Capítulo 7


- Dirk, Dirk, você não pode estar falando sério. Não, não acredito nisso. Todo este tempo pensei, bem, sim, que você era melhor do que eles. E você diz isso para mim? Não, estou sonhando. Isso é uma completa loucura! - Ruark se recuperara de alguma maneira. Em sua longa bata de seda sintética bordada com corujas, parecia mais consigo mesmo, embora estivesse lamentavelmente fora de lugar em meio à desordem da sala de trabalho. Estava sentado em um banco alto, de costas para as escuras telas retangulares do console de computadores; os pés calçados em chinelos estavam cruzados na altura dos tornozelos, e as mãos rechonchudas seguravam uma taça alta de gelado vinho verde kimdissiano. A garrafa estava atrás dele, perto de duas taças vazias.

Dirk estava sentado em uma larga mesa de plástico, as pernas cruzadas e o cotovelo apoiado em um pacote de sensores. Abrira um espaço para sentar empurrando o pacote para um lado e uma pilha de diapositivos e papéis para o outro. A sala estava incrivelmente desordenada.

- Não vejo onde está a loucura - disse, teimosamente. Mesmo enquanto falava, seus olhos vagavam pelo recinto. Nunca vira a sala de trabalho antes. Era quase do mesmo tamanho da sala de estar do apartamento kavalariano, mas parecia muito maior. Um conjunto de pequenos computadores alinhados ocupava uma parede. Em frente, havia um imenso mapa de Worlorn em uma dúzia de cores diferentes, cheio de alfinetes e marcadores. Entre eles estavam as mesas de trabalho. Era aqui que Gwen e Ruark juntavam os dados de conhecimento que conseguiam coletar nos bosques do moribundo mundo do Festival, mas parecia mais um quartel-general aos olhos de Dirk.

Ainda não entendia por que estavam ali. Depois da longa explanação de Vikary e da agressiva discussão que se seguiu entre Ruark e os dois kavalarianos, o kimdissiano descera para o próprio apartamento, levando Dirk consigo. O momento não parecia adequado para conversar com Gwen. Mas nem bem trocara de roupa e acalmara os nervos com um gole de vinho, Ruark insistiu que Dirk o acompanhasse alguns andares acima, até a sala de trabalho. Trouxera consigo três taças, mas o próprio Ruark era o único que estava bebendo. Dirk ainda se lembrava da última vez, e tinha de levar o dia seguinte em consideração; precisava permanecer lúcido. Além disso, se o vinho kimdissiano se misturasse com o kavalariano da mesma maneira que kimdissianos se davam com kavalarianos, seria um completo suicídio beber um depois do outro. Então Ruark bebeu sozinho.

- A loucura - o kimdissiano disse, depois de um gole da bebida verde - é você duelar como um kavalariano. Eu digo que escutei com meus ouvidos, mas ainda não posso crer! Jaantony, sim, Garsinho, naturalmente, e, é claro, aqueles Braiths. Animais xenofóbicos, povo violento. Mas você, ah! Dirk, você, um homem de Ávalon, não pode se rebaixar a isso. Pense, eu lhe imploro, sim, eu imploro, por mim, por Gwen, por você mesmo. Como pode levar isso a sério? Diga-me, preciso saber. De Ávalon! Você cresceu na Academia do Conhecimento Humano, sim, no Instituto de Estudos de Inteligência Não Humana de Ávalon, também. O mundo de Tomas Chung, a base de operações da Inspeção Kleronomas, toda aquela história e conhecimento ao seu redor, mais do que existe em qualquer lugar, exceto talvez na Antiga Terra ou em Nova Holme. Você é viajado, culto, viu mundos diferentes, muitos povos espalhados. Sim! Você tem discernimento. Tem, não? Sim!

Dirk franziu o cenho.

- Arkin, você não entende. Eu não busquei essa briga. Foi algum tipo de engano. Tentei me desculpar, mas Bretan não me ouviu. O que mais eu devia fazer?

- Fazer? Ora, partir, é claro. Pegar a doce Gwen e partir; deixar Worlorn o mais rápido possível. Você deve isso a ela, Dirk, sabe isso. Ela precisa de você, sim, ninguém mais pode ajudar. Como vai ajudá-la? Tornando-se tão mau quanto Jaan? Se matando? Hein? Diga-me, Dirk, diga-me.

Estava ficando tudo confuso novamente. Quando estava bebendo com Janacek e Vikary, tudo parecia muito claro, muito fácil de aceitar. Mas agora Ruark dizia que estava tudo errado.

- Não sei. - Dirk respondeu. - Quero dizer, recusei a proteção de Jaan. Então tenho que me proteger sozinho, não tenho? Quem mais é responsável? Fiz as escolhas e tudo aquilo; o duelo está acertado. Não posso dar para trás agora.

- É claro que pode - Ruark falou. - Quem vai impedi-lo? Que lei, hein? Não há leis em Worlorn, não, nenhuma. Completa verdade! Esses animais poderiam nos caçar com uma lei? Não, mas não há lei, então todo mundo tem problemas, mas você não tem que duelar a menos que queira.

A porta se abriu, e Dirk se virou a tempo de ver Gwen entrar. Os olhos dele se estreitaram enquanto Ruark pareceu ficar feliz.

- Ah, Gwen - o kimdissiano disse venha aqui, convença t'Larien. Esse completo tolo pretende duelar, verdade, como se fosse o próprio Garsinho!

Gwen adiantou-se e ficou parada entre eles. Vestia calça de tecido-camaleão agora cinza-escuro e um pulôver negro, com uma tiara verde para prender o cabelo. Seu rosto recém-lavado estava sério.

- Disse para eles que tinha que descer para verificar alguns dados - disse, passando a ponta da língua nervosamente pelos lábios. - Não sei o que dizer. Perguntei a Garse sobre Bretan Braith Lantry. Dirk, as chances de que ele mate você são muito grandes.

As palavras dela o deixaram gelado. De alguma forma, ouvir isso de Gwen tornava tudo diferente.

- Eu sei - ele respondeu. - Isso não muda nada, Gwen. Quero dizer, se eu quisesse estar seguro, era só me tornar korariel de Jadeferro, certo?

Ela assentiu.

- Sim, mas você se recusou. Por quê?

- O que você disse na floresta? E depois de novo? Sobre nomes? Não queria me tornar propriedade de ninguém, Gwen. Não sou korariel.

Ele a observou. Por um breve instante, o rosto dela ficou sombrio, e seus olhos deram uma rápida olhada para o jade-e-prata.

- Entendo - ela disse, em uma voz que era quase um sussurro.

- Eu não - Ruark bufou. - Seja korariel. O que é isso? Apenas uma palavra! Mas você ficará vivo, hein?

Gwen olhou para o kimdissiano empoleirado no banco. Ele parecia vagamente cômico em sua túnica longa, agarrado à sua taça e carrancudo.

- Não, Arkin - ela disse. - Esse foi meu erro. Eu pensei que betheyn era só uma palavra.

Ele corou.

- Tudo bem, então! Então Dirk não é korariel, muito bem, ele não é propriedade de ninguém. Isso não significa que tenha que duelar, não, absolutamente não. O código de honra kavalariano é um disparate, uma grandíssima estupidez na verdade. Então, você é obrigado a ser estúpido, Dirk? A morrer e ser estúpido?

- Não - Dirk respondeu. As palavras de Ruark o incomodavam. Dirk não acreditava no código de Alto Kavalaan. Então por quê? Estava longe de saber. Para provar algo, pensou, mas não sabia o quê, ou para quem. - Tenho que fazer, é tudo. É a coisa certa a ser feita.

- Palavras! - Ruark disse.

- Dirk, não quero vê-lo morto - Gwen falou. - Por favor. Não me faça passar por isso.

O kimdissiano gorducho riu.

- Não, nós o convenceremos, nós dois, hein? - Bebeu seu vinho. - Ouça-me, Dirk, pode fazer isso ao menos?

Dirk assentiu carrancudo.

- Bom. Primeiro, me responda: você acredita no código de honra? Como uma instituição social? Como uma coisa moral? Diga-me, de verdade, acredita?

- Não - Dirk respondeu. - Mas não acho que Jaan acredite tampouco, por alguns comentários que fez. Mesmo assim, ele duela quando precisa. De outro modo seria covardia.

- Não, ninguém pensa que você é um covarde, ou mesmo ele. Jaantony pode ser kavalariano, com tudo de mau que existe nisso, mas nem mesmo eu digo que seja covarde. Mas há tipos diferentes de coragem, não? Se esta torre pegasse fogo, você arriscaria a vida para salvar Gwen e talvez a mim? Garse também, talvez?

- Acredito que sim - Dirk falou.

Ruark assentiu.

- Veja, então, você é um homem corajoso. Não é necessário um suicídio para provar isso.

Gwen assentiu.

- Lembre-se do que você disse naquela noite em Kryne Lamiya, Dirk, sobre vida e morte. Você não pode sair e se matar depois daquilo, pode?

Ele franziu o cenho.

- Mas que maldição, isso não é suicídio!

Ruark riu.

- Não? É quase a mesma coisa. Por acaso acha que pode derrotá-lo?

- Bem, não, mas...

- Se o suor fizer a espada escorregar da mão dele, ou algo assim, você o matará?

- Não - Dirk assegurou. - Eu...

- Isso seria errado, não é? Sim! Bem, deixá-lo matar você também é errado. Mesmo dar a ele a chance de fazer isso. É estúpido. Além disso, você não é kavalariano, então nem me mencione Jaantony. Descrente ou não, ele ainda é um matador. Você é melhor do que isso, Dirk. E ele tem uma desculpa, ele pensa que luta para, talvez, mudar o próprio povo. Jaan tem um grande complexo de salvador, mas não zombemos dele, não. Mas você, Dirk, você não tem nenhum motivo para fazer isso. Tem?

- Acho que não. Mas, que maldição, Ruark, ele está fazendo a coisa certa. Você não parecia tão desenvolto quando ele lhe disse como os Braiths teriam caçado você se não fosse pela proteção dele.

- Não, não me senti nada bem, de verdade. Isso não muda nada. Então eu sou korariel, talvez, então os Braiths são piores do que os Jadeferros, então Jaan usa violência para impedir violência pior, talvez. Isso é certo? Ah, não posso dizer. É realmente uma difícil questão moral! Talvez os duelos de Jaan sirvam para algum propósito, sim, para seu povo, para nós. Mas seu duelo é uma completa tolice, não serve para nada, apenas para que morra. E para que Gwen fique com Jaan e Garse para sempre, até que eles percam um duelo, quem sabe, e isso não será agradável para ela.

Ruark fez uma pausa e terminou seu vinho, então virou-se sobre o banco para servir-se de outra taça. Dirk permaneceu sentado muito rígido, com os olhos de Gwen sobre si, um olhar tão pesado que quase podia ser sentido. A cabeça dele latejava. Ruark estava confundindo tudo, pensou novamente. Tinha de fazer a coisa certa, mas qual era? Repentinamente todas as suas percepções e decisões tinham evaporado. O silêncio caiu pesado sobre a sala de trabalho.

- Não fugirei - Dirk falou finalmente. - Não fugirei. Mas tampouco vou duelar. Irei até lá e direi minha decisão para eles, que me recuso a lutar.

O kimdissiano girou o vinho na taça e riu.

- Bem, há uma certa coragem moral nisso. Realmente. Jesus Cristo, Sócrates, Erika Stormjones e, agora, Dirk t'Larien, grandes mártires da história, sim. Talvez o poeta Açorrubro escreva alguma coisa sobre você.

Gwen lhe respondeu mais seriamente.

- Eles são Braiths, Dirk, altos-senhores de Braith da velha guarda. Em Alto Kavalaan talvez você jamais fosse desafiado para um duelo. Os conselhos de altos-senhores reconhecem que pessoas de outros mundos não aderem ao código. Mas isso é diferente. O árbitro se pronunciará contra você, e Bretan Braith e seus irmãos de grupo o matarão ou o caçarão. Ao recusar um duelo, aos olhos deles, você prova ser um quase-homem.

- Não posso fugir! - Dirk repetiu. Todos os seus argumentos sumiram de repente; ele não tinha nada além da emoção, uma determinação de encarar o que estava por vir.

- Você afasta sua sanidade, sim, na verdade. Não é covardia, Dirk. É a escolha mais valente de todas, pense dessa maneira, arriscar-se ao desprezo deles por fugir. Mesmo então, você corre perigo. Provavelmente eles o caçarão, Bretan Braith, se ele viver, os outros do grupo se ele morrer, sabe? Mas você viverá, talvez consiga evitá-los e ajudará Gwen.

- Não posso - Dirk falou. - Prometi para eles, para Jaan e Garse.

- Prometeu? O quê? Que morreria?

- Não. Sim. Quero dizer, Jaan me fez prometer que seria um irmão para Janacek. Eles não estariam neste duelo se Vikary não estivesse tentando me tirar da encrenca.

- Depois que Garse a empurrou para ela - Gwen disse amargamente, e Dirk notou o súbito veneno no tom tranqüilo dela.

- Eles podem morrer amanhã também - Dirk falou, incerto. - E eu sou responsável por isso. Agora você diz que devo abandoná-los.

Gwen chegou bem perto dele e levantou as mãos. Os dedos dela passaram suavemente pelo rosto dele enquanto ela afastava mechas do cabelo castanho-cinzento da testa, e os grandes olhos verdes o encararam. De repente, ele se lembrou de outras promessas: a jóia-sussurrante. E tempos havia muito passados voltaram novamente, e o mundo girou, e certo e errado se fundiram irremediavelmente.

- Dirk, me escute - Gwen disse lentamente. - Jaan já esteve em seis duelos por minha causa. Garse, que nem me ama, esteve com ele em quatro. Eles mataram por mim, por meu orgulho, minha honra. Não pedi isso, não mais do que você pediu pela proteção deles. Era a concepção que eles tinham da minha honra, não a minha. Mesmo assim, aqueles duelos foram para mim o mesmo que este é para você. Apesar disso, você me pediu para deixá-los, para voltar para você, para amá-lo novamente.

- Sim - Dirk respondeu. - Mas... não sei. Deixei um rastro de promessas não cumpridas. - A voz dele estava angustiada. - Jaan me nomeou keth.

Ruark bufou.

- Se ele o nomeasse jantar, você pularia para dentro da panela, hein?

Gwen apenas sacudiu a cabeça tristemente.

- E você sente isso como? Um dever? Uma obrigação?

- Acho que sim - ele disse, relutante.

- Então já respondeu a si mesmo, Dirk. Você me disse qual deve ser minha resposta para você. Se sente tão fortemente que tem que cumprir os deveres de um keth de curta duração, um laço que nem mesmo existe em Alto Kavalaan, como pode me pedir para descartar o jade-e-prata? Betheyn significa mais do que keth.

Gwen tirou as mãos do rosto dele e deu um passo para trás.

Dirk esticou a mão bruscamente e pegou o pulso dela. O pulso esquerdo. Fechou o punho ao redor do frio metal e do jade polido.

- Não - ele disse.

Gwen não disse nada. Apenas esperou.

Para Dirk, Ruark estava esquecido e a sala de trabalho desaparecera na escuridão. Havia apenas Gwen, encarando-o, com olhos verdes, grandes e cheios de... de quê? Promessas? Ameaças? Sonhos perdidos? Ela esperou em silêncio, e ele tropeçou nas palavras, sem saber o que dizer a seguir. E o jade-e-prata estava frio em sua mão, e ele começou a se lembrar...

Lembrou das lágrimas vermelhas cheias de amor, embrulhadas em prata e veludo, queimando intensas e frias. Do rosto de Jaan, com pomos altos, a mandíbula lisa e quadrada, o cabelo negro e ralo, e o sorriso fácil. A voz, calma como aço, sempre imperturbável: Mas eu existo.

As torres brancas fantasmagóricas de Kryne Lamiya vieram a sua mente, gemendo, zombando, cantando o desespero enquanto um tambor distante soava sem significado. No meio de tudo isso, desafio, decisão. Por um breve momento, soubera o que dizer.

Recordou-se do rosto de Garse Janacek, distante (os olhos azuis esfumaçados, a cabeça sempre erguida, a boca severa), hostil (o olhar gelado, o sorriso selvagem que brincava por trás de sua barba), cheio de humor amargo (os olhos crepitando, os dentes arreganhados em um sorriso da própria morte).

Pensou em Bretan Braith Lantry, o tique e o olho de pedrardente, uma figura que inspirava medo e pena com um beijo frio e assustador.

Vinho tinto em taças de obsidiana, vapores que irritavam os olhos, bebido em uma sala cheia de canela e de estranha camaradagem.

Palavras. Um tipo novo e especial e irmão de grupo, Jaan falou.

Palavras. Ele será desleal, Garse prometeu.

O rosto de Gwen, uma Gwen mais jovem, mais espigada, com olhos de alguma maneira maiores. Gwen rindo. Gwen chorando. Gwen tendo um orgasmo. Abraçando-o, seus seios soltos e vermelhos, o rubor se espalhando por todo seu corpo. Gwen sussurrando para ele, Eu te amo, eu te amo. Jenny!

Uma sombra negra e solitária remando uma barcaça baixa pelo escuro canal sem fim.

Recordações.

A mão que segurava o braço de Gwen tremia.

- Se eu não duelar - ele disse -, você deixará Jaan? E virá comigo?

O aceno de resposta dela foi dolorosamente lento.

- Sim. Pensei nisso o dia todo, conversei sobre isso com Arkin. Planejamos que ele o trouxesse aqui em cima, e que eu diria a Jaan e Garse que tinha que trabalhar.

Dirk descruzou as pernas, que formigavam como se tivessem sido atacadas por uma centena de pequenas facas, enquanto a dormência e a rigidez saíam. Levantou-se e estava decidido.

- Você ia fazer isso de qualquer jeito, então? Não é só por causa do duelo?

Ela balançou a cabeça.

- Então eu irei. Quando podemos deixar Worlorn?

- Duas semanas e três dias - Ruark falou. - Não há naves até lá.

- Teremos que nos esconder - Gwen disse. - Considerando as circunstâncias, é o único caminho seguro. Não sabia nesta tarde se diria minha decisão para Jaan ou simplesmente partiria. Pensei que talvez pudéssemos conversar, e juntos o encararíamos. Mas essa história de duelo define tudo. Você não teria permissão para partir agora.

Ruark saltou de seu banco.

- Vão, então - falou. - Eu ficarei aqui, vigiarei, vocês podem ligar e eu contarei o que aconteceu. E seguro o suficiente para mim, a menos que Garsinho e Jaantony percam o duelo deles. Então, eu iria rapidamente me unir a vocês, hein?

Dirk pegou as mãos de Gwen.

- Eu amo você. - Disse. - Ainda te amo.

Ela sorriu gravemente.

- Sim. Estou feliz, Dirk. Talvez dê certo desta vez. Mas temos que nos mexer rápido, desaparecer completamente. De agora em diante, todos os kavalarianos são veneno para nós.

- Tudo bem - ele concordou. - Para onde vamos?

- Desça e pegue suas coisas. Precisará de roupas quentes. Depois me encontre no telhado. Pegaremos o aeromóvel e depois decidiremos para onde vamos.

Dirk assentiu e beijou-a rapidamente.

Voavam sobre os rios escuros e as colinas ondulantes da Comuna quando as primeiras luzes do amanhecer tocaram o céu, um baixo brilho carmesim no leste. Logo o primeiro sol amarelo nasceu, e a escuridão se transformou em uma cinzenta névoa matutina que rapidamente se dissolveu. O aeromóvel em forma de arraia estava aberto, como sempre, e Gwen o conduzia em velocidade máxima, então o vento frio corria ao redor deles com um ruído alto, tornando impossível conversar. Enquanto ela dirigia, Dirk dormia ao seu lado, embrulhado em um sobretudo de retalhos marrons que Ruark lhe dera antes de partir.

Ela o despertou quando a lança brilhante de Desafio apareceu diante deles, sacudindo gentilmente seu ombro. O sono dele era leve, inquieto. Ele imediatamente se endireitou e bocejou.

- Estamos aqui. - Dirk comentou, desnecessariamente.

Gwen não respondeu. A arraia perdeu velocidade conforme a cidade emereliana ficava maior e mais próxima.

Dirk olhou para fora, na direção do amanhecer.

- Dois sóis já nasceram - falou - e, olhe, já dá quase para ver o Satã Gordo. Acho que agora já sabem que partimos. - Pensou em Vikary e em Janacek, aguardando por ele no quadrado da morte desenhado na rua, acompanhados pelos Braiths. Bretan teria caminhado impacientemente, sem dúvida, e feito seu estranho ruído. Seu olho estaria opaco e frio na manhã, como uma brasa morta em seu rosto marcado. Talvez estivesse morto agora, ou Jaan, ou Garse Janacek. Por um breve instante, Dirk corou de vergonha. Aproximou-se de Gwen e passou um braço ao redor dela.

Desafio cresceu diante deles. Gwen guiou o aeromóvel em uma brusca descida através de nuvens brancas desfeitas. A entrada negra de uma pista de aterrissagem se iluminou com a aproximação deles e Dirk viu os números enquanto Gwen entrava nela. Era o 520° andar, uma pista vasta, imaculada e deserta.

- Bem-vindos - uma voz familiar disse enquanto a arraia pairava e mergulhava no piso. - Sou a Voz de Desafio. Posso ajudá-los?

Gwen desligou o aeromóvel e desceu pela asa.

- Queremos nos tornar residentes temporários.

- A tarifa é muito razoável - a Voz falou.

- Leve-nos para um apartamento, então.

Uma parede se abriu, e outro dos carros com pneus-balão foi ao encontro deles. Em tudo, exceto na cor, era gêmeo do que os levara durante a última visita. Gwen entrou, e Dirk começou a carregar o veículo com a bagagem que estava no banco de trás do aeromóvel: o pacote de sensores que Gwen trouxera consigo, três malas cheias de roupas, um pacote de suprimentos de campo para caminhar no interior do bosque. Os dois aeropatinetes, completos, com botas de vôo, estavam no topo da pilha, mas Dirk os deixou no aeromóvel.

O veículo partiu, e a Voz começou a contar para eles os vários tipos de instalações disponíveis. Desafio tinha quartos mobiliados em uma centena de estilos, para fazer as pessoas de outros mundos sentirem-se em casa, embora o gosto de di-Emerel fosse o predominante.

- Algo simples e barato - Dirk pediu. - Uma cama de casal, cozinha e chuveiro.

A Voz os conduziu até um pequeno cubículo com paredes azuis pastel, dois níveis acima. Tinha cama de casal, que preenchia a maior parte do quarto, além de uma quitinete construída dentro de uma das paredes e uma enorme tela de parede colorida que ocupava três quartos de outra.

- Genuíno esplendor emereliano. - Gwen comentou sarcasticamente quando entraram. Ela colocou o pacote de sensores e a mala de roupas no chão e jogou-se aliviada sobre a cama. Dirk acomodou as malas que estava carregando atrás de um armário de porta deslizante e sentou-se aos pés de Gwen, na ponta da cama, e olhou a tela.

- Uma grande seleção de vídeos está disponível para seu entretenimento - a Voz disse. - Lamento informar que toda a programação regular do Festival foi encerrada.

- Você nunca vai embora? - Dirk reclamou.

- Funções básicas de monitoramento continuam o tempo todo, para sua segurança e proteção; mas, se desejar, minha função de serviço pode ser temporariamente desativada na sua vizinhança. Alguns moradores preferem assim.

- Incluindo eu - Dirk falou. - Desative-se.

- Se mudar de idéia ou precisar de algum serviço - disse a Voz -, simplesmente aperte o botão marcado com uma estrela em qualquer painel de parede próximo, e estarei novamente às suas ordens. - Então ficou em silêncio.

Dirk esperou por um momento.

- Voz? - chamou. Ninguém respondeu. Assentiu com satisfação e voltou a inspecionar a tela. Gwen, atrás dele, já estava adormecida, a cabeça apoiada nas mãos e o corpo encolhido de lado.

Queria ligar para Ruark desesperadamente, para descobrir o que acontecera no duelo, quem vivera e quem morrera. Mas não achava que já fosse seguro. Um dos kavalarianos - ou mais do que um - podia estar fazendo companhia a Ruark em seus aposentos ou na sala de trabalho, e uma ligação delataria a posição deles. Tinha que esperar. Antes de partirem, o kimdissiano lhes dera o número de um apartamento deserto dois andares acima do seu, e dissera para Dirk ligar naquele número assim que anoitecesse. Se fosse seguro, prometia estar ali para atender a ligação. Caso contrário, não haveria resposta. De qualquer maneira, Ruark não sabia para onde os dois fugitivos haviam ido, então os kavalarianos não poderiam arrancar essa informação dele.

Dirk estava muito cansado. Apesar de seu cochilo no aeromóvel, durante a viagem, a exaustão pesava sobre ele, misturada com as escuras cores da culpa. Finalmente tinha Gwen ao seu lado, mas não se sentia exultante. Talvez ficasse assim mais tarde, quando suas outras preocupações tivessem desaparecido e eles começassem a se conhecer novamente, como era em Ávalon, sete anos atrás. Mas isso não seria possível até que estivessem em segurança, fora de Worlorn, longe de Jaan Vikary, Garse Janacek e de todos os outros kavalarianos, longe das cidades mortas e das florestas moribundas. Voltariam para dentro do Véu do Tentador, Dirk pensou olhando ausente para a tela em branco, deixando a Orla para sempre. Iriam para Tara, Braque ou outro planeta saudável, talvez de volta a Ávalon, talvez para mais longe, até Gulliver, Vagabundo ou Velho Posseidon. Havia centenas de mundos que nunca vira, milhares, mais - mundos de humanos, não humanos e alienígenas, todos os tipos de distantes lugares românticos onde ninguém ouvira falar em Alto Kavalaan ou Worlorn. Ele e Gwen poderiam ver esses mundos juntos agora.

Cansado demais para dormir, inquieto e pouco à vontade, Dirk começou a brincar com a tela, testando suas capacidades sem objetivo definido. Ligou-a e apertou o botão marcado com um ponto de interrogação, como fizera no dia anterior no apartamento de Ruark em Larteyn, e a mesma lista de serviços piscou diante dele em tamanho triplicado. Estudou-a cuidadosamente, para aprender todo o possível. Talvez conseguisse algum conhecimento útil, averiguar algo que pudesse ajudá-los.

A lista incluía um número de chamadas para receber notícias planetárias. Digitou, esperando que o duelo do amanhecer tivesse sido noticiado, talvez como obituário. Mas a tela ficou cinza novamente, com letras brancas piscando "Serviço encerrado", até que ele a apagou.

Franzindo o cenho, Dirk tentou outra seqüência, para obter informações do porto espacial e checar os dados de Ruark sobre a nave. Dessa vez, teve melhor sorte. Três naves pousariam no planeta nos próximos dois meses-padrão. A primeira delas, como o kimdissiano dissera, chegaria em pouco mais de duas semanas, uma nave da Orla chamada Teric neDahlir. O que Ruark não mencionara, contudo, era que a nave iria para os mundos exteriores, partindo de Kimdiss e dirigindo-se para Eshellin, depois para o Mundo do Oceano Vinhonegro e, finalmente, para di-Emerel, seu ponto de origem. Uma semana depois, um navio de suprimentos chegaria de Alto Kavalaan. Então, não haveria nada até o Tremor dos Inimigos Esquecidos, retornando, com destino ao Véu.

Mas não seria possível esperar tanto tempo; ele e Gwen teriam simplesmente que pegar o Teric neDahlir e trocar de nave em algum dos mundos um pouco além. Embarcar seria o maior risco que teriam de enfrentar, Dirk refletiu. Era praticamente impossível que os kavalarianos os encontrassem em Desafio, com um planeta inteiro para procurar, mas Jaan Vikary certamente adivinharia que tentariam deixar o planeta assim que possível. Isso significava que ele deveria esperar por eles no porto espacial quando chegasse o momento. Dirk não sabia como lidariam com isso. Apenas podia esperar que não fosse necessário.

Dirk limpou a tela e tentou outros números, para saber quais funções haviam sido desligadas completamente, quais funcionavam precariamente - o serviço de emergência médica, entre eles - e os que ainda estavam ativos como nos tempos do Festival. Viu várias imagens das outras cidades, o que o convenceu de que haviam escolhido corretamente ao vir para Desafio. Os emerelianos tinham se determinado a fazer uma torre-cidade imortal e a mantiveram em funcionamento, apesar do frio, da escuridão e do gelo que chegava. Esse era um local cômodo para se viver. As outras cidades estavam comparativamente em piores condições. Quatro das catorze estavam completamente escuras e sem energia, e uma delas sofrerá tanta erosão do vento e do clima que estava quase desmoronando em ruínas empoeiradas.

Por um tempo, Dirk continuou a apertar botões, mas finalmente a brincadeira o cansou e sentiu-se entediado e inquieto. Gwen dormia. Ainda era manhã, impossível ligar para Ruark. Desligou a tela, lavou-se rapidamente no minúsculo banheiro e voltou para a cama, apagando as luzes. Levou algum tempo até dormir. Ficou deitado na morna escuridão, encarando o teto e ouvindo a suave respiração de Gwen, mas sua mente estava distante e preocupada.

Logo tudo ficará bem novamente, disse para si mesmo, do jeito que era em Ávalon. Mesmo assim, não conseguiu acreditar. Ele não se sentia como o velho Dirk t'Larien, o Dirk da Gwen, aquele que prometera a si mesmo que voltaria novamente. Sentiu, em vez disso, como se nada tivesse mudado; continuava tão cansado, tão sem esperanças como estivera em Braque e nos mundos antes desse. Sua Jenny estava com ele novamente, deveria estar transbordando de alegria, mas sentia apenas uma triste sensação de cansaço. Como se tivesse falhado com ela novamente.

Dirk colocou os pensamentos de lado e fechou os olhos.


Quando acordou, era tarde. Gwen já havia se levantado. Dirk tomou um banho e vestiu trajes de tela sintética de Ávalon, de cores suaves. Então os dois saíram para o corredor, para explorar o 522° andar de Desafio. Andavam de mãos dadas.

O apartamento deles era um dos milhares do setor residencial do edifício. Ao redor havia outros, idênticos ao deles, exceto pelos números nas portas negras. Os pisos, as paredes e os tetos dos corredores que atravessaram eram todos acarpetados em ricos tons de cobalto, e as luzes que pendiam em cada cruzamento, em globos pálidos e opacos, repousantes para os olhos, faziam jogo com esses tons.

- Isso é chato - Gwen disse, depois que andaram por alguns minutos. - A uniformidade é muito deprimente. E não vejo nenhum mapa. Fico surpresa que as pessoas não se percam.

- Acho que perguntam o caminho para a Voz - Dirk falou.

- Sim. Esqueci disso. - Ela franziu o cenho. - O que aconteceu com a Voz? Não a ouvi muito ultimamente.

- Eu a desliguei - Dirk contou. - Mas ainda está nos observando.

- Pode colocá-la em funcionamento de novo?

Ele assentiu, parou e então a levou até a porta negra mais próxima. O apartamento, como imaginara, estava desocupado e abriu facilmente ao seu toque. Dentro, a cama, a decoração, a tela de parede, era tudo igual. Dirk ligou a tela, apertou o botão marcado com uma estrela e desligou o aparelho novamente.

- Posso ajudá-los? - perguntou a Voz.

Gwen sorriu para Dirk; um sorriso leve e tenso. Parecia tão cansada quanto ele. Havia linhas de preocupação nos cantos de sua boca.

- Sim - ela respondeu. - Queremos fazer algo. Divirta-nos. Mantenha-nos ocupados. Mostre-nos a cidade. - Dirk achou que ela falava muito rápido, como alguém que ansiava por distração para afastar a mente de algum assunto desagradável. Ele se perguntou se temia pela segurança deles, ou se eram possíveis preocupações com Jaan Vikary.

- Entendo - a Voz respondeu. - Deixe-me ser seu guia, então, pelas maravilhas de Desafio, a glória de di-Emerel renascida na distante Worlorn. - Então começou a dar-lhes instruções, e foram até os elevadores mais próximos, para sair desse reino sem-fim de retos corredores cobalto, para regiões mais coloridas e divertidas.

Subiram ao Olimpo, um salão luxuoso no alto da cidade, e ficaram parados em um carpete negro que chegava aos tornozelos, enquanto olhavam para fora através da única janela de Desafio. Um quilômetro abaixo deslizavam fileiras de nuvens escuras, empurradas por um vento cortante que não podiam sentir. O dia estava escuro e sombrio; o Olho do Inferno queimava e brilhava como sempre, mas seus companheiros amarelos estavam escondidos atrás de uma bruma cinzenta que embaçava o céu. Podiam ver as distantes montanhas e o fraco verde-escuro da Comuna muito abaixo deles. Um robô-garçom serviu-lhes bebidas geladas.

Caminharam até o espigão central, um vão cilíndrico que atravessava a torre-cidade do topo à base. De pé no balcão mais alto, deram as mãos e olharam juntos para baixo, por outros balcões em fileiras sem-fim que se perdiam em um abismo pouco iluminado. Então abriram a porta de ferro fundido, saltaram e, ainda de mãos dadas, caíram flutuando envoltos na corrente morna. O espigão central era uma instalação recreativa que mantinha um traço de gravidade que dificilmente era grande o suficiente para ser chamada de gravidade - menos de 0,01 por cento da gravidade em di-Emerel.

Foram até a galeria externa, um amplo corredor que descia em espiral pela borda da cidade, como um imenso parafuso, para que um turista mais ativo pudesse fazer o percurso da base até o topo. Restaurantes, museus e lojas alinhavam-se dos dois lados da galeria. No meio havia corredores de tráfego, agora vazios, destinados aos carros com rodas-balão e a veículos mais velozes. Uma dúzia de esteiras rolantes - seis para cima, seis para baixo - integravam o centro da galeria gentilmente curva. Quando seus pés ficaram cansados, subiram em uma esteira, depois em uma mais rápida, e então em outra mais rápida ainda. Enquanto o cenário passava por eles, a Voz apontava itens de mais interesse, mas nenhum deles chamou particularmente sua atenção.

Nadaram nus no Oceano Emereliano, um pseudomar de água doce que ocupava a maior parte do 231° e do 232° andares. A água era verde, brilhante e cristalina, tão dlimpa que podiam ver algas balançando sinuosamente no fundo. Sobre eles, painéis luminosos criavam a ilusão de um brilhante sol. Pequenos peixes necrófagos nadavam de um lado para o outro nas zonas mais baixas do oceano; na superfície, plantas flutuantes balançavam e seguiam à deriva como cogumelos gigantes feitos de feltro verde.

Usaram esquis-elétricos para descer a rampa, em um quase-vôo sobre o plástico de baixo atrito que os levou do centésimo andar até o primeiro. Dirk desceu duas vezes, mal chegando ao final do percurso para subir novamente.

Visitaram um ginásio de queda-livre.

Olharam os auditórios na penumbra, construídos para receber milhares de pessoas, e se recusaram a assistir aos holodramas que a Voz lhes ofereceu.

Comeram, rapidamente e sem apreciar, em um café no meio de um shopping antigamente cheio de gente.

Vagaram por uma selva de árvores retorcidas e musgo amarelo, onde os sons dos animais eram todos gravados e ecoavam estranhamente pelas paredes do quente e vaporoso parque.

Finalmente, ainda inquietos e preocupados, e apenas um pouco distraídos por tudo aquilo, deixaram que a Voz os conduzisse de volta aos seus aposentos. Do lado de fora - a Voz informou -, o verdadeiro crepúsculo caía sobre Worlorn.

Dirk ficou em pé no estreito espaço entre a cama e a parede enquanto apertava os botões em seqüência. Gwen sentou-se atrás dele.

Ruark levou um longo tempo para responder, longo demais. Dirk se perguntava, apreensivo, se algo terrível ocorrera. Mas nem bem pensara isso, o latejante sinal azul de chamada sumiu, e o rosto gorducho do ecologista kimdissiano encheu a tela. Atrás dele, em uma penumbra cinzenta, estava um apartamento abandonado e sujo.

- Tudo bem? - Dirk perguntou. Olhou de relance para Gwen. Ela estava mordendo o lábio, e sua mão direita estava apoiada no bracelete de jade-e-prata que ainda usava no antebraço esquerdo.

- Dirk? Gwen? São vocês? Não consigo vê-los. Minha tela está escura... - Os olhos claros de Ruark piscaram, inquietos sob mechas de cabelo ainda mais claro.

- Claro que somos nós! - Dirk exclamou. - Quem mais ligaria neste número?

- Não consigo vê-los... - Ruark repetiu.

- Arkin - Gwen disse, ainda sentada na cama -, se você nos visse, saberia onde estamos.

A cabeça de Ruark balançou. Uma papada dupla apenas se insinuou em seu pescoço.

- Sim, não pensei nisso, você está certa. É melhor que eu não saiba, sim.

- O duelo - Dirk quis saber. - Nesta manhã. O que aconteceu?

- Jaan está bem? - Gwen perguntou.

- Não teve duelo... - Ruark contou para eles. Seus olhos ainda piscavam, procurando por algo para olhar, Dirk supôs. Ou talvez temesse que os kavalarianos invadissem o apartamento vazio. - Fui ver, mas não houve duelo, essa é a completa verdade.

Gwen suspirou audivelmente.

- Então estão todos bem? Jaan?

- Jaantony está vivo e bem, e Garsinho e os Braiths - Ruark falou. - Não houve tiros ou mortes, mas quando Dirk não apareceu para morrer no horário marcado, todos enlouqueceram, sim.

- Conte-me. - Dirk pediu calmamente.

- Sim, bem, você foi a causa do outro duelo ter sido adiado.

- Adiado? - perguntou Gwen.

- Adiado - Ruark respondeu. - Eles ainda lutarão, mesmo modo e armas, mas não agora. Bretan Braith apelou para o árbitro. Disse que tinha o direito de encarar Dirk primeiro, uma vez que podia morrer no duelo com Jaan e Garsinho, e seu agravo contra Dirk ficaria sem ser resolvido. Exigiu que o segundo duelo fosse adiado até que Dirk pudesse ser encontrado. O árbitro disse sim para ele. Uma ferramenta dos Braiths, esse árbitro, sim, concordou com tudo o que o animal propôs. Roseph Alto-Braith, eles o chamaram, um homenzinho completamente maligno.

- Os Jadeferros - Dirk falou. - Jaan e Garse. Não falaram nada?

- Jaantony não. Não disse absolutamente nada, apenas ficou parado muito ereto em um canto do quadrado da morte. Todos os demais rugiam por todos os lados, gritando, uivando e se comportando como kavalarianos. Ninguém mais estava no quadrado além de Jaan, não, mas ele ficou ali parado, olhando ao redor, como se esperasse que o duelo começasse a qualquer momento. Já Garsinho ficou muito bravo. Primeiro, quando você não apareceu, fez piadas sobre você estar doente, depois ficou muito frio e silencioso por um tempo, quieto como Jaan, mas mais tarde estava um pouco menos bravo, acho, então começou a discutir com Bretan Braith, com o árbitro e com o outro participante do duelo, Chell. Todos os Braiths estavam ali, para testemunhar, talvez. Não sabia que tínhamos tanta companhia em Larteyn, não. Bem, eu imaginava, sim, mas é diferente quando estão todos juntos no mesmo lugar. Um par de Shanagates também apareceu, embora não o poeta Açorrubro, então só faltavam três pessoas lá: vocês dois e ele. Do contrário, teria sido como uma reunião do conselho da cidade, com todos vestidos formalmente. - Riu.

- Você sabe o que está acontecendo agora?

- Não se preocupem - Ruark falou. - Vocês dois fiquem escondidos e peguem a nave, sim. Eles não podem rastreá-los, com todo o planeta para caçar! Os Braiths, eu acho, nem vão olhar. Verdade, eles o nomearam quase-homem. Bretan Braith exigiu isso, e seu parceiro falou sobre as antigas tradições, e outros Braiths também, e o árbitro concordou que, se não aparecesse para duelar, você não seria um homem verdadeiro. Então eles o caçarão, talvez, mas não com um propósito especial. Você é agora apenas um animal para ser morto, como qualquer outro.

- Quase-homem - Dirk disse com voz cavernosa. Estranhamente, sentia como se tivesse perdido alguma coisa.

- Para Bretan Braith e os demais, sim. Garse, eu acho, vai tentar seriamente encontrá-lo, mas não caçará você como a um animal. Ele jurou que você duelaria, duelaria com Bretan Braith e então com ele, ou talvez com ele primeiro.

- E quanto a Vikary? - Dirk perguntou.

- Já lhe disse, ele não falou absolutamente nada, nada.

Gwen se levantou da cama.

- Você só está falando sobre Dirk - disse para Ruark. - E quanto a mim?

- Você? - os olhos claros de Ruark piscaram. - Os Braiths disseram que você é quase-homem também, mas Garse não permitiu isso. Ameaçou duelar com qualquer um que tocasse em você. Roseph Alto-Braith protestou. Queria nomeá-la como quase-homem também, como Dirk, mas Garsinho estava muito bravo, e, pelo que entendi, kavalarianos que participam de duelos podem desafiar árbitros que tomam decisões erradas, embora ainda sejam obrigados a seguir essas decisões. Então, doce Gwen, você ainda é betheyn e protegida, e eles só a trarão de volta se a capturarem. Depois você será punida, mas será punida pelos Jadeferros. Na verdade, não falaram muito de você, a maior parte do tempo a conversa girou em torno de Dirk. Afinal, você é apenas uma mulher, hein?

Gwen não respondeu.

- Ligaremos novamente em alguns dias - Dirk falou.

- Dirk, temos que marcar uma data, não? Não estou sempre neste buraco empoeirado. - Ruark deu outra risadinha ao falar aquilo.

- Em três dias, ao pôr do sol. Temos que combinar como vamos pegar aquela nave. Imagino que Jaan e Garse estarão no porto espacial quando chegar o momento.

Ruark assentiu.

- Pensarei nisso.

- Você pode nos conseguir armas? - Gwen perguntou repentinamente.

- Armas? - O kimdissiano fez um barulho de cacarejo. - Verdade, Gwen, os kavalarianos se infiltraram em seu sangue. Eu sou de Kimdiss. O que sei de lasers e coisas afins, tão violentas?

Posso tentar, no entanto, por você e por meu amigo Dirk. Falaremos sobre isso quando conversarmos novamente; agora preciso ir.

Seu rosto se dissolveu, e Dirk apagou a tela antes de virar-se para encarar Gwen.

- Quer lutar contra eles? Isso é prudente?

- Não sei - ela respondeu. Andou até a porta lentamente, virou-se, andou de volta. Então parou de novo; o apartamento era tão pequeno que era impossível caminhar com real veemência.

- Voz! - Dirk chamou, em uma súbita inspiração. - Há alguma loja de armas em Desafio? Um lugar onde possamos comprar lasers e outras armas?

- Lamento informar que as normas de di-Emerel proíbem o porte de armas pessoais - a Voz respondeu.

- E armas esportivas? - Dirk sugeriu. - Para caçadas e tiro ao alvo?

- Lamento informar que as normas de di-Emerel proíbem todos os esportes sangrentos e jogos baseados em violência subliminar. Se você é membro de uma cultura onde tais costumes são apreciados, por favor, tenha em conta que isso não implica insulto ao seu planeta natal. Essas formas de recreação estão indisponíveis por toda Worlorn.

- Esqueça - Gwen falou. - Era uma péssima idéia de qualquer modo.

Dirk colocou as mãos nos ombros dela.

- Não precisaremos de armas em todo caso - disse com um sorriso embora admita que me sentiria um pouco melhor se carregasse uma. Mas duvido que saiba como usá-la se o momento chegar.

- Eu sei - ela falou. Seus olhos, seus grandes olhos verdes, tinham uma dureza que Dirk nunca vira. Por um estranho segundo, ele se lembrou de Garse Janacek e seu olhar azul gélido e desdenhoso.

- Como? - ele perguntou.

Ela gesticulou com impaciência e deu de ombros, então as mãos dele saíram de seus ombros e ela se virou de costas para ele.

- No campo, Arkin e eu usamos armas com projéteis. Para disparar agulhas de rastreamento quando estamos tentando seguir um animal, estudar seus padrões de migração. Dardos soníferos também. E há implantes de sensores do tamanho de uma unha, capazes de lhe dizer tudo o que quiser saber sobre uma forma de vida: como caça, o que come, hábitos de reprodução, padrões cerebrais durante vários estágios do ciclo da vida. Com pistas suficientes, você pode deduzir o funcionamento de todo o ecossistema, a partir dos dados que diferentes espécies nos dão. Mas você tem que implantar seus espiões primeiro, e faz isso imobilizando os sujeitos com dardos. Atirei em milhares deles. Sou boa nisso. Só queria ter trazido uma dessas armas conosco.

- Isso é diferente. - Dirk comentou. - Usar uma arma para algo assim e atirar em um homem com um laser. Nunca fiz nenhum dos dois, mas não acho que dê para comparar.

Gwen inclinou-se contra a porta e olhou para ele com azedu- me a vários metros de distância.

- Você não acredita que eu possa matar um homem?

- Não.

Ela sorriu.

- Dirk, não sou a garotinha que você conheceu em Ávalon. De lá para cá, passei vários anos em Alto Kavalaan. Não foram anos fáceis. Outras mulheres cuspiram no meu rosto. Ouvi Garse Janacek fazer mil sermões sobre as obrigações de jade-e-prata. Fui chamada de quase-homem e de cadela betheyn por outros homens kavalarianos tantas vezes que ocasionalmente me pegava respondendo. - Meneou a cabeça. Sob a larga tiara colocada apertada ao redor da testa, seus olhos eram duras pedras verdes. Jade, Dirk pensou vagamente, jade como o bracelete que ela ainda usava.

- Você está zangada - ele disse. - É fácil ficar zangada. Mas conheço você, amor, e você é essencialmente uma pessoa gentil.

- Eu era. Tentei ser. Mas já se passou muito tempo, Dirk, muito, muito tempo, e isso foi sendo construído, e Jaan Vikary tem sido a única parte boa de tudo isso. Disse para Arkin; ele sabe como me sinto, o que senti. Houve vezes em que estive tão perto... tão perto... Com Garse, especialmente, porque, de um jeito muito estranho, ele é parte de mim, e uma parte ainda maior de Jaan, e machuca mais quando é alguém com quem você se importa, alguém que poderia amar se não fosse por...

Parou de falar. Seus braços estavam cruzados com força sobre o peito e estava franzindo o cenho, mas parou de falar. Ela devia ter visto a expressão no rosto dele, Dirk pensou. Ele se perguntava o que tinha acontecido.

- Talvez você esteja certo - ela disse depois de um instante, descruzando os braços. - Talvez eu não possa matar ninguém. Mas, sabe, algumas vezes sinto como se pudesse. E bem agora, Dirk, eu gostaria muito de ter uma arma. - Deu um risinho sem graça. - Em Alto Kavalaan, é claro, eu não tinha permissão para andar armada. Por que uma betheyn precisaria de uma pistola? Seu alto-senhor e seu teyn a protegem. E uma mulher com uma arma pode atirar em si mesma. Jaan... bem, Jaan tem lutado para mudar várias coisas. Ele tenta. Estou aqui, afinal de contas. A maioria das mulheres nunca deixa a segurança da rocha da fortaleza de seu grupo uma vez que veste o jade-e-prata. Mas, apesar de todas as tentativas, e eu as respeito, Jaan não entende. Ele é um alto-senhor, afinal de contas, e está lutando contra outras coisas também, e para tudo que digo, Garse diz algo diferente. Algumas vezes Jaan nem percebe. E as coisas pequenas, como eu andar armada, ele diz que não são importantes. Falei com ele sobre isso uma vez, e ele me lembrou que sou contra toda essa coisa de andar armada e todo o grande artifício do código de honra, o que é verdade. E, mesmo assim, Dirk, eu sei, eu entendo o que você estava dizendo para Arkin noite passada, sobre querer enfrentar Bretan mesmo sem se sentir ligado pelo código. Senti o mesmo muitas vezes.

As luzes do quarto brilharam por um instante, diminuindo e então recuperando a intensidade.

- O que foi isso? - Dirk perguntou, levantando os olhos.

- Os residentes não devem se alarmar - a Voz disse em seu tom grave e inalterável. - Uma falha temporária do suprimento de energia afetou o andar, mas já foi consertada.

- Falha de energia! - Uma imagem se formou repentinamente na mente de Dirk, a imagem de Desafio (hermética, sem janelas, totalmente fechada) sem energia. Não gostou da idéia. - O que está acontecendo?

- Por favor, não fique alarmado - a Voz repetiu, mas as luzes sobre suas cabeças desmentiram suas palavras. Elas se apagaram completamente e, por um breve segundo, Gwen e Dirk ficaram parados em uma escuridão total e assustadora.

- Acho que é melhor irmos embora - Gwen falou, quando as luzes voltaram. Virou-se, abriu o painel deslizante da parede e começou a tirar as malas. Dirk foi ajudá-la.

- Por favor, não entrem em pânico - a Voz disse. - Para sua própria segurança, insisto que permaneçam em seu apartamento. A situação está sob controle. Desafio tem muitas instalações de segurança, assim como redundância para todos os sistemas importantes.

Terminaram de fazer as malas. Gwen foi para a porta.

- Você está usando a energia secundária agora? - ela perguntou.

- Do primeiro andar até o quinquagésimo, do 251° até o 300°, do 351° até o 451°, e do 500° até o 550° estão usando energia secundária no presente momento - a Voz admitiu. - Isso não é motivo para alarme. Robôs-técnicos estão reparando a energia principal o mais rápido possível, e outros sistemas de reserva existem no caso improvável da energia secundária falhar.

- Não entendo - Dirk falou. - Por quê? Qual é a causa destas falhas?

- Por favor, não fiquem alarmados - a Voz respondeu.

- Dirk - Gwen falou calmamente. - Vamos. - Ela saiu do apartamento, uma mala na mão direita e o pacote de sensores pendurado por uma alça no ombro esquerdo. Dirk pegou as outras duas malas e a seguiu pelos corredores azul-cobalto. Correram na direção dos elevadores, Gwen dois passos adiante, os carpetes abafando os sons dos passos.

- Residentes que entram em pânico são mais propensos a se ferir do que aqueles que permanecem na segurança dos apartamentos enquanto durar esta pequena inconveniência - a Voz os recriminou.

- Diga-nos o que está acontecendo e podemos reconsiderar. - Dirk respondeu. Não pararam nem reduziram o passo.

- Os regulamentos de emergência já estão em vigor - a Voz insistiu. - Guardiões foram enviados para conduzi-los de volta ao apartamento. Isso é para sua própria proteção. Repito, guardiões foram enviados para conduzi-los de volta ao apartamento. As normas de di-Emerel proíbem... - As palavras começaram repentinamente a ficar confusas, e a voz baixa se ergueu até se converter em um gemido rouco que arranhou seus ouvidos. Parou em um silêncio assustador.

As luzes se apagaram.

Dirk parou um instante, então deu dois passos adiante na espessa escuridão e trombou em Gwen.

- O quê? - ele disse. - Me desculpe.

- Quieto - Gwen sussurrou e começou a contar os segundos. No treze, os globos pendurados nos cruzamentos dos corredores acenderam novamente. Mas a luz azul era pálida e espectral, pouco mais que suficiente para que pudessem enxergar alguma coisa.

- Vamos - Gwen falou. Começou a andar de novo, mais lentamente dessa vez, avançando com cautela na penumbra azulada. Os elevadores não estavam muito longe.

Quando as paredes falaram com eles, a voz não era a Voz.

- Esta é uma cidade grande - disse -, mesmo assim, não é grande o suficiente para escondê-lo, t'Larien. Estou esperando nos sótãos mais profundos dos emerelianos, no quinquagésimo segundo subsolo. A cidade é minha. Venha até mim, agora, ou toda a luz se apagará ao seu redor, e, na escuridão, meu teyn e eu vamos caçá-lo.

Dirk reconheceu a voz que falava. Era inconfundível. Em Worlorn, ou em qualquer outro lugar, não seria fácil reproduzir a voz sibilante e rouca de Bretan Braith Lantry.

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