XVI A mão esquerda da escuridão (do diário de Estraven)

Odyrny thern (primeiro mês de inverno — 24.° dia). Ai me pergunta, metido no seu saco de dormir: “O que você está escrevendo, Harth?” “Um registro”, respondo-lhe. Ele sorri: “Eu deveria estar mantendo um diário para os arqui­vos ecumênicos, mas sem gravador nunca conseguiria”.

Expliquei-lhe que esses apontamentos são para a minha gente de Estre, que os incorporarão, se os acharem adequa­dos, aos registros dos domínios. Isto levou meu pensamento ao meu lar e ao meu filho. Procuro afastá-lo do meu espírito e pergunto: “Seus pais são vivos?” “Não”, responde Ai, “mor­tos há setenta anos.” Fiquei intrigado. Ele não tinha ainda trinta anos de idade. “Você está contando um tempo de extensão diferente do nosso?” “Não. Bem, estou dando sal­tos no tempo. Vinte anos da Terra até Hain-Davenant, daí mais cinqüenta para Ellul, de Ellul para cá mais dezessete. Vivi fora da Terra apenas sete anos, mas nasci há mais de cento e vinte anos.”

Há muito tempo, em Erhenrang, ele me explicara como o tempo era encurtado dentro das naves que vão tão rápidas quanto a luz das estrelas, mas não tinha computado isto con­tra a extensão da vida humana ou das vidas que ele deixa atrás de si no seu próprio mundo. Enquanto ele vivia algu­mas horas em uma destas naves, inimagináveis, indo de um planeta a outro, todos aqueles que ele deixou para trás tornaram-se velhos e morreram; seus próprios filhos envelhe­ceram. “Eu pensava”, disse-lhe finalmente, “que só eu era um exilado.” “Você por minha causa e eu pela sua”, disse ele, e riu-se novamente, um som quase alegre naquele pesado silêncio.

Estes três últimos dias, desde que descemos o passo, têm sido de trabalho duro, quase desperdiçado, mas Ai não está mais abatido nem ultra-otimista; e tem mais paciência comigo. Talvez as drogas já tenham sido eliminadas de seu organismo. Talvez tenhamos aprendido a trabalhar juntos.

Passamos o dia descendo do esporão basáltico que le­váramos todo o dia anterior a galgar. Visto do vale embaixo, parecia um bom caminho para o gelo, mas quanto mais alto subíamos nos encontrávamos com um paredão rochoso de pedras frouxas e um declive cada vez mais íngreme até que, mesmo sem trenó, não o poderíamos escalar. Voltamos e hoje à noite estamos aqui embaixo novamente.

Nada cresce nesta terra de rochas, campos de rochas soltas, uma espécie de terreno baldio cheio de seixos, barro, lama. Um dos braços da geleira desapareceu desta vertente nestes últimos cem anos, deixando a carcaça nua da terra exposta ao ar; nenhuma carne, nenhum mato. Aqui e ali, fumarolas espalham uma espécie de nevoeiro amarelado, baixo, pouco acima do solo, ascendendo lentamente no ar que cheira a enxofre. A temperatura está a doze graus, a atmosfera parada, pesada. Tenho esperança de que nenhuma neve pesada caia até que saiamos deste lugar malfazejo, até chegarmos ao braço da geleira a algumas milhas a leste da cadeia rochosa. Parece-se a um largo rio gelado, descendo do platô, entre duas montanhas vulcânicas, ambas coroadas com vapores e fumaça. Se o alcançarmos através das vertentes do vulcão mais próximo, ela nos dará um caminho até o platô gelado. Na direção leste, uma pequena geleira desce até um lago gelado, mas corre de modo sinuoso, e daqui grandes fissuras podem ser vistas nela; e intransponíveis para nós, equipados como estamos. Concordamos em experimentar as geleiras entre os vulcões, apesar de que, nesta direção leste, iremos perder a contagem de dois dias na nossa meta final, um na direção leste e outro recuperando o caminho de volta.

Opposthe thern (25.° dia). Está nevando neserem[12]. Impossível viajar. Dormimos todo o dia. Temos rebocado o trenó há quinze dias, o sono nos fará bem.

Ottormenbod thern (26.° dia). Ainda neserem. Dor­mimos o bastante. Ai ensinou-me um jogo da Terra que se joga com pequenas pedras quadradas; é um jogo excelente e difícil, chama-sego. Como ele observou, há muitas pedras aqui para se jogar go. Ele está suportando o frio bastante bem, e se coragem bastasse, iria até gostar dela como um verme da neve. É engraçado vê-lo entrouxado em casaco, manta e capuz, quando a temperatura está acima de zero; mas quando estamos arrastando o trenó, se o sol está a des­coberto e o vento não muito cortante, ele tira o casaco e transpira como qualquer um de nós. Combinamos uma regra de meio termo quanto ao aquecimento da tenda. Ele gostaria que ela fosse mais quente e eu, mais fria, pois o conforto de um é a pneumonia do outro. Decidimos por uma média e ele tirita quando está fora do saco de dormir, enquanto eu transpiro abundantemente no meu; mas tomando-se em consideração a distância de mundos que nos separa, parti­lharmos juntos essa tenda já é um sucesso razoável.

Getheny thanern (segundo mês de inverno — 1.° dia). Saímos da tempestade de neve; vento acalmado, tempe­ratura em torno de quinze graus todo o dia. Acampamos na vertente ocidental do vulcão mais próximo, monte Dremegole, segundo o meu mapa de Orgoreyn. Seu companheiro, do outro lado do rio gelado, é chamado Drumner. O mapa é pobre em informações; há um grande pico a oeste que não está registrado nele e tudo está fora de escala. Os orgotas, evidentemente, conhecem pouco suas montanhas de Fogo. Na verdade há muito pouco a oferecer, a não ser grandeza. Hoje o trabalho foi pesado, arrastamos o trenó numa exten­são de onze milhas. Solo muito rochoso. Ai já está dormin­do. Eu arranhei o tendão do meu calcanhar, tentando des­vencilhar o pé que se encravara entre dois pedregulhos, e manquei a tarde toda. O repouso noturno deve curá-lo. Amanhã deveremos estar na descida para a geleira.

Nosso estoque de alimentos tem caído assustadoramen­te, mas é porque temos comido do alimento mais sólido. Tínhamos cerca de cem libras de comida bruta, metade dela roubada em Turuf; sessenta libras se foram após quinze dias de viagem. Já comecei o gichy-michy, uma libra por dia, economizando dois sacos de germe de kadik, açúcar e um cesto de bolos de peixes secos para variarmos depois. Estou contente de haver consumido esta carga mais pesada, pois o trenó desliza mais fácil.

Sordny thanern (2° dia). Estamos a vinte graus; chuva gelada, vento descendo pelo rio de gelo como uma correnteza num túnel. Acampamos a um quarto de milha da orla, ao longo de uma comprida estria de fim. A descida do Dremegole foi áspera e difícil, na rocha nua ou em ter­reno rochoso; as bordas da geleira são cheias de fissuras e tão coalhadas de cascalhos e rochas descidas junto com o gelo, que achamos melhor colocar o trenó novamente sobre rodas.

Antes que tivéssemos percorrido cem jardas, uma roda rachou e o eixo entortou. Usaremos lâminas, de agora em diante. Fizemos apenas quatro milhas hoje; ainda na direção errada. A geleira parece fazer uma longa curva para oeste até o platô de Gobrin. Aqui, entre vulcões, a distância é de cerca de quatro milhas de largura e não deveria ser difícil cami­nhar para o centro, apesar de se apresentar com mais fendas e com uma superfície mais irregular do que eu esperava.

O Drumner está em erupção. A saraivada úmida que cai nos chega à boca com gosto de fumaça e de enxofre. Uma escuridão pairou todo o dia a oeste, mesmo sob as nuvens de chuva. De vez em quando, as nuvens, a chuva, o gelo, o ar, tudo se transformava, tingindo-se de um vermelho som­brio, que ia desmaiando lentamente até o acinzentado. A geleira treme um pouco sob nossos pés.

Eskichwe rem ir Her apresentou uma hipótese sobre a atividade vulcânica na zona nordeste de Orgoreyn e do Arquipélago: sua atividade seria gradativamente aumentada nestes últimos milênios e pressagiaria o fim da era glacial, ou, pelo menos, sua recessão, e o começo de um período interglacial. O gás carbônico liberado pelos vulcões na atmosfera serviria como isolador, conservando a energia calórica das ondas longas refletidas pela superfície da terra, embora permitindo que o calor solar direto, provindo de fora, penetrasse sem qualquer perda calórica. A temperatura média mundial, ele diz, terá, no final, uma elevação de trinta graus, até atingir setenta e dois. Sinto-me feliz em não estar vivo nesta ocasião. Ai diz que teorias semelhantes têm sido apresentadas pelos sábios da Terra para explicar a recessão da sua última Idade do Gelo. Tais teorias permanecem, na maior parte, sem possibilidades de prova e irrefutáveis; nin­guém sabe, com certeza, por que o gelo vai ou vem. A neve da ignorância continua virgem.

Uma grande mesa de fogo arde, agora, na escuridão, sobre o vulcão Drumner.

Eps thanern (3.° dia). O medidor acusa dezesseis mi­lhas de percurso hoje, mas não temos mais do que oito milhas em linha reta, do acampamento de ontem à noite. Estamos ainda no passo de gelo, entre os dois vulcões. O Drumner está em erupção. Vermes de fogo rastejam, descendo suas verten­tes, e podem ser vistos quando o vento varre os sedimentos em ebulição, as nuvens de cinzas e o vapor branco. Sem pausa, de modo contínuo, um chiado ressoa, subitamente, no ar, tão longo e imenso que penetra em todos os poros do nosso ser. A geleira treme, estala, oscila e parte-se sob nossos pés, demoradamente. Todas as passagens que as nevascas poderiam ter lançado através, das fendas profundas desapa­receram, desmanteladas por esses tremores de terra sob o gelo. Movemo-nos para a frente e para trás procurando o término de uma dessas aberturas a fim de impedir que o trenó seja engolido para dentro, em busca da próxima pas­sagem, tendo sempre em mira a direção norte, mas forçados a tomar laterais, ora para a direita, ora para a esquerda.

Mais acima, o Dremegole, fazendo coro com a atividade do Drumner, grunhe e expele uma fumaça fétida.

Esta manhã, quando olhei para Ai, vi que seu rosto havia sido ulcerado pelo frio: nariz, orelhas, queixo, tudo estava de um cinza de morto. Fiz-lhe massagem para lhe restituir a circulação e a vida. Temos que tomar mais cuidado. O vento que sopra aqui é mortífero, esta é a ver­dade; e temos que recebê-lo pela frente quando fazemos nosso arrastão. Sentir-me-ei feliz quando conseguir sair desse braço de gelo cheio de rugas e fendas, entre esses dois mons­tros rosnando. Montanhas são para serem vistas, e não ouvidas.

Arhad thanern. Alguma neve sove, entre quinze e vinte graus. Caminhamos vinte milhas hoje, cinco destas deno­tando avanço; a borda do Gobrin está visivelmente próxi­ma, ao norte, na nossa frente. Podemos agora ver que o rio de gelo tem a largura de milhas, o “braço” entre os dois vul­cões não passa de um dedo e agora chegamos ao dorso da mão.

Olhando para trás, para o caminho já percorrido, vê-se uma corrente de geleiras divididas, estraçalhadas, esmigalha­das pelos picos negros em ebulição. Na frente, ela se alarga, subindo lentamente e encurvando-se suave, tornando mínimas as bordas escuras de terra, indo ao encontro do paredão de gelo mais acima, sob camadas de nuvens, fumaça e neve.

Cinzas vulcânicas caem, agora, misturadas com a neve e o gelo, o chão está coalhado de rebarbas; é uma superfície muito boa para se caminhar mas muito áspera para arrastar coisas, e as lâminas do trenó necessitam de renovação cons­tante das camadas de revestimento protetor.

Algumas vezes, projéteis vulcânicos mais pesados se espatifam no gelo, perto de nós. Eles emitem um sibilo alto quando atingem o solo e o choque do atrito cava um buraco queimado no solo gelado. Cinzas, ao caírem no chão, tamborilam como chuva.

Arrastamo-nos de modo infinitesimal, em direção ao norte, através desse caos de um mundo em formação.

Louve-se esta criação inacabada!

Netherhad thanern. Desde cedo não neva; céu coberto e ventoso. Quinze graus de temperatura. A geleira múltipla em que nos encontramos vai desaguar no vale a leste e esta­mos na sua borda, do lado oeste. Os dois vulcões agora já estão um pouco atrás de nós, apesar de uma vertente íngreme do Dremegole ainda se erguer a leste, quase à altura da nossa vista. Galgamos um ponto onde teremos de escolher entre seguir a geleira na sua longa curvatura para oeste e assim, gradualmente, retornar a subida até o platô de gelo; ou então escalar os penhascos de gelo que estão a uma milha ao norte dessa nossa parada noturna, e assim economizar vinte a trinta milhas de arrastão, à custa deste risco.

Ai é a favor de corrermos o risco. Há uma certa fragi­lidade nele. Parece um ser exposto, desprotegido, vulnerá­vel, mesmo quanto aos seus órgãos sexuais, que ele tem que levar sempre no exterior de si; mas ele é forte, incrivelmente forte. Não estou muito certo de que ele possa arrastar o trenó por mais tempo que eu, mas quando ele o faz tem duas vezes mais força e ligeireza. Ele pode erguer o trenó pela frente ou por trás para facilitar a transposição de um obstáculo. Eu não poderia fazer isto, a não ser que estivesse em dothe. Para tornar coerente essa combinação de força e fragilidade, ele pode chegar facilmente ao desespero e possui uma resposta rápida ao desafio; uma coragem paciente e ardente. A lenta e dura caminhada desses dias o esgotou de corpo e alma; de tal forma que se ele fosse da minha raça eu o julgaria um fraco. Mas ele não é nada disso — tem bravura como nunca vi igual, está sempre alerta. Ele está pronto, decidido a pôr em jogo a vida em qualquer prova de perigo. “Fogo e medo; bons escravos, maus senhores.” Ele faz do medo seu servidor. O medo que o induziria a dar a volta mais longa do percurso. Mas a coragem e a razão estão com ele. Qual a certeza de procurar o caminho mais seguro, numa jornada destas? Há decisões insensatas que eu não tomaria, mas não existe nenhuma segura.

Streth thanern. Falta de sorte. Não houve jeito de levar o trenó para cima, embora gastássemos o dia todo nisso. Neva sove, em rajadas fortes; cinzas espessas misturadas nela. O tempo esteve escuro todo o dia, e o vento, soprando então de leste, novamente jogava o manto de fumo do Drumner na nossa direção. Aqui o chão treme menos, mas houve um grande tremor quando tentávamos escalar uma escarpa em prateleira; soltou-se o trenó do local onde o tínhamos abrigado e fui arrastado com ele uns seis pés abaixo, aos tropeções. Mas Ai, com pulso forte e energia, nos sustentou e evitou que despencássemos abaixo uns vinte pés ou mais, até a base do penhasco. Se um de nós quebrar a perna ou o ombro num vacilo, seria o fim de ambos. Precisamente nisto reside o risco, bem feio, se olharmos de perto.

O vale inferior da geleira atrás de nós está branco de vapor; a lava chega até lá. Não podemos voltar atrás. Ama­nhã vamos tentar a subida mais adiante.

Beren thanern. Pouca sorte novamente. Vamos conti­nuar procurando para leste. O dia de ontem foi tão escuro como o anoitecer. Nossos pulmões ardem, não devido ao frio (permanece acima de zero, sempre, mesmo à noite, com este vento de leste), mas à inalação de cinzas e vapor da erupção. No fim do segundo dia de esforço desperdiçado, avançamos em terreno difícil, que se contorcia entre blocos de pedra e sobre penhascos de gelo, sempre detidos por um paredão liso ou uma saliência intransponível, tentando e fa­lhando outra vez. Ai ficou exausto e enraivecido. Parecia prestes a chorar, mas não o fez. Creio que ele acha que chorar é mau ou vergonhoso. Mesmo quando estava muito mal e enfraquecido, nos primeiros dias da nossa fuga, ele escondia seu rosto de mim quando chorava. Que razões pessoais, raciais, sociais, sexuais — que sei eu? — tem ele para não chorar? Entretanto, seu próprio nome é um grito de dor. Assim me soou, quando, há muito tempo, em Erhenrang, ouvindo falar de um “alienígena”, perguntei seu nome; era como um grito saindo de uma garganta humana.

Ele dorme agora. Seus braços têm espasmos nervosos e crispam-se; é fadiga muscular. O mundo ao nosso redoré feito de gelo, rocha, cinzas, neve, fogo, escuridão, tremores, contorções e gemidos. Olhando para fora, há poucos mi­nutos, vi a incandescência do vulcão como uma floração vermelho-escura no seio de imensas nuvens pairando na es­curidão.

Orny thanern. Ainda sem sorte. É o vigésimo segun­do dia de nossa jornada e desde o décimo dia não fizemos progresso em direção a leste; na realidade regredimos de vinte a vinte e cinco milhas na direção oposta. Desde o décimo oitavo dia nenhum avanço, absolutamente; bem poderíamos ter ficado parados. Se conseguirmos chegar à geleira, tere­mos alimentos suficientes para nos sustentar durante a sua travessia? Este é um pensamento difícil de se afastar da mente. O nevoeiro e a escuridão provindos da erupção im­pedem a visão mais ampla e, assim, fica difícil escolher bem o caminho. Ai quer fazer cada subida que vê, mesmo íngre­me, desde que mostre algum indício de plataforma. Ele fica impaciente com a minha prudência. Temos que controlar o nosso temperamento. Eu estarei emkemmer dentro de um dia ou dois e as tensões irão aumentar. Enquanto isto, bate­mos com as cabeças em penhascos de gelo, num entardecer frio, cheio de cinzas. Se eu escrevesse uma nova lei yomeshta, enviaria os ladrões para aqui, após a morte. Ladrões que roubam sacos de comidas em Turuf. Ladrões que roubam o nome e o lar de um homem e o enviam, coberto de opró­brios, para o exílio. Minha cabeça está pesada; tenho que riscar tudo isso depois, estou muito cansado para reler agora.

Harhahad thanern. No Gobrin. Enfim, no vigésimo terceiro dia chegamos aos gelos eternos do Gobrin.

Logo que partimos esta manhã vimos, a umas poucas centenas de jardas além do nosso, local de acampamento noturno, uma passagem aberta até a geleira, uma estrada encurvada, larga e como que pavimentada pelas cinzas vul­cânicas, desimpedida, dentro daquele caos e entulho da ge­leira, direta através dos penhascos de gelo. Andamos por ela como se estivéssemos caminhando pelas margens do Sess. Estamos nos gelos eternos. Agora vamos para leste de novo, em direção à nossa terra.

Ai contagiou-me com o puro prazer que demonstra por nossa façanha. Olhando com frieza, isto aqui é tão ruim quanto tudo até agora. Estamos na beira do platô. Racha­duras enormes — algumas tão grandes que poderiam engolir um vilarejo inteiro, todas as casas de uma vez -— correm dentro do solo, para o norte, até perder de vista. A maioria barra nosso caminho; sendo assim, temos também que ir para o norte e não leste.

A superfície do solo é difícil. Nós embarafustamos o trenó entre grandes blocos e amontoados de gelo, imensos entulhos levantados pela pressão desse grande lençol de gelo que se atira e se comprime contra as montanhas de Fogo. As bordas dessas superfícies partidas tomam formatos estra­nhos, fantásticos, lembrando torres invertidas, gigantes sem pernas, catapultas, etc. Com uma imensa espessura de quase uma milha, o gelo aqui se ergue e se adensa, como tentando abafar as montanhas e silenciar as bocas de fogo. Algumas milhas ao norte, um pico se destaca, uma pirâmide de arestas aguçadas, desnuda mas não desprovida de graça, de um vul­cão novo; mais novo milhares de anos que este lençol gelado que esmaga e empurra, todo em abismos e fendas, amontoa­dos de grandes blocos maciços ou enrugamentos, sobre seis mil pés de encostas baixas que não podemos ver.

Durante o dia, olhando para trás, vimos a nuvem de fumo que se erguia do Drumner em erupção, pairando como uma grande extensão cinza-acastanhada na superfície do gelo. Um vento moderadamente constante tem soprado, bem ao nível do solo, vindo do nordeste, limpando o ar aqui em cima da fuligem e do mau cheiro das entranhas do planeta, que temos respirado esses dias, e horizontalizando a fumaça que recobre como uma tampa escura as geleiras, as monta­nhas mais baixas, os vales de pedra, o resto do mundo. O gelo parece advertir: “Nada existe, a não ser o gelo eterno”. Mas o vulcão jovem, ali adiante, tem outra coisa a dizer. Não há nevadas, um céu encoberto puro e alto a quatro graus negativos no platô, ao escurecer. Abaixo, uma mixórdia de gelo, gelo antigo. O gelo novo é traiçoeiro, um material escorregadio, azulado, escondido sob uma capa de verniz branco. Nós dois já caímos diversas vezes. Caí e deslizei de barriga sobre ele, uma vez, até uma boa distância. Ai, que estava nos arreios, riu-se a valer. Depois desculpou-se dizen­do que pensara ser eu a única pessoa em Gethen que já saíra deslizando de barriga ao cair no gelo.

Treze milhas hoje. Neste ritmo, entre as encostas re­cortadas, amontoadas e fissuradas, vamos nos esgotar ou chegar a coisa pior que um simples deslizamento de barriga para baixo.

A lua parece de cera; está baixa, avermelhada, escura como sangue coagulado, com um halo acastanhado ao redor.

Guyrny thanern. Alguma neve, vento crescente e temperatura em declínio. Hoje, novamente, treze milhas, o que perfaz uma distância total, desde que acampamos pela primeira vez, de duzentas e cinqüenta e quatro milhas. Temos, assim, uma média diária de dez milhas e meia, onze e meia, se omitirmos os dias em que passamos esperando a tempes­tade passar. Dessas milhas, de setenta e cinco a cem, sendo de tração, não nos deram nenhuma vantagem no avanço.

Não estamos muito mais perto de Karhide do que quan­do partimos. Mas temos uma chance melhor de lá chegar, penso eu.

Desde que conseguimos nos descartar daquela escuri­dão vulcânica e nosso espírito não está engolfado em traba­lho e preocupação permanentes, voltamos a conversar na tenda, à noite, após o jantar.

Como estou em kemmer, seria mais fácil ignorar a pre­sença de Ai se não estivéssemos numa tenda a dois. O que perturba é, naturalmente, que ele também está em kemmer, naquela sua peculiar maneira de ser, isto é, sempre em kem­mer. Deve ser uma estranha espécie de desejo a fogo lento, se espalhando por todos os dias do ano, sem escolha de sexo; mas assim é e aqui estou eu. Hoje à noite, minha consciência aguda de sua presença física era penosa de igno­rar e eu estava demasiadamente cansado para canalizá-la em sublimação ou qualquer outra atitude disciplinadora. Ele, afinal, me perguntou: “Eu o ofendi?” Expliquei-lhe meu silêncio, com um certo embaraço. Tinha receio de que risse de mim. Afinal de contas, ele, para mim, é uma aberração sexual tanto quanto eu o sou para ele: aqui no gelo cada um de nós é um caso singular, isolado, pois eu estou desli­gado da sociedade dos meus iguais, como ele está da dele. Não há outros gethenianos para explicar e comprovar minha existência. Somos iguais, em suma, iguais na solidão, na alienação. Ele não riu, naturalmente. Ao contrário, falou com uma gentileza de que eu não o imaginava capaz. Falou também de isolamento, de solidão.

“Sua raça é espantosamente única no universo. Não há, entre os mamíferos, outra espécie semelhante. Não exis­tem raças ambissexuais. Nenhum animal inteligente o é, mesmo para ser criado como de estimação. Deve dar uma característica toda especial esta singularidade. Não falo do pensamento científico apenas, apesar de vocês serem extraor­dinários formuladores de hipóteses — é notável como vocês chegam ao conceito de evolução tendo que se defrontar com essa falha intransponível entre vocês e os animais inferiores. Mas, filosoficamente, emocionalmente, ser tão solitário num mundo tão hostil tem que alterar todas as perspectivas.”

“O culto yomeshta diz que essa singularidade do ho­mem é a sua divindade.”

“Senhores da Terra, sim. Outros cultos, em outros mundos, chegaram à mesma conclusão. São cultos de cultu­ras dinâmicas, agressivas, destruidoras da ecologia. Orgoreyn está tomando esse padrão; pelo menos eles parecem inclinados a movimentar as coisas ao seu redor. Que dizem os handdaratas?

“Bem, nohanddara… você sabe, não há teorias, não há dogmas. Talvez eles estejam menos cientes dessa distância entre homem e animal, preocupando-se mais com as semelhanças, os laços que unem todas as coisas vivas, como parte de um todo. Um poema de Tormer ficou hoje o dia todo na minha lembrança. São estas suas palavras:

A luz é a mão esquerda da escuridão e a escuridão é a mão direita da luz.

Vida e morte são como amantes na unidade do êxtase — dois em um — como mãos postas, uma contra a outra, são o princípio e o fim.

Minha voz tremeu quando recitei o poema, pois me lembrei, enquanto o pronunciava, que meu irmão, na carta que me escrevera antes de morrer, dizia estas mesmas pa­lavras.

Ai perdeu-se em abstrações e após alguns instantes disse:

“Você está isolado e não-dividido. Talvez você esteja tão obcecado pela totalidade como nós estamos pela duali­dade”.

“Somos dualistas também. Dualidade é essencial, não é? Desde que exista o eu e o outro.

“Tu e eu”, disse ele. “Sim, no final, isto é mais pro­fundo do que sexo…”

“Diga-me, Ai, como o outro sexo de sua raça difere de vocês?”, perguntei. Ele pareceu espantado, e, na reali­dade, minha pergunta também me espantou. Okemmer traz à tona essa espontaneidade nas pessoas. Nós estávamos muito autoconscientes.

“Nunca pensei nisso. Você nunca viu uma mulher.”

Ele usava a palavra que eu já conhecia, na sua língua.

“Vi retratos delas; as mulheres parecem gethenianos grávidos, mas com peitos maiores. Diferem muito do seu sexo mentalmente? São como uma espécie diferente?”

“Não… sim… Não, naturalmente que não… Não, verdadeiramente. Mas a diferença é muito importante. Suponho que a coisa mais importante, o fator único de maior peso na vida do indivíduo, é se ele nasceu macho ou fêmea. Na maior parte das sociedades, isto determina suas expectativas, atividades, pontos de vista, ética, maneiras, quase tudo. Vocabulário, vestuário, até mesmo alimentação. As mulheres, em geral, comem menos. É difícil separar as diferenças con­gênitas das adquiridas. Mesmo quando as mulheres partici­pam igualmente da sociedade com os homens, elas, afinal, é que geram os filhos, cuidam deles e praticamente os criam.”

“Igualdade não é a regra geral, então? Elas são infe­riores mentalmente?”

“Não sei. Elas não se inclinam muito para a mate­mática, composição musical, invenções ou pensamento abstra­to. Mas isto não quer dizer que sejam tolas. Fisicamente são menos musculosas que o homem, mas vivem mais do que eles. Psicologicamente…”

Após um momento de silêncio, fitando o fogo, Ai sa­cudiu a cabeça:

“Harth”, disse, “não sei lhe dizer como são as mu­lheres. Nunca pensei nelas de um modo abstrato, você sabe — e, céus! — quase me esqueci de que estou aqui há dois anos… Você não pode imaginar. Num certo sentido, as mulheres são mais estranhas para mim que você, Harth. Com você, de qualquer forma, eu partilho de um mesmo sexo…” Ele olhou distante e riu, mas pesaroso e cons­trangido. Meus próprios sentimentos eram complexos e dei­xamos morrer o assunto.

Yrny thanern. Dezoito milhas hoje, leste, nordeste pela bússola, nos esquis. Saímos da encosta pressurizada e cheia de fissura na nossa primeira hora de tração. Ambos puxa­mos, eu na frente, primeiro; mas não há mais necessidade de testar o solo com cautela, pois está firme, espesso sobre gelo sólido e sobre ele uma camada de revestimento, algu­mas polegadas de neve nova da última nevasca, com uma boa superfície de deslizamento. Nem nós nem o trenó pre­cisamos abrir caminho; o trenó deslizava tão leve que era difícil de imaginar que ainda carregávamos cem libras para cada um. Durante a tarde, nos revezamos no carreto, pois é muito fácil fazê-lo nesta superfície esplêndida. É uma pena que todo aquele trabalho exaustivo sobre rochas tivesse sido feito em subidas íngremes, quando estávamos tão carregados.

Agora vamos com ligeireza. Carga muito leve, descubro-me a pensar em comida, um bocado. “Nós comemos”, diz Ai, de modo etéreo.

Todo o dia deslizamos leve e rápido sobre a planície gelada, bem nivelada e branca de todo, sob um céu cinza-azulado, sem falhas, exceto alguns picos negros atrás de nós, e uma mancha avermelhada, a respiração do Drumner mais distante. Nada mais: o sol velado, o gelo eterno.

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