem julgar-se capazes de fazer um serviço melhor. De qualquer modo, seja uma relíquia da Terra ou um modelo recente de uma das colônias, deve ser um robô de algum tipo. Não havia necessidade de entrar em detalhes, todos conheciam a fantástica dificuldade e o custo de um vôo interestelar „tripulado”. Mesmo que fosse tecnicamente possível, era de todo inútil. Robôs poderiam fazer o trabalho mil vezes mais barato.

— Robô ou relíquia, o que vamos fazer com ela? — quis saber um dos moradores.

— Pode não ser problema nosso — disse a prefeita.

— Parece que todos estão achando que a nave vai se dirigir para o Primeiro Pouso, mas por que deveria? Afinal, a Ilha do Norte é um local muito mais provável. A prefeita já havia sido desmentida outras vezes, mas nunca tão rapidamente. O som que cresceu no céu de Tarna não era um trovão distante, ecoando da ionosfera, mas o penetrante assovio de um jato em vôo baixo. Todos correram para fora da sala do Conselho, numa pressa inconveniente, mas só os primeiros a sair tiveram tempo de ver uma asa delta rombuda eclipsando as estrelas enquanto se dirigia intencionalmente para o local ainda sagrado como o último elo com a Terra. A prefeita Waldron parou brevemente para entrar em contato com a Central e em seguida se reuniu aos outros, aglomerados do lado de fora.

— Brant, você pode chegar lá primeiro. Pegue o avião. O engenheiro mecânico-chefe de Tarna piscou os olhos. Era a primeira vez que recebia uma ordem tão direta da prefeita. Então ele pareceu um tanto envergonhado.

— Um coco furou uma das asas há dois dias e eu não tive tempo de consertar devido ao problema com as armadilhas para peixes. De qualquer forma ele não está equipado para vôo noturno. A prefeita lançou-lhe um olhar severo.

— Espero que meu sarcasticamente. carro esteja funcionando — disse — É claro — respondeu Brant com a voz magoada.

— Abastecido e pronto para seguir. Era fora do comum que o carro da prefeita fosse a algum lugar. Era possível caminhar por toda a extensão de Tarna em vinte minutos e todo o transporte local de comida e equipamento podia ser confiado aos pequenos carros de andar na areia. Em setenta anos de serviço oficial o carro tinha rodado menos de cem mil quilômetros e, descontando-se a possibilidade de acidentes, ainda estaria funcionando bem durante pelo menos mais um século. Os lassanianos tinham experimentado, com bom humor, a maioria dos pecados, mas a obsolescência planejada e o consumismo não estavam entre eles. Ninguém teria imaginado que o veículo fosse mais velho do que qualquer um dos passageiros, quando ele iniciou a mais histórica jornada que jamais faria.

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