12 A TERRA ÁRIDA

O bordão de teixo luzia na mão do mago, no meio da escuridão baça que se adensava, com um brilho de prata. Um outro ligeiro movimento cintilante chamou a atenção de Arren. Um tremeluzir percorria a lâmina da espada que trazia nua no punho. Quando a arremetida do dragão quebrara o esconjuro de prender, ele desembainhara a espada, ali, sobre a praia de Selidor. E aqui, embora ele próprio não fosse mais que uma sombra, era uma sombra viva e empunhava a sombra da sua espada.

Nada mais havia que fosse brilhante em lado algum. Era como o crepúsculo, já tarde, no fim de Novembro, um ar parado, frio e austero, em que era possível ver, mas não claramente e não muito longe. Arren conhecia aquele lugar, as charnecas e baldios dos seus sonhos desesperados. Mas parecia-lhe que estava mais longe, imensamente mais longe, do que alguma vez estivera em sonhos. Não conseguia descortinar nada distintamente, a não ser que ele e o companheiro estavam na encosta de um monte e que, à sua frente, havia um muro baixo de pedras, não mais alto que o joelho de um homem.

Gued mantinha ainda a mão direita sobre o braço de Arren. Avançou e Arren avançou com ele, e passaram sobre o muro de pedras.

Informe, o longo declive continuava a descer em frente deles, mergulhando na escuridão.

Mas por cima, onde Arren julgara ir encontrar um pesado acumular de nuvens, o céu era negro e havia estrelas. Olhou-as e foi como se o coração se lhe encolhesse, pequeno e frio, dentro do peito. Não eram estrelas que alguma vez tivesse visto. Imóveis, sem piscar, luziam. Eram aquelas estrelas que não se põem nem nascem, nem são alguma vez ocultas por nuvem nenhuma, nem empalidecem sob Sol algum. Quietas e pequenas, luzem sobre a terra árida.

Gued começou a caminhar, descendo pelo lado de lá do monte do ser e, passo a passo, Arren seguiu-o. Havia nele um terror. No entanto, tão determinado estava o seu coração, tão firme a sua vontade, que o medo não o governava, nem tinha sequer clara consciência dele. Era apenas como se alguma coisa se afligisse no mais fundo do seu ser, tal um animal fechado numa sala e acorrentado.

Parecia que tinham percorrido uma grande distância descendo aquela encosta, mas talvez o caminho fosse curto afinal. Porque ali, onde nenhum vento soprava e as estrelas não se moviam, não havia passagem do tempo. Chegaram então às ruas de uma das cidades que ali existem, e Arren viu as casas com as janelas que nunca se iluminam e, em certas entradas, de pé, com rostos parados e mãos vazias, os mortos.

Todas as praças de mercado estavam vazias. Ali não havia vender nem comprar, nem ganhar nem gastar. Nada era usado, nada era feito. Gued e Arren percorreram sozinhos as estreitas ruas, embora por vezes avistassem uma figura a virar a esquina de outra rua, distante e mal visível na obscuridade. Da primeira vez que viu tal coisa, Arren sobressaltou-se e ergueu a espada para apontar o que vira, mas Gued sacudiu a cabeça e prosseguiu. Arren viu então que a figura era de uma mulher que se movia lentamente, sem fugir deles.

Todos os que viram — não muitos, porque os mortos são em grande número, mas aquela terra é vasta — permaneciam quietos ou moviam-se lentamente, sem qualquer finalidade. Nenhum deles ostentava ferimentos, como acontecera com a imagem de Erreth-Akbe invocado para a luz do Sol e no lugar da sua morte. Também não havia neles sinais de doença. Estavam intactos e curados. Curados de dor e de vida. Não eram abomináveis como Arren temera que fossem, nem assustadores do modo como pensara que seriam. Os seus rostos eram parados, libertos de paixão e de desejo, e nos seus olhos ensombrados não havia esperança.

E então, em vez de medo, foi uma imensa piedade que brotou em Arren e, se algum medo havia a sublinhá-la, não era por ele próprio, mas por todas as pessoas. Porque viu a mãe e o filho que tinham morrido juntos e juntos estavam na terra tenebrosa. Mas a criança não corria, nem chorava, e a mãe não a segurava ou sequer a olhava. E aqueles que tinham morrido por amor passavam uns pelos outros nas ruas, indiferentes.

A roda do oleiro estava parada, o tear vazio, o forno frio. Nenhuma voz cantava.

As ruas escuras entre as escuras casas continuavam sempre e sempre, e eles passavam por elas. O único som era o dos seus pés. Estava frio. Arren não notara esse frio a princípio, mas ele introduziu-se no seu espírito que, ali, era também a sua carne. Sentia-se muito cansado. Deviam ter percorrido um longo caminho. «Para quê continuar?» pensou e os seus passos fizeram-se um pouco mais lentos.

Gued estacou subitamente, voltando-se para encarar um homem que se encontrava no cruzamento de duas ruas. Era um homem alto e esguio, com um rosto que Arren teve a sensação de já ter visto, embora não conseguisse lembrar-se onde. Gued falou-lhe e nenhuma outra voz quebrara até aí o silêncio, desde que haviam passado o muro de pedras.

— Ó Thórione, meu amigo, como é possível estares aqui? E estendeu as mãos para o Mestre da Invocação de Roke. Em Thórione não houve um gesto a corresponder. Manteve-se parado, como parado estava o seu rosto. Mas a luz prateada do bordão de Gued brilhou profundamente sobre os olhos ensombrados produzindo neles uma breve luz ou encontrando-a. Gued tomou nas suas a mão que não se lhe oferecia e insistiu:

— Que fazes tu aqui, Thórione? Tu ainda não és deste reino. Regressa!

— Eu segui aquele que não morre. Perdi o meu caminho. A voz do Invocador era suave e sem expressão, como a de alguém que fala durante o sono.

— Para cima, em direção ao muro — indicou Gued, apontando o caminho por onde ele e Arren tinham vindo, a longa e escura rua a descer. A estas palavras, houve como um tremor no rosto de Thórione, qual se alguma esperança tivesse penetrado nele como a lâmina de uma espada, intolerável.

— Eu não posso encontrar o caminho — pronunciou. — Meu Senhor, não posso encontrar o caminho.

Mas Gued disse:

— Talvez ainda o faças.

Depois abraçou-o e continuou a andar. Atrás dele, Thórione permaneceu imóvel na encruzilhada.

Enquanto prosseguiam, pareceu a Arren que, na realidade, não havia para a frente nem para trás, nem leste nem oeste, nem caminho algum por onde seguir. Haveria um caminho de saída? Recordou como tinham vindo a descer a encosta do monte, sempre para baixo, fosse qual fosse a direção que tomavam. E também na cidade obscura todas as ruas eram a descer, de modo que para voltarem ao muro das pedras precisavam apenas de subir e, no cimo do monte, encontrá-lo-iam. Mas não se desviaram. Lado a lado, continuaram o seu percurso. E estaria ele a seguir Gued? Ou a guiá-lo?

Saíram da cidade. Os campos dos inúmeros mortos estavam vazios. Nem árvore, nem espinho, nem folha de erva crescia na terra pedregosa sob as estrelas imutáveis.

Não havia horizonte, pois os olhos não podiam alcançar tão longe naquela treva. Mas, em frente deles, as pequenas e imóveis estrelas estavam ausentes do céu por um longo espaço acima do solo, e esse espaço sem estrelas era denteado e com declives, como uma cadeia de montanhas. A medida que avançavam, as formas tornaram-se mais distintas. Altos picos, que nem vento nem chuva desgastavam. Neles não havia neve para brilhar à luz das estrelas. Eram negros. A sua vista, o coração de Arren encheu-se de desolação. Desviou deles os olhos. Mas sabia o que eram, reconhecera-os e os seus olhos eram constantemente atraídos para eles. De cada vez que olhava para aqueles picos, sentia um peso frio no peito e quase lhe falecia o ânimo. Mas mesmo assim caminhava, sempre para baixo, pois a terra ia em declive, em direção ao sopé das montanhas. Por fim, perguntou:

— Meu Senhor, o que são… — e apontou as montanhas, pois não conseguia continuar a falar, tão seca tinha a garganta.

— Confinam com o mundo da luz — respondeu Gued —, tal como o muro das pedras. Não têm nome algum a não ser Dor. Há uma estrada que as atravessa. Está proibida aos mortos. Não é muito longa. Mas é uma estrada muito dura.

— Tenho sede — queixou-se Arren. E o companheiro respondeu-lhe:

— Aqui, bebem poeira. Continuaram.

Pareceu a Arren que o passo do companheiro abrandara algum tanto e que, por vezes, hesitava. Ele próprio não sentia qualquer hesitação, embora o cansaço não tivesse cessado de crescer dentro dele. Tinham de continuar a descer. Tinham de continuar. E continuaram.

Por vezes passavam através de outras cidades dos mortos, onde os telhados escuros aprontavam ângulos às estrelas, que permaneciam para sempre no mesmo lugar acima deles. Depois das cidades eram de novo as terras ermas, onde nada crescia. E quando saíam de uma cidade, logo esta se perdia na escuridão. Nada se conseguia ver, para diante ou para trás, salvo as montanhas cada vez mais próximas, agigantando-se perante eles. Para a sua direita, a encosta informe continuava a descer tal como, há quanto tempo já?, quando tinham atravessado o muro de pedras.

— O que fica para aquele lado? — murmurou Arren para Gued, porque ansiava pelo som da fala, mas o mago sacudiu a cabeça e respondeu apenas:

— Não sei. Pode ser um caminho sem fim.

Na direção em que iam, a encosta parecia tornar-se cada vez menos inclinada. O solo sob os seus pés rangia asperamente como pó de lava. E sempre andando, Arren nunca pensava agora no regresso nem no modo como poderiam regressar. Nem mesmo pensava em parar, muito embora estivesse cansadíssimo. A certa altura, tentou aliviar a escuridão, o cansaço e o horror entorpecedores que iam dentro dele, recordando a sua casa. Mas não foi capaz de se lembrar do aspecto que tinha a luz do Sol nem do rosto de sua mãe. Nada havia a fazer senão continuar em frente. E continuou.

Depois sentiu o solo plano debaixo dos seus pés e, a seu lado, Gued hesitou. E então também ele parou. A longa descida terminara. Não havia por onde prosseguir, não era preciso continuar.

Estavam no vale diretamente sob as Montanhas de Dor. Tinham pedras debaixo dos pés e rochedos ao seu redor, ásperos ao tato como escória. Era como se aquele estreito vale pudesse ter sido o leito, agora seco, de uma corrente de água que em tempos passara ali, ou o curso de um rio de fogo, de há muito arrefecido, dos vulcões que tinham erguido os negros e impiedosos cumes.

Ficou-se imóvel, naquele estreito vale na escuridão, e Gued imóvel se quedou, a seu lado. Estavam ali, de pé, como os mortos, sem objetivo, olhando o nada, silenciosos. Arren pensou, com algum temor mas não muito: «Chegamos longe demais.»

E não parecia ter grande importância.

Dando voz ao seu pensamento, Gued disse:

— Chegamos longe demais para voltar atrás.

A sua voz era suave, mas a vibração nela não ficava totalmente abafada pelo grande e sinistro vazio que os envolvia, e a esse som Arren cobrou algum ânimo. Pois não tinham eles vindo até ali para encontrar aquele que procuravam?

No seio da escuridão, uma voz pronunciou:

— Viestes demasiado longe.

Mas Arren respondeu-lhe, dizendo:

— Só o demasiado longe é suficientemente longe.

— Chegastes ao Rio Seco — continuou a voz. — Não podeis regressar ao muro de pedras. Não podeis regressar à vida.

— Por esse caminho, não — atalhou Gued, falando para dentro do negrume. Arren mal conseguia distingui-lo, embora estivessem lado a lado, porque as montanhas, junto de cujo sopé se encontravam, ocultavam metade da luz das estrelas e parecia que a corrente do Rio Seco era formada pela própria escuridão. — Mas podíamos aprender o teu.

Não houve resposta.

— Aqui nos encontramos como iguais, Cob. Podes estar cego, mas nós estamos no escuro.

Uma vez mais, não houve resposta.

— Aqui, não podemos ferir-te. Não podemos matar-te. Que poderás temer?

— Eu nada temo — respondeu a voz no escuro. Depois, lentamente, luzindo um pouco como se com a mesma luz que por vezes surgia no bordão de Gued, o homem apareceu, um pouco para jusante de onde Gued e Arren se encontravam, entre as grandes e imprecisas massas dos penedos. Era alto, de ombros largos e longos braços, tal como aquela figura que primeiro lhes aparecera na duna e na praia de Selidor, mas mais velho. O cabelo era branco e espessamente emaranhado acima da testa alta. E assim surgiu em espírito, no reino da morte, sem vestígios do fogo do dragão, sem feridas, mas não incólume. As órbitas dos seus olhos estavam vazias.

— Eu nada temo — repetiu. — O que havia de temer um homem que está morto?

E riu. Mas o som do seu riso soou tão falso e inquietante, naquele vale estreito e pedregoso sob as montanhas, que Arren perdeu momentaneamente o fôlego. Mas apertou mais firmemente o punho da espada e escutou.

— Eu não sei o que um morto poderá temer — respondeu Gued. — A morte não, certamente. E no entanto pareces temê-la. Muito embora tenhas encontrado uma forma de lhe escapar.

— E encontrei. Eu vivo, o meu corpo vive.

— Não muito bem — replicou secamente o mago. — A ilusão poderá ocultar a idade. Mas Orm Embar não foi brando com esse corpo.

— Posso restabelecê-lo. Conheço segredos de curar e de rejuvenescer, não meras ilusões. Por quem me tomas? Só porque te chamam Arquimago, julgas-me algum mágico de aldeia? A mim, o único entre todos os magos a descobrir o Caminho da Imortalidade, que nenhum outro alguma vez descobriu?

— Talvez não o tenhamos procurado — contrapôs Gued.

— Procurastes, sim. Todos vós. Procurastes e não conseguistes encontrá-lo, e por isso inventastes essas sábias palavras acerca da aceitação e da harmonia e do equilíbrio entre a vida e a morte. Mas não passavam de palavras, mentiras para encobrir o vosso desaire, para ocultar o vosso medo da morte! Qual o homem que não viveria para sempre, se pudesse? E eu posso. Eu sou imortal. Fiz o que tu não conseguiste fazer e por isso sou teu mestre. E tu bem o sabes. Quererias saber como o consegui, Arquimago?

— Quero.

Cob avançou mais um passo. Arren notou que, embora o homem não tivesse olhos, a sua forma de se movimentar não era a de alguém totalmente cego. Parecia saber exatamente onde Gued e Arren se encontravam e ter consciência da presença de ambos, se bem que nunca voltasse a cabeça para Arren. Devia ter alguma segunda visão por artes de feitiço, tal como aquela capacidade de ouvir e ver que haviam tido os seus envios e representações. Algo que lhe conferia uma percepção, embora talvez não fosse verdadeira visão.

— Eu estava em Paln — relatou ele a Gued —, depois de tu, no teu orgulho, pensares que me tinhas humilhado e ensinado uma lição. Ah, sim, foi uma lição que me ensinaste, mas não aquela que pretendias! E ali disse de mim para mim: «Já vi a morte, e não a aceito. A estúpida natureza que siga o seu estúpido curso. Mas eu sou um homem, melhor que a natureza, acima da natureza. E não seguirei esse caminho, não cessarei de ser eu próprio!» Assim determinado, voltei a estudar a Sabedoria Palniana, mas apenas encontrei alusões veladas e noções superficiais do que buscava. Assim, voltei a tecê-la e a construí-la e fiz um esconjuro, o maior esconjuro alguma vez feito. O maior e o último!

— E, ao fazer esse esconjuro, morreste.

— Sim! Morri. Tive a coragem de morrer, para descobrir o que vós, covardes, nunca conseguistes encontrar, o caminho de regresso da morte. Abri a porta que estivera fechada desde o princípio dos tempos. E agora venho livremente a este lugar e livremente regresso ao mundo dos vivos. Eu só, entre todos os homens e em todo o tempo, sou o Senhor das Duas Terras. E a porta que abri não está aberta apenas aqui, mas também nas mentes dos vivos, nos mais profundos e desconhecidos recessos do seu ser, onde todos somos um na escuridão. Sabem-no e vêm até mim. E os mortos são também obrigados a vir até mim, todos eles, porque não perdi a magia dos vivos. São obrigados a passar o muro de pedras onde eu lhes ordeno, todas as almas, os senhores, os magos, as mulheres orgulhosas. De um lado para o outro, da vida para a morte, à minha ordem. Todos têm de vir até mim, os vivos e os mortos, a mim que morri e vivo!

— E onde vêm eles até ti, Cob? O que é isso onde estás?

— Entre os mundos.

— Mas isso não é vida nem morte. O que é a vida, Cob?

— Poder.

— E o que é o amor?

— Poder — repetiu pesadamente o cego, erguendo os ombros.

— E o que é a luz?

— Escuridão!

— Qual é o teu nome?

— Não tenho nome algum.

— Mas todos neste mundo trazem consigo o seu nome-verdadeiro.

— Diz-me então o teu!

— O meu nome é Gued. E o teu? O cego hesitou e depois pronunciou:

— Cob.

— Esse era o teu nome de usar, não o teu nome. Onde está o teu nome? Onde está a tua verdade? Tê-la-ás deixado em Paln, onde morreste? Foi muito o que esqueceste, ó Senhor das Duas Terras. Esqueceste a luz, e o amor, e o teu nome.

— Mas agora tenho o teu, e poder sobre ti, Gued, o Arquimago. Gued, que era Arquimago quando estava vivo!

— O meu nome de nada te serve — replicou Gued. — Tu não tens poder algum sobre mim. Eu sou um homem vivo. O meu corpo jaz na praia de Selidor, à luz do Sol, sobre a terra girante. E quando esse corpo morrer, estarei aqui. Mas em nome, apenas em nome, em sombra. Pois não compreendes? Nunca compreendeste, tu que tantas sombras chamaste de entre os mortos, que invocaste todas as hostes dos que pereceram, até o meu Senhor Erreth-Akbe, o mais sábio de todos nós? Não compreendeste que ele, mesmo ele, nada mais é que uma sombra e um nome? A sua morte não diminuiu a vida. Nem o diminuiu a ele. Ele está lá, lá, não aqui! Aqui nada existe, apenas pó e sombras. Lá, ele é a terra e a luz do Sol, as folhas das árvores, o vôo da águia. Está vivo. E todos os que alguma vez morreram, vivem. Todos eles renascem e para eles não há fim, nem nunca haverá um fim. Todos, menos tu. Porque tu não aceitaste a morte. Perdeste a morte e perdeste a vida, para te salvares a ti próprio. A ti próprio! Ao teu eu imortal! E isso que é? O que és tu?

— Eu sou eu próprio. O meu corpo não apodrecerá, não morrerá…

— Um corpo vivo sofre dor, Cob. Um corpo vivo envelhece. E morre. A morte é o preço que pagamos pela nossa vida e por tudo o que é vida.

— Eu não o pago! Eu posso morrer e, nesse momento, voltar a viver! Não posso ser morto, sou imortal. Eu e apenas eu sou eu próprio, para sempre!

— Quem és tu, então?

— O Imortal.

— Diz o teu nome.

— O Rei.

— Diz o meu nome. Disse-te qual era ainda nem há um minuto. Diz o meu nome!

— Tu não és real. Tu não tens nome. Só eu existo.

— Tu existes. Sem nome, sem forma. Não consegues ver a luz do dia, não consegues ver o escuro. Vendeste a verde terra e o Sol e as estrelas para te salvares a ti próprio, ao teu eu. Mas não tens eu. Tudo isso que vendeste era esse teu próprio eu. Entregaste tudo por nada. E por isso tentas agora chamar o mundo a ti, toda essa luz e vida que perdeste, para preencher o vácuo que és. Mas não pode ser preenchido. Nem todas as canções da terra, nem todas as estrelas do firmamento, poderiam preencher o teu vazio.

Como ferro percutido ressoou a voz de Gued, naquele frio vale sob as montanhas, e o cego afastou-se dele com temor. Depois ergueu o rosto e a escassa luz brilhou sobre ele. Dir-se-ia que chorava mas, não tendo olhos, não derramava lágrimas. A boca abriu-se e fechou-se, cheia de negrume, mas dela não saíram palavras, apenas um gemido. Por fim disse apenas uma palavra, mal a formando com os seus lábios contorcidos, e a palavra era: «Vida.»

— Eu dar-te-ia vida, se pudesse, Cob. Mas não posso. Estás morto. Mas posso dar-te a morte.

— Não! — gritou o cego muito alto, e logo repetiu: — Não, não — e rojou-se no chão soluçando, embora as suas faces estivessem tão secas como o pedregoso curso de rio onde só a noite, e água alguma, corria. — Não podes. Ninguém pode alguma vez libertar-me. Eu abri a porta entre os mundos e não consigo fechá-la. Ninguém a pode fechar. Nunca voltará a estar fechada. Ela arrasta-me, arrasta-me para si. Tenho de voltar a ela e voltar aqui, ao pó e ao frio e ao silêncio. Ela suga-me, suga-me constantemente. Não posso abandoná-la. Não posso fechá-la. No fim, sugará toda a luz do mundo. Todos os rios serão como o Rio Seco. Não há em lado algum um poder que consiga fechar a porta que eu abri!

Bem estranho era aquele misto de desespero e desejo de vingança, de terror e vaidade, nas suas palavras e na própria voz que as pronunciava.

Mas Gued limitou-se a perguntar:

— Onde é?

— Para além. Não muito longe. Podes ir até lá. Mas nada conseguirás fazer. Não a podes fechar. Ainda que usasses todo o teu poder nesse ato único, não seria suficiente. Nada é suficiente.

— Talvez — respondeu-lhe Gued. — Mas embora tu tenhas escolhido o desespero, lembra-te que nós ainda não o fizemos. Leva-nos lá.

O cego ergueu o rosto, onde o medo e o ódio se digladiavam visivelmente. O ódio triunfou.

— Não o farei — lançou ele.

Perante isto, Arren deu um passo em frente e afirmou:

— Fá-lo-ás.

O cego manteve-se imóvel. O gélido silêncio e a escuridão do domínio dos mortos rodeava-os e às suas palavras.

— E quem és tu?

— O meu nome é Lebánnen. Mas Gued interpôs:

— Tu, que a ti próprio chamas Rei, não sabes quem é este?

Uma vez mais Cob manteve uma total imobilidade. Depois, ofegando um pouco ao falar, disse:

— Mas ele está morto. Vós estais mortos. Não podeis regressar. Não há caminho de saída. Estais presos aqui!

Mal acabara de falar, logo a luz que brilhara levemente sobre ele se extinguiu e ouviram-no voltar-se no escuro e afastar-se deles, apressadamente, a ocultar-se nesse escuro.

— Dá-me luz, meu Senhor! — bradou Arren. E Gued ergueu o seu bordão acima da cabeça, deixando que o clarão branco rompesse aquela velha escuridão, cheia de pedras e sombras, por entre as quais a figura elevada e um pouco vergada em frente do cego se apressava e esquivava, dirigindo-se para jusante com um estranho andar, cego mas sem hesitações. Após ele avançou Arren, de espada na mão, e após Arren, Gued.

Arren em breve se distanciara do companheiro e a luz era muito fraca, e constantemente quebrada pelos rochedos e pelas voltas do leito do rio. Mas o som dos passos de Cob, bem como a sensação da sua presença mais à frente, era guia suficiente. E Arren foi-se lentamente aproximando, à medida que o caminho se tornou mais íngreme. Subiam agora uma garganta profunda inçada de pedras. O Rio Seco, estreitando em direção à nascente, serpenteava por entre margens a pique. Rolavam-lhes pedras ruidosamente debaixo dos pés e também das mãos, pois eram obrigados agora a escalar. Arren pressentiu que estavam chegados ao ponto onde as margens se ligavam e, com um súbito impulso para a frente, alcançou Cob e agarrou-o por um braço, forçando-o a estacar. Encontravam-se numa espécie de bacia rochosa de cinco ou seis pés de largura, o que poderia ter sido um poço de rio se alguma vez ali tivesse corrido água. E, acima, uma escarpa pouco firme, de pedras e escória vulcânica. Nessa escarpa abria-se um buraco negro, a nascente do Rio Seco.

Cob não tentou libertar-se. Ficou muito quieto, enquanto a luz que anunciava a aproximação de Gued lhe iluminava o rosto sem olhos. Ele voltara-se para enfrentar Arren.

— É este o lugar — afirmou finalmente, com uma espécie de sorriso a formar-se nos lábios. — É este o lugar que procuravas. Vê-lo? Ali podes renascer. Tudo o que precisas de fazer é seguir-me. Tornar-te-ás imortal. E seremos reis juntos.

Arren olhou aquela seca e escura nascente, a boca de pó, o lugar onde uma alma morta, rastejando para dentro da terra e do negrume, nascia de novo, morta. Era-lhe abominável e pronunciou numa voz áspera, combatendo uma agonia mortal:

— Que seja fechada!

— Será fechada — afirmou Gued, surgindo atrás dele. E a luz jorrava agora das suas mãos e do seu rosto como se ele fosse uma estrela tombada na terra naquela noite infindável. Perante ele, a nascente seca, a porta, abriu-se. Era larga e oca, mas se profunda ou superficial não se poderia dizer. Nada havia nela onde a luz caísse, que o olhar pudesse ver. Era vazia. Através dela não passava luz nem escuridão, nem vida nem morte. Era nada. Era um caminho que não conduzia a lugar algum.

Gued ergueu as mãos e falou.

Arren segurava ainda o braço de Cob. O cego pousara a mão livre sobre as rochas da falésia. Permaneciam ambos imóveis, presos no poder do encantamento.

Com todo o talento acumulado numa vida de aprendizagem, com toda a energia do seu indômito coração, Gued lutou por fechar aquela porta, por reintegrar o mundo no seu todo uma vez mais. E sob o poder da sua voz e o império das suas mãos que as conduziam e modelavam, as rochas aproximaram-se umas das outras, penosamente, tentando formar um todo, encontrarem-se. Mas ao mesmo tempo a luz ia-se tornando cada vez mais fraca, retirando-se das suas mãos e do seu rosto, retirando-se do seu bordão de teixo, até que apenas um breve lucilar pendia deste. E a esse débil clarão, Arren viu que a porta estava quase fechada.

Sob a sua mão, o cego sentiu moverem-se as rochas, sentiu como se aproximavam. E sentiu também a arte e o poder a entregarem-se, a gastaram-se, esgotados… E de súbito bradou «Não!» e, arrancando-se à prisão de Arren, lançou-se para a frente, agarrando Gued no seu poderoso e cego aperto. Derrubando Gued sob o seu peso, cerrou-lhe as mãos à volta do pescoço para o estrangular.

Mas Arren, erguendo a espada de Serriadh, fez a lâmina descer, direita e com força, sobre o pescoço inclinado de Cob, logo abaixo do emaranhado cabelo da nuca.

O espírito vivo tem seu peso no mundo dos mortos e a sombra da sua espada tem um gume. A lâmina abriu um grande golpe, cortando a espinha de Cob. Sangue negro brotou, iluminado pela luz da própria espada.

Porém, de nada vale matar um homem morto e Cob estava morto, morto há anos. A ferida fechou engolindo o seu sangue. O cego ergueu-se em toda a sua estatura, tateando com os longos braços na direção de Arren, o rosto contorcido de raiva e ódio. Como se só agora se tivesse apercebido de quem era o seu verdadeiro inimigo e rival.

Tão horrível de ver era esta recuperação de um golpe mortal, esta incapacidade de morrer, mais horrível que qualquer morte, que uma ira cheia de repugnância cresceu em Arren, uma fúria insensata, e brandindo a espada voltou a ferir, um golpe único, terrível, de cima abaixo. Cob caiu com o crânio aberto e o rosto coberto de sangue. Mas mesmo assim, Arren logo voltou a atacar, para uma vez mais o ferir antes que a brecha se pudesse fechar, ferir até o matar…

A seu lado, Gued, erguendo-se a custo sobre os joelhos, pronunciou uma palavra.

Ao som da sua voz Arren estacou, como se um punho lhe tivesse agarrado o braço que segurava a espada. E o cego, que igualmente começara a erguer-se, ficou também perfeitamente imóvel. Gued pôs-se de pé. Cambaleou um pouco mas, logo que conseguiu manter-se direito, voltou-se de frente para a falésia.

— Que fiques una e inteira! — ordenou numa voz clara e, com o seu bordão, desenhou a traços de fogo por sobre a entrada de rochas um sinal: a Runa Ágnen, a Runa do Acabar, que põe fim às estradas e é aposta nas tampas dos caixões. E então deixou de haver fenda ou lugar vazio entre os penedos. A porta estava fechada.

O solo da Terra Árida tremeu sob os seus pés e, através do céu ermo e imutável, um grande rolar de trovão passou e perdeu-se ao longe.

— Pela palavra que não será pronunciada até ao fim dos tempos te invoquei. Pela palavra que foi pronunciada no criar de todas as coisas eu te liberto agora. Vai livre!

E inclinando-se sobre o cego, que estava agachado sobre os joelhos, Gued murmurou-lhe ao ouvido, sob o cabelo branco emaranhado.

Cob ergueu-se. Relanceou em volta com olhos agora dotados de visão. Olhou para Arren e depois para Gued. Não pronunciou qualquer palavra, mas encarou-os com os seus olhos escuros. Não havia ira no seu rosto, nem ódio, nem dor. Lentamente virou costas e, seguindo o curso do Rio Seco, em breve lhes desaparecia da vista.

Não restava já qualquer luz no bordão de teixo de Gued, nem no seu rosto. Estava de pé, parado, no meio do escuro. Quando Arren se aproximou, agarrou no braço do jovem para se manter direito. Por um momento foi sacudido pelo espasmo de um soluçar sem lágrimas.

— Está acabado — murmurou. — Tudo se foi.

— Está acabado, sim, meu Senhor. Temos de ir.

— Temos, sim. Temos de voltar a casa.

Gued parecia alguém confuso ou exausto. Seguiu Arren de volta descendo o curso do rio, tropeçando e andando lentamente, dificilmente, por entre as pedras e os penedos. Arren manteve-se a seu lado. Quando as margens do Rio Seco se tornaram baixas e o solo menos íngreme, virou-se para o caminho por onde tinham ali chegado, a longa e informe encosta que subia para o escuro. Depois desviou-se dele.

Gued nada disse. Logo que tinham parado, sentara-se desamparadamente num bloco de lava, esgotado, a cabeça pendente.

Arren sabia que o caminho por onde tinham vindo lhes estava vedado. Só podiam continuar. Tinham de fazer todo o percurso até final. «Só o demasiado longe é suficientemente longe», recordou. Ergueu o olhar para os negros picos, frios e silenciosos, recortando-se contra as estrelas imóveis, terríveis. E uma vez mais ouviu aquela irônica voz da sua vontade falando dentro de si, incansável e trocista: «Irás parar a meio do caminho, Lebánnen?»

Então foi até junto de Gued e disse-lhe com suavidade:

— Temos de continuar, meu Senhor.

Gued nada respondeu, mas pôs-se de pé. E Arren acrescentou:

— Temos de ir pelas montanhas, julgo eu.

E a isto Gued respondeu, num segredar enrouquecido.

— É teu o caminho, rapaz. Ajuda-me.

E assim iniciaram a subida pelas encostas de poeiras e escória, adentrando-se nas montanhas, com Arren a ajudar o companheiro tanto quanto podia. O escuro era total nas lombas e nas gargantas pelo que tinha de encontrar o caminho às apalpadelas e era difícil dar ao mesmo tempo apoio a Gued. Caminhar era também difícil, sempre aos tropeções. Mas quando começaram a ter de trepar e escalar, à medida que as encostas se foram tornando mais íngremes, tudo se tornou mais difícil ainda. Os rochedos eram ásperos, queimando-lhes as mãos como ferro derretido. E no entanto fazia frio e o frio foi aumentando com a subida. Tocar aquele solo era um tormento. Queimava como carvões em brasa. Havia um fogo a arder dentro das montanhas. Mas o ar continuava sempre frio e sempre escuro. Não se ouvia um som. Não soprava vento algum. As pedras aguçadas fendiam-se sob as suas mãos e fugiam-lhes debaixo dos pés. Negros e alcantilados, os contrafortes e fendas iam subindo à frente deles e desapareciam para trás no negrume. Para trás, para baixo, o reino dos mortos ia ficando perdido. Em frente, para cima, os picos e rochedos destacavam-se contra as estrelas. E nada se movia em toda a extensão daquelas negras montanhas, exceto aquelas duas almas mortais.

Muitas vezes o cansaço fazia Gued tropeçar ou falhar a passada. A sua respiração tornava-se cada vez mais difícil e, quando as suas mãos embatiam com mais violência contra a pedra, arquejava de dor. Ouvi-lo queixar-se apertava o coração de Arren. Tentava impedi-lo de cair. Mas freqüentemente o caminho era demasiado estreito para poderem ir a par, ou Arren tinha de seguir adiante para encontrar sítio onde apoiar os pés. E por fim, numa elevada encosta que parecia erguer-se até às estrelas, Gued escorregou e caiu, e não conseguiu voltar a erguer-se.

— Meu Senhor — chamou Arren, ajoelhando-se junto dele. E depois pronunciou o seu nome: — Gued.

Mas o mago não se moveu nem deu resposta.

Arren tomou-o nos braços e carregou-o por aquela íngreme encosta. Chegado ao cimo, encontrou terreno direito numa certa extensão. Arren pousou o seu fardo e deixou-se cair ao lado, exausto, dolorido, de esperança perdida. Aquele era o cimo da passagem entre os dois negros picos, pelo qual tinha vindo a lutar. Ali era a passagem e o fim. Não havia caminho para diante. O final da extensão plana era a beira de uma escarpa. Para lá dela, a escuridão prolongava-se para sempre e as pequenas estrelas permaneciam suspensas e imóveis no golfo negro do céu.

Mas a pertinácia pode durar mais que a esperança. Arren rastejou em frente, logo que o conseguiu fazer, teimosamente. Olhou para lá da beira da escuridão. E abaixo de si, um pouco abaixo apenas, viu a praia de areia cor de marfim. As vagas brancas e ambarinas rolavam e quebravam-se em espuma sobre ela, e do lado de lá do mar o Sol estava a pôr-se, no meio de uma bruma dourada.

Arren voltou ao negrume. Voltou atrás. Ergueu Gued o melhor que lhe foi possível e esforçadamente o levou consigo, até não conseguir avançar mais. E ali todas as coisas deixaram de existir: a sede e a dor, e o escuro, e também a luz do Sol e o som do mar a rebentar na praia.

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